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Cultura organizacional no contexto

escolar: o regresso à escola como desafio


na reconstrução de um modelo teórico
Leonor Lima Torres

Resumo Abstract
A partir de um registo sociológico e Organizational culture in
organizacional, procura-se debater as
potencialidades heurísticas da problemá- educational context:
tica da cultura organizacional para a returning to the school as
compreensão do funcionamento quotidi-
ano das organizações escolares, desig- a challenge in the
nadamente a partir da reflexão em torno reconstruction of a
de três dimensões analíticas: as relações
entre a “estrutura” (formal) e “acção” (in- theorical model
formal) e entre o “exterior” (fora) e o “in- From a sociological and organizational
terior” (dentro) da escola; a natureza mul- view we discuss the heuristical
tiforme e dinâmica inerente aos proces- potencialities of the issue of
sos de construção e re- organizational culture to
construção da cultura; a Leonor Lima Torres understand the daily
diferenciação teórica e Doutora em Educação, functioning of the school
conceptual entre “cultura Universidade do Minho, Braga, organizations, namely
Portugal from the analysis of three
escolar” e a “cultura or-
Professora do Curso de Mestrado analytic dimensions: the
ganizacional escolar ”,
em Educação da Universidade relationship between the
enquanto realidades soci-
do Minho
ológicas de alcance e na- “structure” (formal) and
leonort@iep.uminho.pt
tureza distintas. Em traços the “action” (informal)
gerais, convoca-se o mo- and between the
delo teórico construído no âmbito da dis- “external” (outside) and the
sertação de doutoramento (TORRES, 2004) “internal”(inside) the school; the
sobre a problemática da cultura organi- multiform nature and the intrinsical
zacional no contexto da escola pública. dynamic to the processes of construction
Palavras-chave: Cultura organizacional. and reconstruction of culture; the
Cultura escolar. Sociologia das organiza- theorical and conceptual differentiation
ções educativas. Sociologia da acção e da between “school culture” and “school
experiência social e escolar. organizational culture”, as long as

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sociological realities of distinct nature. In construido en el ambito de mi tesis


general lines, we adopt the theorical doctoral (TORRES, 2004) sobre la
model that we construct in our PhD thesis problemática de la cultura de la
(TORRES, 2004) about the theme of organización en el contexto de la
organizational culture in the public escuela pública.
school context. Palabras claves: Cultura de la
Key words: Organizational culture. organización. Cultura escolar. Sociología
School culture. Sociology of educational de la organizaciones educativas.
organizations. Sociology of action and Sociología de la acción y de la
social and school experience. experiencia social y escolar.

Resumen Introdução
Cultura de la A partir das especificidades organizati-
vas, políticas e institucionais da escola pro-
organización en el curaremos debater as potencialidades heu-
contexto educativo: el rísticas da problemática da cultura organi-
zacional no desvendamento do funciona-
regreso a la escuela como mento quotidiano das organizações. No
desafio en la quadro de um registo predominantemente
crítico e reflexivo, sujeitaremos a debate
reconstrucción de un sociológico uma proposta teórica para a
modelo teórico análise da cultura organizacional em con-
A partir de una visión sociológica y de texto escolar, basicamente organizada em
organización se pretende discutir las torno de três tópicos:
potencialidades heurísticas de la 1. a natureza ontológica da cultura,
problemática de la cultura de la reequacionada quer em termos da sua es-
organización para la comprensión del treita imbricação nas relações clássicas es-
funcionamiento cotidiano de las tabelecidas entre a estrura e a agência hu-
organizaciones escolares, principalmente mana, quer ao nível das transações (cultu-
alrededor de tres premisas analíticas: la rais) estabelecidas entre o dentro/interior e
relación entre la “estructura” (formal) y o fora/exterior do campo organizacional;
la “acción” (informal) y entre el 2. as modalidades e a essência das
“exterior” (fuera) y el “interior” (dentro) configurações culturais, designadamente o
de la escuela; la naturaleza multiform y carácter multiforme, interactivo e dinâmico
dinámica inherente a los procesos de das manifestações culturais;
construcción y reconstrucción de la 3. por último, a distinção teórico-con-
cultura; la diferenciación teórica y ceptual entre “cultura escolar” e “cultura
conceptual entre la “cultura escolar” y la orgnizacional escolar”, assim como o es-
“cultura de la organización escolar”, tatuto epistemológico, teórico e empírico
como realidades sociológicas de alcance que tais designações podem assumir na
y naturaleza distintas. En líneas investigação de realidades escolares con-
generales, se utiliza el modelo teórico cretas.

