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Tatuí/SP
1º Semestre/2021
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Tatuí/SP
1º Semestre/2021
1
( ) APROVADO ( ) REPROVADO
Com média:..............
Tatuí, .............. de .......................... 20........
___________________________
Prof. ..........................................
FATEC – Tatuí
___________________________
Prof. ..........................................
FATEC – Tatuí
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Prof. ..........................................
FATEC – Tatuí
2
DEDICATÓRIA
AGRADECIMENTOS
Agradecemos
Ao Prof. Dr. Lucas Correia Meneguette pelo entusiasmo e incentivo constante dos
alunos a fazer sempre mais, além das incríveis oportunidades de estágio e trocas
profissionais reais dentro do ambiente da faculdade;
À Prof. Luana Muzille pela capacidade de despertar um olhar sempre crítico, realista
e bem-humorado sobre a sociedade, o mercado e nossa profissão;
Ao Prof. Ms. José Carlos Pires pela sua confiança em colocar os alunos como
protagonistas dentro do curso;
Ao Prof. Davison Pinheiro pela sua amplitude de visão, sua capacidade de conciliar
o técnico com o poético e por nos fazer apaixonar ainda mais por esse trabalho final,
através de suas colocações tão generosas sobre ele na banca de PTG;
Ao Prof. Moacir José Dondelli Paulillo e ao Prof. Ms. Paulo César Signori, por
conseguirem tornar leve e agradável o aprendizado musical, sem deixar de ser
eficientes, com doses precisas de pulso firme, amor pela arte e acidez bem-
humorada;
EPÍGRAFE
(…)
RESUMO
Este trabalho se propõe a estudar a trilha sonora da série Twin Peaks (1990-1992;
2017), saga criada por Mark Frost e David Lynch, considerada um marco na história
da televisão seriada, tanto nas suas temporadas clássicas, lançadas entre 1990 e
1992, quanto em seu retorno, em 2017. Para isso, num primeiro momento, é
explorado o conceito de “complexidade narrativa na TV” e “labirinto narrativo”, para
que se possa melhor compreender o lugar de destaque da obra na história do
audiovisual. A partir disso, os conceitos de “stimmung” e “imaginário sonoro”,
conforme discutidos por Gumbrecht e Oliveira respectivamente, são fundamentais
para que haja uma melhor compreensão das inovações e particularidades contidas
no uso do som e da trilha sonora pela série, para a obtenção de seu efeito final no
espectador. Em seguida, são elaboradas análises sonoras de algumas sequências
de toda a trajetória da série, a fim de melhor compreender, in loco, seus aspectos
estéticos, em âmbitos técnicos e sensoriais, através da leitura de ambiências,
conforme prevista por Martoni. Por fim, a partir destes signos sonoros e percepções
sensoriais levantados, busca-se desenvolver uma “ideia”, conforme colocado por
Lynch, através da elaboração de um experimento audiovisual na forma de um curta-
metragem original intitulado “Um Nome”.
ABSTRACT
This essay studies the score of the series Twin Peaks (1990-1992; 2017), created by
Mark Frost and David Lynch, and thought to be a milestone in the history of
serialised television with its classical seasons, from 1990 to 1992, but also with its
most recent installment, in 2017. For such, the concepts of “narrative complexity on
TV” and “narrative labyrinth” will be firstly explored so it will be possible to better
understand the standout place of the series in the history of television and film. Then,
the concepts of “stimmung” and “sound imagery”, as discussed by Gumbrecht and
Oliveira respectively, will be fundamental for a better understanding of the inovations
and idiosyncrasies present in the use of sound and score by the series, and its
importance for its final effect on viewers. After that, sound analysis of sequences
from the series will be made to enlighten some of its core aesthetical features, in both
technical and sensorial views, through the process of “ambiance reading”, as in
Martoni. Finally, from the sound data and sensorial perception captured, an “idea” will
be developed, as stated by Lynch, through the creation of a film experiment, in the
form of an original short-movie titled “A Name”.
LISTA DE FIGURAS
SUMÁRIO UMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 10
1.1 JUSTIFICATIVA.................................................................................................12
1.2 OBJETIVOS........................................................................................................14
1.2.1 Objetivo Geral................................................................................................14
1.2.2 Objetivos Específicos....................................................................................14
2 REFERENCIAL TEÓRICO 15
2.1 COMPLEXIDADE E LABIRINTO NARRATIVO NA TV......................................15
2.2 STIMMUNG OU “AMBIÊNCIA”...........................................................................22
2.3 IMAGINÁRIO SONORO......................................................................................24
2.3.1 Gestos.............................................................................................................25
2.3.2 Musemas.........................................................................................................27
2.3.3 Tópicas...........................................................................................................28
2.3.4 Sons Concretos.............................................................................................32
3 METODOLOGIA 33
3.1 “STIMMUNG” E “IDEIA”: ENTRE O FÍSICO E O SENSÍVEL.............................33
3.2 LENDO AMBIÊNCIAS.........................................................................................36
4 ESTUDO DE CASO: ANÁLISES SONORAS DE TWIN PEAKS 39
4.1 1ª TEMPORADA, EPISÓDIO 3: “ZEN OU A HABILIDADE DE PEGAR UM
ASSASSINO” (1990)..................................................................................................39
4.1.1 A Dança de Audrey – (27:44-31:33)..............................................................39
4.1.2 A Sala Vermelha – (40:15-47:25)..................................................................41
4.2 2ª TEMPORADA (1991)......................................................................................44
4.2.1 Episódio 1: “Que o Gigante esteja contigo” (3:03-10:56)..........................44
4.2.2 Episódio 7: “Almas Solitárias” – (29:32-46:29)...........................................47
4.3 FILME: “TWIN PEAKS - OS ÚLTIMOS DIAS DE LAURA PALMER” (1992)......54
4.3.1 “Nós não vamos falar sobre Judy.” - (26:58-31:17)....................................54
4.4 3ª TEMPORADA: TWIN PEAKS - O RETORNO (2017)....................................57
4.4.1 Parte 3: “Peça ajuda.” - (1:37 – 10:50)..........................................................57
4.4.2 Parte 8: “Tem luz?” - (16:19-40:40)...............................................................63
4.4.3 Parte 11: Brincando com fogo - (49:59 – 55:30)..........................................68
5 EXPERIMENTO AUDIOVISUAL: UM NOME 71
5.1 O IMAGINÁRIO SONORO DE TWIN PEAKS: DIAGNÓSTICO E DIRETRIZES 71
9
1 INTRODUÇÃO
A partir disso, pretende-se com esse trabalho mergulhar nos principais signos
presentes na trilha sonora de toda a trajetória da saga de Twin Peaks; investigar o
papel engendrado pelos aspectos da trilha sonora da série em seu efeito final, tanto
internamente quanto em comparação com os diferentes contextos socioculturais e
artísticos no decorrer de sua longa história. Pretende-se, portanto, chegar à síntese
do que seria o “imaginário sonoro” que lhe auxilia na definição de sua estética
específica – também daquilo que seria uma estética “lynchiana”, no sentido mais
amplo do termo – com todas as suas particularidades e insubordinações a gêneros
fechados, levando o expectador a um outro estado de consciência, representado
pelo conceito de Stimmung.
1.1 JUSTIFICATIVA
primeira colocação nas listas de melhores filmes das décadas de 20002 e 20103, com
dois de seus mais recentes lançamentos: Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive -
2001) e Twin Peaks: The Return (2017). Além disso, estes dois trabalhos aparecem
também ostensivamente nas listas de melhores do ano de outras publicações
rigorosas, como a inglesa Sight and Sound4.
Por muitas vezes ignorada pelo grande público, mas tornando-se objeto de
culto por um fiel séquito de fãs no mundo inteiro já há 30 anos, a série conseguiu
manter seu legado e relevância artística, tendo a reinvenção como uma de suas
características mais marcantes. Principalmente após o The Return (2017), Twin
Peaks parece ser novamente uma unanimidade, ao menos em meio a parte
significativa da crítica especializada e da comunidade cinéfila.
2
Top 10 des années 2000 des Cahiers du Cinéma. Cahiers du cinema, 2010. Disponível em: <https:
//www.cahiersducinema.com/produit/top-10-des-annees-2010/>. Acesso em: 27 de abril de 2021.
3
Top 10 2010-2019 des Cahiers du cinema. Cahiers du cinema, 2019. Disponível em: <https://www.
cahiersducinema.com/produit/top-10-des-annees-2010/>. Acesso em: 27 de abril de 2021.
4
Sight & Sound’s best films of 2017. Sight & Sound, 2017. Disponível em: <https://www2.bfi.org.uk/
features/best-films-2017/>. Acesso em: 27 de abril de 2021.
