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A poética televisual de Samuel Beckett

Gabriela Borges

A poética televisual de Samuel Beckett


Infothes Informação e Tesauro

Catalogação elaborada por Wanda Lucia Schmidt – CRB-8-1922

A POÉTICA TELEVISUAL DE SAMUEL BECKETT

Coordenação de produção: Ivan Antunes


Diagramação: Catarina Consentino
Finalização:

CONSELHO EDITORIAL
Eduardo Peñuela Cañizal
Norval Baitello Junior
Maria Odila Leite da Silva Dias
Celia Maria Marinho de Azevedo
Gustavo Bernardo Krause
Maria de Lourdes Sekeff (in memoriam)
Cecilia de Almeida Salles
Pedro Roberto Jacobi
Lucrécia D’Aléssio Ferrara

1ª edição: novembro de 2009

© Gabriela Borges

ANNABLUME editora . comunicação


Rua Martins, 300 . Butantã
05511-000 . São Paulo . SP . Brasil
Tel. e Fax. (011) 3812-6764 – Televendas 3031-1754
www.annablume.com.br
Dedico este livro aos meus queridos avós, Fili (in
memorian) e Dina, que me incentivaram a começar
esta jornada intelectual que tornou-se a minha vida.
AGRADECIMENTOS

A escritura deste trabalho não teria sido possível sem o incentivo e


o estímulo daqueles que acreditaram no meu projeto. Gostaria de agradecer,
em especial, ao Professor Doutor Arlindo Machado, que sempre fomentou
as minhas “idéias malucas”, como diria Beckett, e à Professora Doutora
Anna McMullan, que me abriu as portas do universo beckettiano.
Agradeço também aos meus amigos e colegas investigadores Hudson
Moura, Izabela Brochado e Yvana Fechine, que sempre estiveram dispostos
a discutir as minhas idéias e à minha amiga Josette Monzani, que
acreditou neste projeto e me ajudou a publicá-lo.
Ao meu marido e companheiro, Alex Caravela, que me ajudou a
traduzir o trabalho do Beckett para o português e tem me apoiado nesta
longa jornada. À minha família, pelo apoio incondicional que recebi
nas inúmeras viagens e ausências.
Agradeço ainda à Capes, pela concessão da bolsa que permitiu a
realização desta pesquisa no exterior, e à Fapesp pela disponibilização
da verba que possibilitou esta publicação.
Neither

TO AND FRO in shadow from inner to outershadow


From impenetrable self to impenetrable unself by way of neither
as between two lit refuges whose doors once neared gently close,
Once turned away from gently part again
beckoned back and forth and turned away
heedless of the way, intent on the one gleam or the other
unheard footfalls only sound
till at last halt for good, absent for good from self and other
then no sound
then gently light unfading on that unheeded neither
unspeakable home
(BECKETT )
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .................................................................................. 00

INTRODUÇÃO ..................................................................................... 00

CAPÍTULO I – BECKETT: ARTISTA MULTIMÍDIA ...................... 00

A DESCONSTRUÇÃO DA LINGUAGEM ........................................ 00

AS PEÇAS TEATRAIS .......................................................................... 00

AS PEÇAS RADIOFÔNICAS ............................................................... 00

A VORACIDADE DA CÂMERA-OLHO ............................................. 00

A Produção .................................................................................. 00
A Agonia da Percepção ............................................................... 00
A Câmera-Olho ........................................................................... 00

CAPÍTULO II – A EXPERIÊNCIA TELEVISUAL ............................ 00

A COLABORAÇÃO COM A BBC ...................................................... 00

O Gênero Dramático ................................................................. 00


Os Anos Dourados ...................................................................... 00
As Produções Beckettianas ......................................................... 00

A DIREÇÃO NA SDR ........................................................................... 00

CAPÍTULO III – AS TELE-PEÇAS ..................................................... 00


AS VOZES DA MEMÓRIA ................................................................... 00

Elementos Estéticos .................................................................... 00


A Memória e a Imaginação ........................................................ 00
As Produções ............................................................................... 00

OS FANTASMAS ................................................................................... 00

Elementos Estéticos .................................................................... 00


A Percepção ................................................................................. 00

AS IMAGENS DA MEMÓRIA ............................................................. 00

Elementos Estéticos .................................................................... 00


Beckett & Yeats ........................................................................... 00
Beckett & Proust ......................................................................... 00

A ZONA DE AUSÊNCIA

Elementos Estéticos .................................................................... 00


A Repetição ................................................................................. 00

A OUTRA NOITE

Elementos Estéticos .................................................................... 00


A Imagem-Sono e a Imagem-Sonho .......................................... 00

CAPÍTULO IV – AS TRANSCRIAÇÕES .......................................... 00

A BOCA VERBORRÁGICA ................................................................ 00

AS MÁSCARAS DA MORTE ............................................................... 00

CAPÍTULO V- A POÉTICA TELEVISUAL ....................................... 00

O DOMÍNIO TECNOLÓGICO ......................................................... 00

AS RELAÇÕES INTERSEMIÓTICAS ................................................ 00


BIBLIOGRAFIA ..................................................................................... 00

ANEXO ................................................................................................... 00

Fichas Técnicas das Produções Audiovisuais ....................................... 00


APRESENTAÇÃO

Beckett e a televisão: é possível imaginar esse encontro? De um


lado, temos o dramaturgo do absurdo, obcecado com a extrema economia
de meios e com um minimalismo radical, a ponto de roçar o vazio e o
nada; o poeta dos tempos mortos e dos personagens moribundos, sem
ação e sem horizonte, de falas em tom baixo, quase mudos. De outro
lado, a televisão, o meio por excelência do entretenimento frenético, da
interpelação constante do espectador, do espetáculo a qualquer preço,
da pirotécnica visual, dos apresentadores histriônicos, da emoção forte
a cada minuto. No entanto, os dois se encontraram em algum momento
entre os anos 1960 e 1980, na Grã-Bretanha e Alemanha. Beckett, que já
vinha de uma experiência visceral com o rádio e o cinema, aceita o
desafio de enfrentar o meio anti-beckettiano por excelência, enquanto a
televisão corre o risco de implodir e literalmente sair do ar. O resultado
é uma pequena coleção de programas desconcertantes, que não deixam
de causar assombro e inquietação quase meio século depois de levados
ao ar. Esses programas não deixam de ser também exemplos eloqüentes
de que televisão é um conceito flutuante, que pode assumir as feições
mais variadas quando há ousadia e vontade crítica suficientes para propor
soluções mais inventivas e menos esclerosadas que as usuais.
Este livro de Gabriela Borges é uma das raríssimas abordagens
desse encontro quase impossível entre Beckett e a televisão. Mesmo no
plano internacional e mesmo em língua inglesa, a bibliografia sobre
essa insólita experiência é mais escassa que os exemplares de um animal
em extinção. Mas Gabriela Borges não se deixou acuar pela falta de
reflexão anterior sobre o tema, nem pela dificuldade de bibliografia e de
acesso aos materiais audiovisuais. Dedicou-se durante mais de quatro
anos ao tema, dois dos quais na Europa, refazendo o percurso de Beckett,
buscando ajuda nos institutos que se dedicam ao estudo da obra do
célebre dramaturgo irlandês e batendo nas portas das poucas emissoras
de televisão que se arriscaram a investir em Beckett. O resultado foi
uma elogiada Tese de Doutorado defendida na PUC-SP que, depois de
revisada a partir das sugestões da Banca Examinadora e colocada numa
linguagem mais acessível, transformou-se neste livro que o leitor tem
em suas mãos.
A idéia desta análise da obra televisual de Beckett nasceu no seio
das discussões de um grupo de pesquisa chamado Núcleo de Estudos
Televisuais, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Comunicação
e Semiótica da PUC-SP e coordenado por mim. Durante os anos 1990,
esse Núcleo buscou discutir e aplicar o conceito de quality television
(televisão de qualidade), que apareceu pela primeira vez no contexto
intelectual britânico nos anos 1980 e logo foi abraçado por pesquisadores
de outros lugares do mundo como uma palavra-chave para designar uma
nova maneira de se pensar a televisão. É verdade que a discussão sobre
a qualidade em televisão está longe de ser uma matéria de consenso,
mas o Núcleo buscava experiências de produção televisual que tentavam
quebrar as regras discursivas e temáticas fossilizadas pelo abuso da
repetição, transformando e mesclando gêneros e inserindo diferentes
pontos de vista na construção da narrativa. A discussão sobre a qualidade
permitia então investigar o modo como a televisão intervém, através da
sua mediação, em diferentes dimensões da agenda política e na formação
do gosto estético, e como ela pode se constituir como um produto cultural
inovador, a ponto de gerar novos modos de perceber a experiência
humana e promover a diversidade de representações, a pluralidade de
expressões e a democratização dos meios. Beckett caia como uma luva
nessa perspectiva e Gabriela Borges logo decidiu assumir essa investigação
como sua meta prioritária.
Vale ressaltar que a intervenção de Beckett na televisão não ficou
isolada. Pelo menos um programa importante, surgido posteriormente,
reivindicou a herança beckettiana e se colocou como uma continuação
das experiências televisuais do mestre irlandês. Trata-se do radicalíssimo
programa italiano Cinico TV (RAI-TRE), de Franco Maresco e Daniele
Cìpri, que se passa numa Palermo destroçada, como se fosse uma paisagem
após uma guerra nuclear, onde cerca de meia dúzia de personagens
terminais vive uma situação absurda e sem saída.
Para os que se interessarem pelo tema, a Internet oferece várias
opções de acesso aos trabalhos televisuais de Beckett, que se pode
pesquisar com aplicativos de busca. Oficialmente, a única edição

16 A poética televisual de Samuel Beckett


comercial desses trabalhos em DVD foi feita pela editora alemã Suhrkamp
(www.suhrkamp.de), numa bela edição acompanhada de um caderno de
comentários, mas infelizmente com textos e legendas apenas em alemão.
A única experiência cinematográfica de Beckett, Film, foi lançada em
DVD pela empresa Five Minutes to Live, de Atlanta, EUA.
Que a leitura deste texto instigador sirva de motivação para a
busca de muitas outras experiências inovadoras em televisão que ainda
estão esperando pelo interesse e pela dedicação de pesquisadores
inquietos no campo da Comunicação Audiovisual.

ARLINDO MACHADO

Gabriela Borges 17
INTRODUÇÃO

No começo de um novo século em que o espaço audiovisual está


sendo redefinido e as diferenças entre as mídias estão diminuindo, o
centenário de nascimento de Samuel Beckett em 2006 não apenas
celebrou a brilhante trajetória artística e intelectual do escritor e
dramaturgo irlandês, mas também forneceu elementos para questionar
a produção midiática contemporânea. Ao explorar o potencial artístico
das mídias, nomeadamente da televisão, Beckett aprimora a sua visão
estética e contribui com as suas imagens fantasmagóricas para introduzir
um outro espaço-tempo no domínio tecnológico, que desloca o nosso
olhar e questiona o seu poder de representação da realidade.
Este trabalho discute a poética televisual de Samuel Beckett
elaborada a partir das suas experimentações em diversas mídias e propõe
uma análise estética e intersemiótica das tele-peças e das transcriações
das peças de teatro para a televisão. O primeiro capítulo é dedicado a
uma introdução ao diálogo promovido por Beckett entre vários meios
de expressão artística, com ênfase na experimentação com o uso da
palavra na literatura, do som no meio radiofônico e da imagem e do
som no teatro e no cinema.
O segundo capítulo aborda a conjuntura que permitiu a colaboração
de Beckett com dois canais europeus de televisão pública. Entre os anos
1966 e 1986, Samuel Beckett escreveu e produziu as tele-peças Eh Joe,
Ghost trio e ...but the clouds..., dirigiu a tele-peça Quad e transcriou o
roteiro da peça de teatro Not I para a rede pública de televisão britânica
British Broadcasting Corporation (BBC). Neste mesmo período, dirigiu
as produções das tele-peças Eh Joe, Ghost trio, ...but the clouds..., Quad e
Nacht und Träume e a transcriação da peça de teatro Was Wo para a
televisão pública do sul da Alemanha, Süddeutscher Rundfunk (SDR).
As produções da BBC e da SDR se diferenciam devido a uma série de
fatores conjunturais, entretanto se destacam pela experimentação com
os recursos oferecidos pelo meio televisual e pela investigação de suas
possibilidades expressivas. Neste sentido, as tele-peças beckettianas
oferecem a oportunidade de discutir a televisão como meio de
comunicação de massa e forma de expressão artística.
O terceiro capítulo propõe uma leitura intersemiótica dos elementos
estéticos constituintes das tele-peças Eh Joe, Ghost trio, ...but the clouds...,
Quad e Nacht und Träume, que prima pela intertextualidade na criação
dos personagens e pelo uso recorrente de temas como os atos de ver e de
ser visto, as vozes e as imagens da memória, a fragmentação e a repetição.
O quarto capítulo analisa a transcriação das peças de teatro Not I e What
Where para a televisão, que conta tanto com a reescritura dos roteiros a
fim de melhor se adequarem ao meio quanto com o aperfeiçoamento do
uso das possibilidades de expressão audiovisual.
O quinto capítulo aborda a relação entre a tecnologia e a arte na
elaboração da poética televisual de Samuel Beckett. Os trabalhos de
Martin Heidegger sobre a técnica, principalmente o conceito de Ge-stell,
oferecem o substrato para discutir a possibilidade da arte no domínio da
tecnologia. Levando em consideração que a televisão tem um modo
particular de conceber e enquadrar o mundo em imagens que mostram-
se continuamente visíveis e disponíveis para serem absorvidas, a obra
televisual de Samuel Beckett questiona o poder de representação da
televisão e da própria arte e aponta a possibilidade de um novo saber
fazer da técnica.
A poética televisual de Beckett cria imagens visuais abstratas, que
se comunicam por meio de elementos estéticos mínimos, e imagens
sonoras que distendem o tempo da narrativa, fazendo assim com que o
visível e o invisível se desvelem no constante reenquadramento do
domínio tecnológico. As imagens fantasmagóricas beckettianas
constróem um universo próprio que prima pelas relações intersemióticas
empreendidas na criação dos personagens, no diálogo entre a imagem e
o áudio, na fragmentacão do corpo e na sua encenação como personagem,
na repetição em formas diferenciadas, na percepção, que se desdobra
também no diálogo com a audiência, e no estranhamento.
Por fim, é importante ressaltar que este trabalho é fruto de uma
pesquisa de doutoramento realizada no Programa de Pós-Graduação em
Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São

20 A poética televisual de Samuel Beckett


Paulo e no Samuel Beckett Centre for Drama and Theatre Studies do
Trinity College Dublin com financiamento da Capes e insere-se no
campo das discussões sobre experiências estéticas de qualidade na
televisão iniciadas pelo professor Dr. Arlindo Machado e desenvolvidas
por vários pesquisadores brasileiros ao longo dos últimos anos. O
levantamento bibliográfico e audiovisual foi realizado durante dois anos
em vários centros de pesquisa europeus. Entre eles, é importante destacar
o Beckett Archive, situado na biblioteca da University of Reading, na
Inglaterra, que é mantido pela Beckett International Foundation e guarda
grande parte do trabalho do artista, principalmente os manuscritos das
obras. No BBC Written Archive em Cavershaw, Inglaterra, encontram-
se as correspondências trocadas entre Samuel Beckett e a BBC, relativas
às produções para o rádio e a televisão.
A pesquisa foi realizada ainda nas bibliotecas do Trinity College
Dublin, onde encontram-se as obras do autor, alguns manuscritos e
também a crítica publicada sobre o seu trabalho. Na biblioteca do British
Film Institute, em Londres, do Centre George Pompidou e no Institute
Nacional de l’Audiovisuel, situado na Bibliotéque National de France,
em Paris, foram pesquisadas várias experiências estéticas desenvolvidas
para a televisão em diversos países do mundo.
Sendo assim, espera-se que este trabalho possa contribuir para o
enriquecimento do estado da arte deste campo do saber e estimular o
desenvolvimento da pesquisa sobre televisão de qualidade no Brasil.
Tem o intuito ainda de servir de referência para o ensino de televisão
nos cursos de Comunicação Social das universidades brasileiras e
portuguesas e de contribuir na formação de profissionais com
competência para melhorar a qualidade dos programas de televisão.

GABRIELA BORGES

Gabriela Borges 21
CAPÍTULO I

Beckett: artista multimídia

O dramaturgo Samuel Beckett tem uma extensa produção


intelectual, artística e midiática, apesar de ser mais conhecido pelos
seus trabalhos literários e teatrais. A sua produção teórica sobre crítica
de arte1 foi escrita principalmente durante os seus anos de estudante e
no curto período (1930-31) em que foi professor do Curso de Francês da
Faculdade de Letras do Trinity College Dublin. Quando voltou de Paris
em 1930, após dois anos estudando na École Normale Supérieure, Beckett
não quis seguir a carreira acadêmica, apesar de ser considerado por seus
professores e colegas como um intelectual de primeira linha. Em Paris,
conheceu a vanguarda francesa, principalmente o trabalho dos
surrealistas, e teve a oportunidade de trabalhar como secretário do seu
compatriota James Joyce na preparação do livro Work in Progress.
Beckett escreveu para periódicos parisienses e londrinos e,
principalmente, traduziu vários poemas para as revistas This Quarter e transition.
Após mudar-se para Paris em 1937, ele começou a escrever sobre a obra de
pintores e escritores. Os seus ensaios mais conhecidos são Proust (1931), em
que analisa a obra do escritor francês Em busca do tempo perdido e Three
Dialogues with George Duthuit (1949), em que discute com o escritor e crítico
francês a obra abstrata dos pintores Bram van Velde, Masson e Tal Coat.
A produção artística beckettiana prima pelo uso do potencial
expressivo do meio em que foi criada, pois Beckett força os limites das

1. Estes ensaios encontram-se publicados no livro intitulado Disjecta (1983), organizado


por Ruby Cohn.
possibilidades de comunicação em todos os meios com os quais
experimentou. Na literatura, procurou desfazer a superfície das palavras
em busca de uma literature of the unword, pois não acreditava na expressão
artística por meio de palavras, ao mesmo tempo em que dependia delas
para se expressar. No teatro, questionou a mímese por meio da
fragmentação da ação dramática e explorou o uso artístico e minimalista
da luz. No rádio, trabalhou com os efeitos sonoros e a música de uma
forma até então nunca antes ouvida, pois eles se transformaram em
personagens. No cinema, explorou o ponto de vista da câmera,
subvertendo a autoridade do olhar, e o áudio, ou melhor, a sua inexistência.
E finalmente, na televisão, as imagens fragmentadas e abstratas de Beckett
questionaram o poder de representação deste meio audiovisual.

A desconstrução da linguagem
No rádio, no cinema e particularmente na televisão, Samuel Beckett
faz parte de um grupo de autores, como Jean-Luc Godard, Bill Viola, Nam
June Paik, Peter Greenaway, que teve a oportunidade de inventar e
experimentar com este meio. Porém, devido ao seu experimentalismo, os
seus trabalhos não se adequavam ao que estava sendo exibido no fluxo
televisual, fazendo com que fosse visto como um outsider. Mas isso não era,
de forma alguma, um problema para Beckett. Diferentemente do diretor
de televisão Dennis Potter, entre outros, que alimentava a fama por meio
de sua auto-promoção, Samuel Beckett sempre fez questão de se manter
afastado da mídia. Não dava entrevistas, não permitia ser fotografado e
nem mesmo foi receber o Prêmio Nobel de Literatura que lhe foi concedido
em 1969. Inclusive, as únicas imagens que a equipe de produção da BBC
conseguiu gravar do autor durante os ensaios de uma das suas tele-peças
ficaram tão ruins que não puderam nem mesmo ser assistidas. Em 1956,
ele escreveu para Schneider (apud KALB, 1994: 124-5): “o sucesso e o
fracasso com o público nunca me preocuparam muito, na verdade eu me
sinto mais confortável com o segundo, pelo fato de ter respirado fundo o
seu ar estimulante durante toda a minha vida de escritor” 2.

2. “the sucess and the failure on the public level never mattered much to me, in fact I feel
much more at home with the latter, having breathed deep of its vivifying air all my
writing life”. [Todas as traduções do inglês para o português são da autora.]

24 A poética televisual de Samuel Beckett


Além de não se importar com a fama, Beckett pensava que o artista
estava fadado ao fracasso porque ele nunca conseguiria expressar o
inexprimível. Num diálogo com Duthuit sobre o pintor holandês Bram
Van Velde, Beckett (1999: 125) afirma que “ser artista é fracassar como
ninguém mais tem a ousadia de fracassar, este fracasso é o seu mundo e
esquivar-se disso, a sua deserção (...)”3.
Muitos críticos se referiram à estética do fracasso que está presente na
sua obra, ainda mais porque estas idéias também são expressas por intermédio
de seus personagens. Como, por exemplo, no seu livro Worstward Ho (1983:
7), em que se lê a seguinte passagem: “Tentou sempre. Fracassou sempre.
Não tem problema. Tenta de novo. Fracassa de novo. Fracassa melhor”4. No
caso da literatura, este fracasso está relacionado à impossibilidade de se
expressar por meio de palavras e o desejo de livrar-se delas, mesmo sabendo
que elas não podem ser eliminadas completamente.
Isto pode ser constatado na carta que Beckett (1983: 172) enviou
em 1937 para o seu amigo alemão Axel Kaun, em que escreve que não
há um objetivo maior para um escritor do que “perfurar um buraco
depois do outro [na linguagem] até que, aquilo que se esconde atrás dela
– seja isto alguma coisa ou nada – comece a transparecer”.5 Beckett
procurava um método que lhe permitisse dissolver a materialidade da
palavra e conseqüentemente o seu significado por meio da própria palavra,
no sentido da leitura ser percebida como um “padrão de sons suspensos
em alturas vertiginosas que encadeiam abismos impenetráveis de
silêncios”6, como acontece com o som na música ao ser interrompido
por enormes pausas, como na Sinfonia N° 7, de Beethoven.
Neste sentido, como o próprio Beckett (1983: 173) salienta, o seu
desejo de criar uma literature of the unword7 o afasta de James Joyce, que
segundo ele estava mais preocupado com a “apoteose da palavra.” Em
1928, no ensaio Dante... Bruno... Vico... Joyce, Beckett aponta características
comuns entre o trabalho de Joyce e dos autores italianos, principalmente

3. “to be an artist is to fail, as no other dare fail, that failure is his world and shrink from
it desertion (...)”.
4. “Ever tried. Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better”.
5. “to bore one hole after another [in language] until what lurks behind it – be it something
or nothing – begins to seep through”.
6. “path of sounds suspended in giddy heights, linking unfathomable abysses of silence”.
7. “literatura da des-palavra”.

Gabriela Borges 25
Dante, e afirma que “a sua escrita não é sobre alguma coisa, ela é a própria
coisa”8 (1983: 19-34 – grifos do original). De fato, como Oppenheim
(2000: 7) observa, os próprios trabalhos que Beckett veio a criar anos
mais tarde também podem ser vistos sob esta ótica. De uma certa forma,
o trabalho de Joyce influenciou Beckett, mas este tinha consciência de
que deveria seguir o seu próprio caminho, inclusive porque seu modo
de ver a literatura era bem diferente. Um exemplo disso é que Joyce
sabia explicar cada linha que tinha escrito, enquanto Beckett não
conseguia explicar nenhum dos seus trabalhos.
A busca pela desconstrução da linguagem escrita levou Beckett a
se interessar por outras formas de expressão, como a música e a pintura,
que acabaram influenciando os seus trabalhos nos meios audiovisuais,
pois eles apresentam a possibilidade de explorar as imagens e os sons e
romper com a superfície das palavras, dando lugar ao que Deleuze se
refere como o “aparecimento repentino do vazio ou do visível per se, do
silêncio ou do som per se” (1995: 22 - grifos do original). Nos meios
audiovisuais, a inexpressibilidade das palavras ganha um novo estatuto,
pois elas perdem a sua materialidade ao se tornarem as vozes da memória
e da imaginação.

As peças teatrais
The key word in my plays is perhaps
(BECKETT).

Na década de 1950, Beckett transitava num ambiente artístico que


estava transformando o teatro europeu, pois as peças que estavam sendo
produzidas por autores como Eugéne Ionesco e Bertold Brecht rompiam
com as convenções do naturalismo e do realismo teatral. Sabe-se que
desde os seus dias como professor do Trinity College Dublin, Beckett já
criticava o romantismo e o naturalismo por atribuírem valores absolutos
a um sistema de referência e ponto de vista. Principalmente o naturalismo,
pelo fato de não apresentar nenhuma complexidade, além de usar
equações pré-concebidas (GONTARSKI, 1985: 15).

8. “his writing is not about something; it is that something itself”.

26 A poética televisual de Samuel Beckett


Roubine (2003: 120-26) afirma que o teatro beckettiano se situa
no contexto do simbolismo. Apesar de não haver nenhum texto que
exponha sistematicamente a concepção simbolista de representação, o
simbolismo introduz algumas idéias cruciais para a arte teatral. Pela
primeira vez, desde o classicismo, “a representação se viu desligada da
obrigação mimética e da sujeição a um modelo inspirado no real”. Para
os simbolistas, a palavra poética tem primazia em relação aos outros
elementos constituintes da teatralidade. A encenação não deve se
materializar, ela deve ser deixada para a imaginação do espectador, como
nas instruções de Alfred Jarry para a encenação de Ubu rei:

O pano desvela um cenário que pretende representar Lugar Nenhum,


com árvores ao pé das camas, neve branca em um céu bem azul, ainda
mais que a ação se passa na Polônia, país bem lendário e desmembrado
para esse Lugar Nenhum... (apud ROUBINE, 2003: 123).

Nota-se que Samuel Beckett procura romper com a representação


mimética da realidade desde as suas primeiras peças. O seu primeiro
texto teatral, intitulado Le Kid, foi muito criticado pelos seus professores
quando estreou no Peacock Theatre em Dublin em 1931. Esta peça é
uma paródia de uma tragédia do século XVII intitulada Le Cid, de Pierre
Corneille. A peça beckettiana usa diálogos do texto original e introduz
várias piadas visuais, principalmente em relação ao tempo. A unidade
clássica do tempo, ou seja, de que uma peça deve ocorrer num período
de vinte e quatro horas, é parodiada por meio de um personagem descrito
como “uma figura silenciosa sentada em uma escada e fumando um
cachimbo, [brincando com] truques einsteinianos sobre o tempo”9, que
muda os ponteiros de um grande relógio pendurado na parede
(KNOWLSON, 1997: 122-24).
O seu reconhecimento como dramaturgo veio com a estréia de
Waiting for Godot em 1953. Esta peça inovou o modo de se fazer teatro
nos palcos de Paris e Londres. Sua repercussão fez com que as regras que
regiam o drama teatral fossem revistas, pois mudou a opinião das pessoas

9. “a silent figure seated on a ladder and smoking a pipe [playing] Einsteinian tricks with
time”.

Gabriela Borges 27
sobre o que se podia esperar de uma peça de teatro. Como Ben-Zvi
(1985: 24) sugere, Beckett questionou a própria definição do drama como
a imitação de uma ação ao fazer com que os personagens falassem ao
invés de se moverem ou falassem sobre os seus movimentos enquanto
se mantinham parados no mesmo lugar.
Principalmente depois de Happy Days (1961), em que a personagem
Winnie está enterrada num monte de areia até a cintura no primeiro ato
e no segundo ato até o pescoço, os cenários passaram a não representar
mais um espaço definido de ação no sentido realista do termo. O palco
apresenta apenas um mínimo de elementos e a performance dos atores é
enfatizada com o uso de focos de luz em meio à escuridão. Na peça A Piece
of Monologue (1979) vê-se somente a cama pouco iluminada e a figura do
locutor em camisola de dormir, enquanto That Time (1975) mostra apenas
o rosto iluminado do ouvinte. Em Play (1962-3), os personagens estão
dentro de vasos e somente suas cabeças são vistas quando enfocadas pelos
focos de luz. Em Rockaby (1980) vê-se apenas a cadeira de balanço em que
a personagem W está sentada e em Footfalls (1975), somente a personagem
fantasmagórica de May está iluminada ao andar compassadamente de um
lado para o outro do palco. Este recurso atinge o seu ápice nas peças Not
I (1972), em que se vê apenas uma boca iluminada e a figura ofuscada do
ouvinte e em What Where (1983), em que se vê três cabeças falantes suspensas
no palco e um megafone pouco iluminado.
As narrativas das peças perdem a linearidade baseada na unidade
de ação aristotélica, com começo, meio e fim e tornam-se circulares, da
mesma maneira que os diálogos passam a não corresponder mais às
ações. Play, por exemplo, termina com a expressão “da capo”, indicando
que as ações devem ser repetidas novamente. Em Krapp’s last tape (1958),
o personagem Krapp escuta três vezes a mesma parte da fita de áudio em
que as suas memórias estão gravadas. Em Waiting for Godot, os personagens
Didi e Gogo concordam que devem ir embora, mas não se movem.
Os processos de criação das peças de teatro e de televisão se
influenciaram mutuamente, pois elas estavam sendo produzidas no mesmo
período, da mesma maneira que foram influenciadas por Film e pelas
peças de rádio. Na televisão, o autor teve a possibilidade de aperfeiçoar a
sua visão minimalista e a fragmentação do corpo dos personagens de uma
forma que o teatro não permitia. Por outro lado, a inovação da linguagem
teatral foi possível a partir das suas experimentações com a televisão.

28 A poética televisual de Samuel Beckett


As peças radiofônicas
My work is a matter of fundamental sounds
(no joke intended) made as fully as possible,
and I accept responsibility for nothing else
(BECKETT).

O trabalho de Beckett com os meios eletrônicos começou na rádio


BBC nos anos 1950. Autores como Frost (1999: 311), Kedzierski (1994:
5) e Levi (1994: 55-65) afirmam que os trabalhos de Beckett para o
cinema e para a televisão não podem ser analisados se não for considerada
a sua experimentação no meio radiofônico. A sua fascinação pelo rádio
foi marcante na exploração da voz, dos sons e na busca de ritmos diversos.
Alguns membros do Departamento de Drama da BBC, como Martin
Esslin, o Diretor-Geral de Dramaturgia, Donald McWhinnie, diretor de
programas e a produtora Barbara Bray conheciam a reputação de Beckett
como dramaturgo devido ao sucesso da peça Waiting for Godot, tanto na
língua inglesa quanto na francesa. No verão de 1956, John Morris, o
Editor Artístico do Third Programme da Rádio BBC, ficou muito
impressionado quando se encontrou com Beckett, pois achou que ele
tinha conhecimento dos problemas relacionados com a produção de
roteiros para o rádio. Após o encontro, convidou Beckett para escrever
a sua primeira peça de rádio, que foi denominada All that Fall. Nesta
peça de rádio, os efeitos sonoros, como os sons de animais, das rodas de
carro, dos passos arrastados, dos sopros e dos suspiros, os sons da
locomotiva e das pessoas andando na rua têm uma função vital. A história
se passa no caminho que Mrs. Maddy Rooney percorre da sua casa à
estação de trem, onde vai esperar pela chegada de seu marido cego, Mr.
Dan Rooney. A criação deste espaço imaginário remete às memórias de
infância de Beckett, num trecho que costumava percorrer entre Brighton
Road e Foxrock Station, nos arredores de Dublin (KNOWLSON, 1997:
428-30). Com direção de Donald McWhinnie, a peça estreou em 13 de
janeiro de 1957 e foi bem acolhida pelo público e pela crítica, sendo
selecionada pela BBC para concorrer ao Prêmio Itália na categoria
Literário e Dramático.
Em 1957, Beckett escreveu a sua segunda peça de rádio intitulada
Ebb, para ser dirigida por McWhinnie. Este título foi modificado algumas

Gabriela Borges 29
semanas mais tarde para Embers. Apesar de Beckett ter achado o texto
imperfeito e inacabado, a peça ganhou o prêmio da Radiotelevizione
Italiana (RAI) em 195910. All that Fall e Embers se caracterizam pela
exploração das vozes e dos efeitos sonoros e as suas duas peças posteriores,
Words and Music e Cascando, experimentam com o uso da música. O
produtor Michael Bakewell (apud KNOWLSON, 1997: 495-6) afirma
que Beckett foi um dos pioneiros no uso da música como personagem
de uma peça, pois até então esta era usada apenas como background ou
para criar a ambientação.
Depois do sucesso de Embers, o autor escreveu um texto radiofônico
cuja música foi composta por John Beckett, resultando na peça Words
and Music, que estreou no BBC Third Programme em novembro de
1962 (KNOWLSON, 1997: 496-7). Em Words and Music as palavras e a
música atuam como personagens. Words e Music são dois servos de um
velho homem chamado Croak que lhes pede uma contribuição sobre o
tema do amor, incitando-os a serem amigos. De acordo com o pedido de
Croak, Words tenta cantar as suas linhas seguindo as frases musicais
propostas por Music.
A peça seguinte, Cascando, foi escrita originalmente em francês.
Marcel Mihalovici, músico e amigo pessoal de Beckett, recebeu um
pedido da rádio francesa ORTF para compor uma peça e pediu a Beckett
para escrever o texto radiofônico, que estreou com o título de Cascando
em outubro de 1963 na ORTF e no BBC Third Programme em 1964.
Duas outras peças foram escritas em francês no começo dos anos
1960: Esquisse radiophonique (Rough for Radio I), que foi publicada em
inglês em 1976 sob o título Sketch for Radio Play, e Pochade radiophonique
(Rough for Radio II) publicada em inglês no mesmo ano e transmitida
pela BBC Radio 3 no aniversário do autor em 13 de abril de 1976.
O relacionamento desenvolvido com o staff da Rádio BBC foi
muito importante porque mais tarde muitos membros foram trabalhar
na televisão BBC2 e Beckett tornou-se então um colaborador contínuo.
Porém, antes disso, ele trabalhou num projeto cinematográfico

10.
Uma das poucas vezes em que Beckett participou de cerimônias como esta fez com que
ele se arrependesse profundamente de o ter feito, tanto que em 1969 não foi receber
o Prêmio Nobel de Literatura que lhe foi concedido pela escritura do livro Murphy
(KNOWLSON, 1997: 446).

