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VII

A ANALISE DE DISCURSO:
TRÉ\S ÉPOCAS (1983)

Michel Pêcheux

I. A primeira época da análise de discurso: AD-l como explora-


ção metodológica da noção de maquinaria discurnivo-estrntural

A. Posição teórica

- Um processo de produção discursiva é concebido como


uma máquina autodeterminada e fechada sobre si mes-
ma, de tal mexIo que um sujeito-estrutura determina os
sujeitos como produtores de seus discursos: os sujeitos
acreditam que "utilizam" seus discursos quando na ver-
dade são seus "servos" assujeitados, seus "suportes".
- Uma língua natural (no sentido lingü{stico da expressão)
constitui a base invariante sobre a qual se desdobra uma
multiplicidade heterogênea de processos discursivos
justapostos.

Esta tomada de posição "estrutur2,Jista" que se esfuma de-


pois da AD-l produz uma recusa (que, esta, não vai variar da
AD-l à AD-3) de qualquer metalíngua universal supostamente
inscrita no inatismo do esp(rito humano, e de toda suposição de
um sujeito intencional como origem enunciadora de seu discur-
so.

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Ad-l supÔe a possibilidade de dois gestos sucessivos: quencias saídas de discursos empíricos diferentes): en-
quanto pontos de variação combinatória, estasidentida-
Reunir um conjunto de traços discursivos empíricos
des parafrásticas formam o lugar de inscrição de propo-
("corpus de seqüências discursivas") fazendo a hipótese
sições de base características do processo discursivo es-
de que a produção desses traços foi, efetivamente, domi-
tudado, Uma indicação dos trajetos que conectam essas
nada por uma, e apenas uma, máquina discursiva (por
proposiçrles entre si prolonga eventualmente a análise.
exemplo um mito, uma ideologia, uma episteme).
No horizonte, a'idéia (que permanece em estado de idéia!)
Construir, a partir desse conjunto de traços e através de
de uma álgebra discursiva, que permita construii· formalmente -
procedimentos linguisticamente regulados, o espaço da
a partir de um conjunto de argumentos, predicados operadores
distribuição combinatória das variaçÔes empíricas desses
dc construção e de transformação de proposições - a estrutura
traços: a construção efetiva desse espaço constitui um
geradora do processo associado ao corpus.
gesto epistemológico de "ascensão" em direção à estru-
tura desta máquina discursi va que supostamente as en- - "a interpretação" consiste em reinscrever o resultado
gendrou. desta análisc no espaço discursi vo inicial, como "res-
posta" às quest(ies que tematizam esse espaço: o mais
das vezes a interpretação toma a fOlIDa diferencial de
uma comparação de estrutura entre processos discursi vos
B. Conseqüências dos procedimentos heterogêneos justapostos.
Conclusão: AD-I é um procedimento por etapa, com or-
dem fixa, restrita teórica e metodologicamente a um começo e
- o ponto de partida de uma AD-l é um corpus fechado de um fim predeterminados, e trabalhando num espaço em que as
seqüências discursi vas, selecionadas (o mais freqüente- "máquinas" diseursivas constituem unidades justapostas. A
mente pela vizinhança de uma palavra-chave que remete existência do outro está pois subordinada ao primado do mesmo:
a um tema) num espaço discursivo supostamente domi- - o outro da alteridade discursiva "empírica" é reduzido
nado por condições de produção estáveis e homogêneas. seja ao mesmo, seja ao resíduo, pois ele é o fundamento
Donde a focalização das di versas AD-l sobre discursi vi- combinatório da identidade de um mesmo processo dis-
dades textuais, elas próprias auto-estabilizadas; por curSIVO;
exemplo, discursos polfticos sob a forma de discursos
teórico-doutrinári os. - o outro alteridade "estrutural" só é, de fato, uma dife-
rença incomensurável entre "máquinas" (cada uma
- a análise lingüística de cada seqüência é um pré-requi- idêntica a si mesma e fechada sobre si mesma), quer di-
sito indispensável para a análise discursiva do corpus: a zer, uma diferença entre mesmos.
análise lingüística é considerada como uma operação
autônoma, efetuáveI exaustivamente e de uma vez por
todas. Ela supõe a neutralidade e a independência dis- ll. AD-2: da justapósição dos, processos discursivos à tematiza-
cursiva da sintaxe; ela é opaca em relação à enunciação ção de seu entrelaçmnento desigual
e às restrições subjacentes ao fio do discurso (quer dizer
que ela as leva em conta implicitamente).
- a análise discursi va do corpus consiste principalmente
em detectar e em construir sítios de identidades para- o deslocamento teórico que abre o segundo período resulta
frásticas lnterseqüenciais (isto é, entre fragmentos de se- de uma conversão (filosófica) do olhar pelo qual são as relações

