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CENTRO PAULA SOUZA


FACULDADE DE TECNOLOGIA DE TATUI
CURSO SUPERIOR DE TECNOLOGIA EM PRODUÇÃO FONOGRÁFICA

RAFAEL EDUARDO PEREIRA


VICTOR BACCILI PEREIRA

DE TWIN PEAKS A UM NOME:


o Imaginário Sonoro como propulsor de Stimmungs.

Tatuí/SP
1º Semestre/2021
2

RAFAEL EDUARDO PEREIRA


VICTOR BACCILI PEREIRA

DE TWIN PEAKS A UM NOME:


o Imaginário Sonoro como propulsor de Stimmungs.

Projeto de Trabalho de Graduação


apresentado à Faculdade de Tecnologia de
Tatuí, como exigência parcial para obtenção
do grau de tecnólogo em Produção
Fonográfica, sob orientação do Profº Fabrízio
di Sarno.

Tatuí/SP
1º Semestre/2021
1

RAFAEL EDUARDO PEREIRA


VICTOR BACCILI PEREIRA

DE TWIN PEAKS A UM NOME:


o Imaginário Sonoro como propulsor de Stimmungs.

Projeto de Trabalho de Graduação apresentado à


Faculdade de Tecnologia de Tatuí, como exigência
parcial para obtenção do grau de tecnólogo em
Produção Fonográfica, sob orientação do Profº
Fabrízio di Sarno.

( ) APROVADO ( ) REPROVADO
Com média:..............
Tatuí, .............. de .......................... 20........

___________________________
Prof. ..........................................
FATEC – Tatuí

___________________________
Prof. ..........................................
FATEC – Tatuí

___________________________
Prof. ..........................................
FATEC – Tatuí
2

DEDICATÓRIA

Dedicamos este trabalho à Irineu Pereira, Ondina Gonçalves de Borba


Pereira, Isabela Buglia, Mario Pereira, Claudia Baccili, Hugo Baccili Pereira e Laura
Baccili Pereira, por todo apoio, auxílio e incentivo sem os quais essa formação não
teria sido tão proveitosa. Dedicamos também aos colegas e professores do curso de
Produção Fonográfica que nos proporcionaram tantas vivências enriquecedoras e
trocas inspiradoras, contribuindo sempre de forma decisiva para nossa formação
profissional, humana e artística.
3

AGRADECIMENTOS

Agradecemos

Ao Prof. Ms. Fabrizio Di Sarno pela orientação sempre bem-humorada e pela


indicação de textos inspiradores, que permitiram que este trabalho tivesse de fato a
veia filosófica que o tema merecia;

Ao Prof. Dr. Lucas Correia Meneguette pelo entusiasmo e incentivo constante dos
alunos a fazer sempre mais, além das incríveis oportunidades de estágio e trocas
profissionais reais dentro do ambiente da faculdade;

À Prof. Luana Muzille pela capacidade de despertar um olhar sempre crítico, realista
e bem-humorado sobre a sociedade, o mercado e nossa profissão;

Ao Prof. Ms. José Carlos Pires pela sua confiança em colocar os alunos como
protagonistas dentro do curso;

Ao Prof. Davison Pinheiro pela sua amplitude de visão, sua capacidade de conciliar
o técnico com o poético e por nos fazer apaixonar ainda mais por esse trabalho final,
através de suas colocações tão generosas sobre ele na banca de PTG;

Ao Prof. Moacir José Dondelli Paulillo e ao Prof. Ms. Paulo César Signori, por
conseguirem tornar leve e agradável o aprendizado musical, sem deixar de ser
eficientes, com doses precisas de pulso firme, amor pela arte e acidez bem-
humorada;

Aos demais professores do curso, quase sempre tão gentis e solícitos;

Aos nossos amigos, pelo companheirismo nos momentos de dificuldade e pela


inspiração constante pra botar a mão na massa, através de suas genialidades
particulares;

Aos membros do grupo e à equipe envolvida na produção do nosso curta e da


música tema: Laio de Almeida, Vivian Rodrigues, Vitor Gomes, Bobby Baq, César
Augusto, Guilherme Furlan, Hugo Baccili, Jéssica Lorenzo, Gabriela Ribeiro,
Andresa Assis, e tantos outros.
4

EPÍGRAFE

“Nóssomos como o sonhador


que sonha e então vive dentro do
sonho.

(…)

Mas quem é o sonhador?”

Monica Belucci para Gordon Cole


(Parte 14, Twin Peaks: The Return)
5

RESUMO

Este trabalho se propõe a estudar a trilha sonora da série Twin Peaks (1990-1992;
2017), saga criada por Mark Frost e David Lynch, considerada um marco na história
da televisão seriada, tanto nas suas temporadas clássicas, lançadas entre 1990 e
1992, quanto em seu retorno, em 2017. Para isso, num primeiro momento, é
explorado o conceito de “complexidade narrativa na TV” e “labirinto narrativo”, para
que se possa melhor compreender o lugar de destaque da obra na história do
audiovisual. A partir disso, os conceitos de “stimmung” e “imaginário sonoro”,
conforme discutidos por Gumbrecht e Oliveira respectivamente, são fundamentais
para que haja uma melhor compreensão das inovações e particularidades contidas
no uso do som e da trilha sonora pela série, para a obtenção de seu efeito final no
espectador. Em seguida, são elaboradas análises sonoras de algumas sequências
de toda a trajetória da série, a fim de melhor compreender, in loco, seus aspectos
estéticos, em âmbitos técnicos e sensoriais, através da leitura de ambiências,
conforme prevista por Martoni. Por fim, a partir destes signos sonoros e percepções
sensoriais levantados, busca-se desenvolver uma “ideia”, conforme colocado por
Lynch, através da elaboração de um experimento audiovisual na forma de um curta-
metragem original intitulado “Um Nome”.

Palavras-chave: trilha sonora, audiovisual, imaginário sonoro, stimmung, Twin


Peaks.
6

ABSTRACT

FROM ‘TWIN PEAKS’ TO ‘A NAME’:


Sound Imagery as a catalyst of Stimmungs.

This essay studies the score of the series Twin Peaks (1990-1992; 2017), created by
Mark Frost and David Lynch, and thought to be a milestone in the history of
serialised television with its classical seasons, from 1990 to 1992, but also with its
most recent installment, in 2017. For such, the concepts of “narrative complexity on
TV” and “narrative labyrinth” will be firstly explored so it will be possible to better
understand the standout place of the series in the history of television and film. Then,
the concepts of “stimmung” and “sound imagery”, as discussed by Gumbrecht and
Oliveira respectively, will be fundamental for a better understanding of the inovations
and idiosyncrasies present in the use of sound and score by the series, and its
importance for its final effect on viewers. After that, sound analysis of sequences
from the series will be made to enlighten some of its core aesthetical features, in both
technical and sensorial views, through the process of “ambiance reading”, as in
Martoni. Finally, from the sound data and sensorial perception captured, an “idea” will
be developed, as stated by Lynch, through the creation of a film experiment, in the
form of an original short-movie titled “A Name”.

Key-words: score, audiovisual, sound imagery, stimmung, Twin Peaks.


7

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Beethoven, Sonata para Piano Op. 7, 4° movimento, tema inicial.............27


Figura 2: Fuga em Lá bemol maior do 2° livro do Cravo bem Temperado de J. S.
Bach, c.1-5. Combinação tropológica de duas tópicas...........................................…31
Figura 3: Sumário do volume I da Sam fox moving picture music
(1913) ...............................................…..........................................….................…...32
Figura 4: Audrey e Donna conversam no Double R.......................….................……39
Figura 5: Audrey dança em meio à lanchonete...............................….................…...40
Figura 6: Cooper envelhecido na Sala Vermelha.............................….................…..41
Figura 7: A dança do Anão................…..........................................….................…...43
Figura 8: Cooper baleado..................…..........................................….................…...44
Figura 9: O senhor fala com Cooper alegremente...........................….................…..46
Figura 10: O Gigante..........................…..........................................….................…..46
Figura 11: O cavalo branco.................…..........................................….................….49
Figura 12: O interior da Roadhouse.....…..........................................…..............……50
Figura 13: Leland se vira, Bob no espelho.........................................….................…52
Figura 14: Iluminação teatral utilisada na cena, conforme Leland/Bob persegue
Maddy................................................…..........................................….................…...53
Figura 15: a imagem de Cooper na câmera de segurança e o homem que se
aproxima dele.....................................…..........................................….................…..55
Figura 16: A sala sobre a Loja de Conveniência...............................….................….56
Figura 17: Cooper em queda-livre pelo Espaço.................................….................…59
Figura 18: Cooper em uma sacada cercada pelo oceano..................…..............…..60
Figura 19: Naido, a mulher sem olhos.…..........................................….................….61
Figura 20: Eles saem por uma espécie alçapão, em uma caixa preta de ferro que
flutua no meio do espaço sideral.......…..........................................….................…...62
Figura 21: Imagem da Primeira Explosão Atômica,conforme retratada no episódio 8
da terceira temporada da série............…..........................................….................….64
Figura 22: Trecho da partitura da obra de Penderecki em questão...…...…..……….65
Figura 23: Viagem lisérgica pelo interior da Bomba Atômica..............…..............…..66
Figura 24: Pianista no restaurante em Las Vegas.............................….................…69
Figura 25: Dougie olha para o pianista.…..........................................….................…70
Figura 25: A senhora agradece a Dougie...........................................…..............…..71
8

SUMÁRIO UMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 10
1.1 JUSTIFICATIVA.................................................................................................12
1.2 OBJETIVOS........................................................................................................14
1.2.1 Objetivo Geral................................................................................................14
1.2.2 Objetivos Específicos....................................................................................14
2 REFERENCIAL TEÓRICO 15
2.1 COMPLEXIDADE E LABIRINTO NARRATIVO NA TV......................................15
2.2 STIMMUNG OU “AMBIÊNCIA”...........................................................................22
2.3 IMAGINÁRIO SONORO......................................................................................24
2.3.1 Gestos.............................................................................................................25
2.3.2 Musemas.........................................................................................................27
2.3.3 Tópicas...........................................................................................................28
2.3.4 Sons Concretos.............................................................................................32
3 METODOLOGIA 33
3.1 “STIMMUNG” E “IDEIA”: ENTRE O FÍSICO E O SENSÍVEL.............................33
3.2 LENDO AMBIÊNCIAS.........................................................................................36
4 ESTUDO DE CASO: ANÁLISES SONORAS DE TWIN PEAKS 39
4.1 1ª TEMPORADA, EPISÓDIO 3: “ZEN OU A HABILIDADE DE PEGAR UM
ASSASSINO” (1990)..................................................................................................39
4.1.1 A Dança de Audrey – (27:44-31:33)..............................................................39
4.1.2 A Sala Vermelha – (40:15-47:25)..................................................................41
4.2 2ª TEMPORADA (1991)......................................................................................44
4.2.1 Episódio 1: “Que o Gigante esteja contigo” (3:03-10:56)..........................44
4.2.2 Episódio 7: “Almas Solitárias” – (29:32-46:29)...........................................47
4.3 FILME: “TWIN PEAKS - OS ÚLTIMOS DIAS DE LAURA PALMER” (1992)......54
4.3.1 “Nós não vamos falar sobre Judy.” - (26:58-31:17)....................................54
4.4 3ª TEMPORADA: TWIN PEAKS - O RETORNO (2017)....................................57
4.4.1 Parte 3: “Peça ajuda.” - (1:37 – 10:50)..........................................................57
4.4.2 Parte 8: “Tem luz?” - (16:19-40:40)...............................................................63
4.4.3 Parte 11: Brincando com fogo - (49:59 – 55:30)..........................................68
5 EXPERIMENTO AUDIOVISUAL: UM NOME 71
5.1 O IMAGINÁRIO SONORO DE TWIN PEAKS: DIAGNÓSTICO E DIRETRIZES 71
9

5.2 UM NOME: PROCESSO DE CRIAÇÃO (MATERIAIS E MÉTODOS)................72


6 RESULTADOS E DISCUSSÃO 75
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS 79
REFERÊNCIAS 82
APÊNDICES 88
10

1 INTRODUÇÃO

Na tese intitulada “A significação na música de cinema”, Oliveira (2017, p.


146) define o conceito de “imaginário sonoro”, aplicado ao contexto dos gêneros
cinematográficos, como o “conjunto de signos sonoro-musicais recorrentes em
narrativas similares que contribuem para a formação de uma identidade musical
para o gênero”. Essa definição evidencia o quão relevante o som é para a forma
como uma obra se apresenta e é assimilada pelo público, constituindo-se num
importante código dentro da linguagem audiovisual, ainda que menos visível à
percepção do público.

Esse trabalho, entretanto, não se volta à análise sonora de um “gênero”


propriamente dito, mas sim de uma obra que possui traços de vários possíveis
gêneros sem pertencer exatamente a nenhum: a série Twin Peaks (1990-1991;
1992; 2017), criada por David Lynch e Mark Frost (e dirigida, em grande parte, pelo
primeiro).

Lançada em abril de 1990, a série representou um marco importante para a


televisão seriada na época, com inovações significativas ao apresentar notável
“complexidade narrativa” (MITTEL, 2006), misturando aspectos novelescos e
personagens afetadas, uma séria investigação policial e elementos absurdos,
combinadas numa estética cinematográfica apurada e pouco usual para a televisão
daquela época.

Com um total de cerca de 40 horas de exibição, contando as duas


temporadas clássicas dos anos 1990 (um total de 30 episódios de 46 minutos), e o
revival lançado em 2017 (Twin Peaks: The Return – um filme de 18 horas,
transmitido de forma “seriada”, em 18 partes, segundo o próprio Lynch1), além de um
filme longa-metragem convencional (Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer,
Twin Peaks: Fire Walk With Me, no original, de 1992), além de vários livros lançados
neste período de mais de 25 anos, a série reinventou-se quase que totalmente a
cada uma de suas fases, parecendo acompanhar não só o amadurecimento e
1
Um acalorado debate foi levantado em torno da possibilidade de se considerar Twin Peaks: The
Return como cinema. A discussão foi acalentada por declarações do próprio cineasta e,
posteriormente, pelo aparecimento da obra em algumas das principais listas de melhores filmes dos
últimos anos. O site americano Vox publicou um detalhado artigo, à época, explorando a questão:
VANDERWERFF, Emily. Is Twin Peaks a movie or a TV show? The answer’s more complicated than
you’d think. Vox, 2017. Disponível em: <https://www.vox.com/culture/2017/12/8/16742798/twin-peaks-
movie-or-tv-show>. Acesso em: 27 de abril de 2021.
11

buscas estéticas de Lynch, mas também o da própria linguagem audiovisual, no


decorrer deste tempo.

O uso do som é apontado desde o princípio como um dos aspectos mais


marcantes da saga, como é constante na obra de Lynch. Num primeiro momento,
este efeito se deve principalmente à icônica trilha musical totalmente original, criada
em parceria com Angelo Badalamenti para o projeto, algo incomum para a televisão
à época. Em paralelo, é realizado um marcante trabalho de sound design,
principalmente ligado às vozes, em partes muito influenciado pelo tempo de parceria
de Lynch com Alan Splet, em filmes anteriores (PUCCI JUNIOR e SOUZA, 2019),
que marca ainda maior presença, porém, nos episódios mais recentes – cuja força
parece vir justamente de momentos mais silenciosos e meditativos.

Na fricção entre espectador e uma obra do tipo, cheia de vicissitudes,


transformações e imprevistos, surge uma jornada de sensações muito específicas
que são associáveis ao que Gumbrecht (2014) deu o nome de Stimmung ou
“ambiência”, fenômeno anterior à qualquer racionalização, desencadeado por uma
“presença” que, pela sua materialidade, envolve e afeta o receptor/espectador de
uma forma específica, criando uma “atmosfera” própria, fruto “afetivo” deste
encontro, no instante imediato em que ele acontece.

A partir disso, pretende-se com esse trabalho mergulhar nos principais signos
presentes na trilha sonora de toda a trajetória da saga de Twin Peaks; investigar o
papel engendrado pelos aspectos da trilha sonora da série em seu efeito final, tanto
internamente quanto em comparação com os diferentes contextos socioculturais e
artísticos no decorrer de sua longa história. Pretende-se, portanto, chegar à síntese
do que seria o “imaginário sonoro” que lhe auxilia na definição de sua estética
específica – também daquilo que seria uma estética “lynchiana”, no sentido mais
amplo do termo – com todas as suas particularidades e insubordinações a gêneros
fechados, levando o expectador a um outro estado de consciência, representado
pelo conceito de Stimmung.

Busca-se, então, através deste trabalho, responder às seguintes perguntas:


quais as principais características que constituem o imaginário sonoro de Twin
Peaks? Qual o seu impacto na recepção da obra por crítica e público, além de seus
possíveis desdobramentos no meio artístico, para o estabelecimento de outras
12

obras, a partir de seu lançamento? Qual a aplicação do conceito de ambiência ou


Stimmung para o seriado?

Para responder tais perguntas, serão explorados na seção de Referencial


Teórico conceitos importantes para este trabalho como Complexidade e Labirinto
Narrativo; Stimmung ou “Ambiência”, além de Imaginário Sonoro. Com isso, terá
sido construído um corpo teórico interessante para a análise in loco de sequências
selecionadas na trajetória da série para melhor compreender a construção de seu
universo sonoro e sua atmosfera particular. Os critérios para tal análise serão
apresentados no capítulo de Metodologia.

Além disso, a partir dos pontos levantados, pretende-se ainda a elaboração


de um experimento audiovisual, na forma de um mini curta-metragem original. A fim
de aplicar e experimentar a criação de novas ambiências sonoras e visuais,
pretende-se partir das mesmas prerrogativas estéticas propostas pela série em toda
a sua trajetória (no campo sonoro), bem como do próprio método intuitivo de Lynch,
explorado principalmente através do conceito de “ideia”, a ser discutido no capítulo
de Metodologia do presente trabalho.

Nos capítulos subsequentes são apresentadas as Análises Sonoras e, em


seguida, é comentado o processo de produção do Experimento Audiovisual. Por fim,
serão apresentadas as Considerações Finais em torno do que foi proporcionado
pelo processo de realização do trabalho.

1.1 JUSTIFICATIVA

Entender o som como um dos principais aspectos imersivos de uma obra


audiovisual é de extrema importância, tanto para os profissionais do áudio
envolvidos ou interessados no universo cinematográfico, quanto para diretores de
cinema iniciantes, e seus demais colaboradores. Lynch teria renovado o cinema por
meio do som, segundo as palavras de Chion (1994), e continua expandindo e
reinventando a linguagem cinematográfica a cada um de seus (cada vez mais
esparsos) lançamentos. Os filmes do cineasta seguem figurando nas listas de obras
cinematográficas mais relevantes das últimas décadas em publicações importantes,
como a tradicional revista francesa Cahiers du Cinéma, onde Lynch aparece na
13

primeira colocação nas listas de melhores filmes das décadas de 20002 e 20103, com
dois de seus mais recentes lançamentos: Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive -
2001) e Twin Peaks: The Return (2017). Além disso, estes dois trabalhos aparecem
também ostensivamente nas listas de melhores do ano de outras publicações
rigorosas, como a inglesa Sight and Sound4.

Dada a natureza idiossincrática e inovadora dos aspectos sonoros e


imagéticos da obra do cineasta em toda a extensão de sua carreira, conforme Chion
explicita em seu livro David Lynch (1994), o presente trabalho se dedica, então, a
estudar os aspectos da trilha sonora daquela que é não somente a obra mais
extensa da carreira de Lynch, mas também, talvez, sua criação mais complexa,
controversa e cultuada pelo público: a transmidiática série Twin Peaks (1990-1991;
1992; 2017), criada em parceria com o roteirista para TV Mark Frost.

Por muitas vezes ignorada pelo grande público, mas tornando-se objeto de
culto por um fiel séquito de fãs no mundo inteiro já há 30 anos, a série conseguiu
manter seu legado e relevância artística, tendo a reinvenção como uma de suas
características mais marcantes. Principalmente após o The Return (2017), Twin
Peaks parece ser novamente uma unanimidade, ao menos em meio a parte
significativa da crítica especializada e da comunidade cinéfila.

É relevante para produtores fonográficos interessados em cinema, ou mesmo


cineastas interessados em se aprofundarem nas benesses do áudio para a imersão,
construção de sentidos e texturas na sétima arte, entender de que forma inovações
foram ou não integradas numa mesma obra ficcional, em momentos históricos tão
diferentes, como o caso excepcional aqui em questão nos permite analisar. Por fim,
pretende-se fomentar discussões acerca das potencialidades do áudio nas artes,
para além de aspectos que sejam estritamente musicais, mas também potentes e
construtores de sentido, de acordo com o que conceitos como Stimmung
(GUMBRECHT, 2014) e “imaginário sonoro” (OLIVEIRA, 2017) parecem nos
remeter.

2
Top 10 des années 2000 des Cahiers du Cinéma. Cahiers du cinema, 2010. Disponível em: <https:
//www.cahiersducinema.com/produit/top-10-des-annees-2010/>. Acesso em: 27 de abril de 2021.
3
Top 10 2010-2019 des Cahiers du cinema. Cahiers du cinema, 2019. Disponível em: <https://www.
cahiersducinema.com/produit/top-10-des-annees-2010/>. Acesso em: 27 de abril de 2021.
4
Sight & Sound’s best films of 2017. Sight & Sound, 2017. Disponível em: <https://www2.bfi.org.uk/
features/best-films-2017/>. Acesso em: 27 de abril de 2021.
14

1.2 OBJETIVOS

1.2.1 Objetivo Geral

Analisar os principais aspectos da trilha sonora da série Twin Peaks (1990-


1991; 1992; 2017) no decorrer de sua trajetória pela televisão, pelo cinema e, mais
recentemente, na era dos streamings. Produzir um experimento audiovisual com os
mesmos elementos estéticos levantados.

1.2.2 Objetivos Específicos

- Investigar a inserção e relevância da obra no cenário artístico,


cinematográfico e televisivo, de cada época em que se fez presente, no decorrer dos
últimos 30 anos;
- Estabelecer o papel da música na identidade narrativa do programa, através
da análise de temas da sua icônica trilha sonora, composta por Angelo Badalamenti;
- Compreender as idiossincrasias e rupturas propostas pela obra na
abordagem do som e efeitos sonoros em cada um de seus diferentes momentos de
exibição;
- Relacionar estas características dentro do contexto da obra de Lynch e de
seus colaboradores; mas também em relação a cada momento histórico específico;
- Explorar a recepção e a percepção da obra pela crítica e público, nas
diferentes épocas abordadas;
- Realizar um experimento audiovisual, em forma de um mini curta-metragem,
que reúna as principais características sonoras do universo de Twin Peaks.
15

2 REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 COMPLEXIDADE E LABIRINTO NARRATIVO NA TV

Twin Peaks é uma obra que ocupa um lugar emblemático, tanto na obra de
seus criadores, como dentro da história do audiovisual como um todo,
desencadeando debates acalorados e inspirando os ambientes televisivo e
cinematográfico há décadas. Tendo surgido primeiramente em abril do ano de 1990,
a saga carrega a fama de precursora de séries como Família Soprano (The
Sopranos), Lost e Mad Men, que vieram consolidar aquela que ficou conhecida
como a recente Era de Ouro da Televisão, no final dos anos 1990 e início dos anos
2000 – momento histórico em que produtos televisivos passaram a ser
definitivamente levados a sério como uma forma de Arte (ANAZ, 2018).

Explorando esse fenômeno de complexificação da linguagem televisa, Mittel


(2006) publica um artigo que se debruça sobre o surgimento de um novo tipo de
storytelling que tem se mostrado cada vez mais presente e rentável na TV
americana, que ele vem a chamar, genericamente, de “narrativas complexas”.
Fazendo uma espécie de apanhado bibliográfico sobre o assunto até o momento de
sua publicação, o artigo em questão vem, em muitos momentos, reforçar o papel
notável de Twin Peaks na vanguarda deste movimento da chamada “complexidade
narrativa”.

Kristin Thompson ampliou a abordagem que Bordwell faz da televisão


sugerindo que programas como Twin Peaks e The Singing Detective
possam ser convenientemente tomados como televisão de arte, já que
importam regras do cinema de arte para a tela pequena (Thompson, 2003).
(...) Algumas análises iniciais sobre estratégias narrativas inovadoras feitas
por Newcomb (1985), Christopher Anderson (1987), Thomas Schatz (1987),
and Marc Dolan (1995) identificam os antecedentes da complexidade
narrativa contemporânea em Magnum, P.I., St. Elsewhere, e Twin Peaks.
(MITTEL, 2006, p. 30-32)

Os fatores apontados por Mittel (2006) como possibilitadores deste fenômeno,


e que parecem também se aplicar em certa medida ao caso particular aqui
estudado, são muitos; mas, entre eles, podemos destacar: a atração que o meio
televisivo passou a exercer sobre alguns cineastas, pelas suas maiores
potencialidades de desenvolvimento de tramas e personagens, bem como maior
liberdade criativa, em alguns casos; o aumento exponencial na oferta de canais
disponíveis – o que tornou viável, e até mesmo desejável, a exploração de nichos de
16

público mais específicos, porém muito fiéis às obras de sua preferência; o


desenvolvimento tecnológico que popularizou a internet e fóruns online de discussão
entre fãs, bem como a popularização dos DVDs, oferecendo a possibilidade de
assistir inúmeras vezes um mesmo episódio, sem mais tantas limitações aos
desejos e ritmo de compreensão do público em relação à obra.