30 A poética televisual de Samuel Beckett


encomendado pelo Evergreen Theatre de Nova York, que incluía a
produção de três curta-metragens que seriam escritos por Samuel Beckett,
Harold Pinter e Eugéne Ionesco, porém somente Beckett finalizou o seu
filme, que foi exibido tanto nos Estados Unidos quanto na Europa.

A voracidade da câmera-olho
Mere eye. No mind. Opening and shutting on
me (BECKETT).

Em 1963, Beckett escreveu o seu único filme, um curta-metragem


em preto e branco intitulado Film. Na estréia, o filme não foi muito bem
acolhido pela crítica, pois foi considerado obscuro e sem propósito, mas
posteriormente acabou sendo reconhecido, principalmente por artistas
e intelectuais, e ganhou vários prêmios, como o Prêmio da Crítica do
Festival de Veneza (1965), o Prêmio Especial do Júri do Festival
Internacional de Curtas de Tours (1966) e o Prêmio Especial do Festival
de Oberhausen (1966).
Beckett tinha muito interesse pelo cinema, tanto que em 1936,
antes de emigrar para a França, enviou uma carta para Eisenstein pedindo
para ser admitido na Escola Pública de Cinematografia de Moscou
(KNOWLSON, 1997: 226). Waugh & Daly (1995: 24) afirmam que a
carta de Beckett provavelmente se perdeu, pois aquele foi um período
bastante confuso para Eisenstein. Ele teve que ficar de quarentena, devido
a uma epidemia de varíola que assolou o país, e parar a produção do
filme O Prado de Bejin, o que levou-o a duvidar da qualidade do roteiro
original e tentar desesperadamente reescrevê-lo.
Apesar de Beckett ter lido os livros de Pudovkin e Arhneim, a
experiência com o cinema era nova tanto para ele quanto para Alan
Schneider, que dirigiu o filme e tentou transpor para a tela a visão
criativa e estética do autor. Numa época em que a Nouvelle Vague estava
começando a dar seus frutos e a questão da autoria era muito discutida
no meio artístico, Schneider (1994-5: 33-5) afirma que não ficou
surpreendido com o fato de Beckett ter se transformado no diretor
propriamente dito do filme.
Como Beckett era muito minucioso nas suas criações, ele fez
questão de participar das filmagens e foi modificando o roteiro à medida

Gabriela Borges 31
que algumas cenas se tornavam impossíveis de serem realizadas. Alguns
críticos, como Peter Brook (apud SCHNEIDER, 1986), argumentam que
uma metade do filme é um sucesso e a outra um fracasso devido aos seus
problemas técnicos, mas outros como Gontarski (1985), por exemplo,
preferem priorizar a importância da discussão sobre o meio fílmico
proposta pelo autor.
O filme é baseado no aforismo Existir é ser percebido, do filósofo
irlandês Berkeley. O enredo é construído em torno de O, o objeto,
representado por Buster Keaton, que foge da percepção do olhar de E
(derivado de eye, a palavra olho em inglês), a câmera-personagem, mas
não consegue fugir da percepção de si mesmo. Ao ser perseguido, O é
protegido pelo ângulo de imunidade de 45°, mas quando este é
ultrapassado, O entra na zona da agonia da percepção. Nestes momentos,
O passa a ser percebido não somente pelo outro, mas também toma
consciência de si mesmo. Beckett (HARMON, 1999: 167) afirma que
não deve ficar explícito até o final do filme que o perseguidor, metaforizado
pela câmera, não é alguém alheio, mas o próprio eu.

A Produção

Film, assim como outras peças de teatro e de televisão de Beckett, é


dividido em três partes que se inter-relacionam. A primeira e a segunda
parte são encenadas, respectivamente, na rua e na escada e mostram o
ponto de vista de E, enquanto a última parte ocorre no quarto e intercala
a percepção de E com a percepção de O. O filme, com duração de vinte
e dois minutos, não tem áudio, somente o som sssh! na primeira parte. O
protagonista é dividido em dois: O, o objeto (Buster Keaton) e E, a
câmera-olho.
Originalmente, o título do filme era The Eye. Coincidência ou não,
o diretor de fotografia de Film é Boris Kauffman, que tinha trabalhado
com Jean Vigo em L’Atalante (1934) e ganhou o Óscar de Melhor Fotografia
com o filme Sindicato de Ladrões (1954), de Elia Kazan, e que também é o
irmão mais novo do cineasta Dziga Vertov, criador do cine-olho.
De acordo com o roteiro, a abertura do filme seria feita com um
plano-seqüência de oito minutos em que seria usada a profundidade de
campo, como no filme Cidadão Kane (1941), de Orson Welles. Este plano-
seqüência serviria para situar o filme no tempo e no espaço, mas foi

32 A poética televisual de Samuel Beckett


cortado devido aos problemas técnicos oriundos da falta de experiência
do diretor, Alan Schneider. Houve problemas com o dolly, que estava sendo
usado numa superfície irregular e também com os efeitos de luz na câmera,
que deixaram a imagem tremida. Por isso, Beckett o substituiu pela imagem
de um olho, que pode ser interpretada como uma referência à seqüência
de abertura de Um Cão Andaluz, de Luís Buñuel e Salvador Dali, e dá uma
estrutura circular ao filme que termina com o close-up de Buster Keaton
com um tapa-olho. Aliás, esta não é a única referência aos diretores
espanhóis: Film é ambientado por volta de 1929, que é o ano em que Um
Cão Andaluz foi realizado. Enoch Brater (apud BIGNELL, 1999: 40) afirma
que o tempo de duração do filme e a justaposição de perspectivas inusitadas
relembram os filmes dada-surrealista dos anos 192011.
Schneider (1994-5: 33-5) conta que a escolha do ator protagonista
e os primeiros dias de filmagem foram um pesadelo. Os atores cotados
para o papel principal eram Charles Chaplin, Zero Mostel e Jack
McGowran, ator irlandês que já tinha atuado em várias peças de Beckett,
mas nenhum deles estava disponível nas datas da filmagem. Na falta de
outro ator, Beckett sugeriu o nome de Buster Keaton, pois o filme teria
uma atmosfera cômica e irreal, que de uma certa forma remeteria ao
cinema mudo. Após ler o roteiro, Buster Keaton não via como o filme
poderia durar mais do que quatro minutos e acabou sugerindo algumas
alterações para que ele ficasse mais cômico. Porém, Beckett, que sempre
foi conhecido por não aceitar nenhuma modificação nos seus roteiros,
não quis nem tomar conhecimento das idéias de Keaton, que por razões
financeiras acabou aceitando fazer o filme sem entender do que se tratava.
Bignell (1999: 39) sugere que apesar da escolha de Buster Keaton
remeter às comédias de vaudeville e slapstick do cinema mudo, Film não
apresenta as convenções deste gênero cinematográfico. Enquanto estas
comédias usam muitos planos gerais e uma câmera fixa, diante da qual
os atores fazem suas performances gestuais, Film prima tanto pela falta
de planos gerais, de música ou intertítulos quanto de uma performance
gestual do ator, usando ao invés disso a câmera-olho como personagem.

11. Aliás, em 1932, Samuel Beckett traduziu para o inglês os poemas de André Breton,
Paul Eluard e René Crevel que foram publicados na revista This Quarter juntamente
com o roteiro de Um cão andaluz (FESHBACH, 1999: 346).

Gabriela Borges 33
Da mesma maneira, o conhecido rosto de Buster Keaton é mostrado
apenas no close-up final, e as suas gags são praticamente inexistentes.

A Agonia da Percepção

Nas notas para a equipe de produção12, Beckett sugere que O está


procurando a casa de sua mãe onde vai cuidar dos animais e
provavelmente passar alguns dias enquanto ela está no hospital. Na
primeira parte do filme, a câmera E persegue O que, ao tentar fugir,
colide com um casal que se assusta. O homem prepara-se para insultá-
lo, mas a mulher não deixa e diz apenas sssh!, o único som de todo o
filme. A mulher percebe o olhar da câmera e mostra ao homem que eles
estão sendo vistos/vigiados. Ambos olham para E e ficam horrorizados.
Neste momento, o ponto de vista de O é revelado e percebe-se que
E ultrapassou o ângulo de imunidade, provocando a agonia da percepção.
Este ângulo de imunidade é um ângulo de 45° que deve ser respeitado
por E. Quando ele é ultrapassado, O se sente ameaçado e tenta se
esconder, agachando-se e cobrindo o rosto para que não seja visto.
A imposição de zonas que não devem ser ultrapassadas ou cruzadas
é comum na obra beckettiana. Na telepeça Quad (1982), quatro
personagens se movem ao redor de um tablado quadrado, repetindo o
mesmo movimento, cada um no seu próprio curso e ritmo, mas evitando
sempre cruzar o centro, que é chamado de E, a zona de perigo.
O ângulo de imunidade é ultrapassado novamente na segunda parte
do filme. Quando O encontra a casa e começa a subir as escadas, percebe
o olhar de E e se esconde, E então volta para a sua posição fora do
ângulo. Quando O começa a subir novamente, ele escuta passos e se
esconde ao lado das escadas, pois não quer ser visto nem pela câmera,
que o está perseguindo, nem por mais ninguém. O personagem E dirige-
se para a escada e vê uma senhora descendo com um buquê de flores
nas mãos. Como estava descendo com dificuldade, a senhora não viu a
câmera, mas quando chega ao pé da escada depara-se frontalmente com

12. Beckett sugere que estas observações não precisavam ficar explícitas no filme. Ele
somente acrescentou-as para facilitar o entendimento do roteiro pela equipe técnica
(HARMON, 1999: 175).

34 A poética televisual de Samuel Beckett


E e se apavora. Neste instante, assim como aconteceu com o casal na
rua, a senhora se assusta e olha para E com a mesma expressão de
pânico. O casal e a mulher olham horrorizados quando se encontram
com E porque tomam consciência tanto do olhar do outro quanto de si
mesmo. O personagem E é, ao mesmo tempo, a câmera e o eu (self).
Todas as vezes que E ultrapassa o ângulo de imunidade, o ponto de
vista de O é revelado. Este ponto de vista, em termos cinematográficos,
é diferente do ponto de vista de E, que prevalece nas duas primeiras
partes do filme. Beckett não tinha muito conhecimento dos recursos
técnicos, mas queria que um outro tipo de imagem fosse usado para
representar o olhar de O. Porém, recusava-se a usar recursos como
imagens compostas, planos duplos, sobreposição de imagens, pois não
queria muita sofisticação técnica, preferia que a técnica fosse usada a
favor do tema, característica que continuou presente nos seus trabalhos
para a televisão alguns anos mais tarde. A solução final para o olhar de
O foi conseguida através do uso de um filtro que deixou a imagem
ligeiramente desfocada, sem muita nitidez. Beckett afirma que:

Não pode haver nenhuma visão normal na imagem. A norma está


na experiência pessoal do espectador, que será necessariamente
comparada com a experiência de E. (...) O espectador nunca verá
como E vê e nunca verá como O vê. Haverá dois desvios da percepção
normal. (...) Uma visão relutante e repulsiva e outra ferozmente
voraz” (GONTARSKI, 1985: 191-2)13.

Sem dúvida, a realização técnica destas idéias não seria fácil, mas
tanto Beckett quanto Schneider acreditavam que seria possível. Porém,
numa pesquisa realizada em 1970 durante a exibição do filme em Nova
York, os espectadores confirmaram que não entenderam a diferença dos
pontos de vista a partir do uso da imagem desfocada, nem a dinâmica do
ângulo de imunidade de 45° (ZILLIACUS, 1976: 186).

13. “There can’t be any normal vision in the picture. The norm is in the spectator’s personal
experience, with which will necessarily compare E’s experience. (...) The spectator will
never have seen as E sees, and never have seen as O sees. There will be two deviations from
normal perception. (...) A reluctant, a disgusted vision, and a ferociously voracious one”.

Gabriela Borges 35
A terceira parte do filme ocorre no quarto e explicita, de certa
forma, a questão da percepção como um duplo. O quarto fechado, como
espaço cênico, foi usado pela primeira vez em Film e tornou-se um recurso
muito explorado nas tele-peças produzidas posteriormente. As ações do
quarto, por sua vez, são subdivididas em três etapas: a preparação do
quarto, o período na cadeira de balanço (destruição das fotos) e a investida
final (desenlace).
Ao entrar no recinto, O vê todos os animais e objetos olhando
para ele e se sente incomodado. Ele cobre o espelho, dispositivo de
reflexo de si mesmo, e se livra dos olhares do gato e do cachorro, iniciando
uma gag própria das comédias do cinema mudo, que era a especialidade
de Keaton. O abre a porta e coloca o gato do lado de fora do quarto, mas
quando vai colocar o cachorro, o gato entra novamente e assim
sucessivamente. Durante esta gag há uma outra referência ao filme Um
Cão Andaluz, que é um plano-detalhe da mão de O fechando a porta, o
qual remete a um plano similar do filme surrealista.
Ao sentar-se na cadeira de balanço com um apoio para a cabeça com
dois furos no meio que parecem dois olhos, O descobre a imagem de uma
escultura sumeriana de um Deus pendurada na parede, cujos olhos também
estão olhando para ele. O simplesmente rasga a imagem e a pisoteia. Isto
pode ser interpretado como uma destruição do olhar de Deus que, segundo
Berkeley, é o único capaz de perceber tudo. Mesmo depois de cancelar
estes olhares que o perturbam, o peixe e o papagaio ainda estão olhando
para ele, e são cobertos com um paletó. Depois de se livrar de todos os
olhares, O começa a ver uma seqüência de fotos que vão desde a sua
infância até a idade adulta. Ele se sente ameaçado pelo seu passado e pelo
reconhecimento de si mesmo nas fotos, que de uma certa forma atestam
a sua identidade. Decide então rasgá-las e jogá-las no chão.
Todos os olhares exteriores perturbam O, que tenta vendá-los,
expulsá-los do quarto ou destruí-los. Entretanto, E continua a olhar para
ele sempre na mesma posição, por trás de sua cabeça. O quarto é visto
graças à percepção de O, que por sua vez é visto graças à percepção de E.
O ponto de vista de O, mostrado através de uma imagem mais desfocada
no encontro com o casal e com a mulher, agora prevalece e torna-se
necessário para o espectador distinguir entre os dois pontos de vista.
A investida final de E começa quando O cochila, isto é, ele vai
tentar ultrapassar o ângulo de imunidade para ver O frontalmente. E

36 A poética televisual de Samuel Beckett


não conseguiu ver o rosto de O em nenhuma das vezes que ultrapassou o
ângulo de imunidade. Este só é visto no final, como uma espécie de epifania.
Na investida final, o ponto de vista reveza entre O e E. Em todo o filme, E
esteve na mesma posição plongée atrás de O, como no momento em que O
está sentado na cadeira de balanço. Os olhares podem ser distingüidos
graças ao uso de dois recursos: a diferença na qualidade da imagem, pois
o olhar de O é desfocado; e a angulação da câmera, uma vez que o ponto
de vista de E é mostrado em plongée e o de O em contra-plongée.
Durante o processo de criação, a idéia de Beckett era fazer com
que no final o olhar de O fosse igual ao olhar de E, expressando
metaforicamente que todo olhar tem sempre embutido em si o olhar do
outro. Para isso, esta imagem de reconhecimento seria uma imagem
especular14, mas no roteiro final ela é um close-up de O com um tapa-
olho e com uma expressão atenta, que realça a expressão de horror do
casal e da senhora na escada, as outras duas vezes em que o ponto de
vista de O apareceu no filme.
O close-up de O foi muito esperado, pois tanto a equipe técnica quanto
o próprio Buster Keaton não entendiam como Beckett podia fazer um
filme com um ator tão reconhecido por sua face e suas caracterizações, e
somente mostrá-lo em close-up no final do filme. Na verdade, Beckett não
estava interessado na fama do ator, muito pelo contrário, os atores para
ele só eram importantes enquanto elementos expressivos.
Aliás, esta é uma das questões principais do filme, Beckett (apud
GONTARSKI, 1985: 190-1) explica nas notas para a equipe de produção
que todos os elementos de cena deveriam ser reduzidos às suas funções
essenciais, isto é, aos objetivos metafóricos pelos quais estavam sendo
usados. Neste sentido, as formas minimalistas dos objetos presentes no
quarto funcionam como uma espécie de suporte abstrato para
proporcionar uma atmosfera irreal ao filme, ao mesmo tempo que
apresentam uma espécie de integridade formal. Na busca deste mínimo
expressivo, Voigts-Virchow (1998: 226) argumenta que Beckett foi
diminuindo os espaços de ação de seus trabalhos de tal forma que a
última peça para a televisão, Was Wo (1986), mostra apenas cabeças falantes
iluminadas num fundo negro.

14. A imagem especular foi usada mais tarde na tele-peça Ghost trio em que aparece um close-up
do personagem F, que Deleuze (1995: 9) afirma ser a imagem, pois para ele Beckett conseguiu
condensar sua forma e sua tensão interna no vazio espacial do silêncio dos planos.

Gabriela Borges 37
Film termina como começou, com um enquadramento do olhar,
porém o olhar de O é parcial, uma vez que um de seus olhos está coberto
com o tapa-olho. Da mesma forma que a consciência que o homem tem
de si mesmo nunca é completa, mas sempre parcial e fragmentada. Os
atos de ver e de ser visto são recorrentes na obra beckettiana, pois os
personagens estão sempre lidando com a percepção do outro e a
insuportável percepção de si mesmo. Como na peça Play (1962-3), por
exemplo, em que a personagem M pergunta: “Puro olho. Mente não.
Abrindo e fechando em mim. Será que eu existo – Será que eu existo
porque... estou sendo visto?” (BECKETT, 1990: 317)15. Na tele-peça Eh
Joe (1966), a personagem Voice fala com Joe quando ele se sente seguro
no seu quarto: “... Ninguém pode vê-lo agora... Ninguém pode achá-lo
agora...” (BECKETT, 1990: 362)16 e na tele-peça ...but the clouds... (1976)
o personagem M esconde-se na escuridão de seu santuário, onde não
será visto por ninguém, para relembrar as aparições de sua amada.
Da mesma maneira, O foge de toda percepção, seja do casal na rua,
da senhora na escada, dos animais e até mesmo das suas próprias
fotografias. Na sua fuga, O se fecha no quarto. No entanto, a tragicidade
de tal ato é que ele só percebe que não pode fugir de si mesmo no final
do filme. Segundo Henning (apud LEVY, 1994-5: 70), a consciência de
si mesmo torna-se tanto o sujeito quanto o objeto do ato de conhecer.
Ao bloquear a sua visão com o tapa-olho, O gostaria de escapar do olhar
de E, e conseqüentemente da percepção de si mesmo, mas não consegue.
À medida que foge, a consciência de si mesmo aumenta, ao ponto de
explicitar a sua duplicidade no momento em que O se percebe em E.

A Câmera-Olho

Beckett cita o aforismo Esse est percipi (Existir é ser percebido) de


Berkeley para explicar o filme. Apesar desta citação não aparecer de
forma explícita, ela serve de referência para a criação do personagem,
que é ao mesmo tempo sujeito e objeto da percepção. A percepção ocorre
na relação entre o ver e o ser visto, pois o sujeito só existe porque vê o

15. “Mere eye. No mind. Opening and shutting on me. Am I as much - Am I as much as
... being seen?”.
16. “...No one can see you now... no one can get at you now...”.

38 A poética televisual de Samuel Beckett


objeto e o objeto só existe porque está sendo visto pelo sujeito, portanto
a percepção não está em nenhuma das duas instâncias, mas entre elas.
De acordo com Bignell (1999: 35), Berkeley afirma que somente a
percepção de Deus mantém os seres vivos no estado de existência. Deus
seria então o autor da existência e a autoridade universal, neste sentido
seria impossível não ser percebido por Ele. Porém, Beckett subverte este
ponto de vista transcendente e onisciente em Film ao dividir o personagem
em dois e usar a própria câmera como sujeito e objeto da percepção. Sob
esta perspectiva, não existe um terceiro ponto de vista, que seria o ponto
de vista do autor que controla a visão e que seria identificado como o
olhar do espectador, que tudo vê e tudo entende. Ao contrário, o filme
divide o ponto de vista do espectador em dois, recusando-lhe a autoridade
da síntese visual dos pontos de vista da câmera.
A questão da percepção é intrínseca ao meio cinematográfico, mas
poucos realizadores conseguiram trabalhar com ela de forma tão apurada
quanto Samuel Beckett. Enquanto em peças teatrais como Play (1962-3),
um dos personagens acredita que existe somente porque está sendo visto,
em Film, O acredita ser capaz de escapar sem que seja percebido.
Entretanto, como salienta Levy (1994-5:69), o medo de ser percebido
representa uma contradição num meio cuja pura existência significa ser
visto. O paradoxo está no fato de que O existe como personagem de
uma imagem na tela que, por pressuposto, já está sendo vista.
Sem dúvida nenhuma que Beckett estava interessado em discutir as
especificidades de cada um dos meios em que trabalhou, seja teatro, rádio,
televisão ou cinema. No caso do cinema, queria questionar o papel realista
do meio, que sempre esteve preocupado em mostrar uma certa realidade,
ou imagens que fossem verossímeis a ponto de facilitar a identificação do
espectador. Gontarski (1985: 104) afirma que, além da luta de Beckett
contra os enredos piegas, realistas e psicológicos não só no teatro como
também no cinema, a sua verdadeira luta era contra um meio essencialmente
realista, capaz de registrar cada detalhe minuciosamente.
O cinema clássico hollywoodiano procura esconder ou fazer passar
despercebido o ponto de vista da câmera a fim de que a história seja
contada da forma mais realista possível. No entanto, Beckett questiona
justamente isso ao nomear a própria câmera (o olho) como personagem.
O espectador se identifica inevitavelmente com E, pela sua atitude
perseguidora, mas é surpreendido no final quando se depara com o close-

Gabriela Borges 39
up de O, sentindo-se parte tanto do ato de perseguir quanto de ser
perseguido, isto é, do confronto entre perseguidor e perseguido proposto
pelo filme.
Neste sentido, Beckett desloca o olhar do espectador, impedindo que
ele se identifique com as imagens e entre passivamente na viagem imaginária
da obra audiovisual, causando com isso um certo desconforto que somente
a arte consegue provocar. Ele estimula este deslocamento do olhar e questiona
o papel do meio ao evitar o uso das convenções cinematográficas, como os
planos gerais que identificam o espaço e o tempo e o campo/contracampo
que define os pontos de vista dos personagens. O uso da regra que impede
a ultrapassagem do ângulo de 45° também não pertence às convenções da
narrativa cinematográfica. Ela pode ser interpretada como uma referência à
impossibilidade de que uma pessoa se veja no espelho ao se posicionar num
ângulo superior a 45°, que, por sua vez, pode ser relacionada à fuga da
percepção por parte de O.
Se a câmera cinematográfica é o dispositivo do olhar que descortina
um mundo novo e diferente, Beckett usa-a metaforicamente para
descortinar e elucidar o mundo do próprio ser humano e de suas
dualidades e inseguranças. Beckett usa a câmera para questionar a
existência humana. O é o objeto que foge da percepção, ele não quer ser
visto pelos outros, mas, ao mesmo tempo, descobre-se no final do filme
que ele está fugindo de si mesmo e de sua autoconsciência. E, a câmera-
sujeito, atua para mostrar que é possível fugir do olhar dos outros, mas
não é possível fugir do seu próprio olhar interior.
Beckett, em sua obra como um todo, questiona e subverte a dicotomia
cartesiana entre sujeito e objeto e, no caso do cinema, a tecnologia
proporcionou a possibilidade de discuti-la em termos expressivos. Porém,
o autor deixa claro que o paradoxo filosófico serve apenas como metáfora
e é usado por conveniência dramática para que a sua criação artística seja
possível, não apresentando nenhum valor como verdade.
O olho é a janela do mundo e da alma, abre-se para o exterior e
para o interior. Ao mesmo tempo em que busca outros mundos, dá
acesso aos sentimentos da alma. Mas a visão nunca é uma percepção do
mundo independente de alguém que perceba, pois não é possível ver-se
vendo a não ser com a intermediação do espelho, que resulta em um
reflexo e faz com que o sujeito do olhar se transforme em objeto. Esta é
a idéia do duplo, do Outro, que Lacan afirma estar sempre presente no

40 A poética televisual de Samuel Beckett


eu, independente de qualquer vontade e que Beckett metaforiza tão bem
não somente em Film, mas em outras obras audiovisuais, como a tele-
peça Eh Joe (1966), em que o personagem Joe é sufocado pelo close-up da
câmera. E persegue O de tal forma que fica impossível fugir. No final,
ele teve que olhar para si mesmo, para aquele olhar voraz que o procurava
insaciavelmente até o momento em que o encontrou e fez com que
tivesse consciência da sua própria fragilidade e insignificância.

Gabriela Borges 41
CAPÍTULO II

A experiência televisual

Na televisão, Samuel Beckett teve a oportunidade de colaborar com


a rede pública de televisão britânica British Broadcasting Corporation
(BBC) e com a emissora pública alemã Süddeutscher Rundfunk (SDR).
Dentre os fatores conjunturais que permitiram que Beckett trabalhasse
para a BBC, o mais importante é o Relatório do Pilkington Committee,
que deu liberdade criativa aos escritores para que proporcionassem novas
experiências audiovisuais para a audiência que por sua vez deveria avaliar
os novos programas que estavam sendo transmitidos. Este Relatório também
propôs a criação da BBC2, cujo Departamento de Drama teve um papel
muito importante no desenvolvimento da narrativa dramática televisual e
foi responsável pela Idade de Ouro da televisão britânica. A Idade de
Ouro ocorreu, em grande parte, devido ao seu modelo de produção que,
diferentemente de Hollywood, valorizava a criatividade dos escritores.
Além disso, o advento do sistema de gravação da câmera de vídeo
juntamente com a carência de roteiros estimularam a criação de material
original para a televisão. Para suprir esta demanda, a BBC2 incentivou
escritores e dramaturgos a escreverem roteiros originais para serem
produzidos especificamente pela televisão. Esta nova safra de programas
dramáticos gerou uma discussão acerca da especificidade do gênero
dramático na televisão e de suas heranças naturais, como a literatura e o
teatro. Com isso, três propostas estéticas começaram a ser negociadas: o
naturalismo, que se desenvolveu como o gênero televisual por excelência;
o anti-naturalismo ou modernismo, que contrapunha as técnicas
naturalistas e usava as técnicas de montagem e do distanciamento; e o
realismo, que veio a se tornar o que alguns autores consideram como o
novo gênero dramático de uma verdadeira televisão de autor.
Samuel Beckett, como um dos grandes dramaturgos e escritores das
línguas inglesa e francesa no século XX, aproveitou a oportunidade para
desenvolver a sua poética também neste meio audiovisual. Suas relações
institucionais com a BBC mostraram-se bastante profícuas, pois escreveu
roteiros, supervisionou as produções e dirigiu a tele-peça Quad. Apesar de se
colocar, de certa forma, à margem da discussão estética que estava sendo
empreendida por roteiristas como Dennis Potter e David Mercer, entre outros,
Beckett não se esquiva da tarefa de pensar e criar para o meio audiovisual
experimentando com as suas ferramentas principais de expressão, a câmera
e os recursos de áudio e edição, para promover um diálogo entre imagem e
som e explorar a invisibilidade do visível das imagens.
Com relação à Süddeutscher Rundfunk, pode-se dizer que a razão
principal que levou Beckett a trabalhar com a emissora pública de televisão
do sul da Alemanha foi o convite irrecusável do diretor de Dramaturgia,
Dr. Müller-Freienfels. Por admirar as peças teatrais de Beckett, que eram
bastante populares junto ao público alemão naquele momento, Dr. Müller-
Freienfels propôs que Beckett dirigisse as suas peças de televisão com total
liberdade criativa nos estúdios de Sttutgart.
Pountney (1994-5: 51) considera que na televisão Beckett teve a
oportunidade de experimentar com alguns recursos que eram inimagináveis
no teatro e investigar o potencial expressivo da nova tecnologia da época,
o sistema de gravação da câmera de vídeo. As possibilidades apresentadas
pela câmera, principalmente o uso do close-up, e a constante repetição do
processo de gravação, que captura e preserva uma imagem que pode ser
repetida indefinidamente, possibilitaram que a sua visão estética fosse
registrada de forma única.
Na leitura dos manuscritos é possível perceber que Beckett estava
procurando encontrar uma forma definitiva de se expressar
artisticamente, que naturalmente nunca foi encontrada. Entretanto, a
tecnologia televisual permitiu a elaboração e a expressão de seu projeto
abstrato, uma vez que as imagens foram gravadas e preservadas da maneira
em que foram efetivamente imaginadas. Em 1986, Beckett (apud Ben-
Zvi, 1985:30) afirmou que estava muito mais interessado em trabalhar
com o meio televisivo do que com o meio teatral porque aquele meio
apresentava mais possibilidades de expressão.

44 A poética televisual de Samuel Beckett


A colaboração com a BBC

O Gênero Dramático
O drama televisual britânico teve início com as transmissões das
primeiras peças pela rede pública de televisão British Broadcasting
Corporation (BBC) em 1936. Estas se desenvolveram a partir dos textos
literários, da linguagem teatral e do rádio e da narrativa clássica oriunda
do cinema. Apesar de Caughie (1998: 29) afirmar que a televisão estava
preocupada apenas com o aprendizado da dinâmica das transmissões ao
vivo e Gardner e Wyver (apud JACOBS, 1998: 39) enfatizarem que se
usavam somente os padrões e estilos do repertório do rádio e do teatro,
a BBC apresentou, desde os seus primórdios, uma preocupação com o
desenvolvimento de uma forma própria de expressão dramática.
Jacobs (1998: 41,50) afirma que as tele-peças não apresentavam um
estilo teatral de apresentação, pois procuravam mostrar os elementos
mais importantes da peça como texto em si e não como expressão teatral.
Mesmo transmitindo peças de teatro ao vivo, na década de 1930 a televisão
já mostrava os primeiros sinais do que seria a construção de uma estética
própria. Esta se caracterizava por uma dupla mediação, ou seja, o
tratamento dado por várias câmeras num estúdio a uma performance
teatral adaptada para ser transmitida ao vivo pela televisão. Com isso, a
performance era mediada de uma maneira nova e com técnicas diferentes
daquelas utilizadas pelos outros meios.
A influência da linguagem cinematográfica, principalmente da
narrativa clássica, pode ser vista principalmente nos enquadramentos,
nos movimentos de câmera e na edição. Adams (1998: 144) afirma que
nos primórdios da história do cinema, Grifitth percebeu que as
características emocionais de uma representação podiam ser realçadas
por meio do uso do close-up, que adquiriu um sentido dramático ao permitir
que o telespectador se aproximasse dos pensamentos e sentimentos do
personagem com uma intimidade nunca antes vista no teatro. O close-up
se tornou a marca registrada da televisão, ao ponto desta ser referenciada
como o veículo das cabeças falantes. Adams (1998: 154) afirma que o close-
up é o plano mais importante da estética televisual porque dá a medida
de todos os outros planos em termos de representação. Ele permite
fragmentar o corpo de um personagem, ressaltar o seu olhar e a sua

Gabriela Borges 45
personalidade, enfatizar certos detalhes significativos para a narrativa.
Juntamente com a posição da câmera e a escolha das lentes, possibilita ao
telespectador compartilhar o processo interior do personagem. Uma outra
contribuição do cinema refere-se às cenas filmadas em películas que eram
usadas algumas vezes nas tele-peças ao vivo como, por exemplo, em
establishing shots ou em planos que serviam para unir duas cenas de estúdio.
A utilização de recursos como telecine, efeitos sonoros, legendas,
uso de quatro câmeras em posições diferentes, inclusive com mudança de
posição durante a transmissão, presença de vários cenários, movimentos
de câmera como a panorâmica e o tiIt, mudança de câmera dentro de uma
mesma cena e a indicação de enquadramentos como close-up e plano médio
no roteiro permitem o desenvolvimento estilístico de uma nova forma de
expressão potencialmente diferente em vários aspectos.
Entre eles, destaca-se a predominância da significação do som na
televisão, que é usado para garantir a atenção do telespectador. O som
pode ser ouvido em qualquer lugar, mesmo que a imagem não esteja
sendo vista. Ellis (1992: 129-31) afirma que a imagem televisual tende a
ser simples e sem muitos detalhes, enquanto o som fica responsável por
evidenciar os detalhes. Com isso, a variedade e o interesse são gerados
pela rápida mudança das imagens e não pela riqueza de detalhes de uma
só imagem. A simplicidade das imagens da televisão é compensada pela
técnica de edição rápida. Além disso, o uso de várias câmeras e a
possibilidade de alterná-las produz um estilo intrinsecamente televisual:
a fragmentação de uma ação em vários planos cuja continuidade é mantida
pela performance de diversas câmeras.
Portanto, a linguagem televisual absorveu e adaptou técnicas de
outros meios, principalmente do teatro e do cinema, que proporcionaram
a criação de uma outra forma de expressão com características próprias,
baseada no uso do close-up e dos recursos de edição. Isso se tornou mais
evidente a partir da década de 1950 quando os programas começaram a
ser escritos especialmente para o meio.