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entre as "máquinas" discursivas estruturais que se tornam o Assim, a insistência da alteridade na identidade discursiva
objeto da AD. Na perspecliva da AD-2, estas rclw.;(jes S;lO rcla- coloca em causa o fechamento desta identidade, e com ela a
(,'t>esde fon;a desiguais entre processos discursivos, cstruturando própria noção de maquinaria discursiva estmtura!... e talvez
o conjunto por "disposilivos" com influência desigual uns sobre também a de formação discursiva.
os outros: a 110\~ÜO de /ormaçiio discursiva tomada de emprésti- Do ponto dc vista dos procedimentos, AD-2 manifesta
mo a Michcl Foucault, começa a fazer explodir a noção de má- muito poucas inovaçÔcs: o deslocamento é sobretudo sensível ao
quina estrutural fechada na medida em que o dispositivo da FD nível da construção dos corpora discursivos, que permitem tra-
está em relaçÜo paradoxal com seu "exterior": uma FD não é balhar sistematicamente suas influências internas desiguais, ul-
um espaço estmtural fechado, pois é constitutivamente "invadi- trapassando o nível da justaposição contrastada.
da" por elementos que vêm de outro lugar (isto é, de outras FD)
que se repetem nela, fornecendo-lhe suas evidências discursivas
fundamentais (por exemplo sob a forma de "preconstmídos" e
de "discursos transversos").
m. A emergência de novos procedimentos da AD, através da
A noção de interdiscurso é introduzida para designar "o desconstrução das maquinarias discursivas: AD-3
exterior específico" de uma FD enquanto este irrompe nesta FD
para constituí-Ia em lugar de evidência discursi va, submetida
à lei da repetição estmtural fechada: o fechamento da maquina-
ria é pois conservado, ao mesmo tempo em que é concebido en- Seria inútil pretender descrever como um objeto este que
tão como o resultado paradoxal da irmpção de um "além" exte- se tenta hoje: apenas se pode procurar falar do interior dessa
rior e anterior. tentativa. Indicar algumas direções referíveis em um trabalho de
interrogação-negação-desconstrução das noções postas em jogo
Resulta que o sujeito do discurso continua sendo concebi- na AD, mostrar alguns fragmentos de construções novas.
do como puro efeito de assujeitamento à maquinaria da FD com A. Alguns pontos de referência
a qual ele se identifica. A questão do "sujeito da enunciação"
não pode ser posta no nível da AD-2 senão em termos da ilusão
1. O primado teórico do outro sobre o mesmo se acentua,
do "ego-eu" ["moi-je"] corno resultado do assujeitamento (cf. a empurrando até o limite a crise da noção de máquina discursiva
estmtural. É mesmo a condição de construção de novos algorit-
problemática althusseriana dos Aparelhos Ideológicos de Esta-
mos enquanto "máquinas paradoxais".
do) freqüentado pelo tema spinozista da ilusão subjetiva produ-
zida pela "ignorância das causas que nos determinam". 2. O procedimento da AD por etapas, com ordem fixa, ex-
Mas, simultaneamente, colocando uma relação de entrela- plode definitivamente ...
çamento desigual da FD com um exterior, a problemática AD-2 _ ... através da desestabilização das garantias sócio-histó-
obriga a se descobrir os pontos de confronto polêmico nas fron- ricas que se supunham assegurar a priori a pertinência
teiras internas da FD, as zonas atravessadas por toda uma série teórica e de procedimentos de uma construção empírica
de efeitos discursivos, tematizados como efeitos de ambigüidade do corpus refletindo essas garantias.
ideológica, de di visão, de resposta pronta e de réplica "estraté- _ ... através de uma interação cumulativa conjugando a
gicas"; no horizonte desta problemática aparece a idéia de uma alternância de momentos de análise lingü(stica (colocan-
espécie de vacilação discursiva que afeta dentro de uma FD as do notadamente em jogo um analisador sintático de su-
seqüências situadas em suas fronteiras, até o ponto em que se perfície 1) e de momentos de análise discursiva (algo-
torna impossível determinar por qual FD elas são engendradas. ritmos paradigmáticos "verticais" e sintagmáticos/se-

