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Revista do Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel” - Mar20

03
75 ANOS DA LIBERTAÇÃO
DE AUSCHWITZ
Um relato de viagem

entrevista\\
SÉRGIO MAMBERTI
O ator fala sobre sua carreira,
sua relação com a esquerda e
com o judaísmo

racismo em alta\\
A ofensiva de Bolsonaro contra
a liberdade de expressão

EVANGÉLICOS E O JUDAÍSMO
Seminário em Israel debate a apropriação de símbolos e da história
judaica por igrejas neopentecostais
sumário\\ 03
10
14
Editorial
Liberdade de Expressão: Racismo em Alta
Religião: De Purim a Pessach: proteção
e vingança em diálogo no calendário
judaico
16
Entrevista: Sérgio Mamberti: paixão
26 por Hitler se repete hoje na paixão por
Bolsonaro
Holocausto: Chegar a tempo, mesmo
32 que tarde demais: relato de uma visita a
Auschwitz-Birkenau

36 Debate: Por que precisamos (ainda e de


novo) falar do holocausto?

04 panorama
internacional\\
A economia
humor\\

desgovernada:
novos paradigmas

Revista eletrônica do Observatório Judaico dos Direitos Projeto gráfico, diagramacão e direção de
expediente\\

Humanos no Brasil “Henry Sobel” - no3/20 arte: Adriana Antico/Ex-Libris Comunicação


Integrada.
Diretoria: Jayme Brener (Diretor Executivo), Samuel
Neuman (Diretor Financeiro), Charles Argelazi, Clarisse Fotografia: Banco de imagens Shutterstock
Goldberg, Leana Naiman Bergel.
Humor: Ivo Minkovicius
Conselho Fiscal: Clara Politi, Claudia Heller, Nathaniel
Facebook: https://www.facebook.com/
Braia (Titulares), Alberto Kleinas, Ricardo Besen
ObservatorioJudaico/
(Suplentes).
Comitê Editorial: Clarisse Goldberg, Jayme Brener,
Nathaniel Braia e Ricardo Besen
Matéria de capa\\
O imbróglio
sionista-neopentecostal
é debatido em Haifa
24
fotos&notas\\
editorial\\
O mundo está assustado com o avan-
ço da nova versão do coronavírus, o
Covid-19. As orientações médicas para
que se evite aglomerações têm can-
celado eventos, shows, atos públicos,
reuniões, viagens.
Aconselha-se cuidados com a higiene
pessoal, lavar as mãos, manter os
ambientes ventilados, não comparti-
lhar objetos pessoais. Entre as víti-
mas, a porcentagem sobe quando se
trata de idosos.
Esses indícios acendem o alerta sobre
a necessidade de saneamento bási-
co, de espaços adequados à vida, do
cuidado com os mais velhos, na con-
tramão da política adotada pelo atual
governo. Enquanto a pressão pelo
estado mínimo – para a população – e

44
máximo - para o mundo das finanças
cidade em foco\\ Municipalismo e direito – se torna política de governo, junto
à cidade – contradições e desafios com o ataque à previdência social,
estamos à deriva.

40
Sem políticas públicas adequadas ao
enfrentamento da pandemia, sobra
para a população o medo. Enquanto o
SUS é atacado para beneficiar planos
de saúde privados, mas que não darão
conta das necessidades surgidas pelo
Covid-19, o país caminha a passos lar-
gos em direção à necropolítica.
direitos humanos\\
Migrações e os Mas o vírus não discrimina quem tem
direitos humanos poder econômico e quem não tem. O
que diferencia é a capacidade de re-
agir, de poder lavar as mãos ou usar
álcool gel sempre que necessário.
Boa leitura.

