Você está na página 1de 7

SOBRE A POLUIÇÃO DOS NOSSOS INSTINTOS

Resenha crítica: Genealogia da Moral de Nietzsche

Javier Andrés Claros Chavarría

A modo de introdução/apresentação
Inicialmente, acho necessário admitir que a primeira coisa que eu disse quando
comecei este trabalho foi: “Resenhar a Genealogia da Moral de Nietzsche?, eu me meti numa
enrascada!”. Eu sociólogo, como poderia fazer uma resenha critica de um autor que desde já é
um crítico que aposta por uma nova forma de pensar a filosofia, por uma nova forma de
entendê-la e escrevê-la.
Igualmente, enquanto tentava escrever este texto, produto da conjunção de muitas
emoções e questões, veio à minha cabeça as palavras que minha orientadora de graduação me
dizia: “cuidado com os amores passageiros”. Ela usava frequentemente esta frase para que eu
tenha cuidado de não “apaixonar-me” por certos autores, já que no caso de que isto acontecera
iria obscurecer e condicionar minha postura crítica sobre um determinado projeto académico.
As palavras da minha então orientadora estavam presentes novamente ao ler Nietzsche —um
novo "amor" que veio à minha vida?— disse para mim mesmo. A verdade é que até agora não
tenho resposta para essa pergunta, no entanto, não vou negar que a leitura da Genealogia da
Moral (2017) gerou sentimentos desconcertantes e excitantes ao mesmo tempo. Um autor tão
complexo, como ele sozinho, moveu em mim emoções fortes, emergindo inquietudes da parte
mais profunda do meu ser, inquietudes que me levaram a me perguntar, ao igual que ele,
sobre quais são as condições ou circunstancias dos quais os valores morais surgiram?, ou em
outras palavras, qual seria a origem do nosso “bem” e do nosso “mal”?.
Ambas perguntas norteiam a proposta de Nietzsche, quem a semelhança de um
cirurgião faze uma dissecção do corpo moral e apresenta cada parte, isto é, cada laço
protomoral, para que nós possamos compreender quais foram as condições sentimentais e
motivarias de nossos preconceitos morais consolidados dentro da pele social. Ele procura
abrir a fruta podre para encontrar as raízes de sua putrefação com o objetivo de voltar ao
instinto da liberdade. Nesse sentido, a filosofia moral do autor, como projeto, é uma filosofia
a marteladas, o que quero dizer com isso?, pois, que a genealogia nietzschiana tem um
propósito: destruir para construir, portanto para o autor esta ação seria entendida como uma
agressividade afirmativa, positiva. Desse modo, identificados os sintomas de um determinado
problema prossegue aprofundar sobre as condições em que apareceram estas sinais, ou seja,
indagar sobre o origem da doença.
Nietzsche faz exatamente isso, com sua proposta genealógica da moral, entendida
como uma reflexão do “Humano, demasiado humano” (1986)1, a moral é abordada como um
modo de visão essencialista que se apresenta e adota formas de sentir, pensar e agir
representadas em sistemas culturais fundamentalistas. O autor questiona através de sua
filosofia moral a imposição das diversas normas, regras e leis dos sistemas culturais, das
teodiceias, que condicionam o desenvolvimento dos sentires, pensares e ações dos indivíduos
em um cenário onde os instintos deles são poluídos, punidos, asfixiados, reprimidos, mas não
vencidos.2
Sobre o tipo da escrita da obra, como Nietzsche nos acostumou ao longo de seus
trabalhos, sua vontade de poder quebra com o tipo tradicional de discurso. Assim, a partir de
uma espécie de monologo —que em momentos se torna numa conversa interessante— o autor
rompe com os marcos referenciais de escrita de sua época através de uma escrita radical e
critica. Particularmente, os aforismos, máximas e poemas resumem a estilística da escrita do
autor como o modo de expressão do seu pensamento, isto é, que através do modelo ou matriz
argumentativa proposta do autor tenta movimentar a afetividade do leitor para que ele seja
desafiado e interpelado pelo projeto filosófico nietzschiano.