Os Anos Dourados

Com a chegada em 1955 da Independent Television (ITV), a


primeira televisão comercial da Grã-Bretanha, acabou o monopólio da
rede pública de televisão BBC, que começou a investir na criação de

46 A poética televisual de Samuel Beckett


novos formatos para alcançar e atrair mais audiência. A ITV foi
responsável por desvincular o drama televisual do teatro e da literatura,
pois com a série Armchair Theatre, criada em 1956, todo o material exibido
passou a ser original. O produtor canadense Sidney Newman contratou
autores como Harold Pinter e Alan Plater para escrever roteiros originais.
As peças de televisão eram encenadas nos estúdios da ABC em
Manchester e transmitidas ao vivo depois do programa líder em audiência
Sunday Night at the London Paladium. Os melhores trabalhos do Armchair
Theatre pertenciam à escola realista naturalista, pois se baseavam na
experiência e na ambientação, mas outros gêneros como ficção científica,
comédias, crimes e musicais também eram exibidos. Newman trouxe
um novo olhar para o drama britânico, pois ele acreditava que era possível
produzir peças que fossem ao mesmo tempo populares e culturais. Caughie
(2000: 75) afirma que Newman não possuía aquela ironia aristocrática
ao se referir ao teatro do povo.
Em 1962, foi apresentado ao Parlamento Britânico e tornou-se
público o Relatório do Pilkington Committee17, que analisou a conjuntura
televisual britânica após cinco anos da quebra do monopólio da BBC.
O Relatório Pilkington preocupou-se também em enfatizar a função e
os valores que deveriam nortear a televisão, ou seja, a sua responsabilidade
de educar, entreter e informar os cidadãos. Porém, para que fosse séria,
a televisão deveria ainda desafiar, transgredir e ser controversa.
Esta recomendação dos relatores podia ser interpretada de diversas
formas, mas de qualquer maneira foi importante porque abriu espaço para
inovações, principalmente com a contratação de uma nova geração de
escritores politicamente engajados para compor o quadro do novo canal de
televisão, a BBC2. Este foi criado em 1964 para transmitir programas

17. As Comissões Reais eram formadas periodicamente para regulamentar o serviço público
de rádio e teledifusão. Foram implantadas em 1926 pelo Crawford Committee e duraram
até 1987 com o Peacock Committee. Elas eram compostas por membros que se distinguiam
no mundo dos negócios, da igreja, dos sindicatos, da academia, e, às vezes, por um
escritor, jornalista ou celebridade considerada “séria”. Para que as recomendações dos
relatórios tivessem legitimidade, os relatores pesquisavam a opinião de diversos grupos
sociais e também comparavam o sistema britânico com os sistemas implementados em
outros países, a fim de informar as autoridades. Os Relatórios oferecem um panorama da
discussão sobre a radiodifusão e, particularmente, sobre a teledifusão na Grã-Bretanha
depois da Segunda Guerra Mundial (CAUGHIE, 2000: 79).

Gabriela Borges 47
destinados às pequenas audiências. O Relatório Pilkington deu liberdade
criativa para os escritores oferecerem novas experiências ao público, que
tinha o direito de escolher e a responsabilidade de julgar os programas.
O Departamento de Drama da BBC teve um papel muito importante
no desenvolvimento do drama televisivo na Grã-Bretanha e foi
responsável pela chamada Idade de Ouro da televisão britânica (1965-
1975). Sidney Newman, responsável pelo sucesso da série Armchair Theatre
no período de 1958 a 1962, foi contratado como Diretor Geral de
Dramaturgia. Newman tinha uma visão mercadológica que era muito
diferente da visão paternalista da BBC. Segundo Shubik (2000:22-3), ele
já tinha percebido que a audiência tinha pré-disposição para assistir aos
programas que já conhecia, por isso é que os seriados tinham muito
mais sucesso do que as narrativas de um só episódio, em que o espectador
não sabia o que esperar.
O Departamento de Drama foi dividido em três setores: O setor
denominado Plays, responsável pelas produções de narrativas de um capítulo,
a maioria delas escritas especialmente para a televisão; Serials, para os
episódios com continuidade semanal e Series, para produções com os
mesmos personagens. O setor Plays foi dividido em dois grupos: Festival,
que era dedicado às peças clássicas, antigas ou modernas, de autores como
Jean Cocteau, James Joyce, Samuel Beckett, Eugéne Ionesco, entre outros
e First Night, que divulgava os novos escritores e era exibida no domingo à
noite para concorrer com as tele-peças do Armchair Theatre. Durante este
período foram produzidas tele-peças para os seguintes programas: Na BBC1,
The Wednesday Play (1964-70), que foi substituído por Play for Today (1970-
72) quando o programa passou para as quintas-feiras, e na BBC2 Story
Parade (1963-64) e Theatre 625 (1964-1968).
Para cada programa havia um produtor responsável, que escolhia
as tele-peças a serem exibidas de acordo com o seu gosto e o seu estilo.
A relação entre produtor e roteirista era bastante próxima, sendo que o
produtor na maioria das vezes impulsionava a carreira dos roteiristas
iniciantes. Porém, um dos fatores que influenciou a Idade de Ouro foi a
organização de um modelo de produção que valorizava a criatividade
dos escritores. Aliás, os produtores tinham problemas em encontrar
bons roteiros para fechar uma grade com periodicidade semanal.18

18. Eram produzidas trinta e duas peças por temporada. O programa The Wednesday Plays
exibiu 176 peças entre 1964 e 1970 (SHUBIK, 2000: 42-55).

48 A poética televisual de Samuel Beckett


A produção de roteiros originais e o advento da tecnologia de
gravação da câmera de vídeo marcam a mudança da estética televisual,
que perde a sua efemeridade e o seu senso de imediatez ao se desvincular
das transmissões ao vivo de adaptações literárias e teatrais e começa a se
definir com um senso de identidade própria ao empregar a criatividade
no uso da tecnologia audiovisual.

As Produções Beckettianas

O contexto institucional da emissora britânica entre a década de


1960 e 1980 permitiu a produção de programas inovadores e experimentais.
As determinações do Relatório Pilkington, que culminou na abertura da
BBC2 cujo objetivo era veicular programas mais experimentais e financiar
produções dramáticas de qualidade criadas especialmente para o meio
televisual, assim como o advento do sistema de gravação da câmera de
vídeo facilitaram o trabalho de Beckett com a BBC.
A discussão sobre qualidade sempre esteve na pauta das produções
da televisão britânica. Um dos aspectos que é enfatizado por alguns
autores como Brunsdon (1990) e Mulgan (1990) é que as adaptações de
importantes textos literários ou peças teatrais e o uso de atores e atrizes
de renome agregam qualidade a um programa de televisão. Por mais
controverso que possa parecer, a BBC começou a comprar roteiros
televisuais de autores com experiência no meio literário e teatral para
desenvolver um novo drama televisual que, por sua vez, almejava se
desvincular da literatura e do teatro.
Em 1964, Troy Kennedy Martin escreveu o manifesto Nats go home:
first statement of a new drama for television, em que critica o uso de uma
estética naturalista na televisão e reivindica a criação de um novo drama
televisual que, posteriormente, se tornou o que foi chamado de Não-
Naturalismo na televisão britânica.
O Naturalismo era herança do teatro e da literatura e tornou-se o
gênero televisual por excelência. Baseado em diálogos e no tempo natural,
as peças naturalistas podiam ser gravadas muito facilmente, pois as
ferramentas disponíveis pela tecnologia televisual, como a câmera e os
recursos de edição, somente enfatizavam o desenvolvimento da narrativa.
Por outro lado, o novo drama televisual proposto por Martin (1964:
25) deveria desobrigar a câmera de gravar apenas diálogos; desvincular a

Gabriela Borges 49
estrutura narrativa do tempo natural e explorar a objetividade da câmera,
pois até então o uso do close-up estava associado à subjetividade do
espectador. Martin defendia uma televisão de autor e uma nova forma
dramática que usaria a edição para reorganizar o tempo por meio da
elipse, da condensação e da justaposição; e a objetividade como um
recurso para situar o espectador a uma certa distância do evento, evitando
assim a sua identificação total com a imagem, como ocorria nos filmes
hollywoodianos. Caughie afirma que

Martin estava propondo um drama televisual criado por diretores


que transformavam som, iluminação, edição e design em imagens e
movimento e não por escritores que escreviam para atores falarem
(2000: 96).

Portanto, apesar da BBC adaptar textos literários e teatrais e empregar


dramaturgos e escritores para a escritura de roteiros para a televisão,
tanto a imprensa quanto a própria direção do Departamento de Drama
estavam discutindo o novo meio audiovisual e as suas possibilidades
técnicas e estéticas na produção de novos programas dramáticos.
Dentro deste contexto é que Samuel Beckett enviou em 1966 a sua
primeira tele-peça intitulada Eh Joe, a piece for television para a avaliação
de Michael Bakewell19, Diretor de Peças do Departamento de Drama da
BBC. Bakewell afirma que o roteiro apareceu inesperadamente na redação
e ele ficou muito interessado em produzi-lo, mas a emissora britânica
foi lenta em marcar as datas para a gravação e a transmissão da tele-
peça. Eh Joe acabou sendo produzida e dirigida pelo próprio Beckett
para a emissora alemã Süddeutscher Rundfunk, e exibida em 13 de abril
de 1966, dia do seu aniversário. A produção alemã foi exibida três meses
antes da britânica, apesar desta ter sido realizada anteriormente
(KNOWLSON, 1997: 535).
A estréia na BBC2 ocorreu em 4 de julho de 1966 às 22:10 horas.
De acordo com o Relatório da BBC Audience Research20, Eh Joe teve uma
audiência de apenas 3%. Os telespectadores acharam a peça monótona,

19. Ele foi também diretor da peça de rádio Words and Music para o BBC Third Programme
em 1962.
20. Este relatório está disponível no BBC Written Archive em Caversham.

50 A poética televisual de Samuel Beckett


tediosa, sem apelo visual devido à sua atmosfera sombria. Eles atestaram
ainda que os pensamentos de Joe, isto é, a voz de Voice não prendeu a
sua atenção (ZILLIACUS, 1976: 198). Após a produção da sua primeira
tele-peça, Beckett teve a possibilidade de supervisionar não somente Eh
Joe, mas todas as outras peças que veio a escrever para a BBC.
Em abril de 1976 várias comemorações estavam sendo organizadas
em Londres para a comemoração dos 70 anos de Beckett. A BBC se
interessou em participar com a re-transmissão das peças de rádio e a
estréia de Rough for Radio II. Em termos televisuais, foi adaptada a peça
Not I21, pois o único material que a BBC tinha arquivado era Eh Joe em
preto e branco e uma adaptação da peça Krapp’s last tape de 1972. O
editor da série Second House, Tristam Powell, estava à procura de material,
pois Eh Joe estava em preto e branco e ele não queria uma outra
performance-solo para acompanhar Not I. A BBC consultou Beckett
para saber se Donald McWhinnie poderia escolher uma de suas peças
de rádio ou teatro para ser adaptada. Beckett não deu a sua permissão
dentro dos prazos previstos e propôs a criação de uma nova tele-peça
para ser dirigida por McWhinnie com a condição de que, caso ele não
conseguisse escrevê-la, seria considerada uma outra adaptação. Beckett
autorizou poucas adaptações de seus trabalhos para outros meios, pois
acreditava que o meio era um dos elementos fundamentais da criação e
a adaptação não conseguia explicitar toda a riqueza da obra.
Com isso, a exibição de Not I foi prorrogada e a BBC não participou
das comemorações do seu sexagenário, mas Beckett escreveu a sua segunda
tele-peça intitulada Ghost trio, baseada no Trio para Piano N°5, de
Beethoven. Em janeiro de 1976, Beckett escreveu de Tanger, em Marrocos,
para o seu amigo Con Leventhal dizendo que tinha escrito uma peça
para a televisão: “Todos os velhos fantasmas. Para sempre Godot e Eh
Joe. Resta somente dar-lhes vida” (KNOWLSON, 1997: 621)22.
Para acompanhar Not I e Ghost trio seria adaptada a peça Play, em
exibição no Royal Court Theatre em Londres, mas Beckett não gostou dos
resultados da adaptação feita pela BBC e começou a escrever uma outra

21. Em 1973, Beckett já havia concordado com a adaptação, mas ela não pôde ser feita
porque o Royal Court Theatre tinha a exclusividade dos direitos autorais e pretendia
reencenar a peça juntamente com Happy Days.
22. “All the old ghosts. Godot and Eh Joe over infinity. Only remains to bring it to life”.

Gabriela Borges 51
tele-peça, que se transformou em ...but the clouds..., produzida em 1976
pela mesma equipe e com a supervisão de Beckett. As três tele-peças
estrearam no programa The Lively Arts, sob o título Shades, exibido no dia
17 de abril de 1977 na BBC2 (KNOWLSON, 1997: 634).
A recepção de Shades foi bastante controversa. O jornalista Michael
Billington (apud FLETCHER, 1978: 210) do jornal The Guardian elogiou
a “beleza das imagens” e chamou Ghost trio de “uma pintura hipnotizante
para a televisão”, perguntando-se porque é que o naturalismo ainda era
o principal gênero televisual. Por outro lado, o diretor de televisão Dennis
Potter, que estava preocupado em desvincular a televisão das convenções
do naturalismo proveniente do teatro, criticou-as violentamente em um
artigo que escreveu no jornal The Sunday Times. Potter (1977: 38) afirmou
que as tele-peças de Beckett constituíam a mais pura essência da arte
ocidental, pois não tinham nenhuma relevância. Ele questionou se este
tipo de arte se apresentava como resposta ao desespero e ao remorso da
nossa era, ou se, por outro lado, a sua futilidade é que permitiu o
desenvolvimento de ideologias corruptas como o nazismo.
A agressão de Potter está relacionada à sua postura perante o drama
televisual. Ao criar o termo não-naturalismo e recusar-se a usar o termo
modernismo para o tipo de drama televisual que estava escrevendo e
dirigindo, Potter procurava se desvincular do modernismo que estava
associado à uma cultura de elite e ao radicalismo político e revolucionário
de Jean-Luc Godard e Bertold Brecht. Entretanto, Caughie (2000: 155)
enfatiza que o seu programa, The Singing Detective (1986), figura entre um
dos trabalhos mais importantes do modernismo britânico no século passado.
Caughie discorda da tentativa de Potter de renomear o modernismo na
televisão, pois isso o exclui do debate cultural contemporâneo e enfatiza
que as técnicas não-naturalistas não devem, de forma alguma, ser agrupadas
em torno de um movimento estético de mesmo nome. Em uma palestra
no Festival de Edimburgo, Potter (1977: 37) afirma que as tele-peças não-
naturalistas desorientam o telespectador e interrompem os padrões de
repetição inerentes à televisão. Elas mostram

o enquadramento da imagem enquanto, em geral, a televisão


preocupa-se mais em mostrar a imagem que está sendo enquadrada,
relembrando ao telespectador que ele está apenas assistindo a uma
peça.

52 A poética televisual de Samuel Beckett


A principal característica do Não-Naturalismo é a quebra das noções
de espaço e tempo na narrativa, por meio do uso das técnicas de
montagem de Sergei Eisenstein e do distanciamento de Bertold Brecht.
Diferentemente do cinema narrativo clássico, o Não-Naturalismo
procurava a não-identificação do espectador com o personagem ou com
a história, convidando-o a se engajar na narrativa e não apenas a absorver
algum significado pré-estabelecido, como nos filmes de Hollywood.
Caughie (2000: 127) afirma que o drama televisual ocupava a mesma
posição que o cinema europeu do Pós-Guerra (1946-80) e que havia
muitas similaridades na forma em que a televisão e o cinema se
contrapunham ao modelo clássico hollywoodiano, principalmente se
for considerado o uso das técnicas de montagem e de distanciamento,
que desafiavam a subjetividade do telespectador e caracterizavam tanto a
narrativa realista quanto a não-naturalista. Ao usar os princípios
modernistas da montagem e do distanciamento, o não-naturalismo na
televisão nada mais é que um modernismo que se aproxima do popular.
Deste modo, o modernismo e a cultura popular no drama britânico
negociam, de uma forma muito peculiar, as demandas do novo e do diferente
(uma das premissas do próprio modelo em que a televisão tinha sido
criada e que estava sempre sendo reforçada pelos relatórios das comissões
reais) com as demandas daquilo que é familiar e portanto pertencente ao
domínio do popular. Nesta vertente, encontram-se os trabalhos da escola
não-naturalista, à qual pertencem Dennis Potter e David Mercer (sendo
que Mercer optou por desenvolver uma poética do inconsciente), e da
escola realista, a qual pertencem Ken Loach e Tony Garnett.
Ao contrário do que Martin havia proposto no seu manifesto, o
drama televisual nos anos 1960 foi marcado muito mais por uma televisão
de escritores do que de diretores. A televisão de autor23 desenvolveu-se
mais tarde com os docudramas de Ken Loach e Tony Garnett,
principalmente depois do sucesso de Up the Junction (1965) e Cathy Come
Home (1966). O realismo que está associado ao trabalho da dupla prima
pela exposição da justiça social e explicita de forma documental o modo

23. A televisão de autor britânica acabou substituindo os programas dramáticos por


filmes, dando origem a um processo de convergência entre a chamada televisão de
qualidade e o cinema de arte que culminou com a inauguração do Channel 4 na
década de 1980.

Gabriela Borges 53
de vida das classes trabalhadoras. Sua preocupação era de que o
telespectador não se colocasse numa posição superior de conhecimento
e não se identificasse com a história. Porém, como salienta Caughie
(2000: 123), os docudramas não podem ser vistos apenas sob a perspectiva
do realismo, pois se utilizam também das convenções naturalistas de
proximidade e da montagem modernista.
Sob o ponto de vista das convenções do modernismo, Beckett usa
as mesmas técnicas que Dennis Potter, subvertendo a relação clássica
entre espaço e tempo, principalmente por meio dos enquadramentos,
dos movimentos de câmera e das técnicas de áudio; e promovendo a
não-identificação do espectador com as imagens que estão sendo
enquadradas como no distanciamento brechtiano.
O projeto poético de Beckett busca a criação de um drama anti-naturalista
por excelência, em que são enfatizados enquadramentos abstratos, longos
planos-sequências e personagens que se apresentam tanto como corpo quanto
como voz. Além disso, Beckett subverte a idéia do tempo narrativo com começo,
meio e fim, pois as suas tele-peças não se estruturam baseadas neste tipo de
seqüência narrativa. Com parcos movimentos de câmera e um cenário com
poucos objetos de cena, Beckett cria um mundo dramático próprio que tem
como referência os seus trabalhos anteriores mas que, ao mesmo tempo, não
pode ser comparado com as narrativas dramáticas que estavam sendo produzidas
na BBC durante aquele período histórico. Ainda mais porque, em termos
críticos, Beckett estava mais preocupado em questionar o poder de representação
da arte e, neste caso, da televisão, do que em fazer uma crítica política e social
no mesmo sentido em que Ken Loach e Tony Garnett, e até mesmo de
Dennis Potter, faziam. Por este motivo, o trabalho de Beckett não pode ser
visto como pertencente a nenhum dos movimentos estéticos que estavam
sendo negociados na BBC naquele momento.
Porém, pode-se dizer que a BBC estava empenhada em desenvoler
narrativas dramáticas que fossem independentes das outras artes. A Idade
de Ouro e os trabalhos de autores como Beckett, entre outros, mostram
que de uma certa forma as produções dramáticas deste período foram
marcadas por uma diferença. Caughie (2000: 91) afirma que as peças e
séries se sobressaíam porque traziam novas possibilidades de significação
e novas experiências para a audiência. Talvez o reconhecimento destas
particularidades possa contribuir para o entendimento da televisão como
um meio que não precisa necessariamente ser visto apenas como

54 A poética televisual de Samuel Beckett


comercial e parte de uma indústria cultural que só produz programas
banais para serem vendidos, consumidos e substituídos a fim de
realimentarem o sistema audiovisual. A televisão, como um meio, pode
ser usada também para veicular propostas estéticas diferenciadas.
É importante ressaltar que os trabalhos de Beckett para a televisão
são também parte de seu projeto artístico e estético como autor. As
experimentações com a televisão permitiram a criação de imagens marcadas
pela inscrição do espaço no tempo, as quais podem ser preservadas
indefinidamente. Pode-se argumentar que o seu drama televisual é apenas
teatro filmado, principalmente pelo uso da câmera fixa e dos longos planos-
seqüência, mas por outro lado, os enquadramentos muitas vezes geométricos
que se tornam abstratos devido ao seu prolongamento no tempo fílmico e
a fragmentação do corpo dos personagens ao ponto destes fragmentos
tornarem-se eles próprios personagens, só podiam ser explorados no meio
audiovisual, ainda mais se for considerado o diálogo da imagem com o
som, seja a música, sejam as vozes personagens. Ao enquadrar e reenquadrar
as suas imagens e conseqüentemente deslocar o modo de ver televisão e
perceber o mundo, Beckett abriu novas possibilidades de criação para o
meio, contemplando temas que lhe eram muito caros mas que também
faziam parte do domínio televisual, como por exemplo a memória e a
repetição.
Neste sentido, Beckett usa os seus conhecimentos da encenação
teatral e da filmagem de Film para desenvolver uma poética televisual
própria que, no caso da experiência na BBC2, culmina com a direção da
tele-peça Quad em 1981, depois da estréia também sob sua direção na
Süddeutscher Rundfunk.

A direção na SDR
A relação de trabalho entre Beckett e a emissora alemã Süddeutscher
Rundfunk foi bastante diferente da relação empreendida com a BBC. O
diretor do Departamento de Peças da SDR, Dr. Reinhart Müller-Freienfels,
por intermédio de Werner Spies, correspondente da SDR em Paris,
convidou Samuel Beckett para dirigir a produção da tele-peça He Joe em
outubro de 1965.
O Departamento de Peças Radiofônicas, sob a direção de Hans
Jochen Schale, já havia transmitido as suas peças de rádio há alguns

Gabriela Borges 55
anos, mas a sua colaboração com a televisão deveu-se em grande parte à
admiração que Dr. Müller-Freienfels tinha pelo seu trabalho e ao bom
relacionamento com a equipe de produção, que tentava realizar as suas
“invenções malucas” para o meio televisual. Talvez por achar que só
estava brincando com o meio e que a direção era realmente um presente
da equipe da SDR, Beckett nunca aceitou nenhum pagamento pelos
seus trabalhos, mas também não permitiu a presença de nenhum
jornalista durante as gravações.
As tele-peças de Beckett foram transmitidas na série Der Autor aus
Regisseur (O Autor como Diretor), que contou também com a produção
dos trabalhos de autores como Marguerite Duras, Friedrich Dürrenmatt,
Slawomir Mrozek, Wolfgang Menge e Martin Walser. Todas elas foram
traduzidas para o alemão por Elmar e Erika Tophoven.
Em Sttutgart, Beckett contava com a boa qualidade técnica dos
equipamentos e a disponibilidade ilimitada do estúdio para os ensaios,
fato raro em qualquer emissora de televisão. As cenas eram gravadas e
regravadas quantas vezes fossem necessárias para chegar ao apuramento
imagético que Beckett tinha imaginado. A direção de atores, assim como
os movimentos de câmera e a iluminação eram especificados
detalhadamente nos roteiros e nos seus cadernos de anotação.
Beckett não tinha nenhuma experiência com o meio televisual,
mas tinha acompanhado a produção de Film em Nova York, e também a
produção britânica de Eh Joe, com direção de Alan Gibson. Porém, na
primeira reunião de produção em Paris, em janeiro de 1966, Dr. Müller-
Freienfels (apud SCHEUFFELEN ET ALL, 2000: 3) ficou impressionado
com a clareza das idéias de Beckett sobre a execução da sua tele-peça.

Fiquei surpreso com a exatidão com que Beckett imaginava cada posição
de câmera, a luz e o tipo de gravação de som. Ele havia medido cada
alinhamento do texto com régua e transferidor, assim como as pausas
entre cada passagem. Dava instruções detalhadas também sobre fotografia,
figurino e maquiagem: tudo deveria ser mantido em tons de cinza. A
duração da peça deveria ser de aproximadamente vinte minutos, que
corresponderia ao timing específico da televisão, em oposição ao teatro24.

24. “Überrascht war ich, wie genau sich Beckett die einzelnen Kamerapositionen, das Licht
und die Art der Tonaufnahmen vorstellte. Er hatte mit Winkelmesser und Lineal jede

56 A poética televisual de Samuel Beckett


He Joe estreou em 3 de abril de 1966, dia do aniversário de sessenta
anos de Beckett, às 23 horas. A tele-peça teve uma audiência de 3%, que
equivale a aproximadamente 300 mil telespectadores, número relativamente
alto para o horário. A crítica foi positiva, chamando a atenção para os
novos horizontes da televisão alemã, que se encontrava paralisada devido
à sua rotina. Melchinger (apud SCHEUFFELEN ET ALL, 2000: 5-6)
escreveu um artigo na revista Theatre Heute em que afirma:

a maioria dos diretores de televisão deixa rolar na tela uma frenética


mobilidade das imagens que atordoa a fantasia dos espectadores,
enquanto o processo de concentração de Beckett ambiciona o
contrário 25.

Beckett volta a colaborar com a SDR dez anos mais tarde, quando
escreve Ghost trio e ...but the clouds... para a BBC e contacta Spies com o
intuito de oferecer o projeto à televisão alemã. As duas tele-peças foram
gravadas em 1977 com a direção de Beckett e estrearam juntamente com
a produção britânica de Not I, em 1° de novembro do mesmo ano, num
programa com o mesmo título que o da BBC, Schatten (Sombras). Para
Scheuffelen et all (2000: 9), as possibilidades de abstração dos meios
audiovisuais e a ausência de histórias narráveis fazem com que estas
tele-peças apresentem Beckett como um artista de televisão.
Em 1979, Beckett dirigiu uma outra produção de He Joe para a
SDR, com Heinz Bennent e Irmgard Först como protagonistas, mas não
ficou satisfeito com os resultados. Ele pediu a Dr. Müller-Freienfels para
não exibir esta versão novamente após a estréia. Beckett acreditava que
o problema estava com o ator principal, Bennent, que a seu ver era um
ótimo ator, mas não servia para as suas peças. Da mesma maneira que
Buster Keaton, que ele considerava um grande ator de improvisação,

Einstellung ausgeklügelt und den Text sowie die Pausen zwischen den einzelnen
Passagen gestoppt. Auch über das Szenenbild, das Kostüm und die Maske machte er
detaillierte Angaben: Alles sollte in Nuancen Von Grau gehalten sein. Die Spieldauer
würde etwa 20 Minuten betragen, was dem besonderen Timing dês Fernsehens – im
Unterschied zum Theater – ent-sprechen würde” [Tradução de Ricardo Lacerda Baitelo].
25.
“Während die hektische Bildbeweglichkeit, wie sie die meisten Fernsehregisseure über
die Schirme laufen lassen, die Phantasie des Zuschauers betäubt, erstrebt Becketts
konzentrierendes Verfahren das Gegenteil” [Tradução de Ricardo Lacerda Baitelo].

Gabriela Borges 57
mas que não sabia ser dirigido. Porém, segundo Allgemeine (apud
SCHEUFFELEN ET ALL, 2000: 10), a crítica considerava Bennent o
“ator ideal para protagonizar a triste figura humana”26 que era Joe.
Todas as vezes que Beckett deixou Sttutgart, ele pensou que nunca
mais escreveria para a televisão, mas por vinte anos colaborou com a
emissora, enviando peças ainda mais originais, como aconteceu com
Quad: uma peça para quatro atores, luz e percussão. Quad foi escrita
originalmente em inglês e Beckett a definiu numa carta para Dr. Müller-
Freienfels como uma “invenção maluca para a televisão” (apud
KNOWLSON, 1997: 672). A sua produção foi mais cansativa que as
outras, pois, na prática, a realização técnica das idéias beckettianas era
impossível e ele chegou quase a desistir da empreitada, perseverando
somente devido à insistência de Dr. Müller-Freienfels.
Foram feitas muitas mudanças no roteiro original, pois o ritmo
dos movimentos e a iluminação dos personagens-dançarinos estavam
inviabilizando a sua execução. Porém, a mudança mais significativa
ocorreu depois que Dr. Müller-Freienfels viu a performance num monitor
preto e branco e comentou com Beckett que ficou impressionado com o
efeito monocromático. Beckett resolveu então gravar mais uma série de
movimentos em preto e branco, com um ritmo mais lento e apenas o
som dos passos, sem a percussão. Esta versão foi intitulada Quadrat II e
foi adicionada como uma espécie de coda a Quadrat I. Ao assistir Quadrat
II, Beckett (apud POUNTNEY,1998: 210) comentou que esta parecia estar
“cem mil anos a frente” de Quadrat I. As duas tele-peças, com duração
total de vinte minutos, estrearam em 8 de outubro de 1981.
Em junho de 1982, Beckett enviou o roteiro de Nacht und Träume
para Dr. Müller-Freienfels, referindo-se como mais uma aberração para
a televisão. O produtor alemão aceitou produzi-la imediatamente. A tele-
peça foi intitulada primeiramente Nachtstüch, mas depois o título mudou
para Nacht und Träume. A estréia ocorreu em 19 de maio de 1983 e teve
uma audiência de dois milhões de pessoas.
Muito mais do que o teatro, a televisão se torna o meio ideal para
Beckett desenvolver os seus projetos abstratos, porém ele acreditava que
não tinha mais criatividade para escrever porque estava muito velho e

26. “den idealen Darsteller dieser traurigen Menschenfigur” [Tradução de Ricardo Lacerda
Baitelo].

58 A poética televisual de Samuel Beckett


cansado. Mesmo assim, no ano seguinte, Dr. Müller-Freienfels pergunta
se não tinha nada guardado na gaveta, pois queria produzir a sua última
tele-peça antes de se aposentar. Numa conversa em Paris, Walter Asmus
(1986: 28), o assistente de direção de Beckett, insiste para saber se há
alguma possibilidade de que novas tele-peças sejam produzidas. Com a
negativa de Beckett, Asmus sugere a adaptação da peça Was Wo. Beckett
responde pensativo: “Talvez seja uma idéia. Vou pensar a respeito”27.
Em 13 de abril de 1986, a transcriação de Was Wo é exibida no
programa Ersten Programm (Primeiro Programa) em uma homenagem
aos 80 anos de Beckett, juntamente com as suas outras cinco peças de
televisão. No mesmo dia, o programa Dritten Programm (Terceiro Programa)
fez uma mesa redonda com os amigos de Beckett na Alemanha: Werner
Spies, Elmar Tophoven, Ivan Nagel e Reinhart Müller-Freienfels para
discutir a sua obra teatral e televisual.
A liberdade de criação, assim como as facilidades técnicas encontradas
em Sttutgart, permitiram que Beckett criasse trabalhos únicos que chegaram
até mesmo a questionar o modo como a própria televisão alemã era vista.