14
1.2 OBJETIVOS
2 REFERENCIAL TEÓRICO
Twin Peaks é uma obra que ocupa um lugar emblemático, tanto na obra de
seus criadores, como dentro da história do audiovisual como um todo,
desencadeando debates acalorados e inspirando os ambientes televisivo e
cinematográfico há décadas. Tendo surgido primeiramente em abril do ano de 1990,
a saga carrega a fama de precursora de séries como Família Soprano (The
Sopranos), Lost e Mad Men, que vieram consolidar aquela que ficou conhecida
como a recente Era de Ouro da Televisão, no final dos anos 1990 e início dos anos
2000 – momento histórico em que produtos televisivos passaram a ser
definitivamente levados a sério como uma forma de Arte (ANAZ, 2018).
Séries como as citadas acima evidenciam um dos pontos que Mittel (2006, p.
38) coloca como fundamentais dentro da estrutura de funcionamento destas séries
complexas, que seria a “interação entre as demandas da narração episódica e
seriada”, num equilíbrio sutil, particular a cada programa, que passa, cada vez mais,
a estabelecer relações formais únicas de continuidades e descontinuidades na
construção de seus universos ficcionais. De acordo com Mittel, essas “pirotecnias
narrativas” alimentam uma abordagem que Sconce (2004) classifica como
“metarreflexiva” das séries por parte do público. Neste mecanismo de apreciação de
uma obra audiovisual, além do interesse em desfrutar de uma narrativa interessante,
se impõe um desejo de ver as “engrenagens funcionando”, admirar a habilidade dos
realizadores de lidar com as excentricidades de sua criação. Há, portanto, uma
valorização da estética operacional destes universos audiovisuais.
alt.tv.twin-peaks6, sobre as pistas deixadas em cada episódio que era lançado, a fim
de investigar e criar suas teorias em uma rede online sobre quem, afinal, teria
matado Laura Palmer.
6
Os arquivos com as discussões referentes a cada episódio na época de lançamento continuam
disponíveis online para consulta dos interessados no endereço: AltTvTwinPeaks. Disponível em:
<https://alttvtwinpeaks.com/>. Acesso em: 16 de maio de 2021.
20
causado pelo filme. A despeito disso, Chion ressalta o caráter revolucionário do feito
do cineasta, classificando o filme como uma “falha gloriosa na qual, por meio de
cenas bem-sucedidas e originais, Lynch expandiu e ampliou o cinema de dentro pra
fora, através de sua estrutura narrativa ousada” (CHION, 1995, p. 155, tradução
nossa).
Por fim, para compreender melhor a forma como essa trajetória cheia de
vicissitudes e fragmentações interfere na construção sonora da obra e atinge o
espectador, é interessante comentar alguns trabalhos sobre a narrativa da série, que
vem endossar essa teoria. Hague (1995, p. 130-143) publicou um ensaio sobre a
forma como os métodos intuitivos de investigação do Agente Cooper violam os
princípios de perfeição aristotélica de começo, meio e fim, típicos de narrativas
detetivescas convencionais. Deste modo, portanto, é explicitada a forma como há
uma recusa da narrativa em oferecer a “purificação” típica da “catarse”, produzindo
no espectador o que William Spanos denominou como “terrível incerteza” (PUCCI
21
JUNIOR e SOUZA, 2019, p. 178). Num artigo em que discorre sobre o sound-design
da série como um todo, Pucci Junior e Souza (2019) ainda acrescentam que
Para Ferraraz (2003) o que mais conta na obra de Lynch são as atmosferas e
efeitos de estranhamento que ele cria, não a explicação do que é visto ou ouvido em
cena: “Suas imagens labirínticas e seus sons perturbadores causam o pânico da
não-compreensão” (FERRARAZ, 2003, p. 106).
22
Parte-se disso, então, como uma espécie de metáfora para que possamos
entender como os aspectos formais e físicos de uma obra de qualquer natureza são
centrais para o estabelecimento do que se entende como seu “tom”, “ambiência”,
“atmosfera” ou Stimmung específico. É importante ressaltar o caráter primário deste
tipo de experiência aqui observada, não havendo assim, ainda, relação com uma
interpretação de sentidos racionais, nem com algum caráter de representação mais
definido:
Feita essa introdução inicial ao conceito a ser aqui discutido, pode-se então
começar a estabelecer relações entre ele e o objeto principal deste trabalho. O fato é
que a noção de Stimmung oferece notável riqueza de perspectivas para entender o
funcionamento do universo de Twin Peaks, tanto em termos de sua possível gênese
quanto de sua forma final, passando pelo estabelecimento de seu imaginário sonoro,
a ser discutido mais adiante, e também pela sua recepção e relação geral com
público e crítica.
Essa, no entanto, parece ser uma característica não só de Twin Peaks, mas
sim um traço comum à obra de Lynch quase em sua totalidade, bem como à
estruturação de seu processo criativo. Além de abordar a noção de “atmosfera” a
partir da perspectiva da pessoa que experiencia a obra, Gumbrecht também traça,
em alguns momentos, essa relação do ponto de vista do criador:
2.3.1 Gestos
conjunto conectadas por uma ligadura, o qual é típico do estilo galante, segundo
Hatten (2004, p. 140) (gesto anacrústico de colcheia pontuada e semicolcheia)
ilustrada na figura 1.
Hatten ainda divide dois tipos gerais de gestos musicais: os gestos musico-
estilísticos e os gestos estratégicos. Gestos musico-estilísticos são aqueles
resultantes de convenções, que e aparecem em gêneros ritualizados, como danças
e marchas. Nesses gestos que estão presentes as convenções para interpretação
das articulações, acentuações, dinâmicas, tempos e padrões de agógica (cinética
musical, andamento). Enquanto os gestos estratégicos podem ser entendidos como
representações de tipos estilísticos preexistentes que ocorrem no contexto
específico de uma obra musical.
2.3.2 Musemas
musical, pudessem analisar uma obra musical. Por exemplo, a análise de seus
alunos “não-musos” sobre a música Fernando, canção de Abba:
Entendemos então, por essa ótica, musemas, como sendo descrições que
assemelhamos a música.
2.3.3 Tópicas
Figura 2: Fuga em Lá bemol maior do 2° livro do Cravo bem Temperado de J. S. Bach, c.1-5.
Combinação tropológica de duas tópicas.
3 METODOLOGIA
De acordo com Gil (1995), do ponto de vista de sua natureza, essa é uma
pesquisa aplicada, já que é voltada à análise de conteúdo da questão estudada.
Ademais, do ponto de vista da forma de abordagem ao problema, trata-se de uma
pesquisa qualitativa, pois levanta problemas específicos a partir de referências
gerais das problemáticas abordadas. Além disso, é exploratória, do ponto de vista
dos objetivos, pois busca abordar uma questão envolvendo revisão bibliográfica e
análise de exemplos. Por fim, do ponto de vista dos procedimentos técnicos,
consiste num Estudo de Caso, por envolver levantamento de dados em uma obra, e
também numa pesquisa de Desenvolvimento Experimental, por visar a construção
de uma nova obra a partir dos dados levantados nessas análises.
Ideias são a melhor coisa que existe, e ideias chegam para a gente.
Ninguém cria de fato uma ideia, nós apenas as “pescamos”, como peixes.
Nenhum chefe de cozinha leva o crédito por fabricar um peixe, apenas por
prepara-lo. Então, você tem uma ideia e ela é como uma semente. E, na
sua mente, a ideia é vista e sentida. E ela explode, como se tivesse
eletricidade e luz conectadas a ela. E ela já possui todas as imagens e um
feeling; e é como se, num instante, você de fato conhecesse a ideia. Em um
instante. A partir disso, a questão é traduzi-la para alguma mídia. Poderia
ser uma ideia para um filme, ou para uma pintura, ou para uma peça de
mobiliário, não importa. Ela quer se tornar algo; é uma semente para
alguma coisa. Então, tudo se trata de traduzir aquela ideia para uma mídia.
E, no caso de um filme, isso leva muito tempo e você sempre tem que voltar
e permanecer fiel àquela ideia, continuar checando-a. E o que você percebe
é que a ideia é mais do que você achava ser. E, se você for fiel a ela,
quando o trabalho estiver terminado e alguns anos tiverem se passado,
você vai poder tirar ainda mais dela. Isso se você tiver de fato sido fiel à
ideia desde o primeiro momento. (LYNCH, 2011, tradução dos autores)9
7
David Lynch Foundation. Disponível em: <https://www.davidlynchfoundation.org/>. Acesso em 22
de maio de 2021.
8
O título original do livro é “Catching the big fish” algo como “Pescando o peixe grande”.
9
No original: “Ideas are the number one best thing going, and ideas come to us. We don’t really create
na idea, we just catch them, like fish. No chef ever takes credit for making the fish, it’s just preparing
the fish. So, you get an idea and it is like a seed. And, in your mind, the idea is seen and felt. And it
explodes, as it’s got electricity and light connected to it. And it has all the images and a feeling; and it’s
like, in an instant, you know the idea. In an instant. Then, the thing is translating that to some medium.