3 Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel”


panorama internacional\\
Por Ladislau Dowbor

A ECONOMIA DESGOVERNADA:
NOVOS PARADIGMAS
O papa Francisco
lança iniciativa por um O papa Francisco convocou para
março de 2020 uma reunião
planetária em torno de uma nova
de crenças ou nacionalidade,
para um acordo no sentido de
repensar a economia existente,
modelo econômico que economia, chamada simbolicamente e de humanizar a economia de
reduza a concentração de Economia de Francisco, na amanhã: torná-la mais justa,
de renda e integre as linha da associação com o que mais sustentável, assegurando
grandes maiorias seria a visão de São Francisco uma nova preeminência para as
de Assis, aliás local da reunião populações excluídas”.
proposta. Gerou-se com isso um
amplo movimento, por parte de No conjunto, trata-se de repensar a
comunidades de diversas religiões, função da economia na sociedade.
e ampliou-se a visibilidade com a Afinal, a economia em princípio
participação direta de personagens deve servir para vivermos melhor
como Jeffrey Sachs, Joseph Stiglitz, e não para que estejamos a
Amartya Sen, Vandana Shiva, seu serviço. Parece que está
Muhammad Yunus, Kate Raworth se chegando a uma visão de
e outros personagens de primeira bom senso, um reordenar dos
linha mundial, com forte presença argumentos. Uma economia a
de prêmios Nobel. Uma ideia básica, serviço do bem comum implica
de que a economia deve servir à que seja economicamente viável,
sociedade, e não o contrário, está mas também socialmente justa
encontrando um eco profundo. e ambientalmente sustentável.
Vivemos uma era de profunda Este triplo objetivo define um novo
insegurança e busca de novos equilíbrio e uma outra forma de
modelos. O atual não funciona. organização.

A iniciativa Economia de Francisco O desafio não é o de falta de


tem como objetivo “trazer gente recursos. No mundo se produzem
jovem, além das diferenças anualmente R$ 85 trilhões de

Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel” 4


Uma economia
a serviço do bem
comum implica que seja
economicamente viável,
mas também socialmente
justa e ambientalmente
sustentável”

bens e serviços por ano, o que,


razoavelmente distribuído,
asseguraria R$ 15 mil por mês
por família de quatro pessoas.
E o Brasil está precisamente
nesta média mundial. O que
hoje produzimos é amplamente
suficiente para uma vida
digna e confortável para
todos. Nosso problema não é
de capacidade de produção, e
sim de saber o que produzimos,
para quem, e com que
impactos ambientais. O
grande desafio é
o da governança
do sistema, desafio
sem dúvida técnico, mas que os 105 milhões generalizada, a inundação
sobretudo ético e político. na base da pirâmide. A dos plásticos e tantos outros
desigualdade atingiu níveis processos destrutivos estão
O mundo que enfrentamos se ética, política e economicamente levando a uma catástrofe
caracteriza por crescente e insustentáveis. ambiental generalizada.
dramática desigualdade, com 1%
detendo mais riqueza do que os A mudança climática, a Temos assim de enfrentar o
99% seguintes, e 26 famílias com liquidação da vida nos mares duplo desafio da redução da
mais do que a metade mais pobre e em terra – perdemos 52% desigualdade, portanto, de uma
da população, 3,8 bilhões de dos vertebrados em apenas 40 democratização da economia, e da
pessoas. No Brasil, seis famílias anos – a perda de cobertura redução do ritmo de destruição
acumularam mais riqueza do florestal, a contaminação química da base natural da nossa

5 Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel”


panorama internacional\\

sobrevivência, evoluindo para uma em Paris, se decidiu alocar para as


economia circular sustentável. políticas ambientais. Temos grande
riqueza de informações sobre cada
Sabemos o que deve ser feito: os problema do planeta, os dramas
17 Objetivos do Desenvolvimento estão localizados e quantificados. E
Sustentável (Agenda 2030) o temos também as tecnologias que
definem claramente. Temos os hoje permitem transitarmos para
recursos financeiros: apenas nos outras matrizes de transporte, de
paraísos fiscais, os US$ 20 trilhões energia e dos próprios processos
que resultam de evasão fiscal, produtivos. Não é, portanto, uma
corrupção e lavagem de dinheiro, questão de falta de meios, e sim de
representam 200 vezes os US$ 100 profundas deformações políticas de
bilhões que, na Conferência de 2015, como gerimos as nossas economias.

