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05/05/2020 A Teoria Platônica da Eikasia - Contra os Acadêmicos

A Teoria Platônica da Eikasia

Por Herbert James Paton

Admite-se universalmente, suponho, que a seção da República que trata da linha e da


caverna é uma das passagens mais importantes, se não for a mais importante, para a
apropriada compreensão da posição de Platão a respeito dos problemas do
conhecimento. E, no entanto, é quase impossível prover uma descrição coerente dessa
divisão quádrupla, ou das razões que podem ter levado Platão a criá-la. Não é incomum
dizer que não há diferença fundamental entre as duas atividades mais altas ou entre seus
objetos, mas muitos daqueles que reconhecem nelas uma distinção a ada entre a
loso a, as ciências matemáticas e seus objetos não conseguem enxergar qualquer
distinção similar na parte mais baixa da divisão. Para eles, não é útil distinguir entre
εἰκασία e πίστις. Para eles, assim como para o So sta, uma sombra é tão real quanto o
objeto que a suscita, e encontramos, por exemplo, o crítico americano sr. Shorey
categoricamente a rmando que εἰκασία e εικόνες são conceitos “jocosamente atirados”
pelo bem da “simetria”. É certamente uma leitura estranha do caráter de Platão, um
investigador da verdade, supor que ele jogaria, no coração da maior de suas obras e no
centro do problema do conhecimento, uma “jocosidade” capaz de confundir aqueles que
pretendem compreender sua doutrina, ainda que o zesse pelo bem da “simetria”.

É estranho que em um lugar marcado pela suprimida, mas tensa, emoção de alguém que
está estabelecendo a exata essência do próprio pensamento, surgisse, sem a menor pista
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ou aviso, uma passagem sem precedentes na sua obra. No melhor dos casos, isso seria
super cial — e, no pior, enganoso. É ainda mais estranho que em um diálogo posterior —
O So sta, o cume do argumento, a questão da possibilidade do erro e do so sma,
dependesse de uma distinção da mesma forma vazia, expressa em palavras quase
idênticas. Se temos algum respeito por Platão como pensador, devemos rebaixar essa
ideia à improbabilidade grotesca; e a mera incapacidade do crítico para entender sua
doutrina não será, para nós, prova su ciente de que não há doutrina a ser entendida.

A interpretação que buscamos sustentar é a de que cada uma das quatro seções da linha
representam um tipo diferente de atividade cognitiva, e os objetos destas diferentes
atividades são também objetos diferentes.

Para estabelecê-lo, devemos nos voltar ao argumento que imediatamente antecede a


divisão quádrupla. Tentemos estabelecer uma distinção entre δόξα, ou opinião, e
έπιστήμη, ou conhecimento. A δόξα deve estar entre a ignorância e o conhecimento, e
seus objetos entre os objetos da ignorância e os do conhecimento. Para estabelecer a
distinção, consideremos as δυνάμεις, isto é, as faculdades (ou propriamente potências).
Uma potência difere de outra segundo seus diferentes objetos e suas diferentes funções
— εΦ’ ω τε εστι kαι ο απεργαζεται. A potência da visão tem a função de ver, e seus objetos
são as cores. A potência da audição tem a função de escutar, e seus objetos são os sons. Já
o conhecimento, se é mesmo conhecimento, deve ser infalível — isto é muito importante
—, enquanto a opinião, como é apenas opinião, pode falhar. Em outras palavras, porque
as funções do infalível e do falível devem ser diferentes, conhecimento e opinião são
diferentes δυνάμεις, logo, possuem objetos diferentes. Tal é o argumento de Platão, e soe
bem ou mal, não há dúvidas de que ele aceitava sua conclusão.

Tendo estabelecido a necessidade da diferença dos objetos, prosseguimos perguntando-


nos que são eles. A δύναμις da δόξα está claramente entre a ignorância — que é,
obviamente, nada — e o conhecimento. É como se ela fosse mais clara que a ignorância,
mas menos clara que o conhecimento. Seus objetos encontram-se entre os objetos da
ignorância e os objetos do conhecimento. No entanto, os objetos da ignorância, que nada
são, são eles mesmos nada, ou simplesmente aquilo que não é. Filoso camente não
podemos nos dizer ignorantes de alguma coisa. A rmações ordinárias desta espécie
implicam certa forma de cognição de um objeto que é real em algum sentido. A ignorância
é apenas um vazio, uma escuridão sem objeto. Seus objetos literalmente não existem.

Por outro lado, os objetos do conhecimento são reais de fato — τό παυτελώς όν παντελώς
γνωστόν. Eles são as είδη, ou os verdadeiros universais — os autossu cientes,
independentes, perfeitos, atemporais, realidades inteligíveis, que são, e são o que são, e
não são jamais outros que não eles mesmos. O que são, portanto, os objetos da δόξα?
Esperamos que eles se encontrem entre o que não é — o objeto da ignorância — e o que é
— o objeto do conhecimento. Vemo-los no mundo da τά γιγνόμενα, as coisas sensíveis e
mutáveis, coisas que não são nunca elas mesmas, mas constantemente transformam-se
em outras; coisas que por um lado são, e por outro não são, “alternam entre o ser e o não
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ser”. É nesta esfera que encontramos aquilo que estamos buscando. Esses objetos estão
entre os objetos da ignorância e os objetos do conhecimento. Eles possuem mais nitidez e
realidade do que o vazio, mas menos nitidez e realidade do que os verdadeiros objetos
inteligíveis, captados pela razão sem auxílio da sensibilidade.

Obviamente, pois, para Platão — esteja ele errado ou não — os objetos da δόξα são muito
diferentes dos objetos da έπιστήμη. Esta diferença é a maior das diferenças possíveis. Os
objetos das diferentes δυνάμεις de ver e ouvir eram, como vimos, diferentes. Vemos as
cores e escutamos os sons. Mas esta diferença nem se aproxima da diferença que há
entre os objetos da opinião e os objetos do conhecimento. Em comparação com essa
segunda diferença, as diferenças menores podem ser ignoradas. Em comparação com
essa segunda diferença, os objetos da visão e da audição tornam-se similares, e nós os
classi camos sob a δύναμις da δόξα, que se opõe à δύναμις da ἐπιστήμη.

Veja agora o nosso próximo procedimento. Pegamos uma linha que se estica, como
podemos adivinhar a partir alegoria da caverna, da escuridão à luz. Dividimo-la em duas
partes desiguais, a primeira das quais representando a δόξα, e a segunda a ἐπιστήμη. A
primeira parte, da δόξα, é presumidamente a mais curta, pois possui menos realidade.
Então subdividimos estas duas partes na mesma proporção, obtendo na primeira parte a
divisão menor da εἰκασία e a divisão maior da πιστις; na segunda parte a divisão menor da
διάνοια e a divisão maior da νόησις, ou ἐπιστήμη em sentido estrito. Assim podemos
estabelecer uma proporção matemática, δόξα : ἐπιστήμη = εἰκασία : πιστις = διάνοια :
νόησις ou ἐπιστήμη em sentido estrito. Mais uma vez, mantendo a mesma terminologia
(embora Platão varie), εἰκασία : διάνοια = πιστις : νόησις. Note que esta proporção se
sustenta não só entre as atividades, mas entre seus objetos. Οὐσία, ou ser, o objeto da
ἐπιστήμη : γένεσις, ou vir-a-ser, objeto da δόξα = ἐπιστήμη : δόξα. Platão expressamente
evita delinear as proporções entre as divisões subordinadas e seus objetos, τὴν εᾧ οἷς
ταῦτα ἀναλογίαν, para poupar as palavras. Isto é apenas outro modo de dizer que a
proporção de fato existe.

O que fazemos dessas proporções? Claramente, o que podemos dizer das relações entre
ἐπιστήμη, δόξα e seus objetos, também pode ser dito, em outro grau, das relações entre
as divisões subordinadas e seus objetos. Em primeiro lugar, nós mostramos que os
objetos da ἐπιστήμη e da δόξα são diferentes uns dos outros; e, portanto, é provável que
os objetos das subdivisões sejam também diferentes entre si. Além disso, como a
ἐπιστήμη é mais nítida que a δόξα, e seus objetos são mais reais que os objetos da δόξα, a
potência de cada divisão tem mais clareza que a potência da divisão precedente, e os
objetos de cada potência são mais reais que os objetos da potência que a precede.
Estamos primeiramente mapeando as diferentes potências cognitivas do espírito humano,
as diferentes formas em que elas se manifestam e os diferentes estágios ultrapassados
antes do verdadeiro conhecimento. Estamos, também, mapeando os diferentes objetos
destas diferentes potências. A diferença das potências caminha lado-a-lado com a
diferença dos objetos. O princípio é a rmado claramente por Aristóteles, Nic. Eth. 1139 a

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b. “Objetos genericamente diferentes correspondem a partes genericamente diferentes da


alma, se, como sustentamos, nós os conhecemos por uma espécie de semelhança ou
parentesco.” Πρὸς γὰρ τὰ τῷ γένει ἕτερα καὶ τῶν τῆς ψυχῆς μορίων ἕτερον τῷ γένει τὸ
πρὸς ἑκάτερον πεφυκός εἴπερ καθ᾽ ὁμοιότητά τινα καὶ οἰκειότητα ἡ γνῶσις ὑπάρχει αὐτοῖς.