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qiienclals "horií',ontais"): est<l interaçÜo traduz nos pro- em cena "sua" seqüência, estrutural' esta encenação
cedimcntos a prcoclIpaçÜo em se levar em conta a inces- (nos pontos de identidade nos quais o "ego-eu" se ins-
sante desestahili'J:;H.:Üodiscursiva do "corpo" elas regras tala) ao mesmo tempo em que a desestabiliza (nos pontos
sinliÍlicas e das formas "evidentcs" dc seqiicncialidadc
2. de dcriva em que o sujeito passa no outro, onde o con-
(por exemplo narrativo/descritivo, arglllllcntativo); cla trole estratégico de seu discurso lhe escapa).
sup(íe a reinscrição :1 dos traços destas análises parciais
no prÓprio interior do campo disc.ursivo analisado en-
quanto corpus, acarretando uma reconfiguração deste B. E sobretudo muitos pontos de interrogação ...
campo, ahcrto simultaneamente a uma nova fase de aná-
lisc lingüístico-discursiva: a produção "em espiral"
destas reconfigurações do corpus vem escandir o pro- 1. Como separar, nisso que continuamos a chamar "o su-
cesso, produzindo uma sucessão de interpretações do jeito da enunciação", o registro funcional do "ego-eu" estrate-
campo analisado. Que lugar o "mesmo" deve necessa- gista as sujeitado (o sujetto ativo intencional teorizado pela fe-
riamente guardar no interior de tal processo de análise? nomenologia) e a emergência de uma posição do sujeito? Que
3. No nível da AD-l, a dissociação entre análise lingüísti- relação paradoxal essa emergência mantém com o obstáculo, a
ca (de cada seqüência) e análise discursiva interseqüencial (de irrupção imprevista de um discurso-outro, a falha no controle? O
um corpus de seqüências) tornava vazia de sentidos a noção de sujeito seria aquele que surge per instantes, lá onde o "ego-eu"
análise discursi" d de uma seqüência na sua singularidade. En- vacila? Como inscrever as conseqüências de uma tal inten-oga-
tretanto, a ancílise lingüística do tipo AD-l supunha implicita- ção nos procedimentos concretos da análise?
mente a homogeneidade enunciativa de cada seqüência analisada 2. Se a análise de discurso se quer uma (nova) maneira de
na medida em que o registro da enunciação e das restrições de "ler" as materialidades escritas e orais, que relação nova ela de-
seqüencialidade permanecia opaco. ve construir entre a leitura, a interlocução, a memória e o pen-
-O desenvolvimento atual de numerosas pesquisas sobre os samento?
encadeamentos intradiscursivos -- "interfrásticos" - permite à O que faz com que textos e seqüências orais venham, em
AD-3 abordar o estudo da construção dos objetos discursivos e tal momento preciso, entrecruzar-se, reunir-se ou dissociar-se?
dos acontecimentos, e também dos "pontos de vista" e "lugares Como reconstruir, através desses entrecruzamentos, conjunções
enunciativos no fio intradiscursivo". e dissociações, o espaço de mem6ria de um corpo sócio-históri-
Alguns desenvolvimentos teóricos que abordam a questão co de traços discursivos, atravessado de divisões heterogêneas,
da heterogeneidade enunciativa conduzem, ao mesmo tempo, de rupturas e de contradições? Como tal corpo interdiscursivo
a tematizar, nessa linha, as formas lingüístico-discursivas do de traços se inscreve através de uma língua, isto é, não somente
discurso-outro: por ela mas também nela?
Se o pensamento que se confronta com um "tema" sob um
- discurso de um outro, colocado em cena pelo sujeito, ou certo "ponto de vista" é uma posição no interior de uma rede
discurso do sujeito se colocando em cena como um outro
de questões, como esta posição vem se inscrever, de uma só vez,
(cf. as diferentes formas da "heterogeneidade mostra- nas figuras da "troca" conversacional (do diálogo à ruptura,
da");
passando por todas as formas de conflito) e nas figuras que
- mas também e sobretudo a insistência de um "além" in- põem em perspectiva, como gesto que estlUtura um campo de
terdiscursivo que vem, aquém de todo autocontrole fun- leituras (indicação de filiações, de "trajetos temáticos" convo-
cional do "ego-eu", enunciador estratégico que coloca cando séries textuais heterogêneas)? O que é que faz, desse mo-