It could be a film idea, or a painting idea, or a furniture idea, it doesn’t matter. It wants to be
something, it’s a seed for something. So, the whole thing is translating that idea to a medium. And, in
the case of film, it takes a long time and you always have to go back and stay true to that idea, keep
checking that idea. And what you realize is the idea is more than you realize. And, if you are true to it,
when the work is finished and some years go by, you can even get more out of it. If you’ve been true
to the idea in the first place.”
35
chama de “ideia” – o suficiente para que haja essa sensação de “explosão” e “luzes”
a ela ligadas. Essa força propulsora fundamental de suas obras já parece ser, em si
mesma, próxima de um Stimmung “puro”. Se este, porém, se trata de uma
emanação do campo físico para o sensorial, é como se aquela fosse uma emanação
do campo sensorial para o físico, ao ser colocada em prática pelo artista.
10
No original: “And, one day, something clicked, though he could not have known that this would be a
definitive turning point. He decided to make ‘film paintings’: ‘When I looked at these paintings, I missed
the sound. I was expecting a sound, or maybe the wind, to come out. I also wanted the edges to
disappear. I wanted to get into the inside. It was spatial...’.”
11
O’FALT, Chris. Sound Comes First: Inside David Lynch’s Bunker, Where He Started Creating the
‘Twin Peaks’ Sound Design Over 7 Years Ago. IndieWire, 2018. Disponível em: < https://www.indiewir
e.com/2018/05/twin-peaks-the-return-sound-design-david-lynch-hidden-studio-process-deanhurley-12
01965234/ >. Acesso em: 18 de maio de 2021.
36
Essa tendência, porém, como dito por Hurley, vem desde muito antes. Com a
trilha musical de Angelo Badalamenti, Twin Peaks existiu primeiro através do som,
ainda no final dos anos 1980. Sua variedade de ritmos musicais, seus timbres
sintéticos e reverberados, seus graves e agudos contrastantes, sua qualidade por
vezes calorosa e etérea, por outras lúgubre e ameaçadora, e até mesmo sarcástica;
suas ambiências noturnas de ventos e cigarras, os ruídos da floresta de madrugada,
o constante rumor de eletricidade: tudo isso parece ser grande parte do que ajudou,
e continua ajudando, a engolfar os espectadores nesse universo complexo e
abstrato que forma o imaginário sonoro e pictórico de Twin Peaks.
aqui, estabelecer diálogos mais livres com múltiplas obras e áreas do conhecimento,
sem restrições – de modo a respeitar o caráter necessariamente amplo e subjetivo
do campo da “leitura de ambiências”.
Esses contrastes chegam no ápice aos 30:58, quando Audrey diz gostar
muito dessa música: “Ela não é super onírica?”12. Ela então se levanta e começa a
dançar de forma um tanto provocante em meio ao salão do restaurante (figura 5).
12
“Isn’t it too dreamy?”. ZEN or the skill to catch a killer. In: TWIN Peaks. Criação de Mark Frost e
David Lynch. Direção de David Lynch. Estados Unidos: ABC, 1990. 48 min., son., color. Temporada
1, episódio 3.
41
13
Em sonorização, o termo drone é um anglicismo definido como “um som grave sustentado ou
monótono”, de acordo com a definição do dicionário online Merriam-Webster. DRONE. In: DICIO,
Merriam-Webster. 2021. Disponível em: <https://www.merriam-webster.com/dictionary/drone>.
Acesso em: 13/10/2021; tradução dos autores.
42
Essa cena foi, talvez, a primeira que realmente mostrou mais do que Twin
Peaks viria a se tornar com o tempo. Aqui fica muito evidente uma estranheza que
existe nos movimentos e também na voz dos diálogos. Tudo parece retorcido e
estranho. As falas têm legendas para que o público possa entender o que é dito.
Sabe-se que esse efeito foi conseguido através da filmagem de toda a ação e dos
14
“Through the darkness of futures past/ The magician longs to see./ One chants out between two
worlds/ Fire walk with me.” ZEN or the skill to catch a killer. In: TWIN Peaks. Criação de Mark Frost e
David Lynch. Direção de David Lynch. Estados Unidos: ABC, 1990. 48 min., son., color. Temporada
1, episódio 3.
43
diálogos da cena de trás pra frente. Após a captação, o vídeo era invertido e, assim,
a ação e os fonemas da fala ficariam na ordem correta, mas com o seu ar
“fantasmagórico” tão característico dessas cenas.
Aos 43:19 entra então um som agudo, como reverberação de um sino, neste
momento Laura e Cooper trocam olhares e uma sombra passa ao fundo. O Anão
volta a falar, e um diálogo se desenvolve entre ele, Cooper e Laura. Apenas a voz
de Cooper não tem edição e soa natural. Após isso, o Anão diz que de onde vieram
os pássaros cantam lindas canções e existe sempre música no ar. Nos 45:22, uma
música diegética entra em cena, jazzística, marcada por estalos e por um walking
bass, acrescentado de um saxofone que entra solando. Embora seja de uma
sonoridade um tanto mais tradicional, quando comparada à Audrey’s Dance, Dance
of the Dream Man (Angelo Badalamenti) também combina uma dimensão sensual e
urbana com um forte ar humorístico, dada a natureza ainda mais idiossincrática da
cena aqui retratada. O Anão se levanta e começa a dançar pelo salão (figura 7),
Laura também se levanta e caminha até Cooper. A música vai ganhando volume e
reverberação. Ela beija Cooper nos lábios e sussurra algo em seu ouvido. Com um
corte brusco, aos 46:45, Cooper desperta.
A música continua agora extradiegética, bem mais baixa, e com ruídos graves
por cima, que tomam a atmosfera enquanto Cooper liga para o Xerife Harry (Micheal
Ontkean) para marcar de se encontrarem. Agora ele sabe quem é o assassino. Ele
desliga o telefone e começa, intradiegeticamente, a estalar os dedos no ritmo da
música extradiegética, que volta a ganhar volume, conforme o episódio se encerra.
44
A voz de Andy volta a chamar pelo telefone, o que contribui ainda mais para a
tensão da cena. Cooper balbucia, tentando pedir que o copeiro busque um médico,
mas o funcionário simplesmente coloca o telefone no gancho. Aos 4:38, há um sutil
marcar dos ponteiros de um relógio que se soma ao background, fazendo com que a
cena pareça se arrastar ainda mais daí pra frente.
O idoso tenta conversar com normalmente Cooper e leva ainda algum tempo
para ir embora, pois volta e meia retorna para dizer-lhe: “Já ouvi muito falar em
você!” alegremente (figura 9), num tom de voz quase festivo e também senil, o que
dá uma qualidade humorística quase sádica para o momento. Isso se soma ao foley
de seus passinhos agudos para contrastar com o denso plano de fundo previamente
descrito, à medida que ele vai e volta no quadro, criando uma atmosfera de
estranheza e desconforto.
Assim que Cooper fica sozinho de novo, aos 8:06 emergem dois novos
synths, que dominam o campo sonoro da cena por alguns instantes, muito
reverberados: o mais predominante deles, num primeiro momento, de sonoridade
mais metálica e frequências mais médias-graves, remetendo à uma ideia de “espaço
sideral”, pensando em termos da ideia de musema cunhada por Tagg (2012); o outro
mais médio-agudo e sutil, como sinos e/ou cigarras levanto também à uma certa
vertigem. É notável como esses timbres remetem, simultaneamente, à universos
orgânicos e inorgânicos, mostrando-se bastante difíceis de decifrar. Por trás,
46
continuam sutis ruídos que remetem à ventos, ao mesmo tempo que algo como
turbulências de avião.
Após seu recado, o Gigante desaparece e, com ele, se vão quase todos os
sons do background, aos 10:50. O quarto volta à sua luminosidade habitual e o
único som que resta é aquele do relógio, que marca o tempo que passa.
47
Em artigo de Lubert Das, escrito neste ano de 2021 para o site Resident
Sound, o grupo alemão BOHREN & DER CLUB OF GORE é apontado como o
primeiro do gênero, tendo sido fundado em 1992, ano de lançamento do filme Os
Últimos Dias de Laura Palmer. A trilha musical de Angelo Badalamenti para a série e
para o filme subsequente são relatados como algumas de suas principais influências
sonoras. O grupo cult se tornou referência para vários conjuntos mais recentes, que
adotaram um estilo parecido e desenvolveram-no enquanto gênero musical –
notavelmente o quarteto francês Dale Cooper Quartet, que empresta para si o nome
do próprio herói da série.
Pode-se dizer, portanto, que neste trecho da série que analisamos, encontra-
se um pouco da raiz do que veio a se tornar um novo gênero musical. E é na costura
dessa atmosfera nebulosa e tensa que o episódio segue.