Algumas quebras com o formato essencialmente episódico das narrativas


seriadas já vinham sendo realizadas no decorrer dos anos 1980, porém com impacto
quase inexpressivo. O maior trunfo de Twin Peaks num primeiro momento, foi ser,
portanto, um verdadeiro acontecimento cultural. A série teve muita atenção do
público e da crítica em seu primeiro ciclo de episódios, e garantiu uma influência
duradoura na cultura pop mundial, a despeito da aguda queda de sua audiência nos
Estados Unidos, à medida que a série se mantinha insubordinada aos padrões da
época, e que Frost e Lynch tinham sérios conflitos de interesses com a emissora.

Como um cruzamento bem-sucedido entre um caso de mistério, uma novela


e um filme de arte, Twin Peaks proporcionou aos espectadores e aos
executivos da televisão um vislumbrar das práticas narrativas que as séries
iriam desbancar. Twin Peaks era, em última análise, um fracasso de
audiência, mas os comentários positivos e elogios recebidos abriram as
portas para outros programas que no início da década de 1990 tomaram a
liberdade criativa na forma de narrar, mais notadamente Seinfield e The X-
Files. Ambos acrescentam aspectos essenciais ao repertório da
complexidade narrativa com maior sucesso de audiência. (MITTEL, 2006, p.
38)

Séries como as citadas acima evidenciam um dos pontos que Mittel (2006, p.
38) coloca como fundamentais dentro da estrutura de funcionamento destas séries
complexas, que seria a “interação entre as demandas da narração episódica e
seriada”, num equilíbrio sutil, particular a cada programa, que passa, cada vez mais,
a estabelecer relações formais únicas de continuidades e descontinuidades na
construção de seus universos ficcionais. De acordo com Mittel, essas “pirotecnias
narrativas” alimentam uma abordagem que Sconce (2004) classifica como
“metarreflexiva” das séries por parte do público. Neste mecanismo de apreciação de
uma obra audiovisual, além do interesse em desfrutar de uma narrativa interessante,
se impõe um desejo de ver as “engrenagens funcionando”, admirar a habilidade dos
realizadores de lidar com as excentricidades de sua criação. Há, portanto, uma
valorização da estética operacional destes universos audiovisuais.

Neste cenário, começaram a surgir séries cujo mote ou ponto de interesse


mais imediato estava, muitas vezes, mais associado aos seus aspectos formais, que
17

de sua diegese propriamente dita. Um exemplo emblemático, nesta categoria, é o da


série 24 horas. A partir disso, popularizou-se cada vez mais, em programas
narrativamente complexos, a experimentação com diferentes recursos de
storytelling, de uma forma bastante sutil e ambígua, muitas das vezes. Flashbacks,
flashforwards, voice-overs, lapsos temporais, narrativas em “tempo real” e
sequências oníricas são aqui inseridos de forma pouco flagrante, ao menos num
primeiro momento. Cria-se, assim, muitas vezes, um sentido de desorientação no
espectador, que é intrínseco ao jogo de recompensas próprio de muitas dessas
obras. Alguns exemplos notáveis são séries como Lost, Alias e, mais recentemente,
Westworld.

Dessa forma, a televisão narrativamente complexa encoraja e às vezes até


mesmo precisa de um novo modelo de engajamento do público. A cultura
dos fãs demonstra engajamento intenso nos mundos ficcionais, conferindo a
consistência das histórias de fundo, a coesão das personagens e a lógica
interna (...). Assistimos a Lost, Alias, Veronica Mars, The X-Files, Desperate
Housewives e Twin Peaks ao menos em parte para tentar decodificar os
enigmas centrais de cada um (MITTEL, 2006, p. 48-49).

É aqui que chegamos, então, ao conceito de “labirinto narrativo”. Dada a


contemporaneidade do fenômeno, é recente a dedicação mais persistente, dentro da
academia, em decifrar as técnicas e tendências narrativas das chamadas “séries
complexas”, conforme a definição apresentada por Mittel (2006), discutida
anteriormente nessa mesma sessão do presente trabalho. As “narrativas labirínticas”
podem ser definidas, de modo geral, como “aquelas que o telespectador precisa
acompanhar com afinco para compreender a história que está sendo contada como
um todo”, conforme Gonçalves (2020, p. 36) define em seu trabalho sobre a série
Westworld. Indo mais além, apresentamos a definição-fonte do termo “labirinto”,
explorada no artigo “La imagen-laberinto en la ficción televisiva norteamericana
contemporánea: series de tiempo y mundos virtuales”, de Glòria Salvadó Corretger e
Fran Benavente Burian (2011):

O labirinto se configura como um dos tropos centrais da ficção audiovisual


contemporânea. Buscamos pensá-lo, então, como um paradigma que se
desenvolve como motivo, mas também, e sobretudo, como estrutura
narrativa, projeção discursiva e, enfim, como forma emblemática da
construção do mundo fictício e da situação do espectador na produção
televisiva e cinematográfica atual. Deste ponto de vista, no labirinto surgem
questões chave como a fragmentação irresolúvel do sujeito, o gosto pela
complexidade narrativa, a inconsistência da realidade com a subsequente
desmaterialização dos corpos que a habitam ou a autorreferencialidade do
dispositivo ficcional, fadado a construir um mecanismo para a jornada eterna
18

do espectador cuja resolução está exposta em seu próprio planejamento.


(CORRETGER; BURIAN, 2011, p. 45, tradução dos autores)5

Apesar de o artigo, a princípio, destacar séries mais recentes, como Lost


(2004-2010), Heroes (2006-2010) e 24 Horas (2001-2010), é possível associar
muitas destas características aos aspectos narrativos e estéticos da série Twin
Peaks – enfatizando, assim, seu papel de precursor para estes fenômenos mais
recentes.

Quando se fala na imagem do labirinto como “motivo”, mas também como


“forma emblemática da construção do mundo fictício”, remete-se não só à busca de
um sentido, de uma ou mais “respostas” para determinadas indagações – ou seja,
do “centro” deste labirinto – mas também à própria desorientação intrínseca à
experiência de uma estrutura labiríntica. Esta busca incessante de um núcleo de
“sentido”, de uma “resolução” que é constantemente adiada, é um dos cernes em
torno dos quais se estrutura a jornada, não só dos personagens centrais da saga de
Lynch e Frost, mas, como o trecho acima explicita, àquela do próprio espectador
com a obra em questão.

Twin Peaks carrega em si o signo da multiplicidade e da fragmentação, pela


própria forma como a trama se apresenta narrativamente: quebrando e reinventando
convenções de gêneros e lógicas pré-concebidas (PUCCI JUNIOR e SOUZA, 2019),
num verdadeiro labirinto narrativo. Esta soap opera complexa, onírica, irônica e, por
vezes, ambígua e desconexa, rodeia, a princípio, um único questionamento: “Quem
matou Laura Palmer?”. Esta dúvida, levantada tanto nos personagens principais da
trama, quanto no espectador, parecia ser a grande “resposta” faltante para que tudo
fizesse “sentido” e que se chegasse, finalmente, ao centro daquele labirinto. Com
isso, Twin Peaks impactou a televisão e a internet, que se popularizava na época de
seu primeiro lançamento, de forma bastante positiva. Este interesse pela resolução
do mistério trouxe ao seriado um grande valor de “culto”, de modo que o público, por
exemplo, já naquela época discutia devotamente em um newsgroup, chamado
5
No original: “El laberinto se configura como uno de los tropos centrales de la ficción audiovisual
contemporánea. Intentamos pensarlo, entonces, como un paradigma que se desarrolla como motivo,
pero también, y sobre todo, como estructura narrativa, proyección discursiva y ulteriormente como
forma emblemática de la construcción del mundo ficticio y de la situación del espectador en la
producción televisiva y cinematográfica actual. Desde este punto de vista, en el laberinto se declinan
cuestiones clave como la fragmentación irresoluble del sujeto, el gusto por la complejidad narrativa, la
inconsistencia de la realidad con la subsiguiente desmaterialización de los cuerpos que la habitan o la
autorreferencialidad del dispositivo ficcional, abocado a construir un mecanismo para el periplo eterno
del espectador cuya resolución está expuesta en su propio planteamiento”.
19

alt.tv.twin-peaks6, sobre as pistas deixadas em cada episódio que era lançado, a fim
de investigar e criar suas teorias em uma rede online sobre quem, afinal, teria
matado Laura Palmer.

A questão é que a trama é conduzida de forma que, no caminho para cada


grande resolução, abrem-se imediatamente milhares de novas questões, lacunas e
possibilidades que atingem aos personagens e espectadores, simultaneamente,
criando novas necessidades e desejos e serem preenchidos, como labirintos dentro
de labirintos, que se multiplicam exponencialmente. A resolução do assassinato de
Laura Palmer é apenas a ponta do iceberg para toda a trama da complexa mitologia
da série, que começa a ser pesadamente explorada, a partir daí. Os mistérios em
torno da cidade e de seus habitantes se desenvolvem em enredos cada vez mais
surreais, envolvendo espíritos malignos, universos paralelos e lapsos temporais,
numa intricada dança do bem contra o mal, que se complexifica a cada pista obtida,
e se atualiza formalmente conforme a estética audiovisual avança.

A cada nova fase, a saga veio atualizando seus meios de narrar e se


tornando cada vez mais hermética. Foi amplamente noticiada, à época, a rejeição
massiva sofrida pelo filme Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer (Twin
Peaks: Fire Walk With Me – 1992) quando lançado. Chion (1995, p. 148) evidencia
este fato em sua cinebiografia sobre David Lynch, quando classifica a locação inicial
do filme de 1992 como uma “anti-Twin Peaks”, uma negação sumária de muitos dos
aspectos que tornaram a série querida por grande parte do público. Todo o lado
luminoso e leve da série, de certa forma, parece ter morrido com ela para que,
então, no filme, pudéssemos presenciar o verdadeiro horror por trás da sina de
Laura, a figura em torno da qual toda a trama orbita.

Com uma estrutura cheia de lapsos temporais complexos e sequências


oníricas confusas, livre das amarras da televisão aberta americana, Lynch
apresentou um longa controverso e cheio de liberdades formais, que remetiam, de
certa forma, ao seu trabalho mais experimental do início de carreira. Em seu livro,
Chion (1995, p. 152) admite que Lynch teria inegavelmente falhado nessa obra, pela
sua recepção absolutamente controversa. Lynch foi considerado, na época, como
um “autor mimado”, que demonstrava “desprezo pelo público”, tamanho o choque

6
Os arquivos com as discussões referentes a cada episódio na época de lançamento continuam
disponíveis online para consulta dos interessados no endereço: AltTvTwinPeaks. Disponível em:
<https://alttvtwinpeaks.com/>. Acesso em: 16 de maio de 2021.
20

causado pelo filme. A despeito disso, Chion ressalta o caráter revolucionário do feito
do cineasta, classificando o filme como uma “falha gloriosa na qual, por meio de
cenas bem-sucedidas e originais, Lynch expandiu e ampliou o cinema de dentro pra
fora, através de sua estrutura narrativa ousada” (CHION, 1995, p. 155, tradução
nossa).

25 anos depois, com os avanços tecnológicos e criativos do próprio diretor, as


semelhanças do revival com a série original precedente (1990-1991) são ainda
menores. Lançado mundialmente em 2017 sob o título de Twin Peaks: The Return,
esta sequência de 18 horas foi transmitida no Brasil pela Netflix. Os cenários da
cidade e os personagens familiares, que antes exerciam papéis de destaque, agora
possuem participações menores e muitos exercem funções diferentes, mostrando o
quanto a série, 25 anos depois, não retorna para a nostalgia do seu público, mas sim
sob uma nova perspectiva, livre para experimentações, demonstrando a verdadeira
essência criativa de Lynch. Há grandes diferenças em relação à série clássica – a
começar por desconstruir todo o antigo padrão do storytelling de organizar e
simplificar os acontecimentos. Agora há ainda mais cortes, técnicas e sequências
que não necessariamente contribuem de forma linear para resolução da trama, mas
trazem reflexões e novos mistérios que não se concentram mais apenas na cidade
de Twin Peaks. De modo muito mais amplo, os acontecimentos se passam em
outras 3 localizações, New York, Las Vegas e South Dakota. Esses novos cenários
trazem muitos novos personagens, cenas mais lentas, violências explícitas,
impactantes e quebra-cabeças realmente indecifráveis, dando ao retorno da série
características do cinema “lynchiano” mais atualizado e contemporâneo.

Por fim, para compreender melhor a forma como essa trajetória cheia de
vicissitudes e fragmentações interfere na construção sonora da obra e atinge o
espectador, é interessante comentar alguns trabalhos sobre a narrativa da série, que
vem endossar essa teoria. Hague (1995, p. 130-143) publicou um ensaio sobre a
forma como os métodos intuitivos de investigação do Agente Cooper violam os
princípios de perfeição aristotélica de começo, meio e fim, típicos de narrativas
detetivescas convencionais. Deste modo, portanto, é explicitada a forma como há
uma recusa da narrativa em oferecer a “purificação” típica da “catarse”, produzindo
no espectador o que William Spanos denominou como “terrível incerteza” (PUCCI
21

JUNIOR e SOUZA, 2019, p. 178). Num artigo em que discorre sobre o sound-design
da série como um todo, Pucci Junior e Souza (2019) ainda acrescentam que

Twin Peaks associa-se ao que James Carse chama de brincadeira infinita


(1986, p. 3). Segundo o autor, um jogo finito se caracteriza por regras
imutáveis, fronteiras espaciais e temporais e conclusões em que alguém
vence, a exemplo das tradicionais narrativas de detetive. Quando essas
fronteiras são dissolvidas, temos os jogos infinitos, estratégia de que a série
lança mão. (PUCCI JUNIOR e SOUZA, 2019, p. 178)

Esta implicação de um “jogo” cujas peças estão em constante mutação e


transformação, junto do método de investigação intuitivo do Agente Cooper, acaba
por refletir em todo o desenrolar da trama. Prevalece uma lógica não-linear, guiada
pelo que Hague (1995) classificou como “coincidências significativas”, estruturadas
pela noção jungiana de que esta “inconsciência” implicaria numa dissolução do Ego,
e numa consequente integração com o todo, sem as limitações do pensamento
binário e categórico. Isto cria um ambiente de ruptura com o raciocínio causal, em
prol do que Jung chama de “sincronia”. Há uma fragmentação, portanto, nas noções
convencionais de tempo e espaço (PUCCI JUNIOR e SOUZA, 2019, p. 179).

Em consonância com o que é dito na citação de Corretger e Burian (2011)


mais acima, há também uma marcada fragmentação do sujeito em meio à narrativa
de Twin Peaks. Rogério Ferraraz (2003, p. 94) destaca a recorrência de duplos na
série: “seja real, imaginado ou desdobrado em vários personagens que se
completam e, por isso, se enfrentam, já que representam as faces opostas de uma
personalidade”. Em Twin Peaks, a figura do duplo se mostra como um ponto
essencial, conforme personagens como Leland Palmer (Ray Wise) e Bob (Frank
Silva), Laura Palmer e sua prima Maddy Ferguson (ambas interpretadas por Sheryl
Lee) e Cooper e seu doppelgänger (Kyle Maclachlan) parecem evidenciar.

Para Ferraraz (2003) o que mais conta na obra de Lynch são as atmosferas e
efeitos de estranhamento que ele cria, não a explicação do que é visto ou ouvido em
cena: “Suas imagens labirínticas e seus sons perturbadores causam o pânico da
não-compreensão” (FERRARAZ, 2003, p. 106).
22

2.2 STIMMUNG OU “AMBIÊNCIA”

A palavra alemã Stimmung deriva dos radicais Stimme e stimmen. O primeiro


significa “voz”; já o segundo está relacionado com o sentido de “afinar um
instrumento musical” ou “estar correto”, por extensão. O termo, de difícil tradução,
vem sendo adotado por inúmeros teóricos durante séculos e, assim, tem sofrido
inúmeras redefinições e adaptações, de modo a acumular múltiplas camadas de
sentido, de acordo com o que Gumbrecht (2014, p. 12) evidencia em seu livro
“Atmosfera, ambiência, Stimmung: sobre um potencial oculto da literatura”.

O autor ressalta, na sessão de abertura de seu livro, a relevância da relação


do conceito, em sua raiz etimológica, com o sentido da audição, destacando que a
capacidade de ouvir não depende apenas do ouvido humano, mas está relacionada
com todo o corpo, de modo que cada tom percebido é uma ‘forma de realidade física
(ainda que invisível) que “acontece” aos nossos corpos e que, ao mesmo tempo, os
“envolve”’, percebidas também pelo tato, através da pele, etc. Essa noção também
permite analogias com o clima atmosférico, já que este consiste em mais uma
variedade de encontro com uma realidade física concreta, porém não visível e com
alto grau de subjetividade, na percepção de cada indivíduo (GUMBRECHT, 2014, p.
13).

Parte-se disso, então, como uma espécie de metáfora para que possamos
entender como os aspectos formais e físicos de uma obra de qualquer natureza são
centrais para o estabelecimento do que se entende como seu “tom”, “ambiência”,
“atmosfera” ou Stimmung específico. É importante ressaltar o caráter primário deste
tipo de experiência aqui observada, não havendo assim, ainda, relação com uma
interpretação de sentidos racionais, nem com algum caráter de representação mais
definido:

“Ler com a atenção voltada ao Stimmung” sempre significa prestar atenção


à dimensão textual das formas que nos envolvem, que envolvem nossos
corpos, enquanto realidade física - algo que consegue catalisar sensações
interiores sem que questões de representação estejam necessariamente
envolvidas. De outro modo, seria impensável que a declamação de um texto
lírico, ou a leitura em voz alta de uma obra em prosa, com ênfase na
componente rítmica, alcançasse e afetasse mesmo aqueles leitores ou
ouvintes que não compreendem a língua das obras em questão.
(GUMBRECHT, 2014, p. 13).
23

Nesse sentido, vale frisar a centralidade da noção de “presença” para a


melhor apreensão dos significados por trás do conceito de Stimmung. O termo
“presença” aqui aparece ressaltando a importância do componente material destas
obras – “principalmente da sua prosódia” (Gumbrecht, 2014, p. 14) – para o
estabelecimento da sua “atmosfera” específica que envolve e afeta o estado de
espírito do ouvinte, espectador ou leitor. Este “efeito de presença” aqui destacado se
refere àquele mais instintivo e irrefletido, das coisas que estão “sempre-já” – antes
sequer de qualquer atribuição de sentido – “numa relação necessária com nossos
corpos”.

Feita essa introdução inicial ao conceito a ser aqui discutido, pode-se então
começar a estabelecer relações entre ele e o objeto principal deste trabalho. O fato é
que a noção de Stimmung oferece notável riqueza de perspectivas para entender o
funcionamento do universo de Twin Peaks, tanto em termos de sua possível gênese
quanto de sua forma final, passando pelo estabelecimento de seu imaginário sonoro,
a ser discutido mais adiante, e também pela sua recepção e relação geral com
público e crítica.

Para começar, o próprio afastamento constante e exponencial da narrativa da


série de uma lógica linear parece apontar para uma valorização contínua deste
estado anterior à compreensão racional do espectador em relação àquilo que o
envolve. Esta dinâmica remete muito ao que Gumbrecht (2014, p. 30) define em seu
livro como “ler em busca de Stimmung”, onde o maior interesse não reside em
decifrar significados fixos, mas sim em “descobrir princípios ativos em artefatos e
entregar-se a eles de modo afetivo e corporal - render-se a eles e apontar na direção
deles”. O autor chama a atenção aqui, mais uma vez, para o caráter
fundamentalmente subjetivo e dinâmico dos Stimmungen.

Essa, no entanto, parece ser uma característica não só de Twin Peaks, mas
sim um traço comum à obra de Lynch quase em sua totalidade, bem como à
estruturação de seu processo criativo. Além de abordar a noção de “atmosfera” a
partir da perspectiva da pessoa que experiencia a obra, Gumbrecht também traça,
em alguns momentos, essa relação do ponto de vista do criador:

Acima de tudo, meu intento é chamar atenção para os Stimmungen, revelar


o seu potencial dinâmico e promover - tanto quanto seja possível - seu
tornar-se-presente. (...) O que estou buscando é uma experiência em que as
certezas e as convenções de como se escreve estão ainda por definir. A
longo prazo, imagino, escrever sob a influência do Stimmung poderá bem
24

significar atirar os tão propalados “métodos” no rio do esquecimento.


(GUMBRECHT, 2014, p. 30)

O trecho acima evidencia mais uma vez a feição essencialmente física e ao


mesmo tempo sensível da experiência do Stimmung, bem como a natureza
essencialmente primária de sua expressão no receptor. Sua experiência ocorre
quase como um espasmo do corpo, ou uma “corrente elétrica” onde não há espaço
para a reflexão e/ou métodos fechados, típicos de uma abordagem mais
“intelectualista”, mas apenas para o “sentir” da vida e seus confrontos acontecendo
no continuum do momento presente. Essas noções são fundamentais para a
compreensão de muito da concepção e identidade sonora de Twin Peaks e da obra
de Lynch como um todo, bem como seus efeitos nos espectadores. Esses aspectos
serão explorados com profundidade no capítulo de Metodologia.

2.3 IMAGINÁRIO SONORO

O “imaginário sonoro do gênero cinematográfico”, Oliveira (2017, p. 146)


define como sendo, “o conjunto de gestos, musemas, tópicas e sons concretos
usados musicalmente que são recorrentes em um gênero cinematográfico e
contribuem para a formação de uma identidade musical e para o sentido geral da
narrativa.” Ou seja, o imaginário sonoro representa todo contexto de simbologias
comumente usadas em gêneros similares, envolvidas na música/som e imagem que
contribuem para identidade musical e narrativa da obra em análise. Oliveira
exemplifica o termo dentro de dois gêneros distintos do cinema:

Destarte, podemos considerar como parte do imaginário sonoro do western,


por exemplo, musemas do galope, do trote, do tambor indígena, as tópicas
música de cowboy, spaghetti western, nativo americano selvagem, as
chamadas de trompete, o degüello, o gesto de quarta justa que inicia grande
parte dos temas principais, mas também os sons de sinos, xicotes, bigornas
que podem ser utilizados musicalmente e que contribuem para a imagem
sonora que fazemos do gênero. Da mesma forma, podemos considerar
como parte do imaginário sonoro da ficção científica as tópicas espaço
sideral, alienígena, videogame 8 bits, os gestos de sétima ou oitava
ascendente seguidos de segunda menor descendente, bem como todo o
conjunto de sons que emanam de naves espaciais, máquinas, robôs,
computadores e que permeiam a trilha musical de filmes como Blade
Runner, por exemplo. O imaginário sonoro do gênero cinematográfico é
formado mediante a repetição e a intertextualidade, principalmente entre
filmes que remetem a um mesmo universo semântico. (OLIVEIRA, 2017, p.
146).

O imaginário sonoro está condicionado a narrativa fílmica, o som está como


uma forma de integração e imersão com a obra e contribui diretamente para criação
25

da estética e atmosfera desejada. Segundo Chion (2011) em seu livro A Audiovisão:


som e imagem no cinema, ao assistirmos uma obra audiovisual, como um filme ou
série, não estamos somente assistindo e sim “audiovendo”, pois a audição, a escuta
consciente ou não, é fundamental para construção do sentido de todo imaginário
construído na narrativa fílmica junto as trilhas e efeitos sonoros. Sendo assim, dada
a extensão e complexidade metafórica, que caracterizam a série, o conceito de
“imaginário”, parece ser relevante aqui, para a análise de seus signos sonoros.

Portanto, para um entendimento mais completo do termo, é fundamental


entender o que são cada um desses conjuntos de signos sonoros-musicais, gestos,
musemas, tópicas e sons concretos que constituem o imaginário sonoro,
respectivamente.

2.3.1 Gestos

A começar por gestos musicais, definido por Hatten como “movimento


interpretável como signo, seja intencional ou não, e como tal ele comunica
informação sobre o gesticulador (ou personagem, ou pessoa que o gesticulador está
personificando ou incorporando)” (HATTEN, 2001b: 3) e posteriormente concretiza o
termo como, “formação energética significativa ao longo do tempo” (HATTEN, 2004:
95), sendo “formação” relacionado ao timbre e frequência, “energética” à intensidade
e “tempo” à duração. Para o autor, o gesto musical não se resume apenas nas
ações físicas envolvidas para produção de sons, e sim no contorno característico
que confirma a estes sons seu significado expressivo. São, portanto, unidades
perceptivas como timbres, articulações, dinâmicas e tempos, e sua coordenação em
diversos níveis sintáticos, que resultam como unidades expressivas. Segundo o
autor, os gestos abrangem todas as formas de significados dos movimentos
humanos e inclui para música a interpretação visual da “forma do som”.