27. “Das ist vielleicht eine Idee. Ich werde darüber nachdenken.” [Tradução de Ricardo
Lacerda Baitelo].

Gabriela Borges 59
CAPÍTULO III

As tele-peças

Este capítulo analisa os elementos estéticos das peças Eh Joe, Ghost


trio, ...but the clouds..., Quad e Nacht und Träume escritas e produzidas
especialmente na televisão. A leitura intersemiótica das tele-peças prima
pela análise de temas recorrentes na obra teatral e literária de Beckett,
os quais encontraram um terreno propício para serem explorados devido
às especificidades e facilidades proporcionadas pelo meio audiovisual.
O roteiro da tele-peça Eh Joe é analisado detalhadamente a partir
do diálogo entre a câmera e Voice, a voz que atormenta o personagem
Joe, cuja ambigüidade cria um espaço de ficção que transita entre a
memória e a imaginação. Em Ghost trio, os fantasmas que assombravam
Beckett desde Waiting for Godot agora assombram a televisão e rompem
com o seu poder de representação, pois ela apresenta imagens abstratas
que provocam um certo estranhamento nos telespectadores.
...but the clouds... explora a intertextualidade e as imagens da memória.
A tele-peça de Beckett é escrita a partir do poema The Tower, de Yeats, e a
análise considera o conceito de memória voluntária e involuntária do
escritor Marcel Proust. Quad é analisada a partir da definição deleuziana
de uma linguagem de imagens, sons e cores. A repetição incessante dos
movimentos dos personagens-dançarinos cria uma zona de ausência que
questiona a ininterruptabilidade do fluxo televisual.
A última tele-peça escrita especialmente para o meio televisual
intitula-se Nacht und Träume e aborda as profundezas da outra noite, que
substitui o sono pelos sonhos, pelos fantasmas e pelas aparições. Ao
som da canção de Schubert, as imagens quase imperceptíveis da tela
reconfiguram a relação entre o espaço e o tempo ao instaurarem um
outro tempo, que se apresenta inscrito no espaço.
As vozes da memória
...Imagine the eyes... Spirit made light...
(BECKETT)

Elementos Estéticos

Depois de ter escrito e filmado Film, Beckett começou a escrever a


sua primeira tele-peça para ser protagonizada por seu amigo Jack
MacGowran. Evidência disto é que o nome do personagem nos primeiros
manuscritos era Jack e mais tarde foi mudado para Joe28. Eh Joe tem
muitas semelhanças com Film, porém Beckett, que já estava mais
familiarizado com a câmera e as técnicas de filmagem, aprimorou a sua
busca por uma expressividade mínima e abstrata.
A tele-peça começa como Film, que é baseado na perseguição de E
(a câmera) por O (o objeto, personagem representado por Buster Keaton).
A câmera se posiciona atrás de Joe e segue seus movimentos simétricos
e retangulares pelo quarto.
O quarto, que foi o espaço de ação da terceira parte de Film, é o
único espaço de ação de Eh Joe que, de acordo com as indicações do
roteiro, não deve ser mostrado por inteiro. O manuscrito MS1537/3
apresenta anotações detalhadas da direção de cena e do esquema de ação
de Joe, mostrando o seu movimento simétrico e retangular no quarto que
possui a mesma forma retangular da tela da televisão, característica que
também está presente nas outras peças de televisão do Beckett.
O quarto apresenta quatro pontos em que Joe completa o seu
movimento. De acordo com este manuscrito, ele sai da cama, que está
situada no meio e à direita da tela, e vai em direção à janela, que está
situada centralmente na parte de cima da tela e abre-a, olha para fora
atentamente, fecha-a, puxa a cortina, olha atentamente e vai em direção
à porta, que está na posição oposta à cama e faz o mesmo movimento,
abre-a, olha para fora atentamente, fecha-a e puxa a cortina. Ele olha

28. De acordo com o manuscrito MS 1537/2. Os manuscritos MS 1537/2 e MS 1537/3 de


Eh Joe, assim como os manuscritos de todas as outras tele-peças que serão mencionados
ao longo da tese, encontram-se no Beckett Archive na University of Reading, Inglaterra.

62 A poética televisual de Samuel Beckett


atento e desloca-se em direção ao armário na posição oposta à janela, o
qual abre, olha para dentro atentamente, fecha, tranca, puxa a cortina à
frente deste e olha atento. Ele vai então para a cama, agacha-se e olha
debaixo, levanta-se e senta-se como no começo de sua ação. Assim como
o personagem O em Film, parece que Joe está se escondendo e não quer
ser visto por ninguém. Ao constatar que está mesmo sozinho no quarto,
ele relaxa e fecha os olhos, mas não por muito tempo, pois ele começa
a ouvir uma voz feminina que vai atormentá-lo intermitentemente. Esta
voz extra-diegética é a outra personagem que se chama Voice. A voz de
Voice é “baixa, bem definida, distante, com pouca vivacidade, num ritmo
completamente equilibrado e um pouco mais lento do que o normal”
(BECKETT, 1990: 361-2).
Ao ouvir o seu nome, Joe abre os olhos e começa a prestar atenção.
Quando Voice o chama pela segunda vez, ele já está totalmente atento.
Começa então uma viagem imaginária que intercala a voz de Voice com
os movimentos de câmera. A câmera enquadra o rosto de Joe a uma distância
de 90cm, num close-up que irá se fechando em nove movimentos. A cada
movimento, a câmera aproxima-se 10cm do seu rosto num intervalo de
tempo de 4 segundos. A câmera não se move enquanto Voice fala, depois
que ela se cala a câmera faz uma pausa de três segundos antes de começar
a movimentar-se e pára de novo assim que ela recomeça a falar.
O roteiro consiste de 10 parágrafos destinados a uma voz extra-
diegética e intercalados por nove movimentos de câmera. Joe permanece
calado, praticamente imóvel e impassível, até que começa a exprimir a
sua tensão interna devido ao que Voice está dizendo. A câmera tem o
papel de enfatizar as acusações de Voice, que se caracteriza como uma
voz ambígua e fantasmagórica. Não se sabe se esta é uma voz off, ou seja,
de uma personagem que não está sendo vista, mas que participa da ação;
ou uma voz over, proveniente de uma outra fonte que não participa da
ação, pois uma e outra aparecem simultaneamente.
No primeiro parágrafo do roteiro, Joe escuta Voice atentamente e
esta começa a sua acusação. No início, ela diz que ninguém pode vê-lo
naquele momento, referindo-se provavelmente às pessoas que fazem parte
do passado deste e as quais ela irá mencionar no decorrer da tele-peça.
Em seguida, ela diz que deve haver um piolho vigiando-o, que pode ser
visto, metaforicamente, como as pessoas que fazem parte da audiência e
no terceiro parágrafo ela diz que Joe deve procurar porque “(...) nós
estamos olhando atentamente para você” ou “nós estamos vigiando-o”

Gabriela Borges 63
(BECKETT, 1990: 363)29. Neste sentido, o pronome nós pode ser
interpretado tanto como a audiência quanto como as pessoas que fizeram
parte do passado de Joe e que agora o atormentam.
Ela também chama a atenção da audiência gerando expectativa, pois
diz que “o melhor ainda está por vir” e quer que Joe repita esta frase
porque foi o que ele lhe disse da última vez que se encontraram. Ela quer
que ele diga novamente e ouça a si mesmo, enfatizando que ninguém irá
ouvi-lo. Ela diz que “O melhor está por vir.... Você está certo, pelo menos
uma vez.... No final de contas.” (Beckett, 1990: 362)30. Com isso, Voice
começa a intimidá-lo porque agora é a vez dela mostrar que o melhor
ainda está por vir, pois ele ainda não escutou tudo o que tem para escutar.
Ao mesmo tempo, ele pode falar que ninguém irá ouvi-lo, ou seja, ele terá
que escutá-la até o fim. Ao dizer que ele não será ouvido, Voice refere-se ao
fato de Joe estar sozinho no quarto, uma vez que já tinha fechado a janela
e a porta e já tinha olhado dentro do armário e debaixo da cama, assim
como pode estar se referindo também às pessoas mortas do passado de Joe
que não vão escutá-lo mais. Ele pode dizer o que quiser, pois elas já estão
mortas. Neste sentido, elas ainda têm acesso à mente dele por meio das
vozes, mas ele não poderá ser ouvido por elas a fim de desculpar-se e nem
sequer para redimir a sua culpa.
Ela continua provocando-o ao dizer que ele acha que a voz vem da
sua cabeça, “(...) aquele inferno que não vale nada que você chama de
sua cabeça.” (BECKETT, 1990: 362)31, que é de onde ele começou a
escutar a voz do seu pai numa noite em junho e continuou a ouvi-la por
muitos anos; a voz “....Vinha e voltava.... Atrás dos olhos....” (BECKETT,
1990: 363)32. No manuscrito MS173033 Beckett sugere que Joe deve agir
como um “assassino mental” das vozes na sua cabeça. É como se elas
estivessem saindo detrás dos seus olhos. Voice o insulta de assassino
mental porque uma de suas maiores fantasias era suprimir estas vozes
pois, de outra forma, o seu pai ainda o estaria atormentando. A expressão
“assassino mental” só foi acrescentada posteriormente ao roteiro, pois
não estava presente no manuscrito MS1537/2.

29. “(...) we’re watching you”.


30. “the best is to come... you’re right for once... in the end”.
31. “that penny farthing hell you call your mind”.
32. “...on and off... behind the eyes...”.
33. Notas sobre a produção de Eh Joe para a SDR. “Voices in head. Behind the eyes.
Mental thuggee”.

64 A poética televisual de Samuel Beckett


Em seguida, Voice recorda-se da mãe de Joe, dizendo que ele a
enterrou também, assim como os “Outros.... Todos os outros” (BECKETT,
1990: 363)34 e pede para a audiência olhar atentamente porque ele está,
neste momento, tentando eliminar os mortos da sua mente. Mais uma
vez Voice é ambígua quando afirma: “... E olhe para ele agora....
Suprimindo os mortos na sua cabeça” (BECKETT, 1990: 363)35 que
pode ser interpretado tanto como se ela estivesse zombando dele, quanto
pedindo a cumplicidade da audiência para assistir à miséria de Joe. No
primeiro parágrafo, Voice afirma que “nós” estamos olhando atentamente
para ele, e no segundo parágrafo ela pede que olhemos para ele ao
tentar eliminar os mortos, ou a voz dos mortos, da sua cabeça.
Voice diz que ele recebeu muito amor, mas que só Deus sabe o
porquê. Na verdade, ele recebeu um amor piedoso e ela pergunta se
algum ser vivo ainda o ama ou tem pena dele. Ela então sugere que
talvez aquela prostituta que vem aos sábados ainda o ame, e volta a
ameaçá-lo: “Tenha cuidado Joe, ou ainda vai lhe faltar... Já pensou
nisso?.… Eh Joe?.… O que seria se você não tivesse mais a gente?...
Nenhuma outra alma para silenciar.…” (BECKETT, 1990:363)36. O
discurso de Voice intercala entre falar de Joe (olhe para ele) e com Joe
(olhe para si mesmo). Seja chamando a atenção de Joe ou da audiência,
Voice diz que ele não conseguirá viver sem as vozes para silenciar mas,
ao mesmo tempo, ela afirma que ele consegue silenciá-las.

Imagina se não pudesse.... Já pensou nisso?.... Se continuasse.... O sussurro


na sua cabeça.... Eu sussurrando na sua cabeça.... Coisas que não
entende.... Vindo e voltando.... Até que se junte a nós....” (BECKETT,
1990: 364)37.

Mas, felizmente, “ele pára no final.... Você o interrompe no final....”


(BECKETT, 1990: 364)38. A ambigüidade está presente novamente no

34. “Others...all the others...”.


35. “...and look at him now... Throttling the dead in his head”.
36. “... Watch yourself you don’t run short, Joe... Ever think of that?... Eh Joe?... What it’d
be if you ran out of us... Not another soul to still...”.
37. “...Imagine if you couldn’t... Ever think of that?... If it went on... the whisper in your
head... Me whispering at you in your head... things you can’t catch... on and off... Till
you join us...”.
38. “It stops in the end .... You stop it in the end ....”

Gabriela Borges 65
pronome nós, não se sabe a quem é que Voice se refere. Pode ser que
Voice seja a voz dos mortos, da amada e de todos os outros, ou pode ser
que seja uma voz morta, ou ainda que todas estas vozes façam parte das
memórias que ele não consegue apagar ou livrar-se, elas se calam por
algum tempo, mas depois voltam para assombrá-lo novamente. Lamont
(1990:230) argumenta que Joe é um avatar do personagem Henry da peça
de rádio Embers e que a voz que ele ouve é um eco do seu próprio passado.
Para a autora, “a memória provoca a imaginação que, embora morta,
continua a imaginar”. Dentro desta perspectiva, também o personagem
Krapp da peça de teatro Krapp’s last tape, nos seus 65 anos, escuta cassetes
que gravou quando tinha 25 e 45 anos e relembra-se de seu passado.
Numa entrevista ao crítico alemão Siegfried Melchinger (apud
FLETCHER, 1978: 186), Beckett disse que o martírio de Joe é justamente
tentar acalmar todas as vozes que ele não consegue tirar da sua cabeça.
Com isso, é possível pensar que várias vozes atormentam o personagem,
recordando-lhe o seu passado. Neste momento da narrativa, Voice é
uma das suas amantes, mas existiram outras vozes, como a dos pais e a
dos outros, todos os outros. Mas, o mais importante é que Joe consegue
silenciá-las no final, imagine se ele não conseguisse...
A sua primeira amante conta que passeavam no parque e ele
admirava a sua eloqüência e a sua voz cristalina e que, apesar de ter sido
abandonada, encontrou um outro homem muito melhor, “... Mais
generoso.... (...) Mais confiável.... Mais fiel... São....” (BECKETT, 1990:
364)39. Joe vai escutá-la até não poder mais ouvir as palavras, mas apenas
uma palavra solta aqui e ali e o que é pior para ele, “O sussurro....” que
ele “se esforça para ouvir....” com a “mente cansada, comprimindo-se....”
(BECKETT, 1990: 364)40. A outra amante, “.... A ingênua.... A tacanha....
Sempre pálida.... Os olhos pálidos.... Espírito transformado em luz....”
(BECKETT, 1990:365)41 não teve tanta sorte, pois se suicidou e o seu
espírito se tornou luz.
No oitavo parágrafo do roteiro, Voice começa a assombrar Joe em
relação à uma outra mulher que o amava e a quem ele disse a mesma
frase antes de partir no primeiro vôo da manhã: “.... O melhor ainda

39. “... kinder... stronger... (...) truthful... faithful... sane...”.


40. “the whisper... (...) straining to hear... Brain tired squeezing...”
41. “...the green one... the narrow one...always pale... the pale eyes... Spirit made light...”.

66 A poética televisual de Samuel Beckett


está por vir....” (BECKETT, 1990: 365)42. Voice pergunta: “Você se deitou
com ela, não é verdade?...Você a enterrou?....” e responde: “....Claro que
ele fez isto.... Ela se foi tão jovem...” (BECKETT, 1990: 365)43. Voice
refere-se à Joe na terceira pessoa novamente, procurando desta forma
uma certa cumplicidade com a audiência para incriminá-lo. Entretanto,
diz que é a última vez que vai atormentá-lo pois partirá logo, a não ser
que aquela velha prostituta o ame. Com isso, Voice levanta a possibilidade
de que a prostituta virá acusá-lo no futuro, porque ele “não presta para
nada” (BECKETT, 1990:365)44.
Beckett usa pela segunda vez uma citação bíblica, a primeira ocorre
no sexto parágrafo em que Voice ameaça Joe dizendo que um dia ele fará
o que tem para fazer, ou seja, matará todos os mortos de sua cabeça.
Então Deus começará a falar com ele no silêncio do túmulo, sem os
vermes, e os seus feitos serão coroados, até que numa noite Ele pedirá a
alma de Joe. Voice vitupera: “Seu insensato, sua alma”45. A referência à
religião encontra-se em várias passagens do roteiro, o nome de Deus é
freqüentemente citado e Joe apresenta um certo sentimento de culpa
pelo fato de ter sido amado e não ter correspondido às suas amantes.
Inclusive, no sexto parágrafo, Voice sugere que a tele-peça é sobre o
martírio de Joe. O próprio Beckett falou que o martírio de Joe era
conseguir matar todas as vozes dos mortos que estavam na sua cabeça.
Voice então descreve o suicídio da amante de Joe de uma forma
que o telespectador consegue imaginar muito nitidamente como ela foi
para a beira do mar numa noite quente e enluarada de verão e tentou,
por várias vezes, se suicidar. Um exemplo é a descrição do cenário quando
a amante estava inconsciente e Voice diz que “.... a lua desaparece no
horizonte atrás da colina....” (BECKETT, 1990: 366)46. Primeiro ela tenta

42. “... the best’s to come...”.


43. “You’ve had her, haven’t you?… You’ve laid her?” e responde: “Of course he has... She
went young...”.
44. “mud thou art”. A tradução literal seria “barro é o que tu és”, que neste contexto
ficaria melhor traduzido como “você não presta para nada”.
45. “Thy fool thy soul”. Esta é uma referência do autor à citação bíblica retirada de
Lucas,12:20, em que Deus falou para o homem para que acreditasse nas coisas deste
mundo: “Insensato, esta noite te pedirão a tua alma.” De acordo com Ziliacus
(1976:189), a citação completa em inglês seria “Thou fool this night thy soul”.
46. “... moon going off the shore behind the hill...”.

Gabriela Borges 67
afogar-se e não consegue, depois vai para casa e pega uma Gillete e volta
pelo mesmo caminho em direção à praia, passando pelo jardim e pelo
viaduto. Fica toda ensopada de sangue, mas não consegue morrer e resolve
voltar para casa e pegar uma caixa de comprimidos que toma, um a um,
no seu caminho de retorno à praia. Joe já está se sentindo muito culpado
quando Voice diz: “.... Imagine o que ela tinha na cabeça para fazer
aquilo.... Imagine....” (BECKETT, 1990: 366)47. Então ela acaba de tomar
os comprimidos e faz uma cova entre as pedras para colocar o seu rosto.
Os seus olhos, sempre pálidos, abrem-se da mesma maneira que Joe
costumava descrevê-los, mas agora com um outro significado, pois ela
estava morta. Ele dizia que os olhos dela pareciam-se com um “espírito
feito de luz”, mas agora que ela estava morta era como se o espírito
tivesse se transformado em luz e subido aos céus.

A Memória e a Imaginação

A força visual da descrição de Voice faz com que um espaço de


ação imaginário seja criado no enredo. Primeiramente, Voice refere-se
ao espaço de ação visto pelo espectador na tela, quando Joe se senta na
cama e ela diz: “.... Por que não vai para a cama?... O que há de errado
com aquela cama, Joe?...” (BECKETT, 1990: 362)48. Depois ela diz que
tudo era fruto de sua imaginação e de sua lembrança dos mortos e começa
a descrever um outro espaço de ação que é imaginário mas que, devido
à riqueza de detalhes visuais, permite que o espectador veja como Voice
e Joe vêem estes espaços relatados, o que reforça a acusação de Voice e o
martírio de Joe, pois os telespectadores tornam-se seus cúmplices.
Voice conta como eram os seus encontros com ele “.... Como
naquelas tardes de verão no Green.... (...) .... Quando sentávamos para
ver os patos....” (BECKETT, 1990: 365)49 e em seguida descreve o outro
homem, “mais bonito” e “mais confiável”, que conheceu quando foi
abandonada por Joe. Voice então descreve como Joe abandonou a sua
segunda amante: “... O melhor está por vir, você disse.... Colocando-a no

47. “...Imagine what in her mind to make her do that... Imagine...”.


48. “Why don’t you go to bed? … What’s wrong with that bed, Joe?”.
49. “... like those summer evenings in the Green... (...) ... when we sat watching the ducks...”.

68 A poética televisual de Samuel Beckett


seu vestido Avoca.... Os dedos dela abotoando nervosamente os grandes
botões de madeira.... A passagem no seu bolso para o primeiro vôo da
manhã seguinte....” (BECKETT, 1990: 365)50 e como teve notícias da
morte dela pelo jornal The Independent. Nestas passagens são feitas
referências à cidade de Dublin, a primeira ao Parque Stephen’s Green,
quando Voice refere-se ao Green e a segunda ao jornal diário de circulação
nacional, The Independent, além da referência à região de Avoca, que
fabrica roupas de lã e situa-se entre as cidades de Dublin e Wexford.
Na última parte do roteiro, Voice está susssurando e pedindo ao
Joe e à audiência para imaginar o suicídio. As palavras são quase
inaudíveis, com exceção das palavras escritas em itálico que são repetidas
e descrevem o espaço de ação imaginário no qual o telespectador
praticamente vê como ela morreu.

Agora imagine.... Antes que ela se vá.... Rosto na cova.... Lábios na


pedra.... Levando Joe com ela.... A luz se foi.... ‘Joe, Joe’.... Silêncio....
Para as pedras.... Diga isto agora, ninguém vai lhe escutar.... Diga
‘Joe’ saindo dos seus lábios.... Imagine as mãos.... A solitária.... Contra
a pedra.... Imagine os olhos.... Luz espiritual.... Mês de junho.... Que
ano do seu Deus?.... Os seios nas pedras.... E as mãos.... Antes delas
partirem.... Imagine as mãos.... Onde elas estão?... Nas pedras....”
(Beckett, 1990:367 – grifos do original)51.

Voice repete duas vezes, pedindo para Joe e para a audiência imaginarem
antes que ela se vá, ou seja, que a imagem se esvaeça da memória. Se nesta
passagem, como em outras acima citadas, é possível interpretar que Voice
está pedindo tanto para Joe quanto para a audiência para olhar e imaginar,
o mesmo não pode ser dito quando ela pede para Joe falar, pois ela afirma
que ninguém irá escutá-lo. No começo da tele-peça Voice pede a Joe para

50. “... The best’s to come, you said... Bundling her into her Avoca sack... Her fingers
fumbling with the big horn buttons... Ticket in your pocket for the first morning
flight...”.
51. “... Now imagine... Before she goes... Face in the cup... Lips on a stone... Taking Joe with
her... Light gone... ‘Joe Joe’... No sound... To the stones... “Say it you now, no one´ll
hear you... Say ‘Joe’ it parts the lips” Imagine the hands... The solitaire... Against a
stone... Imagine the eyes... Spiritlight... Month of June... What year of your Lord?...
Breasts in the stones... And the hands... Before they go... Imagine the hands... What are
they at? ... In the stones...”.

Gabriela Borges 69
repetir as palavras “o melhor está por vir” e no final ela pede que ele fale o
seu nome, “Joe”, porque ninguém irá escutá-lo.
Neste sentido, Voice está se referindo somente às vozes da sua cabeça
porque caso Joe fale, a audiência poderá escutá-lo. Voice quer que Joe
repita as suas palavras, pois a sua amante não vai mesmo escutá-lo. Ela é
só uma voz, ou talvez uma imagem. Não há som, nem luz e,
metaforicamente, ela leva-o consigo para as pedras do túmulo, restando-
lhe somente imaginar, lembrar-se do seu rosto, dos seus lábios, dos seus
seios e das suas mãos nas pedras. Voice indaga: “... O que elas estão
acariciando?... Até partirem...” (BECKETT, 1990: 367)52. E a pergunta fica
sem resposta, mas enfatiza, na frase seguinte, que elas se foram mas que
há ou havia amor para Joe: “... Há amor para você... Não é, Joe?... Não foi,
Joe?... Eh Joe?...” (BECKETT, 1990: 367)53. Talvez Joe não tivesse conseguido
enxergar este amor e agora perceba que é tarde demais, restando-lhe apenas
as imagens e as vozes que ficaram na memória, assombrando-o.
A câmera não se move enquanto Voice fala, mas ela aproxima-se
10cm do rosto de Joe a cada um de seus nove movimentos. Na tela, a
câmera mostra um plano médio fechado de Joe, que se fecha até o detalhe
final dos seus olhos, entretanto todas as imagens que Voice descreve
estão tanto na mente de Joe quanto na imaginação do espectador.
Como na tela não se tem outra imagem além de Joe em agonia, o
espectador, de uma certa maneira, empreende esta viagem imaginária
juntamente com o personagem. No meu ponto de vista, diferentemente de
alguns autores que colocam o espectador na posição de voyeur, o espectador
é mais do que um voyeur, ele não assiste somente à agonia de Joe, ele imagina
as cenas junto com ele e vê, vivencia o seu martírio, a sua paixão.
A voz de Voice não é nem subjetiva nem objetiva, pois não se
define claramente de onde ela está vindo e a audiência não se posiciona
meramente como espectadora, uma vez que ela participa da viagem
imaginária de Joe. Da mesma maneira, o foco da ação também não está
na imagem de Joe que é vista na tela. Como o espectador, Joe também
assiste e sofre com as imagens evocadas por Voice. Freund (1998: 48)
coloca que Joe não tem o olhar de acusado, mas sim de espectador,
assumindo a mesma posição da audiência. Neste sentido, o espaço mais

52. “What are they fondling?... Till they go...”.


53. “... There is love for you... Isn’t it, Joe?... Wasn’t it, Joe?... Eh Joe?...”.

70 A poética televisual de Samuel Beckett


importante da ação não será aquele que a câmera mostra no vídeo, mas
aquele construído pelas imagens presentes na mente de Joe, que são criadas,
seja por Voice ou por Joe, e vistas tanto por eles quanto pela audiência.

As Produções

De acordo com Herren (1998: 106), é possível encontrar treze


produções desta tele-peça em vídeo. As três produções mais renomadas
são: a primeira produção da BBC, com direção de Samuel Beckett e
Alan Gibson, cuja estréia foi em 4 de julho de 1966 na BBC2, a produção
da Süddeutscher Rundfunk (SDR) com direção do próprio Beckett,
transmitida pela primeira vez em 13 de abril de 1966 e uma co-produção
da emissora alemã SDR, o canal público irlandês Radio Telefis Eireann,
o canal britânico Channel 4 e a emissora francesa La Sept, com direção
de Walter Asmus e assessoria de Beckett, que data de 1988.
As produções são bastante diferentes em termos estéticos, apesar
de seguirem o mesmo roteiro. A produção inglesa da BBC foi a primeira
a ser gravada e pode ser considerada a mais realista. A produção da SDR
foi dirigida pelo próprio Beckett e apresenta traços mais expressionistas,
cujo cenário é comparado por alguns autores com o do filme O Gabinete
do Dr. Caligary (1919). Por outro lado, a co-produção de 1988 dirigida por
Walter Asmus com assessoria de Beckett é a que segue as instruções do
roteiro mais detalhamente.
Schneider (apud HERREN, 1998: 105) afirma que ao limitar a sua
imaginação às instruções detalhadas do roteiro não se sente limitado
mas, ao contrário, se liberta. Na verdade, a sua criatividade está em fazer
com que o roteiro seja apenas um instrumento para que as idéias
adquiram forma. No caso de Film, o seu papel era tornar visível a
criatividade de Samuel Beckett. Gibson também conta que ao encontrar-
se com Beckett para discutir a produção, ele desenhou o set de filmagem
no verso de um envelope, colocando os objetos de cena nos devidos
lugares e indicando os movimentos do ator e da câmera. Para Gibson
“estes elementos foram apresentados não como absolutos, mas como a
única maneira em que a peça funcionaria” (KNOWLSON, 1996: 538).
Neste sentido, Eh Joe é um bom exemplo, pois parece que a produção em
que a tele-peça funciona melhor esteticamente é justamente aquela que
segue as instruções do roteiro cuidadosamente.

Gabriela Borges 71
A Produção Britânica

A produção da BBC (1966) 54 tem como protagonistas Jack


MacGowran, como Joe e Siân Philipps como Voice, a direção é de Alan
Gibson e Samuel Beckett e a produção de Michael Bakewell. A tele-peça
tem 19 minutos e apresenta algumas diferenças no roteiro que são
importantes de serem destacadas, pois geram uma determinada
interpretação e mostram que Beckett ainda não estava muito familiarizado
com o meio televisual.
Com relação ao cenário, a cama não se encontra do lado direito da
tela da televisão como foi descrito no manuscrito MS1537/355, mas do
lado esquerdo e ao lado do armário. A janela com a cortina se encontra
do lado direito e no meio da tela e a porta com a cortina fica na posição
central ao fundo. Há ainda um outro objeto de cena que não está descrito
no roteiro: uma lâmpada acima da cama de Joe. O plano geral de abertura
enquadra todo o quarto, o que não tinha sido previsto por Beckett, (1986:
361), que indicou que o quarto não precisaria ser mostrado. A importância
de não mostrar toda a mobília do quarto reside no fato de que o espaço da
ação será visto de uma forma mais abstrata e menos realista.
A câmera segue os movimentos de Joe e posiciona-se atrás dele,
que se move sempre com a cabeça abaixada. Apesar da abertura da
seqüência mostrar um plano geral do quarto, as outras cenas em que Joe
se aproxima da janela, da porta e do armário enquadram somente estes
detalhes, assim como enfatizam as quinas das paredes que reforçam o
contraste entre branco e preto e permitem uma composição espacial
mais gráfica e abstrata.
Foram feitas algumas alterações nos movimentos de câmera e no
texto que mudam o sentido da peça. A câmera movimenta-se enquanto
Voice cala-se, porém as suas pausas são feitas em partes distintas do
texto. Os movimentos da câmera entre os parágrafos 2 e 3 e os parágrafos
5 e 6 não ocorrem conforme roteirizado. Quanto às mudanças no texto,
é possível perceber algumas alterações, como por exemplo no primeiro
parágrafo, em que se lê: “A última vez que me deu prazer.... Pode falar

54. Esta versão está disponível nos arquivos do British Film Institute.
55. Todas as outras produções seguem esta descrição dos objetos de cena.

72 A poética televisual de Samuel Beckett


agora.” (BECKETT, 1990: 362) 56 e na versão para a televisão é
acrescentada uma frase que enfatiza o seu sentido: e “A última vez que
me deu prazer... O melhor está por vir.... Pode falar agora”57. A locução
“o melhor está por vir...” marca o começo da ameaça de Voice, e mostra
que Joe terá que aguardar porque o seu martírio só está começando. Da
mesma maneira no quarto parágrafo lê-se: “Esforçando-se para ouvir....
Por que é que você faz isto?...” (BECKETT, 1990: 364)58 e na versão
televisual têm-se a locução “Esforçando-se para ouvir.... Por que isto Joe?...
Por que é que você faz isto?....”59, enfatizando as razões pelas quais Joe
está agindo daquela maneira. Para Voice, parece que ele não se importa
de ter feito outras pessoas sofrerem. No oitavo parágrafo lê-se: “você se
deitou com ela, não é verdade?” (BECKETT, 1990: 365)60 e na versão
para a televisão Voice diz: “você teve notícias dela, não teve?”61. Esta é
uma mudança significativa porque a primeira frase que está no roteiro
tem uma conotação mais sexual e erótica, Voice está perguntado se Joe
dormiu com a sua amante e na segunda ela pergunta se ele recebeu
notícias dela depois de tê-la abandonado. Da mesma maneira, é dada
ênfase à palavra Gillete para a qual não aparece nenhuma indicação no
roteiro. Esta é uma palavra-chave na descrição do suicídio da amante de
Joe, pois a Gillette foi o instrumento que ela usou para se matar.
A iluminação é usada como recurso técnico para enfatizar a viagem
em direção às profundezas da mente de Joe. Todas as vezes que a câmera
se move e a Voice se cala, a luz diminui. Quando a câmera pára e Voice
recomeça a falar, a intensidade da luz aumenta. A câmera alterna-se
entre a voz e a luz, mas todas elas testemunham a solidão de Joe. Como
alguns autores (PRINZ, 1999: 162) afirmam, a câmera e Voice são
cúmplices e ameaçam Joe conjuntamente, seja aproximando-se fisicamente,
como é o caso da câmera, ou emocionalmente, como Voice.
Um outro aspecto de mudança no roteiro é que Joe aparece tirando
as meias quando volta a sentar-se na cama, ação que traz mais realismo

56. “Last I was favoured with you from... say it you now”.
57. “Last I was favoured with you from... the best’s to come... say it you now”.
58. “Straining to hear... why must you do that?”.
59. “Straining to hear... why is that Joe?... why must you do that?”
60. “you’ve had her, haven’t you?”
61. “you’ve heard from her, haven’t you?”