Os pontos essenciais que sugerimos para discussão, em torno desta Eco-


nomia de Francisco, são os seguintes:

1. Democracia econômica: trata-


-se de resgatar a governança
corporativa, sistemas transpa-
a informação sobre os capitais
especulativos e para que os recur-
sos financeiros sirvam tanto para
vivência deve fazer parte das
prioridades absolutas. Não se
trata de custos e, sim, de investi-
rentes de informação, e de gerar financiar a redução da desigual- mentos nas pessoas, que dina-
maior equilíbrio entre o Estado, dade como para estimular proces- mizam a produtividade e liberam
as corporações e as organizações sos produtivos sustentáveis. Na recursos das famílias para outras
da sociedade civil. Não haverá de- realidade, os sistemas tributários formas de consumo.
mocracia política sem democracia no seu conjunto devem servir ao
econômica. maior equilíbrio distributivo e à
produtividade maior dos recursos. 6. Desenvolvimento local in-
tegrado: somos populações

2. Democracia participativa:
os processos decisórios
sobre como definimos as nossas 4. Renda básica universal: no
quadro de uma visão geral
hoje essencialmente urbanizadas
e o essencial das políticas que
asseguram o bem-estar da comu-
opções, como priorizamos o uso de que algumas coisas não podem nidade e o manejo sustentável dos
dos nossos recursos, não podem faltar a ninguém, uma forma sim- recursos naturais deve ter raízes
depender apenas de um voto a ples e direta, em particular com em cada município, construindo
cada dois ou a cada quatro anos. as técnicas modernas de trans- assim o equilíbrio econômico,
Com sistemas adequados de in- ferência, é assegurar um mínimo social e ambiental na própria base
formação, gestão descentralizada para cada família. Não se trata de da sociedade.
e ampla participação da socieda- custos, pois a dinamização do con-
de civil organizada precisamos
alcançar um outro nível de racio-
nalidade na organização econômi-
sumo simples na base da socieda-
de dinamiza a economia e gera o
retorno correspondente.
7. Sistemas financeiros como
serviço público: o dinheiro
que manejam os sistemas finan-
ca e social. As novas tecnologias ceiros tem origem nas nossas
abrem imensos potenciais que se
trata de explorar. 5. Políticas sociais de acesso
universal, público e gratui-
to: o acesso à saúde, educação,
poupanças e impostos, constitui
recursos do público e, neste sen-
tido, deve responder às necessi-

3. Taxação dos fluxos financei-


ros: essencial para assegurar
cultura, segurança, habitação e
outros itens básicos de sobre-
dades do desenvolvimento sus-
tentável. Bancos públicos, bancos

Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel” 6


Esses eixos de análise se referem sem democracia econômica não
essencialmente ao processo deci- funciona: os dois universos devem
sório, às ferramentas de governan- resgatar a sua coerência. E frente
ça de que a sociedade deve dispor ao aprofundamento dos desastres
para resgatar a funcionalidade sociais, ambientais, políticos e
dos sistemas econômicos. Neste econômicos, não só o tempo urge,
sentido, são aplicáveis tanto às como começamos a ver uma ampla
atividades produtivas como indús- mudança de atitudes, ou pelo me-
tria e agricultura, como a políticas nos uma tomada de consciência.
sociais como saúde e educação e
assim por diante. A filosofia geral Há amplos caminhos sendo traça-
aqui proposta consiste na compre- dos por pesquisadores e centros
ensão de que democracia política de pesquisa, e pode-se dizer que
estão sendo construídas de forma
muito dinâmica as bases teóricas
de uma outra economia. Ultrapas-
sando os antigos debates entre
ortodoxia e heterodoxia nas teo-
rias econômicas, surge um novo
comunitários, cooperativas de democráticos mostram a que pragmatismo, desta vez baseado
crédito e outras soluções, como ponto o oligopólio dos meios de em valores, no sentido de se
moedas virtuais diversificadas, comunicação gera deformações buscar o que funciona, indepen-
são essenciais para que as nos- insustentáveis, climas de acer- dentemente das eternas etiquetas
sas opções tenham os recursos bamento de divisões e aprofun- ideológicas. Veremos a seguir
correspondentes. damento de ódios e preconcei- algumas amostras da discussão
tos. Uma sociedade informada mundial que se generaliza.