A diferença das potências, como vimos, é uma diferença de nitidez. Qual a diferença dos
objetos? É uma diferença na realidade, ou, o que para Platão é o mesmo, uma diferença
na inteligibilidade (ἀλήθεια). Tudo o que é, e tudo o que é conhecido, é em certo sentido
real. Os sonhos mais selvagens e as ilusões mais absurdas também o são em algum
sentido. Mas neste real encontramos diferentes tipos, ou graus, de realidade. Começamos
separando todo o real em τὰ ὄντα de um lado (as coisas que são em sentido especial, e
são reais e inteligíveis), e τὰ γιγνόμενα de outro (as coisas eternamente mutáveis, que
vagam entre o ser e o não ser). Sobre τὰ ὄντα realizamos outra subdivisão, que resulta em
τὰ μαθηματικά, os objetos da διάνοια ou das ciências matemáticas, reais, sim, em
comparação com os objetos mutáveis dos sentidos, mas irreais em comparação com a
εἴδη, as verdadeiras realidades, os objetos da νοῄήσις ou ἐπιστήμη. Com τὰ γιγνόµενα
fazemos uma subdivisão parecida: as εικονες, sombras ou re exos, reais em algum
sentido, mas irreais em comparação com a πίστις, os efetivos animais, plantas e artigos
manufaturados com que lidamos na vida desperta. A tese que buscamos estabelecer é a
de que esta divisão mais baixa não é menos importante ou signi cativa que qualquer uma
das outras divisões, e que ela indica nossos primeiros objetos e nossa primeira atividade
no difícil caminho que nos leva em direção ao real.

Mas, antes de começar a justi car este ponto de vista, pode-se perguntar que relação há
entre essas assim chamadas atividades diferentes, e repetir a questão para os assim
chamados tipos diferentes de objetos, e como, en m, é possível passar de um para outro.
Respondemos, em primeiro lugar, que, antes de criticar Platão, precisamos determinar o
que de fato ele quis dizer; em segundo lugar, que devemos tentar lidar com essas
di culdades que dizem respeito à seção especí ca a ser analisada. No entanto, já
podemos dizer que, embora a relação geral entre os diferentes tipos de objetos seja uma
forma única e especial de relação, é possível descrevê-la de forma ampla, inadequada e
metafórica como a relação do signo com o signi cado, do símbolo com o simbolizado, da
aparência com a realidade, ou, olvidando o sentido cientí co, a relação que o efeito tem
com a causa. A relação é aparentemente não idêntica para os objetos dos diferentes
setores, mas a analogia, ou paralelismo, permanece. A relação entre os objetos da εἰκασία
e da πίστις é dada (A República, 510 a) como τὸ ὁμοιωθὲν πρὸς τὸ ω ὡμοιώθη, isto é, a
relação da cópia com o original. Na caverna, é descrita como a relação da sombra, ou
re exo, com a coisa que a suscita, e o mesmo ponto de vista é sugerido pela teoria da
μίμησις no Livro X. Em 511 a é dito existir uma relação similar entre os objetos da πίστις e
os objetos da διάνοια. Os objetos da πίστις que possuem imagens ou cópias de si
mesmos na εἰκασία são apenas imagens ou cópias dos objetos da matemática, e, como se
sabe, é lugar comum que todas as γιγνόμενα são como as εἴδη ou são cópias das εἴδη.
Ainda assim, precisamos nos lembrar de que tudo isto é metafórico, e essas comparações,

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tomadas literalmente, tornam-se enganosas e até mesmo falsas. O próprio Platão o


demonstra em Parmênides quando relaciona a γιγνόμενα com as εἴδη. Se de algum modo
são literais, então valem, penso, para os individuais mutáveis, objetos da πίστις, e os
individuais imutáveis mais reais, objetos da διάνοια. Isto se sugere possivelmente porque,
se nossa proporção sobrevive, o segundo segmento da linha terá o mesmo tamanho do
terceiro. Mas, talvez, estejamos forçando muito o que pode ser apenas um acidente sem
signi cado losó co de nido.

Resumindo nosso avanço, descobrimos com razoável certeza os princípios gerais da


divisão quádrupla — uma diferença de potência envolvendo uma diferença de objetos.
Isto está bem amparado pela alegoria da caverna. Mais provas ou con rmações só podem
ser obtidas com um exame do que são tais objetos e como eles se diferenciam. Aplicar
este exame a cada uma das duas subdivisões certamente tornará mais prováveis as outras
duas. No nosso caso isto é dizer que, se pudermos mostrar que os objetos da διάνοια e da
ἐπιστήμη ou νόησις são diferentes, ou seja, se os objetos da matemática e os objetos da
loso a diferem, alimentamos inde nidamente a presunção de que os objetos da εἰκασία
e da πίστις também se distinguem. Desnecessário dizer que sustentamos a visão segundo
a qual para Platão os objetos da διάνοια e da ἐπιστήμη diferem, como expressamente
a rmou Aristóteles (acrescentando que Platão estava certo). Mas, para o propósito
presente, podemos nos referir apenas à justi cação limitada da Edição de Adam da
República, bem como a alguns comentários contidos na História da Filoso a Grega, de
Burnet.

Passamos, então, à nossa discussão especial sobre εἰκασία e os objetos da εἰκασία, e como
eles diferem da πίστις e dos objetos da πίστις.

Mas, antes, façamos um apanhado das conclusões esperadas.

Εἰκασία é a primeira visão intuitiva e ingênua do real. Seu objeto é simplesmente o que
aparece, τὸ φαινόμενον. Aqui não há distinção entre diferentes níveis de realidade. Pois
ainda não há distinção feita entre o real e o irreal; ou, como preferir, real e irreal não
signi cam nada neste campo. É cognição e há um objeto, mas não há a rmação ou
negação: isto é, não há a rmação do verdadeiro. Verdade e Falsidade, Realidade e
Irrealidade, Fato e Ficção, são distinções ainda latentes. É idêntica àquela αἴσθησις, ou
Intuição, da primeira parte do Teeteto, que o So sta supõe ser o conhecimento, e que, no
entanto, porque ainda não julga, porque ainda não faz a rmações sobre a chamada
Verdade Objetiva, também não pode contradizer nenhuma outra αἴσθησις. Ela não possui
palavra correlata em inglês*, mas podemos chamá-la de Imaginação, ou cognição de
imagens, ou Intuição, ou a mera observação dos objetos.

Seu objeto, como deveríamos esperar da sua derivação, é a εἰκὼν, ou imagem. Não
podemos, entretanto, chamá-la de imagem mental, ajuntando-nos à perigosa linguagem
dos escritores modernos de lógica e psicologia. Nem chamá-la de imagem real, em
oposição à imagem mental. Não é subjetiva como oposta à objetividade, ou objetiva como
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oposta à subjetividade. Estas frases, quando signi cam alguma coisa, querem distinguir
entre o real e o irreal, e neste primeiro estágio da consciência, examinado, como deve ser,
desde o interior, essa distinção ainda não emergiu. Nem mesmo podemos dizer que ela é
uma confusão da imagem pela coisa, o irreal pelo real. Isto é o erro, mas não a εἰκασία. Na
εἰκασία, mais uma vez repetimos, não há distinção entre o real e o irreal, e
consequentemente não há como confundir um pelo outro. Não há a rmação de verdade,
e não há, consequentemente, possibilidade de erro.

Finalmente podemos avançar e indicar seus objetos em detalhe, e se eles não parecem ter
importância metafísica, esperamos demostrar mais à frente que isto é falso. As imagens
são “primeiramente as sombras, depois os re exos na água e em todas as coisas densas,
lisas e reluzentes e suas similares” — μὲν τὰς σκιάς, ἔπειτα τὰ ἐν τοῖς ὕδασι φαντάσματα
καὶ ἐν τοῖς ὅσα πυκνά τε καὶ λεῖα καὶ φανὰ συνέστηκεν, καὶ πᾶν τὸ τοιοῦτον.

A ideia não é muito trabalhada nesta passagem porque Platão está preocupado com
temas mais altos, mas aprendemos do décimo livro que o artista também segura um
espelho contra a natureza, e ele aparenta criar animais, plantas e artigos manufaturados
(as mesmas coisas que mais tarde descobriremos pertencer à πίστις), bem como a terra e
o céu e os deuses e todas as coisas no Céu e na Mansão de Hades debaixo da terra,
quando, na verdade, ele apenas oferece uma simples φάντασμα ou εἰκών dessas coisas.

Encontramos exatamente a mesma opinião no So sta. Temos, de um lado, as coisas feitas


por Deus, não εἴδη, como na República, mas animais, plantas e substâncias inanimadas,
animais e seus elementos, fogo, água e coisas semelhantes, e, de outro lado, temos as
coisas feitas pelo homem, casas e outros artigos manufaturados. Tudo isto é, certamente,
objeto da πίστις. Mas devemos opor a estas imagens as imagens feitas por Deus e as
imagens feitas pelo homem. A descrição é similar àquela da República. “As imagens feitas
por Deus são as imagens ou aparências (φαντάσματα) que nascem de si mesmas durante
o sono ou de dia, por exemplo, uma sombra quando a escuridão encontra a luz do fogo,
ou quando duas luzes, a que pertence e a que não pertence a um objeto, se encontram
em objetos brilhantes e lisos, e criam uma forma que nos dá a sensação contrária daquela
que costumamos ver.” Tά τὲ ἐν τοίς ὕπνοις καὶ ὅσα μεθ᾽ ἡμέραν φαντάσματα αὐτοφνῆ
λέγεται σκιά µεν οταν ἐν τῷ πυpὶ σκοτος ἐγγίγνηται, διπλοῦν δὲ ἡνίκ᾽ ἂν φὼς οἰκεῖόν τε καὶ
ἀλλότριον περὶ τὰ λαμπρὰ καὶ λεῖα εἰς ἕν συνελθὸν τῆς ἔμπροσθεν εἰωθυίας ὄψεως
ἐναντίαν αἴσθησιν παρέχον εἶδος ἀπεργάξηται. Qualquer que seja a teoria dos re exos
contida nesta passagem, está claro que as coisas de que se fala — as imagens feitas por
Deus — são as mesmas da República, as sombras e os re exos das coisas reais, assim
como os objetos que nos aparecem quando sonhamos. A semelhança entre isto e a
linguagem da República é em si mesma notável o su ciente. A adição dos sonhos não é
nem um pouco surpreendente, e é claramente sugerida na República, por exemplo, em
414d, no mito das três naturezas, ouro, prata e bronze, onde Platão a rma que aquela
primeira educação dos guardiões não foi mais que um sonho passado debaixo da terra;
ou quando ele descreve a φιλοθεάμονες como um sonho. E pode-se notar, aliás, o

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completo paralelismo existente entre nós, que na εἰκασία parecemos sonhar com as
γιγνόμενα, e o matemático , que sonha sobre τὸ ὄν — ο’νειρώττουσι μὲν περὶ τὸ ὃν, ὕπαρ
δὲ ἀδύνατον αὐταῖς ἰδεῖν.