Gabriela Borges 73
para a tele-peça, detalhe que é excluído da versão alemã e da co-produção.
As expressões de MacGowran também oferecem um ar um pouco mais
realista para a produção. Ele move-se mais do que Klaus Herm, por
exemplo, o ator que representou Joe na co-produção de 1988, e também
tem olhos muito mais expressivos, os quais inundam a tela no close-up
final. Assim como o sorriso de alívio na face de Joe quando Voice
finalmente pára de falar, parece que ela finalmente o deixou em paz.
Porém, este sorriso é ambíguo, não sabemos se Voice desistiu de sua
empreitada ou se Joe matou-a em sua cabeça, acabando com a sua tortura
interior. MacGowran (TOSCAN, 1986: 221) afirma que Joe mata as
vozes que atormentam a sua mente. É como se ele tivesse uma pequena
vitória ao tirá-las do pensamento e esmagá-las. Segundo Kalb (1986:
255), Beckett comentou com os seus amigos em várias ocasiões que o
sorriso no final mostra que Joe finalmente sufocou a voz. MacGowran
(TOSCAN, 1986: 221) também observa que aqueles foram “os 22 minutos
mais fatigantes de toda a sua vida”. Ele afirma que representar aquela
figura em silêncio, escutando uma voz na sua cabeça e tentando reprimir
a memória que ela trazia, fazia com que ele sentisse como se a sua mente
estivesse sendo fotografada. Na sua opinião, esta é a peça que mais se
aproxima de uma peça perfeita para televisão, porque a câmera de vídeo
consegue fotografar a mente.

A Produção Alemã

A produção alemã da SDR, intitulada He Joe, apresenta Deryk


Mendel como Joe e Nancy Illig como Voice e a direção é de Samuel
Beckett. Ela foi transmitida em 1966, três meses antes da primeira exibição
da produção da BBC, pois a rede britânica estava adiando a estréia,
porém foi filmada um pouco depois desta (KNOWLSON, 1997: 535).
Segundo Ziliacus (1976:199), a estréia também não alcançou mais do
que 3% de sua audiência potencial.
Kalb (1989: 111) comenta que a versão da BBC parece mais um
ensaio para a versão alemã da SDR. Provavelmente a experiência de
filmagem na BBC apresentou algumas idéias novas que permitiram a
Beckett apurar o seu senso estético. As condições de trabalho em Stuttgart
também eram diferentes, pois a tecnologia era de primeira geração, havia
mais tempo para os ensaios e Beckett tinha sido convidado pelo Diretor

74 A poética televisual de Samuel Beckett


de Dramaturgia da SDR, Reinhardt Müller-Freienfels, para dirigir a tele-
peça (KNOWLSON, 1997: 539). O texto foi traduzido por Elmar e Erika
Tophoven, os tradutores alemães da obra de Beckett, com assessoria do
próprio autor. A tele-peça possui uma duração de 24 minutos, sendo
mais longa do que a britânica devido à tradução.
Na abertura, já é possível ver as diferenças entre as duas produções:
a lâmpada em cima da cama não está presente, o quarto é menos
iluminado e as paredes estão sujas como se fossem pintadas com carvão,
dando uma característica mais expressionista à tele-peça. Jim Lewis (apud
KALB, 1986: 109), o cinegrafista da SDR, comenta que a escuridão é um
recurso estético que Beckett usa em todas as suas produções alemãs:

A luz é sempre tênue. Eu nunca tive sucesso em fazer com que ela
fosse suficientemente tênue para Beckett. Nós sentamos e olhamos
para a tela e ele me diz: ‘Jim, você não poderia reduzir um pouco
mais a luz?’

O cenário também é construído de uma forma um tanto quanto


diferente. Segundo Prinz (1999: 163), os grandes retângulos dos objetos
de cena criam um padrão abstrato que remete aos filmes expressionistas,
como O Gabinete do Dr. Caligary (1919), assim como as sombras no rosto
de Joe criam um contraste entre o branco e o preto como da xilogravura
intitulada Profeta de Emil Nolde.
Da mesma forma, a atuação de Mendel e de Illig também divergem.
Ao contrário de MacGowran, Mendel olha para fora de campo, isto é,
nunca olha para a câmera, evitando a percepção da mesma maneira que
O em Film. O seu olhar é de rebeldia e desprezo, em contraposição ao
olhar de dor e medo de MacGowran. De acordo com Melchinger (apud
KALB, 1986: 108), Beckett afirma que as produções inglesa e alemã são
diferentes devido ao uso de atores diferenciados, não considerando que
uma seja melhor do que a outra. Nos ensaios, Beckett concentrou-se no
ritmo e no tom dos sussurros de acusação de Nancy Illig. A atriz conta
que, depois de ensaiar muito para fazer com que os sussurros emergissem,
Beckett disse para ela numa manhã: “agora, nós vamos fazer tudo parecer
como se estivesse morto”. E foi assim que, através de uma progressiva
redução, conseguiu atingir a cadência da voz fantasmagórica de Voice.
Para Mendel, a voz de Illig foi tão comovente que uma lágrima rola pelo
seu rosto no final da tele-peça (KNOWLSON, 1997: 540).

Gabriela Borges 75
A Co-produção Alemã, Britânica, Irlandesa e Francesa

A co-produção de 1988 foi protagonizada por Klaus Herm como


Joe e Billie Whitellaw como Voice e dirigida por Walter Asmus. Alguns
autores (HERREN: 1998, 106) afirmam que, na opinião de Beckett, esta
é a versão final de Eh Joe. Depois de ter aprendido a trabalhar com o
meio televisual na produção das outras tele-peças, Beckett regravou Eh
Joe como assistente de direção de Walter Asmus.
Segundo Herren (1998: 107), depois de ter experimentado com o
expressionismo nas peças Rockaby (1981), Footfalls (1976) e Ohio Impromptu
(1981), Beckett trabalha com o minimalismo nesta produção de Eh Joe.
Sua visão estética privilegia o uso do close-up, que é um dos recursos mais
utilizados no meio televisual. Esta produção é mais minimalista e mais
similar ao roteiro publicado. Asmus segue as instruções do roteiro com
muito cuidado, inclusive as ações de Joe, pois ele está praticamente
imóvel durante toda a peça. O close-up também enfoca gradativamente o
rosto de Joe até mostrar apenas os seus olhos. Herm parece estar mais
atento à voz do que MacGowran, uma vez que as suas expressões faciais
não são tão fortes quanto as expressões do ator irlandês. Ele olha
fixamente para a câmera durante quase todo o monólogo, apresentando
uma imagem assustadora, com pouca emoção e difícil de ser assistida.
A iluminação é feita com uma luz central e os cantos do quarto
aparecem numa obscuridade de cor cinza. O cenário é mais espaçoso e
os objetos de cena são mais alongados espacialmente. A janela com a
cortina se encontra do lado direito da tela, a porta no centro e a cama
ao lado do armário no lado esquerdo. Joe está sentado na cama e tira o
chinelo, ação que não está no roteiro, do mesmo modo que a meia que
ele tira dos pés na versão da BBC. Ele levanta-se e arrasta os pés até a
janela, sendo que está calçado apenas com um chinelo. A câmera não se
move. Ele move-se então como uma marionete62 da janela para a porta,
da porta para o armário e do armário para a cama, quando é enquadrado
num close-up e começa então a escutar a voz de Voice.
Voice, na voz de uma das atrizes favoritas de Beckett, sussurra e
assusta Joe, alcançando o tom e o ritmo de voz “morta” que Beckett

62. Em Ghost trio (1977) Samuel Beckett usou as idéias do texto de Heinrich Von Kleist
para explicar os movimentos inumanos do personagem F.

76 A poética televisual de Samuel Beckett


havia indicado para Siân Phillips e a qual Nancy Illig tinha quase atingido.
A repetição das palavras em itálico no parágrafo final do texto dá a
impressão de que a voz foi gerada no computador. No entanto, a sua voz
não foi eletronicamente modificada como na produção da BBC de 1966
(HERREN, 1998: 107). Whitelaw (1995: 230) conta que durante os
ensaios Beckett pedia sempre que ela falasse muito mais devagar em
algumas partes do texto. Ele desenhou num pedaço de papel um diagrama
para mostrar como a amante se movia entre as pedras e como ela tinha
colocado o rosto na água para se afogar, fazendo com que a atriz suspeitasse
que ele conhecia tanto aquele lugar quanto aquela mulher.

Os fantasias
Be that shade again.
In that shade again.
With the other shades.
Worsening shades.
In the dim void. (BECKETT)

Elementos Estéticos

A tele-peça Ghost trio é baseada numa estrutura triádica. Ela é


composta por três atos: a Pré-Ação, a Ação e a Re-Ação; por três
personagens: V (a voz feminina), F (a figura masculina) e um garoto,
como se fossem três fantasmas e contém ainda três movimentos de
câmera: A, B e C. A indica o plano geral, B indica o plano médio e C os
planos mais próximos.
Como Eh Joe (1966) e Film (1964), Ghost trio ainda apresenta um
quarto com os objetos de cena que são familiares ao imaginário das criações
anteriores de Beckett. A tele-peça se passa num quarto com uma forma
retangular como a tela da televisão e com poucos objetos de cena
igualmente retangulares, tais como: cama, banco, gravador e espelho. Voigts-
Virchow (1998: 226) considera Ghost trio uma peça intermediária em termos
de elementos minimalistas, pois a partir de ...but the clouds... as tele-peças
não apresentam nenhum tipo de representação realista. Com um mínimo
de elementos em cena, elas se tornam pura poesia visual.

Gabriela Borges 77
Alguns autores consideram o quarto não somente como uma
metáfora da televisão, mas também como a mente de F, que está sendo
perseguida por uma voz feminina (V) que comanda os seus movimentos.
Há uma personagem presente na tela (F) e uma outra que não aparece,
mas nem por isso está ausente (V).
Usando o potencial do meio tecnológico, Beckett criou V, uma voz
off que chama a atenção da audiência para ver e ouvir o que está sendo
mostrado na tela e brinca com a sua presença e a sua ausência ao
comandar os movimentos de F e ressaltar o óbvio. Entretanto, não está
claro se V é a própria voz de F, de uma outra pessoa ou de um outro
fantasma. Pode-se dizer que a audiência é levada para dentro do quarto
para escutar uma voz que pode ser a sua própria voz fantasmagórica,
sempre esperando que alguma coisa aconteça ou chegue ao final, seja
este final a morte ou a redenção.
Sendo uma voz off, V oscila entre a presença e a ausência, o que pode
ser entendido também como uma metáfora dos trabalhos de Beckett para a
televisão, que inserem a ausência no fluxo televisual. Eles apresentam uma
espécie de ruptura neste fluxo, um vazio inserido nas imagens que estão
vinte e quatro horas por dia disponíveis para serem assistidas. A performance
de V contracena com o som do Largo do Quinto Trio para Piano de Beethoven,
conhecido como O fantasma, que parece dialogar com F, enfatizando os seus
pensamentos. É importante notar que ao contrário de Krapp’s Last Tape, a
música em Ghost trio não vem do gravador que F está segurando enquanto
sentado no banco. A música vem da mesma fonte extra-diegética que a voz.
Deleuze (1995: 16-7) afirma que a música conecta os vazios espaciais e os
silêncios vocais dentro dos planos fantasmas.
O tema da percepção está presente em Ghost trio, mas de uma forma
um pouco diferente do que nas outras peças de teatro e de televisão e no
filme. Nesta tele-peça, a personagem V manda que F olhe no quarto à
procura da amada, enquanto em Film a câmera-personagem E persegue O,
que não quer ser visto. Nas peças de teatro Happy Days e Play as personagens
estão preocupadas em serem percebidas, quer seja pela audiência ou por
um outro personagem. Em Happy Days, Winnie pergunta: “alguém está
ainda olhando pra mim?” (BECKETT, 1990: 160)63 e em Play, w2 indaga:

63. “Someone is looking at me still?”.

78 A poética televisual de Samuel Beckett


“Você está me escutando? Alguém está me escutando? Alguém está olhando
pra mim? Alguém ainda se preocupa comigo?” (BECKETT, 1990: 314)64.

A percepção

Em Ghost trio, Beckett chama a atenção para os sentidos. A Pré-


Ação é dedicada ao olhar, a Ação à audição e a Re-Ação repete as duas
ações anteriores, o ver e o ouvir, por meio da montagem.
Na Pré-Ação, V chama a atenção para o olhar, convidando a
audiência e o personagem F a observar, a olhar para a cama, a janela, a luz
e as sombras da cor cinza. A peça começa com V falando com a audiência:

Boa noite. Minha voz é suave. Por favor, sintonize gentilmente. Boa
noite. Minha voz é suave. Por favor, sintonize gentilmente. Ela não
vai aumentar nem diminuir, o que quer que aconteça. Olhe. O
quarto familiar. Ao fundo, a janela. À direita, a porta indispensável.
À esquerda, encostada na parede, uma espécie de cama. A luz: pálida,
onipresente. Sem fonte visível. Como se tudo estivesse iluminado.
Sem sombra. Sem sombra. Cor: nenhuma. Tudo cinza. Sombras
de cinza. A cor cinza se preferir, sombras da cor cinza. Perdoe-me
por explicar o óbvio. Mantenha o som baixo. Agora olhe mais de
perto. Chão.” (BECKETT, 1990: 408)65.

Supostamente, esta é uma descrição do quarto, no entanto, os planos


detalhes enquadram as formas retangulares da parede, da cama, da janela
e do chão em sombras da cor cinza, fazendo com eles percam a sua
materialidade e a sua função de representar os objetos de cena e se
transformem em pura forma abstrata, como uma poesia visual. Ao mesmo

64. “Are you listening to me? Is anyone listening to me? Is anyone looking at me? Is anyone
bothering about me at all?...”.
65. “Good evening. Mine is a faint voice. Kindly turn accordingly. Good evening. Mine is a
faint voice. Kindly turn accordingly. It will not be raised nor lowered, whatever happens.
Look. The familiar chamber. At the far end a window. On the right the indispensable
door. On the left, against the wall, some kind of pallet. The light: faint, omnipresent. No
visible source. As if all luminous. Faintly luminous. No shadow. No shadow. Colour:
none. All grey. Shades of grey. The colour grey if you wish, shades of the colour grey.
Forgive my stating the obvious. Keep that sound down. Now look closer. Floor”.

Gabriela Borges 79
tempo, V está pedindo aos telespectadores uma certa intimidade que é
comum ao ato de ver televisão. Ela usa expressões como “look closer”,
“keep that sound down” e “forgive my stating the obvious”. Ela também
se apresenta e dá o ritmo da peça, dizendo que vai falar sempre no
mesmo tom, nem mais alto nem mais baixo.
É interessante perceber o que Beckett fez com a televisão, um meio
que pretende ser o veículo de representação do real por excelência. Ele
usa as ferramentas tecnológicas: câmera, luz e som para criar um tipo de
imagem poética que até mesmo hoje em dia não faz parte do repertório
televisual. Ele mostra imagens fantasmagóricas e abstratas e a ausência
que elas personificam em um meio que pretende estar constantemente
presente, cobrindo todos os eventos da realidade.
A maneira como Beckett usa o meio televisual rompe com o seu
poder de representação e alcança o que ele mesmo tinha dito a respeito
da obra do artista plástico Tal Coat:

A expressão que não há nada para expressar, nada com o que se


expressar, nada de que se expressar, não há força para expressar,
não há desejo para expressar, juntamente com a obrigação de se
expressar” (BECKETT, 1999: 103)66.

No segundo ato, a Ação, V chama a atenção para a audição, dizendo


que agora ele [F] pensa que ouve o som dela67. A audiência é então
transferida para dentro do quarto enquanto V ressalta o óbvio e coloca
a audiência na mesma posição que F, ambos estão esperando pela amada
e tentando escutar os seus passos. V manda F se mover, fazendo com que
ele se mova da porta para a janela, da janela para a cama, da cama para
o espelho e do espelho novamente para a porta, ocupando as posições 1-
5, 2-6 e 3-7 que são enquadradas pela câmera na posição C e enfatizam
a estrutura triádica da tele-peça. F desobedece a última ordem de V e
senta-se no banco segurando o gravador. O som da música aumenta e F
levanta-se para olhar na porta se a amada chegou, pois ele pensa que

66. “The expression that there is nothing to express, nothing with which to express,
nothing from which to express, no power to express, no desire to express, together
with the obligation to express”.
67. “now he thinks he hears her” (Beckett, 1990:410).

80 A poética televisual de Samuel Beckett


ouviu os seus passos. Ele volta novamente para o seu banco e senta-se
curvado sobre o gravador como se estivesse ouvindo a música. Entretanto,
o som não vem do gravador, mas de uma outra fonte extra-diegética. A
música pára e V afirma: “Repita”, dando a indicação de que o terceiro
ato vai começar e as ações serão repetidas novamente.
Parece que a Ação apresenta um plot realista quando a personagem
se move seguindo as ordens de V. Porém, todo o realismo se perde nos
movimentos de F que são parecidos com os movimentos de uma
marionete, ou de um fantasma, entre vivo e morto. Knowlson (1996:
632-3) afirma que para explicar os movimentos de F, Beckett usou como
referência o ensaio intitulado About the marionette theatre, escrito por
Heinrich von Kleist (1937: 101-5) no século XIX. Neste ensaio, Kleist
comenta que a marionete tem graça, harmonia, simetria e mobilidade
porque não tem consciência de si mesma.
Mesmo considerando que os movimentos de F se parecem com os
movimentos de uma marionete, F toma consciência de si mesmo quando
se vê no espelho. Isto ocorre duas vezes na tele-peça: a primeira durante
o segundo ato, quando F se vê de relance no espelho, mas a câmera não
mostra o seu rosto e a segunda durante o terceiro ato, quando a câmera
enquadra o seu close-up no espelho. A mesma referência aparece em
Film, quando O evita mirar-se no espelho pendurado na parede. Porém,
em Ghost trio a imagem refletida no espelho é enquadrada, levando
Deleuze a afirmar que Beckett criou a imagem. Esta imagem se define por
meio de sua forma e sua tensão interna, ela é “uma pequena imagem
ilógica, amnésica e quase afásica, que se encontra ao mesmo tempo no
vazio e treme na imensidão. Ela não é um objeto, mas um processo”
(1995: 9). Esta seria então uma imagem epifânica que não chega a se
materializar, é fugaz e acontece somente por um instante fugidio.
No terceiro ato, a Re-Ação, V ordena a repetição das ações, ou seja,
do ato de olhar e ouvir que resulta na repetição dos movimentos de F e
conseqüentemente dos olhos da audiência e do ato de esperar. Como
em Waiting for Godot, F está esperando por alguém que nunca chega e
recebe a visita de um garoto que traz uma mensagem avisando que a
pessoa não virá. Numa aparição fantasmagórica, o garoto apenas balança
a cabeça negativamente.
F é uma figura solitária que existe num mundo povoado de fantasmas
e sons, esperando indefinidamente por alguém ou por algo novo, uma

Gabriela Borges 81
metáfora da própria condição humana, sempre esperando a hora da
morte. Como a personagem Maddy da peça de rádio All that Fall, que
fala para Mr. Slocum quando ele pergunta se eles estão indo para a
mesma direção: “Eu estou, Mr. Slocum, todos nós estamos” (BECKETT,
1990: 177)68.
Em termos da montagem, a tele-peça alcança o que Eisenstein
(1928: 83) afirmou ser a sua principal característica: “um contraponto
orquestral de imagens visuais e imagens sonoras”. É possível afirmar
que a Re-Ação apresenta o contraponto destes dois elementos na repetição
da música e do movimento, sem a presença da voz. É uma tele-peça que
usa os recursos da tecnologia televisual, o enquadramento da câmera e o
som para criar uma imagem visual que é fantasmagórica e espacialmente
abstrata, e uma imagem sonora que assombra tanto F quanto a audiência.
Enfim, é possível argumentar que Beckett, como os seus personagens,
é um fantasma que assombra a televisão. Ainda hoje, as suas tele-peças
continuam a questionar o papel da televisão na sociedade contemporânea,
principalmente no que diz respeito ao modo como ela enquadra o mundo
e conta as suas histórias.

As imagens da memória
Poetry (my) only love (BECKETT)

Elementos Estéticos

A tele-peça ...but the clouds... prima pelo uso da luz. O cenário


consiste de um foco de luz de 5 metros de diâmetro no centro da tela
rodeado por uma zona de escuridão. A iluminação é gradual entre a
completa escuridão ao redor do círculo e o máximo de luz no centro. O
roteiro indica que os três lados deste foco de luz são denominados: 1.
oeste, ruas; 2. norte, santuário; 3. leste, armário; o centro do círculo é
denominado 4. posição de permanência.
A câmera, diferentemente de Eh Joe e Ghost trio, está imóvel durante
toda a tele-peça e posicionada ao sul do círculo de luz. Ela enquadra

68.
“I am, Mr. Slocum, we all are”.

82 A poética televisual de Samuel Beckett


quatro planos que, ao aparecerem, são mantidos fixos do começo ao
fim. O primeiro deles denomina-se M, um plano médio do personagem
M de costas, sentado num banco invisível, debruçado sobre uma mesa
também invisível e vestido com um roupão e uma touca de cor cinza
claro. Esta é uma imagem que, apesar de descrita pelo autor, é bastante
difícil de ser identificada na tela de vídeo. Ela se materializa como o
espaço do santuário em que M está relembrando e querendo rever a sua
amada, mas ela não é vista claramente, pois o santuário se situa na zona
de escuridão ao norte do círculo. M1 é um plano geral de M no set,
vestido com um chapéu e um sobretudo de cor escura ou com roupão e
touca de cor clara; o outro plano é um close-up da mulher amada reduzido
ao máximo aos olhos e à boca, denominado W. O quarto, denominado
S, é o plano geral do set, seja vazio ou com M1. As passagens de um
plano ao outro são feitas gradualmente por meio da fusão.
M é o personagem masculino que se move de um lado para o outro
do círculo numa coreografia indicada detalhadamente no roteiro. De
cada uma das posições até o centro ele dá cinco passos, pára na posição
de permanência, vira-se e segue para a posição seguinte. Os movimentos
de M, como de F em Ghost trio são inexpressíveis e sem vitalidade como
os movimentos de uma marionete e, algumas vezes, são até mesmo
cômicos. V é a voz interior de M, que se expressa na tele-peça como uma
voz off feminina.
Comparando com as duas tele-peças anteriores, ...but the clouds...
apresenta algumas diferenças significativas em sua gênese. Apesar de todas
elas terem sido escritas para um personagem masculino na tela e uma voz
off feminina, em Eh Joe há dois personagens, Joe, visto na tela e Voice, a
voz off que pode ser tanto a voz interior do personagem como a voz de
uma das suas amantes, ainda mais que ela é feminina. Voice atormenta
Joe, que vive uma espécie de purgação e somente imagina os momentos
em que passou com suas amantes. Por sua vez, Ghost trio apresenta um
diálogo entre F, o personagem masculino e V, a voz que comanda os seus
movimentos enquanto espera pela chegada da amada. Porém, a imagem
da amada nunca chega a se materializar, seja em voz ou imagem.
Em ...but the clouds... V é uma voz suave que traz à lembrança de M
os momentos em que a amada apareceu para ele, porém ela não é só
imaginada, ela aparece efetivamente na tela. Como M e V são corpo e
voz do mesmo personagem, ...but the clouds... pode ser considerado um

Gabriela Borges 83
monólogo, no entanto, é um monólogo de natureza bastante peculiar,
pois a voz está separada do corpo. Além disso, ela age no tempo presente
e no tempo passado, mas as imagens de M aparecem apenas no passado.
M repete sempre o mesmo movimento. Ele entra pelo lado oeste,
ou seja, pelas ruas adjacentes vestindo chapéu e casaco, pára no centro
do círculo de luz e dirige-se para o lado leste, onde está o armário em
que ele guarda suas vestimentas e veste o roupão e a touca, reaparecendo
no centro do círculo de luz para dirigir-se ao seu santuário, localizado
ao norte. No santuário escuro, onde não pode ser visto por ninguém,
adota a posição M e começa a relembrar os momentos em que esperava
pela aparição da amada. Quando deixa o seu santuário, ele faz os mesmos
movimentos em sentido contrário, ou seja, vai do santuário para o armário,
troca de roupa e dirige-se para a rua, todos estes movimentos passam
pelo centro, onde M pára, vira-se e segue.
O espaço da ação que é visto na tela, no qual M se movimenta de
um lado para o outro do círculo de luz, corresponde ao seu imaginário,
ao falar consigo mesmo, relembrar os momentos em que esperava pela
aparição da amada, assim como aqueles momentos em que ela
efetivamente reapareceu na sua lembrança.
V descreve, no presente, as ações de M ao tentar relembrar as
aparições da amada no passado, ou seja, é como se M estivesse repetindo
para si mesmo o caminho que costumava percorrer para que a amada
reaparecesse. Após cada descrição, V afirma: “É isso”, concordando que
foi daquela maneira que ele tinha agido quando conseguiu ver a amada
na sua imaginação e pede para que as ações sejam repetidas novamente
ao afirmar: “Agora vamos ter certeza de que conseguimos fazer isto
corretamente” e “Agora vamos repassar tudo isto novamente” (BECKETT,
1990: 419-21)69.
V e M intercambiam a sua existência entre o presente e o passado.
Ainda no presente, V afirma: “Agora vamos distinguir três casos”
(BECKETT, 1990: 420)70 e, no passado, descreve as ações de M no círculo
de luz, que é o palco da memória. V descreve quatro casos mais comuns,
três deles em que a amada aparecia e um caso nulo. No primeiro caso,

69. “Let us now make sure we have got it right.” e “Let us now run through it again.”
70. “Let us now distinguish three cases”.

84 A poética televisual de Samuel Beckett


ela apareceu e desapareceu num suspiro. No segundo, ela apareceu e
deixou-se ficar com aqueles olhos vagos que ele tanto suplicara para que
olhassem para ele enquanto vivos. E no terceiro caso, ela apareceu e
depois de um momento os seus lábios moveram-se e disseram,
inaudivelmente, as palavras “...nuvens... como as nuvens... do céu...”71, V
então murmura as palavras “...como as nuvens...”72, sincronizadamente
com os lábios da amada.
No seu santuário, onde não podia ser visto por ninguém, a amada
reaparece e M suplica: “Olha para mim” e então ela repete as palavras
“...nuvens... como as nuvens... do céu...” que são murmuradas por V.
Quando os lábios se calam, V implora: “Fala comigo.” (BECKETT, 1990:
421)73. Diferentemente de Eh Joe, em que Joe queria que Voice se calasse
e sumisse, V diz para a amada: “Fala comigo” e “Olha para mim”, mas
como ela só existe na imaginação de M, ela não fala nem olha para ele,
somente aparece de relance, como uma visão, uma miragem. No
manuscrito MS1533-1 consta um quarto caso que foi retirado do roteiro
final, em que se lê: “ela chega e depois de um momento – (...) começa a
falar.” (...) “...até que tudo ...se pareça com as nuvens do céu, quando o
horizonte se esvanece...”74, que são os versos retirados do poema de
William Butler Yeats, The Tower (1927). Como o personagem O em Film,
M não quer ser visto por ninguém mas, ao mesmo tempo, suplica para
que a amada olhe para ele. É como se somente ela tivesse o direito de
compartilhar aquele lugar e aquele momento de solidão em que eles
conseguiam, de certa forma, se comunicar. Ele não queria ser visto mas,
ao mesmo tempo, suplicava para que aqueles olhos vagos e sonhadores
que ele se recordava tão bem, olhassem para ele.
No roteiro final consta ainda um quarto caso, ou caso nulo, em
que M suplicava em vão. Este era o mais comum, pois acontecia (Beckett,
1990:421)”75. Ele lamenta que se ela não tivesse aparecido nenhuma das
vezes em que suplicou, ele não teria ficado esperando “(...) até altas

71. “...clouds ...but the clouds... of the sky...”.


72. “...but the clouds...”
73. “Look at me” “...clouds... but the clouds... of the sky...” e “Speak to me”.
74. “she comes and after a moment – (...) begins to speak till all... seem but the clouds of
the sky, when the horizon fades...”.
75. “(...) in the proportion say of nine hundred and ninety-nine to one, or nine hundred
and ninety-eight to two (...).”

Gabriela Borges 85
horas da madrugada, (quando) cansava e parava” e teria “se ocupado
com alguma outra coisa, mais... recompensadora como... como... calcular
raízes cúbicas, por exemplo, ou com nada” (BECKETT, 1990: 421)76.
Para Kirkley (1992: 610), o que é visto no vídeo não é o presente
fluxo de consciência de M, o personagem que faz e pensa, porque a sua
voz, V, é separada do seu corpo ao descrever as suas ações no tempo
passado. Neste sentido, V não é a voz daquele que a audiência vê na tela
da televisão, V é a voz daquele que escuta e observa o seu passado. É
como se houvesse várias instâncias do mesmo ser, ou como se a
consciência de M tivesse vários níveis: o presente, expresso pela voz off
de M falando sobre o passado; e o passado, que é tanto aquele mostrado
no vídeo, ou seja, as ações de M na tentativa de rever a amada, quanto
um passado mais longínquo da convivência dos dois amantes, que não
se sabe ao certo quando ocorreu. A única indicação de que viveram
juntos, ou passaram momentos felizes juntos, aparece quando V fala que
suplicava para que aqueles olhos vagos olhassem para ele quando eram
vivos. Na língua inglesa, este verso é ambíguo pois ao usar a palavra
alive77, não se sabe se era quando M estava vivo ou a amada estava viva.
Neste sentido, M é, ao mesmo tempo, aquele que se vê no vídeo, ou seja,
aquele que está na memória do personagem M, que pensa sobre o passado,
assim como o personagem M da voz off no presente, que tenta relembrar
como é que a amada aparecia.
A amada aparece oito vezes durante a tele-peça. Algumas vezes ela
apenas aparece fortuitamente por dois segundos, em outras ela fala,
inaudivelmente, as palavras “... como as nuvens... como as nuvens do
céu... quando o horizonte se esvanece...”78 e em outras ela fala, também
de modo inaudível, os últimos versos do poema The Tower: “... como as
nuvens... como as nuvens do céu... quando o horizonte se esvanece... ou
como um lento cantar de um pássaro... no escurecer das sombras”
(BECKETT, 1990: 422)79.

76. “(...) deep down into the dead of night, until I wearied, and ceased,” e teria “busied
myself with something else, more... rewarding, such as... such as... cube roots, for
example, or with nothing...”.
77. “With those unseeing eyes I so begged when alive to look at me” (BECKETT, 1990:420).
78. “... but the clouds... but the clouds of the sky... when the horizon fades...”.
79. “... but the clouds... but the clouds of the sky... when the horizon fades... or a bird’s
sleepy cry... among the deepening shades...”.

86 A poética televisual de Samuel Beckett


Beckett & Yeats

De acordo com o manuscrito MS1553-2, o primeiro título da tele-


peça foi Poetry only love. No manuscrito pode-se ler as seguintes frases:
“W: Poetry was her only love” e “Poetry (was my) only love”, os quais
podem se referir tanto à personagem W, que nas primeiras versões da
tele-peça recitava os últimos versos do poema, quanto ao poeta, Beckett.
Ao afirmar que a poesia era o seu único amor, W cria uma ambigüidade,
pois o intercâmbio entre presente e passado volta a aparecer com a
indagação de quem seja ela, W no presente ou no passado. Por outro
lado, se for considerado que esta é a voz do autor, seria então Beckett
afirmando, por meio da personagem W, que a poesia é o seu único
amor. Além disso, esta frase também explica, de certa forma, a
intertextualidade entre a tele-peça e o poema de Yeats. Os versos do
poema inspiraram não somente o nome da tele-peça e o seu tema, mas
também o nome do programa intitulado Shades (Sombras)80, em que as
tele-peças ...but the clouds..., Ghost trio e Not I foram exibidas.
Em The Tower, Yeats elabora sobre o tema do envelhecimento e da
expectativa da morte, quando o corpo está ficando fraco e a circulação
começa a parar lentamente. Campos (1998: 3-4) afirma que o poema é
uma espécie de testamento do poeta, pois no fim da sua vida Yeats escreveu
muito sobre a velhice, inclusive, ao reler os seus versos, ele próprio
achou seu poema um tanto amargo. O poema é dividido em três partes,
na introdução o poeta expõe a sua indignação com a degeneração da
idade, depois evoca os fantasmas da torre para indagar sobre a sua
indignação e rememora o vigor da juventude. Por fim, ele expõe o seu
credo e transmite o seu legado, enquanto sua vida se esvanece.
No começo do poema há uma referência à musa e o poeta lembra-
se de que quando era moço não se importava com ela e lhe mandava
embora, preferindo Platão e Plotino como amigos. A imaginação e a
memória são dois temas presentes no poema que também são recorrentes
no trabalho de Beckett. Yeats escreve que no fim do dia, quando os
últimos raios de sol se escondem, a imaginação se solta e são evocadas
as imagens e as memórias. Em Beckett, M evoca a presença de sua amada,

80. O título foi retirado do último verso do poema: “among the darkening shades”.

Gabriela Borges 87
que se revela e se esconde, ao dirigir-se para o seu santuário e suplicar
para que ela apareça na escuridão ao final do dia. M, por intermédio de
V, afirma que em muitas noites suplicava em vão para que a amada
aparecesse e que, em outras noites, ela aparecia na sua imaginação.
O poeta pergunta ainda se a imaginação discorre mais sobre um
amor conquistado ou sobre um amor perdido e afirma que se ela discorrer
mais sobre um amor perdido, foi

por mera covardia ou por orgulho,


pseudoconsciência ou sutileza vaga,
refugiste de um grande labirinto,
E se a memória volve o sol é extinto
Por um eclipse e o dia já se apaga” (CAMPOS, 1998: 7).

