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PROCESSO DE CRIAÇÃO
REALIZAÇÃO de um filme implica a integra- Assim, um filme não é assinado apenas por
A ção e interação de um conjunto de agentes
especializados em áreas nas quais, em outras ar-
um autor, mas por um conjunto de autores, cu-
jas especialidades complementam-se, coadunam-
tes, aparecem como dominantes, mas que, no caso se e retroagem em um policircuito recursivo (Mo-
do cinema, são co-participantes. O que Riccioto rin, ibid.: 231), cuja dinâmica opera em torno
Canudo havia previsto como o mito da arte total de concessões, cooperações e associações entre
ao se referir ao cinema (Stam, 2003: 43) torna- as competências participantes. De fato, essa uni-
se palpável nos sets de filmagem em que artistas dade complexa do cinema depende de uma eco-
de diferentes formações são unidos no desenvolvi- organização (Morin, 2005: 35-42), cuja dimensão
mento de uma obra complexa. comporta uma natureza temporal, isto é, uma or-
O fato de o cineasta tomar as decisões cruciais ganização que se dá no tempo (Vieira, 2008: 93)
na realização do filme não tira a co-autoria dos ou- e cuja lógica gira em torno de processos tempo-
tros agentes nem o caráter poético de suas funções rais, que por sua vez comportam transformações,
no que tange à confecção do filme. Seguindo essa flutuações e intersemioses.
perspectiva, o que se constata é que essas intera- Segundo Vieira (ibid.: 89), existem três parâ-
ções (Morin, 2008: 105) que compõem e moldam metros classificatórios fundamentais para se obser-
a realização de um filme configuram-se como sis- var um sistema: sua capacidade de permanência,
têmicas, isto é, há um conjunto de agentes semió- seu meio ambiente e sua autonomia. Ainda den-
ticos com funções específicas que interagem e se tro dessa perspectiva, para um sistema consolidar-
integram na realização da obra. se como tal, existem parâmetros chamados hierár-
∗ Esta pesquisa teve o apoio da Fundação de Amaparo a Pes- O conteúdo deste artigo está protegido por Lei. Qualquer forma
quisa do Estado de São Paulo – Fapesp. de reprodução, distribuição, comunicação pública ou transforma-
Marcelo Moreira Santos: Doutor em Comunicação e Semiótica ção da totalidade ou de parte desta obra carece de expressa auto-
pela PUC-SP. rização do editor e do(s) seu(s) autor(es). O artigo, bem como a
autorização de publicação das imagens, são da exclusiva respon-
c 2018, Marcelo Moreira Santos. sabilidade do(s) autor(es).
c 2018, Universidade da Beira Interior.
Marcelo Moreira Santos
quicos ou evolutivos, isto é, dependentes do fa- ção e produção, ou como Morin destaca: as intera-
tor tempo para se estabelecer, delineados da se- ções e associações – entre essas áreas distintas ine-
guinte forma: composição, conectividade, estru- rentes ao processo de realização cinematográfica –
tura, integralidade, funcionalidade e organização, “se entreproduzem” (Morin, ibid.: 202). Assim,
todos permeados por um parâmetro que pode sur- o efeito da entropia seria o de uma homogeneiza-
gir desde o primeiro estágio: a complexidade. As- ção do sistema, a perda do múltiplo e da diferença.
sim, um sistema é caracterizado por seu processo Portanto, o colapso do sistema, pois a “organiza-
temporal e sua capacidade de crescimento e de- ção de um sistema é a organização da diferença”
senvolvimento. A complexidade de tal movimento (Morin, ibid.: 149).
