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Justiça Distributiva: A Crítica de Sen a Rawls

Álvaro de Vita

Que concepção de justiça distributiva melhor traduz as preocupações daqueles que têm
sentimentos igualitários fortes? Esta questão constitui o foco de um dos debates mais importantes,
na teoria política normativa contemporânea, que se estruturaram a partir da publicação de Uma
Teoria da Justiça, de John Rawls, em 1971. Neste artigo examinarei a contribuição de Amartya Sen
a esse debate, confrontando-a com as formulações de Rawls 1. Em outro trabalho, examinei a
posição utilitarista, que tanto Rawls quanto Sen rejeitam, com respeito à mesma questão (Vita,
1995). A discussão agora se restringirá ao que se pode entender como uma "briga em família". O
exame dessa controvérsia vale a pena como parte de um esforço para aclarar as idéias normativas
que empregamos ao lidar com questões de justiça, desigualdade e pobreza.
Sen não propôs, de fato, uma teoria da justiça alternativa à de Rawls, em parte porque seu
"enfoque da capacidade" é, em vários aspectos (como veremos), tributário das estruturas normativa
e ideológica da teoria de Rawls. Mas não se trata somente disso. Uma teoria da justiça é, em
essência, uma proposta de equilíbrio entre as exigências de valores políticos tais como a liberdade, a
igualdade, a solidariedade e a eficiência, que são conflitantes mesmo dentro da tradição política na
qual esses valores têm uma saliência maior. Uma concepção de justiça não propõe que se acrescente
mais um valor a essa lista e sim uma forma específica de arbitrar as exigências e o peso relativo
desses valores políticos centrais. Rawls argumenta que sua proposta de arbitragem é a que melhor
acomoda (e os estende de forma plausível) os "julgamentos ponderados de justiça" que ocupam um
lugar central na tradição política democrática (Rawls, 1971:48-51). O enfoque normativo de Sen
não tem essa abrangência. Ainda que aceitássemos sua noção de "igualdade de capacidades" como
sendo a interpretação mais correta das exigências da igualdade distributiva, ficaríamos sem saber
como o enfoque em questão acomoda convicções sobre o valor das liberdades fundamentais ou do
império da lei. O que Sen nos propõe não é propriamente uma teoria da justiça e sim uma
concepção de justiça distributiva em sentido estrito. É nesses termos que vou examiná-la a seguir,
com o propósito de investigar em que medida representa, como quer Sen, um avanço genuíno em
relação àquela defendida por Rawls.