Temos, até aqui, imagens feitas por Deus, mas também imagens feitas pelo homem, como
mostrado no décimo livro da República. Não apenas fazemos casas reais, como também o
artista pode pintar outra casa , “que é uma espécie de sonho criado pelo homem àqueles
que estão acordados” — οἷον ὄναρ ἀνθρώπινον ἐγρηγορόσιν ἀπειργασμένην.

É este fato da imagem feita pelo homem o que nos possibilita perseguir o So sta e
apontar a natureza do erro. Certamente isto não seria possível se à doutrina faltasse
importância metafísica; e ainda que falhemos em dar à arte o status de primeira atividade
da alma, não podemos deixar que isto di culte o reconhecimento da verdade. Neste
ponto devemos rea rmar que a doutrina de Platão é profundamente verdadeira.

Nós agora temos como objetos da εἰκασία as sombras e os re exos, os sonhos de quem
dorme e os sonhos do artista.

Voltemo-nos agora ao Teeteto para encontrar o ponto de contato de todas essas coisas.
Aqui temos um estágio preliminar da consciência contra os pensamentos sobre o mundo,
contra o que aqui é chamado δόξα. Este estágio preliminar é chamado αἴσθησις, sensação
ou intuição. Pode-se argumentar que não temos direito de identi car δόξα com πίστις e
αἴσθησις com εἰκασία. O uso de palavras diferentes mostra que lidamos com coisas
diferentes. A isto respondemos que, neste caso, usar palavras diferentes não faz
diferença. Qualquer leitor acostumado com as obras de Platão sabe que, quanto à
precisão e à consistência de seu pensamento, ele não é tão cuidadoso com aquilo que
chamamos de terminologia. Mesmo nesta seção particular da República, esta que estamos
examinando, a terminologia varia — mas nunca o argumento —, até onde podemos ver,
sem razão aparente, a não ser, é possível, por questões rítmicas. Assim, δόξα é antes de
tudo distinguida de γνῶσις ou ἐπιστήμη com o uso indiferente destas palavras, por
exemplo, 478c, 477c. Mais à frente, 510-511, ele divide ἐπιστήμη em partes subordinadas
de διάνοια e νόησις. Quando ele retorna ao assunto em 534, νόησις é a palavra usada em
toda a seção, sendo διάνοια e ἐπιστήμη suas respectivas divisões subordinadas. Ainda
mais frequentemente a linguagem varia de acordo com o assunto particular a ser tratado.
É deste modo que na República se fala nos objetos da δόξα como sendo τὰ γιγνόµενα, a
m de apontar sua irrealidade em comparação à εἴδη ou τὰ ὄντα. Isso não o impede de
chamar, no Teeteto, a τὰ ὄντα os objetos da δόξα, isto é, reais em comparação com os
objetos da αἴσθησις.

Nós somente podemos a rmar com Platão οὐ περὶ ὀνόματος ἀμφισβήτησις. Se ele prefere
chamar a mesma coisa por nomes diferentes, não podemos nos fazer de cegos aos seus
signi cados.

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Agora está claro que no Teeteto ele descreve dois estágios do conhecimento e dois
estágios que estão abaixo do nível da διάνοια e da ἐπιστήμη. Na República e no So sta
(nós retornaremos ao So sta mais tarde), ele parece desenvolver a mesma doutrina dos
dois estágios abaixo da διάνοια com basicamente a mesma linguagem. O que pode ser
mais provável que isto — especialmente se estivemos corretos em colocar o Teeteto entre
a República e o So sta —, que os dois estágios descritos nos três diálogos são o mesmo e
um só? Se descobrirmos que ele ensina a mesma doutrina sobre os dois estágios, a
mudança de nome não nos impedirá de aceitar que ele está tratando de uma única
doutrina.

A δόξα do Teeteto certamente parece ser a πίστις da República, e seus objetos também
parecem ser os mesmos. Ele menciona, por exemplo, um carrinho (isto é, um artigo
manufaturado) como exemplo de objeto. Não penso que alguém encontrará di culdades
em identi car isso. Mas a αἴσθησις pode parecer mais ampla que a εἰκασία. Nós de fato
colocamos certas coisas nesta classe; coisas que naturalmente esperamos encontrar nela.
Colocamos o que nos aparece durante os sonhos — como já havia sido feito no So sta —
e, ademais, o que nos aparece durante a doença, geral e particularmente na loucura. Até
aqui ainda parecemos estar no campo da εἰκασία. Mas adicione-se — e esta é nossa
di culdade — toda a αἴσθησις, toda a ingênua e impensada visão da realidade, seja na
memória ou na imaginação, além de tudo o que ordinariamente chamamos sensações
puras, toda a αἴσθησις que ainda não envolve julgamento.

Estamos sugerindo que essa αἴσθησις geral, ou intuição, é a mesma coisa que a εἰκασία,
mas neste momento a estamos descrevendo com mais detalhes, e só agora pode car
cristalina toda sua extensão e todo o seu signi cado.

Note que isso é exatamente o que deveríamos esperar do propósito dos diferentes
diálogos. Tanto na República quanto no So sta estamos lidando com problemas
particulares. Na República tratamos do caráter da loso a e do treinamento que deve
precedê-la. No So sta nos preocupamos com a natureza do so sma e do erro. Em ambos
os diálogos existem poucas alusões à nossa doutrina, em relação à primeira atividade ou à
inteligência cognoscente, com o m de elucidar o ponto que se nos apresenta. Não há
razão para algum desses diálogos nos fornecer informações sobre a atividade em si.

No Teeteto já ocorre o contrário. Aqui nos preocupamos apenas com os estágios mais
baixos. Penso que o principal propósito do Teeteto é mostrar, através de um exame desses
estágios mais baixos, que eles não nos podem prover conhecimento. É-nos permitido
inferir que só é possível conhecer quando nos voltamos à εἴδη, assim como faria qualquer
discípulo inteligente de Platão. É ridículo dizer que no Teeteto Platão desiste da doutrina
da εἴδη. O diálogo a pressupõe durante todo o trajeto. Mas só porque não estamos
preocupados com ela, mas com os estágios mais baixos, obtemos, naturalmente, mais
informações sobre eles do que em qualquer outro lugar.

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Assim, em primeiro lugar, qual é o caráter geral desse primeiro estágio da experiência
cognitiva? Chama-se αἴσθησις, que não é a sensação, e muito menos a percepção dos
psicólogos. É, ao invés disso, como já havíamos dito, a primeira visão ingênua e intuitiva da
alma, seja através dos sentidos, da memória ou da imaginação, isto é, antes do início do
pensamento. Temos aqui o objeto nu ou imediato, apresentação ou aparência.

Em segundo lugar, qual é a doutrina de Platão sobre o assunto? Ele parece estar mais
inclinado a aceitar a opinião so sta do que rejeitá-la. São três os pontos que ele destaca:
(1) que temos objetos não obtidos dessa forma; (2) que, se considerarmos as coisas deste
modo, afastando a inteligência, obtemos algo que deveríamos chamar uxo de imagens
separadas e alheias entre si —o que naturalmente pode ser descrito como εἰκόνες, os
objetos da εἰκασία; e (3) que, se a mente é meramente passiva, o uxo de imagens passa a
ser simplesmente o uxo de Heráclito, no qual não encontramos alicerce, e no qual, de
qualquer modo, seria impossível haver qualquer objeto diante de nós.

É verdade, admito, que ele não usa a palavra εἰκασία ou εἰκών. Se podemos arriscar uma
conjectura, isto ocorre porque ele não está preocupado em mostrar que a aparência é em
algum sentido similar aos objetos naturais, do mesmo modo como os objetos naturais são
similares à εἴδη — sua grande polêmica na República. Mas ele identi ca αἴσθησις com
φαντασία , o que é próximo o su ciente para os nossos propósitos — e ele fala dos
objetos tanto como φαντάσματαϊ — palavra que ele usa ao lado de εἰκών na República e
de εἴδωλον no So sta — quanto como φάσματα — φάσματα ἐν ἡμῖν — palavra que ele usa
para identi car os fantasmas que aparecem durante o sonho. Ele também usa a apalavra
πάθος para indicar pelo menos a passividade comparativa da alma.