temporal se dá pela diversidade de conexões que Portanto, ao fim, a poética desenvolvida no ci-
são realizadas em prol da sobrevivência do sis- nema é confeccionada nesse jogo ontológico sistê-
tema. mico das interações entre agentes semióticos res-
No caso do cinema, um processo similar pode ponsáveis por comporem um todo múltiplo e coo-
ser visto na realização e produção de um filme. perativo (Morin, ibid.: 147). Assim, cada agente,
Dada a necessidade desses agentes especializados, em sua especialidade, é responsável por um frag-
que são postos em conjunto para trabalharem em mento sígnico que passa pelo crivo de sua cria-
prol da realização de uma obra cinematográfica, o ção, desenvolvimento e produção. Esse fragmento
que há nesse ambiente é um processo temporal que tem que: a) conectar-se; b) traçar relações; c)
demanda evoluir por cada parâmetro hierárquico estruturar-se, isto é, estabelecer e fortalecer es-
apontado anteriormente. Este reflete-se na capa- sas relações intersemióticas – de troca – ao longo
cidade de permanência, isto é, na capacidade de do período de realização fílmica; d) integrar-se a
se atingir uma regularidade – redundância (Vieira, outras partes sígnicas em um processo de com-
ibid.: 92) – na construção fílmica, que pode ser plementaridade; e) cumprir uma função, visando
constatado no filme finalizado. Pois, um filme não uma cooperação mútua e interdependente; f) e
é feito de forma linear, mas por partes que se jun- corporificar-se em uma organização (ou organici-
tam na fase de pós-produção e finalização. Assim, dade) coesa o suficiente que consiga desenvolver
ao fim e ao cabo, um filme tem que apresentar uma uma regularidade pragmática durante todo o pro-
autonomia, em que tudo se conecta de forma coesa cesso de realização do filme. De fato, uma fotogra-
e coerente: direção de arte, direção de fotografia, fia, um figurino, uma direção de arte, por exem-
cenografia, figurino, roteiro, direção, planos, mon- plo, integram-se e tomam corpo pela complexi-
tagem etc. dade com que dialogam entre si, pelas interfaces
Aliás, os parâmetros de coesão e coerência são e intercâmbios sígnicos que são capazes de reali-
também parâmetros de consolidação de um sis- zar e, principalmente, manter e entreproduzir, por-
tema. A coesão lida com a sintaxe entre elemen- tanto, transformar (Morin, ibid.: 148).
tos, sua articulação e efetividade. A coerência lida O que faz essa multiplicidade de agentes funci-
com a semântica que se desenvolve em prol de uma onarem em uma unidade complexa e inter-atuante
dialogia intersemiótica entre esses elementos para é aquilo que Aumont chama de ideia do filme, que
a construção de sentido entre os mesmos, em um o cineasta tem da obra ainda no início de seu pro-
todo integrado, complexo e significativo. cesso criativo (Aumont, 2006: 136). Nesse sen-
O que se observa é que há, em graus maio- tido, essa ideia coloca esses subsistemas em ati-
res ou menores, o risco de essa combinação en- vidade formando um policircuito recursivo retro-
tre agentes e especialidades entrar em processo de ativo entre o todo às partes, e entre as partes ao
entropia (Morin, ibid.: 94), perdendo a coesão sin- todo. Isso quer dizer que as partes – subsistemas –
tática e a coerência semântica, prejudicando as in- retroagem recursivamente sobre o todo – o filme –
terfaces e intercâmbios intersemióticos entre suas e o todo, por sua vez, retroage recursivamente so-
várias camadas de significação. Essas camadas de bre as partes formando esse policircuito no qual as
significação são cunhadas e entrelaçadas pela in- intersemioses, flutuações e transformações fazem
tegralidade e organização da direção de fotografia, morada (Morin, ibid.: 228).
direção de arte, figurino, cenografia, trilha sonora, De fato, essa ideia desencadeia os fluxos e os
roteiro, direção etc., dentro de um todo complexo, multiprocessos – círculo-evoluções – entre os sub-
o filme. sistemas e essa dialogia – entre roteiro, direção
De fato, a riqueza organizacional de um sis- de arte, direção de fotografia, cenografia, figurino,
tema é medida pela sua diversidade e variedade, atores, direção, montagem, trilha sonora etc. –
pois sua lógica é pautada pela transformação, gera- ocorre em torno dessa ideia-chave. Essa nucleação
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em torno de uma ideia que move a organização é cia dos especialistas envolvidos (ver Morin, ibid.:
o fechamento do sistema, porém não é um fecha- 253). Assim, sua poética é articulada por meio de
mento total ao ambiente em que está imerso, pois uma ecodependência, e sua plenitude criativa flo-
a ideia nucleadora, para ter autonomia, alimenta- resce e ganha brilho ao permeá-la de colaborações,
se de saberes – memória – aos quais essa ideia- cooperações e complementações.