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Tomando como pano de fundo uma con- A proposta teórica que, neste trabalho,
juntura investigativa em educação, em que apresentaremos, reflectirá algumas destas
se procura uma redefinição dos enfoques so- tensões, desde logo, ao não escapar àquela
bre a escola como objecto de estudo, ou na inspiração magna - recurso a diversas len-
perspectiva de Sarmento (2000, p. 91) pelo tes teóricas -, não obstante se procure nas
duplo empreendimento da “construção do especificidades da organização escolar o
objecto científico escola” e da “desconstru- ponto de partida para repensar criticamen-
ção da organização como noção teórica”1, te na pertinência de algumas perspectivas
a ideia de “crise paradigmática” parece in- de análise.
vadir o campo educativo, não só como re-
sultado de impasses teórico-epistemológicos As especificidades da escola portuguesa
de alcance disciplinar mais restrito, mas tam- desempenharão um importante mecanismo
bém como um importante reflexo das tendên- a mobilizar na vigilância e na regulação da
cias mais globais que têm atravessado a “ci- pertinência das dimensões analíticas a con-
ência pós-moderna”. Julgamos que esta con- siderar, assumindo sobretudo uma função
juntura global de “crise paradigmática”, tão de “mediatização heurística”. Dito de outro
bem desenvolvida por Santos (1987, 1989, modo, a consideração das especificidades
2000), ao reflectir-se no campo da educa- político-ideológicas da instituição escolar
ção, contribui para visibilizar a relação de historicamente construídas por referência a
dependência, e mesmo de alguma submis- contextos locais, regionais, nacionais e trans-
são, por parte da investigação em educação nacionais, condicionará o processo de sele-
em relação a outras matrizes de conhecimento ção das opções teóricas, restituindo-lhes uma
acumulado sobretudo no quadro das ciênci- validade explicativa acrescida. Este proces-
as sociais. A recorrente importação de lentes so de selecção controlado e mediatizado
teóricas para o estudo da escola, grande parte pelas especificidades culturais, políticas e
delas produzidas por referência a outros con- administrativas do sistema educativo (portu-
textos organizacionais, tem constituído a ori- guês), exige do investigador uma postura de
entação investigativa mais frequente na área vigilância crítica permanente ao longo do
da administração educacional. Por isso, ao percurso de construção do modelo teórico.
não vislumbrarmos a construção de teorias e
de modelos teóricos gerados a partir da aná- Entre a estrutura e a
lise das especificidades da escola como or-
ganização, julgamos poder deduzir que a acção: a cultura
“crise paradigmática”, apontada como uma organizacional como
realidade inquestionável para o contexto glo-
bal da ciência pós-moderna, se traduz e re- processo de construção
percute, inevitavelmente, no contexto investi- A rejeição categórica da idéia de anti-
gativo das designadas “ciências da educa- nomia entre estrutura e acção, conduz-nos
ção”. à adopção alternativa de uma perspectiva

1
Como refere Sarmento (2000, p. 91, grifo do autor): “Desconstruir a organização como noção teórica significa proceder à crítica da
concepção reificada dos contextos estruturados onde vivem e trabalham os seres humanos e das suas ‘invariantes’ – estruturas, níveis
organizacionais, regras e dispositivos formais – para restituir aquilo que no plano empírico é dinamismo, interacção, estruturação, troca
simbólica, relações assimétricas de poder, cooperação e competição entre actores sociais em sistemas concretos de acção”.

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que contemple e aprofunde a premissa de lógicas de acção. A apreensão das dimen-


inseparabilidade do binómio estrutura/ac- sões simbólicas e culturais resulta então
ção, da sua mútua imbrincação e interde- da compreensão de um duplo fenómeno,
pendência. Na esteira de um conjunto de bem ilustrado pelo conceito giddeniano de
autores teoricamente inscritos nas corren- “dualidade da estrutura” (GIDDENS,
tes da sociologia da acção, da sociologia 2000, p. 43): por um lado, a propensão
interpretativa e da sociologia crítica, entre para a reprodução cultural, ao nível da
os quais destacamos: Crozier e Friedberg acção, das dimensões simbólicas da es-
(1977), Berger e Luckmann (1990), Tourai- trutura; por outro lado, a possibilidade de
ne (1994, 1996), Friedberg (1995a, a acção, a partir das propriedades e dos
1995b), Boudon (1989, 1990, 1995), Gi- constrangimentos impostos pela estrutura,
ddens (1989, 2000), Cohen (2002), perfi- poder criar significativamente diversas ló-
lhamos o princípio da existência de uma gicas e estratégias de actuação de sentido
interacção dialéctica entre a estrutura e a não convergente com aquela.
acção, assente numa dinâmica de recipro-
cidade mútua e historicamente construída. Este processo ora de reprodução ora de
criação autónoma de sentidos, de lógicas e
A transposição desta matriz teórica de estratégias de acção nos contextos orga-
para a análise da problemática da cultura nizacionais, remete-nos para a natureza das
organizacional constitui um passo meto- modalidades de apropriação individual e
dológico importante tanto para a clarififi- colectiva destes espaços de manobra, em
cação do seu estatuto científico-epistemo- grande medida condicionadas pela diversi-
lógico como dos seus sentidos ontológi- dade de quadros axiológico-normativos dos
cos. Assim, ao afastar a possibilidade de actores. Será justamente a partir da explora-
pensar a cultura como o reflexo ou a tra- ção das interconexões entre as várias ordens
dução directa e imediata da estrutura, ou simbólicas coexistentes nas organizações, em
como o produto exclusivo das interacções que a ordem estrutural e as ordens dos ac-
humanas, aprofunda-se, alternativamen- tores constituem a matriz referencial, que se
te, o seu processo de construção, convo- poderá compreender o carácter dinâmico e
cando para o efeito, as complexas rela- dialéctico que subjaz ao processo de cons-
ções de implicação mútua entre a estrutu- trução da cultura organizacional. Dito de
ra e a acção organizacional. O entendi- outro modo, a cultura entendida como o
mento destas interconexões passará pela conjunto de valores, de crenças, de ideolo-
perspectivação da acção humana quer gias accionadas pelos actores nos proces-
como dependente das estruturas que a sos de interacção social, assume o estatuto
constrangem, quer como produtoras de de variável intermédia entre a acção com-
novas lógicas e de novos sentidos que portamental (ou a agência) e as condições
contribuem para a sua alteração, redefi- objectivas impostas pela estrutura. Os senti-
nição e modificação. E neste sentido, o dos da acção social só são perceptíveis pela
comportamento humano passa a ser con- identificação dos modelos culturais assimi-
cebido como revestido de margens relati- lados e reconstruídos pelos actores, nos vá-
vas de autonomia, relativamente às quais rios contextos de socialização e aprendiza-
pode desenvolver criativamente diversas gem social. Mesmo as opções estratégicas