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do, o encontro entre um espa(,~ode interlocução, um espaço de NOTAS
mem6ria e uma rede de questlies?
3. Como cOllceher o processo de ,ona AO de tal maneira
que \:,sse processo seja Ul11llinlcnH;:io "em espiral" combinando
entrecruzamcntos, l'l'lInilleS c dissol'illçi}cs de, séries textuais (o-
rais/escritas), de l'onstru~'(ics dI' qUI'Slties, de estruturações de
redes de I11cmlSrillsl' dI' pl'odllç(\l's dn escrita?
1 Trata-se da gramática de superjzcie (GDS) trabalhada pelo software DEREDEC.
C0l110 li csnilll WIIl cSl'llndir Ia] processo, a( produzindo O conjunto foi concebido e realizado por P. Plante, da UQAM, em Montreal. Cf. P.
(;/i'ilo de inl/",,"'/'Ia(tlo'? Plante, "Le systeme de programmation Deredec", que apareceu em Mots n~ 6, mar-
çode1983.
('01l10o ,1',(j/'itoll'iIO/' ('ll1crgl' l1l~ssaescansão?
2 Cf. os movimentos de fronteiras de constituinte, os deslocamentos léxico-sintáti-
() qllt' (' intt"rl1flrl1o Ilt'SSCprocesso'! cos da aceitabilidade das construções, os equívocos gramaticais (por exemplo, sobre
o estatuto do infinitivo).
Em qne l'llndh•.(k,~IHllllinferpretação pode (ou não) fazer
inlt'rv('n~'li(I? 3 No quadro de DEREDEC esta reinscrição é realizável por meio da construção de
"Expressões de Forma Atômica Ligada" ou EXFAL: "São redes de expressões atô-
p(lde~s(' (n')defllllr lInUI"po/Ctica" da análise de discurso? micas ligadas entre elas por relações orientadas, redes cuja profundidade e complexi-
dade não são sujeitas a nenhum limite formal". P. Plante, obra citada.

Trudução: lonas de A. Romualdo


REFERÊNCIAS CRONO-BIBLIOGRAFICAS
:-".'"

Sobre AD-1:

í
Revista Langages n~ 11, 13, 23.
í
~'\
; ,~~,
..

.i M.Pêcheux, Analyse Automatique du Discours, Dunod, 1969.


.,~~;
l~

Sobre AD-2:
R.Robin, Histoire etLinguistique, A. Colin, 1973.
M.Pêcheux, Les Vérités de ia Palice, Maspero, 1975.
P.Henry, Le Mauvais Outil, KIíncksieck, 1977.
l.GuilIaumou e D.Maldidier "Courte Critique pour une longue
histoire", Revue Diaiectiques, n~ 26.
Revue Langages 37,55,62.

Sobre AD-3:
Matérialités Discursives, Pul, 1981.
P.Plante, Le systeme de programmation Deredec, no prelo.

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