O gesto musical, apresentado na formação energética do som projetada no


tempo, Hatten define como gesto aural (HATTEN, 2004, p. 95). Enquanto para a
percepção de modo mais imediato, chamado de gesto prototípico, o autor coloca
como “uma gestalt temporal relativamente curta que geralmente ocorre dentro do
quadro temporal do presente experiencial ou da memória de trabalho (ca. de dois
segundos)” (HATTEN, 2004, p. 101). Estes gestos possuem um começo e um fim,
podendo ter séries de unidades gestuais sucessivas. Um exemplo de gesto
prototípico é a sucessão de duas notas em movimento descendente por grau
26

conjunto conectadas por uma ligadura, o qual é típico do estilo galante, segundo
Hatten (2004, p. 140) (gesto anacrústico de colcheia pontuada e semicolcheia)
ilustrada na figura 1.

Figura 1: Beethoven, Sonata para Piano Op. 7, 4° movimento, tema inicial.


Fonte: HATTEN, 2004, p. 142.

O gesto musical formado por mais de um evento musical, são conectados um


ao outro por um sentido de continuidade no tempo, e percebidos “não como uma
mera sucessão de eventos discretos mas como algo que se move” (HATTEN, 2004,
p. 102). Deste modo, em um determinado trecho musical, gestos de maior duração
podem ser formados por gestos de menor duração, assim o compositor constrói uma
hierarquia gestual na qual os gestos mais complexos e abstratos são formados
também por gestos mais simples e imediatos. O compositor pode projetar esses
gestos no texto musical em diferentes níveis por meio da utilização em maior ou
menor grau dos diversos parâmetros musicais, como diferenças de textura, timbre,
instrumentação, dinâmica, variações agógicas e de andamento, uso de articulações,
e assim por diante.

Hatten ainda divide dois tipos gerais de gestos musicais: os gestos musico-
estilísticos e os gestos estratégicos. Gestos musico-estilísticos são aqueles
resultantes de convenções, que e aparecem em gêneros ritualizados, como danças
e marchas. Nesses gestos que estão presentes as convenções para interpretação
das articulações, acentuações, dinâmicas, tempos e padrões de agógica (cinética
musical, andamento). Enquanto os gestos estratégicos podem ser entendidos como
representações de tipos estilísticos preexistentes que ocorrem no contexto
específico de uma obra musical.

Gesto musical é o elemento que está abrangendo na música, todos os


parâmetros musicais, timbres, alturas, ritmos, dinâmicas e andamentos, entre outros.
Pode ser escrito por um compositor, contanto que carregue algum sentido,
27

significado, expressão ou emoção, para quem executa e para quem aprecia.


Também existe o gesto corporal que é a movimentação do intérprete com a
finalidade de transmitir ao espectador seu entendimento sobre determinado gesto
musical, proporcionando comunicação entre intérprete e apreciador. Apesar de
apresentarem conceitos um pouco distintos, os gestos musicais e os gestos
corporais direcionam para a comunicação do sentido da música. Assim como luto e
tristeza são expressos pelo peso dos gestos, alegria e divertimento são expressos
por sua leveza (HATTEN, 2004).

Resumindo, os gestos musicais são as articulações de energia sonora


(tocando um instrumento) formadas pelas gesticulações físicas inconsciente ou
consciente e o movimento atribuído a performance, que criam uma significação
dentro do contexto que se encontra. Os gestos podem ser aplicados ao meio
audiovisual, como representações sonoros dessas articulações em justaposição a
imagem, por exemplo, a articulação do violino ou o ataque do piano pode
representar o efeito sonoro de ações agressivas dado seu movimento pesado e
ritmo acelerado.

2.3.2 Musemas

Musemas, termo originalmente elaborado por Charles Seeger, em 1960 e


adotado por Tagg (2012, p. 234) como “menor unidade de significado musical”. Com
propriedades da semiótica, musema pode ser identificado como a menor estrutura
musical com a qualidade de carregar significado ou associações paramusicais (letra,
cenários, ações, habitat social, entre outros). Para identificar essas relações faz
necessário duas etapas. Primeiro, observar os musemas da música analisada e
comparadas a de outras obras semelhantes, desde que façam parte do mesmo
contexto cultural. Depois, os musemas devem ser relacionados aos seus possíveis
contextos paramusicais. Essas associações podem ser construídas por semelhanças
sonoras e cinéticas, por exemplo, relações de causalidade ou proximidade entre o
fragmento musical analisado e ao que ele possa estar relacionado, como às práticas
sociais ou uma semelhança acústica, mitológica, sinestésica, entre outros. Tagg no
artigo Análise musical para “não-musos”: a percepção popular como base para a
compreensão de estruturas e significados musicais, aborda sua ideia de uma análise
musical “democrática” onde até mesmo as pessoas sem o conhecimento da teoria
28

musical, pudessem analisar uma obra musical. Por exemplo, a análise de seus
alunos “não-musos” sobre a música Fernando, canção de Abba:

É principalmente durante as sessões de feedback que descritores estésicos


potencialmente úteis aparecem. Por exemplo, os nomes de dois musemas
na minha análise de Fernando do ABBA (TAGG, 2000d, p.36-38) derivam
parcialmente da contribuição de alunos: (1) o baixo na ponta dos pés – a
figura arpegiada leggiera que ocupa apenas metade de cada compasso das
estrofes; (2) o motivo do nascer do sol – o motivo “para fora e para cima”
que lembra a figura immer breiter [cada vez mais amplo] notada no início de
Assim falou Zaratustra de Richard Strauss. Mesmo simples sequencias de
acordes encontradas em canções pop bastante conhecidas são, algumas
vezes, reconhecidas por “nãomusos” como “soando com La Bamba” (ou
Guantanamera ou Twist and Shout) e nomeadas corretamente. Já em um
curso recente sobre música de cinema, os alunos “não-musos” se referiam
às estruturas das músicas apresentadas como o “trechinho do Vivaldi” (uma
figura arpegiada em “moto perpétuo” no violino após vários acordes
descendentes ao redor do círculo das quintas) ou “um som do tipo Carmina
Burana” (uníssono de vozes masculinas cantando semínimas regulares e
acentuadas em fortissimo no registro médio-grave e acompanhado de
pontuações dos metais e madeiras). Os alunos são, em outras palavras,
capazes de sugerir descritores estésicos bastante relevantes, seja com
base em gestos, tato, movimento, sons paramusicais e conotações (por
exemplo, “avassalador”, “pontiagudo”, “áspero”, “delicado”, “louco”, “tenso”,
“bem anos 80”, “tipo detetive”, ou seja, PMFCs) ou em relação às músicas
que eles já conhecem (por exemplo, “sons como Bach”, “bem Per Shop
Boys”, “como o tema de James Bond”, “meio industrial”, ou seja, IOCMs).
(TAGG, 2011, p. 13)

Os descritores estésicos são as descrições subjetivas percebidas como


usadas no exemplo, “delicado”, “tenso”, “bem anos 80”, “tipo detitive” entre outros.
Está ligado também ao que o autor chama de Campo Paramusical de Conotação
(PMFC) neologismo criado por Phillip Tagg em 1991 para descrever um campo
semântico conotativamente identificável que se relaciona com estruturas musicais
(ou um conjunto delas). Enquanto o Material de Comparação Interobjetiva (IOCM)
neologia criado por Phillip Tagg em 1979 descreve intertextos musicais, ou seja,
trechos de outras obras musicais nos quais pode se demonstrar semelhança com a
obra musical que é objeto de análise.

Entendemos então, por essa ótica, musemas, como sendo descrições que
assemelhamos a música.

2.3.3 Tópicas

Sobre as tópicas, Ratner, em 1980, foi um dos primeiros teóricos a propor a


teoria das tópicas musicais em seu livro Classic Music. Segundo o autor:
Do contato com o culto religioso, poesia, drama, entretenimento, dança,
cerimonia, forças armadas, caça, e a vida das classes baixas, a música no
início do século XVIII desenvolveu um tesouro de figuras características,
29

que formou um rico legado para os compositores clássicos. Algumas dessas


figuras eram associadas a vários sentimentos e afeições; outras tinham um
aroma pitoresco. Elas são denominadas aqui como tópicas – sujeitos do
discurso musical (RATNER, 1985, p. 9).

Ratner, separa as tópicas em duas categorias principais, tipos e estilos.


Sendo tipos relacionados as danças (minueto, sarabanda, polonaise, bourée,
contredanse, gavotte, gigue, siciliano, marcha) que por meio de seus significados
sociais e teatrais eram incorporadas nas composições clássicas. Enquanto estilos
(militar, música de caça, estilo cantante, brilhante, abertura francesa, pastoral,
música turca, sturm und drang, sensível, estilo erudito ou estrito e fantasia), eram
relacionados aos rituais, hábitos da nobreza e referências literárias.

Para Ratner, Mozart foi o maior mestre em misturar e coordenar tópicas.


Esse exemplo mostra uma descrição de tópicas encontradas na Sinfonia Praga, K.
504, de W. A. Mozart:

Exemplo 1: Tópicas no primeiro movimento da Sinfonia Praga K. 504 de W. A. Mozart


Compassos
1. Estilo de canto, alla breve...........................................37-40
2. Estilo brilhante, escolástico.........................................41-42
3. Fanfarra I..................................................................43-44
4. Estilo de canto, escolástico.........................................45-48
5. Alla breve, estilo brilhante...........................................49-50
6. Estilo brilhante, escolástico.........................................51-54
7. Estilo brilhante, stile legato modificado.......................55-62
8. Fanfarra II.................................................................53-65
9. Estilo brilhante..........................................................66-68
10. Floreado cadencial (novo material).............................69-70
11. Estilo de canto.............................................................71-74
12. Alla breve, estilo brilhante...........................................75-76
13. Escolástico, brilhante, alla breve.................................77-87
14. Tempestade e tensão..................................................88-94
15. Estilo de canto, transformado em estilo escolástico. .95-120

Fonte: adaptado de RATNER, 1980, pp. 27-28, tradução nossa.

Mirka destaca que a tópica é constituída de “estilos e gêneros musicais


retirados de seu contexto próprio e usados em outro” (MIRKA, 2014, p. 2). Portanto,
quando essa significação simbólica que representa algo é usada fora de seu
contexto original, esse signo se torna uma tópica, como feito pelos compositores
clássicos que usavam desses signos externos no discurso musical, tornando a
poética composicional do período.
30

Tópicas, ainda podem ser combinados na forma de tropos, definidos como “a


reunião de dois tipos estilísticos outrora incompatíveis em um ponto específico a fim
de produzir um significado expressivo singular a partir da sua colisão ou fusão”
(HATTEN, 2004, p. 68). A figura 2 mostra o tratamento tropológico de duas tópicas
em uma fuga de J. S. Bach: o sujeito é um tema galante, enquanto o contrassujeito
exemplifica o passus duriusculus, figura típica de lamento do séc. XVI.
resposta (estilo galante)
sujeito (estilo galante)

contra-sujeito (passus duriusculus)

Figura 2: Fuga em Lá bemol maior do 2° livro do Cravo bem Temperado de J. S. Bach, c.1-5.
Combinação tropológica de duas tópicas.

Fonte: adaptado de HATTEN, 2004, p. 69.

Para o autor, um dos aspectos interessantes dos tropos é a sua multivalência,


também relacionada a metáfora. A respeito do exemplo acima, o autor afirma que ao
mesmo tempo em que o caráter positivo do sujeito sobrepõe a obscuridade do
contrassujeito, o último confere uma gravidade ou seriedade ao sujeito.
Posteriormente, indo para o âmbito do cinema mudo, as tópicas foram usadas
por estúdio como planilhas, “cues sheets”, onde eram sugeridas as músicas para
acompanhar seus filmes. Como Edison Film Company em 1909 e Universal Film
Company em 1915 por Winkler, já com um tratamento mais meticuloso, indicando o
trecho musical específico para cada cena, com o tempo de duração e a forma que
deveria ser executada. “As coletâneas e planilhas musicais foram, destarte, a base
para a formação de um inventário de associações que serviu como referencial tópico
para a música de cinema” (OLIVEIRA, 2011, p. 123).
Sam fox moving picture music (1913), composições de J. S. Zamecnik e
publicada em Berlim entre 1919 e 1927, com doze volumes contendo um total de 81
peças para piano solo, na figura 3, apresenta algumas composições de Giuseppe
Becce e peças extraídas do repertório clássico foi a coletânea mais conhecida da
época junto a enciclopédia de Rapeé, a Motion picture moods for pianists and
organists: a rapid reference collection of selected pieces, adapted to 52 moods and
situations (1924), contendo quase 700 páginas, com peças selecionadas do
repertório clássico e tradicional catalogadas.
32

lado, possui melodias na região grave, em tonalidade menor. A música de


igreja possui estilo coral etc. (OLIVEIRA, 2011, p. 125).

O uso recorrente desse material foi essencial para transformar as tópicas e


colocar o cinema como um grande propagador e criador de novas tópicas. Em
determinado momento, o cinema passou, então, a criar suas próprias tópicas e, pela
facilidade de disseminação, a música de cinema passou a influenciar também a
música de concerto e toda a indústria midiática (OLIVEIRA, 2011, p. 131). O cinema
também influenciou na reinterpretação das antigas tópicas do período clássico com
as músicas de opera. Como coloca Oliveira, nos dias de hoje é bastante difícil
desvincular o gesto inicial ou toda a música de Richard Strauss, Assim falou
Zaratustra, da narrativa espacial criada por Kubrick. Assim como o musema da
cavalgada disfórica ou A cavalgada das valquírias parecerem ter relação direta com
a guerra, como em Apocalipse now.

2.3.4 Sons Concretos

Ao falar em sons concretos, Schaeffer (1952), nome mais importante da


música concreta, coloca como “objeto sonoro” todo som “não musical” da natureza
ou produzidos pelo homem e suas máquinas, que geram som/ruídos. Como por
exemplo, os sons do cotidiano, barulho de trânsito, motor de carro, moto, máquinas,
locomotivas, sinos, ruído de porta, panela, eletricidade, vozes humanas, animais e
outros sons de origem natural. Em outras palavras, seria como diversos
“instrumentos não convencionais”. Michel Chion reinterpretou o objeto sonoro de
Schaeffer do seguinte modo. “O nome objeto sonoro se refere a todo fenômeno e
evento sonoro percebido como um todo, como uma entidade coerente [...], que
aponta para si mesmo, independente da sua origem ou do seu significado.” (CHION,
1983, p. 31-32). Assim, sons/ruídos naturais podem ser usados como música, sem
se prender a nenhum tipo de forma musical.
33

3 METODOLOGIA

De acordo com Gil (1995), do ponto de vista de sua natureza, essa é uma
pesquisa aplicada, já que é voltada à análise de conteúdo da questão estudada.
Ademais, do ponto de vista da forma de abordagem ao problema, trata-se de uma
pesquisa qualitativa, pois levanta problemas específicos a partir de referências
gerais das problemáticas abordadas. Além disso, é exploratória, do ponto de vista
dos objetivos, pois busca abordar uma questão envolvendo revisão bibliográfica e
análise de exemplos. Por fim, do ponto de vista dos procedimentos técnicos,
consiste num Estudo de Caso, por envolver levantamento de dados em uma obra, e
também numa pesquisa de Desenvolvimento Experimental, por visar a construção
de uma nova obra a partir dos dados levantados nessas análises.

3.1 “STIMMUNG” E “IDEIA”: ENTRE O FÍSICO E O SENSÍVEL.

Esta pesquisa de revisão bibliográfica tem como objetivo compreender as


características e a importância do imaginário sonoro da série Twin Peaks, a fim de
desvelar seu papel na constante evolução estética da saga, de modo a potencializar
seus efeitos de estranhamento e imersão no público e na crítica, além de reafirmar
constantemente seu papel de vanguarda no meio audiovisual dos últimos 30 anos.
Para isso, a metodologia adotada será derivada diretamente da ideia de Stimmung
ou “ambiência”, introduzida no capítulo anterior desse trabalho. Será sob esse
prisma, portanto, que a saga será comentada e analisada.

Isso se justifica pois, à luz de todos os conceitos ligados ao universo


semântico e filosófico do termo apresentado por Gumbrecht (2011), são muito ricas
as associações e leituras que se pode fazer de algumas das mais frequentes
declarações que Lynch vem fazendo incansavelmente sobre o seu próprio processo
criativo, sua visão de mundo e de arte pelas últimas décadas, em seus livros e
entrevistas. Adepto da Meditação Transcendental, o cineasta reafirma constan-
temente a importância da prática para a sua obra, admitindo que os “sonhos lúcidos”
são parte de sua rotina diária de trabalho e uma de suas fontes fundamentais de
ideias para as múltiplas formas de arte que produz, entre pintura (sua via de
incursão no mundo artístico), cinema, música, carpintaria, design, etc. Em torno
34

disso, o autor criou a David Lynch Foundation7, a fim de difundir a prática da


Meditação Transcendental em instituições como escolas, hospitais e presídios, além
de ter escrito o livro “Em Águas Profundas – Criatividade e Meditação”, onde
explora, entre outras coisas, como “pescar”8 as melhores ideias. A figura da “ideia”
toma, por sua vez, proporções de uma entidade fundamental no universo lynchiano.
Segundo as palavras do mesmo

Ideias são a melhor coisa que existe, e ideias chegam para a gente.
Ninguém cria de fato uma ideia, nós apenas as “pescamos”, como peixes.
Nenhum chefe de cozinha leva o crédito por fabricar um peixe, apenas por
prepara-lo. Então, você tem uma ideia e ela é como uma semente. E, na
sua mente, a ideia é vista e sentida. E ela explode, como se tivesse
eletricidade e luz conectadas a ela. E ela já possui todas as imagens e um
feeling; e é como se, num instante, você de fato conhecesse a ideia. Em um
instante. A partir disso, a questão é traduzi-la para alguma mídia. Poderia
ser uma ideia para um filme, ou para uma pintura, ou para uma peça de
mobiliário, não importa. Ela quer se tornar algo; é uma semente para
alguma coisa. Então, tudo se trata de traduzir aquela ideia para uma mídia.
E, no caso de um filme, isso leva muito tempo e você sempre tem que voltar
e permanecer fiel àquela ideia, continuar checando-a. E o que você percebe
é que a ideia é mais do que você achava ser. E, se você for fiel a ela,
quando o trabalho estiver terminado e alguns anos tiverem se passado,
você vai poder tirar ainda mais dela. Isso se você tiver de fato sido fiel à
ideia desde o primeiro momento. (LYNCH, 2011, tradução dos autores)9

A declaração acima corresponde ao trecho de uma entrevista em vídeo,


publicada no canal de YouTube da American Film Institute. O conteúdo do que foi
dito por Lynch no vídeo foi aqui transcrito e traduzido na íntegra, pela sua riqueza de
imagens e simbologias que remetem diretamente à definição de Stimmung ou
“ambiência” apresentada por Gumbrecht (2014) em seu livro. Ocorre, até mesmo, o
uso de metáforas parecidas, como o emprego da analogia com a eletricidade,
utilizada pelos dois autores para fazer referência ao aspecto vivo, independente,
polarizador, físico e dinâmico destas atmosferas que querem descrever. Há muito de
uma ambiência, de uma presença viva e pulsante, ainda que invisível, no que Lynch

7
David Lynch Foundation. Disponível em: <https://www.davidlynchfoundation.org/>. Acesso em 22
de maio de 2021.
8
O título original do livro é “Catching the big fish” algo como “Pescando o peixe grande”.
9
No original: “Ideas are the number one best thing going, and ideas come to us. We don’t really create
na idea, we just catch them, like fish. No chef ever takes credit for making the fish, it’s just preparing
the fish. So, you get an idea and it is like a seed. And, in your mind, the idea is seen and felt. And it
explodes, as it’s got electricity and light connected to it. And it has all the images and a feeling; and it’s
like, in an instant, you know the idea. In an instant. Then, the thing is translating that to some medium.
It could be a film idea, or a painting idea, or a furniture idea, it doesn’t matter. It wants to be
something, it’s a seed for something. So, the whole thing is translating that idea to a medium. And, in
the case of film, it takes a long time and you always have to go back and stay true to that idea, keep
checking that idea. And what you realize is the idea is more than you realize. And, if you are true to it,
when the work is finished and some years go by, you can even get more out of it. If you’ve been true
to the idea in the first place.”
35

chama de “ideia” – o suficiente para que haja essa sensação de “explosão” e “luzes”
a ela ligadas. Essa força propulsora fundamental de suas obras já parece ser, em si
mesma, próxima de um Stimmung “puro”. Se este, porém, se trata de uma
emanação do campo físico para o sensorial, é como se aquela fosse uma emanação
do campo sensorial para o físico, ao ser colocada em prática pelo artista.

O diretor se mostra dedicado, no decorrer de toda sua trajetória, a manter


essa aura “indecifrável” e abstrata de sua obra, recusando-se sistematicamente a
falar sobre significados e a endossar análises de seus trabalhos no campo de uma
lógica mais intelectual ou acadêmica (Simonini, 2021), o que também vai na direção
do que se pode vislumbrar de uma “metodologia” baseada em Stimmung.

É a partir destas noções que podemos, então, melhor abordar a centralidade


da questão do som na obra lynchiana. Tendo começado sua trajetória artística na
pintura, foi pelo som que Lynch se tornou cineasta, pois queria ver suas pinturas
“ganharem vida”, conforme evidencia Chion (1995):
E, um dia, houve um ‘clic’, embora ele não pudesse saber que esse seria
um ponto de inflexão definitivo. Ele decidiu fazer ‘filmes pinturas’: ‘Quando
eu olhava para aquelas pinturas, faltava o som. Eu estava esperando um
som, ou talvez o vento, saindo dali. Eu também queria que as bordas
desaparecessem. Eu queria poder estar no interior daquilo. Era espacial...’.
(CHION, 1995, p. 10, tradução dos autores)10

O som surge em Lynch, portanto, para tornar ainda mais palpável e


penetrável/penetrante a “presença” de suas obras no receptor. Sua intenção era, de
fato, criar atmosferas tão ricas que chegassem a ter uma dimensão espacial e
tridimensional. Para isso, é o som seu principal aliado.

Em entrevista ao site IndieWire11 para falar sobre seu trabalho em Twin


Peaks: The Return (2017), Dean Hurley, editor de som, além de engenheiro de áudio
de longa data no estúdio particular de David Lynch, oferece uma perspectiva valiosa
sobre a crescente importância das paisagens sonoras na construção do cinema
lynchiano. Se o que levou o jovem pintor a se tornar cineasta foram as imagens que
o faziam “ouvir coisas”, essa regra parece ter se invertido no decorrer de sua

10
No original: “And, one day, something clicked, though he could not have known that this would be a
definitive turning point. He decided to make ‘film paintings’: ‘When I looked at these paintings, I missed
the sound. I was expecting a sound, or maybe the wind, to come out. I also wanted the edges to
disappear. I wanted to get into the inside. It was spatial...’.”
11
O’FALT, Chris. Sound Comes First: Inside David Lynch’s Bunker, Where He Started Creating the
‘Twin Peaks’ Sound Design Over 7 Years Ago. IndieWire, 2018. Disponível em: < https://www.indiewir
e.com/2018/05/twin-peaks-the-return-sound-design-david-lynch-hidden-studio-process-deanhurley-12
01965234/ >. Acesso em: 18 de maio de 2021.
36

carreira. Hurley assinala o começo da parceria com o compositor Angelo


Badalamenti – iniciada em Veludo Azul (Blue Velvet), de 1986, e cultivada durante
toda a trajetória de Twin Peaks – como um ponto de inflexão fundamental nessa
mudança.

Deste momento em diante, os sons e a música passaram a surgir antes


mesmo de se ter qualquer coisa filmada. Assim sendo, hoje são, em grande parte,
os sons que acabam por conjurar as imagens (O’FALT, 2018). Na entrevista, Hurley
ainda comenta um pouco sobre os métodos essencialmente subjetivos,
experimentais e pouco ortodoxos do diretor. Segundo ele, grande parte de seu
trabalho consiste em auxiliar Lynch na realização de seus experimentos sonoros,
que começam, ao menos aparentemente, sem uma razão clara de existir, e vão
tomando algum corpo e/ou direcionamento de acordo com o tempo e com o que as
“ideias” apresentam ao seu criador. A partir disso, tem sido criada uma espécie de
“biblioteca” pessoal de sons. Ele afirma ainda que muito do material sonoro usado
em The Return tinha sido começado cerca de sete anos antes das filmagens, por
exemplo.

Essa tendência, porém, como dito por Hurley, vem desde muito antes. Com a
trilha musical de Angelo Badalamenti, Twin Peaks existiu primeiro através do som,
ainda no final dos anos 1980. Sua variedade de ritmos musicais, seus timbres
sintéticos e reverberados, seus graves e agudos contrastantes, sua qualidade por
vezes calorosa e etérea, por outras lúgubre e ameaçadora, e até mesmo sarcástica;
suas ambiências noturnas de ventos e cigarras, os ruídos da floresta de madrugada,
o constante rumor de eletricidade: tudo isso parece ser grande parte do que ajudou,
e continua ajudando, a engolfar os espectadores nesse universo complexo e
abstrato que forma o imaginário sonoro e pictórico de Twin Peaks.