No final, o poeta afirma que preparou a sua paz, no sentido de sua


morte, com as cultas culturas italiana e grega, com a imaginação do
poeta, as memórias das palavras das mulheres e dos amores, ou seja,
com tudo o que o homem precisa “para o seu sobre-humano sonho-
espelho de ser” (CAMPOS, 1998: 8). Nos últimos versos que são usados
em ...but the clouds..., ele prepara a sua alma, lamenta a morte dos amigos
e dos olhares que lhe fizeram prender a respiração, “como as nuvens do
céu, quando o horizonte se esvanece”, referindo-se mais uma vez ao
crepúsculo, que é uma metáfora não somente da imaginação e da
memória, mas também da morte como o “lento cantar de um pássaro
(que) ressoa no escurecer das sombras”.
A produção alemã de ...but the clouds..., dirigida pelo próprio Beckett
para a Süddeutscher Rundfunk em 1977, usou os últimos doze versos do
poema de Yeats, pois Beckett considerou que a audiência alemã não
teria conhecimento prévio do poema, enquanto que para os ingleses
ficaria muito óbvio e repetitivo se fossem usados mais do que quatro
versos do poema no final da tele-peça.

Beckett & Proust

No ensaio crítico que escreveu sobre a obra Em busca do tempo


perdido de Marcel Proust, Beckett (1999: 11) afirma que a memória e o
hábito são os dois atributos do câncer do tempo, que é um monstro de

88 A poética televisual de Samuel Beckett


duas-cabeças, tanto da maldição quanto da salvação. Em ...but the clouds...,
o autor lida com as duas instâncias, seja na repetição habitual das mesmas
ações ou nas imaginações criadas pela memória.
A tele-peça enfatiza a repetição das ações cotidianas, descreve a
vida de M dia após dia, desde a aurora até o anoitecer, quando ele se
fecha em seu santuário para implorar à amada que apareça novamente.
Ao repetir sempre os mesmos movimentos, na sua imaginação e na sua
lembrança, M explicita um hábito e uma monotonia da vida cotidiana.
Para Beckett (1999: 28), a vida é um hábito, o qual é um acordo entre o
indivíduo e o seu meio, cuja obrigação é perpetuar-se. O hábito oscila
entre o sofrimento e o tédio. O sofrimento representa a omissão do
dever de perpetuação, abrindo uma janela para o real e sendo a condição
principal da experiência artística. O tédio, por sua vez, representa o
cumprimento do hábito que deve ser tolerado pois é o mais duradouro
de todos os males humanos.
As cenas que explicitam os hábitos de M são, na verdade, exercício
da sua memória, cujos movimentos são descritos por V. Para Proust, e
para Beckett (2003: 31), existem dois tipos de memória, a memória
voluntária e a memória involuntária. A memória voluntária é descrita
como um álbum de fotografias, em que as imagens do passado,
personificadas em imagens corpóreas, estão arquivadas, e que não se
diferencia muito da memória de um sonho, pois ela “não tem valor
como instrumento de evocação e mostra uma imagem tão distante do
real quanto o mito da nossa imaginação” (BECKETT, 2003: 12-3). Para
o autor, esta memória se apresenta como a forma mais monótona de
plágio, pois constitui o plágio de si mesmo. Ao repetir os seus movimentos
de um lado para o outro no círculo de luz, M não faz nada mais do que
imitar-se a si mesmo, no presente e no passado, como o personagem
Krapp da peça Krapp’s last tape ao ouvir novamente os rolos de fita cassete
que contam as memórias da sua vida ao longo dos anos.
O círculo de luz é o palco da memória voluntária, ou seja, onde ela
se materializa como uma experiência não somente para M, mas também
para o telespectador. Quando M quer ver a amada, ele entra no seu
santuário e começa a evocá-la, suplicando para que ela apareça. Para
Beckett (2003: 30), o hábito e a memória estão tão ligados um ao outro
que, em casos extremos, a memória é acionada por força do hábito.
Como a memória voluntária permite ao indivíduo escolher arbitraria-

Gabriela Borges 89
mente quais as imagens que quer guardar na sua lembrança, as imagens
que M vê no círculo de luz são as imagens do seu arquivo da memória
que estão disponíveis para serem lembradas e revividas. Ao evocar uma
ação passada, o que se vê não é mais do que um eco desta ação, pois é
um ato intelectivo e está condicionado pelos preconceitos da inteligência.
Assim, qualquer gesto ou palavra, perfume ou som que não se explique
por meio de algum conceito é rejeitado como ilógico e insignificante
(BECKETT, 2003: 76).
Em contraposição ao círculo de luz, o espaço do santuário, em que
M se retira para não ser visto por ninguém e ativar os mecanismos da
sua memória, encontra-se em completa escuridão. Na obra de Beckett, o
espaço da memória é sempre o espaço da escuridão, contraposto por um
foco de luz que expressa a imaginação, como nas peças Not I (1972),
That Time (1974-5) e What Where (1982). Este espaço pode ser visto também
como uma metáfora da mente, que pode ser ou estar sempre solitária e
que se expressa na tele-peça pela palavra MINE81. Esta palavra tem um
sentido ambíguo na língua inglesa e pode ser entendida tanto como o
pronome pessoal meu, quanto como o substantivo mina, no sentido de
uma fonte rica e inesgotável guardada no labirinto da memória. Kirkley
(1992: 610) enfatiza que a palavra está escrita em letra maiúscula para
indicar que deve ser falada com certa ênfase durante a performance.
No santuário, M ativa a memória por força do hábito, no entanto,
apesar de rever as suas imagens no círculo de luz, M não tem controle
sobre as aparições da amada, pois elas ocorrem por meio da memória
involuntária. Esta memória é “explosiva, uma deflagração total, imediata
e deliciosa”, que escolhe o seu próprio tempo e lugar para acontecer.
Segundo Beckett (2003: 32-3), a memória involuntária consome o hábito
e revela o real, o qual a falsa experiência da realidade não pode jamais
revelar. Neste sentido, W, a amada de M, escolhe quando vai aparecer,
intercalando a sua presença com a sua ausência. No começo da tele-
peça, V afirma que quando pensava nela era sempre noite e depois
corrige, afirmando que quando ela aparecia era sempre noite, ou seja, a
amada aparecia quando queria e não quando M queria que ela aparecesse.

81. “... busied myself with nothing, that MINE, until the time came, with break of day, to
issue forth again...” (Beckett, 1990:421)

90 A poética televisual de Samuel Beckett


Beckett (2003: 79-80) comenta que a experiência da memória
involuntária acontece algumas vezes na obra de Proust. Ela proporciona
a identificação entre as experiências imediata e passada, como por
exemplo a reaparição de uma ação passada ou a sua reação no presente,
consistindo numa “colaboração entre o ideal e o real, entre a imaginação
e a apreensão direta”. Pode-se sugerir que o mesmo acontece em ...but
the clouds..., pois a experiência vivida por M é comum ao passado e ao
presente. O autor afirma que esta experiência é, ao mesmo tempo,
imaginativa e empírica e transmite uma essência extratemporal cujo
transmissor se torna, naquele momento, um ser extratemporal. Neste
sentido, o personagem M se mostra como um ser extratemporal no
momento em que revê a sua amada, experimentando uma breve
eternidade. Sendo assim, é possível afirmar que as obras de Proust e
Beckett consistem numa negação do tempo e conseqüentemente da
morte, que está vinculada ao tempo. O tempo linear é negado, pois
presente e passado acontecem a um só e mesmo tempo.

A zona de ausência
Neither, to and fro in shadow
from inner to outer shadow
from impenetrable self to impenetrable unself
by way of neither (BECKETT).

Elementos Estéticos

Este é um dos trabalhos mais intrigantes de Beckett, cuja estética é


baseada na repetição dos movimentos de corpos e sons, definido por
Deleuze (1995: 9-10) como uma linguagem de imagens, cores e sons.
Quad I é composta por quatro personagens-dançarinos que se movem ao
redor de um tablado. Cada um segue o seu próprio caminho, executando
quatro séries sucessivas de movimentos que aparecem em combinações
variáveis e cuja continuidade cria um padrão interno bastante tenso.
Eles estão completamente absorvidos nos seus próprios movimentos ao
evitar o centro, que Beckett chama de E, a zona de perigo, assim como
qualquer encontro ou contato. Por intermédio dos seus movimentos

Gabriela Borges 91
repetitivos de um canto ao outro do tablado, Beckett enfatiza o caráter
reiterativo da vida humana, continuamente repetindo seus movimentos.
Cada personagem-dançarino usa um roupão longo com um capuz
que cobre a face nas cores branca, amarela, azul e vermelha, e apresenta
um ritmo particular marcado respectivamente pelos seus próprios passos
e pelos sons percussivos de um tambor, de um gongo, de um triângulo e
de um bloco de madeira respectivamente. A percussão começa quando
o personagem-dançarino entra em cena e pára quando ele sai, além de
ser descontínua para permitir que os passos sejam ouvidos nos intervalos.
Como a tele-peça não tem diálogo, o som percussivo e os passos marcam
o ritmo e geram o movimento das cenas.
Quad II foi gravado em preto e branco. Todos os quatro dançarinos
usam roupões brancos com capuz e os movimentos são marcados pelo
som dos seus passos, pois não há percussão e portanto, são mais lentos.
Apenas a primeira série de movimentos é encenada.
No roteiro está indicado que a cor do figurino de cada um dos
personagens deve corresponder à mesma cor de luz, ou seja, branco,
amarelo, azul e vermelho. Porém, por motivos técnicos, isto foi mudado
pela produção nos estúdios de Stuttgart e foi mantida uma luz neutra, um
pouco mais forte no centro do tablado, do começo ao fim da tele-peça.
Diferentemente dos trabalhos anteriores para a televisão, em que
Beckett discute a questão do eu interior dos personagens, em Quad ele
parece estar mais interessado em explorar algumas questões sobre a
existência humana, como por exemplo, o seu aspecto reiterativo.
Knowlson (1997: 673) afirma que o movimento dos personagens-
dançarinos no tablado faz lembrar as gravuras de Gustave Doré que
retratam Dante e Virgilio no Inferno, que por sua vez é uma referência
ao livro A Divina Comédia de Dante Alighieri. Além disso, Knowlson
afirma que o desvio sempre à esquerda na zona de perigo remete à
explicação que o próprio Beckett deu ao seu tradutor polonês com respeito
ao livro Compagnie. Beckett disse que no inferno, Dante e Virgílio sempre
vão para a esquerda (a direção dos condenados) e que a direção do
Purgatório é sempre à direita.
Os quatro personagens-dançarinos são enquadrados no tablado
por uma câmera fixa em posição plongée. Como a câmera não se move,
há somente um ponto de vista, enquadrado no primeiro quadro, a tela.
Porém, a fixidez da câmera é subvertida pelo movimento reiterativo dos

92 A poética televisual de Samuel Beckett


personagens-dançarinos no segundo quadro, o tablado. No espaço entre
o lado de fora do tablado e o limite da tela da televisão há uma zona de
escuridão em que os personagens se escondem quando não estão em
movimento. Como um quadro dentro de outro quadro, o tablado revela
e oculta os personagens-dançarinos e possui a mesma dinâmica da
repetição, que apresenta a mesma imagem e o mesmo movimento sempre
de uma maneira nova e diferente, apesar de ser igual. Com o uso de uma
câmera fixa, Beckett explora o movimento e aumenta as possibilidades
de interpretação da imagem.
Ben-Zvi (1985: 23) afirma que o trabalho do autor não é baseado
somente no plano da expressão formal, mas apresenta-se como uma
crítica de sua própria forma. Sua dinâmica é articulada de duas maneiras:
é intrínseca à composição do espaço e ao ritmo. Com relação à
composição espacial, Deleuze (1995: 10) afirma que a imagem em Quad
se apresenta com o espaço e não no espaço, o qual é definido como “um
espaço qualquer, sem uso e sem designação, porém geometricamente
definido”. Ambos os quadros, a tela e o tablado são geométricos, assim
como o movimento dos personagens-dançarinos. Porém, a geometria é
interrompida quando os personagens evitam o centro do tablado. O
esquema simétrico planejado por Beckett conta com um elemento
assimétrico, pois os personagens-dançarinos, ao evitarem o centro,
proporcionam um desequilíbrio da ordem. E, a zona de perigo, é uma
zona de ausência que deve ser evitada, por isso o desvio se faz necessário.
Bryden (1994-5: 110-1) afirma que as primeiras sequências da tele-
peça podem provocar a gargalhada, mas quando o padrão é definido e
repetido, este gera a concentração e finalmente a resignação. A autora
sugere que o impacto da peça deriva da sua assimetria sempre possível,
que faz com que a tele-peça se torne hipnótica.
Além do movimento na composição espacial, o ritmo proporcio-
nado pela percussão e pelos passos também contribui para subverter a
simetria e a linearidade de Quad. Isto acontece tanto em Quad I, cujo
espaço é ocupado por quatro séries de movimentos e quatro tipos de
sons percussivos e passos, quanto em Quad II, que contém somente uma
série de movimentos e o som dos passos. Mesmo considerando que a
combinação entre movimento e som é um elemento intencional, o ritmo
causa tensão e desequilíbrio na tele-peça por meio de suas vibrações e
alterações sonoras.

Gabriela Borges 93
O tablado, como um quadro dentro de outro quadro, revela e oculta
os personagens e também contém a dinâmica da repetição que é
intrínseca ao movimento dos personagens e ao ritmo. Deleuze (1997:
370) afirma que a repetição compreende a diferença não apenas como
uma variação acidental e extrínseca, mas também como sua origem, isto
é, apesar da repetição contínua, o movimento nunca é o mesmo. Os
personagens-dançarinos renovam a dimensão cúbica do tablado e se
tornam ícones, pois perdem a sua individualidade ao se apresentarem
como puro movimento de cores, luz e sons. A repetição combina a
dinâmica do movimento e do som, criando uma tensão interna entre os
personagens, os sons percussivos e os passos que levam ao que Deleuze
(1995: 13) chama de exaustão, tanto dos personagens-dançarinos, por
meio de seus passos, quanto do meio televisual, por meio da subversão
de seus códigos. O mesmo acontece com os telespectadores, que assistem
a um movimento surpreendente no segundo quadro, o tablado, e são
incapazes de tirar os olhos da tela. O movimento é tão reiterativo que
perde o seu significado, tornando-se uma forma etérea que surge como
uma espécie de epifania.
A linguagem de imagens, cores e sons de Quad apresenta-se como
um entrelaçamento de movimentos entre aquilo que está presente e aquilo
que não está presente, ou seja, a presença é baseada na ausência. Esta
dinâmica se encontra no movimento dos personagens-dançarinos, nos
sons percussivos, na zona de perigo que não pode ser cruzada e, num
certo sentido, se mostra também na revelação e no ocultamento da aletheia.

A Repetição

A zona de perigo é uma zona de ausência. Em termos visuais, o


desvio do círculo iluminado no centro do tablado remete ao ângulo de
imunidade de 45° de Film, pois ambos criam uma espécie de zona de
ausência que não pode ser cruzada. Da mesma maneira, os personagens-
dançarinos, nos seus movimentos constantes, reforçam a sua aparição e
o seu ocultamento ao se esconderem na zona de escuridão do lado de
fora do tablado.
Este movimento entre o desvio e o cruzamento, a aparição e o
ocultamento é o mesmo movimento da revelação da aletheia. Assim como
os personagens nunca cruzam o centro e a câmera não ultrapassa o

94 A poética televisual de Samuel Beckett


ângulo de imunidade para que O não tenha consciência de si mesmo,
aletheia nunca se revela completamente, pois o movimento de sair do
ocultamento e revelar-se contém uma força contrária que não permite o
completo desvelamento.
Quad explora poeticamente a revelação da aletheia, pois este
movimento entre revelar e ocultar reflete a condição humana em busca
da verdade, a qual nunca é revelada. O centro, como zona de ausência,
é a metáfora da condição mortal do homem ao tentar desvendar o mistério
da vida. Porém, o que se revela é o momento sublime em que ele acredita
entender a existência, mas a dúvida é reinstalada alguns segundos mais
tarde e aquele ponto de luz brilhando no centro vazio do tablado faz
com que ele se lembre da sua incapacidade de entender a condição
humana. Por outro lado, se os personagens-dançarinos se encontrassem
ou mesmo cruzassem o centro, o ciclo da repetição seria interrompido e
o homem entenderia a sua existência. Entretanto, isto não acontece.
Esta zona de ausência criada por Beckett por meio da repetição
reflete, de certa forma, os seus trabalhos para a televisão. O intuito de
apresentar uma tele-peça em que nada acontece por vinte minutos, ou
melhor, em que quatro personagens-dançarinos repetem incessantemente
o mesmo movimento ao som do mesmo ritmo, nada mais é do que a
instalação da ausência num meio que está sempre presente. Como disse
Oppenheim (2000: 18) sobre Waiting for Godot: “é uma peça em que
nada acontece duas vezes”.
Se, como Heidegger (2000) argumenta, a arte se mostra como a
única possibilidade de interrupção do ciclo vicioso da tecnologia, talvez
os trabalhos de Beckett apresentem um caminho para questionar o papel
da tecnologia no mundo atual, especialmente Quad, ao enfatizar a
repetição, uma das principais características da televisão, e inserir a
ausência num meio constantemente presente.

A outra noite
Now the day is over,
Night is drawing nigh-igh,
Shadows – ( )
Of the evening,
Steal across the sky (BECKETT).

Gabriela Borges 95
Elementos Estéticos

A tele-peça Nacht und Träume (Noite e Sonho) é constituída por dois


personagens: A, um personagem masculino que está sonhando e B, o
seu eu sonhado. Cada um deles aparece num canto da tela iluminado
por uma luz que Beckett chama de luz noturna. A abaixa a cabeça e
evoca os seus sonhos por meio do Lied Nacht und Träume de Franz
Schubert, que intercepta e distende o silêncio da tele-peça no tempo.
Quando B começa a sonhar aparecem simultaneamente duas mãos, L
(left) e R (right), que lhe oferecem conforto.
Nacht und Träume começa com a tela negra e um cálice em primeiro
plano no canto inferior esquerdo da tela, muito pouco iluminado. A
seguir aparece A, um homem de cabelos grisalhos e roupão preto
iluminado por uma luz noturna que vem de uma janela retangular na
parede dos fundos do quarto em que se encontra. Beckett volta a usar
novamente o quarto fechado e escuro das tele-peças anteriores, Eh Joe e
Ghost trio, porém com uma diferença, pois o quarto de A é muito pouco
visível e somente as imagens de A e B são vistas, o restante da tela se
encontra na escuridão. O feixe de luz que vem da janela apresenta a
mesma forma retangular que está presente em Ghost trio, porém é
circundado pela escuridão, colocando em evidência as características
que já estavam presentes nas tele-peças ...but the clouds... e Quad.
A, o sonhante que se vê sonhando, está com a cabeça pendida para
a frente e as mãos apoiadas sobre uma mesa. Knowlson (1997: 682)
relaciona esta tele-peça com as pinturas holandesas do século XVII, que
sempre retratam uma figura curvada sob uma mesa, num quarto vazio e
escuro, iluminado apenas por um retângulo de luz. Como em ...but the
clouds..., em que M vai para o seu santuário e evoca a presença da amada,
nesta tele-peça o personagem A evoca os seus sonhos. Uma voz-over
masculina murmura, com os lábios fechados, as últimas sete notas do
Lied de Franz Schubert, Nacht und Träume. A seguir, repete as últimas
três notas acompanhadas dos versos “Retorna, noite sagrada. Retorna,
doces sonhos!”82, escritos pelo austríaco Heinrich Josef von Collin, os
quais foram ligeiramente modificados por Schubert (KNOWLSON, 1997:

82. “Kehre wieder, heil’ge Nacht / Hölde Träume, kehret wieder”.

96 A poética televisual de Samuel Beckett


682). O Lied é repetido nas duas vezes em que A está adormecendo. Evocando
os sonhos e imbricando-se no vazio produzido pelo silêncio da tele-peça.
Ao descansar a cabeça na mesa, A entra noite adentro, onde tudo
desaparece. O sono é chamado por Blanchot (1987: 163-4) de primeira
noite, por ser acolhedor e se avizinhar da ausência, do silêncio e do
repouso, quando é possível encontrar a morte e se esquecer do mundo.
Mas quando tudo desaparece, aparece a outra noite povoada pelos sonhos,
pelos fantasmas e pelas aparições que substituem o sono. A outra noite é
como um ruído que mal se distingue do silêncio. Ela é inacessível como
a morte que não se encontra e o esquecimento que se esquece no seio
do próprio esquecimento, ou seja, ela retorna sempre como uma
lembrança sem repouso.
Quando A entra nas profundezas da outra noite aparece um foco
de luz mais suave no canto superior direito da tela, e o eu sonhado do
sonhante, B, é visto na mesma posição que A, mas agora a câmera
enquadra o seu perfil esquerdo. A imagem de B é ligeiramente desfocada,
não se sabe se é o sonho ou o fantasma de A, pois ela é muito pouco
visível. Ela remete à posição M1 do personagem M de ...but the clouds...,
que também é indefinida. Tem-se a impressão de que B está presente no
vídeo como imagem e como ausência. A lentidão das suas ações distende
o tempo e preenche o silêncio, reforçando a sua fantasmagoria.
Do lado de fora do círculo de luz que apresenta o sonho aparece, em
plano detalhe, a mão esquerda sonhada (L) que acaricia a cabeça de B.
Segundo Knowlson (1997: 683), Beckett queria que a mão fosse assexuada,
mas ele acabou optando pela mão de uma mulher. Esta imagem remete
aos filmes surrealistas que apresentam partes animadas do corpo como,
por exemplo, a mão da qual saem formigas, que foi um sonho de Salvador
Dali e deu origem ao filme Um cão andaluz (1929), e a mão separada do
corpo que percorre a sala em O anjo exterminador (1962), de Luis Buñuel.
Envolta na mesma escuridão, aparece a mão direita sonhada (R)
segurando um cálice que é conduzido gentilmente ao lábio de B. R
desaparece depois que B bebe o líquido e reaparece com um lenço para
enxugar a testa dele antes de desaparecer novamente. O sonho faz com
que a tele-peça seja vista por alguns autores como uma referência às
pinturas religiosas, que sempre apresentam uma visão, em geral da Virgem
Maria, no canto superior da tela. Isto é enfatizado ainda mais pela
presença das mãos, do cálice e do lenço. Segundo Lewis (apud

Gabriela Borges 97
KNOWLSON, 1997: 682), Beckett disse que o lenço que enxuga o suor da
testa de B alude ao véu que Verônica usou para secar o suor de Cristo
quando ele estava a caminho do Calvário. Este gesto de súplica é enfatizado
mais uma vez quando B olha para cima e levanta a sua mão direita, que R
segura. B olha para as duas mãos juntas e levanta a sua mão esquerda,
segurando-as. As mãos descem e repousam na mesa, onde B descansa
então a sua cabeça. L reaparece e acaricia a cabeça de B. Esta imagem dá
a impressão de que as mãos aliviam a angústia e o medo de B.

A Imagem-Sono e a Imagem-Sonho

O conforto almejado no sonho rapidamente se esvanece. O sonho


acaba e a imagem de A envolta na luz noturna ressurge. A está dormindo
quando sonha, mas ao sonhar já não é mais aquele que dorme, é uma
outra pessoa, que Beckett chamou de B. A não se reconhece nem em si
mesmo nem em B, mas começa a sonhar novamente o mesmo sonho
motivado pelo Lied de Schubert, que mais uma vez rompe o silêncio. É
como se A estivesse sonhando que estava sonhando e então sonhasse
novamente o mesmo sonho. Blanchot (1987: 269) sugere que o sonhante
crê que sabe tanto que sonha quanto que dorme, no momento em que a
fissura entre sonhar e dormir se afirma. Neste sentido, pode-se afirmar
que A sonha que está sonhando, e essa fuga para fora do sonho é a
queda eterna no mesmo sonho.
Na tela do vídeo vemos a imagem A-B, formada por A, a imagem-sono
atual e B, a imagem-sonho virtual. Estas duas imagens e estes dois momentos
da vida de A dialogam, desorganizando o tempo linear ao reconfigurar o
espaço, que agora passa a existir em função do tempo. De acordo com
Deleuze (1990: 73), a imagem-sonho é uma imagem virtual que ocorreu no
passado e que está sendo atualizada no presente. Esta imagem passada só
existe porque foi um dia presente. Formou-se em um momento vivido por A
e, neste mesmo instante, tornou-se passada, sendo agora evocada por ele.
Neste sentido, o passado não se constitui antes do presente, mas
conjuntamente, pois o tempo se desdobra em presente e passado.
Ao se atualizar, a imagem-sonho invade o espaço e ocupa a tela
num close-up que exclui A da cena. A imagem-sonho, apesar de estar em
primeiro plano, ainda se apresenta desfocada e os movimentos de L e R,
como os movimentos de B, distendem o tempo e realçam o seu caráter

98 A poética televisual de Samuel Beckett


fantasmagórico ao serem encenados em slow motion. Porém, não se sabe se
A viveu os momentos de conforto que são vistos durante o seu sonho. Estas
imagens podem ser tanto de um passado feliz ao lado da mãe ou da amada,
quanto uma visão de uma vida futura confortável nos seios da amada ou da
morte. Como a outra noite é a região em que a morte não se encontra e as
lembranças sempre voltam, B poderia ser visto como o espaço em que A
procura o conforto, mas não encontra porque é sempre interrompido.
B, a imagem-sonho, reaparece pela segunda vez, mas mostra sempre
o mesmo sonho, que por sua vez nunca ocorre realmente, dissimula
sempre. Blanchot (1987: 269) afirma que aquele que sonha habita uma
região em que tudo é semelhante na medida em que sempre remete a
um outro, num eterno deslocamento. Portanto, a outra noite jamais chega,
mas sempre retorna como a mesma e como outra.
Por outro lado, pelo fato de ser a última peça que Beckett escreveu
especialmente para a televisão, Nacht und Träume também pode ser
interpretada como uma referência à sua própria morte. B, a imagem-
sonho que contém em si o presente e o passado, expressa um momento
de fraqueza e de súplica que se projeta no futuro. Porém, B não conseguirá
repouso nem sossego no domínio da outra noite, apenas inquietação e
fracasso, como o momento pelo qual Beckett estava passando nos últimos
anos de sua vida, quando os seus amigos começaram a morrer e ele
começou a se sentir cada vez mais incapaz de se expressar.
É possível perceber nas imagens vistas na tela do vídeo que o tempo
se inscreve no espaço, o qual é predominantemente negro com dois
focos difusos de luz que aparecem e desaparecem como a própria imagem
do sonho. No momento em que a dimensão presente-passado-futuro é
subvertida, a câmera enquadra o aparecimento e o desaparecimento de
A e B em uma outra dimensão temporal, aquela vista e vivenciada na
imagem-tempo. A câmera está imóvel e não há montagem ou truques de
edição, apenas a atualização de imagens virtuais e a virtualização de
imagens atuais, que se permutam e se repetem ao som do silêncio e do
Lied de Schubert até se esvanecerem completamente.

Gabriela Borges 99
CAPÍTULO IV

As transcriações

Muitos autores como Roman Jakobson, Octavio Paz e Haroldo de


Campos, entre outros, se debruçaram sobre o tema da tradução,
especialmente da tradução poética. Jakobson (1969: 64-5) argumenta
que um signo verbal pode ser traduzido em outros signos da mesma
língua, denominando esta operação de tradução intralingual; ou por signos
de uma outra língua, que consiste na tradução interlingual; ou ainda por
outros sistemas de signos não-verbais, que denomina de tradução
intersemiótica ou transmutação.
No caso da tradução poética, Campos (apud PLAZA, 1987: 28) afirma
que, apesar de original e tradução serem diferentes enquanto linguagem,
suas informações estéticas estão ligadas entre si por uma relação de
isomorfia, ou seja, por corpos que apresentam a mesma forma. Neste
sentido, o próprio signo na sua materialidade é traduzido e não apenas
o seu significado, operação que Campos denomina transcriação. Na
transcriação, o signo pode ser re-criado ou transcriado tanto em uma
outra língua quanto em um outro sistema de signos.
Na obra beckettiana, a transcriação acontece em três níveis: na
tradução do texto teatral entre as línguas francesa, inglesa e alemã; na
transmutação do texto escrito (a palavra) para a performance teatral e da
performance para a gravação em vídeo ou vice-versa. A re-criação permeia
todo o processo, pois Beckett não somente traduziu mas também
reescreveu as suas peças teatrais e televisuais a partir das produções que
acompanhou na Inglaterra, nos Estados Unidos e na França e dirigiu
no Schiller Theatre de Berlim e na Süddeustcher Rundfunk em Sttutgart.
Ballogh (1996: 36-41) afirma que na transmutação o mesmo conteúdo
transita de um texto a outro, porém é necessário que o texto transcriado
responda como um texto estético por si só, independente do texto que lhe
deu origem que, no caso da literatura, Santiago (apud JOHNSON, 1982:
10) chama de “forma-prisão”. No caso do teatro, não somente o texto com
os monólogos ou diálogos fazem parte desta forma-prisão, mas também as
rubricas, ou instruções de encenação das peças, que constróem o espaço
imaginário visualizado pelo criador. Ramos (1999: 77) argumenta que as
rubricas e os diálogos são igualmente importantes na composição do texto
teatral beckettiano e defende que se elas não forem respeitadas, a
performance e o sentido da peça são inviabilizados.
Na performance, o texto teatral escrito se transforma em comunicação
oral e gestual, em que a presença de um corpo é indispensável na
construção do espaço de ficção (ZUMTHOR, 2000: 45-50). Este espaço
de ficção construído pelo ator é o que se denomina de teatralidade e
que, em cada performance, se apresenta de uma maneira nova e
diferenciada. Porém, esta só acontece efetivamente se a audiência tem
conhecimento dela, ou seja, a performance necessita daquele que
desempenha e daquele que contempla para que exista.
Na gravação eletrônica, a imagem captada a partir da performance
fragmenta o espaço de ficção, intermedia a presença do ator e reorganiza
a linearidade temporal de uma maneira própria, podendo ser conservada
ad infinitum. O palco, como meio, apresenta o espaço entre as três paredes,
as luzes e o som para a performance ao vivo dos atores, enquanto o meio
audiovisual mostra o espaço em que os personagens atuam por intermédio
dos ângulos, enquadramentos e movimentos de câmera, que enfatizam
gestos e expressões, somados ao som, à iluminação e à edição, que
reconfigura a organização espaço-temporal.
A criação beckettiana prima pelo uso dos meios não somente como
veículos de exibição, mas também como parte integrante da expressão
artística. Quando Beckett começou a escrever para o rádio e para o
teatro na década de 1950, os pedidos de concessão dos direitos autorais
para adaptações em diversas mídias começaram a ser bastante freqüentes.
De antemão, Beckett era contrário às adaptações de suas peças porque
acreditava que o meio dialogava de tal forma com a performance que a
transcriação não conseguiria exprimir este diálogo.
Em 1963, Beckett permitiu que a televisão francesa RTF adaptasse
a sua própria tradução da peça de rádio All that Fall, intitulada Tous ceux

102 A poética televisual de Samuel Beckett


qui tombent e dirigida por Robert Pinger. Beckett ficou muito insatisfeito
com o resultado porque esta é uma “peça para vozes e não para corpos”,
por isso não funcionava em um meio que mostra os personagens. Para
Beckett, “encená-la é matá-la”83. Após assistir à adaptação, Beckett escreveu
para John Barber da Curtis Brown, a sua agência na França, a seguinte
nota: “Num momento de fraqueza, eu permiti que a televisão francesa
gravasse All that Fall e o resultado foi desastroso”. Por isso, quando Ingmar
Bergman pediu permissão para adaptar as duas peças de rádio, All That
Fall e Embers, Beckett não a concedeu (KNOWLSON, 1997: 505,799).
Ainda assim, em 1976, a versão televisual da peça Play foi cogitada para
ser exibida no programa The Lively Arts da BBC, mas não foi aprovada
pelo autor, que acabou escrevendo a tele-peça ...but the clouds... para compor
a trilogia que seria intitulada Shades.
Por outro lado, percebe-se que as obras de Beckett apresentam uma
espécie de diálogo entre os meios como, por exemplo, em Krapp’s last
tape, Rockaby e That Time, em que a linguagem teatral dialoga com a
tecnologia de gravação de voz. Nas peças teatrais, Beckett começa a usar
indicações de roteiros audiovisuais como, por exemplo, em Not I, em
que se encontra a seguinte marcação de cena: “palco na escuridão, com
exceção da BOCA, (...) pouco iluminada no close-up e abaixo (...)
(BECKETT,1990:376)”84. Também são comuns outras indicações de
angulações como, por exemplo, visto de baixo ou visto de cima e efeitos
como fade up e fade out. Na verdade, o próprio texto acaba incorporando
algumas destas expressões, como na peça A Piece of Monologue, em que o
personagem do locutor diz: “Seen from above” e “Fade.” (BECKETT,
1990: 428-9) e em What Where, em que a personagem V indica quando
Bam aparece e desaparece da tela com as expressões “I switch on” e “I
switch off” (BECKETT, 1990: 470).
Apesar da restrição à adaptação de suas obras, Beckett permitiu
que as peças teatrais Not I e What Where fossem transcriadas para a
televisão, tendo até mesmo participado das produções. Considerando
principalmente a fragmentação do corpo dos personagens, percebe-se
que as metáforas visuais das duas peças se adaptam muito bem à televisão.
Tal foi o sucesso da re-criação que as futuras produções teatrais foram
influenciadas pelo meio audiovisual.