I
A questão de ordem mais geral dessa discussão é: se temos convicções igualitárias, em que
aspectos ou com respeito a que deveríamos ter por objetivo tornar as pessoas tão iguais quanto
possível? Com base em que deveríamos comparar os níveis relativos de vantagem ou de benefício
individual? Essa questão, que é central para o pensamento político igualitário, mereceu bem pouca
atenção dos teóricos e pensadores igualitários que precederam Rawls. Da resposta que a ela se dê
depende a especificação dos objetivos para os quais as instituições e políticas igualitárias –
existentes ou propostas – devem estar orientadas.
Assim como Rawls, Sen esforça-se por identificar um espaço de avaliação normativa
intermediário entre uma concepção plenamente objetiva de bem-estar e uma outra inteiramente
1 Desde sua Tanner Lecture de 1979 (Sen, 1980), Sen publicou um volume impressionante de textos (um dos quais,
Sen, 1993b, publicado no Brasil) sobre o tema. As idéias centrais de seu enfoque normativo, no entanto, estão muito
bem representadas em (Sen 1985b; 1992).
subjetiva ("welfarista"). Concepções plenamente objetivas, ou "perfeccionistas", não têm como lidar
com um dos componentes centrais daquilo que Rawls denominou "circunstâncias da justiça"
(idem:seção 22): o pluralismo moral. Nas sociedades modernas, sobretudo nas liberal-democráticas,
rejeita-se a crença – que pode ter sido considerada verdadeira, por exemplo, pelos cidadãos da pólis
grega – de que há somente uma forma de vida ou de atividade na qual as formas de excelência
moral e intelectual que são distintivas do ser humano podem se desenvolver. Alguns acreditam que
a distribuição social de direitos, deveres, oportunidades e recursos deveria obedecer às exigências
de um ideal de cidadão ativo e de democracia participativa. Outros, no entanto, podem considerar
que a vida do cidadão ultraparticipativo é alienante e talvez prefiram contar com autoridades eleitas
e responsabilizáveis que os liberem para empregar seus quinhões de recursos sociais escassos para
promover as formas de excelência artística, científica ou religiosa que consideram ter um valor
intrínseco2. Não há como comparar quinhões distributivos tendo por referência concepções
incomensuráveis sobre o que é que torna a vida humana digna de ser vivida.
Mas a recusa ao perfeccionismo moral não deveria nos levar a adotar uma concepção
"welfarista" de bem-estar. Uma concepção desse tipo estima o bem-estar de uma pessoa unicamente
em termos de suas reações mentais ou apreciações subjetivas. Há duas variantes principais (duas
acepções de "utilidade" individual): os estados mentais podem ser avaliados por um cálculo
benthamita de prazer versus dor; ou as apreciações subjetivas do agente podem ser levadas em
conta mediante um cálculo de satisfação versus frustração de desejos e preferências. Esta segunda é
hoje, de longe, a mais influente das duas e impera em áreas do conhecimento tais como a economia
do bem-estar, a filosofia moral e política utilitarista, e os enfoques "econômicos" sobre a
democracia e a justiça. Tratei da métrica welfarista de estimação do bem-estar em outra parte (Vita,
1995), mas parece-me indispensável retomar brevemente as razões pelas quais Sen a rejeita.
Não se trata somente da dificuldade, normalmente apontada na literatura da economia do
bem-estar, de realizar comparações interpessoais de utilidade que levem em conta, como seria
necessário para uma teoria da justiça distributiva que adotasse a métrica subjetiva, também a
intensidade dos desejos e preferências. Antes disso, há o problema de por que desejos, e mesmo
desejos intensos, devem ser considerados como a fonte única daquilo que tem valor no bem-estar de
uma pessoa. Quando desejos e preferências são tomados não como uma evidência de que algo é
valorizado, mas sim como a fonte única de valor, nossa avaliação de níveis relativos de bem-estar
tenderá a tomar como pontos de partida legítimos desejos que podem não significar outra coisa que
não adaptações, não raro penosas, a circunstâncias arbitrárias. Esse problema se apresenta,
sobretudo, nos contextos de destituição e desigualdades profundas e arraigadas, que tenderão a ser
naturalizadas pela métrica welfarista:

"[...] nossa interpretação do que é possível em nossa situação e posição pode ser crucial
para a intensidade de nossos desejos, e pode afetar até mesmo o que ousamos desejar. Os
desejos refletem compromissos com a realidade, e a realidade é mais dura com uns do que
com outros. O destituído desesperançado que deseja somente sobreviver, o trabalhador
sem-terra que concentra seus esforços em garantir a próxima refeição, a empregada
doméstica em regime de dia-e-noite que anseia umas poucas horas de descanso, a dona de
casa subjugada que luta por um pouco de individualidade podem ter, todos eles, aprendido a
ajustar seus desejos a suas respectivas condições. As destituições que sofrem são
silenciadas e abafadas pela métrica interpessoal da satisfação de desejos. Em algumas
vidas, as pequenas mercês têm de contar muito." (Sen, 1985a:191)

