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São Paulo, domingo, 22 de maio de 2005

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LEIA O PREFÁCIO ESCRITO PELO


ANTROPÓLOGO À ÚLTIMA EDIÇÃO JAPONESA DE
"TRISTES TRÓPICOS", PUBLICADA EM 2001

Japão frente e verso


por Claude Lévi-Strauss

Eu ainda não havia visitado o Japão quando foram publicadas


as primeiras edições desse livro. Entre 1977 e 1988, pude ir
cinco vezes ao país, graças a várias instituições às quais
gostaria de exprimir novamente minha gratidão: a Fundação
Japão, a Fundação Suntory, o Japan Productivity Center, a
Fundação Ishizaka e, enfim, o Centro Internacional de
Pesquisa em Estudos Japoneses ("Nichibunken").
Depois de Tóquio, Osaka, Kyoto, Nara e Ise, a Fundação
Japão, ciosa de me apresentar o país ao longo de seis semanas
sob os aspectos mais diversos, cuidou que dois distintos
colegas, os professores Yoshida Teigo e Fukui Katsuyoshi,
me levassem à península de Noto e às ilhas Oki, no mar do
Japão. À Fundação Suntory devo a oportunidade de ter
conhecido o mar Interior e Shikoku.
Em 1983, o já mencionado professor Yoshida Teigo fez a
gentileza de me convidar a acompanhá-lo às ilhas Iheya,
Izena e Kudaka, no arquipélago das Ryukyu, e a participar
modestamente de sua pesquisa etnográfica. Três anos mais
tarde, por ocasião de uma outra estada, quis visitar Kyushu.
Essa viagem de mais de uma semana não teria sido possível
sem a companhia da senhora Watanabe Yasu, que, desde
minha primeira estada, foi uma guia e intérprete
incomparável.
Para com o professor Kawada Junzô, minhas dívidas de
gratidão são inumeráveis (a começar pela tradução deste
livro). A essas, acrescentou-se, em 1986, a revelação de uma
Tóquio desconhecida da maioria dos visitantes estrangeiros,
quando ele me fez subir o Sumidagawa numa embarcação
tradicional e seguir os meandros dos canais que sulcam a
cidade a leste e oeste do rio.
À época de minhas primeiras visitas, meu laboratório de Paris
incorporara a seu programa o estudo da noção de trabalho
assim como o concebem diferentes sociedades em épocas
diversas e meios diferentes.
Manifestei então o desejo de que minhas viagens fossem
organizadas em razão desse tipo de problema, de tal modo
que me permitissem travar contato com artesãos de cidades
ou de aldeias, mesmo nos cantos mais recônditos do país. Por
mais que conserve recordações imperecíveis dos museus, dos
templos, de Nara, dos santuários de Ise, a maior parte de meu
tempo foi consagrada a encontros com tecelões, tintureiros,
pintores de quimono (profissão que interessava também à
minha mulher, especialista em artes têxteis) e ceramistas,
ferreiros, torneiros, ourives, laqueadores, carpinteiros,
pescadores, destiladores de saquê, cozinheiros, padeiros, além
de marionetistas e músicos tradicionais.

Relação de intimidade
Colhi assim preciosas informações sobre a representação que
os japoneses fazem do trabalho: não como ação do homem
sobre uma matéria inerte, à maneira dos ocidentais, mas
como estabelecimento de uma relação de intimidade entre o
homem e a natureza.
Confirmam-no, em outro plano, certas peças nô, que
reservam lugar de honra a humildes tarefas domésticas,
conferindo-lhes um valor poético (fazendo assim coincidir a
significação artística e a etimologia grega dessa última
palavra).
A relação do homem com a natureza, que, pensando no Japão
antes de visitá-lo, eu idealizara em alguma medida, me
reservava ainda outras surpresas. Viajando pelo país, percebi
que o culto das belezas naturais que ilustram, aos olhos do
Ocidente, seus maravilhosos jardins, o amor às cerejeiras em
flor, a arte floral e mesmo a cozinha podem se associar a uma
brutalidade extrema para com o meio natural. Para mim, que
continuava a imaginar o Sumida a partir do refinado álbum de
Hokusai, "Sumidagawa ryôgan ichiran", foi um choque subir
esse rio.