chave está umbilicalmente conectada. Assim, a
nucleação do sistema – o que implica dizer difu-
são de informação e a elaboração/execução de mé-
todo/estratégia de performances – favorece o flo- Morin define um subsistema da seguinte ma-
rescimento dos subsistemas, isto é, promove a di- neira: é “(...) todo sistema que manifeste subor-
versidade (leia-se riqueza), provê a interdependên- dinação em relação a um sistema no qual ele é
cia (leia-se complementaridades) e permite o inter- integrado como parte” (Morin, ibid., 175). As-
câmbio (leia-se intersemioses) entre as partes e o sim, cada subsistema como direção de arte, ro-
todo neste policircuito recursivo retroativo. teiro, direção de fotografia, trilha sonora, direção,
cenografia, figurino, montagem, atuação etc., pos-
Cada subsistema possui uma herança e uma sui uma história – memória – que advém, de uma
memória que se torna, ao fim e ao cabo, fonte de forma ou de outra, de artes pregressas ao cinema.
saberes, competências e de conhecimento de arti- Portanto, cada subsistema carrega consigo uma he-
culação de linguagem (Morin, ibid.: 210). O ro- rança semiótica que passa por transformações no
teiro, herança da literatura (Aumont, ibid.: 40) e meio cinematográfico. Assim, se, por um lado, es-
da dramaturgia, serve de guia para a produção que sas especialidades desenvolveram as potencialida-
se concentra em tentar trazer à superfície a histó- des do cinema, por outro, o meio permitiu e pro-
ria ali descrita, fazendo uma analogia, o roteiro se- piciou novos desdobramentos e novas articulações
ria a planta-baixa de um edifício que vai consu- às especialidades.
mir horas e horas para ser erigido. A direção de
arte (herança das artes plásticas) trata de esboçar e
estabelecer os aspectos visuais sugeridos pelo ro-
teiro e pelo diretor; o cenógrafo (herança do tea- Entretanto, este circuito, formado por subsiste-
tro e em alguns aspectos da arquitetura) trata de mas cujas especialidades são postas para atuarem
dar vida e relevo aos espaços onde a encenação em conjunto, envolve um fator tempo que subjaz
será realizada; o figurinista (herança da moda e do a todo o sistema. Assim, cada subsistema passa
teatro) trata de encarnar no vestuário os aspectos por fases evolutivas de maneira diferenciada e em
sociais, históricos e psicológicos dos personagens momentos específicos durante a produção de um
com intuito de dar dimensão a estes; o diretor de filme. Daí o termo círculo-evoluções, pois o fim
fotografia (herança da própria fotografia) trata de de um processo é o começo de um outro. Ou como
escrever a história ali encenada por meio da dis- Morin define é um : “(...) multiprocesso retroativo
posição e articulação das luzes, lentes e enquadra- se fechando em si mesmo a partir de múltiplos e di-
mentos; o compositor da trilha sonora (herança da versos circuitos (...)” (Morin, ibid.: 231). Assim, o
música) trata de contar e transmitir os sentimentos término do roteiro é o início da pré-produção, o fim
das cenas encenadas por meio da música. Ainda da pré-produção é o início da produção ou filma-
que inserida na pós-produção, a música tem o ca- gem, o fim deste último é o começo da montagem
ráter de enaltecer e intensificar a encenação e a e da pós-produção, portanto é um policircuito re-
montagem; o diretor (herança das outras artes) é troativo recursivo, no qual os subsistemas evoluem
um autor complexo que possui a competência con- por um processo criativo que contém fases distin-
jugada do regente, pintor, escritor, encenador, fo- tas e momentos específicos. Portanto, é um policir-
tógrafo, arquiteto, poeta e compositor. É, sobre- cuito retroativo recursivo, no qual os subsistemas
tudo, um mediador de competências cujo discurso evoluem por um processo criativo que contém fa-
se desenvolve por meio da integração e consolida- ses distintas como: rompimento, preparação, incu-
ção de uma dialogia entre os outros agentes semió- bação, expansão ou iluminação, transição ou ve-
ticos envolvidos no processo de criação do filme. rificação, maturação ou formulação e clímax (ver
Ele forja sua independência na e pela dependên- Vieira, 2008: 58)2 .