Em fim, bem ou mal, tendo introduzido/apresentado/iniciado a resenha, precisamos
fazer duas coisas, a primeira é respirar fundo e a outra é dividir —não ordenar e organizar,
não, nesta humilde proposta rejeitamos toda forma de ordem— a resenha em secções com o
proposito de que o leitor possa compreender de maneira satisfatória o que mencionei nos
parágrafos anteriores, isto é, os aspectos positivos e negativos segundo o meu ponto de vista, e
sobre tudo, o mais importante, o que Nietzsche tem para falar, questionar e propor em sua
obra. A obra Genealogia da Moral está dividida em três ensaios dos quais vou pegar os
principais fios condutores que, desde minha perspectiva, guiam o pensamento do autor no
percorrer argumentativo.
A moral do nobre e a moral do escravo
Para o autor os origens etimológicos das palavras “bem” e “mal” são os que
condicionaram o construto histórico moral sob o qual as sociedades modernas foram
construídas. Foi atribuído ao “bom” um valor superior ao “mal”, apresentado uma serie de
distinções para o mundo onde certos indivíduos dominaram e impuseram uma construção de

1
A questão sobre o origem de nossos preconceitos morais foi abordada por Nietzsche com anterioridade nessa
obra.
2
Referencia ao livro de Silvia Rivera Cusicanqui intitulado “Oprimidos, pero no vencidos” (2010), no qual a
autora aborda as lutas dos camponeses aymaras e quechwas em Bolivia. O pensamento da autora postula que o
índio não é uma ideia fixa ou estancada, ele está inserto em colonialismo interno complexo.
valores em detrimento de outros indivíduos considerados inferiores. Nesse sentido, a moral
crio para os humanos o páthos de distancia, entendido como essa linha fronteiriça entre uns e
outros, ou seja, entre os que têm o aceso para exercer poder e se aproveitam do direito de criar
e impor valores e o rebanho que obedece.
Para Nietzsche a concepção da moral mudou de sentido de acordo às atribuições que
os indivíduos outorgavam ao “bem” e “mal”. Assim, a moral transitou por duas etapas: a
moral do nobre com um caráter reducionista, é aquela só para os distinguidos, uma moral
estabelecida na distinção para gerar controle: eu posso controlar porque tenho algo que você
não tem. Nesta etapa “bom” é nobre, ou seja, tem que ver com o momento em que o “bom”
divide o superior e o inferior, o termo é associado a certas categorias e características que o
homem deveria ter: nobre, alto, refinado, etc. Desse jeito, estas características foram
apropriadas por aristocratas que autoritariamente assumiram o papel dominador em contraste
com tudo o que era baixo, de mentalidade inferior e origem vulgar.
Na decadência da nobreza a palavra “bom” adquire um novo significado, um
supraterrenal, considerado com um tipo de “nobreza espiritual”. É assim, que surge a moral
do escravo, que ao contrario da moral do nobre, tem um caráter extensionista: eu posso
controlar no momento em que todos pensem e atuem como eu, controlo tua vida porque você
esta fazendo as coisas que eu faço, eu e você nos redimiremos mediante a promessa. Para o
autor, a moral do nobre é só para o distinguido, isto é, que eles pensam para se mesmos, no
entanto a moral do escravo precisa de outro do excluído/oposto. Mas, ambos tem um
antagonista que faz que sua moral seja superior às outras, ou seja, o nobre por mais que ele
pense só para ele precisa de outro para se sentir alto, nobre, distinguido. A diferença radica
em que a moral do escravo gosta de misturar-se com os extremos com os opostos e assim
mostrar sua pureza, seu estado certo, em quanto a moral do nobre no quer misturasse, eles são
felizes afastados e, nesse afastamento, é que eles mostram sua pureza. Em resumo, se da uma
inversão da equação dos valores aristocráticos: “bom”= nobre; poderoso; belo; feliz; amado
por Deus; para “bom”= fracos, sofredores; doentes; feios; mas bem-aventurados. Mudam o
privilegio e comodidade por sofrimento e sacrifício, fato que exibe claramente como cada
sistema cultural inverte os valores morais de acordo a seus interesses num fundamentalismo
que tem o objetivo negar aos outros.
No contexto atual ambas morais convivem juntas e criaram híbridos de rebanhos que
assumem roles a partir das posturas dos detentores da moral. De um lado estão os que
“seduzem” aos rebanhos mediante sua “evangelização” mostrando-se diferentes de outros,
eles querem evidenciar que estão no certo e os demais não; e por outro lado estão os que
mantem o “segredo” para se mesmos, aqueles que procuram uma moral enclasante, só para
eles.