2 Ver nota 9 abaixo para um tópico similar explorado por Sen.


Não é infreqüente que as vítimas da destituição e de desigualdades arraigadas, talvez para
evitar o sofrimento causado por dissonância cognitiva, desenvolvam desejos e preferências que, por
exigir muito pouco dos recursos sociais escassos, acabam por reforçar essas mesmas
desigualdades3. Em um nível mais elevado de abstração, esse "argumento das pequenas mercês"
evidencia a relação inadequada que as concepções subjetivas de bem-estar estabelecem entre
desejos e valor. Desejar algo, mesmo intensamente, não é uma razão suficiente para julgar –
sobretudo da ótica de uma teoria da justiça social – que algo valioso esteja em questão 4.
Considerando que valorizar – conferir valor moral a alguma coisa – é uma atividade
reflexiva, de uma forma que meramente desejar ou ter uma preferência não o é, o mais plausível,
sustenta Sen, é inverter a relação: porque algo tem valor, isto constitui uma razão para o agente
desejá-lo ou preferi-lo (Sen, 1985a:189-190; 1985b:31-32). Avaliar a vantagem individual de
pessoas submetidas à destituição e a desigualdades profundas somente por seus desejos e
preferências efetivos significa corroborar a injustiça de que são vítimas. Essa avaliação, para Sen,
terá de recorrer a escolhas ou preferências "contrafatuais" (Sen, 1992:64-69). Temos de perguntar
pela vida que a pessoa escolheria viver se não estivesse submetida a certas circunstâncias
arbitrárias. Uma pessoa escolheria, se pudesse fazê-lo, viver uma vida na qual estivesse livre da
morte por moléstias facilmente curáveis, de epidemias controláveis por políticas preventivas
apropriadas e da destituição extrema. A idéia tem mais força quando as escolhas contrafatuais têm
por objeto a eliminação de coisas que são evidentes malefícios. (Teremos de voltar a esse ponto
adiante, para ver se não há aqui uma objeção ao enfoque de Sen.) Mas é suficiente para explicitar as
razões pelas quais a métrica welfarista pode levar a avaliações inaceitáveis da vantagem individual5.

