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Globalismo e Comunismo (Parte 1)

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Por Flavio Gordon

[22/05/2020] [11:44]

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mês
“Sendo ele chefe do partido proletário, e justificando em nível teórico e político as pautas
revolucionárias deste último, Lenin podia ver mais longe, transcender os limites de classe
do partido. Mais de uma vez, ele falou da prioridade dos interesses comuns a toda
humanidade, para além dos interesses de classe. Somente hoje é que conseguimos alcançar

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toda a profundidade, toda a significação dessas ideias... A espinha dorsal do novo modo de
pensamento é o reconhecimento da prioridade que se deve dar aos valores humanos, ou, para
ser mais preciso, aos valores da sobrevivência humana” (Mikhail Gorbachev, Perestroika, 1987).

Quando, há cerca de um mês, o chanceler Ernesto Araújo publicou em seu blog artigo
intitulado “Chegou o Comunavírus” – no qual se afirmava que o globalismo substituíra o
socialismo como estágio preparatório do comunismo, e que os artífices do governo
mundial viam na pandemia de coronavírus uma oportunidade de mudança de paradigma –,
recebeu da imprensa brasileira o tratamento padrão dispensado a quem ouse trazer
informações ignoradas pela triste província das redações: risinhos de deboche e afetação
de escândalo, ambos mal disfarçados de notícia.

Araújo referia-se particularmente ao recém lançado Vírus, livreto do marxista esloveno


Slavoj Zizek, no qual a pandemia é vista como uma chance de abolição definitiva do sistema
de livre mercado e das soberanias nacionais (ver, sobre isso, este meu artigo de abril), por
meio de uma resposta coordenada em escala global que – demonstrando nisso uma
honestidade rara entre socialistas contemporâneos – o autor não se vexa em chamar pelo
nome verdadeiro: Comunismo.

“Tudo isto acaso não mostra com clareza a necessidade urgente de uma reorganização da
economia global que não esteja mais sujeita aos mecanismos do mercado?” – pergunta
Zizek no livro, para em seguida ressalvar: “Aqui não estamos falando do comunismo de
outrora, naturalmente, mas de algum tipo de organização global que possa controlar e
regular a economia, como também limitar a soberania dos Estados nacionais quando seja
necessário”.

Como modelo do tipo de organização global capaz de regular a economia em nível mundial
e impor medidas que violem as soberanias nacionais, Zizek cita justamente a OMS: “Um
primeiro e vago modelo de uma tal coordenação na escala global é representado pela
Organização Mundial da Saúde (OMS)… Serão conferidos maiores poderes a outras
organizações desse tipo”.

Quem conhece minimamente a história do comunismo sabe que Zizek não está falando
nada de novo. Mas o grosso do jornalismo brasileiro, é claro, não conhece. O fato é que o
apoio e participação de comunistas na criação de organizações internacionais data, pelo
menos, desde o fim da Segunda Guerra, momento em que membros de partidos
comunistas de várias partes do mundo desempenharam papel decisivo e formativo na
criação da ONU. Basta lembrar, por exemplo, que o presidente da Conferência das Nações
Unidas sobre Organização Internacional, que resultou na redação da Carta da ONU (1945)
foi ninguém menos que o sr. Alger Hiss, alto-funcionário do Departamento de Estado
americano na época do governo de Franklin Delano Roosevelt, e depois denunciado como
espião soviético por um ex-companheiro de célula partidária, o jornalista Whittaker
Chambers.

Mas, antes mesmo da Revolução Bolchevique, em 1915, Lenin já afirmava que o


internacionalismo comunista deveria assumir a forma de um “Estados Unidos do Mundo”.
Em 1936, lia-se no programa oficial da Internacional Comunista: “A ditadura só pode se
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estabelecer por meio de uma vitória do socialismo em diferentes países ou grupos de
países, depois do que as repúblicas proletárias deverão se unir federativamente às que já
existem, e esse sistema de uniões federativas vai se expandir até a formação de uma União
Mundial de Repúblicas Socialistas Soviéticas”. E, pouco tempo depois da fundação da ONU,
em declaração ao jornal Pravda (23 de março de 1946), o ditador genocida Josef Stalin
saudava a organização nestes termos: “Atribuo grande importância à ONU, dado que é um
importante instrumento para a preservação da paz e da segurança internacional”.

Mas a participação dos comunistas americanos no fomento às organizações internacionais,


instrumentos do projeto globalista, foi particularmente significativa. Em seu livro Toward
Soviet America (1932), William Z. Foster, presidente nacional do Partido Comunista dos EUA
(CPUSA), escreveu: “O governo soviético americano irá se juntar a outros governos
soviéticos numa União Soviética global… Não é o Cristianismo, mas o Comunismo que trará
a paz mundial Um mundo comunista será um mundo unificado e organizado. O sistema
econômico será de grande organização, baseado no princípio de planejamento central ora
em vigência na URSS. O governo soviético americano será uma importante seção dessa
organização mundial”.