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dos actores, condicionadas pelos constran- ção, de lógicas de assimilação contínuas e


gimentos impostos pelo contexto estrutural, descontínuas, de práticas de fidelidade e
exigem uma compreensão mais profunda de infidelidade; enfim, são a expressão sim-
dos códigos culturais mais ou menos sedi- bólica das relações de força que regem a
mentados e cristalizados ao longo do per- dependência mútua entre a estrutura e a
curso biográfico do actor, constitutivo da sua acção. E nesta perspectiva, as diferentes
experiência individual e colectiva. regras produzidas em contexto organizaci-
onal não podem ser desvinculadas da pró-
Decompondo semanticamente a desig- pria acção ou actividade humana, inscrita
nação “cultura organizacional”, podería- num determinado espaço-tempo histórico,
mos traçar um paralelismo com a aborda- já que toda e qualquer actividade se faz
gem que adoptamos para a apreensão das por referência a um conjunto de regras so-
relações entre estrutura-acção: a cultura não brepostas e articuladas, cuja coerência se
constitui um mero reflexo da ordem organi- foi consolidando no tempo. As regras or-
zacional, representa antes um processo de ganizacionais, ao mesmo tempo que po-
construção dinâmica mediatizada por um dem ser interpretadas como uma expressão
conjunto de factores, de que a estrutura dos contrangimentos estruturais, traduzem,
também faz parte. Faz sentido, então, de- por outro lado, a concretização das possi-
signar a cultura “de organizacional” justa- bilidades da acção (GIDDENS, 2000).
mente pelo facto de no seu processo de Como consequência lógica, admitimos a
construção histórica confluírem um conjunto coexistência de diferentes manifestações da
de factores regulados por referência aos cultura num mesmo contexto organizacio-
constrangimentos e possibilidades de um nal, despoletadas a partir de distintos ní-
determinado contexto organizacional. veis, de diversas ordens hierárquicas, de
múltiplos actores e, efectivamente, no qua-
Em síntese, a cultura da organização dro de distintas conjunturas temporais. E
escolar enquanto processo de construção deste modo, é possível reconstituir as dife-
dinâmica e interactiva, desenvolve-se his- rentes lógicas de construção do cultural
toricamente por referência a factores multi- subsumidas nas configurações integrado-
dimensionais cujo entendimento passa, em ras, diferenciadoras e fragmentadoras.
primeiro lugar, pela sua articulação com
as categorias sociológicas estrutura e ac- Nesta sequência, a compreensão do
ção. De acordo com os enunciados defen- processo de construção da cultura em con-
didos, a cultura organizacional da escola texto escolar exige, do ponto de vista ana-
emerge, na qualidade de categoria analíti- lítico, a incorporação da dimensão da tem-
ca, do processo de síntese operada entre a poralidade. Os contextos de produção do
estrutura e a agência. Dito de outro modo, simbólico, deduzidos a partir da “dualida-
as dimensões simbólicas que dotam de sen- de da estrutura”, reflectem lógicas inscritas
tido a actividade humana — postulado de na dialéctica espaço-tempo e que, por isso,
inspiração weberiana — e que vão enrai- pressupõem sempre um trabalho simulta-
zar, na durée, o quadro de valores referen- neamente de contextualização e de recons-
cial dominante na organização, resultam tituição histórica. Os traços predominantes
de processos de construção e de reconstru- da cultura em contexto escolar tanto rele-