Note principalmente que αἴσθησις não é sentido ou sensação, embora eles estejam
incluídos. Seu objeto é simplesmente τό φαινόμενον, aquilo que aparece, e é o que
aparece, seja nos sonhos ou na loucura, seja nos sentidos, na memória ou na imaginação.
É o que os lógicos modernos chamam de “uma ideia”, tal como na frase “A Associação de
Ideias”.

É agora que começamos a ver sua importância metafísica e perceber que não foi sem boas
razões que Platão a introduziu na República. Os comentadores sugerem com frequência
que a εἰκασία não indica um caminho especial e separado de conhecimento, mas muitos
lósofos chegaram a sustentar que só este caminho, e nenhum outro, é capaz de levar ao
conhecimento. É o que Hume, que compreende o tema muito mais do que seus
defensores ordinários, chama de uxo de impressões e ideias. Foi identi cado pelos
agnósticos de todas as épocas, de Protágoras a Hume, com o todo do conhecimento, e
seus objetos foram identi cados com o todo da realidade. O mundo das aparências é
tudo, tudo é o que parece e parece o que é. É a realidade para mim. A contradição ou o
erro são impossíveis. Não existe algo como a Verdade ou a Filoso a. Memória, sentidos,
imaginação e tudo o que chamamos Pensamento ou Conhecimento estão em um nível
morto, e é este nível que Platão descreve quando diz εἰκασία.

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Até aqui estávamos simplesmente tentando determinar o que Platão quis realmente
classi car com εἰκασία. Devemos agora nos esforçar por entender a razão que o levou a
fazê-lo, e isto provavelmente nos ajudará a compreender sua posição com mais clareza.
Esperamos que deste modo possamos também justi cá-la. Provavelmente todos
concordarão que é natural classi car alucinações, sonhos e até mesmo a imaginação
como εἰκασία, assim como considerar estes elementos uma classe especial de objetos.
Quaisquer dúvidas que possam surgir sobre a razoabilidade da posição platônica será,
provavelmente, quanto (1) aos sentidos e seus objetos, e (2) à atividade e aos produtos do
artista.

Mas antes de prosseguir à analise dessas duas questões, é necessário estabelecer, mais
ou menos dogmaticamente, quais são seus objetos e qual é a atividade da πίστις, a m de
que obtenhamos uma compreensão mais completa da diferença que há entre πίστις e
εἰκασία.

Os objetos da πίστις, como indicam a República e o So sta, são as coisas feitas por Deus:
animais, plantas etc., e as coisas feitas pelo homem, a saber, artigos manufaturados, casas
e cadeiras e coisas do tipo. Elas se distinguem das imagens feitas por Deus, das sombras,
re exos e sonhos, e das imagens feitas pelo homem, digamos, na pintura. Em outras
palavras, estamos falando de coisas reais, coisas do nosso mundo ordinário. Preferimos
chamá-lo de mundo efetivo, ao invés de mundo real, pois o mundo real, estritamente
falando, pertence somente à εἴδη.

A atividade da πίστις é melhor chamada de Julgamento. “A alma,” diz Platão no Teeteto,


“quando pensa, parece-me, a alma está apenas falando, fazendo perguntas a si mesma e
as respondendo, a rmando e negando. Quando ela chega a uma decisão, gradualmente
ou por um impulso repentino, e chega a concordar e a não mais duvidar, eis sua opinião
ou δόξα”, e nós podemos acrescentar: sua crença ou πίστις. Τοῦτο γάρ µοι ἰνδάλλεται
διανο ουμένη οὐκ ἄλλο τι ἢ διαλέγεσθαι, αὐτὴ ἑαυτὴν ἐρωτῶσα καὶ ἀποκρινομένη, καὶ
φάσκουσα καὶ οὐ φάσκουσα. ὃταν δὲ ὁρίσασα, εἴτε βραδύτερον εἴτε καὶ ὀξύτερον ἐπαξασα,
τὸ αὐτὸ ἤδη φῇ καὶ μὴ διστάξῃ, δόξαν ταύτην τίθεμεν αὐτῆς. No So sta encontramos a
clara a rmação, completamente baseada nos argumentos gerais do So sta e do Teeteto,
de que as características do Julgamento são: (1) que a rma ou nega; e (2) que é verdadeiro
ou falso.

Mais tarde, dois elementos se apresentam — um elemento de αἴσθησις, tomado por


idêntico à εἰκασία, e um elemento de pensamento puro. Este elemento do pensamento
pode, aparentemente, ser tanto o pensamento inferior da διάνοια matemática como o
pensamento superior da loso a. É este elemento que nos direciona desde a πίστις até o
pensamento puro sobre τὰ ὄντα, a combinação do elemento da αἴσθησις e aquele
elemento do pensamento que torna o erro impossível. A opinião falsa não está nem entre
as intuições que se relacionam entre si, nem nos pensamentos, mas ἐν τῇ συνάψει
αἰσθήσεως πρὸς διάνοιαν, na combinação de intuição e pensamento. Isto é totalmente
amparado pelo So sta.
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05/05/2020 A Teoria Platônica da Eikasia - Contra os Acadêmicos

A atividade, então, é o Julgamento. Ela é A rmativa ou Negativa, Verdadeira ou Falsa.


Envolve um elemento de αἴσθησις e um elemento de pensamento. Este elemento de
pensamento compreende, entre outras coisas, οὐσια , ou ser, ou realidade, e isto implica
a rmar ou negar a existência do seu objeto. Todo julgamento é um argumento existencial.
Pelo mero pensamento somos capazes de distinguir entre o real e irreal, entre o ser e o
não-ser — uma distinção que não existe na εἰκασία. E agora entendemos como os objetos
do julgamento são as coisas ordinárias da existência efetiva, ou o assim chamado mundo
real.

Isto é dizer que, como a εἰκασία, a πίστις engloba muitos objetos — e não precisamos
reduzi-los para compará-los aos exemplos dados por Platão na República. Ela inclui todas
as a rmações de que algo é verdadeiro ou falso, e toda a γιγνόμενα que é efetiva e
objetiva em oposição ao que é irreal e subjetivo. Compreende em uma palavra tudo o que
não é αἴσθησις, de um lado, ou matemática pura e loso a de outro. É um conhecimento
empírico ou a posteriori, γνῶσις κατὰ τὴν αἴσθησιν. Inclui toda a ciência empírica e toda a
história, assim como os julgamentos ordinários do homem comum, τὰ τῶν πολλῶν πολλὰ
νόμιμα καλοῦ τε πέρι καὶ τῶν ἄλλων.

Agora que indicamos a natureza da πίστις, podemos retornar com mais discernimento
aos nossos dois principais problemas envolvendo a εἰκασία: (1) a questão dos sentidos; e
(2) a questão da arte.

A questão dos sentidos e seus objetos é exageradamente difícil, e talvez seja impossível
vencer todos os seus labirintos sem nos perdermos. Mas notamos, em primeiro lugar, que
essa concepção não é tão diferente, como pode parecer à primeira vista, da concepção
exposta na República. No décimo livro, Platão praticamente identi ca a aparência sensível
com o εικων do artista ou do espelho. Diz-se do artista que imita a cama feita pelo
marceneiro, mas que a cama verdadeira é uma e, ainda assim, tem aparências diferentes
sob diferentes pontos de vista. Há uma diferença entre o que é e o que aparece, οἷα ἔστιν
διὰ οἷα φαίνεται. Note aqui como isso beira a um paralelismo completo com a linha. O que
a εἶδος da cama é para as muitas camas atuais em que ela se manifesta, cada cama efetiva
é para as aparências que ela manifesta aos sentidos. Mas note com atenção que essas
aparências da cama na sensação são chamadas φαντάσματα ou εἴδωλα. São essas coisas
que aparecem aos sentidos, e não a cama efetiva, que é imitada pelo artista; essas
φαντάσματα οἳ εἴδωλα são, na verdade, similares ao trabalho do pintor. O que aparece aos
sentidos está exatamente no mesmo nível das sombras, dos re exos ou das imagens,
sejam feitas por Deus ou pelo homem. Mais uma vez, em Rep. 602c-d vemos uma clara
con rmação de que toda a αἴσθησις, especialmente a visão, está incluída na εἰκασία.
Somos apresentados a um simples caso da passagem das aparências para uma realidade
ou efetividade por trás delas. Platão indica que, no concernente à visão, as coisas podem
parecer tortas dentro da água e retas fora dela; algo pode parecer côncavo quando é
convexo e convexo quando é côncavo; e, no mesmo sentido, duas coisas do mesmo
tamanho serão vistas com tamanhos diferentes pelos olhos conforme a distância do

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observador. Estas aparências sugeridas são as εἰκόνες, e enquanto nós as tomarmos


meramente por seu valor nominal, enquanto estivermos satisfeitos com torná-las claras a
nós mesmos e não buscarmos algo que vá além delas, estaremos na εἰκασία. Até aqui não
há questionamentos sobre o erro. As coisas apenas parecem. Toda aparência é diferente e
isso é tudo. Mas, se quisermos saber o que a coisa realmente é, nós as medimos,
contamos e pesamos, de modo que nossa alma não seja governada apenas pelo peso,
forma e quantidade aparentes, mas pelo peso, forma e quantidade determinados por
medição matemática ou cálculo — τὸ μετρεῖν καὶ ἀριθμεῖν καὶ ἱστάναι. Deste modo
passamos à πίστις, ao mundo efetivo de corpos sólidos — animais, plantas e artigos
manufaturados de fato. Isto claramente signi ca que, até onde vão as qualidades
secundárias — compare com o Teeteto, 154 a —, devemos sempre nos satisfazer com a
εἰκασία ou a αἴσθησις. São o que parecem e podem parecer diferentes a homens
diferentes, ou parecer diferentes aos mesmos homens em épocas diferentes. Mas
qualidades primárias estão outro nível; com respeito a elas, podemos distinguir entre a
mera aparência dada pela εἰκασία e o efetivo determinado pela πίστις.