8. Economia do conhecimento:
o conhecimento hoje consti-
tui o principal fator de produção.
é absolutamente essencial
para o próprio funcionamento
de uma economia a serviço do
MEA CULPA

Sendo imaterial, e indefinidamen- bem comum. Em setembro de 2019, 181 das


te reproduzível, podemos gerar maiores corporações mundiais
uma sociedade não só devida-
mente informada, mas com aces-
so universal e gratuito aos avan-
10. Pedagogia da eco-
nomia: a economia
consiste essencialmente em
assinaram uma carta de compro-
misso, redefinindo os seus obje-
tivos e deixando formalmente de
ços tecnológicos de ponta. Temos regras do jogo pactuadas pela lado o que foi o seu credo durante
de rever o conjunto das políticas sociedade ou impostas por décadas, de que devem enriquecer
de patentes, copyrights, royalties grupos de interesse. A demo- os seus acionistas e se despreo-
de diversos tipos que travam cracia econômica depende cupar das consequências sistê-
desnecessariamente o acesso aos vitalmente da compreensão micas, qualificadas comodamente
avanços. O conhecimento é um generalizada dos mecanismos de “externalidades”. Negociado
fator de produção cujo uso, con- e das regras. Os currículos e divulgado no quadro do BRT
trariamente aos bens materiais, obscuros e falsamente cientí- (Business Round Table), o texto é
não reduz o estoque. ficos têm de ser substituídos curto, são basicamente cinco pa-
por ferramentas de análise rágrafos, mas que reproduzimos

9. Democratização dos meios


de comunicação: os recen-
tes avanços do populismo de
do mundo econômico real, de
maneira a formar gestores
competentes de uma economia
aqui no original, atualizado em 6
de setembro de 2019:

direita e a erosão dos processos voltada para o bem comum. “While each of our individual com-
panies serves its own corporate

7 Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel”


panorama internacional\\
purpose, we share a fundamental como “diversidade e inclusão,
commitment to all of our stakehol- dignidade e respeito” – o que gera
ders. We commit to: expectativas para quem acompa-
nha como é trabalhar na Walmart
– Delivering value to our custo- ou na Amazon, ou ainda nas linhas
mers. We will further the tradition de montagem da Apple na China. O
of American companies leading compromisso de lidar eticamente
the way in meeting or exceeding com os fornecedores, grandes ou
customer expectations. pequenos, seria também uma ino-
vação radical. O quarto ponto, de se
– Investing in our employees. This responsabilizar com os impactos
starts with compensating them que exercem sobre as comunida-
fairly and providing important des e o meio ambiente, assumindo
benefits. It also includes suppor- a sustentabilidade como objetivo,
ting them through training and é evidentemente essencial, mas
education that help develop new talvez o mais transformador seja
skills for a rapidly changing world. o quinto, em que se ambiciona,
We foster diversity and inclusion, sim, continuar a gerar valor para
dignity and respect. os acionistas, mas no quadro de
uma visão sistêmica que envolve
– Dealing fairly and ethically with compromissos com o longo prazo
our suppliers. We are dedicated e os efeitos sobre as comunidades,
to serving as good partners to the quando sabemos que a cultura
other companies, large and small, atual é de se assegurar a maximi-
that help us meet our missions. zação de retornos no curto prazo,
com pouca preocupação com os
– Supporting the communities in resultados para a sociedade.
which we work. We respect the
people in our communities and Nada de profundamente revolucio-
protect the environment by embra- nário na aparência, simples bom
cing sustainable practices across senso, mas depois de 40 anos em
our businesses. que as corporações se esconderam
por trás das teorias tão conve-
– Generating long-term value for nientes de Milton Friedman – “The
shareholders, who provide the business of business is business”
capital that allows companies to – portanto tendo como único dever
invest, grow and innovate. We are enriquecer os acionistas, esta
committed to transparency and carta de intenções impressiona.
effective engagement with Os grandes conglomerados deci-
shareholders. Each of our dem alterar os rumos. Ou assim o
stakeholders is essential. declaram.
We commit to deliver
value to all of them, for Conhecendo as corporações, Jo-
the future success of our seph Stiglitz reage com otimismo
companies, our commu- moderado”: “Nas últimas quatro dé-
nities and our country.” cadas, a doutrina prevalecente nos
EUA tem sido a de que as corpora-
Ou seja, responder às ções devem potencializar os valo-
expectativas dos consumido- res para seus acionistas — isto é,
res, sem dúvida, mas também aumentar os lucros e os preços das
investir na promoção dos seus ações — aqui e agora, não importa
empregados – surgem palavras o que aconteça, sem se preocupar

Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel” 8


com as consequências para os tra- de US$ 47 trilhões, quando o PIB
balhadores, clientes, fornecedores mundial, para termos uma refe-
e comunidades. Logo, a declaração rência, é de US$ 85 trilhões. Ver
que defende um capitalismo cons- a assinatura de grandes agiotas
ciente e que foi assinada este mês como os nossos principais bancos
por quase todos os membros da brasileiros na lista gera evidente
Business Round Table causou um ceticismo.
grande alvoroço. Afinal de contas,
trata-se dos executivos-chefes das A verdade é que a indignação está
companhias mais poderosas dos se generalizando. Os impactos eco-
EUA, dizendo aos norte-americanos nômicos, ambientais e sociais que
que o mundo dos negócios é muito as corporações provocam fazem
mais do que apenas balanços patri- parte das suas responsabilidades.
moniais. E isso é uma baita virada Após 40 anos de neoliberalismo
de jogo, não é mesmo?” irresponsável, há novos cami-
nhos? É saudável recebermos a
Parece adequado este otimismo notícia com ceticismo, a cosmética
cauteloso. Mas a realidade é que corporativa tem longa tradição.
ver, no fim da carta, as assinatu- Mas também é fato que pelo jeito
ras do Bezos da Amazon, e dos as corporações, e em particular
CEOs das maiores corporações os bancos, estão sentindo o calor
como Apple, Johnson&Johnson, da irritação social, enquanto os
CityGroup e tantos outros, com um desastres se tornam cada vez mais
posicionamento que reverte pro- visíveis, gerando protestos cada
fundamente o que nos foi repetido vez mais amplos.
durante décadas, chama a atenção.
As movimentações, como o cha-
MEA MAXIMA CULPA mado do Papa Francisco, as ma-
nifestações populares como hoje
Mais interessante ainda é a toma- vemos se expandindo, e as procla-
Há amplos da de posição de 130 dos maiores mações defensivas do mundo cor-
bancos do mundo, que proclamam porativo – abrem espaço para um
caminhos sendo o seu propósito de respeitar seis conjunto de aportes teóricos que
princípios básicos: deverão alinhar reformulam a economia tal como
traçados por as suas atividades com os Objeti- tem sido formulada e ensinada, e
vos de Desenvolvimento Susten- que agora adquirem grande visibi-
pesquisadores tável, inclusive os compromissos lidade. São visões comodamente