2 Seguindo os passos de Jorge Vieira ao adaptar a proposta os processos de abertura e fechamento – a cada subsistema – tão
de Moles com as propostas evolutivas ontológicas de Mende – essenciais à nucleação na realização de um filme.
evolon – é possível compreender melhor em que momento ocorre
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eliminando o desnecessário e priorizando o forta- eram encontrados no cinema dito mudo. Por-
lecimento – para o espectador – do conflito entre tanto, a fala do ator suscitou e forneceu dimen-
os heróis (Pudovkin apud Xavier, 2003: 57-73). são, densidade e contornos “realistas” aos perso-
Assim, em Pudovkin, há a necessidade de um pro- nagens cinematográficos, pois ora ouviam-se seus
tagonista que vá adiante e mova a narrativa. Dessa pensamentos, ora acompanhavam-se seus discur-
forma, é uma via de mão-dupla: de um lado uma sos e suas discussões, ora seus silêncios e respi-
montagem que tece as relações e direciona o es- rações etc., isto tudo sendo intercalado e entrela-
pectador naquilo que o diretor deseja abordar e, çado aos planos e à montagem. Ao invés de um
de outro, uma atuação que permita uma identifi- ator manequim, que era guiado para esta ou aquela
cação cuja carga emotiva cresça ao longo da nar- expressão por vezes exagerada, ilustrativa e icô-
rativa. Uma dinâmica que Pudovkin admite ter nica que serviria para compor uma ideia sobre o
aprendido ao assistir aos filmes de Griffith e que assunto em destaque, surge uma atuação interde-
é facilmente observada no filme O Fim de São Pe- pendente, isto é, que complementa, troca, joga,
tersburgo (1927), por exemplo. interage, transforma-se em enquadramentos e em
Talvez o expressionismo alemão tenha sido o montagem, ao entrar em contato com os outros
mais teatral dos cinemas no período mudo, por subsistemas (direção de arte, direção de fotografia,
causa da influência de Max Reinhardt (Eisner, montagem, som etc.).
2002: 12). Este “teatral”, no caso, refere-se à ne- Isso não quer dizer que a decupagem de cena
cessidade do trabalho do ator/atriz no direciona- e a montagem não exercessem influência sobre o
mento da narrativa fílmica como um todo. Aqui trabalho fragmentado do ator de cinema, ao con-
não é a montagem ou a fragmentação da cena que trário, sua atuação e performance eram fonte e re-
se impõe à encenação, mas a atuação dos atores servatório de abordagens, aproximações, distan-
que se estabelece como prioritária. São os corpos – ciamentos, inflexões e irradiações em um inter-
movimentos, reações e performances – no espaço câmbio contínuo entre estes três campos distintos:
que estabelecem a maneira como serão feitos os plano/mise-en-scène/montagem. Nesse processo,
enquadramentos e a montagem. Murnau, em A Úl- tanto a fragmentação da ação e sua planejada mon-
tima Gargalhada (1924), atrela a câmera ao corpo tagem, quanto a performance do ator influem sobre
de seu protagonista. Lang, em Metrópolis (1927), o processo, cabendo ao diretor decidir o quanto
enfatiza a massa de corpos caminhando ordeira- cada um irá contribuir em relação ao todo, e o
mente nos níveis inferiores da metrópole e Wiene, quanto o todo se impõe sobre o trabalho da atu-
em O Gabinete do Dr. Caligari (1920), enaltece a ação.
maneira esguia e sorrateira de seu protagonista ao Dentro desse processo, existiram propostas
caminhar pelo ambiente. Portanto, há uma clara distintas ao longo do tempo como: (a) um estilo
necessidade de se explorar a performance dos ato- agressivo que se impõe e se entrelaça à perfor-
res no espaço diante da câmera, ou seja, é a in- mance visceral do ator, como em Acossado (1960),
tensidade visual criada pela atuação que corrobora de Jean-Luc Godard; (b) um lirismo que se busca
para a composição dos enquadramentos e da mon- na realidade e que se amalgama à atuação de uma
tagem. atriz, como em Noites de Cabíria (1957), de Fede-
Entretanto, é, sem dúvida, o advento da tecno- rico Fellini; (c) uma estética árida e faminta pela
logia, ao permitir a sincronização do som com a imperfeição que se associa a atuações dissonan-
imagem no cinema, que irá favorecer, equilibrar e tes entre atores profissionais e não profissionais,
valorizar a performance do ator. Apesar de, a prin- como em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963),
cípio, essa sincronização ter suscitado o excesso de Glauber Rocha; (d) incertezas e sentidos va-
de troca de diálogos, “teatralizando” o cinema, aos gos contidos e revelados pela performance de uma
poucos o que se seguiu foi o uso da “fala” do ator atriz, como em O Eclipse (1962), de Michelangelo
como ponto de inflexão à narrativa fílmica, como Antonioni; (e) densidades de loucura e sensatez,
as vozes em off dos filmes noir, ou como base aos contidas na natureza humana e representadas pela
duplos sentidos e à ironia como nos filmes de Billy atuação de uma atriz, como em Persona – Quando
Wilder e Ernst Lubitsch, e/ou como fonte para di- Duas Mulheres Pecam (1966), de Ingmar Berg-
vergentes pontos de vista que vão se envolvendo man.