3.2 LENDO AMBIÊNCIAS

Para dar corpo e sustentação a esse trabalho, através de uma metodologia


que se paute pelos princípios do Stimmung, baseamo-nos nos procedimentos
adotados por Martoni (2015) em sua tese de doutoramento: “Lendo Ambiências: o
reencantamento do mundo pela técnica”, trabalho defendido na Universidade
Federal Fluminense (UFF), orientado por Adalberto Müller Junior e coorientado pelo
37

próprio Gumbrecht. A tese em questão busca debruçar-se sobre o tema das


“ambiências”, buscando abordá-lo em obras de naturezas bastante distintas: uma
canção pop (“Penny Lane”, dos Beatles); dois contos (“São Marcos”, de Guimarães
Rosa e “A queda da casa de Usher”, de Edgar Allan Poe); dois filmes (uma
adaptação do mesmo conto de Poe, por Jan Švankmajer, e uma outra do “Fausto”
de Goethe, por Aleksandr Sokurov); além da gravação da leitura do conto de Poe
por Vincent Price. O trabalho tem como intuito, portanto, avaliar como, nestes
diferentes meios, as técnicas por trás das diversas materialidades da comunicação

participam do processo de construção de sentidos das obras e, desse


modo, influem, decisivamente, sobre um tipo de experiência sensível que
habitualmente designamos como atmosfera, clima e ambiência. O que se
propõe a investigar é de que forma, efetivamente, a técnica cria um modo
de experiência em que a sensação – e, por extensão, os afetos – ocupa um
papel fundamental e quais são as suas especificidades em termos
qualitativos e quantitativos. (MARTONI, 2015, p. 18)

Para tal, estabelece-se no trabalho uma definição própria de “ambiência”, que


dialoga com as noções de atmosfera e clima, mas possui a especificidade de “tentar
circunscrever como [...] somos agarrados pela técnica, que nos lança em uma
condição de afinação/estar disposto (Befindlichkeit) com a sua própria lógica” de
sentimentos e sensações, extrapolando o que se estabelece como sentido figurativo
ou representativo da obra (MARTONI, 2015, p. 19).
Partindo desse princípio, Martoni (2015, p. 20) estabelece duas perguntas
fundamentais para que se alcance essa compreensão de “como a técnica estrutura
a experiência”, que trazemos para o contexto desse trabalho:

1) Quais os aspectos técnicos que se fazem presentes na obra estudada?

2) Como tais aspectos atuam na dimensão dos afetos do espectador,


participando assim, de sua construção de sentidos?

Deste modo, tem-se lançadas as bases das duas vertentes de análises a


serem realizadas. Uma que o autor classifica como “centrípeta”, que consiste num
processo de observação mais fechado em torno do que a obra oferece como
material – num viés mais técnico e cartesiano, representado neste trabalho,
principalmente, por noções como “gestos”, “musemas” e tópicas, dentro do universo
semântico do “imaginário sonoro”; e outra “centrífuga”, totalmente livre para as
associações que pareçam pertinentes aos afetos e “palpites” (Gumbrecht, 2014, p.
28-29) do expectador-escritor na sua experiência imediata com a obra, podendo-se,
38

aqui, estabelecer diálogos mais livres com múltiplas obras e áreas do conhecimento,
sem restrições – de modo a respeitar o caráter necessariamente amplo e subjetivo
do campo da “leitura de ambiências”.

Em termos práticos, será feita a seleção de algumas sequências


características pelo uso do som no desenrolar de toda a série Twin Peaks, para que
sirvam como objeto dessas explorações. O principal critério a ser considerado para a
escolha dessas sequências será a priorização daquelas que melhor apresentem os
aspectos estéticos idiossincráticos típicos da série, principalmente naquilo que tange
o estabelecimento da importante relação que existe entre som e narrativa, com
todas as suas nuances e transformações de tom e atmosfera, no decorrer de seus
mais de 25 anos de história.

Seguindo esse princípio, as análises serão organizadas cronologicamente e


divididas de modo a evidenciar cada diferente “fase” da saga; a saber:
1. Primeira Temporada (1990)
2. Segunda Temporada (1990-1991)
3. Twin Peaks – Os últimos dias de Laura Palmer + The Missing Pieces
(1992)
4. Twin Peaks – The Return (2017)

Por fim, essas fases serão exploradas de modo a respeitar os princípios


estabelecidos por Martoni (2015) em seu trabalho, com seus conceitos de análise
“centrípeta” e “centrífuga”, usando como ponto de partida as noções embutidas no
conceito de “imaginário sonoro”, em Oliveira (2017) e nos princípios da leitura de
ambiências em Gumbrecht (2014) e Martoni (2015).

Posteriormente a isso, pretende-se ainda relacionar os conteúdos abordados


em cada uma dessas fases afim de criar um experimento audiovisual que sintetize
as principais características estéticas do uso do som na série e do estabelecimento
de seu imaginário sonoro, cumprindo assim com o objetivo central desse trabalho.
Para a realização de tal experimento, será utilizado como fio condutor o conceito de
“ideia”, fundamental dentro do processo de criação experimental lynchiano. Partindo
disso, serão buscados os conhecimentos interdisciplinares adjacentes necessários
para a criação de um mini curta-metragem, tais como: elaboração de roteiro,
39

decupagem, cronograma de filmagens e pós-produção. Este processo será relatado


no capítulo intitulado Experimento Audiovisual.

4 ESTUDO DE CASO: ANÁLISES SONORAS DE TWIN PEAKS

4.1 1ª TEMPORADA, EPISÓDIO 3: “ZEN OU A HABILIDADE DE PEGAR UM


ASSASSINO” (1990)

4.1.1 A Dança de Audrey – (27:44-31:33)

Após a morte de Laura e as primeiras investigações, Audrey (Sherilyn Fenn)


vai até o RR, restaurante principal da série. Ela entra pela porta e caminha até a
jukebox. Até esse momento, apenas os foleys de seus sapatos e o barulho dos
talheres e pratos se fazem presentes. É interessante notar que possuem um ritmo
que parece quase antecipar a música que está por vir. A família de Donna (Lara
Flynn Boyle) também está presente no diner.

Audrey então coloca uma música na jukebox. Essa música diegética é


marcada pelo compasso lento em 4/4, com baixo em semicolcheia, o que a confere
um ritmo um tanto sensual, junto a percussão e os metais. Donna se levanta e vai
conversar com Audrey, que está tomando um café (figura 4).

Figura 4: Audrey e Donna conversam no Double R.


Fonte: ZEN or the skill to catch a killer. In: TWIN Peaks, 1990.

Elas conversam sobre a morte de Laura (Sheryl Lee), as investigações que


estão começando na cidade e sobre Cooper. Ambas falam num tom de voz suave,
quase sussurrado, o que reforça uma qualidade intimista e quase confessional
dessa cena (CHION, 1995), junto à trilha jazzística ao fundo. É uma cena que,
40

sonoramente, destoa bastante de sua locação: um clássico diner americano de


ambiência bastante familiar e tradicional. Esse contraste favorece a estranheza do
conjunto.

Chion (1995), ao comentar sobre o tema instrumental em questão – chamado


Audrey’s Dance e composto por Angelo Badalamenti para a série – ressalta, além da
sensualidade, seu caráter irônico e humorístico. Para o autor, parte desse humor
deriva do fato de, a despeito de sua sonoridade urbana e sofisticada, ele estar
associado a essa localização de uma cidadezinha caipira ao lado de uma floresta,
onde se esperaria algo diferente, como uma balada country ou algo do tipo. Chion
também ressalta como as texturas da música sugerem registros sonoros mais
suaves e sussurrados, destacando Lynch como um dos cineastas que explora
bastante essas diferenças de dinâmica e registros em seu trabalho.

Esses contrastes chegam no ápice aos 30:58, quando Audrey diz gostar
muito dessa música: “Ela não é super onírica?”12. Ela então se levanta e começa a
dançar de forma um tanto provocante em meio ao salão do restaurante (figura 5).

Figura 5: Audrey dança em meio à lanchonete.


Fonte: ZEN or the skill to catch a killer. In: TWIN Peaks, 1990.

Neste momento, os metais da música se fazem mais presentes e cortantes,


bem como os timbres de teclado bastante reverberados, dissonantes sobre o baixo

12
“Isn’t it too dreamy?”. ZEN or the skill to catch a killer. In: TWIN Peaks. Criação de Mark Frost e
David Lynch. Direção de David Lynch. Estados Unidos: ABC, 1990. 48 min., son., color. Temporada
1, episódio 3.
41

marcado e proeminente, tornando mais palpável essa presença onírica e sensual,


deslocada num ambiente aparentemente tradicional e “careta”. É como se fosse
criado um estado de transe, tanto por parte de Audrey quando por aqueles que a
observam, achando graça.

4.1.2 A Sala Vermelha – (40:15-47:25)

Agente Cooper (Kyle MacLahlan) se deita para dormir. Ao longe, ouve-se o


coaxar dos sapos à noite, sobreposto pelo som dos ponteiros de um relógio
acelerado. Entra um synth de órgão muito discreto ao fundo, que é logo substituído
por um drone13 grave e mais ameaçador, aos 40:21. Há um corte na cena, em fade-
out, e, com Cooper adormecido, ouve-se um trovão forte nos 40:26, e um raio e um
som de sino na distância. Tela preta.
Cooper está numa sala vermelha, sentado numa poltrona e com uma
aparecia envelhecida (figura 6). Ouve-se apenas drone ao fundo, que lembra o som
de ventos uivantes. Um anão de terno vermelho, que treme o corpo. Há um foley
que parece acompanhar esse seu movimento de “tremedeira”: um som metálico e
rápido de eletricidade. Ele chama por Laura ao fundo, com uma voz grave e
abafada.

Figura 6: Cooper envelhecido na Sala Vermelha.


Fonte: ZEN or the skill to catch a killer. In: TWIN Peaks, 1990.

13
Em sonorização, o termo drone é um anglicismo definido como “um som grave sustentado ou
monótono”, de acordo com a definição do dicionário online Merriam-Webster. DRONE. In: DICIO,
Merriam-Webster. 2021. Disponível em: <https://www.merriam-webster.com/dictionary/drone>.
Acesso em: 13/10/2021; tradução dos autores.
42

Acontecem alguns flashes, vê-se a mãe de Laura descendo a escada; uma


imagem de Bob (Frank Silva) nos pés da cama; um órgão cheio de sangue e o rosto
de Laura morta. O drone continua o tempo todo, sublinhando a cena, como se fosse
o som de ventilador da casa de Laura. Junto a isso, o som agudo de eletricidade, em
transientes que acompanham o aparecimento de cada flash de imagem,
sucessivamente – como cliques de fotografias, que vão se acelerando – e, aos
40:49, o grave de um piano sustentado por cerca de 5 segundos.

Acompanhado de uma trilha misteriosa, com timbres graves, como sinos


distorcidos, nos 40:51 entra uma voz masculina reverberada, que discursa
pausadamente: “Através das trevas do futuro passado/ O mágico anseia por ver./
Alguém canta entre dois mundos/ Fogo caminha comig”14. Quem fala é um homem
que se apresenta como Mike (Al Strobel). Ele continua falando sobre sua relação
com o bem e o mal, e das reuniões que tinha com Bob, seu ex-parceiro de crimes,
sobre uma loja de conveniência. Por trás da voz de Mike, além do drone já
mencionado, há a presença sutil de cordas sintetizadas. Bob nos é, então,
reapresentado, aos 41:57. Neste momento é presente, além dos sons graves de
ventos, pela primeira vez um synth contínuo médio-agudo, de sonoridade etérea,
acompanhanado por um ruído insistente, como o de um pequeno motor. Esses sons
se dissipam aos 42:25, quando Bob diz que matará novamente, e a cena corta para
um círculo de velas, que se apagam num som sintetizado de vento, sobre o drone
persistente.

O sonho continua, agora novamente na Sala Vermelha, onde Cooper


permanece sentado na poltrona e o Anão (Micheal J. Anderson), ainda tremendo
seu corpo, aos 42:37, com o mesmo foley. Agora, Laura também está presente no
salão. O Anão finalmente pára de tremer e, então, se vira e os chama para dançar.

Essa cena foi, talvez, a primeira que realmente mostrou mais do que Twin
Peaks viria a se tornar com o tempo. Aqui fica muito evidente uma estranheza que
existe nos movimentos e também na voz dos diálogos. Tudo parece retorcido e
estranho. As falas têm legendas para que o público possa entender o que é dito.
Sabe-se que esse efeito foi conseguido através da filmagem de toda a ação e dos

14
“Through the darkness of futures past/ The magician longs to see./ One chants out between two
worlds/ Fire walk with me.” ZEN or the skill to catch a killer. In: TWIN Peaks. Criação de Mark Frost e
David Lynch. Direção de David Lynch. Estados Unidos: ABC, 1990. 48 min., son., color. Temporada
1, episódio 3.
43

diálogos da cena de trás pra frente. Após a captação, o vídeo era invertido e, assim,
a ação e os fonemas da fala ficariam na ordem correta, mas com o seu ar
“fantasmagórico” tão característico dessas cenas.

Aos 43:19 entra então um som agudo, como reverberação de um sino, neste
momento Laura e Cooper trocam olhares e uma sombra passa ao fundo. O Anão
volta a falar, e um diálogo se desenvolve entre ele, Cooper e Laura. Apenas a voz
de Cooper não tem edição e soa natural. Após isso, o Anão diz que de onde vieram
os pássaros cantam lindas canções e existe sempre música no ar. Nos 45:22, uma
música diegética entra em cena, jazzística, marcada por estalos e por um walking
bass, acrescentado de um saxofone que entra solando. Embora seja de uma
sonoridade um tanto mais tradicional, quando comparada à Audrey’s Dance, Dance
of the Dream Man (Angelo Badalamenti) também combina uma dimensão sensual e
urbana com um forte ar humorístico, dada a natureza ainda mais idiossincrática da
cena aqui retratada. O Anão se levanta e começa a dançar pelo salão (figura 7),
Laura também se levanta e caminha até Cooper. A música vai ganhando volume e
reverberação. Ela beija Cooper nos lábios e sussurra algo em seu ouvido. Com um
corte brusco, aos 46:45, Cooper desperta.

Figura 7: A dança do Anão.


Fonte: ZEN or the skill to catch a killer. In: TWIN Peaks, 1990.

A música continua agora extradiegética, bem mais baixa, e com ruídos graves
por cima, que tomam a atmosfera enquanto Cooper liga para o Xerife Harry (Micheal
Ontkean) para marcar de se encontrarem. Agora ele sabe quem é o assassino. Ele
desliga o telefone e começa, intradiegeticamente, a estalar os dedos no ritmo da
música extradiegética, que volta a ganhar volume, conforme o episódio se encerra.
44

4.2 2ª TEMPORADA (1991)

4.2.1 Episódio 1: “Que o Gigante esteja contigo” (3:03-10:56)

Desde o início, é marcante a presença de sons concretos. Mesmo um pouco


antes de os créditos iniciais acabarem, é possível ouvir sutilmente um som muito
grave em fade-in no background, que contrasta bastante com o tom
predominantemente nostálgico e puro da música de abertura. Este som grave tem
um timbre que remete ao ruído que se ouve quando se anda de metrô vazio, ou de
carro, numa estrada muito silenciosa à noite. Apesar de não muito alto, ele parece
ter sido manipulado para soar ainda mais grave e causa, desde sua entrada, uma
sensação de tensão e seriedade.

A primeira imagem é a fachada do Great Northern Hotel ao longe, aos 3:03 de


episódio. Somos imediatamente levados para o interior do quarto de Cooper, onde
ele se encontra deitado no chão, inerte e sangrando (figura 8). O volume do som
grave ao fundo diminui bastante e dá espaço para a voz apreensiva de Andy ao
longe, on the air, pelo telefone fora do gancho, aos 3:11, chamando por Cooper, que
permanece no chão.

Figura 8: Cooper baleado.


Fonte: MAY the Giant Be With You. In: TWIN Peaks, 1991.

Com a voz de Andy, ouvimos também, ao longe, por um breve instante a


primeira parte do Laura Palmer’s Theme (Angelo Badalamenti), extradiegeticamente,
com seu característico timbre de órgão sintético que, com sua estaticidade
harmônica (acorde pedal em Dó Menor) e simplicidade melódica (melodia que varia
entre sexto e o sétimo graus menores e o quinto grau do acorde, criando um loop
45

predominantemente consonante, com tensões e resoluções simples, mas efetivas),


contribuindo para a constituição de uma espécie de bordão solene e misterioso.

Eis que surge o segundo personagem presencialmente em cena: um velho


copeiro do hotel. Os ruídos de fundo permanecem em um volume mais baixo,
enquanto o primeiro plano da trilha sonora passa, então, a ser do foley com os
passos lentos e secos do senhor, que ressoam como estalos muito espaçados
contra as superfícies de madeira do hotel. Ele traz um copo de leite quente para
Cooper, enquanto conversa com o mesmo num tom de voz tão solícito quanto senil,
ao mesmo tempo. Seu comportamento adquire uma qualidade quase sádica em
meio à atmosfera de gravidade do momento, reforçada pelo foley e pelo background,
que continuam em segundo e terceiro plano.

A voz de Andy volta a chamar pelo telefone, o que contribui ainda mais para a
tensão da cena. Cooper balbucia, tentando pedir que o copeiro busque um médico,
mas o funcionário simplesmente coloca o telefone no gancho. Aos 4:38, há um sutil
marcar dos ponteiros de um relógio que se soma ao background, fazendo com que a
cena pareça se arrastar ainda mais daí pra frente.

O idoso tenta conversar com normalmente Cooper e leva ainda algum tempo
para ir embora, pois volta e meia retorna para dizer-lhe: “Já ouvi muito falar em
você!” alegremente (figura 9), num tom de voz quase festivo e também senil, o que
dá uma qualidade humorística quase sádica para o momento. Isso se soma ao foley
de seus passinhos agudos para contrastar com o denso plano de fundo previamente
descrito, à medida que ele vai e volta no quadro, criando uma atmosfera de
estranheza e desconforto.

Assim que Cooper fica sozinho de novo, aos 8:06 emergem dois novos
synths, que dominam o campo sonoro da cena por alguns instantes, muito
reverberados: o mais predominante deles, num primeiro momento, de sonoridade
mais metálica e frequências mais médias-graves, remetendo à uma ideia de “espaço
sideral”, pensando em termos da ideia de musema cunhada por Tagg (2012); o outro
mais médio-agudo e sutil, como sinos e/ou cigarras levanto também à uma certa
vertigem. É notável como esses timbres remetem, simultaneamente, à universos
orgânicos e inorgânicos, mostrando-se bastante difíceis de decifrar. Por trás,
46

continuam sutis ruídos que remetem à ventos, ao mesmo tempo que algo como
turbulências de avião.

Figura 9: O senhor fala com Cooper alegremente.


Fonte: MAY the Giant Be With You. In: TWIN Peaks, 1991.

Com estes novos sons, a cena escurece e um foco de luz direcionado se


materializa no ar, junto a um novo personagem, frente a Cooper: o Gigante (Carel
Struycken – figura 10). Com voz grave, lenta e séria, ele recita pausadamente
algumas instruções à Cooper, aos 8:31. Conforme ele fala, o synth mais agudo se
sobressai ao fundo como uma sirene, que remete, também, às estrelas.

Figura 10: O Gigante.


Fonte: MAY the Giant Be With You. In: TWIN Peaks, 1991.

Após seu recado, o Gigante desaparece e, com ele, se vão quase todos os
sons do background, aos 10:50. O quarto volta à sua luminosidade habitual e o
único som que resta é aquele do relógio, que marca o tempo que passa.
47

4.2.2 Episódio 7: “Almas Solitárias” – (29:32-46:29)

O excerto aqui analisado possui muitos dos elementos-chave do universo


sonoro da saga, apresentando um panorama complexo de sensações e camadas
que representam muito bem a identidade da obra e seu lugar relevante na história
da televisão enquanto um dos programas que aproximou o entretenimento do
chamado “cinema de arte”, conforme afirmou Thompson, ampliando a definição de
Bordwell para o campo televisivo (MITTEL, 2012).
A sequência em questão se inicia aos 29:32 do episódio, com o som saturado
de cigarras e sapos na noite, como background, enquanto vê-se o perfil de árvores
farfalhantes contra o céu noturno, por alguns breves frames. Há uma espécie de
drone crescente ao fundo, como um baixo distorcido, e somos levados para o interior
da casa dos Palmer, aos 29:36. A sala parece vazia, mas a câmera assume ângulos
que colocam o espectador na perspectiva de algo que parece se arrastar ou se
esconder pelo cômodo. O som grave permanece, ameaçador, fazendo alguns
movimentos, vez ou outra. Sobre isso, em primeiro plano, há um ruído de agulha
sobre disco de vinil, sem música alguma. Este ruído é diegético – é possível ver o
disco girando indefinidamente, enquanto a agulha permanece presa – mas é muito
saturado e dominante na cena, fazendo um papel similar ao barulho dos ponteiros
do relógio na cena anterior, do Gigante, mas de forma muito mais insistente e
aflitiva, categorizando-se como um efeito dramático.

Conforme a câmera se arrasta pelo carpete, surge um som de vento médio


agudo, com timbre um tanto metálico, aos 29:54, e desaparece rapidamente. A
câmera chega aos pés da escada, onde surgem as mãos de Sarah Palmer (Grace
Zabriskie), a mãe de Laura, que se arrasta deitada pela escada abaixo, em meio a
gemidos e uma respiração ofegante, nos 30:05. O ruído do vinil cessa, mas o som
grave parece ir ganhando algumas novas camadas de instrumentos, conforme a
cena corta para a delegacia de Twin Peaks.

Benjamin Horne (Richard Beymer), o magnata da cidade, está sendo preso. A


Senhora do Tronco (Catherine E. Coulson) surge enigmaticamente, conforme o som
da trilha musical cresce, atingindo regiões um pouco mais médias e um timbre mais
“aberto” e metálico, de modo a aumentar o tônus geral da cena. Para Cooper e para
o Xerife Truman, ela diz: “Nós não sabemos o que vai acontecer, nem quando, mas
48

há corujas na Roadhouse”.15 . Vê-se, então, a lua cheia muito luminosa no céu, e


ruídos de ventos no background, sob o fundo instrumental que ganha agora uma
camada de cordas friccionadas, com notas muito sustentadas, numa região médio-
grave.
É pertinente que seja feito um parêntese sobre a natureza dessa trilha
musical que costura a unidade de todas essas cenas aqui comentadas, uma vez que
este sintetisa muitas das características sonoras da série, além de ter sido a
principal inspiração para o surgimento de um gênero musical muito pouco
comentado: o doom/dark jazz.

Em vários sentidos, [o doom jazz] é tudo menos jazz. Versão mais


leve do post-rock, o doom jazz é uma mistura de post-metal e dark
ambient com avant-garde e influências de trilha sonoras de filmes,
usando alguns recursos estéticos e instrumentos típicos do jazz.16
(DAS, 2021)
Conforme evidencia o excerto acima, o doom jazz é, na verdade, um estilo de
música ambiente que usa muitos elementos e texturas do jazz combinados à ruídos
eletrônicos e sons concretos a fim de criar atmosferas de sonho, misteriosas e
obscuras. O termo “doom” em si, vem do inglês, e quer dizer “destruição”, “morte” ou
um “destino terrível” do qual não se possa escapar, de acordo com o Dicionário de
Cambridge. Na música, ele aparece notavelmente no contexto do doom metal, que é
conhecido por ser a vertente mais lenta do metal extremo, muito focada no peso e
distorção das guitarras, quase sempre com afinações mais graves que o habitual e
uma atmosfera comumente opressiva e triste. Ainda assim, o gênero possui muitas
vertentes que se mesclam com outras sonoridades, como a música gótica derivada
post-punk oitentista, para formar o gothic doom ou até mesmo um viés mais
eletrônico e psicodélico, no stoner doom (Nordström, 2019)17. Ao falarmos em doom
jazz, portanto, falamos de um estilo que também se relaciona à sua maneira com
todas essas tendências, criando um senso de urgência, horror e devaneio que se
relaciona bastante com o ideário muitas vezes utilizado pela série, ainda que de
forma sempre pouco ortodoxa.
15
“We don’t know what will happen, or when, but there are owls at the Roadhouse.” LONELY Souls.
In: TWIN Peaks, 1991. Criação de Mark Frost e David Lynch. Direção de David Lynch. Estados
Unidos: ABC, 1990. 48 min., son., color. Temporada 2, episódio 7; traduzido pelos autores
16
“In many ways, it is anything but jazz. Post-rock at its lightest, doom jazz is a post-metal, dark
ambient blend of avant-garde and film-score influences, with jazz aesthetics and associated
instruments.” DAS, Lubert. THE Fast Paced, Lighthearted World of DOOM JAZZ. In: Resident
Sound, 2021. Disponível em: <https://residentsound.com/2021/04/09/the-fast-paced-lighthearted-
world-of-doom-jazz/>. Acesso em: 13/10/2021; tradução dos autores.
17
NORDSTRÖM, Stefan. Doom metal guide – everything about the music style. In: Soliloquium.
Disponível em: <https://deathdoom.com/doom-metal/>. Acesso em: 14 de out de 2021.
49

Em artigo de Lubert Das, escrito neste ano de 2021 para o site Resident
Sound, o grupo alemão BOHREN & DER CLUB OF GORE é apontado como o
primeiro do gênero, tendo sido fundado em 1992, ano de lançamento do filme Os
Últimos Dias de Laura Palmer. A trilha musical de Angelo Badalamenti para a série e
para o filme subsequente são relatados como algumas de suas principais influências
sonoras. O grupo cult se tornou referência para vários conjuntos mais recentes, que
adotaram um estilo parecido e desenvolveram-no enquanto gênero musical –
notavelmente o quarteto francês Dale Cooper Quartet, que empresta para si o nome
do próprio herói da série.