E não há dúvidas de que, neste ponto, Platão está correto. Como qualquer outra imagem
ou re exo, essas aparências dos sentidos são meras aparências. Elas são o que parecem e
parecem o que são. Cada δύναμις nos dá seus objetos próprios, vemos as cores e ouvimos
os sons, mas τὰ κοινὰ, identidade e diferença, semelhança e dessemelhança e, acima de
tudo, οὐσία, não podem ser captados pelos sentidos. Logo, a não ser pelo pensamento,
αἴσθησις não tem lugar na οὐσία e, portanto, não tem lugar na verdade. Certamente ela
não deve ser classi cada como πίστις, mas como εἰκασία, embora existam certas
di culdades que mencionaremos mais à frente.

Não faz sentido dizer que os objetos da percepção sensorial são distintos dos objetos dos
sonhos ou da imaginação apenas pelo chamado estímulo exterior. À parte a di culdade de
saber o que exatamente isto signi ca, não estamos descrevendo a εἰκασία a partir de seu
exterior, mas de seu interior. De fato, podemos voltar à εἰκασία depois de adquirir
conhecimentos da ciência matemática e uma metafísica explícita para daí distinguirmos
seus objetos. Mas a εἰκασία em si mesma não tem nada que ver com estímulos exteriores,
pois todos os objetos do primeiro estágio cognitivo estão no mesmo nível da realidade, e
aqui não há distinção de coisas mais ou menos reais. É por esta razão que Hume, o mais
consistente dos céticos e o mais sutil defensor de uma εἰκασία coextensiva a tudo o que é
conhecimento, negou-se a distinguir impressões de ideias a partir de uma realidade
exterior; ele as distinguia apenas por graus de mais ou menos vivacidade, ainda que, deste
modo, ignorasse o fato de que as imagens dos sonhos são muitas vezes mais vívidas que
as imagens da vida acordada. É também por esta razão que Hobbes, no primeiro capítulo
do Leviatã, nos informa que “os sentidos, em qualquer caso, não são nada mais que a
ilusão originária”, e também “elas aparecem a nós como ilusões, seja durante o sonho ou
quando estamos acordados”.

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Agora estamos numa posição melhor para compreender a relação entre os objetos da
εἰκασία e da πίστις. É apenas no nível da πίστις que passamos ao efetivo conscientemente
distinguido do aparente. Seu caso típico é a determinação das verdadeiras qualidades
primárias por algum tipo de medição matemática ou pensamento, ἔργον λογιστικοῦ, R.
602 e.

Nós não precisamos entrar em detalhes precisos sobre o caráter deste pensamento
matemático — isto pertence a uma discussão sobre a πίστις, e agora nossa principal
preocupação é a εἰκασία. Mas não se trata apenas de uma medição. Não podemos jamais
enxergar o verdadeiro tamanho de um objeto. Ele nunca aparece na εἰκασία. O tamanho
de um objeto, até onde vai a εἰκασία, nunca é duas vezes o mesmo. Se está
su cientemente longe, nos parecerá um pequeno ponto, e se está su cientemente perto
cortará os céus. Isto se aplica também a uma medida, por exemplo, quando se mede algo
em pés ou em qualquer outra unidade. Quando dizemos que um objeto mede um pé, não
estamos apenas a rmando uma equação entre duas séries in nitas, não estamos apenas
dizendo que uma justaposição do objeto aparente e da medida aparente, estejam eles
longe ou perto dos olhos, sempre resultará em um mesmo tamanho aparente. Não
pensamos que a medida ou o objeto diminuem em tamanho quando se afastam dos
olhos. Pelo contrário, pensamos que o tamanho verdadeiro é invariável e sempre relativo
à proporção de outros verdadeiros tamanhos invariáveis. Acredita-se que esta é a única
teoria razoável capaz de explicar nossas experiências na sensação. Quando re etimos
sobre a quantidade extraordinária de pensamentos cientí cos sutis investida nesta
conclusão — pensamentos que, comparados àqueles que descobriram a lei gravitacional,
são reles brincadeira de criança — e lembramo-nos de que todos nós os realizamos nos
primeiros anos da infância, surpreendemo-nos respeitosos com as conquistas intelectuais
dos mais ordinários dos homens.

Isto nos leva a outro ponto: que os objetos da πίστις, em oposição aos da εἰκασία, são
completamente imperceptíveis, isto é, nunca podem ser dados pela sensação. Vimos que
o verdadeiro tamanho de qualquer objeto é imperceptível, e que nós não podemos
identi car o tamanho verdadeiro com nenhum dos in nitos tamanhos aparentes. A
mesma obviedade se aplica a todas e quaisquer formas sólidas. Se pegarmos uma gura
elementar, como uma esfera sólida e regular, certamente não poderemos enxergá-la
assim. Tudo o que conseguimos ver é um número in nito de formas hemisféricas
aparentes variando in nitamente tanto em cor como em tamanho. Pensando nestas
sensações, concluímos que elas só podem ser explicadas pela hipótese de que, por detrás
delas, há uma esfera sólida invariável em tamanho e incapaz de ser vista, isto é, que há
muitas aparências variáveis de uma única esfera sólida. Quando vemos as teorias dos
cientistas — que estão apenas realizando o mesmo processo mais sistematicamente —
isto ca ainda mais claro. Acreditamos nos seus átomos e elétrons, mas eles certamente
não podem ser vistos.

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Nosso ponto de vista, portanto, é uma defesa do assim chamado realismo, e vai contra os
idealistas da escola berkeleyana, é uma defesa das crenças do homem comum sobre a
existência de um sólido e relativamente permanente mundo de coisas efetivas no espaço.
Também é uma tentativa, pelo menos parcial, de justi car a veracidade das a rmações
cientí cas contra aqueles que, como Benedetto Croce, acreditam ser a ciência mera
invenção ou cção criada para ns de conveniência. Os corpos sólidos efetivos da
consciência comum e da ciência são, sem dúvidas, uma invenção, uma construção — eles
não estão na sensação e nem podem ser dados pelos sentidos —, mas se sua existência é
a única explicação razoável da nossa experiência sensorial, e é a condição para que
tenhamos tal experiência, nos vemos justi cados em crer na sua existência efetiva e em
negar a impraticável teoria do idealismo, que se envolve em di culdades irremediáveis
assim que tenta entender nossa experiência em detalhes. Por outro lado, Platão está
correto em chamar de fé ou πίστις nossa cognição de tais objetos, mas não de
conhecimento. Além de uma necessidade inteligível, que exclui de si mesma qualquer
alternativa possível, não podemos conhecer nada com certeza. Logo, nunca estamos em
posição de a rmar a teoria geral de que corpos sólidos efetivos existem, ou qualquer
outra tentativa particular de elucidar esta teoria em detalhes. E, é claro, devemos admitir
que a relação entre as nossas sensações e os corpos sólidos efetivos — a princípio tão
simples — envolve, talvez, di culdades intransponíveis, especialmente se tentarmos
reverter o processo de transição para entender como ondas de éter ou mudanças
químicas no cérebro podem tornar-se, por exemplo, uma sensação de vermelho. Mas
talvez estejamos fazendo as perguntas erradas, ou criando di culdades a nós mesmos; e,
de qualquer modo, estas di culdades não são maiores do que aquelas do idealista que
nega completamente a existência de corpos sólidos. Platão provavelmente legaria estas
di culdades ao positivamente irreal e ininteligível caráter de toda a γιγνόμενα.

Nós adicionaríamos aqui que estas di culdades emergem para o idealista — como para o
realista — assim que ele tenta explicar a possibilidade de comunicação entre espíritos
diferentes. Um exemplo digno de ser citado é o da intolerável confusão de Croce sobre a
extrinsecação da arte. Nem isso é um acidente. Ainda que na maioria dos casos os
idealistas pareçam admitir a existência de outros espíritos além deles mesmos, eles não
conseguem fazê-lo sem do mesmo modo justi car a existência de corpos sólidos efetivos.
Ambas as assunções são questão de fé racional, não conhecimento; e, de fato, as duas
parecem estar conectadas. Passamos a outros espíritos por uma espécie de silogismo na
esfera da πίστις. Estas aparências coloridas e variadas explicam-se, dizemos, pelos
movimentos de um corpo humano sólido e efetivo. Estes movimentos, por sua vez, só
podem ser explicados pela volição de um espírito eterno. Esta aparência é o símbolo de
um corpo. Este corpo é o símbolo de um espírito. Logo, passamos de sons ouvidos ou
cores vistas para um espírito, que é sua fonte. O segundo estágio do argumento envolve
uma espécie de pensamento losó co, oposto ao pensamento matemático do primeiro
estágio, mas este parece depender da existência daquele, e, de qualquer modo, o
pensamento tem o mesmo caráter geral durante todo o trajeto. Se rejeitamos o primeiro
julgamento, sentimo-nos inclinados a rejeitar o segundo.