83. “to act is to kill it”.


84. “Stage in darkness but for MOUTH, (...) faintly lit from close-up and below (...)”.

Gabriela Borges 103


A boca verborrágica
I am not unduly concerned with intelligibility.
I hope the piece works on the nerves of the
audience, not its intellect (BECKETT).

A peça Not I foi escrita em 1972. Ela apresenta a performance de


dois personagens, a Boca e o Ouvinte. Todo o palco encontra-se na
escuridão, a não ser pelo foco de luz na Boca, que se encontra suspensa
a aproximadamente 2,5m do solo no lado direito, e no Ouvinte, que se
encontra em pé e fracamente iluminado a aproximadamente 1,20m do
solo no lado esquerdo. Ele está vestido com um roupão preto da cabeça
aos pés e permanece imóvel, olhando para a Boca, durante quase toda a
peça. A Boca está falando de si mesma, mas toda a sua verborragia
acontece na terceira pessoa e em cada uma das quatro vezes em que ela
afirma: “o quê?.. quem?.. não!.. ela!..” (BECKETT, 1990: 377-382)85, o
Ouvinte levanta os braços numa atitude impotente e cheia de piedade.
Nas notas do roteiro, Beckett (1990: 75) afirma que o Ouvinte levanta os
braços somente para que a Boca possa se recuperar de sua recusa veemente
em abandonar o discurso na terceira pessoa.
A criação de Not I foi inspirada na obra A decapitação de São João
Batista, do pintor italiano Caravaggio.86 Numa viagem a Malta alguns
meses antes da escritura de Not I, Beckett visitou a Catedral de São João
Batista, em Valetta, onde se encontra o original que o inspirou na criação
da boca descorporificada da peça.
Na pintura, o degolamento de São João Batista apresenta algumas
características que podem ser relacionadas com a obra de Beckett. Em
termos imagéticos, pode-se traçar um paralelo entre a cabeça degolada
de São João Batista e a boca sem corpo de Not I, e entre a figura do
Ouvinte, que presencia calado a verborragia de Boca e a imagem dos
dois homens curiosos que assistem ao degolamento. O Ouvinte também
pode ser relacionado com a mulher que, apavorada, tapa os ouvidos ao
invés de vendar os olhos para não ver a cena brutal. Este mesmo gesto
foi usado pelo Ouvinte na produção teatral francesa de 1976.

85. “what?.. who?.. no!.. she!..”.


86. Numa carta ao seu amigo pintor Avigdor Arikha, Beckett confirma que a imagem de
Not I foi influenciada por esta obra (KNOWLSON, 1997: 588).

104 A poética televisual de Samuel Beckett


Uma outra fonte de inspiração da peça provém de uma visita à El
Jadida, em Marrocos, onde Beckett avistou uma figura solitária vestida
com um djellaba87 e encostada na parede numa posição que parecia estar
escutando atentamente algum ruído. Mais tarde, Beckett ficou sabendo
que se tratava na verdade de uma mulher que estava esperando o seu
filho sair da escola (BRATER, 1985: 45).
Pountney (1998: 2) afirma que a peça Not I foi desenvolvida a partir
dos rascunhos de uma peça inacabada que Beckett escreveu em 1963,
cujo manuscrito88 intitula-se Kilcool. Kilcoole (com a letra e no final) é o
nome de um pequeno balneário ao sul da cidade de Dublin, entre
Greystones e Wicklow. O manuscrito consta de um livro de anotações
em que se encontra um monólogo escrito para uma voz feminina que
conta as suas lembranças de Kilcoole. Duas vozes narram estas
lembranças, uma voz normal, que parece estar ciente da sua situação, e
uma outra voz simulada, que tenta convencer-se a si mesma da ficção,
mas não consegue. Percebe-se uma estreita relação entre estas duas vozes
e a performance de Boca em Not I, que pode ser exemplificada pela
seguinte passagem: a voz normal fala: “Como é que – (pausa) Como é
que você não pode alguém não pode ver a - (pausa) - a causa...” e “...(voz
simulada, impetuosa) Leve isto embora! Vá embora! (Arquejando) XXXX
Afaste isto!” (POUNTNEY, 1998: 93)89. Apesar de não haver duas vozes
em Not I, Boca se recusa a se expressar na primeira pessoa e, portanto, a
assumir a sua identidade da mesma maneira que a voz simulada do
manuscrito, que somente fala de si mesma na terceira pessoa90.
Uma outra similaridade que pode ser apontada entre os dois textos é
que a voz simulada afirma que há alguém dentro dela tentando sair: “alguém
em mim, tentando sair para fora, dizendo deixe-me sair...” e repete: “deixe-
me sair! Deixe-me sair!” (POUNTNEY, 1998: 98)91, que pode ser relacionado

87. Este é um tipo de roupão com gorro que os marroquinos usam durante o inverno.
Quando eles estão nos pequenos cômodos em que fazem as suas rezas nas pequenas
vielas dos centros das cidades, tem-se a impressão de que estão conspirando, devido
ao seu silêncio e à sua postura.
88. Este manuscrito está arquivado no setor de manuscritos da biblioteca do Trinity
College Dublin.
89. “How is that - (pause) How is it you can’t one cannot see the – (pause) – the cause ...”
e a voz simulada responde, aterrorizada: “... (assumed voice, vehement) Take it away!
Go away! (Panting) XXXXX Turn it off!”.
90. “talks of herself in 3rd person” (POUNTNEY, 1998: 93).
91. “someone in me, trying to get out, saying let me out...” e “Let me out! Let me out!”.

Gabriela Borges 105


com a abertura de Not I em que a Boca afirma: “... fora... dentro deste
mundo... mundo... coisinha pequena...” (BECKETT, 1990: 376)92.
Nas indicações do manuscrito para a encenação da peça constata-
se uma característica que se tornou recorrente em outras peças de teatro
beckettianas, que é a iluminação de apenas um rosto num palco coberto
pela escuridão93. A peça That time (1975), que Beckett (apud POUNTNEY,
1998: 92) referencia como irmã de Not I, apresenta o rosto do Ouvinte
suspenso na escuridão escutando as suas memórias que advêm de três
fontes de áudio distintas: A, B e C. O mesmo acontece na peça What
Where em que Bam, Bem, Bim e Bom são quatro rostos-personagens.
De modo geral, a Irlanda sempre foi uma fonte de inspiração
presente na obra de Beckett. Numa carta para Deirdre Bair (apud
KNOWLSON, 1997: 590), uma de suas biógrafas, Beckett afirma que
conhecia uma mulher como aquela de Not I no seu país:

Eu conhecia aquela mulher da Irlanda. Eu sabia quem ela era – não


‘ela’ especificamente, uma certa mulher, mas havia várias daquelas
velhas, cambaleando nas vielas, nas valetas, ao lado das cercas vivas.
A Irlanda é cheia delas. E eu ‘a’ ouvi dizendo o que eu escrevi em Not
I. Na verdade eu ouvi94.

Além da referência à sua terra natal no manuscrito Kilcool, o próprio


texto da peça tem uma referência a Croker’s Acres, um local próximo à
pista de corrida de cavalos de Leopardstown, que fica perto de onde
Beckett vivia em Dublin.
Porém, em termos de origem, talvez a relação intersemiótica mais
pertinente a ser traçada seja entre Not I e as obras do artista irlandês
Francis Bacon95 que trabalham com o tema do grito, principalmente a

92. “....out... into this world... world... tiny little thing..”.


93. “Old woman’s face, 4ft. above stage level, slightly off centre, lit by strong steady light
– Body not visible. Stage in darkness. Nothing visible but the face” (POUNTNEY,
1998: 92).
94. “I knew that woman from Ireland. I knew who she was – not “she” specifically, one
single woman, but there were so many of those old crones, stumbling down the lanes,
in the ditches, beside the hedgerows. Ireland is full of them. And I heard “her” saying
what I wrote in Not I. I actually heard it”.
95. Bacon também fez alguns estudos a partir da imagem do grito da mulher no filme O
Encouraçado Potemkim (1922) de Sergei Eisenstein.

106 A poética televisual de Samuel Beckett


série de estudos dedicada aos papas. Bacon, como Beckett, emigrou da
Irlanda ainda jovem e não se sentia confortável na cultura irlandesa,
principalmente devido ao conservadorismo da Igreja Católica e ao
preconceito pelo fato de ser homossexual. O grito tem uma importância
vital na sua obra. É a forma mais elementar da expressão humana de dor
e sofrimento e requer muita precisão e concentração para ser retratado
em termos pictóricos. Schmeid (1996) afirma que:

Em algumas das cabeças que antecedem Papa II, 1951, Bacon


condensa as feições fisionômicas de modo que resta somente a boca
aberta emitindo um barulho que pode ser um grito ou um gemido,
dependendo de como a imagem é lida96.

Em Not I, a boca, “tiny little thing”, foi expelida no mundo como


um berro de criança quando nasce. No meio audiovisual, o grito da
Boca não só ocupa todo o espaço da tela, mas também adquire uma
outra corporeidade a partir das suas configurações gráficas.
No teatro, a estréia da peça foi feita em Nova York, com a direção
de Alan Schneider e Jessica Tandy no papel de Boca. A atriz afirma que
foi muito difícil fazer este papel e que não foi, de forma alguma, uma
experiência prazerosa. A produção da peça sempre se mostrou um
problema, pois a boca deveria ser focalizada pela luz e a cabeça não
podia se mexer, da mesma maneira que nenhuma outra parte do corpo
da atriz podia ser mostrada. No caso da produção americana, Tandy
tinha um teleprompter na sua frente em que lia as palavras e principalmente
os pontos, pois nas peças beckettianas as pausas e os silêncios são muito
importantes. A atriz insistia em saber qual o significado das palavras
que Beckett tinha escrito e isto irritava-lhe um pouco, pois ele nunca
sabia explicar o que tinha criado. Quando Schneider lhe perguntou
quem era Godot na peça Waiting for Godot, Beckett respondeu que se
soubesse teria explicado na peça (POUNTNEY, 1998: 102).

96. “In some of the heads that precede Pope II, 1951, Bacon condenses the features to the
point where only the gaping mouth remains, emitting a noise that could be a scream
or a groan, depending on how the image is read”.

Gabriela Borges 107


Esta é uma das razões que fez com que Beckett tivesse um relaciona-
mento profissional tão duradouro e produtivo com Billy Whitelaw97, a
atriz inglesa que protagonizou Boca no palco do Royal Court Theatre
em Londres, pois ela nunca lhe perguntava o significado das suas peças.
Para Whitelaw (KALB, 1991: 235), as palavras tinham um ritmo próprio
que deveria ser respeitado para que elas fossem encenadas da maneira
que tinham sido imaginadas e o seu corpo servia apenas como um
instrumento regido pelo maestro Beckett. A atriz passou por várias
privações devido ao aparato em que foi submetida para encenar a peça.
A cadeira em que se encontrava com os olhos vendados e a cabeça presa
parecia uma cadeira elétrica. Ela relata:

Acho que tive privação sensorial quando a venda foi colocada e eu


estava presa no meio do palco. A primeira vez que representei, me
senti em frangalhos. Eu senti que eu não tinha corpo; não sabia
onde estava. Estava ficando tonta ao falar naquela velocidade. Senti-
me como um astronauta em queda no espaço... Eu juro por Deus
que estava caindo, caindo… (KNOWLSON, 1978: 87)98.

Por sua natureza enigmática e hipnotizante, esta peça foi encenada


em vários países, mas para Beckett a melhor versão da peça e, de uma
certa maneira, a versão definitiva foi realizada pela televisão BBC
(BISHOP, 1987: 168). Em 1973, Beckett tinha concedido os direitos
autorais para que a adaptação de Not I fosse feita depois do término da
temporada no Royal Court Theatre. A tele-peça seria produzida pela
BBC, desde que fosse aprovada por ele e pela atriz Billie Whitelaw. Em
1975, o produtor Tristam Powell gravou um piloto em que somente a
boca de Whitelaw aparecia em close-up. A eliminação do personagem do
Ouvinte já havia ocorrido na produção francesa de 1975, protagonizada
por Madeleine Renaud com direção de Jean-Louis Barrault e supervisão
de Beckett, devido ao fato do palco do Teatro Petit Orsay ser muito

97. A peça Footfalls (1975) foi escrita especialmente para ela.


98. ... when the blindfold went on and I was stuck half-way up the stage, I think I had
sensory deprivation. The very first time I did it, I went to pieces. I think I had no body;
I could not relate to where I was; and, going at that speed, I was becoming very dizzy
and felt like an astronaut tumbling into space... I swore to God I was falling, falling...”.

108 A poética televisual de Samuel Beckett


pequeno para acomodar os dois personagens. Apesar do personagem ter
sido reinserido em produções futuras, Ben-Zvi (1990: 244) declara que
os seus movimentos nunca funcionaram de forma satisfatória.
Com a aprovação da idéia, a transcriação foi gravada em 1976 sob
a direção de Anthony Page e supervisão de Beckett. O texto teatral de
Not I pode ser visto como uma “forma-prisão” a partir do qual a equipe
de produção da BBC gravou um plano-seqüência da performance da
boca de Whitelaw, em close-up, expelindo todos aqueles sons, mas sem a
presença do Ouvinte, que se tornou então o olho da própria câmera e,
por conseqüência, da audiência.
O olhar do Ouvinte ao presenciar a performance de Boca no teatro
é transcriada no olhar fixo da câmera, que observa os seus movimentos
incessantes e se projeta no próprio olhar da audiência. Esta, atônita e
surpresa, aprecia ao mesmo tempo em que se sente desconfortável e
aterrorizada com a performance. Diferentemente da câmera-olho
perseguidora que participa da cena em Film e Eh Joe, a câmera em Not I
age voyeuristicamente, observando a verborragia grotesca de Boca.
A sinopse da peça é dividida em cinco partes temáticas:

1. Nascimento prematuro
pais desconhecidos
Nunca foi amada
Aos 70 anos colhe prímulas silvestres nos campos quando subitamente
se vê no escuro.

2. Nenhum sentimento, apenas o zumbido na sua cabeça e a consciência


de um raio de luz
Mente ainda está de certa forma ativa
Primeiro pensamento: está sendo punida pelos seus pecados,
Abandonado quando percebe que não está sofrendo
Segundo pensamento: pensa que deve gemer (para agradar ao algoz)
Não consegue emitir nenhum som.
Tudo está silencioso a não ser pelo zumbido.
Imobilidade a não ser pelo abrir e fechar de olhos.
A mente questiona isso em função da cena da vida 1 (campo).
Ouve uma voz muito ininteligível

3. Pelo sotaque parece que a voz é sua


Cena da vida 2 (shopping center)

Gabriela Borges 109


Tenta convencer-se de que a voz não é sua
Desiste quando os lábios começam a mover-se
Tem medo de que a aflição volte, mas por enquanto apenas a boca

4. Próximo pensamento: esta aflição não pode continuar


Descrição do mesmo: a voz ininteligível que não se cala
Consternação da mente
Reza para que a voz se cale: sem resposta.
Cena da vida 3 (Croker’s Acres)
A mente tenta agarrar-se a qualquer coisa desesperadamente (p. ex.
misericórdia de Deus).
Cena da vida 1 (campo) de novo
Talvez alguma coisa que ela devia contar? Cena da vida 4 (sala do
tribunal)
Cena da vida 1 (campo) e não de dentro

5. Talvez alguma coisa que ela devia pensar? Não como antes.
Cena da vida 5 (corre para contar)
Aflição piora: descrição do mesmo.
Reza por tudo para parar: sem resposta.
Cena da vida 1 (campo) de novo
(POUNTNEY, 1998: 247).

O fluxo de palavras começa de forma narrativa, com a Boca


contando o seu nascimento, mas imediatamente ela fala que tem setenta
anos e que se encontra no escuro. O texto, construído entre reticências,
intercala a descrição das suas experiências de vida com os zumbidos que
ouve e a aflição que sente, da qual tenta livrar-se, mas não consegue.
Boca, assim como o personagem Krapp de Krapp’s last tape, o personagem
V de Rockaby (1980) ou as vozes A, B e C do Ouvinte de That Time, narra
o seu passado de forma fragmentada. Porém, nesta peça, a voz não é
extra-diegética, ela provém da boca que se tornou o próprio personagem.
A existência da Boca, não só como um órgão do corpo, mas também
como personagem, está relacionada ao seu discurso. Isto se evidencia
quando afirma: “todo o ser... suspenso em suas palavras...”99 porém, ela

99. “the whole being... hanging on its words...”.

110 A poética televisual de Samuel Beckett


não admite a sua identidade e refere-se a si mesma na terceira pessoa,
dando a impressão de que uma outra voz está recordando, interrompendo
e corrigindo o seu relato. Num determinado momento, ela admite que é
o seu discurso: “e teve finalmente que admitir... não poderia ser mais
ninguém... que ela mesma... alguns sons de vogais...”, mas imediatamente
se recusa novamente: e “não era ela de modo algum... não era a voz dela
de jeito nenhum...”100 (BECKETT, 1990: 379).
Porém, quando a Boca toma consciência de suas partes e identifica
o movimento dos lábios, das bochechas, dos maxilares, da face, da língua
e da “boca em fogo”, sem os quais o discurso não se efetiva, percebe-se
que a Boca (o narrador) e a voz que fala “dela” (o sujeito da narrativa)
não podem estar separadas. Com isso, a experiência que está sendo
recontada é a mesma que está sendo observada.
Apesar do texto ter sido dividido em cinco partes inteligíveis, a
velocidade com que a Boca jorra os sons faz com que as palavras percam
o sentido, afinal elas não expressam nada. Apenas alguns sons repetidos
apresentam um significado, principalmente a frase: “o que?.. quem?..
não!.. ela!..”101, em que a Boca recusa-se a admitir a sua própria existência.
Na peça, o Ouvinte levanta os braços nas quatro vezes em que a Boca
fala esta frase. Na versão televisual, como o Ouvinte foi omitido, a
indagação ganha um outro sentido, pois é transferida para a audiência
que vê, ouve, experiencia os sons e as imagens de Boca, mas não entende
cognitivamente o seu discurso. A performance é tão hipnotizante que já
não interessa mais o que ela fala, uma vez que o texto é repetitivo e
reincidente, mas as formas que a boca adquire.
É importante ressaltar que uma das preocupações de Beckett era
justamente fazer com que a peça trabalhasse com as emoções da audiência
e não com o seu intelecto. Neste sentido, o discurso de Boca não é para
ser entendido, mas para ser vivenciado pois a boca ganha uma forma
gráfica e comunica a sua mensagem plasticamente.
Em outros trabalhos, principalmente literários, como a trilogia
Molloy, Malone dies e The Unnamable, Beckett lida com a questão do discurso

100. “... then finally had to admit... could be none other... than her own... certain vowel
sounds...” “it was not hers at all... not her voice at all...”.
101. “what?.. who?.. no!.. she!..”.

Gabriela Borges 111


e o paradoxo entre a incapacidade das palavras de expressar idéias e o
fato delas não se calarem. Como pode ser visto nesta passagem do livro
The Unnamable102, não apenas a capacidade expressiva das palavras como
também a identidade do discurso é explorada:

Dois buracos e eu no meio, levemente sufocado. Ou somente um,


entrada e saída, onde as palavras se aglomeram e se esbarram como
formigas, indiferentes, trazendo nada, levando nada embora, muito
leves para deixarem uma marca. Eu não devo dizer eu novamente,
nunca mais, é muito ridículo. Eu devo colocar isto no seu lugar,
sempre que a ouvir, a terceira pessoa, se eu pensar sobre isto
(BECKETT, 1997: 358)103.

Em Not I, o paradoxo beckettiano é explicitado mais uma vez, pois


Boca não consegue parar a sua verborragia, mesmo não entendendo o
que está falando. Como pode ser percebido no seguinte fragmento:

fluxo de palavras... no ouvido dela... praticamente no ouvido dela...


não entendendo a metade... nem um quarto... não tem idéia do que
ela está dizendo... imagina!.. não tem idéia do que ela está dizendo...e
não pode parar... (BECKETT, 1990: 380)104.

Como Knowlson & Pilling (1979: 205) sugerem, a Boca e a


audiência, de uma certa forma, adquirem o mesmo estatuto, pois ambas
estão tentando entender o que se passa. No teatro, a audiência se esforça
para ouvir e focalizar a imagem minimalista vista no palco imerso na
escuridão e, assim como a Boca, tenta entender o que aconteceu e está

102. Knowlson & Pilling (1979: 197) afirmam que este livro também foi uma fonte de
inspiração de Not I.
103. “Two holes and me in the middle, slightly choked. Or a single one, entrance and
exit, where the words swarm and jostle like ants, hasty, indifferent, bringing nothing,
taking nothing away, too light to leave a mark. I shall not say I again, ever again, its
too farcical. I shall put it in its place, whenever I hear it, the third person, if I think
of it”.
104. “stream of words... in her ear... pratically in her ear... not catching the half... not the
quarter... no idea what she’s saying... imagine!.. no idea what she’s saying!.. and
can’t stop”.

112 A poética televisual de Samuel Beckett


acontecendo com ela. Na televisão, a Boca ganha uma outra dimensão
ao invadir e preencher a tela num close-up que a transforma em mais do
que uma boca descorporificada e perdida no escuro. Durante os ensaios
em Londres, no Ealing Studios, Beckett comentou com Pilling (1979:
200) que a boca se parecia com uma grande vagina aberta. Ao adquirir
esta forma, o buraco em movimento que se vê na tela pode ser qualquer
orifício do corpo expelindo excrementos, o que é sugerido inclusive
pelo próprio texto nas seguintes expressões: “a privada mais próxima...
começa a despejar... fluxo incessante... coisa louca... metade das vogais
erradas...”105 (BECKETT, 1990: 382).
O teatro, principalmente a dramaturgia convencional, é baseado
em personagens e o corpo do ator é trabalhado para expressar as
características psicológicas do personagem por meio das ações do enredo.
O corpo, como meio, se articula com os outros elementos da linguagem
teatral para contar a história. No teatro de Beckett o que ocorre é um
pouco diferente porque o corpo é fragmentado e considerado como
matéria-prima para ser modificada, esculpida, distorcida e moldada da
mesma maneira que o espaço, os objetos, a iluminação e a linguagem
(CHABERT, 1982: 23-4). Este fragmento do corpo torna-se o próprio
personagem e, no caso de Not I, justamente o órgão emissor da fala é
escolhido para este empreendimento. Para Ben-Zvi (1990: 244), com
isso Beckett revoluciona o teatro porque o órgão emissor das palavras
que geram a ação constituinte do gênero dramático torna-se não apenas
um veículo, mas a fonte da própria ação.
No meio audiovisual, a boca como fonte da ação é intermediada
pelo aparato tecnológico e se torna mais agressiva. Ela cria um contraponto
com o meio das cabeças falantes no sentido em que se identifica com o
seu modo de comunicação ao mesmo tempo em que gera um certo
estranhamento porque rompe com a familiaridade e a intimidade que
são características inerentes ao meio.

105. “nearest lavatory... start pouring it out... steady stream... mad stuff... half of the
vowels wrong...”.

Gabriela Borges 113


As máscaras da morte
Everything out but the faces (BECKETT).

Em 1982, Beckett recebeu um pedido da organização do Festival


de Outono de Graz, na Áustria, para escrever uma nova peça de teatro
para ser encenada no ano seguinte. Foi então que Beckett escreveu, em
francês, a sua última peça de teatro, Quoi oú (What Where em inglês e
Was Wo em alemão). Alguns autores relacionam What Where com
Catastrophe, que foi escrita em 1982 e é dedicada ao poeta Vaclav Havel106,
pois ambas as peças referem-se à tortura e ao interrogatório.
Quoi oú foi criada a partir do ciclo de canções Winterreise (A Viagem
de Inverno), de Franz Schubert que é baseado em vinte quatro poemas
melancólicos de Wilhelm Müller, contemporâneo de Schubert. No
poema de abertura, Gut Nacht, o viajante perde o seu amor e viaja, sem
consolo, desde a primavera até o inverno. O ciclo das estações do ano
inspirou a estrutura da peça de Beckett, que começa com “É primavera.
O tempo passa”107 e termina com “É inverno/Sem destino”108. A peça
alude tanto à canção de Schubert quanto à morte, pois muitos amigos
do autor já tinham morrido e ele sabia que a sua morte estava se
aproximando. Segundo Gontarski (1999: 452), é difícil saber qual poema
influenciou mais o autor, mas pode-se dizer que o verso “Há uma estrada
que eu devo seguir/Da qual ninguém nunca retornou”109 do poema Der
Wegweiser, que se refere ao caminho da vida em direção à morte, é
ilustrativo da peça.
Outra referência que serviu de inspiração para a criação da peça foi
poema Oft in the Stilly Night do dublinense Thomas Moore. Beckett gostava
de citar a mudança da primeira estrofe “Memórias ternas tragam a luz/de
outros dias ao meu redor”110, para a segunda: “Tristes memórias tragam a

106. O poeta Vaclav Havel, atual presidente da República Tcheca, tinha sido preso pelo
governo da antiga Tchecoslováquia devido às suas opiniões políticas.
107. “It is spring. Time passes”.
108. “It is winter/Without journey”.
109. “There is one road that I must follow/From which no one e’er returned”.
110. “Fond memories brings the light/of other days around me”.

114 A poética televisual de Samuel Beckett


luz/de outros dias ao meu redor”111. Durante a produção de Was Wo em
Sttutgart, Beckett recitou estes versos várias vezes e indicou nas suas
anotações que a área de encenação deveria ter “a luz dos outros dias”112.
O soneto Voyelles, de Arthur Rimbaud, também influenciou a criação
da peça. No seu caderno de anotações, Beckett (apud GONTARSKI,
1999: 427) escreve que os personagens devem ser tanto quanto possível
bem parecidos entre si e diferenciados apenas pelas cores, associando as
seguintes cores das vogais do poema: “A negro, E branco, I vermelho, U
verde, O azul”113 aos personagens Bam, Bem, Bim e Bom. A cor verde da
vogal U correspondente ao personagem Bum não existiria, mas ele
poderia ser interpretado como a voz de Bam. Entretanto, este recurso foi
abandonado no constante processo de eliminação dos elementos de
cena durante a produção, assim como o som de tambores quando cada
rosto aparecia em cena e o chapéu dos personagens.
A transcriação da peça What Where foi um pouco diferente de Not
I, primeiro porque contou com a tradução para o alemão por Elmar e
Jonas Tophoven, recebendo o título Was Wo e depois com a re-escritura
do roteiro por Beckett, que também foi o diretor da produção. Esta foi
a última peça de televisão que Beckett dirigiu no canal público alemão
Süddeutscher Rundfunk, em 1985.
O texto de origem de What Where, encenado em 1983, não pode
ser visto como uma “forma-prisão”, pois ele foi re-criado por Beckett
durante o processo de produção em Sttutgart e acabou sendo usado nas
futuras produções teatrais como, por exemplo, a produção francesa de
1986, dirigida por Pierre Chabert, no Théâtre du Rond-Point em Paris.
Quando Beckett foi convidado por Dr. Müller-Freisenfeld para
dirigir What Where, ele confidenciou a Walter Asmus que achava que
esta peça era muito mais televisual do que teatral. Em Was Wo encontra-
se, portanto, a transcriação do texto escrito em performance. Uma vez

111. “When I remember/All the friends, linked together/I’ve seen around me fall,/Like
leaves in wintry weather;/I feel like one/Who treads alone/Some banquet hall
deserted,/Whose lights are fled,/whose garlands dead,/And all but he departed!/
Thus, in the stilly night,/Ere slumber’s chain has bound me/Sad memory brings the
light/Of other days around me” (KNOWLSON, 1997: 686).
112. “For PA [i.e. playing area] the light of other days” (GONTARSKI, 1999: 447).
113. “A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu, voyelles – Je dirai quelque jour vous
naissances latentes...” (ASMUS, 1986: 28).

Gabriela Borges 115


encenada, a performance foi transcriada para ser gravada pela câmera
de vídeo. Todas estas transmutações passaram pelas mãos de Beckett,
que re-criou as personagens, as cenas, o espaço de ficção, os diálogos e a
própria iluminação a partir das possibilidades concretas apresentadas
pela produção audiovisual.
Beckett estava preocupado em manter somente aquilo que
considerava essencial na peça e por isso todos os elementos de cena,
assim como os diálogos considerados desnecessários, foram cortados.
Num encontro com Fehsenfeld (1986: 233) depois da produção, Beckett
declarou que:

Diminuímos tudo ao mínimo. No final, saiu tudo – cor, touca, até


mesmo os tambores se foram. Saiu tudo, menos os rostos114.

A peça de teatro tem cinco personagens: Bam, Bem, Bim e Bom e


a voz de Bam. Três personagens, que se alternam entre Bam, Bem, Bim
e Bom, estão posicionados no fundo do palco à direita, são pouco
iluminados e estão envoltos em sombras no espaço que Beckett chama
de área de encenação, usando o termo campo da memória como metáfora.
Na parte da frente à esquerda tem-se V, a voz de Bam, representada por
um pequeno megafone iluminado. Todo o resto do palco encontra-se na
escuridão. Os personagens Bam, Bem, Bim e Bom usam roupões longos
e cabelos compridos cinzas e são todos muito parecidos entre si.
Na transcriação, os personagens são descorporificados e o espaço
de ficção se materializa em quatro rostos, quase idênticos, envoltos na
escuridão. Eles estão posicionados à direita, na parte inferior da tela. A
imagem da voz de Bam aparece na parte superior esquerda da tela, cuja
caracterização apresentou um problema, pois o megafone não teria o
mesmo impacto que tinha no teatro. Como solução, o cinegrafista Jim
Lewis (apud ASMUS, 1986: 29) sugeriu que fosse usada a imagem do
rosto de Bam refletida num espelho, portanto levemente distorcida. Esta
imagem é proporcionalmente quatro a cinco vezes maior do que o
tamanho da área de encenação, em que as três faces aparecem.

114. “Everything down to the bare minimum. In the end everything went – no color, no
headdress, even the drums went. Everything out but the faces”.

116 A poética televisual de Samuel Beckett


Na peça de teatro, os personagens entram e saem de cena, enquanto
na peça de televisão cada rosto-personagem é enfocado por uma câmera e
um spotlight que o ilumina a cada vez que atua. A “máscara da morte”, que
personifica a voz de Bam, aparece sempre com os olhos fechados e o campo
da memória tornou-se efetivamente a tela negra em que a peça acontece.
Quanto ao áudio, os sons que emanam da imagem da voz de Bam
e do rosto de Bam são diferentes. Enquanto os sons do primeiro vêm do
além, os do segundo são mais fortes e vívidos. A diferença foi obtida
com a gravação e a alteração mecânica da freqüência do som para se
obter uma voz fantasmagórica de Bam morto, que caracteriza a imagem
distorcida de uma face no túmulo, portanto proveniente do além. Asmus
(apud FEHSENFELD, 1986: 238) sugere que por meio desta imagem
Bam imagina que volta para o mundo dos vivos, sonhando e vendo a si
mesmo como uma pequena face na tela.
A voz de Bam se separa de seu rosto quando define os cinco
personagens com a expressão: “Nós somos os últimos cinco”115, sendo
que apenas quatro rostos aparecem na área de encenação. Ao ser
descorporificada e materializada na imagem distorcida do reflexo de
Bam, que vem do além, como uma espécie de máscara da morte, a voz
começa a agir como um personagem independente do rosto de Bam,
anunciando as aparições ou reaparições em fade in dos personagens e a
mudança das estações do ano.
A voz de Bam repete: “É primavera./O tempo passa./Primeiro sem
palavras”116 e cada um dos personagens switch on alternadamente em
mímica. Primeiramente Bam, depois Bom aparece de olhos fechados do
seu lado direito, ou melhor, ele reaparece, pois não é chamado por Bam.
O quarto rosto a aparecer é o de Bim, com os olhos abertos, e o quinto
é o de Bem, também com os olhos abertos, que se materializa no espaço
ocupado por Bom quando ele desaparece. As cabeças abaixadas e
levantadas indicadas no texto teatral são substituídas pelos olhos abertos
e fechados na tela da televisão.