De volta à casa dos Palmer, aos 33:25 minutos de episódio, surge de volta o
ruído ameaçador da agulha sobre o disco de vinil, conforme Sarah ainda rasteja pelo
chão da sala. Materializa-se, então, no centro do cômodo, um cavalo branco
imponente (figura 11) e, com ele, o ruído da agulha parece diminuir, à medida que
entra, nos 33:44, um gesto musical muito similar àquele que acompanhou a aparição
do Gigante na cena anteriormente analisada: synths médio-agudos, lembrando o
som de sinos e/ou de cigarras, com bastante reverb. A senhora Palmer, ao vê-lo, cai
num sono. O som da agulha no vinil volta a dominar o campo sonoro. O baixo some,
momentaneamente, e reaparece, aos 34:31, numa espécie de pedal ameaçador,
conforme a câmera mostra o pai de Laura em frente ao espelho da sala.
18
“Tell your heart that I’m the one”. LONELY Souls. In: TWIN Peaks, 1991. Criação de Mark Frost e
David Lynch. Direção de David Lynch. Estados Unidos: ABC, 1990. 48 min., son., color. Temporada
2, episódio 7; traduzido pelos autores
51
Pode-se ver o Xerife, Margaret e Cooper sentados a uma mesa; este último
com um semblante muito sério e desconfiado. No minuto 37:52, há um som de
trovão, que não se sabe se é diegético ou extradiegético, e com ele há um corte da
cena e a música se torna ainda mais lenta, íntima, silenciosa e malencólica: um
synth bem grave na base, imitando cordas; arpejos contínuos do teclado sobre ele.
Há a sensação de que se passou algum tempo. A casa está cheia, muitos bebem,
inclusive o copeiro do hotel visto na cena anteriormente analisada. Apesar da casa
cheia, quase não há background perceptível, só ouvimos a música: “A poeira está
dançando no espaço/ Um cão e um pássaro estão muito longe/ O sol nasce e se põe
a cada dia”19.
Eis que o palco fica vazio, a música pára e uma luz direcionada se acende
sobre Cooper. Aos 38:38, há um som de um transiente20 muito lento e grave e, com
ele, o synth médio-agudo, reverberado e contínuo com timbre de sinos/cigarras. As
demais pessoas no bar parecem congeladas no tempo. No palco, um foco de luz e,
sob ele, o Gigante reaparece. Ele olha pra Cooper e diz, com sua voz grave e
profunda: “Está acontecendo de novo”. Sobre a imagem do Gigante, há um fade-in
da vitrola na casa dos Palmer, enquanto o ruído da agulha sobre o vinil volta a
dominar o som do episódio, junto com um baixo, mais sujo que antes.
Leland Palmer (Ray Wise) sorri enquanto se mira no espelho: no reflexo, não
vemos mais a imagem do pai de Laura, mas de Bob. Aos 39:26, uma risada opaca e
maléfica entra no campo sonoro, como um espectro repentino. Leland se vira,
ameaçador (figura 13). O clique da agulha e o baixo distorcido permanecem,
mantendo a tensão dramática da cena. Ouve-se rangidos dos passos na madeira do
assoalho. Leland coloca luvas cirúrgicas, à medida que se ouve a voz de Maddy
(Sheryl Lee), no andar de cima, chamando pelo tio: “O que é esse cheiro? Parece
algo queimando.”. Ao chegar no andar de baixo, Maddy entra em quadro aos 40:09,
19
“Dust is dancing in the space/ A dog and bird are far away/ The sun comes up and down each day/
The river flows out to the sea”. Idem; traduzido pelos autores
20
“São picos de energia de curta duração gerados por componentes não-periódicos e de
comportamento caótico. Ocorrem geralmente no ataque dos sons e contêm grande quantidade de
energia em altas freqüências.A porção do ataque de um som é chamada de estado transiente uma
vez que as componentes freqüenciais não são estáveis. Sua duração varia em torno de 5 a 300
milesegundos. Os transientes são fundamentais na percepção do timbre e na formação da impressão
espacial dos sons. Para a voz, os transientes são de extrema importância, já que constituem a base
de sons consoantes.” IAZETTA, Fernando. Transientes. In: ECA – USP. Disponível em:
<http://www2.eca.usp.br/prof/iazzetta/tutor/acustica/transientes/transientes.html>. Acesso em: 14 de
out de 2021.
52
rico em frequências baixas, nestes momentos: bestial, como a risada de Bob alguns
momentos antes. Tudo isso parece reforçar essa ideia de um som/visão “espectral”.
Figura 14: Iluminação teatral utilizada na cena, conforme Leland/Bob persegue Maddy.
Fonte: LONELY Souls. In: TWIN Peaks, 1991.
21
“Love, don’t go away/Come back this way/Come back and stay/Forever and ever/Please, stay.”
LONELY Souls. In: TWIN Peaks, 1991. Criação de Mark Frost e David Lynch. Direção de David
Lynch. Estados Unidos: ABC, 1990. 48 min., son., color. Temporada 2, episódio 7; traduzido pelos
autores
54
Em seguida, aos 27:27 vemos Cooper andar por um corredor e ele parece
desconfiado ao olhar para uma câmera de segurança no teto. O ambiente é muito
silencioso, não se ouve quase nada além do foley de roupa e passos, muito discreto.
No fundo, emerge bastante sutilmente o timbre de violoncelos, desenhando uma
melodia vagarosa. Cooper se coloca de frente para a câmera e vai para a sala de
monitores de segurança, que se encontra ao lado, para observar a imagem da
câmera. Vai e volta, várias vezes. O som de violoncelos fica levemente mais intenso
quando ele está em frente à câmera. O foley de um elevador se abrindo, nos 27:57,
quebra a quietude da cena, parecendo anormalmente alto para o nível de volume
apresentado até então.
dele a figura do homem que acabara de sair pelo elevador (figura 15). Sobre os
violoncelos, aparecem mais sons desafinados, lembrando rangidos de porta. Cooper
se exaspera ao ver sua imagem no corredor e chama Gordon, sua voz alta e tensa
sobre o fundo musical.
Figura 15: a imagem de Cooper na câmera de segurança e o homem que se aproxima dele.
Fonte: TWIN Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer, 1992.
dois anos. Na tela, vê-se uma sala suja e escura, onde se encontram Bob, o Anão,
além do homem de máscara branca e nariz muito pontudo, e outros personagens,
muitos deles vestidos de lenhadores (figura 16). A sala passa por clarões de luz, que
são acompanhados por sons de eletricidade (29:15 a 29:17) numa região média e
explosões na região grave, que tornam tudo mais difícil de discernir.
23
No universo de Twin Peaks, garmonbozia é uma substância que,no plano físico, se parece, ou é de
fato, creme de milho. O termo aparece como um sinônimo para “dor e sofrimento”, e é uma das
principais fontes de alimento para alguns espíritos, como o Anão e Bob. GARMONBOZIA. In: Twin
Peaks Wiki. Disponível em: <https://twinpeaks.fandom.com/wiki/Garmonbozia>. Acesso em:
01/11/2021; tradução dos autores.
24
“It was a dream. We live inside a dream.” TWIN Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer. Direção
de David Lynch. 1992. 134 min.
25
“Fell a victim.” Idem.
57
anel, eu vos caso”26, volta a voz do Anão. A voz de Phillip ressurge, então: “O anel.
O anel. Ele estava sobre uma loja de conveniência”. Aos 30:04, volta o som de “fora
do ar” sob a trilha musical, e uma voz retorcida não identificada diz: “Eletricidade”.
Jeffries continua: “Eu estive em uma das reuniões deles” 27. A trilha musical continua,
junto aos ruídos de interferência, estalos e sons retorcidos, que voltam a aparecer
nos 30:16. Vê-se mais uma vez um plano geral da sala escura e suja, o Anão e Bob
ao redor de uma mesa de fórmica, com bacias de creme de milho.
26
“With this ring, I thee wed.” Idem.
27
“I’ve been to one of their meetings.” Idem.
28
“He’s gone. (…) Albert, call the front desk.” Idem.
29
I’ve got the front-desk now. He was never here.” Idem.
58
seu legado como uma série de vanguarda, à medida que a saga foi se mostrando
fonte de inspiração para produtos televisivos de grande relevância cultural, no fim
dos anos 1990 e início dos anos 2000 – como David Chase, criador de Família
Soprano (The Sopranos – 1999-2007), declarou em entrevista à Vulture30 e em artigo
da Time31.
É neste cenário que a série volta: tendo, de uma certa forma, a respon-
sabilidade de fazer jus ao seu legado, mas também às expectativas de muitos
daqueles espectadores que ficaram mais de 25 anos esperando algum tipo de
continuação e/ou resolução para as inúmeras pontas soltas e provocações que
haviam sido deixadas pela obra até então jamais finalizada – e toda a nostalgia
associada a isso. Ao final da segunda temporada, Cooper parecia muito diferente
após ter saído do Salão Negro32. Apesar de se passar antes da série, em um dos
lapsos temporais inusitados de “Os Últimos Dias de Laura Palmer”, é revelado que o
verdadeiro Cooper teria ficado preso no Salão extra-imensional, e o Cooper que
saíra de lá seria seu doppelgänger malvado.