II
E onde encontrar um fundamento normativo para a avaliação dos níveis relativos de
vantagem individual que rechace o welfarismo sem com isso recair em uma concepção
perfeccionista de bem-estar? O problema da seleção do "espaço avaliatório", como diz Sen, é
central porque não há como tornar as pessoas iguais simultaneamente em todas as dimensões que
podemos considerar importantes para avaliar a vantagem individual. A razão para isso é a
diversidade humana. As pessoas diferem em suas circunstâncias sociais (renda, riqueza, nível
cultural e educacional da família), em seus talentos e capacidades naturais (incluindo-se aí quão
saudável é a saúde de uma pessoa), em seus gostos e preferências e em seus valores. Nenhuma
concepção de igualdade distributiva pode tornar as pessoas iguais em todas essas dimensões ao
mesmo tempo, das circunstâncias sociais ao nível de realização das preferências e valores de cada
qual. A opção por igualizá-las em uma dessas dimensões implica aceitar que elas sejam desiguais
em outra.
Vamos supor que adotemos a métrica utilitarista discutida na seção anterior e que
consideremos que aquilo que realmente importa para os igualitários é tornar as pessoas tanto quanto
3 O "argumento das pequenas mercês" de Sen é complementar à crítica de Rawls às implicações distributivas
inaceitáveis da métrica welfarista também no caso daqueles que desenvolvem "gostos caros" (ver Rawls, 1982 e Vita,
1995 para uma discussão mais desenvolvida).
4 "[...] o fato de termos um desejo intenso não diz nada sobre a propriedade de satisfazê-lo, do mesmo modo que a força
de uma convicção não nos diz nada sobre sua verdade" (Rawls, 1982:191).
5 Mesmo com respeito aos itens que certamente fariam parte de uma lista de "malefícios evidentes", note-se que uma
pessoa pode não desenvolver um desejo de não estar sujeita a epidemias controláveis, por exemplo, simplesmente
porque não vê isso como uma possibilidade real para sua vida. Sua própria escala de preferências pode não priorizar a
eliminação desses malefícios.
possível iguais nos níveis de utilidade individual (ou de "felicidade") efetivamente alcançados.
Nesse caso, uma distribuição muito desigual de recursos materiais e de oportunidades seria
necessária para equiparar os níveis de utilidade daqueles que desenvolvem gostos e preferências
dispendiosos aos daqueles que aprenderam a ajustar suas expectativas às circunstâncias penosas de
suas vidas. A igualdade de níveis efetivos de utilidade implica uma profunda desigualdade em outro
espaço de avaliação, em benefício daqueles que necessitam de quinhões maiores desses recursos
para alcançar o mesmo nível de utilidade de outros cujos gostos são mais modestos. Ou então,
vamos supor que os igualitários só se preocupassem em tornar a distribuição da renda tão igual
quanto possível. Políticas igualitárias limitadas a esse objetivo implicariam quinhões muito
desiguais de benefício individual, pois, dadas as variações de dotação natural, permaneceria
desigual a capacidade de converter um quinhão eqüitativo de renda nas realizações que cada um
julga serem valiosas. Uma pessoa portadora de uma deficiência física severa, por exemplo, terá
muito mais problemas que uma pessoa saudável para converter um mesmo nível de renda nos
objetivos que considere ser valiosos para sua vida (idem:20). Esse não é um argumento contra
distribuir renda, mas certamente é um argumento contra restringir as preocupações igualitárias
somente à distribuição de renda.
A forma de igualdade com a qual os igualitários deveriam se preocupar, segundo Sen, é a
"capacidade igual de funcionar" de várias maneiras. Aqui não há como não introduzir alguma
terminologia. O que realmente importa não são as "titularidades" de bens e recursos, de per se, e
sim os estados e atividades valiosos – que Sen denomina functionings – aos quais esses bens e
recursos possibilitam que as pessoas tenham acesso. Exemplos de functionings valiosas são a de
estar adequadamente nutrido e vestido, estar livre de epidemias e da morte por doenças facilmente
curáveis, ser alfabetizado, poder aparecer em público sem sentir vergonha de si próprio,
desenvolver um senso de auto-respeito, ser capaz de participar de forma ativa da vida da própria
comunidade6.
A noção normativa mais abrangente no enfoque de Sen não é a de functioning, enquanto tal,
e sim a de capacidade. As functionings constituem os ingredientes do bem-estar; e as functionings
que uma pessoa consegue realizar (ou ter acesso) em sua vida definem o nível de bem-estar
efetivamente alcançado. Mas o bem-estar alcançado não é, para Sen, uma medida suficiente da
vantagem ou do benefício individual. As comparações interpessoais de vantagem deveriam se
basear sobretudo na liberdade de alcançar bem-estar.
Abro um parênteses para um esclarecimento. O esquema analítico de Sen é ainda um pouco
mais complexo do que isso. A vantagem de uma pessoa pode ser estimada em duas dimensões
distintas: a da "agência" e a do bem-estar. A primeira tem a ver os objetivos que só têm sentido da
ótica das convicções e valores do próprio agente. Trata-se precisamente da mesma coisa que Rawls
identifica como as concepções do bem ou os "planos de vida" que os indivíduos definem para si
próprios. Ambas as dimensões, além disso, podem ser pensadas em termos de "liberdade de realizar
ou alcançar" (bem-estar ou os "objetivos de agente") ou em termos de "realização efetiva" (de bem-
estar ou dos objetivos de agente). Isso nos deixaria com quatro "equalizanda" possíveis 7.
Felizmente, o próprio Sen (1992:71-72; 1993a:36) encarrega-se de esclarecer que as duas
6 Sen não apresenta uma lista canônica das functionings relevantes para as comparações interpessoais de benefício. As
que menciono neste parágrafo aparecem em Sen (1993a:21). Apesar de argumentar que o bem-estar deve ser avaliado
por referência a functionings e não por referência a utilidades individuais, Sen de certa forma enfraquece seu argumento
anti-welfarista ao supor que a felicidade (no sentido utilitarista) pode ser incluída na lista de functionings valiosas (ver,
p. ex., Sen, 1985b:52).
dimensões não são igualmente importantes para uma teoria da justiça distributiva. Alguém se
empenhar para construir um templo suntuoso para a divindade na qual acredita é parte de sua
liberdade de agência. Mas não supomos que esse objetivo, por mais valioso que seja aos olhos do
próprio agente, deva ser apoiado por ação pública da mesma forma como acreditamos, em
contraste, que retirar uma pessoa da situação de miséria absoluta é um objeto apropriado de ação
pública. Para os nossos propósitos no momento, podemos restringir a discussão do enfoque
normativo de Sen à dimensão do bem-estar.
Voltemos ao ponto em que tínhamos parado. Sen pensa que é importante para a estimação da
vantagem individual não só o nível de bem-estar efetivamente alcançado, mas também a liberdade
que uma pessoa tem de escolher entre diferentes tipos de vida. E o nível dessa liberdade desfrutada
por uma pessoa constitui o que Sen denomina sua capacidade. Em termos técnicos, a capacidade
representa a liberdade efetiva que uma pessoa tem de escolher entre diferentes combinações
possíveis de functionings valiosas. A idéia é similar à de budget set empregada pela teoria
econômica do consumidor. O budget set de uma pessoa determina as n combinações possíveis de
bens, mercadorias e serviços que estão ao alcance dessa pessoa; da mesma forma a capacidade de
uma pessoa (seu capability set) determina as n combinações de functionings, dentre as quais ela
pode escolher uma.
E por que isso que para Sen é uma forma de liberdade – a capacidade de escolher entre
diferentes "bem-estares" – é importante? Há pelo menos três razões para valorizar a liberdade de
alcançar bem-estar (em contraposição ao bem-estar ou às functionings realizados). Em primeiro
lugar, tomar a capacidade como a medida fundamental da vantagem individual permite a Sen evitar
ter de apoiar sua visão normativa em uma concepção do bem-estar humano que antes (na seção I)
denominei "perfeccionista". O tema é correlato ao da "prioridade da justiça sobre o bem", que
Rawls argumentou ser uma característica central de qualquer concepção de justiça política
apropriada para uma sociedade liberal-democrática. A visão de Sen é antiperfeccionista porque dela
não se segue a idéia de que uma única forma de vida pode ser apontada como aquela que melhor
promove as qualidades intelectuais e morais do ser humano. Não se valoriza um tipo específico de
vida e sim a capacidade de escolher entre tipos de vida que as pessoas têm razões para valorizar.
Em segundo lugar, a ênfase na capacidade de efetivar diferentes combinações de
functionings distancia o enfoque de Sen de concepções welfaristas de bem-estar, pois em uma
sociedade comprometida com a igualdade de capacidade de funcionar, o nível de bem-estar que
cada um efetivamente alcança – quer se avalie isso em termos de utilidade individual quer se o faça
em termos de functionings realizadas – sempre dependerá das preferências, valores e escolhas de
cada qual. Diversamente do que se passa com a perspectiva welfarista, há um lugar importante
reservado à responsabilidade individual8. Uma pessoa que desenvolve gostos dispendiosos pode se
sentir profundamente infeliz com os complexos de functionings entre os quais pode escolher, ainda
que seu quinhão distributivo (em termos de capacidade) não seja inferior ao de outra, cujos gostos
podem ser mais facilmente satisfeitos. Ou então, o quinhão de recursos sociais escassos de que uma
pessoa dispõe lhe permite efetivar a functioning, "ter uma nutrição adequada", mas ela opta por
fazer jejuns prolongados por conta de seus valores religiosos. Nos dois exemplos, ainda que o nível
de bem-estar realizado possa variar muito, não há variação no que Sen denomina "liberdade de