Pode-se dizer, portanto, que neste trecho da série que analisamos, encontra-
se um pouco da raiz do que veio a se tornar um novo gênero musical. E é na costura
dessa atmosfera nebulosa e tensa que o episódio segue.

De volta à casa dos Palmer, aos 33:25 minutos de episódio, surge de volta o
ruído ameaçador da agulha sobre o disco de vinil, conforme Sarah ainda rasteja pelo
chão da sala. Materializa-se, então, no centro do cômodo, um cavalo branco
imponente (figura 11) e, com ele, o ruído da agulha parece diminuir, à medida que
entra, nos 33:44, um gesto musical muito similar àquele que acompanhou a aparição
do Gigante na cena anteriormente analisada: synths médio-agudos, lembrando o
som de sinos e/ou de cigarras, com bastante reverb. A senhora Palmer, ao vê-lo, cai
num sono. O som da agulha no vinil volta a dominar o campo sonoro. O baixo some,
momentaneamente, e reaparece, aos 34:31, numa espécie de pedal ameaçador,
conforme a câmera mostra o pai de Laura em frente ao espelho da sala.

Figura 11: O cavalo branco.


Fonte: LONELY Souls. In: TWIN Peaks, 1991.
50

A cena corta para a fachada do Roadhouse, casa noturna da cidade. Ouve-se


o som abafado da música que vem de dentro do estabelecimento e, aos 34:45, o
zunido de eletricidade saturado, vindo do neon vermelho que carrega seu logo. Lá
dentro, um ambiente calmo. No palco, uma banda (figura 12) toca uma música de
timbres doces e suaves, construída sobre poucos acordes, com baixo marcando os
tempos fortes, teclado se encarregando das colcheias tercinadas, junto aos pratos
da bateria, que dão um ar jazzístico à canção pop. Há também uma guitarra que faz
algumas acentuações na harmonia. A voz de Julee Cruise, cantora original de
muitas das faixas da trilha musical, e que também se encontra em cena como si
mesma no palco, soa muito leve e quase sussurrada sobre o instrumental, cantando
a letra de um amor pueril. Conforme já explorado na primeira análise deste mesmo
capítulo, sua atitude vocal também remete muito ao que Chion (1995, p. 118)
menciona como uma das características recorrentes de suas texturas musicais: sons
sussurados e vaporosos, contribuindo para uma atmosfera que soa, por vezes,
íntima, acolhedora e confessional.

Figura 12: O interior da Roadhouse.


Fonte: LONELY Souls. In: TWIN Peaks, 1991.

Em meio a isso, Donna e James (James Marshall), a melhor amiga e o


amante de Laura, conversam numa das mesas sobre a morte de Harold Smith e
sobre Maddy, a prima de Laura (ambas interpretadas pela mesma atriz). Um breve
solo de sax tem início e é acrescido pelo naipe de sopros, antes de Cruise retomar o
tema principal com sua voz: “Diga ao seu coração que eu sou a pessoa certa.”18.

18
“Tell your heart that I’m the one”. LONELY Souls. In: TWIN Peaks, 1991. Criação de Mark Frost e
David Lynch. Direção de David Lynch. Estados Unidos: ABC, 1990. 48 min., son., color. Temporada
2, episódio 7; traduzido pelos autores
51

Pode-se ver o Xerife, Margaret e Cooper sentados a uma mesa; este último
com um semblante muito sério e desconfiado. No minuto 37:52, há um som de
trovão, que não se sabe se é diegético ou extradiegético, e com ele há um corte da
cena e a música se torna ainda mais lenta, íntima, silenciosa e malencólica: um
synth bem grave na base, imitando cordas; arpejos contínuos do teclado sobre ele.
Há a sensação de que se passou algum tempo. A casa está cheia, muitos bebem,
inclusive o copeiro do hotel visto na cena anteriormente analisada. Apesar da casa
cheia, quase não há background perceptível, só ouvimos a música: “A poeira está
dançando no espaço/ Um cão e um pássaro estão muito longe/ O sol nasce e se põe
a cada dia”19.

Eis que o palco fica vazio, a música pára e uma luz direcionada se acende
sobre Cooper. Aos 38:38, há um som de um transiente20 muito lento e grave e, com
ele, o synth médio-agudo, reverberado e contínuo com timbre de sinos/cigarras. As
demais pessoas no bar parecem congeladas no tempo. No palco, um foco de luz e,
sob ele, o Gigante reaparece. Ele olha pra Cooper e diz, com sua voz grave e
profunda: “Está acontecendo de novo”. Sobre a imagem do Gigante, há um fade-in
da vitrola na casa dos Palmer, enquanto o ruído da agulha sobre o vinil volta a
dominar o som do episódio, junto com um baixo, mais sujo que antes.

Leland Palmer (Ray Wise) sorri enquanto se mira no espelho: no reflexo, não
vemos mais a imagem do pai de Laura, mas de Bob. Aos 39:26, uma risada opaca e
maléfica entra no campo sonoro, como um espectro repentino. Leland se vira,
ameaçador (figura 13). O clique da agulha e o baixo distorcido permanecem,
mantendo a tensão dramática da cena. Ouve-se rangidos dos passos na madeira do
assoalho. Leland coloca luvas cirúrgicas, à medida que se ouve a voz de Maddy
(Sheryl Lee), no andar de cima, chamando pelo tio: “O que é esse cheiro? Parece
algo queimando.”. Ao chegar no andar de baixo, Maddy entra em quadro aos 40:09,

19
“Dust is dancing in the space/ A dog and bird are far away/ The sun comes up and down each day/
The river flows out to the sea”. Idem; traduzido pelos autores
20
“São picos de energia de curta duração gerados por componentes não-periódicos e de
comportamento caótico. Ocorrem geralmente no ataque dos sons e contêm grande quantidade de
energia em altas freqüências.A porção do ataque de um som é chamada de estado transiente uma
vez que as componentes freqüenciais não são estáveis. Sua duração varia em torno de 5 a 300
milesegundos. Os transientes são fundamentais na percepção do timbre e na formação da impressão
espacial dos sons. Para a voz, os transientes são de extrema importância, já que constituem a base
de sons consoantes.” IAZETTA, Fernando. Transientes. In: ECA – USP. Disponível em:
<http://www2.eca.usp.br/prof/iazzetta/tutor/acustica/transientes/transientes.html>. Acesso em: 14 de
out de 2021.
52

e há uma espécie de transiente lento e granulado, parecido com a sobreposição de


um sussuro, uma sirene e o som de água entrando em ebulição contra uma
superfície quente de metal, como se algo de fato queimasse. Neste momento, a
iluminação da cena também é completamente diferente, assumindo uma estética
completamente antinaturalista, com os focos de luz teatrais direcionados já vistos
anteriormente em algumas situações.

Figura 13: Leland se vira, Bob no espelho.


Fonte: LONELY Souls. In: TWIN Peaks, 1991.

O ruído da agulha sobre o vinil permanece incessante, enquanto a trilha


musical vai ganhando camadas mais sinistras e ruidosas de sintetizadores, na
estética doom jazz já explorada anteriormente. Há o retorno do synth agudo
associado às aparições do Gigante e do cavalo branco. Sobre isso, ouve-se os
gritos desesperados de Maddy, tentando se esquivar das investidas de seu tio/Bob.
A iluminação natural do ambiente alterna constantemente com o mesmo tipo de
iluminação teatral descrito acima, com um foco de luz que desorienta os olhos do
espectador e dá ainda mais dramaticidade à cena (figura 14). Essas transições entre
a iluminação naturalista e a teatral são sonoramente assinaladas pelo mesmo tipo
de transiente lento/sussurro/sirene descritos no parágrafo anterior. Além disso,
nesses momentos antinaturalistas da iluminação, há o uso de câmera lenta, e é
sempre Bob que aparece no lugar de Leland, como se essa fosse a visão
correspondente ao “mundo espiritual”, ou algo do tipo. Já o som dos gritos, gemidos
e dos golpes desferidos na garota por seu tio/Bob é muito mais abafado, distorcido e
53

rico em frequências baixas, nestes momentos: bestial, como a risada de Bob alguns
momentos antes. Tudo isso parece reforçar essa ideia de um som/visão “espectral”.

Figura 14: Iluminação teatral utilizada na cena, conforme Leland/Bob persegue Maddy.
Fonte: LONELY Souls. In: TWIN Peaks, 1991.

Os synths se mantém soando na região aguda, conforme retorna a imagem


do Gigante, que ainda olha para Cooper com gravidade. Os demais sons vão se
dissolvendo. A luz no Roadhouse volta ao normal, o Gigante desaparece do palco e
os músicos parecem ter estado sempre lá. A mesma música ainda toca,
introspectiva, triste e terna. O velho senhor funcionário do hotel vem até Cooper e
diz, em tom de verdadeiro pesar: “Eu sinto muito.”. Mais uma vez, quase não há
background perceptível, apenas a música e, sobre ela, a voz do senhor que soa,
dessa vez, muito clara e profunda.

O episódio termina enquanto soa finalmente o refrão da música, na voz de


Cruise: “Amor, não vá embora/ Volte para cá/ Volte e fique aqui/ Para todo o sempre/
Por favor, fique”21.

21
“Love, don’t go away/Come back this way/Come back and stay/Forever and ever/Please, stay.”
LONELY Souls. In: TWIN Peaks, 1991. Criação de Mark Frost e David Lynch. Direção de David
Lynch. Estados Unidos: ABC, 1990. 48 min., son., color. Temporada 2, episódio 7; traduzido pelos
autores
54

4.3 FILME: “TWIN PEAKS - OS ÚLTIMOS DIAS DE LAURA PALMER” (1992)

4.3.1 “Nós não vamos falar sobre Judy.” - (26:58-31:17)

Ouve-se o transiente esparso dos pratos de uma bateria, e o expectador é


levado aos escritórios do FBI na Filadélfia, antes do assassinato de Laura Palmer.
Há o som de carros passando no background, sugerindo um cenário mais urbano e
vê-se a fachada de um prédio atrás de um sino. O transiente da bateria ganha
volume e a imagem troca para o interior de um escritório. Cooper entra decidido e
ouve-se extradiegeticamente o início do tema jazzístico The Bookhouse Boys,
composto por Badalamenti e muito usado em cenas de investigação e mistério nas
duas primeiras temporadas. O tema é rapidamente substituído por um drone, que
entra brevemente e desaparece, quando Cooper conversa com Gordon (David
Lynch): “Gordon, são 10:10 da manhã do dia 16 de fevereiro. Eu estava preocupado
sobre hoje, por causa do sonho que eu te falei”.22

Em seguida, aos 27:27 vemos Cooper andar por um corredor e ele parece
desconfiado ao olhar para uma câmera de segurança no teto. O ambiente é muito
silencioso, não se ouve quase nada além do foley de roupa e passos, muito discreto.
No fundo, emerge bastante sutilmente o timbre de violoncelos, desenhando uma
melodia vagarosa. Cooper se coloca de frente para a câmera e vai para a sala de
monitores de segurança, que se encontra ao lado, para observar a imagem da
câmera. Vai e volta, várias vezes. O som de violoncelos fica levemente mais intenso
quando ele está em frente à câmera. O foley de um elevador se abrindo, nos 27:57,
quebra a quietude da cena, parecendo anormalmente alto para o nível de volume
apresentado até então.

Com a abertura do elevador, o som dos violoncelos ganha mais intensidade.


Ninguém sai de dentro do elevador, Cooper continua seu movimento repetitivo.
Ouve-se como que uma porta rangendo no fundo, desafinada, e aos 28:09 há um
breve transiente meio seco e abafado, e uma sombra parece surgir dentro do
elevador vazio. Dele, sai um homem, que anda decidido pelo corredor. O som dos
violoncelos mantendo seu tônus, de forma mais persistente. Cooper continua
alternando suas posições, até que, ao se voltar para a sala de controle, vê sua
imagem na tela, como se ele ainda estivesse no corredor, conforme se aproxima
22
“Gordon, it’s 10:10 AM on february 16th. I was worried about today because of the dreamI told you
about” TWIN Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer. Direção de David Lynch. 1992. 134 min.
55

dele a figura do homem que acabara de sair pelo elevador (figura 15). Sobre os
violoncelos, aparecem mais sons desafinados, lembrando rangidos de porta. Cooper
se exaspera ao ver sua imagem no corredor e chama Gordon, sua voz alta e tensa
sobre o fundo musical.

Figura 15: a imagem de Cooper na câmera de segurança e o homem que se aproxima dele.
Fonte: TWIN Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer, 1992.

O homem chega ao escritório de Gordon. É revelado que se trata de Phillip


Jeffries (David Bowie), um agente do FBI, há muito desaparecido. Nesse ponto, no
plano de fundo, mais intrumentos e sons concretos vão se somando aos violoncelos:
synths etéreos e desafinados, zunidos de eletricidade, agregando uma aura de
tensão e horror à cena. Jeffries parece hesitante e perturbado: “Nós não vamos falar
sobre Judy (…) Deixemos ela fora disso”. Ele olha para Cooper, com raiva, e
pergunta a todos: “quem você acha que é essa pessoa?”. Com essa pergunta, aos
29:00, é como se houvesse uma espécie de interferência na imagem e no som, com
uma espécie de “chiado”, típico das TVs analógicas. A esse chiado, se somam mais
camadas de sons desafinados e o rumor da eletricidade, à medida que os
violoncelos vão também ganhando intensidade e várias imagens se sobrepõem e se
intercalam ao mesmo tempo. Há um som bestial, como um urro gutural, que dura
cerca de 3 segundos, nos 29:11, emitido por um homem de máscara branca e um
terno vermelho como o do Anão.

Imagens e sons continuam a se sobrepor, numa sensação de absoluto caos


sensorial. O diálogo no escritório continua a se desenvolver, entrecortado por todos
os demais sons. Gordon tenta entender por onde Jeffries teria andado nos últimos
56

dois anos. Na tela, vê-se uma sala suja e escura, onde se encontram Bob, o Anão,
além do homem de máscara branca e nariz muito pontudo, e outros personagens,
muitos deles vestidos de lenhadores (figura 16). A sala passa por clarões de luz, que
são acompanhados por sons de eletricidade (29:15 a 29:17) numa região média e
explosões na região grave, que tornam tudo mais difícil de discernir.

Figura 16: A sala sobre a Loja de Conveniência.


Fonte: TWIN Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer, 1992.

No minuto 29:17, ouve-se a voz do Anão em primeiro plano


(“Garmonbozia23”), em sua estética retorcida já conhecida. Com a voz dele, entra
também a música tema do filme, Theme from Twin Peaks – Fire Walk With Me, uma
balada jazz lenta, de sonoridade lânguida e sensual, conduzida ritmicamente por
vassourinhas, a cama harmônica composta principalmente por cordas sintéticas e a
melodia principal conduzida por um sax. Sobre isso, mais ruídos elétricos e sons
desafinados. E a voz de Phillip Jeffries que reaparece, aos 29:33: “Foi um sonho.
Nós vivemos dentro de um sonho”24. O “chiado” de TV fica mais forte ao fundo, mas
logo diminui, bem como as imagens se sobrepõem mais uma vez.

Com a diminuição do chiado, aos 29:42, o tema do filme parece encontrar


mais espaço para ressoar, lento e misterioso, dominando o campo sonoro. Aparece
Bob em foco na tela. “Caiu uma vítima”25, diz um menino de voz retorcida. “Com este

23
No universo de Twin Peaks, garmonbozia é uma substância que,no plano físico, se parece, ou é de
fato, creme de milho. O termo aparece como um sinônimo para “dor e sofrimento”, e é uma das
principais fontes de alimento para alguns espíritos, como o Anão e Bob. GARMONBOZIA. In: Twin
Peaks Wiki. Disponível em: <https://twinpeaks.fandom.com/wiki/Garmonbozia>. Acesso em:
01/11/2021; tradução dos autores.
24
“It was a dream. We live inside a dream.” TWIN Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer. Direção
de David Lynch. 1992. 134 min.
25
“Fell a victim.” Idem.
57

anel, eu vos caso”26, volta a voz do Anão. A voz de Phillip ressurge, então: “O anel.
O anel. Ele estava sobre uma loja de conveniência”. Aos 30:04, volta o som de “fora
do ar” sob a trilha musical, e uma voz retorcida não identificada diz: “Eletricidade”.
Jeffries continua: “Eu estive em uma das reuniões deles” 27. A trilha musical continua,
junto aos ruídos de interferência, estalos e sons retorcidos, que voltam a aparecer
nos 30:16. Vê-se mais uma vez um plano geral da sala escura e suja, o Anão e Bob
ao redor de uma mesa de fórmica, com bacias de creme de milho.

Vê-se, então, as cortinas da Sala Vermelha. O discurso de Jeffries continua:


“Eu descobri algo (…) E, então, lá estavam eles”. Junto a isso, aos 30:31, ouve-se
um golpe grave a abafado ao fundo. Após isso, os ruídos de interferência ficam mais
fortes e a música vai se dissipando. O todo é sobreposto pelos gritos de Jeffries,
cuja imagem se sobrepõe ao fundo cinza indefinido. Fortes “chiados” de TV se
repetem. Ouve-se a voz de Gordon gritar: “Ele se foi. (…) Albert, ligue para a
recepção”28. Na imagem, telas fora do ar, um céu azul sobreposto por postes de
eletricidade. E o expectador é levado de volta ao escritório, aos 30:52, todos muito
confusos: “Falei com a recepção agora. Ele nunca esteve aqui”29.

Ao fundo, a confusão sonora se dissipa. Restam apenas alguns synths


desafinados que espiralam na região média com o som de ventos, sob as vozes. Até
que um drone suave capta toda a atenção, conforme Cooper e Gordon conferem as
cãmeras de segurança e vêem que, sim, Phillip esteve lá.

4.4 3ª TEMPORADA: TWIN PEAKS - O RETORNO (2017)

4.4.1 Parte 3: “Peça ajuda.” - (1:37 – 10:50)

Mais de 25 anos se passaram e Twin Peaks voltava, em 2017, muito


beneficiada pela perspectiva que o tempo lhe oferecera. O fracasso comercial e de
crítica sofridos pelo filme “Os Últimos Dias de Laura Palmer” tinha sido ofuscado
pelo sucesso quase unânime de Lynch com a crítica em alguns de seus
lançamentos mais recentes, notavelmente Cidade dos Sonhos (Muholland Drive –
2001), já citado neste trabalho. Além disso, o tempo tratou de redimir Twin Peaks e

26
“With this ring, I thee wed.” Idem.
27
“I’ve been to one of their meetings.” Idem.
28
“He’s gone. (…) Albert, call the front desk.” Idem.
29
I’ve got the front-desk now. He was never here.” Idem.
58

seu legado como uma série de vanguarda, à medida que a saga foi se mostrando
fonte de inspiração para produtos televisivos de grande relevância cultural, no fim
dos anos 1990 e início dos anos 2000 – como David Chase, criador de Família
Soprano (The Sopranos – 1999-2007), declarou em entrevista à Vulture30 e em artigo
da Time31.

É neste cenário que a série volta: tendo, de uma certa forma, a respon-
sabilidade de fazer jus ao seu legado, mas também às expectativas de muitos
daqueles espectadores que ficaram mais de 25 anos esperando algum tipo de
continuação e/ou resolução para as inúmeras pontas soltas e provocações que
haviam sido deixadas pela obra até então jamais finalizada – e toda a nostalgia
associada a isso. Ao final da segunda temporada, Cooper parecia muito diferente
após ter saído do Salão Negro32. Apesar de se passar antes da série, em um dos
lapsos temporais inusitados de “Os Últimos Dias de Laura Palmer”, é revelado que o
verdadeiro Cooper teria ficado preso no Salão extra-imensional, e o Cooper que
saíra de lá seria seu doppelgänger malvado.

Sendo assim, a primeira sequência analisada neste ciclo mais recente de


episódios se inicia aos 1:37 da Parte 3, logo após os novos créditos de abertura.
Ouve-se imediatamente sons fortes e desafinados. Muitos sons sobrepostos:
primeiro algo como uma turbina de avião, com rangidos metálicos médio-agudos,
junto a sons de ventos fortes, em regiões mais graves, além de synths sustentando
intervalos tensos, remetendo a um som de órgão ou de cordas, além de sons de
assovio oscilantes, agudos e reverberados, apesar de baixos na mixagem. A
sensação é de queda-livre e suspense. Na imagem, vemos o Agente Cooper (o
mesmo Kyle MacLachlan, porém agora com quase 60 anos) e é como se ele de fato
estivesse em queda-livre pelo espaço sideral (figura 17). Há muita instabilidade na

30
ZOLLER SEITZ,Matt. David Chase on the Legacy of Twin Peaks. In: Vulture, 2015. Disponível em:
<https://www.vulture.com/2015/05/david-chase-twin-peaks-legacy.html>. Acesso em: 06 de nov de 21.
31
DOCKTERMAN, Eliana. Creators of Lost, Fargo, The Sopranos and Other Shows on How Twin
Peaks Influenced Them. In: Time, 2017. Disponível em: <https://time.com/4769270/twin-peaks-lost-
fargo-sopranos/>. Acesso em: 06 de nov de 2021.
32
O Salão Negro e seu oposto correspondente, o Salão Branco, são locais extra-dimensionais
originários de lendas transmitidas por tribos que habitavam a região de Twin Peaks, o Salão Negro
sendo a “sombra” do Salão Branco, um local de pura maldade, pelo qual todas as almas deveriam
passar no seu caminho para o aperfeiçoamento. Neste processo, o peregrino confrontaria a sua
própria sombra, seu eu maligno. Se esse desafio não fosse enfrentado com coragem, sua alma seria
aniquilada. Enquanto o Salão Branco poderia supostamente ser acessado pelo forte sentimento de
amor, o Salão Negro se abre através do sentimento de medo. BLACK Lodge. In: Twin Peaks Wiki.
Disponível em: <https://twinpeaks.fandom.com/wiki/Garmonbozia>. Acesso em: 01/11/2021; tradução
dos autores.
59

imagem, tudo é borrado, e a câmera intercala entre uma espécie de plano


americano tremido – que o enquadra de pernas e braços abertos, caindo pelo vácuo
de estrelas – e planos detalhe de seus rosto consternado. Alguns jumpcuts que,
junto ao som de estruturas se movendo sob um vento muito forte, aumenta a
sensação de vertigem e falta de chão. A partir de 1:56, entram ruídos mais graves, e
a sensação de instabilidade aumenta.

Figura 17: Cooper em queda-livre pelo Espaço.


Fonte: PART 3. In: TWIN Peaks, 2017.

Aos 2:03, vê-se uma ambiência subaquática, de tonalidade roxa. Os sons


começam a se suavizar. Há uma espécie de nuvem translúcida que se expande no
meio da tela e a tonalidade roxa parece tomar conta de tudo. Há um transiente grave
e muito lento e leve, que domina o campo sonoro, conforme toda a turbulência se
dissipa e, aos 2:23, Cooper cai direto numa sacada. O foley da queda contra o
background, de repente muito calmo. Há um som grave, como se houvesse uma
tempestade ao longe. Tudo é banhado por uma luz escura, translúcida e roxa. Ouve-
se o rumor das águas do oceano, que cerca o lugar (figura 18). Há uma lentidão que
toma conta da cena, provavelmente resultado da súbita estabilidade e quietude que
se instala, comparado à sequência imediatamente anterior.
60

Figura 18: Cooper em uma sacada cercada pelo oceano.


.
Fonte: PART 3. In: TWIN Peaks, 2017.

Cooper se dirige ao interior do prédio. Aos 3:49, entra um drone grave, sutil,
conforme a câmera se coloca dentro do cômodo e Cooper abre a porta balcão.
Dentro do cômodo, o drone se sobresai, e os sons dos ventos e das águas se
atenuam até desaparecer. O interior é dominado por luzes contrastantes. Ouve-se o
foley dos passos e da roupa de Cooper. Aos 4:42 ve-se uma figura feminina sem
olhos (figura 19), sob uma luz intensa, conforme surgem alguns ruídos entrecortados
ao fundo, indecifráveis, lembrando o som de papel amassado ou de um tecido solto
contra um vento forte, mas aditados de modo a soar mais graves e entrecortados.
Conforme Cooper se aproxima da mulher, que parece aflita, esses sons se
intensificam, associados à jumpcuts que voltam a dominar a cena, conferindo um
efeito de “pane” e travamento da imagem, algo robótico e pouco natural. Conforme
os dois personagens se dão as mãos, aos 5:16, entra uma trilha musical muito leve,
lenta e de timbres etéreos. Aos 5:33 há um momento significativo, em que Cooper
pergunta: “Onde fica este lugar? Onde nós estamos?”33, e sua voz soa distante,
grave e reverberada. Neste momento a câmera os enquadra de certa distância,
mostrando-os de corpo inteiro e mostrando todo o cômodo, num plano geral. É como
se o som da voz tivesse sido captado da distância que a própria câmera assume
neste momento, reforçando esse ar de distância e estranhamento.