30
ZOLLER SEITZ,Matt. David Chase on the Legacy of Twin Peaks. In: Vulture, 2015. Disponível em:
<https://www.vulture.com/2015/05/david-chase-twin-peaks-legacy.html>. Acesso em: 06 de nov de 21.
31
DOCKTERMAN, Eliana. Creators of Lost, Fargo, The Sopranos and Other Shows on How Twin
Peaks Influenced Them. In: Time, 2017. Disponível em: <https://time.com/4769270/twin-peaks-lost-
fargo-sopranos/>. Acesso em: 06 de nov de 2021.
32
O Salão Negro e seu oposto correspondente, o Salão Branco, são locais extra-dimensionais
originários de lendas transmitidas por tribos que habitavam a região de Twin Peaks, o Salão Negro
sendo a “sombra” do Salão Branco, um local de pura maldade, pelo qual todas as almas deveriam
passar no seu caminho para o aperfeiçoamento. Neste processo, o peregrino confrontaria a sua
própria sombra, seu eu maligno. Se esse desafio não fosse enfrentado com coragem, sua alma seria
aniquilada. Enquanto o Salão Branco poderia supostamente ser acessado pelo forte sentimento de
amor, o Salão Negro se abre através do sentimento de medo. BLACK Lodge. In: Twin Peaks Wiki.
Disponível em: <https://twinpeaks.fandom.com/wiki/Garmonbozia>. Acesso em: 01/11/2021; tradução
dos autores.
59
Cooper se dirige ao interior do prédio. Aos 3:49, entra um drone grave, sutil,
conforme a câmera se coloca dentro do cômodo e Cooper abre a porta balcão.
Dentro do cômodo, o drone se sobresai, e os sons dos ventos e das águas se
atenuam até desaparecer. O interior é dominado por luzes contrastantes. Ouve-se o
foley dos passos e da roupa de Cooper. Aos 4:42 ve-se uma figura feminina sem
olhos (figura 19), sob uma luz intensa, conforme surgem alguns ruídos entrecortados
ao fundo, indecifráveis, lembrando o som de papel amassado ou de um tecido solto
contra um vento forte, mas aditados de modo a soar mais graves e entrecortados.
Conforme Cooper se aproxima da mulher, que parece aflita, esses sons se
intensificam, associados à jumpcuts que voltam a dominar a cena, conferindo um
efeito de “pane” e travamento da imagem, algo robótico e pouco natural. Conforme
os dois personagens se dão as mãos, aos 5:16, entra uma trilha musical muito leve,
lenta e de timbres etéreos. Aos 5:33 há um momento significativo, em que Cooper
pergunta: “Onde fica este lugar? Onde nós estamos?”33, e sua voz soa distante,
grave e reverberada. Neste momento a câmera os enquadra de certa distância,
mostrando-os de corpo inteiro e mostrando todo o cômodo, num plano geral. É como
se o som da voz tivesse sido captado da distância que a própria câmera assume
neste momento, reforçando esse ar de distância e estranhamento.
33
“Where is this? Where are we?” PART 3. In: TWIN Peaks, 2017. Traduzido pelos autores.
61
Figura 20: Eles saem por uma espécie alçapão, em uma caixa preta de ferro que flutua no meio do
espaço sideral
Fonte: PART 3. In: TWIN Peaks, 2017.
34
METCALF, Mitch. UPDATED: SHOWBUZZDAILY's Top 150 Sunday Cable Originals & Network
Finals: 6.25.2017. In: Showbuzzdaily, 2017. Disponível em: <https://web.archive.org/web/20170628
042417/http://www.showbuzzdaily.com/articles/showbuzzdailys-top-150-sunday-cable-originals-
network-finals-6-25-2017.html>. Acesso em: 14 de out de 2021.
35
I’ve praised this one so many times on this site (even writing a stand-alone piece about it) that I don’t
know if I can add much — except to say that, upon reflection, I think this might be the single most
impressive episode of television drama I’ve seen in the 20 years I’ve been writing full-time about the
medium, not to mention a compact encyclopedia of 20th-century film styles (including music videos and
experimental shorts) and a complete visual, sonic, dramatic, mythological, philosophical, and emotional
experience equal to, and at times seemingly in conversation with, the final act of 2001: A Space Odyssey.
ZOLLER SEITZ,Matt. The 10 Best TV Episodes of 2017. In: Vulture, 2017. Disponível em:
<https://www.vulture.com/2017/12/best-tv-episodes-of-2017.html>. Acesso em: 14 de out de 2021.
64
36
1945: Testada a primeira bomba atômica. In: DW Brasil. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-
br/1945-testada-a-primeira-bomba-at%C3%B4mica/a-592473>. Acesso em: 14 de out de 2021.
37
Ode sobre assunto triste, ou canto fúnebre. TRENÓDIA. In: DICIO, Dicionário Online de
Português. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/trenodia/#:~:text=substantivo%20feminino
%20Ode%20sobre%20assunto%20triste%2C%20ou%20canto%20f%C3%Banebre.> Acesso em: 14
de out de 2021.
65
Em meio a este ambiente, eis que aos 21:21 de episódio surge na tela a Loja
de Conveniência, mencionada por Philip Jefries (David Bowie) em sua aparição no
filme Os Últimos Dias de Laura Palmer (1992). Toda essa sequência é realizada
numa espécie de stop-motion entrecortado, que se relaciona fortemente com a
textura sonora mais esparsa e irregular que a música assume neste momento. Aos
22:32, a música cessa e há um som de vento que parece sofrer uma espécie de
efeito de tremolo muito rápido, que o deixa entrecortado e instável, como as
imagens. Um drone entra, à medida que o som e as imagens da Loja ficam ainda
mais instáveis e parecem sofrer uma espécie de “pane”. No ápice deste “pane”,
surge um transiente grave e metálico que parece levar ao interior do local, onde
finalmente há um maior silêncio. Lá dentro, em meio à escuridão, flutua uma criatura
misteriosa, sem rosto. O ser regurgita, então, com um som grave, uma espécie de
gosma viscosa no ambiente. Junto a essa substância, sementes, ovos, além de uma
espécie de tumor esférico com o rosto de Bob, ameaçador.
Aos 24:48, a trenódia volta, então, com força total, à medida que a tela é
dominada novamente por imagens e texturas mais abstratas e indecifráveis que as
anteriores. Luzes e explosões douradas tomam conta até a aparição de uma espécie
de bolha ou gema de ouro, quando a música parece se acalmar novamente. A
câmera se aproxima lentamente e a atravessa. Uma vez em seu interior, a relativa
quietude é mais uma vez substituída por um arroubo dos violinos, conforme o
espectador é agora levado a uma viagem num aparente vácuo de partículas
avermelhadas até, enfim, chegar a um oceano revolto, cor lilás escuro. A música
cessa e dá lugar ao vento muito forte e o barulho das águas agitadas. A câmera
sobrevoa este oceano, em direção a uma rocha muito alta e comprida. Em seu
cume, há uma espécie de castelo ou fortaleza. É noite. Somos levados ao seu
interior.
Nos 24:54 de episódio, entra um ruído suave de vinil, e uma música repetitiva
toca lá dentro, numa textura jazzística e timbre metálico, como de rádio. O interior é
opulento e há uma mulher gorda, sentada no sofá. O styling é como o de um filme
do expressionismo alemão. Uma espécie de sirene abafada começa a tocar aos
30:10. No meio da sala, há um enorme objeto que se parece com uma chaleira ou
um sino preto, que destoa do resto do ambiente. A sirene parece vir dali. Surge
então, mais uma vez, o Gigante, de trás do objeto estranho. Ele o observa e aperta
um botão. O som cessa. Ele olha para a moça sentada e se retira da sala.
Até que, num dos ápices da música, a partir de uma luz dourada conjurada
sobre o crânio do Gigante, sai uma esfera dourada. Conforme a música continua a
tocar, doce, arrastada e etérea, vê-se dentro da esfera o rosto de Laura Palmer. A
mulher a beija e, então, a solta pelos ares. No telão, agora, vê-se o Planeta Terra. A
esfera luminosa com o rosto de Laura atravessa a tela e segue, em direção a ele. A
música vai diminuindo de volume, e permanece reverberando conforme a senhora
sorri e a observa pelo telão.
Eis que aos 50:59 de episódio, após um brinde, a música anterior se conclui
rapidamente e, então, uma segunda se inicia. Em um segundo, o tom da cena muda
consideravelmente. Quase uma antítese da música anterior, essa segunda peça tem
um andamento muito lento e se inicia por três notas tocadas consecutivamente, de
forma muito pausada, na região mais aguda do piano – chamando a atenção de
forma imediata, já que essa diferença brusca de andamento potencialida o peso
dramático dessa peça que se inicia, também mais alta na mixagem que a anterior.