Nietzsche situa a reação do ressentimento como ponto de partida da moral,
particularmente da construção da moral do escravo. O ressentido precisa de um antagonista
para surgir, ele quere que o “mal” pague as consequências e apresenta sua moral na
necessidade de reagir contra o outro. Então, nessa lógica, poderíamos alegar que a moral do
nobre é construída a partir do “bem”, em quanto, a moral do escravo é em realidade
construída desde o “mal”. O ressentido pode ser pobre ou rico, mas ele só quer mostrar que
está no certo e que o mundo inteiro está incorreto, aquela moral que os nobres rejeitavam,
venceu.3
A ideia fixa como o habitus moral
Na Genealogia da Moral, a noção da ideia fixa é entendida como a paralização do
julgamento de valor produto da rotinização da moral que impor um esquecimento nos
indivíduos. A fixação dessa ideia é explicada no essencialismo não histórico, entendido como
esse essencialismo que se apresenta como fixo e anacrônico que constrói e organiza a
sociedade numa essência que se volta para o conhecimento, para a ciência, para o sangue,
para a raça, para o domínio. Este esquecimento é feito para imprimir uma memoria, uma
consciência de promessa, responsabilidade e culpa, logo os valores morais tornam-se inatos,
omnipresentes e inesquecíveis, e são interiorizados nos indivíduos.
Esta interiorização da que Nietzsche fala pode ser compreendida como um habitus4
moral, ou seja, a interiorização dos modos de distinguir o “bem” e o “mal”, o puro e o impuro,
com o objetivo de doutrinar aos indivíduos para reproduzir estilos de vida e praticas que são
meios para evitar que ideias contrarias concorram contra as ideias “legitimas”, isto é, meios
para torna-as inesquecíveis, rotinizá-as num habitus. No obstante, nesse processo identifica-se
outro tipo de interiorização na que nossos instintos são reprimidos para dentro produto do
habitus da moral. Desse modo os indivíduos são obrigados a reprimir seus instintos negando
sua verdadeira natureza, limitando sua liberdade.
Nesse sentido a memoria da humanidade é o resultado da impressão de interesses de
um determinado sistema cultural que torna ao ser humano previsível, regular, com medo e
3
Por exemplo, os sistemas culturais modernos, como o Estado-Nação, capturaram esse ressentimento para
expressar um devir melhor, um horizonte comum apresentado como melhor para todos garantido por uma
moralidade nacional. Assim, a burguesia, máxima consumidora dos valores morais, se apropriou deles e
apresentou um projeto cultural, no que o “bem”, além de ser nobre e correto, foi apresentado desde uma
perspectiva sacralizada representada nas normas e leis, e associada a uma identidade e uma etnicidade.
4
O habitus é entendido como a interiorização da estrutura social em sua posição e praticas dentro da estrutura de
uma classe social, onde o individuo contribui a sua produção e reprodução de estilos de vida parecidos
(BOURDIEU, 2007).
culpa mediante a moralidade dos hábitos e a força social refletida nos mecanismos de
punição. O individuo aprende a pensar de forma causal e ao momento de falar o agir ele tem
que pensar em que poderá acontecer quando vai a executar o “eu quero” ou o “eu vou fazer”.
Em resumo, no processo de estabelecimento dos valores morais, em um inicio se
aposta por o esquecimento para imprimir uma memoria, mas para que essa memoria não seja
esquecida foi necessário garantir certos sistemas de leis e normas punitivas, isto é, mediante o
medo e a culpa garantiram que o individuo lembre da memoria impressa e esqueça o origem
da ideia fixa. Assim, o individuo que não cumpre com as exigências da convivência social é
castigado para que a través do dor e a humilhação não esqueça sua posição, suas obrigações e
seus direitos, em outras palavras, sua moral. Além disso, é importante apontar que a punição
cumpriu (e cumpre) uma dupla função, já que além de castigar ao individuo serve como
exemplo para toda a sociedade no caso que eles quisessem esquecer as normas e leis. Daí
também que surge a razão para que o indivíduos ajam de forma “certa” e não “errada”.