Em 1942, em plena guerra, o secretário-geral do CPUSA, Earl Browder, explicava em seu


livro Victory and After como os comunistas americanos haviam se empenhado no processo
de idealização da organização que só viria a surgir três anos mais tarde: “Os comunistas
americanos trabalharam enérgica e incansavelmente para lançar as fundações das Nações
Unidas, de cuja existência futura estamos convictos”. E escreveu ainda: “Pode-se dizer, sem
exagero, que relações ainda mais próximas entre o nosso país e a União Soviética são um
requisito indispensável para as Nações Unidas enquanto coalizão mundial… A confiança
mútua entre o nosso país e a União Soviética, e a colaboração com as lideranças das
Nações Unidas, são absolutamente necessárias”.

Sobre a importância atribuída pelo Kremlin à criação da ONU, uma amostra pode ser
encontrada na edição de abril de 1945 da principal publicação do PCUSA, a revista Political
Affairs: “Depois que a Carta passar em São Francisco, terá de ser aprovada por dois terços
do Senado, e essa ação estabelecerá um precedente de peso para outros tratados e
acordos vindouros. Mas a vitória não poderá ser obtida apenas no Senado; ela deve
emanar de um apoio nacional organizado e cada vez mais amplo, erguido ao redor das
políticas do Presidente, tanto antes quanto depois da reunião em São Francisco… Um forte
apoio popular e entusiasmo pelas políticas das Nações Unidas deve ser incentivado e
organizado. Mas é preciso ir além. A oposição ao projeto deve ser mantida tão impotente a
ponto de não conseguir reunir qualquer apoio significativo no Senado contra a Carta e os
tratados vindouros”.

No preâmbulo da constituição do CPSUA, lia-se: “O Partido Comunista dos EUA luta


incansavelmente contra todas as formas de chauvinismo. E afirma que o verdadeiro
interesse nacional do nosso país e a causa da paz e do progresso requer o fortalecimento
das Nações Unidas como instrumento universal da paz”.

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Mas a participação dos comunistas americanos na criação da ONU não se restringiu à
militância partidária. Hoje é amplamente reconhecido (não, é claro, por jornalistas
brasileiros) que alguns dos principais artífices da organização foram altos funcionários do
Departamento de Estado e do Departamento do Tesouro dos EUA, figuras que, mais tarde,
foram descobertas como espiões soviéticos. Além do já mencionado Alger Hiss, refiro-me a
personagens como Solomon Adler, Virginius Frank Coe, Lawrence Duggan, Noel Field,
Harold Glasser, Irving Kaplan, Victor Perlo, Abraham G. Silverman, Nathan G. Silvermaster,
William H. Taylor, William L. Ullman, John Carter Vincent, Henry Julian Wadleigh, David
Weintraub e Harry Dexter White. Se tiver curiosidade, o leitor pode dar um “google” em
cada um desses nomes.

Nessa época, contudo, o vocabulário usado pelos comunistas ainda estava muito preso ao
cânon soviético, refém da terminologia oficial do Politburo. Foi somente no final dos anos
1980, com o processo de dissolução nominal do comunismo na URSS e no Leste Europeu,
que os principais ideólogos e líderes comunistas começaram a sofisticar o linguajar,
adaptando-o ao hocus pocus das organizações internacionais, e tornando-o mais abstrato e
universalista. Toda referência à “ditadura do proletariado” foi abandonada em favor de
discursos sobre o “bem comum” de “toda a humanidade”.

E é aí que entra a conhecida Perestroika, que, ao contrário do que imagina o nosso


paroquial senso comum midiático, foi um processo longa e internamente planejado de
implosão controlada, antes que uma vitória explosiva do Ocidente liberal contra o
Comunismo. Como escreve Mikhail Gorbachev no livro que leva o nome do alegado
processo de “liberalização” do comunismo: “É minha convicção que a raça humana alcançou
um estado em que somos todos dependentes uns dos outros. Nenhum país, nenhuma
nação deveria ser considerada de forma isolada das outras, muito menos oposta às outras.
É o que nosso vocabulário comunista chama de internacionalismo, o que significa nosso
anseio de promover os valores humanos universais”. E aí já entramos no ponto em que o
comunismo pós-soviético e o globalismo passam a ser quase indistinguíveis. Mas esse é um
assunto para a semana que vem.

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Flavio Gordon
Flávio Gordon é doutor em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ) e autor do best-seller A Corrupção da
Inteligência: intelectuais e poder no Brasil (Record, 2017). **Os textos do colunista não
expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.

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