Além disso, logo na sua primeira nota, o som do background do restaurante se altera
imediatamente, ficando repentinamente muito mais silencioso; quase imperceptível.
É como se a música tomasse conta de todo o ar presente em cena.
Após a senhora e seu filho irem embora do restaurante, por volta dos 52:39, o
pianista volta rapidamente a tocar algo mais alegre e ágil, ainda que mais
melancólico que a primeira peça. O background do restaurante também volta àquela
ambiência mais festiva apresentada anteriormente. Dougie e os Mitchum brindam
mais uma vez e comemoram seu sucesso. Com o aparecimento dos créditos finais,
o pianista, em foco, volta a tocar a música lenta e melancólica, que permanece
dando o tom do encerramento do episódio.
39
“I need some Italian restaurant music. Gimme three songs: one of them should be kinda peppy, one
of them should be slow and sad and heartbreaking.” DOM, Pieter. The story behind Angelo
Badalamenti’s “Heartbreaking” and the pianist playing it in Twin Peaks part 11. In:
WelcomeToTwinPeaks.com, 2017. Disponível em: <https://welcometotwinpeaks.com/music/angelo-
badalamenti-heartbreaking-the-pianist/>. Acesso em: 11 de nov de 2021.
71
Antes das filmagens, foram realizados alguns testes com lentes pelo
fotógrafo, junto à direção, na locação; além de um ensaio geral, com a atriz e a
equipe completa de mais três pessoas (exceto o montador). As filmagens em si
foram realizadas nos dias 11/09 e 18/09. Após isso, as imagens foram enviadas para
o montador. Com a montagem encaminhada, foi realizada a captação da trilha
musical nos estúdios da Fatec, nos dias 28/09 e 06/09, em formato de voz e piano e
piano instrumental.
6 RESULTADOS E DISCUSSÃO
Twin Peaks é uma saga muito particular em vários níveis. Seja por ter sido um
dos primeiros exemplos de um programa de TV capitaneado por um prestigiado
cineasta autoral; por sua recusa quase sistemática em dar ao expectador o que este
acredita querer; ou mesmo pela sua capacidade de, enquanto frustra a maior parte
das expectativas, manter-se relevante e atual em contextos históricos tão diferentes.
Como Chion (1995) já assinalara sobre a natureza do processo de criação da obra
de Lynch como um todo, e conforme se compreende melhor o processo de criação
da série em si, sob a luz do conceito de Stimmung, fica evidente o quão importante é
o emprego do som para o seu DNA estético. As análises sonoras apresentadas
nesse trabalho, através da leitura de ambiências, vêm reforçar a presença de um
imaginário sonoro relativamente coeso durante toda a trajetória da série, mas que é
plástico e diverso o suficiente para abarcar os drásticos contrastes de tom que a
obra apresenta.
1. Uso criativo e dramático do background, por vezes com textura elusiva e/ou
quase musical;
cena analisada do episódio onze, compostas por Badalamenti, de ares muito mais
tradicionais (“música italiana de restaurante”, como pedira Lynch).
tomada. Isso resultou num processo, por vezes, quase investigativo, de sondagem
dessa “ideia” e seus possíveis atributos físicos e sensoriais. Em outros momentos,
como na produção de áudio, o processo de criação de timbres e texturas se deu de
forma muito experimental, também conforme o próprio processo lynchiano, de
acordo com o que fora relatado por Dean Hurley, seu engenheiro de áudio.
O produto final, diferente do que havia sido previsto inicialmente, tem uma
duração de mais de 10 minutos, chegando à marca de 14 minutos e 10 segundos.
Pela inexperiência da maior parte dos integrantes da equipe com a produção
audiovisual, o processo como um todo foi desafiador, desde a elaboração do Roteiro
Técnico, às filmagens e à pós-produção. No âmbito da produção de áudio, a
experiência colocou à prova inúmeras habilidades adquiridas e/ou aperfeiçoadas
durante o curso de Produção Fonográfica. Foi particularmente rica a oportunidade
de arranjar e produzir uma trilha musical original para a obra, bem como valer-se do
arsenal de recursos técnicos digitais e/ou analógicos que tem-se disponíveis em
casa hoje em dia, a fim de produzir sons e ambiências fantasmagóricas, envolventes
e assustadoras junto às imagens já gravadas e editadas, a fim de atingir o efeito
ditado pela “ideia” inicial. “Um Nome” é um produto audiovisual que tem como
79
inspiração fundamental o som e é através dele que busca estabelecer seu maior
diálogo com quem assiste.
.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste sentido, parece potente, desafiador, e até mesmo necessário, que haja
de mais em mais trabalhos acadêmicos que tenham como proposta embrenhar-se
por esses limites escusos entre o técnico e o sensorial. Por contraditório que seja,
pela sua própria natureza quase “anti-metodológica”, a favor de um processo contra-
intuitivo, que se guie através de “palpites”, o conceito de Stimmung é um trunfo
80
importante para que isso seja realizável (GUMBRECHT, 2014, p.28). É através
deste conceito que foi possível, para o presente trabalho, falar sobre esses “efeitos
de presença” causados pela materialidade das obras na vida física e emocional do
espectador – processo documentado através da “leitura de ambiências”, prevista por
Martoni –, mas também sobre o processo de materialização de uma obra a partir das
sensações do artista, relacionando-o ao conceito de “ideia”, apresentado por Lynch.
É na união dessas duas polaridades que reside, talvez, o principal desafio desse
trabalho, dada a natureza intrinsecamente subjetiva de todo esse processo. Sendo
assim, parece necessário dizer que este trabalho não se pretende enquanto um
“guia de como-fazer-um-filme” para produtores fonográficos (embora isso também
pareça ser uma boa ideia para trabalhos futuros), mas muito mais como uma
demonstração do grande poder que o áudio tem de conjurar as mais específicas e
ambíguas sensações, de dar vida a mundos absurdos, e ser uma potente plataforma
de inspiração para novas ideias e obras.
O caminho percorrido pelo grupo vem, por fim, apenas reforçar a mensagem
que a própria trajetória de Lynch com o cinema aponta. Ao mesmo tempo que
parece mostrar que algo do objetivo principal com esse Experimento foi alcançado:
81
REFERÊNCIAS
CHION, Michel. David Lynch; tradução Robert Julian. Londres: British Film Institute
Publisher, 1995.
DOM, Pieter. The story behind Angelo Badalamenti’s “Heartbreaking” and the pianist
playing it in Twin Peaks part 11. In: WelcomeToTwinPeaks.com, 2017.
Disponível em: <https://welcometotwinpeaks.com/music/angelo-badalamenti-
heartbreaking-the-pianist/>. Acesso em: 11 de nov de 2021.
DOCKTERMAN, Eliana. Creators of Lost, Fargo, The Sopranos and Other Shows on
How Twin Peaks Influenced Them. In: Time, 2017. Disponível em:
83
HATTEN, Robert S.. Interpreting Musical Gestures, Topics, and Tropes: Mozart,
Beethoven, Schubert. Bloomington: Indiana University Press, 2004.
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SFSymphony.org, 2017. Disponível em: <https://www.sfsymphony.org
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Hiroshima>. Acesso em: 14 de out de 2021.
MIRKA, Danuta (ed). The Oxford handbook of topic theory. New York:
Oxford University Press, 2014.
85
NORDSTRÖM, Stefan. Doom metal guide – everything about the music style. In:
Soliloquium. Disponível em: <https://deathdoom.com/doom-metal/>. Acesso
em: 14 de out de 2021.
O’FALT, Chris. Sound Comes First: Inside David Lynch’s Bunker, Where He Started
Creating the ‘Twin Peaks’ Sound Design Over 7 Years Ago. IndieWire, 2018.
Disponível em: <https://www.indiewire.com/2018/05/twin-peaks-the-return-sou
nddesign-david-lynch-hidden-studio-process-deanhurley-1201965234/>.
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PUCCI JUNIOR, R. L.; SOUZA, F. P. de. O Sound design da série Twin Peaks e a
herança de Alan Splet. RuMoRes, [S. l.], v. 13, n. 25, p. 169-191, 2019. DOI:
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RATNER, Leonard G. Classic Music: Expression, Form, and Style. New York:
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SIGHT & Sound’s best films of 2017. Sight & Sound, 2017. Disponível em:
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_____; CLARIDA, Bob. Ten Little Title Tunes. (1ª ed.). New York e Montreal: The
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TWIN Peaks (Temporadas 1 e 2). Direção: David Lynch et al. [S. l.]: Lynch/Frost
Productions, 1990-1991. 10 DVDs (1501 min.), son., color.
TWIN Peaks. Direção: David Lynch. Nova Iorque: Showtime, 2017. 18 vídeos (1025
min.), son., color.