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vam de processos interactivos que operam apenas quanto à localização da sua ori-
no interior de limites estruturalmente deter- gem), assente numa visão que antagoniza
minados, como da natureza desses proces- e reifica as fronteiras físicas da organiza-
sos internos, não deixando de repercutir as ção, a questão central que se coloca é a
dinâmicas sociais e culturais exteriores à de compreender, para lá dos limites e cons-
escola, seja por via das orientações políti- trangimentos sociais e estruturais impostos,
cas, seja por via da reflexividade dos acto- as possibilidades de autonomia relativa que
res/cidadãos. Esta questão da temporali- se desenvolvem nos contextos organizacio-
dade e da espacialidade remete-nos para nais.
um outro eixo de análise, que a seguir, de-
senvolveremos. Em consequência do que acima foi esbo-
çado, não será no quadro destes pressupos-
“Para além” do “dentro” tos funcionalistas que encontraremos pistas
suficientemente elucidativas para a explora-
e do “fora”: a cultura ção dos processos de construção da cultura
organizacional como organizacional. Será, portanto, no contexto
da “dualidade da estrutura” que nos posici-
processo dinâmico de onaremos teoricamente quanto ao estatuto e
interdependência relevância das categorias “dentro” e “fora”
A relevância heurística contida na ten- na compreensão da cultura organizacional.
são entre o interior e o exterior da organi- Ou então, nas palavras de António Nóvoa
zação para a exploração da cultura orga- (1992, p. 32, grifo do autor):
A totalidade dos elementos da cultura
nizacional em contexto escolar, reside es-
organizacional tem de ser lida ad intra e
sencialmente na capacidade de questionar
ad extra às organizações escolares, isto
a natureza do estatuto ontológico desta pro-
é, estes elementos têm de ser equacio-
blemática. A adopção de uma concepção nados na sua ‘interioridade’, mas tam-
antinómica das categorias dentro-fora per- bém nas inter-relações com a comuni-
mite extrapolar dois tipos distintos de foca- dade envolvente. De facto, se a cultura
lização da cultura organizacional, ambos organizacional desempenha um impor-
inscritos no mesmo registro ontológico: a tante papel de integração, é também um
cultura como produto das influências “ex- factor de diferenciação externa. As mo-
ternas” à organização (cultura como “va- dalidades de interacção com o meio so-
riável independente e externa”) e, contrari- cial envolvente constituem, sem dúvida,
amente, a cultura como resultado de um um dos aspectos centrais na análise da
trabalho de fabricação exclusivamente “in- cultura organizacional das escolas.
terna” (cultura como “variável dependente
e interna”)2. Porque ambos os registos par- Ao atribuirmos um carácter processual
tem do pressuposto de que a cultura é uma e dinâmico à cultura organizacional, invo-
variável que a organização tem e, neste cando a sua estreita imbricação com as
sentido, pertencendo à ordem das coisas relações estrutura-agência humana, esta-
concretas e identificáveis (diferenciando-se mos a postular, correlativamente, a sua

2
Para um desenvolvimento teórico destas focalizações, consultar Linda Smircich (1983).

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dupla natureza ontológica: por um lado, a de capacidade reflexiva, permeabilizam-se


importância dos padrões e dos códigos a todo um quadro de pressões e influênci-
culturais sedimentados na sociedade por- as de alcance diverso, cujas fronteiras, di-
tuguesa (cultura societal) no desenvolvimen- fíceis de delimitar, extravasam os limites do
to de alguns modelos culturais reproduzi- âmbito nacional, regional e local ou peri-
dos nas organizações; por outro lado, o férico. Deste ponto de vista, uma definição
impacto das especificidades culturais his- estável e clara daquilo que é “interno” e
toricamente institucionalizadas nas organi- “externo” às fronteiras da organização es-
zações, no condicionamento e na redefini- colar torna-se problemática e de pertinên-
ção da cultura da organização. Esta pres- cia questionável, na medida em que impe-
suposição de base adquire um alcance e de o investigador de aprofundar a nature-
pertinência acrescida quando a confronta- za das relações de tensão existentes entre
mos com a especificidade da realidade es- as categorais estrutura e a acção e, no caso
colar portuguesa. em apreço, entre o “dentro” e o “fora”.

O modelo centralizador da administra- No entanto, ao reafirmarmos, na estei-


ção da educação em Portugal, cuja evolu- ra de Lima (1999, p. 76) a importância de
ção nos últimos trinta anos se caracteriza focalizarmos o sistema de administração da
mais pela continuidade, ou mesmo pelo educação e das escolas como um “sistema
reforço da sua matriz política original, do policêntrico”, que se constitui como “sujei-
que pela sua efectiva democratização polí- to” e “objecto” de produção cultural, na
tica3, configura um primeiro patamar ana- medida em que
lítico de relevo incontornável na compre- Enquanto construção simbólica e cultu-
ensão dos mecanismos de construção da ral, e sobretudo no plano da acção, não
cultura organizacional das escolas. Distan- é tanto o centro que edifica ou constrói
ciadas formal e geograficamente das peri- as periferias, mas estas que, ao serem
ferias escolares, as esferas centrais de deci- assumidas como centros de acção edu-
são educativa bem como as várias unida- cativa concreta, por actores concretos,
des pericentrais desconcentradas (as Direc- confirmam, e reinventam, a existência
ções Regionais de Educação, por exemplo), do centro.
instituem-se, ao mesmo tempo, como “su- é nosso propósito esclarecer as funções
jeitos” e “objectos” das dinâmicas sociais que aquele sistema (externo) exerce sobre o
e culturais mais vastas: enquanto “sujei- processo de construção do cultural e do
tos” dotados de poder e legitimidade políti- simbólico nas organizações escolares, sem
ca e institucional, protagonizam a “topo- ignorar, contudo, a condição de “centrali-
grafia” complexa da tomada de decisões dade periférica” das escolas (LIMA, 1999,
(LIMA, 1999), criando e impondo orienta- p. 77), vistas agora como unidades de ges-
ções normativas e culturais para as perife- tão e sob o prisma das dimensões educati-
rias escolares; como “objectos”, dotados vas e pedagógicas.