7 Liberdade de bem-estar, nível de bem-estar efetivamente alcançado, liberdade de agência e nível de êxito dos agentes
na realização de seus objetivos.
8 Essa é uma característica que as teorias da justiça distributiva de Sen e Rawls têm em comum.
realizar bem-estar". Se damos peso à responsabilidade individual, a vantagem individual deve ser
avaliada, não pelo nível de bem-estar alcançado, mas sim pelas oportunidades que uma pessoa tem
de alcançar bem-estar (Sen, 1992:148-150).
Em terceiro lugar, a liberdade de escolha entre tipos diferentes de vida tem um valor
intrínseco que não é captado quando somente as functionings efetivadas são levadas em conta.
Mesmo quando o nível de bem-estar realizado de duas pessoas, Pedro e Maria, é exatamente o
mesmo, isto é, mesmo se ambos realizam ou têm acesso a uma idêntica combinação de
functionings, deveríamos considerar que a vantagem de Pedro é maior se ele pôde escolher essa
combinação dentre outras possíveis, ao passo que Maria não teve outra opção que não a de aceitá-la.
"A 'boa vida'", diz Sen, "é em parte uma vida de escolha genuína, e não aquela em que a pessoa é
forçada a viver uma determinada vida – por mais rica que possa ser em outros aspectos." (Sen,
1985b:70)9
Sen admite que observar capacidades é muito mais difícil do que observar functionings
realizadas. Pelo menos no que se refere às functionings básicas existem informações quantificadas
na forma de índices de desnutrição, de mortes causadas por epidemias e doenças curáveis, de
longevidade, de escolarização, de acesso à água potável, a ar puro e a serviços básicos de saúde, de
criminalidade. Muitas vezes, dada a precariedade empírica da construção de complexos de
capacidade, será preciso se contentar em relacionar o bem-estar a functionings efetivadas (Sen,
1992:52). Voltarei ao problema das exigências informativas do enfoque de Sen na seção V deste
texto. Pelo momento, quero evidenciar uma dificuldade que se apresenta em relação à linguagem
empregada por Sen.
Não é muito claro que a concepção normativa central de Sen deva ser considerada, como ele
quer, uma forma de liberdade. Sen acredita que sua noção de capacidade oferece uma interpretação
para a idéia de liberdade efetiva, entendendo-se por isso aquilo que uma pessoa é realmente capaz
de fazer com os próprios recursos, oportunidades e direitos. Na teoria de Rawls, há uma
preocupação similar com a liberdade efetiva, mas isso se expressa de uma forma que me parece
mais clara em termos conceituais. Permita-me comparar brevemente o que ambos dizem sobre esse
tópico.
Rawls (1971:204-205) distingue as liberdades fundamentais (os direitos civis e políticos
tradicionais) do "valor" dessas liberdades. Ainda que o esquema institucional de liberdades
fundamentais seja o mesmo para todos, dada a existência da pobreza e de desigualdades profundas,
alguns têm mais meios do que outros para se valer dessas liberdades para promover os fins que
consideram valiosos. Para os primeiros, as liberdades têm mais valor. Em vista disso, "a estrutura
básica da sociedade deve ser disposta de forma a maximizar o valor, para os menos favorecidos, do
esquema completo de liberdades iguais compartilhado por todos. Isso define o fim da justiça social"
(idem:205)10. Podemos dizer que o "fim da justiça social" consiste em maximizar a liberdade efetiva
dos menos favorecidos. O raciocínio completa-se com o argumento de que o valor das liberdades
fundamentais para os menos favorecidos é garantido mediante uma distribuição eqüitativa de "bens