33
“Where is this? Where are we?” PART 3. In: TWIN Peaks, 2017. Traduzido pelos autores.
61

Figura 19: Naido, a mulher sem olhos.


Fonte: PART 3. In: TWIN Peaks, 2017.

Voltam os ruídos e os jumpcuts aos 5:42, conferindo uma atmosfera de


estranhamento e instabilidade, como num stop-motion descompassado. A trilha
musical também retorna por uns instantes, conforme a moça toca em Cooper (f e,
então, começa a “falar” com ele, aos 5:56. Porém, o que sai de sua boca não são
palavras, mas ruídos agudos, como de macacos ou também animais noturnos. Ela
parece aflita. Até que, aos 6:08, surge o som de fortes golpes acoando, como se
alguém batesse com força numa porta e quisesse derrubá-la. As imagens continuam
entrecortadas e a mulher parece exasperada com os golpes que acoam fortes. Ela
pede silêncio à Cooper, com as mãos. A trilha musical adquire dimensões mais
sinistras também, apostando em arroubos destacados nos synths, conforme
ressoam os golpes na distância. Aos 6:41, aparecem ruídos agudos isolados, como
o apito de uma locomotiva. Esses ruídos parecem vir de inúmeros painéis que estão
distribuídos pelas paredes do ambiente, como painéis de energia enumerados. Um
deles (número 15) permanece mais insistente, a partir dos 6:44, e parece chamar a
atenção de Cooper.

Os golpes continuam, insistentes. Cooper levanta e se dirige até o painel


número 15. Com sua tentativa de aproximação, ruídos graves de eletricidade se
intensificam aos 7:44. Nos 7:53 surge um som agudo e tenso, parecido com o timbre
de um clarinete, passando uma sensação de perigo, e a mulher o impede de
adentrar o painel, ainda grunhindo de forma intensa, com sons que parecem ser a
sobreposição de vários animais, como macacos e porcos, principalmente. Ela faz
62

movimentos efusivos para Cooper, como o sinal de algo cortando o pescoço,


sinalizando o perigo de se ir naquela direção. Esse sinal é acompanhado pelo som
de lâminas cortando algo muito intensamente, o que aumenta ainda mais o ar
sufocante da cena, somado à trilha tensa, o background denso e os golpes
ameaçadores que continuam a ressoar, sob os grunhidos da mulher desesperada.

Os sons ficam mais ameaçadores. Ruídos graves e agudos se sobrepõem


aos já existentes. Sons como de desmoronamentos e/ou explosões subaquáticas;
além de apitos e synths tensos na região aguda. A moça conduz Cooper pelo que
parece ser uma rota de fuga. Os sons vão se tornando levemente mais distantes
conforme eles sobem uma espécie de escada de incêndio. Os synths médio-graves
cessam por um momento conforme eles saem por uma espécie alçapão, em uma
caixa preta de ferro que flutua no meio do espaço sideral (figura 20). Há um chiado
no fundo, similar ao som de água escorrendo em meio às pedras de um riacho,
porém mais metálicos e reverberados, com uma qualidade fantasmagórica.

Figura 20: Eles saem por uma espécie alçapão, em uma caixa preta de ferro que flutua no meio do
espaço sideral
Fonte: PART 3. In: TWIN Peaks, 2017.

Os synths médio-graves retornam. A atmosfera sonora de tensão se mantém.


A mulher se dirige a uma estrutura grande similar a um sino, conversando com
Cooper, em seu dialeto que ele parece não entender. Até que, nos 10:07, ela puxa
uma alavanca e, aos 10:08, há um forte estrondo de descarga elétrica. Ela fica
colada à estrutura em formato de sino, tremendo o corpo, como se estivesse
tomando um choque, enquanto o forte som de descarga se mantém até os 10:18,
63

quando ela é violentamente lançada pelo vácuo e cai indefinidamente, em meio às


estrelas, deixando Cooper sozinho. Os sons ameaçadores se foram. Ouve-se
apenas o som da estrutura de metal que continua a flutuar no vazio.

4.4.2 Parte 8: “Tem luz?” - (16:19-40:40)

A Parte 8 de The Return se trata de um episódio altamente experimental e


digressivo para o contexto televisivo. Banhado de uma aura indecifrável e mitológica,
o capítulo se vale de uma intricada trama temporal para abordar, entre outras coisas,
a origem de dois dos principais personagens da história. Apesar da modesta
audiência na época em que foi exibido (cerca de 0,246 milhão, segundo o ShowBuzz
Daily 34), esse episódio foi objeto de incontáveis artigos em sites especializados em
televisão e cinema, tendo sido aclamado por parte da crítica como um dos eventos
mais importantes da TV nas últimas 2 décadas.

(...) Eu acho que esse pode ser o episódio mais impressionante de


drama para televisão que eu vi nesses últimos 20 anos em que estive
me dedicando integralmente a essa mídia; sem mencionar o fato de
ele ser uma enciclopédia compacta dos estilos cinematográficos do
século 20 (incluindo até mesmo videoclipes e curtas experimentais) e
uma experiência visual, sonora, dramática, mitológica, filosófica e
emocional completa, se equiparando, e muitas vezes até em aparente
diálogo, com o arco final de 2001: Uma Odisséia no Espaço.
(ZOLLER SEITZ, 2017)35

A sequência escolhida para análise neste trabalho corresponde à porção


central do episódio, que parece se desenvolver em 3 atos mais ou menos distintos
entre si. Essa escolha se justifica pois esse segundo ato faz um uso bem efetivo e
radical da trilha musical para a obtenção de seu efeito, e não possui nenhum tipo de
diálogo em seus mais de 25 minutos de duração.
Aos 16:19, o episódio leva o espectador para o dia 16 de julho do ano de
1945, em White Sands, no Novo México, data e local onde fora realizada

34
METCALF, Mitch. UPDATED: SHOWBUZZDAILY's Top 150 Sunday Cable Originals & Network
Finals: 6.25.2017. In: Showbuzzdaily, 2017. Disponível em: <https://web.archive.org/web/20170628
042417/http://www.showbuzzdaily.com/articles/showbuzzdailys-top-150-sunday-cable-originals-
network-finals-6-25-2017.html>. Acesso em: 14 de out de 2021.
35
I’ve praised this one so many times on this site (even writing a stand-alone piece about it) that I don’t
know if I can add much — except to say that, upon reflection, I think this might be the single most
impressive episode of television drama I’ve seen in the 20 years I’ve been writing full-time about the
medium, not to mention a compact encyclopedia of 20th-century film styles (including music videos and
experimental shorts) and a complete visual, sonic, dramatic, mythological, philosophical, and emotional
experience equal to, and at times seemingly in conversation with, the final act of 2001: A Space Odyssey.
ZOLLER SEITZ,Matt. The 10 Best TV Episodes of 2017. In: Vulture, 2017. Disponível em:
<https://www.vulture.com/2017/12/best-tv-episodes-of-2017.html>. Acesso em: 14 de out de 2021.
64

“Experiência Trinity”, primeiro teste nuclear da história36, que veio a desencadear na


grande tragédia das cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki.

Tudo que se vê é o deserto em preto e branco, ao longe. O som dos ventos à


distância é cortado apenas pela voz de uma contagem regressiva, nos 16:42, com
um timbre metálico de rádio. “Dez, nove, oito, sete (…)”. Quando a contagem
termina, vê-se instantaneamente um clarão muito forte acompanhado do início
súbito e tenso da peça experimental “Trenódia37 para as vítimas de Hiroshima”, de
1960, composta pelo polonês Krzysztof Penderecki, conforme a câmera vai se
aproximando muito vagarosamente da nuvem cogumelo (figura 21) que se forma no
meio da tela.

Figura 21: Imagem da Primeira Explosão Atômica,conforme retratada no episódio 8 da terceira


temporada da série.
Fonte: PART 8. In: TWIN Peaks, 2017.

A peça em questão se caracteriza imediatamente por uma sonoridade muito


tensa, com violinos formando densos clusters sustentados em uma região aguda,
que são logo acrescidos dos metais, que adicionam ainda mais dissonâncias ao som
obtido. É como se os próprios instrumentos estivessem a pedir socorro, tamanha a
tensão e desconforto causados pela sonoridade, conforme o expectador é levado a
se aproximar continuamente da explosão.Conforme a imagem vai se aproximando

36
1945: Testada a primeira bomba atômica. In: DW Brasil. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-
br/1945-testada-a-primeira-bomba-at%C3%B4mica/a-592473>. Acesso em: 14 de out de 2021.
37
Ode sobre assunto triste, ou canto fúnebre. TRENÓDIA. In: DICIO, Dicionário Online de
Português. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/trenodia/#:~:text=substantivo%20feminino
%20Ode%20sobre%20assunto%20triste%2C%20ou%20canto%20f%C3%Banebre.> Acesso em: 14
de out de 2021.
65

da nuvem, ameaçadora, a música vai ganhando novas camadas de instrumentos,


mais graves e principalmente percussivos, que se chocam uns com os outros de
forma calculadamente desordenada, para o máximo desconforto. Sabe-se que a
notação musical utilizada para essa peça específica não tinha sinalização de
compassos e figuras musicais tradicionais (figura 22): “a duração das notas ou
gestos é indicado por marcações de tempo em segundos.”38

É em meio a essa atmosfera de caos sonoro proposto pela música, e com a


ajuda de efeitos adicionados a ela a fim de potencializar sua dramaticidade, que a
câmera nos leva ao interior daquela explosão, num dos momentos mais abstratos da
série. Toda a sequência poderia facilmente ser considerada como um videoclipe não
oficial para a peça de 8 minutos e 37 segundos de Penderecki.

Figura 22: Trecho da partitura da obra de Penderecki em questão.


Fonte: <https://www.pdfprof.com/PDF_Image.php?idt=165549&t=24>. Acesso em: 14 de out
de 2021.
38
“There are no barlines in the score; instead, the duration of pitches or gestures is indicated by
timings, in seconds.” KELLER, James M. Penderecki, Krzysztof: Threnody for the Victims of
Hiroshima. In: SFSymphony.org, 2017. Disponível em: <https://www.sfsymphony.org/Data/Event-
Data/Program-Notes/P/Penderecki-Threnody-for-the-Victims-of-Hiroshima>. Acesso em: 14 de out de
2021.
66

O espectador é levado como que em uma viagem pelas mais diferentes


escalas dos elementos da natureza, dentro da bomba atômica. As imagens são tão
desconexas e coesas quanto a música que toca. Explosões de fumaças, fogo, cores,
água, pontos que se movem como as partículas dentro de um átomo (figura 23). São
muitas as imagens que se sucedem e que parecem seguir a vibração imprevisível da
música que continua a tocar, caótica em suas diferentes seções.

Em meio a este ambiente, eis que aos 21:21 de episódio surge na tela a Loja
de Conveniência, mencionada por Philip Jefries (David Bowie) em sua aparição no
filme Os Últimos Dias de Laura Palmer (1992). Toda essa sequência é realizada
numa espécie de stop-motion entrecortado, que se relaciona fortemente com a
textura sonora mais esparsa e irregular que a música assume neste momento. Aos
22:32, a música cessa e há um som de vento que parece sofrer uma espécie de
efeito de tremolo muito rápido, que o deixa entrecortado e instável, como as
imagens. Um drone entra, à medida que o som e as imagens da Loja ficam ainda
mais instáveis e parecem sofrer uma espécie de “pane”. No ápice deste “pane”,
surge um transiente grave e metálico que parece levar ao interior do local, onde
finalmente há um maior silêncio. Lá dentro, em meio à escuridão, flutua uma criatura
misteriosa, sem rosto. O ser regurgita, então, com um som grave, uma espécie de
gosma viscosa no ambiente. Junto a essa substância, sementes, ovos, além de uma
espécie de tumor esférico com o rosto de Bob, ameaçador.

Figura 23: Viagem lisérgica pelo interior da Bomba Atômica.


Fonte: PART 8. In: TWIN Peaks, 2017.
67

Aos 24:48, a trenódia volta, então, com força total, à medida que a tela é
dominada novamente por imagens e texturas mais abstratas e indecifráveis que as
anteriores. Luzes e explosões douradas tomam conta até a aparição de uma espécie
de bolha ou gema de ouro, quando a música parece se acalmar novamente. A
câmera se aproxima lentamente e a atravessa. Uma vez em seu interior, a relativa
quietude é mais uma vez substituída por um arroubo dos violinos, conforme o
espectador é agora levado a uma viagem num aparente vácuo de partículas
avermelhadas até, enfim, chegar a um oceano revolto, cor lilás escuro. A música
cessa e dá lugar ao vento muito forte e o barulho das águas agitadas. A câmera
sobrevoa este oceano, em direção a uma rocha muito alta e comprida. Em seu
cume, há uma espécie de castelo ou fortaleza. É noite. Somos levados ao seu
interior.

Nos 24:54 de episódio, entra um ruído suave de vinil, e uma música repetitiva
toca lá dentro, numa textura jazzística e timbre metálico, como de rádio. O interior é
opulento e há uma mulher gorda, sentada no sofá. O styling é como o de um filme
do expressionismo alemão. Uma espécie de sirene abafada começa a tocar aos
30:10. No meio da sala, há um enorme objeto que se parece com uma chaleira ou
um sino preto, que destoa do resto do ambiente. A sirene parece vir dali. Surge
então, mais uma vez, o Gigante, de trás do objeto estranho. Ele o observa e aperta
um botão. O som cessa. Ele olha para a moça sentada e se retira da sala.

Ele se movimenta muito lentamente pelo interior do castelo, subindo escadas,


onde o ambiente é mais silencioso. Há o foley em primeiro plano, com os
característicos transientes invertidos dos passos no carpete, como nas cenas da
Sala Vermelha. Ao fundo, há o rumor de violinos, num synth repetitivo e suave, que
se torna mais forte e variado, conforme o personagem chega num ambiente muito
amplo, onde há uma espécie de tela de cinema, pela qual ela assiste os eventos que
haviam sido introduzidos poucos minutos antes aos espectadores: a explosão da
primeira bomba atômica; a Loja de Conveniência e Bob. O synth de cordas em
frequências agudas dão lugar a um timbre mais grave e sutil que sublinha este
momento, com uma melodia misteriosa e lenta, que se desenvolve majoritariamente
em semitons. A tela congela sobre o tumor com o rosto de Bob.

Os violinos voltam sustentados, reverberados e etéreos, conforme o Gigante


começa a flutuar sobre o chão. As cordas sintéticas ganham espaço, camadas e
68

intensidade, permanecendo lentas e solenes, conforme a mulher gorda entra e


observa extasiada o Gigante no ar. O tema instrumental se repete algumas vezes,
ora assumindo uma roupagem mais terna, frágil e silenciosa, ora ganhando
opulência, com crescendos da região média, apontando para uma resolução e logo
como que voltando ao início de sua progressão.

Até que, num dos ápices da música, a partir de uma luz dourada conjurada
sobre o crânio do Gigante, sai uma esfera dourada. Conforme a música continua a
tocar, doce, arrastada e etérea, vê-se dentro da esfera o rosto de Laura Palmer. A
mulher a beija e, então, a solta pelos ares. No telão, agora, vê-se o Planeta Terra. A
esfera luminosa com o rosto de Laura atravessa a tela e segue, em direção a ele. A
música vai diminuindo de volume, e permanece reverberando conforme a senhora
sorri e a observa pelo telão.

4.4.3 Parte 11: Brincando com fogo - (49:59 – 55:30)

O cenário representado é um restaurante luxuoso em Las Vegas. O primeiro


plano que se vê é de um pianista em trajes formais (figura 24), tocando uma espécie
de marchinha rápida, com ritmo alegre e melodia muito cantável, apesar de ser uma
peça totalmente instrumental. A música permanece no pano de fundo, mantendo um
clima um tanto quando relaxado e descontraído, de forma empática ao diálogo que
se desenvolve em uma das mesas do restaurante, ocupada por Dougie (Agente
Cooper letárgico, ainda recuperando sua consciência) e os Mitchum, irmãos
magnatas e vigaristas. Ambos falam sobre frivolidades em tom efusivo, agradecendo
a Dougie por ter-lhes resolvido um grande problema financeiro. O background
sonoro do restaurante neste momento também reforça um ambiente cheio e
movimentado, até mesmo festivo, onde conversas igualmente animadas e relaxadas
parecem acontecer em muitas outras mesas – ideia reforçada pela qualidade quase
infantil da música, com seu ritmo saltitante, desenvolvido em estacatos. Esse tom
inocente da trilha musical também remete diretamente ao estado de Dougie neste
ponto da trama: um personagem chaplinesco, em certa medida, seja pelo seu quase
silêncio constante (a não ser por uma ou outra palavra repetida de outros
personagens) e seu estado geral de semi-consciência que se materializa numa
pureza e num deslocamento típicos das crianças muito pequenas ou de idosos já
muito senis.
69

Figura 24: Pianista no restaurante em Las Vegas.


Fonte: PART 11. In: TWIN Peaks, 2017.

Eis que aos 50:59 de episódio, após um brinde, a música anterior se conclui
rapidamente e, então, uma segunda se inicia. Em um segundo, o tom da cena muda
consideravelmente. Quase uma antítese da música anterior, essa segunda peça tem
um andamento muito lento e se inicia por três notas tocadas consecutivamente, de
forma muito pausada, na região mais aguda do piano – chamando a atenção de
forma imediata, já que essa diferença brusca de andamento potencialida o peso
dramático dessa peça que se inicia, também mais alta na mixagem que a anterior.
Além disso, logo na sua primeira nota, o som do background do restaurante se altera
imediatamente, ficando repentinamente muito mais silencioso; quase imperceptível.
É como se a música tomasse conta de todo o ar presente em cena.

É importante também notar a sincronia da entrada dessa segunda peça com


a própria performance e os movimentos dos personagens alí representados. A
primeira nota entra junto a uma mudança significativa no semblante de Dougie, que,
sério, parece se conectar instantâneamente com a música (figura 25). Ele se vira
para mirar o pianista mais uma vez, conforme a peça se desenvolve, muito lenta,
silenciosa e melancólica. É como se este início criasse uma espécie de ponto de
suspensão na cena, onde há uma quebra inesperada do clima anterior, mas não se
sabe exatamente o que está acontecendo agora. Até que uma nova personagem
entra em cena, muito emotiva ao ver Dougie. Ela o abraça fortemente e o agradece
por tudo que ele fizera por ela anteriormente (figura 26). É curioso notar o quanto a
nova música, apesar de extremamente melancólica e lenta, é empática à expressão
70

de gratidão daquela mulher a Dougie e, assim, mantém o ar de pureza e inocência,


mas por um viés bastante diferente da anterior.

Figura 25: Dougie olha para o pianista.


Fonte: PART 11. In: TWIN Peaks, 2017.

Neste trecho há uma melancolia e uma tensão dramática muito maiores


implícitas. Essa é uma das faixas originais compostas por Angelo Badalamenti
especialmente para Twin Peaks – The Return e seu título é Heartbreaking,
adequadamente. Sabe-se, através de uma entrevista cedida por Dean Hurley,
funcionário do estúdio de Lynch, que o diretor a encomendara de Badalamenti da
seguinte forma: “Eu preciso de músicas italianas de restaurante. Dê-me três: uma
delas deve ser alegre, uma outra deve ser lenta, triste e de quebrar o coração.”39

Após a senhora e seu filho irem embora do restaurante, por volta dos 52:39, o
pianista volta rapidamente a tocar algo mais alegre e ágil, ainda que mais
melancólico que a primeira peça. O background do restaurante também volta àquela
ambiência mais festiva apresentada anteriormente. Dougie e os Mitchum brindam
mais uma vez e comemoram seu sucesso. Com o aparecimento dos créditos finais,
o pianista, em foco, volta a tocar a música lenta e melancólica, que permanece
dando o tom do encerramento do episódio.

39
“I need some Italian restaurant music. Gimme three songs: one of them should be kinda peppy, one
of them should be slow and sad and heartbreaking.” DOM, Pieter. The story behind Angelo
Badalamenti’s “Heartbreaking” and the pianist playing it in Twin Peaks part 11. In:
WelcomeToTwinPeaks.com, 2017. Disponível em: <https://welcometotwinpeaks.com/music/angelo-
badalamenti-heartbreaking-the-pianist/>. Acesso em: 11 de nov de 2021.
71

Figura 25: A senhora agradece a Dougie.


Fonte: PART 11. In: TWIN Peaks, 2017.

5 EXPERIMENTO AUDIOVISUAL: UM NOME

5.1 O IMAGINÁRIO SONORO DE TWIN PEAKS: DIAGNÓSTICO E DIRETRIZES

De acordo com as análises realizadas no capítulo anterior, pode-se identificar


quatro pontos-chave na identidade sonora da série estudada:

1. Background: em várias das sequências analisadas, é notável um uso


criativo e artístico do background, muito mais do que apenas como um instrumento
de criação de verossimilhança. O background em Twin Peaks é frequentemente
empregado a fim de obter efeitos dramáticos específicos, sendo um importante
catalisador de emoções e climas. A sua própria subtração do campo sonoro de
cenas como as do Roadhouse (segunda temporada) e do restaurante (terceira
temporada), é uma forma de tirar o expectador do plano objetivo e o levar para
dentro dos personagens. Além disso, é no background que se encontram muitos dos
sons tipicamente associados à obra, e que se relacionam com elementos centrais
dentro da sua mitologia: os ventos soprando nas árvores, as cigarras e corujas
cantando na noite, o rumor da eletricidade…

2. Música: de ar retrô e melancólico, a trilha musical é dominada, em grande


medida, por timbres eletrônicos reverberados e andamentos lentos, criando uma
sonoridade atmosférica e envolvente que remete a ritmos como o synthwave, o
vaporwave, bem como ao dream pop, o que acentua o ar oitentista da obra. Ao
mesmo tempo, ela não se furta de explorar outros ritmos contrastantes como,
72

notadamente, o jazz – que também marca uma presença predominante no


desenrolar da narrativa. Para além disso, o conjunto de tópicas disfóricas (cidade
pacata, homicídio, mundo dos sonhos, ombra, surrealismo, consciência alterada),
combinado aos sons da natureza, citados acima, além de efeitos e distorções de
vozes, contribui muito para constituir uma característica atmosfera de suspense,
mistério, drama e absurdo.

3. Uso de sons naturais artificializados: este é um ponto de entrelaçamento


entre os dois itens citados anteriormente, uma vez que, na série, o background
assume diversas vezes uma dimensão musical, pela natureza de seu sound design,
bem como a música é, em geral, bastante atmosférica, com notáveis influências de
música ambiente. Em sequências como a que foi analisada no episódio sete da
segunda temporada evidenciam esse uso de sons concretos do background que se
mesclam e, por vezes, se confundem com a trilha musical, de modo que é quase
impossível dissociar um do outro. Sendo assim, há uma notável hibridez nas
texturas sonoras empregadas pelo sound design da série: ventos que parecem
manipulados artificialmente para soarem mais graves e ameaçadores; ruídos de
animais noturnos, saturados e cortantes; isso sem falar nos inúmeros momentos em
que a voz humana é alvo de manipulações, em cenas-chave da narrativa, para
evidenciar um estado de espírito mais específico dos personagens em cada
momento.

4. Presença de drones: essa é, talvez, uma das características mais


elementares do comportamento sonoro de Twin Peaks em toda a sua trajetória. Os
drones são usados, muito notavelmente, para criar tensão em determinadas cenas,
mas não somente pra isso. Tanto na série clássica quanto no revival eles são
usados frequentemente para amarrar sequências inteiras numa mesma atmosfera,
criando uma correlação narrativa subjacente entre situações diversas.

Esses são importantes pontos de partida para o que será aplicado no


Experimento Audiovisual a ser realizado, na forma de um mini curta-metragem
original.

5.2 UM NOME: PROCESSO DE CRIAÇÃO (MATERIAIS E MÉTODOS)

Partindo das diretrizes sonoras descritas acima, foi iniciado o


desenvolvimento de um Experimento Audiovisual. Para garantir a possibilidade de
73

concretização do projeto, considerou-se desde o princípio a limitação de recursos


como condição fundamental para a sua realização. Os critérios estabelecidos foram:

1. Equipe reduzida: além dos dois integrantes do grupo, que cuidariam de


toda a parte da concepção e desenvolvimento de roteiro, foi admitida a possibilidade
de convidar: um fotógrafo para auxiliar na captação das imagens; um ator ou atriz;
um montador;

2. Locação acessível: para facilitar questões logísticas, o cenário do curta


deveria ser a casa de um dos integrantes do grupo e os objetos de cena deveriam
ser objetos já presentes no espaço, ou coisas de fácil acesso;

3. O vídeo final deveria ter de 5 a 10 minutos de duração;

4. A ação filmada deveria ser centrada em um único personagem;

5. Como o ponto de partida para o projeto é o imaginário sonoro de Twin


Peaks, pareceu razoável que o mini-curta tangenciasse temas apresentados pela
série, mas que fosse uma obra original e autônoma, fechada em si mesma. Deste
modo, uma proposta que parte de recursos em comum (o uso específico do som
como elemento de imersão) para poder estabelecer um diálogo próprio.