em camadas como em Cidadão Kane (1941), de De fato, assim como ocorre na escolha e na
Orson Wells. consolidação de sua equipe, os cineastas também
De fato, a sincronização do som à imagem se associam a atores e atrizes ao longo de suas car-
trouxe novos efeitos de realidade que antes não reiras. Isso ao ponto de a identidade de alguns ci-
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neastas fundirem-se às performances de seus ato- que assista a filmes, leia artigos, livros e revistas
res e atrizes, como se tal poética estivesse repre- sobre o assunto, encontre fotos e desenhos de tipos
sentada pela figura desses profissionais. Entre- vinculados àquele ambiente, que busque pesquisa-
tanto, dada a maneira como uma produção cine- dores, pessoas próximas àquela realidade que pos-
matográfica é realizada, com cenas sendo filmadas sam lhe dar uma ideia sobre como tal personagem
em ordem cronológica divergente àquela vista no possa ser, aparentar e, principalmente, pensar. De
roteiro, a valorização desse intercâmbio entre per- fato, a tônica dessa fase é sondar diferentes fontes
formance e poética fílmica é ainda um ponto de in- para que possam lhe fornecer aproximações conci-
tensas discussões entre extremos distintos: de um sas e coerentes com o personagem.
lado a mais rígida orquestração desta performance Tal processo abre-lhe caminho para o passo se-
e, do outro, a abertura ao improviso total. guinte – Expansão e Iluminação – que consiste
Entretanto, é o cineasta que guia a performance em imaginar e sentir tal personagem em ação:
desses profissionais naquilo que almeja para as ce- falando, andando, em contato com outras pes-
nas e para o filme. Por outro lado, o ator traz soas e assim por diante, buscando sua atmosfera
sua parcela de contribuição, tentando dar “vida” (Chekhov, 1986: 163). É o momento do mágico se
àquele personagem que, até aquele momento, é de Stanislavsky (1999: 69) em que o ator ou atriz
apenas um nome cujas falas, ações e descrições busca visualizar seu personagem em diferentes si-
estão no roteiro, em linguagem verbal. Aliás, a tuações, agindo de maneiras distintas além daquilo
preparação desses profissionais às cenas e ao filme que é relatado no roteiro. Como este personagem
como um todo faz parte de um processo de pré- nasceu? Como foi sua infância? Sua convivên-
produção, sendo comum a contratação de especia- cia familiar? Seu primeiro amor? etc., é como
listas com intuito de auxiliá-los nesse processo. Chekhov (ibid.: 27) salienta: “(...) você orienta e
A primeira fase – Rompimento – ocorre constrói sua personagem fazendo novas perguntas,
quando o ator entra em contato com o roteiro, para ordenando-lhe que lhe mostre diferentes variações
uma compreensão da estória como um todo e do de possíveis modos de atuar (...)”. De caráter ab-
próprio personagem ao qual o ator/atriz foi esca- dutivo (leia-se hipotético), tal fase é fundamentada
lado. É comum nessa fase uma leitura corrida do em uma profícua exploração de possibilidades di-
roteiro com todos os atores e atrizes envolvidos. ante de um personagem que, deveras, é maior do
O diretor, muitas vezes, acompanha essa leitura e, que aquilo que é descrito no roteiro. Na verdade,
ao final, explica suas impressões sobre cada perso- o que é mostrado em um filme torna-se apenas um
nagem, a importância de determinadas cenas para trecho e/ou período de uma “vida” a ser represen-
determinados personagens e o que almeja “ver” em tada, não a totalidade de seus momentos. Entre-
seu filme. Por outro lado, os atores e atrizes tiram tanto, este pequeno lapso de tempo a ser represen-
suas dúvidas, contam também suas impressões so- tado em um filme deve conter, em sua brevidade,
bre o que leram e a maneira como vêm seus perso- toda a dimensão e profundidade do personagem
nagens. Ao final, este primeiro diálogo serve para e de sua estória3 . Portanto, aquilo que não apa-
um start que servirá de um primeiro guia para o rece no roteiro, mas é por este sugerido, torna-se o
ator/atriz, em suas novas leituras do roteiro, perce- campo de ação da imaginação do ator, cujo papel
berem o que o diretor busca. visa a fornecer elementos ainda mais densos sobre
o caráter do personagem; fazer-lhe novas pergun-
Na fase seguinte – Preparação e Incubação –
tas a la Chekhov consiste em desvendar suas ca-
o ator estuda com todo afinco seu personagem: seu
madas de complexidade.