Entre a fidelidade ao passado e as


transformações induzidas pela
ciência e pelas técnicas, o Japão foi
provavelmente a única nação que
soube, até agora, encontrar um
equilíbrio

É bem verdade que um visitante estrangeiro que conhecesse


Paris por meio de gravuras antigas teria a mesma reação que
eu diante das margens do Sena de hoje, por mais que o
contraste seja menor e a transição entre o passado e o
presente, menos abrupta (contudo, ao contrário do que eu
esperava, a Tóquio moderna não me pareceu feia. A
implantação irregular dos edifícios cria uma impressão de
diversidade e de liberdade, à diferença das cidades ocidentais,
onde o alinhamento monótono das casas ao longo das ruas e
das avenidas força o transeunte a caminhar entre duas
paredes).
De resto, é provavelmente essa ausência de distinção nítida
entre o homem e a natureza que explica o direito que se
arrogam os japoneses (por um desses raciocínios perversos
aos quais às vezes recorrem, como no caso da caça à baleia)
de dar prioridade ora a um, ora à outra e, quando é o caso, de
sacrificar a natureza às necessidades dos homens. Ela e eles
não são, afinal, solidários?
Eu entrevia assim uma explicação particular desse "double
standard", que, conforme ensinavam meus colegas japoneses,
oferecia uma chave para compreender sua história.
Num certo sentido, pode-se mesmo dizer que, diante do
maior problema de nossa época -que, no curso de um século,
a população mundial tenha passado de menos de 2 bilhões a
mais de 6 bilhões de indivíduos-, o Japão encontrou, na parte
que lhe toca, uma solução original, fazendo coexistir, em seu
território, regiões costeiras tão densamente povoadas que
formam uma seqüência ininterrupta de cidades e um interior
montanhoso, desabitado ou quase isso: oposição que é
também a de dois universos mentais, o da ciência, da
indústria e do comércio e um outro que continua a se prestar
às crenças oriundas da noite dos tempos.
Pois esse "double standard" possui também uma dimensão
temporal. Uma evolução prodigiosamente rápida fez o Japão
transpor em algumas décadas uma distância que o Ocidente
precisou de séculos para percorrer; graças a isso, o Japão
pôde se modernizar ao mesmo tempo que conservava um elo
estreito com suas raízes espirituais.

Vitalidade dos mitos


Consagrei a maior parte de minha vida profissional ao estudo
da mitologia e a mostrar em que medida esse modo de
pensamento permanece legítimo. De modo que eu não podia
deixar de ser profundamente sensível à vitalidade que os
mitos conservam no Japão. Nunca me senti tão próximo de
um passado distante como nas ilhotas de Ryukyu, entre
bosques, rochedos, grutas, poços naturais e fontes
considerados como manifestações do sagrado.
Em Kudakashima, levaram-nos ao lugar em que apareceram
os visitantes divinos, portadores das cinco espécies de grãos
com que foram semeados os campos primordiais. Para os
habitantes locais, tais acontecimentos não se deram num
tempo mítico. São de ontem, de hoje, de amanhã mesmo, de
vez que os deuses que fincaram pé aqui retornam a cada ano,
de vez que, em toda a ilha, os ritos e os lugares sagrados
atestam sua presença real.
Talvez porque sua história escrita remonte a uma data
relativamente recente, os japoneses a enraízam muito
naturalmente nos mitos. Convenci-me disso em Kyushu, que
foi, segundo os textos, o teatro da mais antiga mitologia
japonesa. Nesse estágio, as questões de historicidade não se
colocam: sem o menor constrangimento, dois lugares podem
disputar a honra de ter acolhido, quando de sua descida dos
céus, o deus Ninigi-no-mikoto.
E a deusa Amaterasu, senhora do lugar em que se ergue o
santuário de Ô-Hirume, pede adesão ao velho relato de sua
retirada para a gruta, sagrada demais para que se possa chegar
mais perto, mas que se entrevê de longe. Basta contar os
ônibus que derramam visitantes em peregrinação para
persuadir-se de que os grandes mitos fundadores, as
paisagens grandiosas em que a tradição os situa, mantêm uma
continuidade vivida entre os tempos lendários e a
sensibilidade contemporânea.
Há quase meio século, escrevendo "Tristes Trópicos", eu
exprimia minha angústia diante dos dois perigos que
ameaçam a humanidade: o esquecimento de suas raízes e seu
esmagamento por seus próprios números. Entre a fidelidade
ao passado e as transformações induzidas pela ciência e pelas
técnicas, o Japão foi provavelmente a única nação que soube,
até agora, encontrar um equilíbrio. Sem dúvida, ele o deve ao
fato de ter ingressado nos tempos modernos por meio de uma
Restauração, e não, por exemplo como a França, por meio de
uma Revolução.
Seus valores tradicionais foram assim protegidos de uma
derrocada. Mas ele o deve igualmente a uma população por
muito tempo disponível, ao abrigo do espírito crítico e do
espírito de sistema, cujos excessos contraditórios minaram a
civilização ocidental.
Ainda hoje, o visitante estrangeiro admira o zelo de cada qual
a cumprir suas tarefas, a boa vontade alegre que, comparada
ao clima social e moral de seu país de origem, parecem-lhe
ser as virtudes capitais do povo japonês. Que esse possa
manter por muito tempo esse equilíbrio precioso entre as
tradições do passado e as inovações do presente; e não apenas
para seu próprio bem, pois toda a humanidade encontra nele
um exemplo digno de meditar.

Tradução de Samuel Titan Jr.

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