115. “We are the last five”.


116. “It is spring./Time passes./First without words”.

Gabriela Borges 117


A voz de Bam repete: “Bom. Estou só. É primavera. O tempo
passa”117, mas agora ela indica: “Agora, com palavras”118. A voz dialoga
com todos os quatro personagens como se eles fossem um outro do
mesmo Bam. Neste sentido, ao interrogar cada um dos personagens,
Bam interroga a si mesmo querendo saber o quê e onde, mas não encontra
resposta. Bam pergunta para Bem, Bom e Bim: “Ele não disse o quê? (…)
Ele não disse onde? (…) Você fez o serviço? (…) Ele chorou? (…) Gritou?
(…) Suplicou por compaixão? (…) Mas não falou nada? (…) (GONTARSKI,
1999: 447)”119.
A inevitabilidade da vida e do passar do tempo é enfatizada pela
afirmação “O tempo passa” feita pela imagem da voz de Bam que aparece,
solitária, na primavera, no verão, (após Bam interrogar Bim e Bom), no
outono, (depois do interrogatório de Bim e Bem por Bam) e retorna
finalmente no inverno, depois do interrogatório de Bem para anunciar:
“Bom. Estou só. No presente como sempre estive. É inverno. Sem
destino”120. Com isso, ela enfatiza que sempre esteve e que continua
sozinha e, portanto, não há retorno, terminando com a expressão:
“Entenda quem puder. Eu desisto”121. A expressão switch on e switch off,
cuja repetição incessante foi excluída na tele-peça122, aparece de forma
ambígua, porque ela pode se referir ao aparelho de televisão, ao
interrogatório e à própria vida.
A imagem da voz de Bam, ao ser fantasmagórica e intermediar a
tele-peça, pode levar a crer que todas as ações se passam numa outra
dimensão, talvez o passado, sendo que Bem, Bim e Bom são aparições de
Bam nesta dimensão, o presente. Bam interroga Bem, Bim e Bom que,
por sua vez, interrogaram alguém, talvez eles mesmos, num outro espaço
de ficção que não é visto na tela. Este interrogatório aconteceu em um

117. “Good. I am alone. It is spring. Time passes”.


118. “Now with words”.
119. “He didn’t say what? (…) He didn’t say where? (…) You gave him the works? (…) He
wept? (…) Screamed? (…) Begged for mercy? (…) But didn’t say it? (…)”.
120. “Good. I am alone. In the present as were we still. It is winter. Without journey”.
121. “Make sense who may.\I switch off”.
122. Na produção televisual foram retirados alguns trechos reiterativos da aparição e da
desaparição da voz de Bam na apresentação dos personagens. O texto “Not good. I
switch off. I start again. We are the last five. It is spring. Time passes. First without
words. I switch on” foi excluído juntamente com “Good. We are the last five. It is
spring. Time passes. I switch on”, que era repetido pela voz de Bam depois da mímica.

118 A poética televisual de Samuel Beckett


outro espaço-tempo, mas repercutiu no espaço ficcional visto na tela
por meio das respostas negativas dos três personagens que não
conseguiram descobrir nada, nem mesmo por meio da tortura.
Será que Bam já morreu e a sua voz vem falar com ele no presente
da morte, portanto, do além-túmulo? Ela está sempre sozinha, como a
morte, em qualquer uma das estações pela qual o tempo registra a sua
passagem. Ela vem do túmulo, mas aparece no presente.
A imagem da voz de Bam é distorcida e fantasmagórica, enquanto
as imagens de Bam, Bem, Bim e Bom são mais vívidas e estão no passado,
são as memórias de Bam que não conseguiram entender o sentido da
vida e que, por mais ambíguo que seja, também estão presentes no devir
do vídeo. Portanto, no vídeo vemos a morte se manifestar e falar de suas
memórias passadas. A imagem da morte é menos vívida que a imagem
do passado porque as imagens de Bam, Bem, Bim e Bom não estão
distorcidas como a imagem da voz de Bam.
As duas dimensões, o espaço e o tempo, são reconstruídas no
sentido de que a tela se torna o espaço de ficção em que apenas cabeças
falantes atuam, e a noção de tempo linear é desestruturada em um presente
que se expressa quando já é passado na ordem cronológica. Neste sentido,
a morte, que faz parte da dimensão futura e se expressa por meio da
imagem videográfica, desorganiza a noção de que o passado acontece
antes do que o presente. Nesta tele-peça, o futuro é colocado como
presente na imediaticidade da tela do vídeo, que pela sua própria
materialidade é sempre presente, dialogando com o passado que é
retratado pelo campo da memória no qual a tela, como espaço de ficção,
se transformou ao mostrar os personagens Bam, Bem, Bim e Bom.

Gabriela Borges 119


CAPÍTULO V

A poética televisual de Beckett

Este capítulo analisa as relações entre a arte e a tecnologia na


elaboração da poética televisual de Samuel Beckett. Os estudos de Martin
Heidegger sobre a tecnologia, particularmente o conceito de Ge-stell,
servem de ponto de partida para se pensar as possibilidades da arte
beckettiana no domínio tecnológico. A tecnologia moderna, neste caso
a televisão, tem um modo particular de conceber e apresentar o mundo
em que as informações se transformam em Bestand, isto é, em estoque
de reserva disponível para ser ordenado e consumido por meio de Ge-
stell: um processo que seleciona, captura, edita, armazena e veicula imagens
que podem ser enquadradas e reenquadradas continuamente.
Neste constante enquadramento, o modo de ser da tecnologia pode
mostrar a sua essência num processo de desvelamento da verdade, ou de
revelação da aletheia. Ao sair do ocultamento e tornar-se presente, o
tecnologia moderna possui o mesmo modo de revelação que a poiesis,
isto é, que a arte. Para Heidegger, a única maneira de entender o modo
de ser da tecnologia é por meio da reflexão e do questionamento, que
desperta a atenção para o mistério da arte. Neste sentido, as instâncias
que compreendem o modo de ser do meio audiovisual, escondem a
essência da tecnologia ao mesmo tempo em que só existem por meio
das imagens sonoras e visuais que são constantemente enquadradas e
exibidas. A tecnologia concebeu o mundo como imagem, organizando-
o como uma espécie de destino, em que qualquer evento está em modo
de espera, pronto para ser capturado e o ser humano disponível para
agir como um mero ordenador das imagens.
Entretanto, a arte pode apresentar-se como uma saída para este
constante enquadramento e reenquadramento empreendido pela
tecnologia. E a poética de Beckett, particularmente, aponta para esta
fissura em que a arte se desvela e permite que o invísivel oscile nas
imagens constantemente visíveis do meio televisual. Neste sentido, as
suas tele-peças oferecem a oportunidade de se discutir a televisão como
meio de comunicação de massa e forma de expressão artística.
A poética televisual beckettiana se delineia por meio das relações
intersemióticas entre as tele-peças e a obra como um todo, criando um
universo abstrato e fantasmagórico. Ela se expressa na montagem de
imagens visuais e sonoras a partir do uso das ferramentas tecnológicas
como a câmera, os recursos de áudio e de edição; assim como no
desdobramento intersemiótico na criação de personagens e no
desenvolvimento de temas como a ausência, a repetição, a memória, a
fragmentação, a percepção e a abstração.

O domínio tecnológico
Num mundo cada dia mais dominado pela rapidez das imagens, a
televisão não apenas intermedia os eventos e os fatos da realidade, mas
também conta e reconta, constrói e reconstrói as narrativas, criando o
seu próprio entendimento do mundo. Com isso, a representação da
realidade recriada passa a ser veiculada tantas vezes que o nosso modo
de ver e compreender o mundo passa a não ser autêntico, mas criado
por este processo.
O filósofo alemão Martin Heidegger, nos seus escritos sobre a
técnica, elabora o conceito denominado Ge-stell: um processo de
ordenação em que a tecnologia123 moderna seleciona, captura, armazena

123. No artigo intitulado A questão da técnica, Heidegger (2000: 325-6) argumenta que a
palavra technik, que pode ser traduzida por tecnologia, técnica ou engenharia
(INWOOD, 2002: 181) deriva da palavra grega technikon, que pertence a techné.
Techné designa tanto as habilidades e atividades do artesão, quanto as artes da mente
e as belas-artes e, por isso pertence à poiesis. Poiesis em grego significa revelar, tornar
presente aquilo que estava ausente ou tornar visível àquilo que estava oculto. Para
revelação, os gregos têm a palavra aletheia, que os romanos traduziram por veritas e
é entendida atualmente por verdade. Techné também está relacionada com a palavra
epistéme (ciência) que significa entender e ter conhecimento sobre alguma coisa no
sentido de saber fazer. Este conhecimento possibilita uma abertura que, por sua vez,
pode ser entendida também como revelação. Portanto, techné é um modo de aletheiuen.

122 A poética televisual de Samuel Beckett


e distribui os recursos da natureza (estoques de reserva), que estavam
disponíveis para serem acessados. De fato, o sistema de produção e
veiculação da televisão apresenta este mesmo processo, em que as imagens
estão sempre disponíveis para serem enquadradas, editadas, transmitidas
e substituídas, alimentando continuamente um sistema que se auto-regula.
Seguindo o raciocínio de Heidegger, a tecnologia moderna se mostra
também como um modo de revelação, pois “torna-se presente no domínio
em que a revelação e o desvelamento ocorrem, em que aletheia, ou seja,
a verdade emerge” (HEIDEGGER, 2000: 318). Heidegger (1959: 34) cita
o seguinte verso do poeta Hölderlin: “onde há perigo, cresce a salvação”,
para explicar que a essência da tecnologia revela a verdade ao mesmo
tempo em que a oculta quando intercepta o seu desvelamento.
Porém, Causey (1995: 64) salienta que ao permitir que a verdade
saia do ocultamento e se torne visível, a essência da tecnologia para
Heidegger possui o mesmo modo de revelação que a poiesis, isto é, que a
arte. Pelo fato de não ser tecnológica, a essência da tecnologia deve
mostrar-se num campo em que o ocultamento e o desvelamento da aletheia
emergem. Este campo, que se apresenta tanto semelhante quanto diferente
desta essência, é o campo da arte, pois a tecnologia, ao mesmo tempo
em que pode revelar, impede o desdobramento da poiesis. Entretanto, o
filósofo adverte que quanto mais se questiona a essência da tecnologia,
mais misteriosa a arte se torna.
Ge-stell é um processo que, por ser sistematizador, impede a revelação
da poiesis e pode transformar o ser humano num animal mecanizado,
mero ordenador da energia de reserva, chegando até mesmo ao ponto de
se transformar exclusivamente nesta energia. Entretanto, o homem pensa
que tudo foi construído por ele e por isso tem o controle, mas este é um
sistema que se auto-regula e com isso afasta o homem de sua essência.
Contudo, a arte pode apresentar uma saída para este sistema auto-
regulador que a tecnologia e, neste caso, a televisão coloca em constante
enquadramento e fomentar o surgimento de uma nova techné poética. É
importante ressaltar que a techné segundo Heidegger não é o ato da
criação, mas um modo de conhecimento. Conhecer significa perceber,
compreender o que está presente como tal. A arte pode gerar um novo
“saber fazer poético” e apresentar a possibilidade de que a essência da
tecnologia se revele ao desvelar a visibilidade do invisível e a invisibili-
dade do visível na imagem.

Gabriela Borges 123


Heidegger (apud GUZZONI, 2002: 99, 104) afirma que a imagem124
é o aparecimento ou a visibilidade de alguma coisa, deixando que algo
seja visto pelos olhos. Por outro lado, as imitações e reproduções são
meras variações da imagem genuína que, como um aparecimento, deixa
o invisível ser visto como algo estranho no seio daquilo que é conhecido.
O invisível é o outro lado do visível, não é uma dimensão mais essencial,
nem se trata de uma contradição dialética, mas de uma oscilação entre
estas duas instâncias, elas estão contidas uma na outra.
Isto acontece na arte e particularmente na poesia, em que as imagens
poéticas são vistas como “imaginações num sentido distinto, ou seja,
inclusões visíveis daquilo que é estranho no aparecimento daquilo que
é conhecido (Heidegger apud GUZZONI, 2002: 99)”. Isto não quer
dizer que a realidade seja permeada por incidentes de algo estranho,
mas aquilo que é estranho se mostra quando aquilo que é conhecido
torna-se visível. E a própria visibilidade aparece como estranha, ou seja,
aquilo que é familiar mostra a sua própria estranheza, tornando-se
estranho. É como a escuridão presente na visibilidade da luz ou o silêncio
presente no som (Heidegger apud GUZZONI, 2002: 99, 105-6).
Portanto, a poética de Beckett pode apontar esta fissura no domínio
tecnológico que somente a arte é capaz de promover ao explorar um
novo saber fazer da técnica. Num mundo articulado pela profusão de
imagens e pela rapidez de suas edições, Beckett experimenta com os
códigos televisuais na criação de uma poética que se articula na
montagem de imagens visuais e sonoras. A sua poética cria imagens
televisuais abstratas, que se comunicam por meio de elementos estéticos
mínimos, e imagens sonoras que distendem o tempo da narrativa, fazendo
assim com que o visível e o invisível se desvelem no domínio tecnológico.
A contribuição de Beckett para se repensar o papel que a televisão
pode ocupar no mundo contemporâneo é crucial, pois o fazer poético
beckettiano amplia a capacidade de comunicação do meio televisual ao

124. Segundo Guzzoni (1999: 99-100), a palavra bild (imagem) em alemão tem três
significados: pode ser alguma coisa formada e construída; ou alguma coisa visível, a
figura material a ser vista pelos olhos, seja som ou imagem, ou seja, a imagem é
audível e visível; ou ainda a combinação das duas primeiras definições, alguma coisa
que é uma reprodução como imitação de algo ou como que esteja representando uma
outra coisa, ou seja, é uma imagem de ou para alguma coisa. Heidegger prefere usar a
segunda definição, em que a imagem é entendida como aquilo que é visível nas coisas.

124 A poética televisual de Samuel Beckett


explorar o seu potencial como meio de expressão artística. Ao assombrar
o domínio tecnológico com as suas imagens abstratas e fantasmagóricas,
as suas vozes da memória e os seus silêncios sonoros, Beckett chama a
atenção para o potencial artístico do meio, promovendo um desloca-
mento do olhar e apontando para aquilo que é invisível no visível das
imagens. Com isso, as suas imagens fantasmagóricas introduzem um
outro espaço-tempo neste domínio e questionam o saber fazer da técnica.
A poética beckettiana se apresenta por meio de imagens conden-
sadas, fragmentadas e abstratas que forçam os limites de verossimilhança
da televisão na busca de uma invisibilidade que questiona a representação
da realidade empreendida tanto pela televisão quanto pela arte. As tele-
peças não copiam a natureza nem a realidade, elas se expressam, como
signo, por meio de sua própria forma e tensão interna. Por isso, as
ferramentas tecnológicas são muito importantes em cada um dos veículos
estéticos em que Beckett experimentou. As peças de teatro primam pelo
uso da luz, as peças de rádio pelos efeitos sonoros, o filme pelo ponto de
vista da câmera e as tele-peças pelo ponto de vista da câmera, que dialoga
com a música e as vozes da memória.
A busca de Beckett pela desconstrução da linguagem na montagem
de imagens visuais e sonoras mostra um modo muito particular de perceber
o mundo. Como outros artistas contemporâneos, Beckett criticou alguns
conceitos presentes na história da arte e da filosofia ocidental e no
modo do homem ver o mundo, tentando forçar os limites da
representação na arte e questionar o status quo. O seu universo criativo
não se mostra como inteligível e organizado dentro de estruturas
totalizantes em que o homem, animal racional, tem controle de seus
atos e pensamentos. É um universo em que o sujeito se encontra
fragmentado e perdido entre a sua imaginação e a sua memória, tentando
achar a sua razão de viver, ao mesmo tempo que está fadado a lidar com
o hábito e o tédio da sua existência e com a sua própria mortalidade,
que não consegue explicar. Entretanto ele também não pode desistir,
tem que seguir o seu destino, como o artista, que não consegue se expressar
por meio da sua arte, mas que continua tentando, mesmo que as suas
tentativas possam parecer fadadas ao fracasso.

Gabriela Borges 125


As relações intersemióticas
Na televisão, Beckett teve a possibilidade de apresentar o seu olhar
estético como autor e aperfeiçoá-lo como diretor, ao ter contato com a
prática de gravação nos estúdios, muitas vezes reescrevendo os roteiros
para expressar as idéias que tinha visualizado. Além disso, ele foi capaz de
propor um diálogo com a tecnologia televisual a fim de explorar a sua
capacidade de comunicação. Este diálogo deu-se no uso das ferramentas
televisuais, como a câmera e os recursos de áudio e edição, que permitiram
o desdobramento das relações intersemióticas que permeiam toda a obra
beckettiana e que se delineam no tratamento de temas como a repetição,
a memória, a fragmentação, a percepção e a abstração e também da criação
tanto dos personagens televisuais quanto teatrais e cinematográficos,
criando assim o um universo abstrato e fantasmagórico.
Nesta malha intersemiótica que Beckett cria, é possível apontar
alguns elementos que articulam a sua poética televisual: a inserção da
ausência e da invisibilidade no domínio tecnológico; a busca de um
mínimo expressivo na contração do espaço-tempo televisual; o diálogo e
a dissociação entre a imagem e o som; a repetição em formas diferenciadas,
que é impulsionada também pelos mecanismos da memória; a fragmenta-
ção do corpo e a sua encenação como personagem; a percepção, que se
desdobra também no diálogo com a audiência; assim como a abstração
e o estranhamento gerado por suas imagens.
As imagens cinzas e fixas, as repetições reincidentes, o ritmo lento
e o silêncio distendido no tempo reconfiguram o espaço-tempo televisual
e inserem uma ausência, uma fissura num meio que está constantemente
enquadrando as imagens da realidade. Beckett exibe imagens visuais e
sonoras que apresentam uma certa invisibilidade, pois elas não pertencem
ao repertório televisual, que é regido pelo ritmo frenético da edição e
tem uma natureza efêmera.
O invisível está no vazio e na escuridão do espaço televisual que,
na sua poética, se mostra por intermédio do tempo das imagens. O
tempo se inscreve no silêncio, na música e nas vozes da memória e
distende o espaço fragmentado da tela, percorrendo-o com longos planos-
seqüências ou com imagens fixas. Neste sentido, o tempo se apresenta
nas imagens, mas de um modo diverso do tempo linear da narrativa
clássica. Nas tele-peças beckettianas, a repetição das imagens, dos diálogos

126 A poética televisual de Samuel Beckett


e dos monólogos desorganiza a narrativa e subverte a noção de começo,
meio e fim, instalando assim um outro tempo, o tempo da imagem.
A busca por imagens abstratas e por um mínimo expressivo leva
Beckett a contrair o espaço e o tempo televisual por meio de seus elemen-
tos estéticos constituintes como a duração, o uso de locações internas, a
diminuição e posterior eliminação dos objetos de cena e a gradual imobili-
zação da câmera. Eh Joe e Ghost trio são as peças mais longas, contando
com vinte e nove minutos, enquanto Nacht und Träume é a mais curta,
com somente onze minutos. As cenas externas são excluídas e o espaço
de ação e os objetos de cena são reduzidos até se tornarem abstratos. As
primeiras tele-peças apresentam um espaço definido de ação, cujo cenário
é um quarto com um personagem e alguns objetos de cena, enquanto as
últimas tele-peças reduzem o espaço de ação a formas abstratas ao
fragmentarem o corpo dos personagens. Levy (1994-5: 74) argumenta
que na sua constante busca a fim de entrar na mente do personagem,
Beckett recusa o quarto vazio e opta por uma interação menos realista e
mais expressiva entre o branco e o preto, a luz e a escuridão, a vida e a
morte, como uma espécie de Leitmotif.
Os movimentos de câmera e a alternância entre fade in e fade out
estabelecem um padrão que apresenta mais imagens fixas nas últimas
tele-peças. Em Eh Joe e Ghost trio, a câmera segue os movimentos do
personagem enquanto em ...but the clouds..., Quad e Nacht und Träume ela
está imóvel, contrastando zonas de luz e sombra. À medida que decresce
a mobilidade, aumenta o uso do close-up e conseqüentemente a
fragmentação, assim como a repetição e a monotonia, que é conseguida
principalmente por intermédio do som.
O diálogo entre a imagem e o som é empreendido pela descorporifi-
cação da voz, que é desmembrada do corpo do personagem. Algumas
vezes a voz é ambígua, pois não se sabe se é a voz do próprio personagem
ou de um outro personagem, uma vez que ela age independentemente
das ações do personagem visto na tela. Isto pode ser constatado em Eh
Joe, em que V atormenta Joe, mas não se sabe se é a sua própria voz
interior ou as vozes de suas amadas e em Ghost trio, em que Voice dialoga
com F, dirigindo os seus movimentos. Em ...but the clouds..., apesar de ser
um monólogo em que M escuta a sua voz interior, V, e relembra os
momentos em que viu a sua amada, a descorporificação da voz também
está presente. Este recurso permite a inserção das vozes da memória no
espaço de ficção e a reconfiguração da ordem cronológica do tempo.

Gabriela Borges 127


Voigts-Virchow (1998: 232) afirma que a dissociação da imagem e
do som por meio do uso do som extra-diegético permite a existência de
uma outra relação entre o espaço e o tempo. Nas primeiras tele-peças é
importante a utilização do texto, cujas palavras criam a reiteração, mas
nos últimos trabalhos a repetição é gerada pelo som e pelo movimento.
A repetição, característica intrínseca tanto da intersemioticidade
quanto do sistema de gravação da câmera de vídeo, pode ser vista
principalmente nas tele-peças Ghost trio, Quad, Not I e Was Wo. Em Ghost
trio aparece no terceiro ato, a Re-Ação, em que ocorre a repetição dos
atos de ver e de ouvir por F, e se expressa na montagem polifônica das
imagens visuais e sonoras. Em Quad a repetição dos movimentos dos
corpos dos personagens-dançarinos se mescla com a repetição dos sons
da percussão e dos passos, criando cria uma tensão interna em que os
corpos perdem a sua materialidade ao mesmo tempo em que renovam o
seu movimento a cada nova volta ao redor do tablado.
Em Not I a imagem da boca se movendo permanece sempre a
mesma e a repetição se efetiva no seu discurso verbal, pois ela repete
sempre as mesmas histórias e enfatiza que não está entendendo nada.
Em Was Wo a repetição dialoga com o meio televisual, por meio das
expressões “switch on”, “switch off” e “time passes”, que se referem não
somente aos personagens que entram e saem de cena enquanto as estações
do ano se sucedem, mas também ao próprio aparato da televisão, que é
ligado e desligado enquanto o tempo passa.
Além disso, a repetição também está ligada à memória, que sempre
volta de forma fragmentada. Está presente em Eh Joe, Ghost trio e ...but the
clouds... em que os personagens testam a sua percepção e a sua capacidade
de rememorar. Em ...but the clouds... a repetição dos movimentos de M ao
redor do círculo de luz, dia após dia, enfatizam o hábito e o tédio da vida
cotidiana. Em Nacht und Träume a repetição das mesmas imagens tem um
outro sentido, porque está relacionada ao retorno do mesmo sonho,
acompanhado pelo som reincidente da música de Schubert.
Um outro recurso explorado por intermédio do enquadramento
da câmera é a fragmentação das partes do corpo humano e o redimensio-
namento destas partes em personagens. Nas tele-peças, Beckett aperfeiçoa
o uso deste recurso que já estava presente nas peças teatrais, mas que
funciona muito melhor na televisão devido ao pequeno espaço condensa-
do da tela. O foco nas partes do corpo dos personagens enfatiza a sua

128 A poética televisual de Samuel Beckett


expressividade e apresenta uma imagem que é o resultado do processo de
fragmentação e posterior edição destes fragmentos. Em Not I a boca se
transforma em personagem e, em Nacht und Träume, os personagens são o
rosto do sonhante em close-up, assim como o plano-detalhe da mão direita
e da mão esquerda. Este recurso é levado ao extremo em Was Wo, que
mostra apenas as cabeças falantes, Bam, Bem, Bim e Bom, envoltas num
fundo negro. O uso estético do close-up começou a ser desenvolvido em Eh
Joe, com o fechamento do ângulo de visão da câmera nos olhos de Joe e
atinge um momento epifânico na formação do que Deleuze (1995: 12)
denomina “a imagem” do personagem F, na tele-peça Ghost trio.
O tema da percepção, que está presente nas peças teatrais, também
é recorrente nas tele-peças. Em termos imagéticos, começa a ser explorado
em Film (1964), em que o personagem O, representado por Buster Keaton,
foge da percepção de si mesmo, atingindo um refinamento estético em
Not I, em que é trabalhado no nível do discurso verbal. Na sua verborragia,
Boca refere-se sempre a si mesma na terceira pessoa, não admitindo a
sua própria identidade.
A percepção se desdobra no diálogo com a audiência, principalmen-
te em Ghost trio, cuja estrutura triádica é dedicada aos sentidos da visão
e audição. V começa a tele-peça se apresentando para os telespectadores
e as suas ordens para olhar e ouvir são ambíguas, elas podem ser tanto
para F quanto para a audiência. Está presente também em Eh Joe, quando
Voice afirma que Joe não precisa se preocupar porque ninguém está
olhando para ele e sugere que talvez um piolho (a audiência) esteja
vigiando-o. Em ...but the clouds..., a ambigüidade continua com a voz
feminina V, que suplica para que a musa olhe e fale com M, ao mesmo
tempo em que chama a atenção dos telespectadores para a imagem
fantasmagórica de W, que se vê na tela ao pronunciar os versos do
poema de Yeats, The Tower.
Esta tentativa de diálogo com a audiência por parte dos personagens
pode ser, de certa forma, questionada pelo estranhamento que as imagens
beckettianas provocam. As imagens são fragmentadas a tal ponto que se
tornam abstratas, como a parede, a porta, o colchão e a janela em Ghost
trio, que nada mais são do que retângulos em tons de cinza na tela. Ou
então elas são repetidas tantas vezes que perdem a sua materialidade e o
seu significado, como em Quad. Outras vezes elas aparecem somente
durante uma fração de segundo e não são decodificadas, como a musa e

Gabriela Borges 129


o personagem M no santuário em ...but the clouds... e o sonhante e o seu
eu-sonhado em Nacht und Träume.
Beckett tinha grande admiração pela pintura abstrata, as suas
imagens se aproximam da obra de pintores como Mark Rothko, Avigdor
Arikha e Masson. Nos seus diálogos com George Duthuit, Beckett refere-
se ao processo criativo de Masson como uma tentativa de ultrapassar a
representação dos objetos a fim de alcançar aquele vazio que não faz
parte da experiência da vida.

sem renunciar aos objetos, abomináveis ou deliciosos, que são o


nosso pão de cada dia, o nosso vinho e veneno, ele procura ultrapassar
as suas partes na direção daquela persistência do ser que está ausente
na experiência de vida (BECKETT, 1999: 110-1)125.

De certa forma, a experimentação estética presente na poética


televisual beckettiana também se desenvolve neste sentido, numa busca
de exprimir o inexprimível e alcançar uma ausência que, por ser
praticamente impossível de ser expressa, causa uma sensação fluida de
estranhamento e encantamento. A abstração, característica que não é
comum no drama televisivo, produz um estranhamento, que distancia
no sentido brechtiano, e faz com que o telespectador reflita, participe e
se inquiete, seja com a lentidão da montagem ou com o sentimento de
que nada acontece. Ambas sensações são alheias à experiência televisual,
pois a televisão está sempre disponível para o entretenimento, exibindo
imagens banais com um discurso superficial e referencial, que prende a
atenção e gera a identificação do telespectador.
Neste sentido, as tele-peças beckettianas contrapõem tanto o senso
comum de que a televisão manipula e aliena os seus telespectadores
quanto a idéia proposta por Heidegger de que o telespectador pode se
tornar um mero ordenador de imagens. A montagem das imagens visuais
e sonoras de Beckett inserem o estranhamento no seio das imagens
familiares e conhecidas que são constantemente enquadradas pela
televisão, estabelecendo uma relação que é alheia ao drama televisual e
que apenas a arte consegue propor.

125. “without renouncing the objects, loathsome or delicious, that are our daily bread
and wine and poison, he seeks to break through their partitions to that continuity of
being which is absent from ordinary experience of living”.

130 A poética televisual de Samuel Beckett


Além de ter proporcionado a Beckett a possibilidade de expressar
o seu olhar estético por meio das formas que criou, a tecnologia televisual
se abre para experimentações e indagações a respeito de seu potencial
expressivo e artístico. A arte pode trazer vida inteligente para a televisão,
as tele-peças de Beckett mostram que existem outros tipos de imagens
que, uma vez criadas, podem forçar os limites do constante
enquadramento e reenquadramento das imagens no domínio tecnológico.
Com isso, a tecnologia se abre para o mistério da arte e para um novo
saber fazer da técnica que seja poético.

Gabriela Borges 131


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Fichas Técnicas das Produções Audiovisuais


Film
EUA, 1964, 22 min., P&B
Direção: Alan Schneider
Elenco: Buster Keaton, Nell Harrison, James Karen, Susan Reed

Eh Joe
Reino Unido, 1966, 19 min.
BBC2
Produção: Michael Bakewell
Direção: Alan Gibson e Samuel Beckett
Elenco: Jack MacGowran, Sian Phillips

He Joe
Alemanha, 1966, 29 min.
SDR
Direção: Samuel Beckett
Elenco: Deryk Mendel, Nancy Illig

Gabriela Borges 143


Dis Joe
França, 1968, 19 min.
ORTF
Direção: Pierre Bureau
Elenco: Madeleine Renaud, Jean-Louis Barrault

He Joe
Alemanha, 1979, 21 min.
SDR
Direção: Walter Asmus e Samuel Beckett
Elenco: Heinz Bennent, Irmgard Först

Eh Joe
1989, 22 min
Produção: Reiner Moritz Associates
SDR\Channel 4\RTE\La SEPT
Direção: Walter Asmus e Samuel Beckett
Elenco: Billie Whitelaw, Klaus Herm

Geister-trio
Alemanha, 1977, 20 min.
SDR
Direção: Samuel Beckett
Elenco: Klaus Herm, Irmgard Först

Ghost trio
Reino Unido, 1977, 21 min.
BBC2
Produção: Tristam Powell
Direção: Donald McWhinnie e Samuel Beckett
Elenco: Ronald Pickup, Billie Whitelaw e Rupert Horder

… but the clouds…


Reino Unido, 1977, 16 min.
BBC2
Produção: Tristam Powell
Direção: Donald McWhinnie e Samuel Beckett
Elenco: Ronald Pickup e Billie Whitelaw

144 A poética televisual de Samuel Beckett


...nur noch Gewölk...
Alemanha, 1977, 17 min.
SDR
Direção: Samuel Beckett
Elenco: Klaus Herm e Cornelia Boje

Not I
Reino Unido, 1977, 12 min.
BBC2
Produção: Tristam Powell
Direção: Anthony Page e Samuel Beckett
Elenco: Billie Whitelaw

Quadrat 1 + 2
Alemanha, 1981, 15 min.
SDR
Produção: Reinhart Müller-Freienfels
Direção: Samuel Beckett
Elenco: Helfrid Foron, Jürg Hummel, claudia Knupfer e Susanne Rehe
Percussão: Albrecht Schrade, Jörg Schäfer, Hans-Jochen Rubik e Gyula Racz

Quad
Reino Unido, 1982, 15 min.
BBC2
Direção: Samuel Beckett

Nacht und Träume


Alemanha, 1983, 11 min.
SDR
Direção: Samuel Beckett
Elenco: Helfrid Foron, Stephan Pritz e Dirk Morgner

Was Wo
Alemanha, 1986, 16 min.
SDR
Direção: Samuel Beckett
Elenco: Friedhelm Becker, Alfred Querbach, Edwin Dorner, Walter Lagnitz

Gabriela Borges 145


Quoi où
França
Helen Gary Bishop \ La SEPT
Direção: Pierre Chabert

146 A poética televisual de Samuel Beckett

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