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Estamos preparados, pois, na nossa doutrina, a aceitar como fé racional as verdades do


cientista, mas não camos sem respondê-lo quando ele a rma que aqueles objetos
imperceptíveis — seus átomos e elétrons — são realidade e a única realidade, ou quando
ele, de forma estúpida, nega a existência do espírito por um argumento que não é senão
uma contradição em termos. Não dizemos que ele está errado em atribuir aos seus
átomos uma realidade e uma inteligibilidade maiores do que merecem os objetos dos
sentidos, ou em defender que estes objetos só são inteligíveis à luz deles mesmos. Apesar
de tudo, nem mesmo dizemos que os objetos dos sentidos são de algum modo reais, e
que o que ele chama de seu conhecimento é mera fé racional ou hipótese provável. O que
dizemos é o seguinte. Ele interrompeu arbitrariamente a jornada da alma em direção à
realidade num estágio que não será jamais capaz de satisfazer o espírito divino do
homem, que não será jamais inteligível em si mesmo e que nunca deixará de ser irreal em
algum sentido. Ele se satisfaz com as ἀγάλματα da caverna porque é possível enxergá-las à
luz de um fogo terreno. Seus objetos continuam sendo ininteligíveis e irreais. Estão em um
uxo perpétuo e continuamente tornam-se outros que não eles mesmos. A fonte da sua
realidade e inteligibilidade jaz, inclusive para o cientista, em alguma coisa outra, e ele
persiste inde nidamente em um processo também interminável que pretende explicar
esses objetos como efeitos de alguma causa que, em si mesma, é igualmente ininteligível
e irreal. A própria relação de causa e efeito ele não a rma entender. Seus objetos ainda
vagam entre o ser e o não-ser. Se ele planeja obter a realidade ou a verdade, deve
prosseguir essa jornada que ele mal começou. Assim como ele busca aquela realidade não
percebida que se esconde por trás das aparências, aquele corpo relativamente
permanente que se esconde por trás das muitas imagens transitórias e fugazes, também
deve procurar aquela realidade não-espacial escondida por trás dos vários objetos do
espaço, aquela realidade eterna encoberta pelo uxo dos corpos. Uma vez mais ele deve
passar do signo à coisa signi cada, do condicionado à condição, dos seus muitos objetos
ao sentido que permanece detrás deles e os explica — ele deve passar dos muitos para o
um, da mudança para o eterno, do irreal para o real, do individual para o universal, do
γιγνόμενον para a εἶδος. Ele deve realizar esta segunda transição não pelos métodos
fáceis da contagem, pesagem e medição, mas pelo método mais difícil da dialética —
ainda que ele possa estar preparado para tanto, talvez seja necessária uma preparação
matemática. E neste processo ele nunca poderá descansar até alcançar o um absoluto que
se esconde e explica as muitas εἶδος, a condição incondicionada de todas as coisas, o um
que é a própria realidade e que, mais do que a realidade, é a autossu ciente, inteligível em
si mesma, real em si mesma — a própria Ideia do Bem

Dissemos o su ciente sobre este assunto para, pelo menos, sugerir a importância do
pensamento de Platão. Se a nossa visão está correta, no mínimo descrevemos um caso
bom e plausível para fornecer a diferença entre as duas espécies de objetos; e o que é
ainda melhor, estabelecemos um paralelismo ou analogia ainda mais notável entre os
diferentes segmentos da linha e seus objetos. A ambos os pontos retornaremos mais
tarde, mas, agora, devemos passar à segunda questão: se a Arte é apropriadamente
incluída nessa seção.

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Nosso primeiro ponto é que já respondemos a rmativamente à questão. Até que


tenhamos uma referência no mundo efetivo, não há distinção possível, como Platão
sugere no Teeteto, entre sensação, memória e imaginação. Esta visão o con rma
totalmente David Hume. Só podemos distingui-las umas das outras porque consideramos
suas relações com um mundo efetivo, possuindo as sensações um objeto efetivo
imediatamente anterior a elas, a memória um objeto efetivo no passado, e a imaginação
não tendo nenhum objeto efetivo em momento algum. Isto é dizer que, quando chegamos
na πίστις e olhamos para trás, para a εἰκασία, podemos realizar certas distinções entre as
duas, mas do ponto de vista do homem na εἰκασία estas distinções simplesmente não
existem. Imaginação não apreende a diferença entre o aparente e o efetivo, e está,
portanto, apropriadamente incluída na εἰκασία.

Se admitirmos isto para a imaginação, também o admitimos para a atividade artística


como um todo. Porque a função do artista não é nada além da imaginação, isto é, fazer
claras as imagens ou expressá-las para si. Arte não é a comunicação dessas imagens por
meio de instrumentos musicais ou pedras modeladas ou ondas de ar ou substâncias
químicas dispostas sobre um quadro em branco. Arte é a visão interior e apenas isto,
tenha sido obtida — como diremos mais à frente sobre as vantagens da πίστις — pela
mera imaginação ou pela audição de um instrumento especí co ou pela observação das
coisas que sugere um quadro efetivo. A beleza da visão depende apenas do seu próprio
caráter interno de aparência, e não dessas subsequentes considerações não-estéticas e
irrelevantes. O artista é um sonhador ou um fabricante de sonhos. Seu trabalho é um
sonho criado pelo homem àqueles que estão acordados, ὄναρ ἀνθρώπινον ἐγρηγορόσιν.

O artista certamente possui todas as características do estágio da εἰκασία. Ele dá adeus à


verdade — χαιρεῖν τὸ ἀληθές ἐάσαντες — e, portanto, à falsidade. Ele não a rma ou nega
nada, é impossível contradizê-lo, o que ele diz só pode ser chamado verdadeiro ou falso se
se afasta completamente do ponto de vista estético. Ele está apenas observando seu
objeto e o expressando ou tornando-o mais claro. Todas essas características são
precisamente aquelas que pertencem à εἰκασία e a distinguem da πίστις. Até onde vão as
considerações estéticas, é absolutamente indiferente ao artista se os originais da sua
εικονες existem ou não. Ele se satisfaz com suas aparências e apenas com elas.

Que este estágio é o mais precoce no desenvolvimento da mente, isto o suporta a


experiência. O selvagem e as pessoas infantis se ocupam primariamente com a vida dos
sentidos e da imaginação. De fato, diz-se delas que não distinguem claramente entre o
que veem e o que imaginam, o que signi ca, é claro, que elas ainda não abraçaram
completamente a πίστις. Na história da literatura também se observa o curioso paradoxo
de que a poesia precede a prosa, e, em geral, que a arte precede a ciência e a história. Este
paradoxo já estamos em posição de entender. Por outro lado, não devemos dar muita
importância a essas con rmações da experiência. Na verdadeira experiência as coisas são
inextricavelmente confusas, e a ordem temporal é uma indicação bastante imperfeita da
ordem lógica.

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Até aqui conseguimos justi car a posição de Platão, mas nada mais justo acrescentar que
existem certas di culdades na sua doutrina, di culdades que não estamos, agora, em
posição de vencer. Ainda temos de levar em conta o fato de que a Arte não é passiva, e
que, embora ela seja sempre sensorial, não está con nada aos objetos dados diretamente
por aquilo que chamamos sentidos. Este último ponto, penso, Platão admite, ainda que
ele se incline a ignorá-lo. Já sua atitude quanto ao primeiro ponto parece pouco clara.

Com relação ao primeiro ponto, que a Arte não é passiva, nós poderíamos naturalmente
responder que a sensação também não é passiva, mas de nitivamente envolve uma
atividade da alma. Deve haver um elemento imediato nela, ou, do contrário, não teríamos
nada diante de nós; por outro lado, devemos sempre ter uma alma ativa mantendo juntos
o passado e o presente, e distinguindo e comparando objetos, ou, mais uma vez, não
teríamos senão o nada diante de nós. Isto é, além do elemento imediato da sensação,
deve existir uma espécie de elemento intelectual ativo, um elemento que, embora não
re ita sobre a semelhança e a dessemelhança, a identidade ou a diferença, ainda torna
claros a si mesmo os objetos ou aparências por um reconhecimento implícito dessas
presenças. De fato, este parece ser o argumento do Teeteto com relação à αἴσθησι: que se
você a toma por mera sensação, reduz a si mesmo à contradição e ao absurdo. Então
Platão retorna ao seu argumento favorito, de que as diferentes potências possuem
diferentes objetos, vemos as cores e ouvimos os sons, mas assim como não podemos ver
sons ou ouvir cores, também não podemos ouvir semelhança ou dessemelhança,
identidade ou diferença, unidade ou pluralidade, e, mais uma vez, o ser ou valores de
qualquer tipo — belo e feio, bom e mal. Em uma palavra, τὰ κοινὰ deve ser vista pela alma
mesma, e, sem a ajuda daquelas coisas, a pura αἴσθησις é aparentemente impossível,
ainda que em Th., 186 c ele pareça sugerir o contrário. Ao invés, entretanto, de prosseguir
à explicação de como elas poderiam ser incluídas na αἴσθησις sem tornarem-se δόξα,
Platão passa direto a um exame da δόξα, que até aqui identi camos com a πίστις.
Obviamente, no entanto, se εἰκασία é o mesmo que αἴσθησις, e se ela deve permanecer
distinta da πίστις, devemos dar alguma explicação sobre seu elemento intelectual, e como
isso é possível sem que ela acabe por se transformar em πίστις ou δόξα.

Ainda que essa admissão seja perigosa à nossa teoria, devemos insistir que, mesmo
naquilo que chamamos sensação, há uma atividade da alma, e, sem esta atividade da
alma que reconhece semelhanças e dessemelhanças implícitas nas cores vistas e nos sons
ouvidos, não seríamos capazes de ver nem de ouvir. A visão so sta que nega a atividade
da alma na sensação devemos simplesmente rejeitar.