87
TWIN Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer. Direção de David Lynch. 1992. 134
min.
_____. David Chase on the Legacy of Twin Peaks. In: Vulture, 2015. Disponível
em: <https://www.vulture.com/2015/05/david-chase-twin-peakslegacy.html>
Acesso em: 06 de nov de 21.
88
APÊNDICES
Logline
Uma menina acorda um dia e vai se dando conta que não é mais dona de sua
casa. Tudo é igual e nada mais é igual. Chegam novos moradores. Para ficar.
Storyline
Num domingo cedo, uma menina acorda em sua casa. Tudo parecia indicar um
início de dia como todos os outros mas, apesar de tudo estar em seu devido Iugar, ela
percebe que há algo de diferente. Alguém esteve lá durante a noite e parece ter deixa-
do rastros: um pequeno quadro preto numa parede e um estranho objeto de ferro ver-
nacular todo perfurado sobre a mesa de centro. E eles parecem querer se comunicar.
Sinopse Longa
É domingo de manhã. Após ter um sonho estranho, ela acorda em seu quarto,
que parece ter passado a noite inteira de portas e janelas abertas. Incomodada, ela vai
até a sala. Uma outra pessoa anda pela casa.
Aliviada e atordoada, no banheiro ela conversa com seu reflexo e conjura uma
nova figura misteriosa dentro da casa.
89
Argumento
Ela lava o rosto na pia, com água apenas, e se mira no espelho. Silêncio. Ela
vira o rosto para trás, em direção à cama, de modo distraído e irrefletido, como se
tivesse pensado ou notado algo de curioso. Sempre silêncio.
Antes ela estava dormindo, e sonhava: um osso, flutuando sobre o céu azul
sem nuvens. Um osso, flutuando no céu noturno, entre fumaças. Uma voz: algo
sobre si, sobre distâncias e pontes. Som de mastigação.
Desperta no quarto muito claro, pela manhã, como se tivesse passado a noite
inteira aberto. A luz branca de um dia nublado, mas muito iluminado, entra pela porta
da sacada, lavando o interior do quarto. Ela acorda, como incomodada pelo excesso
de luz. O quarto completamente vazio. E frio. Sem cor.
Ela olha para a parede da frente e respira fundo várias vezes, buscando se
induzir a um estado mais meditativo e tranquilo. Neste momento, pode-se ver que uma
outra pessoa anda pela casa. Um homem, vestido com as mesmas roupas que ela
usa. Os dois, no entanto, não parecem reconhecer a presença um do outro
diretamente naquele mesmo ambiente.
Pela primeira vez naquele dia, ela olha para a superfície da mesa de centro e
tudo parece bem, até que ela se dá conta da presença de um objeto que a chama a
atenção, como um ímã. Deste objeto, seus olhos fluem diretamente para um pequeno
quadro na parede, em frente à mesa de jantar. Completamente preto, jamais estivera alí
antes. Ela leva um susto, se levanta e anda até ficar defronte o quadrado escuro, sem
entender, com o cenho comprimido.
90
Ao confrontar o quadro de frente, ela vira seu rosto, desta vez, diretamente para
o objeto misterioso sobre a mesa de centro. Todo perfurado, escuro contra a luz que
vinha de fora. Ela volta a contemplar o quadrado preto e, ao baixar o olhar, se depara
com um chiclete sobre a mesa de jantar. A figura vestida com a mesma roupa que ela
passa agora por trás dela, mas nenhum parece ainda reconhecer a presença do outro.
Ela observa o chiclete sem ter ainda dado um passo sequer. Ela vai até a mesa e o pega
nas mãos.
Eis que o objeto estranho e todo perfurado começa a soltar fumaça pelos
seus buracos. Seus olhos se viram para ele, em curiosidade. Nos seus lábios, há um
resqu ício de um sorriso, misto de excitação e secreto prazer. Ela olha alarmada para o
quadro preto, sua respiração fica muito ofegante e ela pega, então, o objeto e obstrui
cada um de seus furos com uma bola de chiclete que ela acabara de fazer. Ela acende
um cigarro e respira, aliviada.
Na sua cama, antes vazia, agora surge oque parece ser uma nova figura
masculina, também portando suas roupas.
FIM
91
São 11h20. Ela mira seu próprio rosto no espelho do banheiro, parada em
frente à pia. Seu semblante sério e impassível, observando-se fixamente. Então, ela
abre a torneira e molha o rosto com as mãos na água que escorre, com um certo
torpor.
Com uma toalha de rosto branca, ela seca seu rosto. Ainda se observando no
reflexo do espelho, com algum interesse. Até que, pensativa, ela franze o cenho,
como se se perguntasse algo internamente, e vira seus olhos para trás, em direção
à sua cama no quarto, através da porta do banheiro.
São 11h. O quarto está muito claro, banhado de uma luz solar branca e
pálida, típica de dias nublados. A luz entra pela porta da sacada e incide diretamente
sobre ela, que dorme profundamente, com uma máscara preta sobre os olhos. Ela
parece um pouco agitada e incomodada em seu sono.
Um céu muito azul e quase sem núvens. Há um osso muito branco, que plana
solitário frente este céu.
SUSSURRO (V.O.)
Sem corpo.
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Eis que o mesmo osso agora plana num céu noturno, em meio a fumaças. Há
um som incessante de mastigação. Tudo fica escuro. O som de mastigação
continua.
SUSSURRO (V.O.)
Há uma ponte: sem fim.
Com o fim do sonho, ela acorda um tanto bruscamente, tirando sua máscara
dos olhos, pequenos diante da luz do dia. Ela afasta as cobertas do caminho e se
vira para se sentar na cama, visivelmente cansada e intrigada.
Percebemos que ela dormira mascando um chiclete, que ainda carrega dentro
da boca. O quarto está todo aberto: porta do corredor, da sacada, do banheiro, e até
mesmo do guardaroupas, completamente escancaradas. Há algumas roupas no
chão. Ela se levanta e vai até o banheiro, para jogar o chiclete fora e lavar o rosto.
Ela anda aflita pelo corredor muito comprido e estreito em direção à sala.
Ela atravessa a área de jantar até chegar no sofá, na sala, que fica no mesmo
ambiente da casa. Há um pequeno quadro preto na parede em frente à mesa de
jantar, mas ela passa reto, sem o ver. Com movimentos um pouco mecânicos, ela
senta no sofá. Com o celular na mão, ela manda uma mensagem para um número
de celular que não está salvo na sua agenda: "Vocês ainda não chegaram?"
Conforme ela digita essa mensagem de texto, há uma outra figura que anda
pela casa, mas ela não percebe. A figura parece ser um homem. Ele anda
calmamente, como se ninguém mais houvesse alí. Sai do corredor, passa pela sala
de jantar, mas vira direto para a cozinha, de modo que eles não se cruzam. Há um
detalhe curioso: ele veste roupas muito similares às dela. Ela está tensa, no sofá.
"Não", é a resposta que chega à sua pergunta. "Chegaremos por volta das 18h". Ela
lê a mensagem e permanece aborrecida olhando para a parede à sua frente.
São 12h. Ainda no sofá, ela está agora de olhos fechados e sentada em borboleta,
numa postura de meditação. Suas mãos em um Jnana Mudra. Há um barulho forte.
Um estrondo, como se alguém tivesse derrubado algo em alguma parte da casa.
Com o susto, ela abre os olhos. Ela parece não ter certeza se de fato ouviu o que
achou ouvir. Está confusa. Seu olhar cai sobre a mesa de centro. Há um objeto novo
e estranho alí: um perfil metálico todo perfurado, de pé. Ela nunca tivera visto tal
objeto em sua vida. O observa, com receio e desconfiança.
Dalí, seus olhos fluem diretamente para o pequeno quadro na parede em frente à
mesa de jantar, completamente preto. Aquilo jamais estivera alí antes. Ela se levanta
e anda até a área de jantar, para encará-lo de frente.
Uma vez de frente ao quadro enigmático, ela volta o olhar para o objeto de
metal sobre a mesa de centro. Se aproxima dele e tenta pegá-lo, mas toma um
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choque, e há um forte estrondo à partir desse toque. Seus dedos ficam marcados e
doloridos.
Ela volta para o sofá, frente à mesa de centro. Ela masca o chiclete com
movimentos muito rápidos e decididos. Há vêemencia no seu mascar. Até que ela
começa a modelar usando as mãos uma pequena bola com o chiclete da sua boca,
e a coloca sobre a mesa de centro. Porém, de alguma forma, ela continua mascando
o mesmo chiclete e começa, então, a modelar mais uma bola com as mãos, e
coloca-a sobre a mesa de centro, como a anterior. E assim ]sucessivamente.
Sempre com o mesmo chiclete, que parece se multiplicar magicamente dentro da
sua boca.
Nervosa, ela usa as bolas de chiclete para obstruir cada umdos furos do
objeto de metal sobre a mesa de centro. Isso terminado, são quase 18h. Ela se
levanta, de forma um tanto dura e robótica, e se dirige ao corredor.