Ação versus reação
Outro assunto relevante que Nietzsche trata na Genealogia da Moral tem a ver com a
concepção da ação e reação. A primeira tenta transformar os opostos em uma sola força que
vai em muitas direções. A ação é atividade enquanto a reação é ressentimento e sofrimento
que procura absorver o projeto societal numa única força e direção, isto é, um processo de
nadificação. O confronto entre a ação e reação é explicado na tensão entre as forças vitais.
Desta forma, a pessoa ativa, como indivíduo agressivo afirmativo, possui um olhar
mais forte, mas audaz, ou seja, com uma consciência livre de culpa. Mas no extremo,
encontra-se a pessoa com a consciência pesada, o ressentido, que vive com culpa e com a
moral da compaixão que é a vontade da nada, e portanto, mediante um processo de
nadificação, eliminam-se as diversas possibilidades/multiplicidade para concentrar-se numa
única opção.
Assim, a ação é a força ativa, a vontade de poder, o instinto de liberdade, uma tensão
positiva. Mas esta vontade de poder pode-se tornar lenta, adormecida, distendida, fixa,
autoritária, nadificada. Por isso, para Nietzsche, a vida é marcada pelas tensões e o que
espera-se em realidade é que as tensões possam ser metabolizadas, transformadas em: nobreza
e alegria expressada em diversas direções.
Conclusões
A partir da Genealogia da Moral, Nietzsche questiona todos os ordenes estabelecidos,
os projetos culturais, os sistemas culturais constituídos e impostos. Para ele a moral se
estabeleceu como um tudo que afeitou à partes do corpo social reprimindo os instintos. Ele
localiza no antagonismo binário “bem” e “mal” toda a construção moral representada nas
formas de governo, espiritualidade, identidade, sexualidade, etc. De esse modo, poderíamos
disser que ele é um dos primeiros deconstrutores do corpo social que busca destruir para
construir.
Nossa humanidade artificial ficou decadente, nossas categorias e representações que
capturaram as forcas vitais e nossos instintos não convencem mais porque ficaram
anacrônicas. Se Nietzsche considerava que a cultura de seu tempo era decadente, quão
decepcionado se sentiria ao evidenciar que em nosso contexto atual os valores morais se
estabeleceram como um terreno fértil no que os indivíduos lutam pelo reconhecimento e a
aprovação de um grupo particular dono dessa moral. O homem decadente, o medíocre, o
ressentido, ainda esta calando no mais profundo da vida social. Acho que o instinto do
rebanho que falava alto no momento que o autor escrevia a obra, no contexto atual é
ensurdecedor.
A violenta separação do passado animal/natural para a vida artificial/cultural, processo
traumático, levo para o ser humano tornar-se ressentido, triste, fora de si, ocasionando que ele
mesmo declare a guerra a seus antigos instintos sob novas experiências fundamentadas no
ódio e a diferença. Assim, para legitimar os valores morais foi necessário a invenção de
homens imaginários que possam respaldar a promessa de uma vida e um futuro melhor que
aquele passado selvagem e imoral. Nesse sentido, esta violenta separação não pode ser outra
coisa que uma poluição dos nossos instintos.
Concluindo, a Genealogia da Moral é um livro totalmente recomendável e aplicável a
nosso tempo, a nossa realidade, a nossos contextos interpelando ao leitor no profundo de sua
alma, de seu ser, de sua cotidianidade. Ao ler esta obra compreendi que as revoluções não
necessariamente têm que ser aquelas nas que morrem indivíduos por uma causa, cheias de
sangre, as revoluções também podem estar em outros planos, em livros. Nietzsche foi um
autor cujo projeto filosófico revolucionaram a vida social, sua revolução acendeu o pavio para
que muitos acadêmicos iniciem seus próprios projetos. Eu mesmo, depois de ler a Nietzsche
não posso voltar a ser o que eu era, de algum modo seus argumentos removeram a bandagem
que não me permitia ver os sistemas que me reprimiam, limitavam e desnaturalizavam. Acho
que hoje, mais que nunca, seus argumentos podem dar as luzes que precisamos para repensar
nossa sociedade, manter o arco tenso é a tarefa.
Referências
BOURDIEU, P. A distanção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, Porto Alegre,
Rs: Zouk, 2007.
NIETZSCHE, F. Genealogia da moral. São Paulo: Martin Claret, 2017.
RIVERA, S. Oprimidos pero no vencidos. La Paz: Mirada Salvaje, 2010.

Você também pode gostar