Se tomamos essa posição com respeito àquilo que do ponto de vista da πίστις chamamos
sensação, devemos fazê-lo em maior grau com aquilo que do mesmo ponto de vista
chamamos arte. O fato de que a arte é e sempre será sensorial depende da inteligência
ativa da alma, que é necessária para distinguir seus objetos uns dos outros e mantê-los
unidos em um todo. Mas arte é mais que a simples sensação. Platão, de fato, fala como se
o pintor meramente imitasse ou recriasse uma das inumeráveis φαντάσματα, ou

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aparências sensíveis, da cama, mas ele também diz que o poeta trágico imita um bom ou
mal ἦθος, embora a rme, com um pouco de má vontade, que é muito difícil imitar um
bom ἦθος. Seja como for, ca claro a partir desta e de muitas outras passagens, e, é claro,
de um simples exame da história da literatura, que a arte pode imitar, ou, como podemos
dizer, criar um bom ou um mal personagem, que, obviamente, não pode jamais ser dado
aos sentidos. O artista pode sim imitar “todas as coisas no céu e na Mansão de Hades
debaixo da terra”.

Assim, parece que depois que nos elevamos aos corpos sólidos e julgamentos de valor,
podemos voltar a cair num ponto de vista ingênuo, sonhar com eles como artistas, de
modo que eles, por sua vez, voltam a ser aparências ou sombras sobre as quais não
realizamos julgamento algum. Mesmo as guras matemáticas e os universais losó cos
podem entrar na εἰκασία se forem úteis para expressar um personagem ou uma situação
individual. Só porque nós aprendemos a distinguir o aparente do efetivo e a entender
nossa efetiva vida humana é que podemos sonhar com personagens individuais e
inteligíveis, como, por exemplo, em novelas e peças. Parece um absurdo dizer que Hamlet
é menos inteligível a Shakespeare do que o personagem de Júlio César é para Mommsen.
A arte ainda é distinta da loso a e da história, mas compreende o universal na medida
em que ele está implícito num personagem individual imaginado.

Tudo isto, no entanto, não altera ou afeta nossos conteúdos principais sobre a εἰκασία. O
dramaturgo não a rma ou nega mais do que o faz o músico ou o pintor. Ele não reivindica
a verdade, e, portanto, não pode ser acusado de falsidade. Ele se preocupa apenas com
seu objeto individual, e para ele a distinção entre o aparente e o efetivo, ou, mais uma vez,
entre o γιγνόμενον e a εἶδος, não pode existir. Ele se preocupa com o seu objeto, não
como uma forma de verdade losó ca ou como reprodução de um fato verdadeiro, mas
como uma aparência e nada mais.

A distinção relacionada aos objetos também permanece. O artista não está lidado com a
mesma coisa que o historiador, mesmo quando seus personagens correspondem a
originais históricos, como, por exemplo, no Júlio César de Shakespeare. Shakespeare não
a rma que Marco Antônio realmente fez seu famoso discurso, ou mesmo que ele foi
aquele tipo de pessoa. Ele não está lidando com o verdadeiro Marco Antônio, mas com
uma sombra ou re exo conjurado. A excelência do seu trabalho depende da própria
estrutura interna, e não da sua semelhança com eventos históricos reais. Se há algum
mérito em uma tal semelhança, de nitivamente não é um mérito estético. A única
verossimilhança que temos o direito de exigir do artista é a de que seu trabalho pareça-se
consigo mesmo, isto é, que ele possua coerência interna, ou, em outros termos, que seja
esteticamente bom.

Mais uma vez, apesar do que dissemos sobre o universal implícito na arte e a necessidade
desta presença, se deve haver qualquer objeto individual, o objeto do artista é um
individual imaginado e apenas isto. Sua única preocupação é deixar claro a si mesmo os
traços únicos e individuais do objeto imediato, não determinar qual objeto efetivo jaz por
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trás dele e o sugere, nem fazer generalizações, nem, en m, examinar suas implicações
matemáticas ou suas condições losó cas. Talvez não exista erro maior sobre a arte do
que imaginar que ela começa com generalizações ou com universais, ou, pior ainda, com
fatos, e que ela busca comunicá-los através das aparências individuais. Os artistas que
assim fazem são maus artistas, ou, em uma palavra, nem artistas são. Para o artista, a arte
não é símbolo de nada além dela mesma. Pelo contrário, ela satisfaz-se plenamente.
Quaisquer que sejam as implicações lógicas de um trabalho de arte, parecem interessar
apenas ao lósofo, ao cientista, ao crítico, pois para o artista ela é apenas o que é, essa
criança individual e única que nasceu dos seus caprichos, e nada além disso em todo o
vasto mundo.

É verdade que devemos car em guarda contra certas superstições que jogam dúvidas
sobre essa doutrina. Por exemplo, a rma-se que, devido ao caráter e à constituição da
linguagem, ela só pode expressar o universal, jamais o individual. Se isto fosse verdade,
seria realmente fatal à nossa doutrina. O sr. Bradley, por exemplo, em Princípios da Lógica
[Principles of Logic], p. 47-9, diz, seguindo Hegel, que não podemos expressar o individual,
embora ele admita a consequência extraordinária disto: que sempre dizemos algo
diferente daquilo que de fato queremos dizer. A palavra “isto”, por exemplo, ele a rma ser
um universal, e curiosamente o descreve como um “símbolo cujo signi cado se estende e
descreve inumeráveis instâncias”. Mas isto não passa de uma confusão. A palavra “isto”,
retirada de seu verdadeiro contexto e colocada em ordem nas frígidas páginas de um
dicionário, talvez possa ser descrita daquele modo. Mas, viva como é no discurso real do
homem, única em seu tom e em seu contexto, expressa seu objeto singular e nada além
disso no céu ou na terra. O mesmo se aplica a todas as palavras do poeta no poema
efetivo, seja qual for o caso com as muitas outras palavras do gramático e do lexicógrafo. É
ridículo que o cientista vivissecte um trabalho de arte e depois reclame que ele não está
vivo.

As mesmas análises são uma resposta su ciente às declarações das pessoas sem
imaginação, que examinar as palavras de um poema é o su ciente para ver como elas
a rmam ou negam alguma coisa. É claro que se você se recusar a enxergar no poema algo
vivo e indivisível, e abstrair dele certas coisas mortas a que você chama palavras com
signi cados xos, poderá dizer qualquer coisa sobre este — tão encantador — defunto
abstraído. Qualquer sentença contida num poema, em outro contexto, pode vir a ser uma
asserção sobre o fato efetivo. Isto não altera o fato de que em sua realidade viva ela não é
nada do tipo; é simplesmente a expressão de um único e individual εἰκών na aparência. Se
queremos saber onde está qualquer expressão particular, se na εἰκασία ou na πίστις,
devemos observá-la não como abstração, mas em toda a sua plena e viva realidade, e
perguntar se ela pretende ou não ser verdadeira ou a rmar qualquer coisa. Se ela
pretende, não é εἰκασία e não é Arte.

Podemos observar, aqui, que a nossa teoria, embora pareça oferecer uma interpretação
compreensível da teoria geral da linha, não está livre de certas di culdades com relação à

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linguagem usada por Platão na República. Estas di culdades emergem especialmente na


nossa polêmica de que a εἰκασία não pode ser verdadeira ou falsa, mas satisfaz-se com
não mais que a aparência. É justo mencionar quais são algumas dessas di culdades.

Em primeiro lugar, ele descreve os sonhos — os quais sabemos ser εἰκασία — como
pensar “que uma aparência não é apenas aparência, mas a própria coisa com a qual se
parece” — τὸ ὅμοιόν τῳ μὴ ὅμοιον ἀλλ᾽ αὐτὸ ἡγῆται εἶναι ᾧ ἔοικεν. Ele está se referindo
àqueles que confundem as muitas coisas belas com o belo em si. Se isto deve ser tomado
literalmente, nossa posição estará morta, mas devemos responder que isto é uma mera
descrição do estágio, não como ele é em si mesmo, mas o que ele parece ser a alguém
que se coloca em um plano mais alto. Os φιλοθεάμονες não realizaram de fato a distinção
e acabaram por confundir as coisas distinguidas — isto seria um erro na δόξα —, eles
falharam completamente em fazer a distinção e só vagamente pode-se dizer que
confundem uma coisa pela outra.

Com uma vagueza similar na terminologia, ele descreve o poeta como um possuidor de
ὀρθὴ πίστις e ὀρθὴ δόξαξ sobre o objeto, isto se ele obedece ao usuário do objeto imitado.
Isto signi caria tão-somente que o artista poderia possuir uma falsa δόξα, o que, no
entanto, é impossível a ele como artista. De fato, sabemos que o artista não pode,
propriamente falando, possuir alguma πίστις ou δόξα. Se algo há de cristalino em Platão é
isto, e quando acrescentamos que ele fala do usuário como possuidor de ἐπιστήμη, vemos
de uma só vez que ele não está usando as palavras em sentido técnico, está simplesmente
nos levando à conclusão de que o artista imita apenas as aparências. Ele imita a coisa
como ela aparece, geralmente, sugere Platão, do modo como ela parece ser bela à massa
e aos ignorantes. Mas, mesmo que isto fosse verdade, não alteraria o fato de que ele só
imita ou cria uma aparência ao invés de julgá-la. Na verdade, Platão só condena o artista
por ele não julgar, ele culpa o artista por não ser um cientista ou um historiador.