Com o estabelecimento desses pontos, foram feitas discussões e conversas


entre os membros do grupo e o professor-orientador sobre as possibilidades
narrativas e estéticas, dentro desses moldes. Através dessa interação, somada a
alguns fragmentos de ideia em comum entre os alunos, bem como as possibilidades
do espaço disponível para a filmagem e seus objetos de cena, em conjunto com a
atmosfera já proposta pela obra de Lynch, emergiu, então, uma situação – a “ideia”
central para o curta, no conceito lynchiano do termo. Um conceito de narração e
imagem somou-se às diretrizes sonoras já preestabelecidas para criar uma
ambiência específica.

Para o desenvolvimento da ideia e do roteiro, o grupo se valeu,


principalmente, de aulas do Curso Online de Cinema, oferecido pelo cineasta e
crítico de cinema Arthur Tuoto. Tendo como principal referência o livro Story, de
Robert McKee, para as aulas de roteiro do seu curso, Tuoto apresenta vários
conceitos centrais para o desenvolvimento de um roteiro cinematrográfico. Com
esse conhecimento, foram produzidas então a Logline, a Storyline, e Sinopse Longa
74

e o Argumento do filme (todos disponíveis nos Anexos deste trabalho). Com o


Argumento pronto, pôde-se dividir as cenas e passar para a escrita do roteiro em si.

O título provisório do projeto era “Mania”, mas paralelamente ao processo de


desenvolvimento do roteiro, um dos integrantes do grupo estava finalizando uma
canção autoral em cima de um poema, e tanto a música quanto o poema pareceram
não apenas se encaixar, mas enriquecer mais a proposta do curta, adicionando mais
camadas de sentido. Deste modo, foram feitas adaptações no roteiro e o filme foi
rebatizado com o título da canção, “Um Nome”, e decidiu-se utilizá-la de alguma
forma como trilha musical. A canção em questão se liga ao lado mais jazzístico e
lírico da trilha musical da série. Começando como uma espécie de balada muito
lenta, ela se desenvolve numa bossa vagarosa e depois adquire dimensões mais
dançantes. Costurada com muitas dissonâncias harmônicas e melódicas, “Um
Nome” flerta com o atonalismo, ao mesmo tempo que oferece a suavidade da
bossa-nova, resultando numa adaptação interessante das texturas musicais
propostas na série para um contexto brasileiro e contemporâneo.

Tendo o roteiro pronto e a trilha musical encaminhada, foi realizado contato


com profissionais para auxiliarem com a filmagem (o fotógrafo Laio de Almeida) e a
montagem (feita por Vitor Gomes), bem como a atriz a interpretar a personagem
central do curta (Vivian Rodrigues). Neste processo, foi desenvolvido um roteiro
técnico, onde cada cena foi decupada em vários planos, descritos tão
detalhadamente quanto possível, a partir do conceito de direção preestabelecido.
Esse processo também foi realizado com o auxílio das aulas sobre decupagem do
Curso Online de Cinema, ministrado por Tuoto.

Antes das filmagens, foram realizados alguns testes com lentes pelo
fotógrafo, junto à direção, na locação; além de um ensaio geral, com a atriz e a
equipe completa de mais três pessoas (exceto o montador). As filmagens em si
foram realizadas nos dias 11/09 e 18/09. Após isso, as imagens foram enviadas para
o montador. Com a montagem encaminhada, foi realizada a captação da trilha
musical nos estúdios da Fatec, nos dias 28/09 e 06/09, em formato de voz e piano e
piano instrumental.

Após isso, começaram a ser captados e desenvolvidos os sons necessários


para cada cena do curta, entre vozes, backgrounds, foleys, drones, efeitos
75

dramáticos. Em geral, a realização de toda essa parte de pós-produção ficou para as


duas últimas semanas do mês de outubro de 2021.

Para a produção dos drones utilizados em “Um Nome” foram usados


principalmente sintetizadores midi nativos do Reaper, bem como sons concretos
captados in loco no local de gravação, que possui um background naturalmente
caótico, com passagem constante de carros, sirenes, buzinas e instrumentos
musicais sendo tocados nas casas vizinhas, que acabaram ajudando a compor o
campo sonoro do filme. Em alguns pontos também foram usados sons ambientes de
bancos de som online, como ventos e estruturas chacoalhando. Esses sons foram
manipulados, colados e mesclados digitalmente a fim de, com os foleys, também
captados e mixados totalmente pelos membros do grupo, darem forma à atmosfera
presente no trabalho final. A captação e mixagem dos sons foi feita,
aproximadamente, entre os dias 18 de outubro e 8 de novembro de 2021, utilizando
programas como DaVinci Resolve e Reaper.
.

6 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Twin Peaks é uma saga muito particular em vários níveis. Seja por ter sido um
dos primeiros exemplos de um programa de TV capitaneado por um prestigiado
cineasta autoral; por sua recusa quase sistemática em dar ao expectador o que este
acredita querer; ou mesmo pela sua capacidade de, enquanto frustra a maior parte
das expectativas, manter-se relevante e atual em contextos históricos tão diferentes.
Como Chion (1995) já assinalara sobre a natureza do processo de criação da obra
de Lynch como um todo, e conforme se compreende melhor o processo de criação
da série em si, sob a luz do conceito de Stimmung, fica evidente o quão importante é
o emprego do som para o seu DNA estético. As análises sonoras apresentadas
nesse trabalho, através da leitura de ambiências, vêm reforçar a presença de um
imaginário sonoro relativamente coeso durante toda a trajetória da série, mas que é
plástico e diverso o suficiente para abarcar os drásticos contrastes de tom que a
obra apresenta.

Os principais elementos constitutivos desse “imaginário sonoro” de Twin


Peaks – conforme enumerados anteriormente no item 5.1. do presente trabalho –
permanecem, em suma, os mesmos em todas as suas encarnações:
76

1. Uso criativo e dramático do background, por vezes com textura elusiva e/ou
quase musical;

2. Música de ar retrô e melancólico, indo do jazz a ritmos como o synthwave,


o vaporwave e o dream pop, passando também pelo atonalismo;

3. Uso de sons naturais artificializados, ponto de culminância entre a trilha


musical e o sound-design;

4. Emprego de drones na costura dramática de várias cenas.

Todos esses elementos estão presentes na maioria das sequências


analisadas, a despeito das grandes diferenças percebidas pelo público entre cada
um dos momentos da obra. Apesar dos elementos serem, em geral, parecidos, a
maior diferença se dá na forma e nos diferentes contextos em que são empregados.
Dos quatro itens citados, aquele que possui mais variações significativas ao longo
do tempo é, sem dúvidas, o segundo: a música.
Se a Twin Peaks clássica era associada principalmente ao ar jazzístico e
misterioso da maior parte de seus temas originais, por vezes com algum grau de
humor ácido e sensualidade, no revival já quase não há mais traço de jazz. Na
verdade, apesar de conter alguns novos temas originais significativos compostos por
Angelo Badalamenti, a terceira temporada da série se vale muito mais de músicas já
preexistentes de artistas do mundo real. A longa sequência analisada da Parte 8, ao
som da “Trenódia para as vítimas de Hiroshima”, de Penderecki, é um exemplo a se
destacar. Além disso, no decorrer dessa última temporada há inúmeras cenas (uma
em praticamente todos os episódios) onde artistas do cenário indie atual, como
Chromatics, Eddie Vedder e Nine Inch Nails, aparecem tocando no Roadhouse,
casa noturna de Twin Peaks. Sendo assim, pode-se dizer que a obra se afasta um
pouco daquela sonoridade associada aos seus episódios mais antigos, para
alcançar uma dimensão mais próxima de nossos tempos, mais múltipla e
contemporânea, mas ainda dentro do universo de melancolia e nostalgia que
sempre fez parte da identidade musical da série.

Seguindo por esse mesmo caminho, as próprias composições originais desse


ciclo mais recente de episódios mostram-se mais múltiplas. A cena final da
sequência analisada do episódio oito apresenta uma peça instrumental à base de
synths que flerta com o atonalismo. Em contraste, tem-se as peças para piano da
77

cena analisada do episódio onze, compostas por Badalamenti, de ares muito mais
tradicionais (“música italiana de restaurante”, como pedira Lynch).

Quanto aos demais elementos, todos se mantém, sendo usados com o


passar do tempo de forma cada vez mais densa e inventiva, conforme a cena do
filme “Os Últimos Dias de Laura Palmer” analisada nesse trabalho já sinalizava e
sequências como a das Partes 3 e 8 do revival vieram confirmar e aprofundar.
Olhando-se para as análises de maneira cronológica, pode-se apontar para uma
radicalização dos recursos estéticos usados nestes momentos “bizarros” ou de
“horror” da série. Se no início esses momentos eram regados de trilhas musicais
irônicas e um certo frescor do que é “novo”, com o passar dos episódios o que
prevalece é uma atmosfera de caos e impenetrabilidade. Os drones são cada vez
mais densos, ameaçadores e descontínuos, bem como as camadas de sons
concretos, formando texturas de “outro mundo”, substituindo cada vez mais as
texturas musicais jazzísticas. O swing de “The Dance of the Dream Man” dá lugar ao
à balada decadente de “Theme for Fire Walk With Me”, bem como ao doom jazz e,
daí, chega-se ao atonalismo mais radical de Penderecki.

Sendo assim, pode-se concluir de fato que, apesar de todas as suas


mudanças e atualizações no decorrer dos anos, muitos de seus principais elementos
sonoros continuam presentes, de forma atualizada – e isso talvez seja um dos
maiores trunfos e sutilezas da série: conseguir expandir-se e transformar-se tanto ao
longo dos anos, porém mantendo uma identidade suficientemente forte e coesa
junto a essa disruptividade.

Dito isso, toda o desenrolar da produção do Experimento Audiovisual se deu


de forma bastante natural. Ambos os integrantes do grupo, embrenhados no
universo da série por um tempo significativo, tiveram o ensejo de construir algo a
partir daquela atmosfera tão específica e interessante. A ideia inicial apresentou-se
rapidamente, e de forma bastante similar para ambos, inspirada pelas ambiências de
Twin Peaks, e também necessariamente direcionadas pelas evidentes restrições de
recursos, conforme relatado no item 5.2. do trabalho, somado a um momento em
que a pandemia do Coronavírus ainda permanecia como uma ameaça. Todos os
membros da equipe, no entanto, estavam vacinados, e foi possível a produção do
curta. A obra final foi desenvolvida de forma a seguir os preceitos de Lynch,
respeitando a “ideia” inicial como a fonte fundamental de qualquer atitude estética
78

tomada. Isso resultou num processo, por vezes, quase investigativo, de sondagem
dessa “ideia” e seus possíveis atributos físicos e sensoriais. Em outros momentos,
como na produção de áudio, o processo de criação de timbres e texturas se deu de
forma muito experimental, também conforme o próprio processo lynchiano, de
acordo com o que fora relatado por Dean Hurley, seu engenheiro de áudio.

Portanto, pode-se dizer que todo o desenvolvimento do projeto teve um


caráter bastante permeável, aproximando-se do que Gumbrecht (2014, p. 28)
descreveu como um processo “contra-intuitivo”, ou seja, que não se furta de
distanciar-se dos caminhos previstos pela racionalidade, para experimentar e deixar-
se ser afetado pelo processo em si – sem prender-se a métodos preconcebidos.
Sendo assim, foi uma construção permeada por alguns imprevistos e coincidências
que enriqueceram o processo, a exemplo da trilha musical – uma canção que um
dos integrantes desenvolvia paralelamente há algum tempo, para um outro projeto, e
que acabou mostrando-se como detentora do tom e sonoridade ideais para a
ambientação do curta, passando até mesmo a nomeá-lo. Da mesma forma, foi
incluída a cena do sonho com o osso, que também veio de um poema escrito num
outro contexto mas que, de certa forma, parecia enriquecer mais a perspectiva da
“ideia” trabalhada no filme. Por fim, o poema de Orides Fontela recitado na abertura
também foi dessas adições tardias que, no fim, apenas somam e potencializam as
leituras possíveis da obra.

O produto final, diferente do que havia sido previsto inicialmente, tem uma
duração de mais de 10 minutos, chegando à marca de 14 minutos e 10 segundos.
Pela inexperiência da maior parte dos integrantes da equipe com a produção
audiovisual, o processo como um todo foi desafiador, desde a elaboração do Roteiro
Técnico, às filmagens e à pós-produção. No âmbito da produção de áudio, a
experiência colocou à prova inúmeras habilidades adquiridas e/ou aperfeiçoadas
durante o curso de Produção Fonográfica. Foi particularmente rica a oportunidade
de arranjar e produzir uma trilha musical original para a obra, bem como valer-se do
arsenal de recursos técnicos digitais e/ou analógicos que tem-se disponíveis em
casa hoje em dia, a fim de produzir sons e ambiências fantasmagóricas, envolventes
e assustadoras junto às imagens já gravadas e editadas, a fim de atingir o efeito
ditado pela “ideia” inicial. “Um Nome” é um produto audiovisual que tem como
79

inspiração fundamental o som e é através dele que busca estabelecer seu maior
diálogo com quem assiste.
.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda que seja importante que haja essa documentação e elucidação


pormenorizada dos aspectos técnicos de uma obra, é significativo notar que o
conceito de Stimmung seja o principal norteador desse trabalho. A produção de
áudio, por mais técnica e tecnológica que seja, está sempre, em suma, ao serviço da
arte (ou, ao menos, de uma mensagem). Para a grande maioria das pessoas, o que
fica do confronto com as obras são os afetos que permanecem. Ora o afeto
momentâneo, ora a decantação do que esse encontro gera, a dimensão sensorial é
essencial para a compreensão do fenômeno da arte e, por extensão, do áudio.
Apesar de ser um meio essencialmente híbrido, o audiovisual tem, por vezes, o seu
lado sonoro menosprezado em discussões que envolvam um público mais leigo.
Sendo assim, uma das potências da história de Lynch com o cinema, e de seu
processo de criação como cineasta, é desvelar o óbvio: que o áudio é, por sua
inerente tridimensionalidade, o aspecto mais tangível, no sentido literal do termo, no
meio audiovisual. Sem a vibração sonora, o cinema perde muito da sua capacidade
de “engolfamento” do espectador em seus Stimmungs específicos.

Nessa imagem do “engolfamento”, há uma multiplicidade de leituras


possíveis. Por um lado, há o que Martoni chamou muito apropriadamente de o
“reencantamento do mundo pela técnica”, que está na base do conceito da “leitura
de ambiências”, ou seja: através da materialidade das obras, entender os meios
utilizados pelos artistas para se chegar a um determinado afeto no espectador. Por
outro lado, pode-se falar do “engolfamento” do próprio artista no processo de feitura
de uma obra, tão bem exemplificado por Lynch através de seu conceito de “ideia”
como a essência incorpórea fundamental de qualquer obra – quase como uma
entidade autônoma, viva e pulsante.

Neste sentido, parece potente, desafiador, e até mesmo necessário, que haja
de mais em mais trabalhos acadêmicos que tenham como proposta embrenhar-se
por esses limites escusos entre o técnico e o sensorial. Por contraditório que seja,
pela sua própria natureza quase “anti-metodológica”, a favor de um processo contra-
intuitivo, que se guie através de “palpites”, o conceito de Stimmung é um trunfo
80

importante para que isso seja realizável (GUMBRECHT, 2014, p.28). É através
deste conceito que foi possível, para o presente trabalho, falar sobre esses “efeitos
de presença” causados pela materialidade das obras na vida física e emocional do
espectador – processo documentado através da “leitura de ambiências”, prevista por
Martoni –, mas também sobre o processo de materialização de uma obra a partir das
sensações do artista, relacionando-o ao conceito de “ideia”, apresentado por Lynch.
É na união dessas duas polaridades que reside, talvez, o principal desafio desse
trabalho, dada a natureza intrinsecamente subjetiva de todo esse processo. Sendo
assim, parece necessário dizer que este trabalho não se pretende enquanto um
“guia de como-fazer-um-filme” para produtores fonográficos (embora isso também
pareça ser uma boa ideia para trabalhos futuros), mas muito mais como uma
demonstração do grande poder que o áudio tem de conjurar as mais específicas e
ambíguas sensações, de dar vida a mundos absurdos, e ser uma potente plataforma
de inspiração para novas ideias e obras.

Dentro de todas as etapas percorridas, tanto na parte teórica quanto na


prática, pode-se dizer que o momento de junção dos sons às imagens foi, muito
provavelmente, o mais revelador de todo o caminho na produção de “Um Nome”.
Por mais satisfeito que o grupo tenha ficado com as imagens capturadas, é inegável
a dimensão e palpabilidade que o som as trouxe. A produção de um filme mostrou-
se, em grande parte, um exercício de desapego, conforme Tuoto (2021) coloca em
seu curso. Isso ocorre pois, por mais fiel que o cineasta se mantenha à “ideia” inicial
e toda a sua atmosfera, o cinema é um meio essencialmente transmidiático em seu
processo de produção. Do roteiro à decupagem (texto), às referências de planos
(fotografias) e à filmagem em si – com a luz, as locações e as câmeras disponíveis –
é natural que adaptações tenham que ser feitas, dada a própria natureza de cada
mídia, mas também da tecitura da realidade que circunda a produção da obra e os
autores. A partir desse ponto de vista, o momento da adição do som às imagens
teve os ares de uma “volta pra casa”, como se a obra, então, tivesse finalmente
“voltado” a ser aquela “ideia” fundamental, ou tão próxima a ela quanto
materialmente possível no momento.

O caminho percorrido pelo grupo vem, por fim, apenas reforçar a mensagem
que a própria trajetória de Lynch com o cinema aponta. Ao mesmo tempo que
parece mostrar que algo do objetivo principal com esse Experimento foi alcançado:
81

construir uma breve narrativa audiovisual partindo de diretrizes sonoras, e onde o


som tenha um papel ao menos tão proeminente quanto a imagem na experiência de
quem assiste.

Que esse trabalho possa, finalmente, servir de inspiração e de provocação


para que cada vez mais pessoas no áudio estejam dispostas a explorarem esse
terreno pantanoso das sensações desencadeadas pelo som e, partindo disso,
sintam-se autorizadas a assumirem o papel de agentes criadores para muito além
do campo da acústica, da indústria musical e seus derivados.
82

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14, nº23, dezembro de 2003. p. 5 – 42.

_____. Para que serve um musema? Antidepressivos e a gestão musical da


angústia. Disponível em: <https://tagg.org/articles/xpdfs/paraqueserveummu
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_____; CLARIDA, Bob. Ten Little Title Tunes. (1ª ed.). New York e Montreal: The
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TRENÓDIA. In: DICIO, Dicionário Online de Português. Disponível em:


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TUOTO, Arthur. Curso Online de Cinema, 2021. Disponível em: <https://cursotuoto.


club.hotmart.com/login>. Acesso em: 12 de nov de 2021.

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Disponível em: <https://www.cahiersducinema.com/produit/top-10-des-
annees-2010/>. Acesso em: 27 de abril de 2021.

TOP 10 2010-2019 des Cahiers du cinema. Cahiers du cinema, 2019. Disponível


em: <https://www.cahiersducinema.com/produit/top-10-des-annees-2010/>.
Acesso em: 27 de abril de 2021.

TWIN Peaks (Temporadas 1 e 2). Direção: David Lynch et al. [S. l.]: Lynch/Frost
Productions, 1990-1991. 10 DVDs (1501 min.), son., color.

TWIN Peaks. Direção: David Lynch. Nova Iorque: Showtime, 2017. 18 vídeos (1025
min.), son., color.
87

TWIN Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer. Direção de David Lynch. 1992. 134
min.

VANDERWERFF, Emily. Is Twin Peaks a movie or a TV show? The answer’s more


complicated than you’d think. Vox, 2017. Disponível em: <https://www.vox.co
m/culture/2017/12/8/16742798/twin-peaks-movie-or-tv-show>. Acesso em:
27 de abril de 2021.

ZOLLER SEITZ,Matt. The 10 Best TV Episodes of 2017. In: Vulture, 2017.


Disponível em: <https://www.vulture.com/2017/12/best-tv-episodes-of-
2017.html>. Acesso em: 14 de out de 2021.

_____. David Chase on the Legacy of Twin Peaks. In: Vulture, 2015. Disponível
em: <https://www.vulture.com/2015/05/david-chase-twin-peakslegacy.html>
Acesso em: 06 de nov de 21.
88

APÊNDICES

APÊNDICE 1 – Desenvolvimento de Roteiro

Logline

Uma menina acorda um dia e vai se dando conta que não é mais dona de sua
casa. Tudo é igual e nada mais é igual. Chegam novos moradores. Para ficar.

Storyline

Num domingo cedo, uma menina acorda em sua casa. Tudo parecia indicar um
início de dia como todos os outros mas, apesar de tudo estar em seu devido Iugar, ela
percebe que há algo de diferente. Alguém esteve lá durante a noite e parece ter deixa-
do rastros: um pequeno quadro preto numa parede e um estranho objeto de ferro ver-
nacular todo perfurado sobre a mesa de centro. E eles parecem querer se comunicar.

Sinopse Longa

É domingo de manhã. Após ter um sonho estranho, ela acorda em seu quarto,
que parece ter passado a noite inteira de portas e janelas abertas. Incomodada, ela vai
até a sala. Uma outra pessoa anda pela casa.

Há dois objetos misteriosos que não estavam lá antes: um quadro preto e um


paralelepípedo comprido de metal todo perfurado. Eles captam a sua atenção e um
chiclete aparece. Ela masca esse chiclete, que transforma em várias pequenas bolas, que
organiza sobre a mesa de centro, até que o objeto de metal começa a exalar uma fumaça
pelos poros. Ela se assusta e tampa todos os seus buracos com bolas de chiclete.

Aliviada e atordoada, no banheiro ela conversa com seu reflexo e conjura uma
nova figura misteriosa dentro da casa.
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Argumento

Ela lava o rosto na pia, com água apenas, e se mira no espelho. Silêncio. Ela
vira o rosto para trás, em direção à cama, de modo distraído e irrefletido, como se
tivesse pensado ou notado algo de curioso. Sempre silêncio.

Antes ela estava dormindo, e sonhava: um osso, flutuando sobre o céu azul
sem nuvens. Um osso, flutuando no céu noturno, entre fumaças. Uma voz: algo
sobre si, sobre distâncias e pontes. Som de mastigação.

Desperta no quarto muito claro, pela manhã, como se tivesse passado a noite
inteira aberto. A luz branca de um dia nublado, mas muito iluminado, entra pela porta
da sacada, lavando o interior do quarto. Ela acorda, como incomodada pelo excesso
de luz. O quarto completamente vazio. E frio. Sem cor.

De volta ao quarto, ao sair do banheiro. Tudo continua muito claro, vazio e


“arreganhado”. Mesmo as portas do guarda-roupa estão abertas e hã uma camisa jogada
no chão. Uma camisa florida. Ela observa por alguns instantes, curiosa e
desanimada. Pega a camisa misteriosa, olha mais uma vez, com estranhamento,
devolve ao cabide e fecha o guarda-roupas

Saindo do quarto, passa pelo corredor muito comprido, em direção à sala. Ao


chegar lá, ela se senta no sofá. Ela manda uma mensagem para alguém,
perguntando se ainda não tinham chegado. O clima é de silêncio, pausa e tensão.
Uma leve irritação em seu semblante. Ela não consegue ficar à vontade, embora
tente se acalmar: sua postura é reta, dura e tensa.

Ela olha para a parede da frente e respira fundo várias vezes, buscando se
induzir a um estado mais meditativo e tranquilo. Neste momento, pode-se ver que uma
outra pessoa anda pela casa. Um homem, vestido com as mesmas roupas que ela
usa. Os dois, no entanto, não parecem reconhecer a presença um do outro
diretamente naquele mesmo ambiente.

Pela primeira vez naquele dia, ela olha para a superfície da mesa de centro e
tudo parece bem, até que ela se dá conta da presença de um objeto que a chama a
atenção, como um ímã. Deste objeto, seus olhos fluem diretamente para um pequeno
quadro na parede, em frente à mesa de jantar. Completamente preto, jamais estivera alí
antes. Ela leva um susto, se levanta e anda até ficar defronte o quadrado escuro, sem
entender, com o cenho comprimido.
90

Ao confrontar o quadro de frente, ela vira seu rosto, desta vez, diretamente para
o objeto misterioso sobre a mesa de centro. Todo perfurado, escuro contra a luz que
vinha de fora. Ela volta a contemplar o quadrado preto e, ao baixar o olhar, se depara
com um chiclete sobre a mesa de jantar. A figura vestida com a mesma roupa que ela
passa agora por trás dela, mas nenhum parece ainda reconhecer a presença do outro.
Ela observa o chiclete sem ter ainda dado um passo sequer. Ela vai até a mesa e o pega
nas mãos.