3
Para uma análise mais aprofundada sobre a evolução do modelo de administração da educação em Portugal, e das suas
consequências ao nível da democratização da educação, consultar, entre outros, Formosinho (1984, 1986, 1989), alguns dos
trabalhos produzidos por Lima (1992, 1994, 1995, 1998, 1999, 2000), Afonso (1995, 2000), Barroso e Pinhal (1996), Barroso
(1995, 1998, 1999), Estêvão (1998, 2001, 2002), Formosinho e outros (2000).

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Mas a relevância dos factores exter- ganizacional, contextos propícios à cri-


nos à escola não se restringe ao modelo ação e recriação de novas simbologias,
cultural politicamente imposto às perife- à produção genuína de novos significa-
rias escolares. De assinalável importân- dos e representações sociais, à negoci-
cia, os modelos de referenciação cultural ação de estratégias de poder e de lide-
subsumidos pelos vários actores no con- rança. Deste processo de “simbiose”
texto escolar, sobretudo pelos professores entre o “dentro” e o “fora” operado por
e pelo pessoal não docente, obedecem a via da agência humana no contexto da
um longo percurso de sedimentação me- organização escolar resulta a edificação,
diado por diversas instâncias de apren- permanentemente em movimento, de
dizagem/socialização formal, não formal configurações culturais singulares, ali-
e informal, cujo contexto primeiro de pro- cerçadas naquilo a que se tem designa-
dução deve ser encontrado fora da insti- do por “autonomia institucional relati-
tuição escolar. Se o percurso de sociali- va” (SARMENTO, 2000, p. 152).
zação dos diversos actores escolares é
desenvolvido, em primeira instância em O jogo de interdependências (entre o
contextos externos à escola como organi- “dentro” e o “fora”, por exemplo) em que
zação (família, grupos de amigos, orga- os actores escolares estão colocados, pro-
nizações de carácter regilioso, político, porciona o desenvolvimento de processos
desportivo, lazer, recreativo-cultural, etc.), de auto-regulagem e de heterorregulação,
mesmo que num segundo momento o de reprodução e de produção, de fidelida-
contexto escolar passe a assumir um gran- des e de “infidelidades normativas” e cul-
de protagonismo na vida dos actores (ora turais. Se aceitamos a premissa da dupla
enquanto alunos, ora enquanto profes- dependência “funcional” da escola relati-
sores ou mesmo funcionários), é lícito vamente ao sistema social e ao sistema
pensarmos na coexistência de múltiplos político (Estado), então também deveremos
valores, ideologias, crenças, enfim, de di- apoiar a tese de que é no espaço organi-
ferenciadas e contraditórias visões do mun- zacional de cada estabelecimento de ensi-
do escolar, assimiladas pelos actores e no, em particular, que se processam, atra-
accionadas em contexto escolar. vés da agência humana, os “metabolismos”
culturais e simbólicos conferidores das es-
pecificidades escolares, ou então, na estei-
E será no quadro desta multiplicida-
ra de Sarmento (2000, p. 156, grifo do
de de significados e funções atribuídas
autor), da “autonomia em uso”:
à educação, à escola, ao professor e ao
É o uso da autonomia, ou melhor, a
aluno, que as lógicas de acção nas es- autonomia em uso que permite funda-
colas adquirem sentido, simultaneamente mentar a capacidade das escolas para
como “veículos” e como “geradoras” de realizarem a diferença, relativamente
cultura. As interacções sociais quotidia- aos princípios simbólicos presentes no
namente estabelecidas entre os actores respectivo campo organizacional. Po-
escolares, ao mesmo tempo que denun- rém, é a semelhança aquilo que a inves-
ciam a presença de códigos culturais tigação dos modos de funcionamento
dominantes por eles partilhados, tornam- mais detalhadamente tem procurado
se igualmente no tempo e no espaço or- esclarecer.

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De acordo com este raciocínio, rejeita- construídas nos contextos organizacionais