ambiente, tempo e costumes, seu papel na estória,
Neste processo, o se torna-se uma ferramenta
a maneira como age, reage e fala, observa os per-
basilar para o ator/atriz aproximar-se de seu perso-
sonagens próximos e quais suas relações com es-
nagem:
tes, percebe os desdobramentos das ações deste no
todo, enfim é um estudo minucioso de cada deta- Se é o ponto de partida, as circuns-
lhe contido no roteiro que lhe permite situar, fo- tâncias dadas são o desenvolvimento.
car e entrever tal personagem. Como um leitor Um não pode existir sem o outro
ávido por informação, o ator/atriz debruça-se so- para que tenha o necessário dom do
bre o roteiro, auscultando neste dados precisos so- estímulo. As suas funções, entre-
bre seu/sua personagem. Se tal realidade a ser re- tanto, diferem um pouco. O se dá
presentada for distante de seu dia a dia é comum o empurrão na imaginação dormente,
3 Aliás, este é o desafio imposto a todo cineasta.
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nio sobre o personagem e a confiança no direciona- Morin, E. (2005). O método 2 – a vida da vida.
mento dado que o faz atingir tal clímax. Seu foco é Porto Alegre: Editora Sulina.
tamanho que a equipe e os equipamentos em torno
nem lhe tiram a atenção. Existe, portanto, uma Moura, E. (1999). 50 anos luz, câmera e ação.
fluência na interpretação, ainda que o cronograma São Paulo: Editora Senac.
de filmagem seja aleatório, tal ator compõe, estru- Peirce, C. S. (2000). Semiótica. São Paulo: Edi-
tura, estabelece e desenvolve um sentido de per- tora Perspectiva.
manência muito evidente (ver Stanislavsky, ibid.:
269), que corrobora para uma unidade de interpre- Santaella, L. (2001). Matrizes da linguagem e pen-
tação. samento – sonora, visual, verbal. São Paulo:
Editora Iluminuras.
Referências Stam, R. (2000). Introdução à teoria do cinema.
Aristóteles (2005). Arte poética. São Paulo: Mar- Campinas: Papirus Editora.
tin Claret Editora.
Stanislavsky, C. (1999). A preparação do ator.
Aumont, J. (2006). O cinema e a encenação. Lis- Rio de Janeiro: Record Editora, 15a edição.
boa: Edições Texto & Grafia.
Vieira, J. de A. (2007). Ciência – formas de conhe-
Benjamin, W. (1996). Obras escolhidas I – Magia cimento: arte e ciência uma visão a partir da
e técnica. Arte e política. São Paulo: Editora complexidade. Fortaleza: Gráfica e Editora.
Brasiliense.
Vieira, J. de A. (2008). Teoria do conhecimento e
Bordwell, D. (2008). Poetics of cinema. New arte – formas de conhecimento: arte e ciên-
York: Routledege. cia uma visão a partir da complexidade. 2a
Chekhov, M. (1986). Para o ator. São Paulo: Edi- edição. Fortaleza: Gráfica e Editora.
tora Martins Fontes. Vieira, J. de A. (2008). Ontologia – formas de co-
Eisner, L. H. (2002). A tela demoníaca: as influên- nhecimento: arte e ciência uma visão a partir
cias de Max Reinhardt e do expressionismo. da complexidade. Fortaleza: Expressão Grá-
São Paulo: Paz e Terra, 2a edição. fica e Editora.
Lawson, J. H. (1967). O processo de criação no ci- Xavier, I. (org.) (2003). A experiência do cinema.
nema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Edições Graal.
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