Mais uma vez a alegoria da caverna parece sugerir que a maioria dos homens está sempre
na εἰκασία. Talvez Platão pense que eles realmente estavam, já que ele aparentemente
pensava que a vontade da maioria dos homens era mero desejo ἐπιθυμητικόν, o que, na
nossa visão, está ligado à εἰκασία, como θυμοειδὲς com a πίστις e λογιστικόν com νόησις.
A maioria dos homens se satisfaz com o aparentemente bom e não vai além disso. Por
outro lado, todos os homens vão além das aparências de animais, plantas e artigos
manufaturados, e estão, portanto, na πίστις. Se a alegoria da caverna não sugere isto, é
porque nenhuma alegoria pode ser perfeita em todos os detalhes.

Ainda em 516 c nos é dito que os homens da caverna não apenas observam as aparências
presentes, mas lembram-se de aparências passadas e especulam sobre as futuras. Isto é
provavelmente o signi cado comum de εἰκασία: supor sem um verdadeiro entendimento.
Se Platão estava se referindo a um simples exercício prazeroso da imaginação sobre o que
pode acontecer no futuro, isto pode até certo ponto apropriadamente chamado εἰκασία,
mas se envolve qualquer a rmação de verdade, trata-se de πίστις, e devemos escusá-lo
pela di culdade que é fazer uma alegoria exata.
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Por último, talvez devamos analisar a declaração de Platão no que diz respeito às
contendas nas cortes judiciais sobre as sombras da justiça e as imagens que as suscitam,
περὶ τῶν τοῦ δικαίου σκιῶν ἡ ἀγαλμάτων ὧν αἱ σκιαί. O lósofo que tomou conhecimento
da justiça em si mesma acha difícil, em um primeiro momento, discursar sobre as
ἀγάλματα da justiça, isto é, efetivos atos e leis justas. Mas o que são as sombras que eles
suscitam? Serão, talvez, os quadros puramente imaginativos pintados pelos retóricos e
políticos, não tanto por um desejo de enganar — isto seria apenas a mentira —, mas por
um desejo de agradar e trabalhar com as emoções da Grande Besta. Incidentalmente isto
corrobora a nossa visão de que o artista tem consciência não apenas das sombras ou
aparências dos objetos efetivos da sensação, mas de que todas as coisas no céu e na terra,
fatos históricos e até verdades losó cas, podem suscitar sombras com quais o artista
pode ter de lidar. Não existem limites aos objetos da arte, exceto o fato de que a Arte se
satisfaz com tornar clara uma mera aparência ou sombra sem perguntar nada sobre sua
verdade ou realidade.

Mas devemos passar a um apanhado geral da nossa posição e a um breve exame das
objeções gerais que nos podem fazer. Começamos com o argumento de Platão sobre
δόξα e έπιστήμη e a diferença de seus objetos; sugerimos, a partir da sua insistência na
proporção entre os menores segmentos da linha e estes segmentos fundamentais, que os
objetos dos diferentes segmentos devem ser diferentes. Examinamos estes objetos no
caso dos dois segmentos mais baixos, especialmente no caso do mais baixo, e
descrevemos, no mínimo, um caso plausível para demonstrar suas diferenças, tanto com
relação à sensação quanto à imaginação ou arte. Estamos, é claro, preparados para fazer
o mesmo com os segmentos superiores da διάνοια e da νόησις, e, como já apontamos, o
sucesso dos dois segmentos mais baixos fortalece inde nidamente nossa visão sobre os
segmentos mais altos e vice-versa.

Deve-se observar, ademais, que, embora tenhamos começado com a insistência de Platão
na proporção, e inferido a partir disso uma diferença acentuada nos objetos, nosso exame
dos objetos, arrisco dizer, jogou um raio de luz no próprio signi cado da proporção.
Deparamo-nos com uma série dos mais notáveis paralelos relacionados com as diferentes
transições envolvidas nesta concepção de conhecimento. Se Platão começa com uma
distinção expressiva entre, por exemplo, a única εἶδος e as muitas camas, nada mais
natural que ele encontre um paralelo notável em uma distinção igualmente expressiva
entre a única cama e suas muitas aparências. O avanço da εἰκασία para a πίστις, como a
da δόξα para a έπιστήμη, é avançar dos muitos para o único. De forma similar, o avanço
da διάνοια para a νόησις também é um avanço, por exemplo, dos muitos únicos
matemáticos, que são ἀεὶ ὄντα, para a única εἶδος, ou a própria unidade. Cada transição
vai em direção a uma maior realidade e inteligibilidade, e cada segmento superior requer
a presença de um elemento dado pelo segmento inferior, embora este não seja o ponto
principal. Mesmo em relação ao mau uso da µίµησις, o objeto da εἰκασία não imita o
objeto da πίστις mais do que os γιγνόμενον imitam as εἶδος. Estas são meras frases que
intencionam levar o pupilo a captar a verdadeira relação.

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No que concerne à δυνάµεις, ele parece argumentar que elas são realmente diferentes: (1)
por possuírem diferentes objetos; e (2) por terem diferentes funções. Isto é, você pode
desenvolver qualquer uma delas inde nidamente — você pode evoluir, por exemplo, da
mera sensação para os mais altos produtos da arte — mas, deste modo, jamais passará à
mais alta δύναμις. A arte nunca tornar-se-á ciência ou história, ciência ou história nunca
serão matemática a priori, e matemática a priori nunca será loso a. Cada um dos
segmentos mais altos requer o anterior como base, mas isto não signi ca que eles não
tenham um novo começo.

Agora talvez possamos a rmar que essa visão é depreciativa da Arte, e que interrupções
ou transições abruptas não existem.

A respeito do primeiro ponto, devemos responder que não ocorre bem assim. Platão de
fato foi hostil à arte, pelo menos na República, e alguns de seus comentários parecem ser
estúpidos e intolerantes, mas, mesmo assim, o que ele ataca são os erros decorrentes da
substituição da arte pela loso a ou história, ou seja, tomar a arte pela verdade. Devemos
ter a φάρμακον de saber qual o verdadeiro signi cado da Arte se queremos evitar a
contaminação. Mas quaisquer que sejam os detalhes dos erros de Platão, sua posição
geral não deprecia, de qualquer modo, a Arte. A εἰκασία é um estágio necessário da
cognição, toda a matéria do nosso pensamento é dada por ela, e a ela devemos nos voltar
continuamente para renovar a nossa vida. Também acrescentaríamos, embora Platão seja
menos claro nesse aspecto, que ela é boa e satisfatória em si mesma. São os oponentes
desta doutrina os verdadeiros inimigos da arte. Por insistirem em uma transição gradual,
fazem da arte uma espécie inferior de história e loso a a ser completamente engolida e
superada com o avanço do conhecimento. Isto faria o valor da arte depender de algo além
dela mesma, da verdade losó ca ou da verdade geral que ela comunica, ou dos fatos
históricos que ela representa. Nossa visão, por outro lado, pode reconhecer a autonomia
da sua atividade e manter que o valor da arte depende dela e apenas dela.

A propósito das objeções de transições ou interrupções abruptas, nós já apontamos o


perigo da teoria da mera continuação, que resulta na superação de toda forma mais baixa
de cognição como elas fossem desprezíveis. Também suspeitamos que, em última
instância, ela resulta em um desastre ainda mais terrível: a negação de toda atividade ou
crescimento espiritual, a redução de tudo ao mais baixo do que conhecemos. A visão
platônica, por outro lado, admite a possibilidade de um verdadeiro crescimento, de algo
novo que passa a existir. Ainda mais genericamente, não podemos ngir que estamos
confortáveis com uma loso a cujo princípio supremo parece ser o de que, apesar de
tudo, as coisas são basicamente uma coisa só. Sugerimos, ao contrário, que, se o mundo é
realmente uma unidade, e não uma reles confusão, ou caos, ou um completo vazio, ele
está coberto de diferenças reais.

Por outro lado, não nos indispomos a fazer certas concessões. Reconhecemos que
remanescem di culdades reais, tanto em relação às nossas tentativas de explicar a
intenção de Platão, quanto às nossas tentativas de defendê-la. Ainda assim, sugerimos
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que nossa tentativa de explicá-lo tem ao menos um mérito: não tivemos medo de supor
que ele tinha de fato uma intenção a ser explicada, ou de arriscar a possibilidade de errar
ao tentar torná-la clara. Muitos dos críticos parecem começar supondo que Platão falava
mais ou menos aleatoriamente, e que eles o explicariam su cientemente se também
fossem aleatórios. Podemos apenas dizer que a ele, como lósofo, tentamos fazer justiça,
mesmo que por vezes não o tenhamos compreendido como artista. É uma forma de
infração que ele mesmo estaria disposto a perdoar.

Com relação às nossas tentativas de defendê-lo, admitimos di culdades ainda maiores.


Platão tinha a tendência geral de falar como se existisse uma oposição expressiva entre
γιγνόμενον e εἶδος, mas é dubitável se este era mesmo seu ponto de vista, e duvida-se
ainda mais sobre a solidez da oposição. Se desistirmos ou modi carmos a oposição,
devemos, é claro, igualmente desistir ou modi car nossa outra distinção entre o aparente
e o efetivo. Mas nós insistimos que, tanto na visão platônica quanto na realidade, essas
distinções têm, pelo menos, uma verdade didascálica. Só quando as realizemos é que
guiamos a nós mesmos e aos outros para a suprema e verdadeira visão que permanece
por trás delas. Se não as aprendemos, então não aprendemos nada. Em última instância,
elas talvez sejam momentos necessários em todo ato de cognição ou o que valha; mas
mesmo que tenhamos de encontrar a unidade que se esconde e explica tais diferenças,
arriscamos expressar a crença de que ela não as anula, mas as ilumina, de que ela explica
ao invés de destruir.

Traduzido por Gabriel Gusso

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