9 Mas Sen (1992:59-66) também se dá conta de que a multiplicação de escolhas e decisões pode não significar uma
ampliação da forma de liberdade positiva que a noção de capacidade objetiva captar. A multiplicação de escolhas
triviais e a obrigação de participar de todo tipo de tomada de decisão de fato impedem que o agente possa optar por
certas formas de vida. Isso vai na direção da observação que fiz acima, na seção I, sobre considerar que a vida do
cidadão ultraparticipativo é a melhor vida para o ser humano.
10 Rawls (ver, p. ex., Rawls, 1993:356-363) supõe, além disso, que medidas redistributivas e instituições específicas
são necessárias para assegurar o "valor eqüitativo" das liberdades políticas. Discuto isso em Vita (no prelo, cap. 6).
primários", tais como a renda, a riqueza e as oportunidades de acesso às posições ocupacionais e de
autoridade mais valorizadas na sociedade. Ainda que as concepções de igualdade distributiva e de
liberdade sejam relacionadas nesse argumento de Rawls, elas são tratadas como conceitos
normativos distintos.
Sen, em contraste, por vezes parece estar tentando acomodar as exigências da igualdade e da
liberdade (efetiva) sob uma única noção normativa11. Note-se que por functionings valiosas se deve
entender tanto certas formas de atividade ("ser capaz de ler e escrever", por exemplo) quanto certas
formas de existência da pessoa cujo bem-estar se quer avaliar. Nessa avaliação, contam tanto as
atividades que a pessoa é capaz ela própria de realizar, uma vez que tenha acesso aos recursos
materiais e oportunidades necessários para isso, quanto os estados de existência que só lhe podem
ser proporcionados pela ação de outros (e que, portanto, não envolvem nenhum exercício de
atividade por parte do beneficiário dessa ação). Apesar de estar de acordo, em termos gerais, com o
enfoque de Sen, G.A. Cohen (1993) critica as conotações excessivamente "atléticas" da idéia de
igualar a "capacidade de funcionar". Sen está enfocando um espaço avaliatório que é posterior a
titularidades de bens, mercadorias e serviços e anterior à utilidade que essas titularidades geram
para os indivíduos. Mas esse espaço intermediário, como corretamente observa Cohen, não é
constituído somente por aquilo que as pessoas podem fazer com esses bens e serviços, como a
linguagem das functionings e das capacidades de Sen pode dar a entender, mas sim também pelos
estados desejáveis que essas titularidades lhes proporcionam sem que elas tenham, para isso, de
levantar nem mesmo um dedo seu. Uma política pública de eliminação do mosquito transmissor do
protozoário causador da malária, que propicia a seus beneficiários um estado desejável (o de "estar
livre da malária", um dos exemplos mais recorrentes que Sen oferece de functioning), serve de
ilustração para isso. A linguagem de Sen "superestima o lugar da liberdade e da atividade no bem-
estar" (idem:25). Não é muito claro por que coisas como se ver livre da malária e ter acesso à água
limpa deveriam contar como uma ampliação da liberdade efetiva do agente. Na mesma linha da
crítica de Gerald Cohen, Joshua Cohen observa que:

"É compreensível a tentação de pensar que água mais limpa constitui um aumento de
liberdade: quando a água é limpa, de fato dizemos que o agente 'se viu livre' dos males
associados à água contaminada. Mas essa observação lingüística não carrega muito peso
conceitual. A locução 'se ver livre de' não indica a presença de um outro bem na situação –
uma ampliação da liberdade – além da melhoria de bem-estar. Ela indica, mais
precisamente, a etiologia da melhoria de bem-estar – a de que tal melhoria consiste na
eliminação de um malefício e não no aprimoramento de um bem." (1995:279)

Por enquanto vou deixar irresoluta a questão de avaliar até que ponto o problema se resume
a uma ambigüidade de linguagem. Seja como for, o que Sen formula (como já foi dito no início) é,
sobretudo, uma concepção de igualdade distributiva. Já confrontamos a métrica de avaliação e
comparação de bem-estar dessa concepção à métrica welfarista. Vamos confrontá-la agora à métrica
dos bens primários proposta por John Rawls.

Dados do Texto:

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Print version ISSN 0011-5258

On-line version ISSN 1678-4588

Dados vol.42 n.3 Rio de Janeiro 1999

http://dx.doi.org/10.1590/S0011-52581999000300004

Título: Justiça Distributiva: A Crítica de Sen a Rawls

Auor: Álvaro de Vita

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