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Mais tensa e vacilante que antes, ela anda pelo corredor muito comprido, e
agora mais escuro, em direção ao quarto. Há um silêncio sepulcral no ar.
Ela segue em direção ao banheiro. O sol se pôe lá fora. Tudo é mais escuro,
menos nítido.
Ela lava o rosto em frente ao espelho. A água escorre pelo ralo como se fosse
sugada por um vácuo. Há marcas negras em seus dedos. Ela se encara no espelho,
de forma mais incisiva e ameaçadora que anteriormente naquele mesmo dia. Ela
parece cansada e abalada. Seus movimentos são estranhos e desconexos, bem
como sua fala.
ELA
(de forma entrecortada e pouco natural)
Qual é o seu nome?
Ela pergunta para o seu próprio reflexo. Algo parece chamar sua atenção e
ela olha para trás, em direção à cama, mais uma vez.
ESCURIDÃO.
FIM
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OPÇÃO 1
PLANO 1: CLOSE, rosto dela centralizado através do espelho. Ela se olha, abaixa
para molhar o rosto e levanta novamente, saindo e entrando no quadro. Ela se
observa e, conforme se seca, a câmera vai se movimentando para trás lentamente,
assumindo um plano OVER THE SHOLDER (sobre o seu ombro direito) da
personagem em frente ao espelo, de costas para acâmera. Confome ela seca seu
rosto, a câmera continua a se mover para trás e para a lateral esquerda, até assumir
um PLANO APROXIMADO DE PEITO, que pega a personagem de perfil, frente ao
espelho. É aí que ela, pensativa, como se ouvisse algo, vira a cabeça para trás, pelo
seu lado direito, em direção à cama, no quarto.
OPÇÂO 2
PLANO 1 : CLOSE, rosto dela centralizado através do espelho. Ela se olha, abaixa
para molhar o rosto e levanta novamente, saindo e entrando no quadro novamente.
Ela se observa e, conforme se seca, a câmera vai se movimentando para trás
lentamente, assumindo um plano OVER THE SHOLDER (sobre o ombro direito da
personagem) da personagem em frente ao espelo, de costas para a câmera.
PLANO 2: PLANO MÉDIO da cama centralizada, onde ela deita com a cabeça
elevada sobre muitos travesseiros, enquanto muda de posição algumas vezes,
parecendo desconfortável.
PLANO 1: PM, um céu muito azul e quase sem núvens. Há um osso muito branco,
que plana solitário frente este céu.
SUSSURRO (V.O.)
Sem corpo.
PLANO 1: PM, eis que o mesmo osso agora plana num céu noturno, em meio a
fumaças. Há um som incessante de mastigação. Tudo fica escuro. O som de
mastigação continua.
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PLANO 4: PLANO SUBJETIVO, PAN, do ponto de vista dela, olhando para o quarto.
PLANO 7: PG, de frente para a porta do banheiro, ela se levanta e se dirige até o
banheiro. Barulho dela jogando o chiclete no lixo e ligando a torneira.
PLANO 1: PG, mesmo do Pl. 7 Cena 5, ela sai do banheiro, observa o quarto e um
VESTIDO específico chama sua atenção sob o guarda-roupas.
PLANO 5: mesmo PAT do Pl. 3, ela sai do quarto em direção ao corredor. A câmera
a segue e fica na porta a observando se afastar pelo corredor muito comprido.
PLANO 1: câmera a acompanha de costas, num PAP, pelo corredor, onde ela anda
aflita em direção à sala. Conforme ela sai do corredor, a câmera faz um TILT para
cima e focaliza a campaínha torta sobre a porta do corredor, em CONTRA-
PLONGÉE.
PLANO 1: PM, destaque para a parede atrás da mesa de jantar, com apenas um
pequeno QUADRO preto. Ela sai pela porta da cozinha, passa em frente à câmera e
atravessa até o sofá, na sala de estar. A câmera faz um ângulo de 90 graus no
mesmo ponto para a mirar sentando no sofá.
PLANO 2: PAP PLONGÉE traseiro, ela tem o celular nas mãos. PLANO 3: PM, do
lado oposto do sofá, ela mexe no celular e pode-se ver um vulto masculino, fora de
foco no fundo da cena, que sai do corredor e vai até a cozinha. Nenhum dos dois
parece dar conta da presença do outro alí.
PLANO 1: PG, ela medita de olhos fechados sobre o sofá, seu perfil cortado pela luz
que entra pelas portas da sacada.
PLANO 2: PG, de frente para o sofá (câmera prox. ao nível do chão?). Ela medita
ainda. ESTRONDO.
PLANO 4: PS, seus olhos fluem rápidos em direção ao corredor e logo se perdem de
volta na sala. Sua visão vai sobre a MESA DE CENTRO. Ela vê o OBJETO - entra a
TRILHA. PAUSA.
PLANO 6: PS, seus olhos fluem dalí diretamente para o QUADRO preto do outro
lado da sala - volta a TRILHA.
PLANO 7: PAP, mesmo do Pl. 5, trilha resolve com o semblante dela na tela. Ela se
levanta.
PLANO 8: PG, de frente para o sofá, conforme ela se levanta para encarar o
QUADRO de frente.
PLANO 9: PM, ela de perfil do lado esquerdo, encara o QUADROna parede do lado
direito.
PLANO 11: PS, seus olhos se viram para o OBJETO sobre a MESADE CENTRO.
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PLANO 12: foco no OBJETO sobre a mesa, mais à direita. Ela chega e tenta pegá-lo
com as mãos, vemos apenas seus braços esuas pernas. ESTRONDO ELÉTRICO.
Ela toma um choque do OBJETO.
PLANO 13: PD das suas mãos, que ela olha: estão marcadas, como que
escurecidas por carvão. Ela resmunga de dor.
PLANO 14: PAT, de frente para ela, que olhava em direção às portas de vidro, mas
se vira para encarar mais uma vez o QUADRO.
PLANO 16: como o Pl. 10, mas agora há uma MANCHA branca no meio do
QUADRO. Esse plano demora mais que o 10, como se o quadro a encarasse
devolta.
PLANO 17: PAT dela que baixa os olhos para a mesa de jantar, vazia a não ser por
um CHICLETE que lá respousa.
PLANO 18: Vê-se o CHICLETE na mesa, em primeiro plano e o tronco dela que se
aproxima para observá-lo. Neste momento, um vulto passa por trás dela, fora de
foco.
PLANO 22: PG, próximo ao nível do chão, MESA DE CENTRO em foco. Ela chega e
senta-se no chão, ao lado da mesa de centro.
PLANO 23: PD, ela mastiga vertiginosamente. Começa a modelar uma bola com o
CHICLETE mascado, sem parar de mascar.
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PLANO 25: como o Pl. 22, ela coloca a bola sobre a mesa.
PLANO 26: PG, ela de perfil contra a luz que entra pelas portas da sacada,
mascando o CHICLETE e multiplicando-o e várias bolas.
(TELA PRETA?)
PLANO 2: PM dela por trás, ainda ao lado da mesa de centro. Câmera começa na
altura dela sentada no chão e se eleva, como se fosse alguém se levantando do
chão, para ver a MESA DE CENTRO, cheia de bolas de CHICLETE.
PLANO 6: PS ela olhando para o OBJETO, seu olhar vira-se, mais uma vez,
diretamente para o QUADRO.
PLANO 7: CLOSE no quadro, com a mancha branca ainda maior em seu centro.
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PLANO 10: PM, como o Pl. 2, ela olha em direção à luz que entra pelas portas de
vidro. Olha para a tela do celular.
PLANO 12: PM, como o Pl. 10, ela se levanta muito austera e anda robótica, rumo
ao corredor, conforme a câmera se afasta.
PLANO 13: PG (como quem está na sala de estar) ela atravessa a sala de jantar
rumo ao corredor - TAKES GRAVADOS DE TRÁS PRA FRENTE DAQUI EM
DIANTE.
PLANO 2: PAT de frente, ela anda pela penumbra do corredor, vacilante e cansada.
Vultos passam atrás dela.
PLANO 2: PG, vista da janela. O sol se pôe lá fora. Tudo é mais escuro, menos
nítido.
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PLANO 2: CLOSE, sua imagem no ESPELHO, OTS. Ela olha para as suas mãos,
como que sujas de carvão, a câmera segue a direção do olhar dela e logo volta para
o ESPELHO, onde ela se olha de novo, fixamente.
ELA
(de forma entrecortada e pouco
natural)
Qual é o seu nome?
PLANO 3: PAT lateral esquerdo (como no fim da cena 1), ela de perfil, mirando seu
reflexo, incisiva, após a pergunta. Algo parece chamar sua atenção e ela olha para
trás, em direção à cama, mais uma vez.
ESCURIDÃO.
FIM