No sofá novamente, ela se senta, abre e masca o chiclete. Ao olhar novamente a


sua volta, ela percebe que há chicletes espalhados por toda parte, pelo chão, pelo
outro sofá, sob a mesa de centro. A cada chiclete mascado, ela forma uma bola perfeita
que coloca sobre a mesa de centro. Organizando linhas e colunas de bolas de chiclete,
seguindo algum tipo de lógica desconhecida. A cada chiclete mascado, mais barulhento
fica o ambiente, e mais compulsiva e concentrada ela parece no processo.

Eis que o objeto estranho e todo perfurado começa a soltar fumaça pelos
seus buracos. Seus olhos se viram para ele, em curiosidade. Nos seus lábios, há um
resqu ício de um sorriso, misto de excitação e secreto prazer. Ela olha alarmada para o
quadro preto, sua respiração fica muito ofegante e ela pega, então, o objeto e obstrui
cada um de seus furos com uma bola de chiclete que ela acabara de fazer. Ela acende
um cigarro e respira, aliviada.

Ela se levanta, vacilante, se dirige novamente através do corredor, agora


mais escuro e ameaçador. Há outras pessoas lá, mas ela não parece se dar conta.
Ela se dirige diretamente ao banheiro. Lava o rosto com água. O barulho da água pelo
ralo parece um barulho de descarga. No espelho, ela se olha, ameaçadora e cansada. Há
uma nova marca em sua escápula. Uma pinta negra. Ela fala algo quase
incompreensível, para o seu próprio reflexo. Qual é o seu nome? Ela dirige seu olhar
para a cama. Tudo fica escuro.

Na sua cama, antes vazia, agora surge oque parece ser uma nova figura
masculina, também portando suas roupas.

FIM
91

APÊNDICE 2 – ESCALETA PARA "UM NOME", ROTEIRO DE VICTOR BACCILI

1 - INT. BANHEIRO - MANHÃ


Ela lava o rosto em frente ao espelho. Olha em direção à cama.
2 - INT. QUARTO - MANHÃ
Ela dorme. Sonha profundamente.
3 - EXT. CÉU AZUL (SONHO) - DIA
Um osso levitando no céu azul. "Sem corpo".
4 - EXT. CÉU NOTURNO (SONHO) - NOITE
Um osso levitando no céu noturno, em meio à neblina.
ESCURIDÃO. Voice-over. Mastigação.
5 - INT. QUARTO - MANHÃ
Ela acorda e vai ao banheiro. O quarto está todo aberto.
6 - INT. QUARTO - MOMENTOS DEPOIS
Ela sai do banheiro. De volta ao quarto, ela percebe uma camisa no chão, sob o
guarda-roupas aberto. Ela coloca a camisa no cabide e fecha o guarda-roupas.
7 - INT. CORREDOR - DIA
Ela passa pelo corredor em direção à sala.
8 - INT. SALA - DIA
Ela senta no sofá. Está tensa. Manda mensagem para alguém, pergunta se ainda
não tinha chegado. Há mais alguém na casa,um homem, mas ela não vê.
9 - INT. SALA - MOMENTOS DEPOIS
Ela percebe um objeto novo e estranho sobre a mesa de centro, e um quadro preto
na parede, em frente à mesa de jantar. Um chiclete aparece. Ela o masca.
10 - INT. SALA - MAIS TARDE
Ela masca muitos chicletes e os organiza sobre a mesa de centro. O objeto estranho
solta uma fumaça pelos seus furos. Ela se assusta. Anda em direção ao corredor.
11 - INT. CORREDOR - FIM DE TARDE
Ela anda pelo corredor, em direção ao quarto. Há mais pessoas no ambiente.
12 - INT. QUARTO - FIM DE TARDE
Em direção ao banheiro.
13 - INT. BANHEIRO - FIM DE TARDE
Ela lava o rosto em frente ao espelho. Há uma pinta na sua clavícula. Ela pergunta o
nome do seu reflexo e olha para trás. Escuridão.
92

14 - INT. QUARTO - QUASE NOITE


Na cama, surge o que parece ser uma nova figura masculina.
FIM

APÊNDICE 3 – "UM NOME", ROTEIRO DE VICTOR BACCILI

1 - INT. BANHEIRO – MANHÃ

São 11h20. Ela mira seu próprio rosto no espelho do banheiro, parada em
frente à pia. Seu semblante sério e impassível, observando-se fixamente. Então, ela
abre a torneira e molha o rosto com as mãos na água que escorre, com um certo
torpor.
Com uma toalha de rosto branca, ela seca seu rosto. Ainda se observando no
reflexo do espelho, com algum interesse. Até que, pensativa, ela franze o cenho,
como se se perguntasse algo internamente, e vira seus olhos para trás, em direção
à sua cama no quarto, através da porta do banheiro.

2 - INT. QUARTO - MOMENTOS ANTES

São 11h. O quarto está muito claro, banhado de uma luz solar branca e
pálida, típica de dias nublados. A luz entra pela porta da sacada e incide diretamente
sobre ela, que dorme profundamente, com uma máscara preta sobre os olhos. Ela
parece um pouco agitada e incomodada em seu sono.

3 - EXT. CÉU AZUL (SONHO) – DIA

Um céu muito azul e quase sem núvens. Há um osso muito branco, que plana
solitário frente este céu.

VOZ FEMININA SUAVE (V.O.)


Há uma escápula no céu.

SUSSURRO (V.O.)
Sem corpo.
93

4 - EXT. CÉU NOTURNO (SONHO) – NOITE

Eis que o mesmo osso agora plana num céu noturno, em meio a fumaças. Há
um som incessante de mastigação. Tudo fica escuro. O som de mastigação
continua.

VOZ FEMININA SUAVE (V.O.)


Há um longe entre mim e mim.

SUSSURRO (V.O.)
Há uma ponte: sem fim.

5 - INT. QUARTO – MANHÃ

Com o fim do sonho, ela acorda um tanto bruscamente, tirando sua máscara
dos olhos, pequenos diante da luz do dia. Ela afasta as cobertas do caminho e se
vira para se sentar na cama, visivelmente cansada e intrigada.
Percebemos que ela dormira mascando um chiclete, que ainda carrega dentro
da boca. O quarto está todo aberto: porta do corredor, da sacada, do banheiro, e até
mesmo do guardaroupas, completamente escancaradas. Há algumas roupas no
chão. Ela se levanta e vai até o banheiro, para jogar o chiclete fora e lavar o rosto.

6 - INT. QUARTO - MOMENTOS DEPOIS

De volta ao quarto, saindo do banheiro, há um vestido no chão, sob o guarda-


roupas aberto, que captura a sua atenção. Ela fica um tanto quanto paralizada, a
observá-lo no chão, transparecendo um certo nervosismo. As mãos levemente
trêmulas, ela o recolhe, devolve ao cabide e guarda no armário, que ela fecha
rapidamente atrás de si, como quem se livra da prova de um crime. Tensa, ela se
dirige diretamente para o corredor.

7 - INT. CORREDOR - DIA


94

Ela anda aflita pelo corredor muito comprido e estreito em direção à sala.

8 - INT. SALA – DIA

Ela atravessa a área de jantar até chegar no sofá, na sala, que fica no mesmo
ambiente da casa. Há um pequeno quadro preto na parede em frente à mesa de
jantar, mas ela passa reto, sem o ver. Com movimentos um pouco mecânicos, ela
senta no sofá. Com o celular na mão, ela manda uma mensagem para um número
de celular que não está salvo na sua agenda: "Vocês ainda não chegaram?"

Conforme ela digita essa mensagem de texto, há uma outra figura que anda
pela casa, mas ela não percebe. A figura parece ser um homem. Ele anda
calmamente, como se ninguém mais houvesse alí. Sai do corredor, passa pela sala
de jantar, mas vira direto para a cozinha, de modo que eles não se cruzam. Há um
detalhe curioso: ele veste roupas muito similares às dela. Ela está tensa, no sofá.
"Não", é a resposta que chega à sua pergunta. "Chegaremos por volta das 18h". Ela
lê a mensagem e permanece aborrecida olhando para a parede à sua frente.

9 - INT. SALA - MOMENTOS DEPOIS

São 12h. Ainda no sofá, ela está agora de olhos fechados e sentada em borboleta,
numa postura de meditação. Suas mãos em um Jnana Mudra. Há um barulho forte.
Um estrondo, como se alguém tivesse derrubado algo em alguma parte da casa.
Com o susto, ela abre os olhos. Ela parece não ter certeza se de fato ouviu o que
achou ouvir. Está confusa. Seu olhar cai sobre a mesa de centro. Há um objeto novo
e estranho alí: um perfil metálico todo perfurado, de pé. Ela nunca tivera visto tal
objeto em sua vida. O observa, com receio e desconfiança.

Dalí, seus olhos fluem diretamente para o pequeno quadro na parede em frente à
mesa de jantar, completamente preto. Aquilo jamais estivera alí antes. Ela se levanta
e anda até a área de jantar, para encará-lo de frente.

Uma vez de frente ao quadro enigmático, ela volta o olhar para o objeto de
metal sobre a mesa de centro. Se aproxima dele e tenta pegá-lo, mas toma um
95

choque, e há um forte estrondo à partir desse toque. Seus dedos ficam marcados e
doloridos.

Voltando a encarar o quadro, ela percebe algo de novo: há um ponto branco


em seu centro. Defronte a ele, é como se ela fosse encarada de volta, de forma
ameaçadora. Ela baixa os olhos, sem conseguir sustentar o olhar. Sobre a mesa de
jantar há um chiclete novo em folha. Por trás dela, passa mais uma vez,
displicentemente, um vulto masculino, com as mesmas roupas. Ela observa o
chiclete muito quieta e paralizada, como se estivesse congelada. Até que, num
instante, como que aliviada, ela estende suas mãos e pega o chiclete sobre a mesa.
Tira sua embalagem e começa a mascá-lo.

Ela volta para o sofá, frente à mesa de centro. Ela masca o chiclete com
movimentos muito rápidos e decididos. Há vêemencia no seu mascar. Até que ela
começa a modelar usando as mãos uma pequena bola com o chiclete da sua boca,
e a coloca sobre a mesa de centro. Porém, de alguma forma, ela continua mascando
o mesmo chiclete e começa, então, a modelar mais uma bola com as mãos, e
coloca-a sobre a mesa de centro, como a anterior. E assim ]sucessivamente.
Sempre com o mesmo chiclete, que parece se multiplicar magicamente dentro da
sua boca.

10 - INT. SALA - MAIS TARDE

Passaram-se algumas horas, e a menina continua mascando o chiclete, de


forma incessante. Sobre a mesa, há centenas de bolas organizadas em muitas
fileiras e colunas, como um grande tabuleiro de damas. Em um dado momento, ela
percebe que o objeto estranho começou a soltar uma fumaça pelos seus furos.
Intrigada, ela se vira para olhar o quadro preto. O ponto branco em seu centro
parece ainda maior agora. Isso parece a desesperar.

Nervosa, ela usa as bolas de chiclete para obstruir cada umdos furos do
objeto de metal sobre a mesa de centro. Isso terminado, são quase 18h. Ela se
levanta, de forma um tanto dura e robótica, e se dirige ao corredor.
96

11 - INT. CORREDOR - FIM DE TARDE

Mais tensa e vacilante que antes, ela anda pelo corredor muito comprido, e
agora mais escuro, em direção ao quarto. Há um silêncio sepulcral no ar.

12 - INT. QUARTO - FIM DE TARDE

Ela segue em direção ao banheiro. O sol se pôe lá fora. Tudo é mais escuro,
menos nítido.

13 - INT. BANHEIRO - FIM DE TARDE

Ela lava o rosto em frente ao espelho. A água escorre pelo ralo como se fosse
sugada por um vácuo. Há marcas negras em seus dedos. Ela se encara no espelho,
de forma mais incisiva e ameaçadora que anteriormente naquele mesmo dia. Ela
parece cansada e abalada. Seus movimentos são estranhos e desconexos, bem
como sua fala.

ELA
(de forma entrecortada e pouco natural)
Qual é o seu nome?

Ela pergunta para o seu próprio reflexo. Algo parece chamar sua atenção e
ela olha para trás, em direção à cama, mais uma vez.

ESCURIDÃO.

14 - INT. QUARTO - QUASE NOITE

Na cama, entre os lençóis e cobertores, surge o que parece seruma nova


figura masculina.

FIM
97

APÊNDICE 4 – "UM NOME", ROTEIRO TÉCNICO

"UM NOME", ROTEIRO DE VICTOR BACCILI

1 - INT. BANHEIRO – MANHÃ

OPÇÃO 1
PLANO 1: CLOSE, rosto dela centralizado através do espelho. Ela se olha, abaixa
para molhar o rosto e levanta novamente, saindo e entrando no quadro. Ela se
observa e, conforme se seca, a câmera vai se movimentando para trás lentamente,
assumindo um plano OVER THE SHOLDER (sobre o seu ombro direito) da
personagem em frente ao espelo, de costas para acâmera. Confome ela seca seu
rosto, a câmera continua a se mover para trás e para a lateral esquerda, até assumir
um PLANO APROXIMADO DE PEITO, que pega a personagem de perfil, frente ao
espelho. É aí que ela, pensativa, como se ouvisse algo, vira a cabeça para trás, pelo
seu lado direito, em direção à cama, no quarto.

OPÇÂO 2
PLANO 1 : CLOSE, rosto dela centralizado através do espelho. Ela se olha, abaixa
para molhar o rosto e levanta novamente, saindo e entrando no quadro novamente.
Ela se observa e, conforme se seca, a câmera vai se movimentando para trás
lentamente, assumindo um plano OVER THE SHOLDER (sobre o ombro direito da
personagem) da personagem em frente ao espelo, de costas para a câmera.

PLANO 2: PAP, ela está de perfil secando seu rosto.

PLANO 3: mesmo OTS do Plano 1, agora ela franze o cenho e vira


a cabeça pra trás.

PLANO 4: mesmo PAP do Plano 2, plano dela virando a cabeça em


direção à cama.
98

2 - INT. QUARTO - MOMENTOS ANTES

PLANO 1: PLANO PLONGÉE, movimento de TRAVELING FRONTAL sobre a cama,


dos pés/cobertas até quase pegar a cabeça dela, que deita à favor da luz que entra
pela porta.

PLANO 2: PLANO MÉDIO da cama centralizada, onde ela deita com a cabeça
elevada sobre muitos travesseiros, enquanto muda de posição algumas vezes,
parecendo desconfortável.

PRA TER OPÇÃO

PLANO 3: PAP, deitada, ela se vira para o lado oposto.

PLANO 4: PLANO DETALHE ZENITAL, seus olhos fechados muito fortemente.

3 - EXT. CÉU AZUL (SONHO) – DIA

PLANO 1: PM, um céu muito azul e quase sem núvens. Há um osso muito branco,
que plana solitário frente este céu.

VOZ FEMININA SUAVE (V.O.)


Há uma escápula no céu.

SUSSURRO (V.O.)
Sem corpo.

4 - EXT. CÉU NOTURNO (SONHO) – NOITE

PLANO 1: PM, eis que o mesmo osso agora plana num céu noturno, em meio a
fumaças. Há um som incessante de mastigação. Tudo fica escuro. O som de
mastigação continua.
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VOZ FEMININA SUAVE (V.O.)


Há um longe entre mim e mim.
SUSSURRO (V.O.)
Há uma ponte: sem fim.

5 - INT. QUARTO – MANHÃ

PLANO 1: PM, da cama centralizada, ela se levanta, como num susto.

PLANO 2: PM (PLONGÉE?), espelho encostado sobre a parede oposta à cama, a


imagem dela refletida conforme ela coloca os pés no chão, pausadamente, ainda
sentada na cama, cabisbaixa.

PLANO 3: PLANO GERAL do quarto aberto e desorganizado.

PLANO 4: PLANO SUBJETIVO, PAN, do ponto de vista dela, olhando para o quarto.

PLANO 5: PD, a boca dela mascando um chiclete. Ela o tira da boca.

PLANO 6: PS, olhando para o chiclete, disforme, na sua mão.

PLANO 7: PG, de frente para a porta do banheiro, ela se levanta e se dirige até o
banheiro. Barulho dela jogando o chiclete no lixo e ligando a torneira.

6 - INT. QUARTO - MOMENTOS DEPOIS

PLANO 1: PG, mesmo do Pl. 7 Cena 5, ela sai do banheiro, observa o quarto e um
VESTIDO específico chama sua atenção sob o guarda-roupas.

PLANO 2: PM PLONGÉE do vestido no chão, sob o guarda-roupas, centralizado.


Ela pega o VESTIDO, a camera segue sua mão num movimento de TILT, até pegar
sua reação (de perfil) num PLANO PROXIMADO DE TRONCO. Ela se vira de trás
para a câmera, afim de guardar a peça no guarda-roupa.
100

PLANO 3: PAT, ela de perfil, fecha as portas do guarda-roupas atrás de si e fica


paralisada por uns instantes, séria, cuidadosa e pensativa.

PLANO 4: PAT de frente, pegando da cintura até embaixo de seu nariz,


evidenciando seus lábios em dúvida.

PLANO 5: mesmo PAT do Pl. 3, ela sai do quarto em direção ao corredor. A câmera
a segue e fica na porta a observando se afastar pelo corredor muito comprido.

7 - INT. CORREDOR – DIA

PLANO 1: câmera a acompanha de costas, num PAP, pelo corredor, onde ela anda
aflita em direção à sala. Conforme ela sai do corredor, a câmera faz um TILT para
cima e focaliza a campaínha torta sobre a porta do corredor, em CONTRA-
PLONGÉE.

8 - INT. SALA – DIA

PLANO 1: PM, destaque para a parede atrás da mesa de jantar, com apenas um
pequeno QUADRO preto. Ela sai pela porta da cozinha, passa em frente à câmera e
atravessa até o sofá, na sala de estar. A câmera faz um ângulo de 90 graus no
mesmo ponto para a mirar sentando no sofá.

PLANO 2: PAP PLONGÉE traseiro, ela tem o celular nas mãos. PLANO 3: PM, do
lado oposto do sofá, ela mexe no celular e pode-se ver um vulto masculino, fora de
foco no fundo da cena, que sai do corredor e vai até a cozinha. Nenhum dos dois
parece dar conta da presença do outro alí.

PLANO 4: PD no CELULAR nas mãos dela. Mostrar conversa com número


desconhecido. Chegam mensagens. HORA QUE APARECE NA TELA DEVE SER
UM POUCO ANTERIOR AO MEIO-DIA.

PLANO 5: PM, de frente para o sofá. Ela parece contrariada/preocupada.


101

9 - INT. SALA - MOMENTOS DEPOIS

PLANO 1: PG, ela medita de olhos fechados sobre o sofá, seu perfil cortado pela luz
que entra pelas portas da sacada.

PLANO 2: PG, de frente para o sofá (câmera prox. ao nível do chão?). Ela medita
ainda. ESTRONDO.

PLANO 3: PD, seus olhos abrem preocupados.

PLANO 4: PS, seus olhos fluem rápidos em direção ao corredor e logo se perdem de
volta na sala. Sua visão vai sobre a MESA DE CENTRO. Ela vê o OBJETO - entra a
TRILHA. PAUSA.

PLANO 5: PAP, ela observa o objeto, desconfiada.

PLANO 6: PS, seus olhos fluem dalí diretamente para o QUADRO preto do outro
lado da sala - volta a TRILHA.

PLANO 7: PAP, mesmo do Pl. 5, trilha resolve com o semblante dela na tela. Ela se
levanta.

PLANO 8: PG, de frente para o sofá, conforme ela se levanta para encarar o
QUADRO de frente.

PLANO 9: PM, ela de perfil do lado esquerdo, encara o QUADROna parede do lado
direito.

PLANO 10: o QUADRO centralizado na parede, PS (dela).

PLANO 11: PS, seus olhos se viram para o OBJETO sobre a MESADE CENTRO.
102

PLANO 12: foco no OBJETO sobre a mesa, mais à direita. Ela chega e tenta pegá-lo
com as mãos, vemos apenas seus braços esuas pernas. ESTRONDO ELÉTRICO.
Ela toma um choque do OBJETO.

PLANO 13: PD das suas mãos, que ela olha: estão marcadas, como que
escurecidas por carvão. Ela resmunga de dor.

PLANO 14: PAT, de frente para ela, que olhava em direção às portas de vidro, mas
se vira para encarar mais uma vez o QUADRO.

PLANO 15: PG, como o Pl. 9

PLANO 16: como o Pl. 10, mas agora há uma MANCHA branca no meio do
QUADRO. Esse plano demora mais que o 10, como se o quadro a encarasse
devolta.

PLANO 17: PAT dela que baixa os olhos para a mesa de jantar, vazia a não ser por
um CHICLETE que lá respousa.

PLANO 18: Vê-se o CHICLETE na mesa, em primeiro plano e o tronco dela que se
aproxima para observá-lo. Neste momento, um vulto passa por trás dela, fora de
foco.

PLANO 19: como o Pl. 15, ela pega o CHICLETE da mesa.

PLANO 20: PD, o CHICLETE em suas mãos.

PLANO 21: PD, ela o coloca na boca e começa a mascá-lo.

PLANO 22: PG, próximo ao nível do chão, MESA DE CENTRO em foco. Ela chega e
senta-se no chão, ao lado da mesa de centro.

PLANO 23: PD, ela mastiga vertiginosamente. Começa a modelar uma bola com o
CHICLETE mascado, sem parar de mascar.
103

PLANO 24: PD, pequena bola de CHICLETE na mão dela.

PLANO 25: como o Pl. 22, ela coloca a bola sobre a mesa.

PLANO 26: PG, ela de perfil contra a luz que entra pelas portas da sacada,
mascando o CHICLETE e multiplicando-o e várias bolas.

FAZER UMA MONTAGEM MEIO VERTIGINOSA - INSTÁVEL E ENTRECORTADA


- COM VARIAÇÕES DOS PLANOS DE 22 a 26.

(TELA PRETA?)

10 - INT. SALA - MAIS TARDE

PLANO 1: PG como os planos 9 e 15, evidenciando o espaço vazio


da sala de jantar.

PLANO 2: PM dela por trás, ainda ao lado da mesa de centro. Câmera começa na
altura dela sentada no chão e se eleva, como se fosse alguém se levantando do
chão, para ver a MESA DE CENTRO, cheia de bolas de CHICLETE.

PLANO 3: PM, no canto diametralmente oposto da sala, focalizando a MESA com o


OBJETO em primeiro plano.

PLANO 4: CLOSE no OBJETO, na mesma posição do plano anterior. Ele começa a


soltar FUMAÇA pelos buracos.

PLANO 5: PAP dela sobre a mesa, olhando o OBJETO a soltar FUMAÇA.

PLANO 6: PS ela olhando para o OBJETO, seu olhar vira-se, mais uma vez,
diretamente para o QUADRO.

PLANO 7: CLOSE no quadro, com a mancha branca ainda maior em seu centro.
104

PLANO 8: PAP,como o Pl. 6, alarmada, ela olha de volta para o OBJETO.

PLANO 9: PLANO ZENITAL sobra a MESA DE CENTRO cheia de bolas de


CHICLETE, que ela pega e começa a usar para obstruir os buracos no OBJETO, um
por um, como se algo muito importante dependesse daquilo.

PLANO 10: PM, como o Pl. 2, ela olha em direção à luz que entra pelas portas de
vidro. Olha para a tela do celular.

PLANO 11: PD tela do celular, são quase 18H.

PLANO 12: PM, como o Pl. 10, ela se levanta muito austera e anda robótica, rumo
ao corredor, conforme a câmera se afasta.

PLANO 13: PG (como quem está na sala de estar) ela atravessa a sala de jantar
rumo ao corredor - TAKES GRAVADOS DE TRÁS PRA FRENTE DAQUI EM
DIANTE.

11 - INT. CORREDOR - FIM DE TARDE

PLANO 1: PD no nível do chão, seus passos robóticos se distanciando no enorme


corredor.

PLANO 2: PAT de frente, ela anda pela penumbra do corredor, vacilante e cansada.
Vultos passam atrás dela.

12 - INT. QUARTO - FIM DE TARDE

PLANO 1: PG, ela segue em direção ao banheiro.

PLANO 2: PG, vista da janela. O sol se pôe lá fora. Tudo é mais escuro, menos
nítido.
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13 - INT. BANHEIRO - FIM DE TARDE

PLANO 1: PAT, ela de costas, frente a pia, lava o rosto.

PLANO 2: CLOSE, sua imagem no ESPELHO, OTS. Ela olha para as suas mãos,
como que sujas de carvão, a câmera segue a direção do olhar dela e logo volta para
o ESPELHO, onde ela se olha de novo, fixamente.

ELA
(de forma entrecortada e pouco
natural)
Qual é o seu nome?

PLANO 3: PAT lateral esquerdo (como no fim da cena 1), ela de perfil, mirando seu
reflexo, incisiva, após a pergunta. Algo parece chamar sua atenção e ela olha para
trás, em direção à cama, mais uma vez.

ESCURIDÃO.

14 - INT. QUARTO - QUASE NOITE

PLANO 1: PLANO PLONGÉE, movimento de TRAVELING FRONTAL sobre a cama,


dos pés/cobertas até quase pegar a cabeça (como no Pl. 1 da CENA 2). Na cama,
surge o que parece ser uma nova figura masculina.

FIM

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