mos liminarmente uma visão dicotómica concretos, a cultura organizacional assu-
entre o “dentro” e o “fora” da escola, já me, deste modo, uma natureza multicon-
que as duas faces são elas próprias consti- figuracional, podendo dar origem a dis-
tutivas do desenrolar da acção e, por con- tintas formas de manifestação cultural (in-
seguinte, encontram-se incrustadas no pro- tegradora, diferenciadora, fragmentadora).
cesso de construção do cultural. Desta for- A sobreposição de diversas configurações
ma, os actores escolares nas suas interac- culturais no contexto organizacional apa-
ções quotidianas põem em prática deter- rece, igualmente, associada à ideia de
minados valores e comportamentos que “tráfico cultural” (ALVESSON, 2002,
podem ser consideradas o “centro nevrál- p.191), no sentido em que reflecte o fluir da
gico” do processo de construção da cultu- mudança das orientações e constelações
ra organizacional da escola. Nessas con- socioculturais em trânsito no seio de várias
dutas comportamentais que quotidianamen- instâncias: meios de comunicação social,
te se desenrolam nas escolas, por um lado agências políticas, literatura científico-gesti-
podemos ver o fluir de normas, significa- onária, movimentos sociais, entre outros.
dos e representações sociais compartilha-
das resultantes de diversificados processos Nesta sequência, as organizações enquan-
de socialização, ou na esteira de Pellicani to loci de reprodução e produção normativa e
(1986, p. 95), o fluir da “sociedade” sob a cultural, reagem activamente sobre o fluir do
forma de ‘cultura interiorizada’. Por outro “tráfico cultural”, redireccionado-o e recon-
lado podemos depreender um exercício de textualizando-o a partir de um processo simi-
tecelagem colectiva, um jogo de modela- lar ao de “reposição cultural dinâmica” defen-
gens e redefinições dos universos simbóli- dido por Alvesson (2002, p. 192), isto é, o
cos em constante mutação, por referência modo pelo qual os valores, as crenças, os sig-
ao quadro institucional da escola. Sendo nificados permutam entre o centro e a perife-
assim, a cultura organizacional da escola ria, entre a macroestrutura e a acção organi-
resultaria de um processo interactivo e di- zacional, num movimento dinâmico e interac-
nâmico estabelecido entre o “dentro” e o tivo. A pertinência analítica destes “princípios
“fora” da escola. para um uso produtivo do conceito de cultura
organizacional” (ALVESSON, 2002, p. 189),
Mapeando o terreno: as para além de se enquadrar no âmbito da agen-
da teórica orientadora deste trabalho, recobre
“configurações culturais e elucida o campo que pretendemos investi-
múltiplas” e a idéia de gar no domínio das escolas como organiza-
ções, sobretudo a partir da exploração da du-
“tráfico cultural” pla tensão das relações entre estrutura e ac-
E de distintas naturezas. Abordada ção e entre dentro e fora.
como um processo dinâmico e de confi-
guração variável, resultante de uma sim- Erguido a partir de dois eixos principais,
biose operada entre as circunstâncias ex- a grelha analítica representada na figura 1,
ternas (das locais às de âmbito global) e a procura ilustrar os diversos graus de implica-
forma como estas são construídas e re- ção, articulação e de interdependência entre

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as respectivas categorias constituintes do eixo organizacional da escola; por fim, o qua-


horizontal (fora/dentro) e do eixo vertical (es- drante 4, restrito ao cruzamento dos campos
trutura/acção) no processo de construção da estrutura/fora, sugere-nos a prevalência dos
cultura organizacional em contextos escola- padrões estruturais, externamente contextua-
res. Da intersecção entre os dois eixos resulta lizados no nível político e na esfera profissio-
o recorte de quatro “quadrantes”, regulados nal, no enquadramento das orientações nor-
por factores de incidência e expressão dife- mativas e culturais da organização escolar.
renciadas na construção cultural e simbóli-
ca: o quadrante 1, circunscrito ao binário A relevância heurística destes quatro ce-
estrutura/dentro, evidencia a centralidade da nários culturais analiticamente recortados do
estrutura formal no processo de construção modelo teórico, reside na visualização dos
da cultura, induzindo uma relação de sobre- efeitos que determinados factores exercem
determinação da primeira sobre a segunda; sobre o processo de construção da cultura
o quadrante 2, localizado na intersecção en- da escola, sobretudo quando estão em dis-
tre a acção e o dentro, revela o protagonis- cussão as potencialidades de distintas pers-
mo da agência humana no interior da orga- pectivas teóricas, assentes em diferenciadas
nização na produção da sua cultura; o qua- agendas científicas, políticas e ideológicas.
drante 3, situado na convergência entre a Além do mais, esta visão recortada da pro-
acção e o fora, aponta-nos para a influência blemática, encerra um pertinente exercício de
exercida quer pelas trajectórias de socializa- desvendamento das limitações e das capaci-
ção extra-escolar vivenciadas pelos actores dades explicativas propiciadas por cada cons-
escolares, quer pelo “genótipo cultural” da telação cultural, indispensável à problemati-
comunidade/meio na construção da cultura zação da cultura organizacional da escola.
Figura 1
Processo de construção da cultura organizacional da escola

Estrutura/
Formal

Factores Exógenos Factores Endógenos


Fora/exterior dentro/interior

Acção/
Informal

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o regresso à escola como desafio na reconstrução de um modelo teórico 445

Cultura escolar e cultura poder no ‘mercado escolar’, onde as leis


da concorrência e da rivalidade imperam.
organizacional escolar Por último, à luz de uma lógica de subjec-
A consideração da noção de “experi- tivação, o actor representado como um
ência social” como construção histórica, ou sujeito crítico, age em função da sua iden-
como “tipos históricos” que resultam da tidade subjectiva, construída culturalmente
combinação de “tipos puros” — utilizando a partir da tensão constante entre a acção
a conceptualização weberiana —, parece- integradora e a acção estratégica. Deste
nos cientificamente relevante, na medida em ponto de vista, o sujeito encontra-se sem-
que propicia uma compreensão das dife- pre numa relação de distanciação e de re-
rentes lógicas coexistentes na organização serva que impede uma adesão total ao ego
escolar, “[...] mediante a forma como os (identidade subjectiva), ao nós (identidade
actores as sintetizam e as catalizam tanto integradora) e aos interesses (identidade
no plano individual como no plano colec- recurso). Consequentemente, a cultura dei-
tivo” (DUBET, 1996, p. 112). Apesar de o xa de representar somente o conjunto de
actor social se encontar “[...] numa espé- valores e normas historicamente sedimen-
cie de intervalo, num espaço misto, inter- tadas na organização, tampouco apenas
mediário a várias lógicas”4, é possível iden- uma reserva de meios simbólicos da acção
tificar, na perspectiva deste autor três regis- grupal; ela resulta igualmente da definição
tos de acção necessariamente adoptados subjectiva do sujeito.
pelos actores individuais ou colectivos: a
lógica da “integração”, a lógica da “estra- De acordo com esta proposta, igual-
tégia” e a lógica da “subjectivação”. mente inspirada na obra de Touraine (1978),
qualquer formação social é definida pela
De acordo com a lógica da “integra- co-presença de uma lógica de integração
ção”, o actor tende a manter e a fortalecer comunitária, por um sistema de concorrên-
a sua pertença à organização, interagindo cia regulada e pela lógica da capacidade
de uma forma convergente e confirmativa, crítica e voluntária do sujeito. Se do ponto
isto é, pautando as suas condutas com vis- de vista analítico, é possível acentuar a
ta à manutenção de uma identidade inte- autonomia de cada uma daquelas lógicas
gradora. Num registo mais “estratégico”, a partir de um ponto central, na óptica do
o actor procura agir em função dos seus funcionamento da organização, convém
interesses para que o que pertença ao gru- esclarecer que a circulação alternada das
po passe a constituir uma condição neces- diferentes lógicas assemelha-se mais a ‘ar-
sária à prossecução dos seus objectivos ou ranjos’, a produtos das experiências soci-
fins “concorrenciais”. A estrutura normati- ais. E as experiências sociais, ao se cons-
va e os valores que esta incorpora adqui- truírem a partir de diversas lógicas de ac-
rem assim um sentido utilitário, transforma- ção que lhes não pertencem (e que são
do em recurso a mobilizar na acção, so- dadas pelas diversas dimensões da orga-
bretudo se for favorável aos interesses do nização), resultam de combinações subjec-
grupo e se reforçar as suas relações de tivas de elementos objectivos.

4
DUBET, F. Sociologia da experiência. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. p. 112.

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A pertinência analítica destas três lógi- ral e elementos resultantes do jogo ineren-
cas de acção, no que concerne à compre- tes às lógicas de acção. Do ajustamento e
ensão da cultura organizacional em con- da articulação entre a ordem estrutural he-
texto escolar, reside na capacidade de apro- gemónica e a ordem local podem resultar,
fundamento do conhecimento das condi- pelo menos, dois cenários culturais teori-
ções de produção das manifestações cul- camente diferenciados: o cenário da “cul-
turais. Quase que poderíamos traçar um tura escolar” e o cenário da “cultura orga-
paralelismo, ainda que grosseiro, entre a nizacional escolar ”, cujas balizas fo-
prevalência de determinadas lógicas de ram já sinalizadas num nosso anterior tra-
acção e o tipo de manifestação cultural a balho (TORRES, 1997).
ela associada: à lógica da “integração”
corresponderia uma manifestação “integra- A “cultura escolar” pretende recobrir um
dora” da cultura; a lógica da “estratégia” cenário marcado pela hegemonia de uma
suscitaria uma cultura predominantemente lógica da “integração” e, como tal, desen-
“diferenciadora”; e a lógica da subjectiva- cadeadora de configurações culturais “in-
ção estaria por detrás de manifestações ten- tegradoras”, directamente redutíveis às
dencialmente “fragmentadoras” da cultu- grandes estruturações englobantes. Sobres-
ra5. Despojada do pendor determinista e saiem, desta imagem, comportamentos con-
funcionalista que, aparentemente, apenas, vergentes e reprodutivos da ordem prescri-
parece sustentar, esta associação faz senti- tiva, condutas fiéis às estruturas e “regras
do quando perspectivada a partir de um formais”, enfim, um quadro de valores, de
enfoque que privilegie o seu carácter dia- crenças, de ideologias estabilizadas e co-
léctico e interdependente, ou nas palavras lectivamente partilhadas pelos actores es-
de Friedberg (1995b), que explore o “jogo
colares. Tal cenário, tem o condão de fazer
social” da cooperação e do conflito. E,
sobressair as dimensões culturais historica-
como já o afirmámos repetidas vezes, as
mente institucionalizadas nas organizações
“regras organizacionais” (exógenas e en-
escolares, sob a forma de ritos, rituais, ce-
dógenas) constituem uma ferramenta in-
rimónias legimadoras da acção educativa,
substituível ao desenrolar do “jogo”.
e, por isso, relativamente comuns, genera-
Seguindo este raciocínio, importa per- lizáveis ou ainda observáveis na regulação
ceber, no contexto da escola como organi- do funcionamento de todas as escolas. Esta
zação, como e em que gradações se cons- relação de isomorfismo entre a “estrutura
trói e se manifesta a cultura, tendo como formal” ou “oficial” e as dimensões simbó-
antecâmara teórica a pressuposição de que licas que incorpora e a “estrutura informal”
para além das estruturas e regulações en- reproduzida nas escolas concretas, susten-
globantes, que impõem uma ordem cultu- ta a idéia de uma “cultura escolar” institu-
ral hegemónica, se processa todo um tra- cionalmente imposta e localmente reprodu-
balho de bricolage organizacional, que zida nas periferias escolares, sem que dê
combina, numa disposição original, ele- lugar ao conflito ou à emergência de or-
mentos reproduzidos dessa ordem estrutu- dens (de acção) contraditórias.
5
Para uma síntese das principais focalizações da problemática da cultura organizacional, remetemos o leitor para os nossos
trabalhos (TORRES, 1997, 2004), onde debatemos as várias correntes e perspectivas teóricas em confronto.

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Ao reflectir as semelhanças culturais que colar) só adquirem intelegibilidade socio-


perpassam nos mais diversos contextos esco- lógica quando desopacificados e recriados
lares, a “cultura escolar” encerra, deste modo, a partir da interacção humana não estru-
um duplo sentido fenomenológico, consoante turada, desordenada, aleatória e fluida
a óptica de análise: quando o ângulo de pers- (cultura organizacional escolar). Por outras
pectivação se restringe ao campo da educa- palavras, as “regras formais”, por mais
ção formal, a “cultura escolar” recobre os sen- maciças e impositivas que se apresentem,
tidos teóricos sugeridos pela categoria “cultu- só são culturalmente estruturantes e indu-
ra genérica” (PROSSER, 1999, p. 8) ou pela toras da reprodução se a sua aplicação
noção de “cultura institucional” (PÉREZ GÓ- puder ser suspensa, modelada, extravasa-
MEZ, 1998, p. 127), fazendo sobressair os da ou subvertida por um conjunto de prá-
aspectos culturais (normas, estruturas, rituais e ticas, de jogos sociais que quotidianamen-
tradições, valores e acções) mais ou menos te desafiam a ordem prescrita e estabeleci-
estabilizados (pela previsibilidade) que atraves- da. A apreensão das descontinuidades cul-
sam holisticamente o sistema escolar; entre- turais entre estas duas realidades parale-
tanto, se a óptica de leitura da realidade extra- las, que ora geram estabilidades relativas
vasar o campo educativo para recair sobre a ora induzem novas instabilidades resultan-
totalidade da realidade organizacional, a ex- tes dos jogos sociais, permite perceber o
pressão “cultura escolar”, passa a traduzir, complexo processo de construção da “cul-
para além deste primeiro sentido, a especifici- tura organizacional escolar”. Neste senti-
dade cultural do sistema escolar em contra- do, julgamos estar próximos da concepção
ponto com outras singularidades culturais cons- de “regulação mista” proposta por Fried-
titutivas de outros sistemas sociais, como, por berg (1995b, p. 153) para explicar o duplo
exemplo, o sistema de sáude, o sistema de jus- sentido da regulação: ao mesmo tempo que
tiça, o sistema produtivo, entre outros. as estruturas e as “regras formais” cons-
trangem e restringem a acção, designan-
Enquanto o cenário sugerido pela “cul- do-lhe os locais e os protagonistas, elas
tura escolar”, resulta da pressuposição são, por sua vez, reestruturadas, curto-cir-
básica de uma relação de continuidade e cuitadas e contornadas pelas negociações
isomorfismo entre as orientações normati- e pelas regras alternativas necessárias ao
vas e culturais e os contextos de acção con- seu desencadeamento:
cretos, o segundo cenário por nós aludido, Um grande número de contextos de ac-
a “cultura organizacional escolar”, pretende ção, nos domínios mais diversos, são,
evocar a importância dos contextos endó- de facto, estruturados e regulados por
genos de acção no processo de constru- uma combinação de regras, de disposi-
ção da cultura organizacional. tivos, de mecanismos, de convenções e
de contratos formais e informais, explí-
Sendo ambos os cenários co-constituti- citos e implícitos; em todos, a ‘regra
constitucional’ apoia uma ‘prática cons-
vos da realidade escolar, faz sentido tomá-
titucional’ que se afasta da primeira ao
los como referência empírica para a com-
mesmo tempo que a apoia, que a enfra-
preensão dos processos de construção cul-
quece em certos pontos ao mesmo tem-
tural. Inextrincavelmente ligados, os con- po que a reforça noutros, e vice-versa.
textos estruturais formalizados (cultura es- (FRIEDBERG, 1995b, p. 153-154).

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Constituindo uma espécie de “entrepos- instituídas, susceptível de promover um de-


to” teórico, a agenda da “cultura organi- bate em torno de quatro eixos fundamen-
zacional escolar”, ou na esteira de Prosser tais: i) das orientações culturais exógenas
(1999, p. 8) “cultura única”; e na perspec- (cultura escolar), consubstanciadas nas “re-
tiva de Pérez Gómez (1998, p. 199), “cul- gras formais”; ii) das apropriações cultu-
tura experiencial”, ao mesmo tempo que rais endógenas (cultura organizacional es-
ganha expressão, amplitude e pertinência colar), processadas a partir do desenvolvi-
analítica, tornando-se num significativo mento de lógicas de acção (jogos sociais)
ponto de chegada, deve ser impelida, en- plurais; iii) da apreensão das relações en-
tretanto, para o enfrentamento de novos tre os dentros e os foras da organização
desafios, agora de natureza mais empírica, escolar, a partir do grau de permeabiliza-
inflectindo o seu anterior sentido e transfi- ção da escola ao meio/comunidade envol-
gurando-se num novo ponto de partida. E vente; iv) em consequência, da natureza
neste sentido, tal desafio exigiria um enfo- das manifestações culturais sedimentadas
que cultural sobre as dinâmicas de funcio- no tempo e conferidoras de uma identida-
namento do contexto escolar, historicamente de cultural distintiva.

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Recebido em: 30/11/2004


Aceito para publicação em: 21/11/2005

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