e centros de climáticos de Paris; assegurar


um sistema aberto de avaliação
classificadas de “heterodoxas”,
mas que funcionam, contraria-
pesquisa, e pode- dos impactos dos financiamentos;
encorajar atividades sustentáveis
mente às visões ditas ortodoxas
que essencialmente justificam
se dizer que estão por parte dos seus clientes; definir
objetivos sociais em consulta com
os interesses corporativos, e nos
levaram aos impasses atuais. �
sendo construídas os diversos atores sociais; asse-
gurar uma governança interna
de forma muito responsável; gerar instrumentos
de transparência para que possam
dinâmica as bases ser verificados os efeitos das suas
atividades sobre a sociedade. Ladislau Dowbor é professor titular de Eco-

teóricas de uma nomia da PUC-SP, consultor de várias agên-


cias da ONU, e autor de numerosos livros
Lembremos que os 130 bancos e estudos técnicos disponíveis em http://

outra economia” signatários representam ativos


dowbor.org em regime Creative Commons
(livre uso não-comercial).

9 Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel”


liberdade de expressão\\
Por Mauro Malin

“Essa sua BBC, ela diz a verdade?”


– Só mentiras! – animou-se
alegremente o doente. – Eles
sempre mentem, mas todas
as mentiras que eles contam
acontecem mesmo”.

RACISMO EM ALTA Vladímir Voinóvitch, Propaganda monumental,


tradução de Denise Sales, 2007.

A primeira manifestação racis-


ta de Jair Bolsonaro como
candidato à Presidência da Repú-
de arrobas”; “durante mais de três
séculos e meio, pessoas negras
foram legalmente comercializadas
blica ocorreu em evento no clube como escravas no Brasil, comer-
Hebraica do Rio de Janeiro, em cializadas inclusive em função da
abril de 2017. massa corporal que ostentavam”.

A fala de Bolsonaro incluiu uma Desde então, até uma clamoro-


agressão pérfida aos negros: sa agressão contra a jornalista
Patrícia Campos Mello, da Folha
“Eu fui num quilombo. O afrodes- de S. Paulo, em fevereiro de 2020,
cendente mais leve lá pesava sete multiplicaram-se os estímulos
arrobas. Não fazem nada. Eu acho partidos da mais alta autoridade
que nem para procriador ele serve do país a uma onda de racismo
mais. Mais de um bilhão de reais e preconceito que encontra solo
por ano é gasto com eles”. A rea- fértil em amplos segmentos da
ção coletiva da plateia foi rir. população brasileira e numa histó-
ria multissecular de discriminação
É preciso relembrar: durante o e opressão.
evento, que reuniu cerca de 300
pessoas, houve do lado de fora do GROSSERIAS REVOLTANTES
clube, na rua, um protesto ruidoso
contra a palestra do então candi- Sobre a jornalista, o presidente
dato. Protesto de judeus. Cerca de da República, em 18 de fevereiro,
150 pessoas. comentando acusação de uma
testemunha que depôs na CPI das
A Coordenação Nacional de Ar- Fake News, na Câmara dos Depu-
ticulação das Comunidades Ne- tados, Hans River do Nascimento,
gras Rurais Quilombolas (Conaq) disse diante de admiradores, à
sublinhou: Bolsonaro “compara um porta do Palácio da Alvorada: “...
integrante de comunidade qui- ela queria dar um furo, queria dar
lombola a um animal que tem sua o furo [pausa; risos] a qualquer
massa corporal medida através preço contra mim”.

Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel” 10


Hans River dissera que Patrícia protestos. Entre eles, dos presi- seu presidente-executivo, Ricardo
Campos Mello se “insinuara”, dentes da Câmara e do Senado e Berkiensztat.
desejava “sair” com ele para obter outros parlamentares, de gover-
informações, o que foi cabalmen- nadores, de organizações como A articulista Vera Magalhães, do
te desmentido pela Folha de S. a OAB, a ABI, a Comissão Arns de jornal O Estado de S. Paulo e apre-
Paulo mediante a transcrição das Defesa dos Direitos Humanos, de sentadora do programa Roda Viva,
mensagens de WhatsApp trocadas intelectuais, de atrizes, de coleti- da TV Cultura, foi alvo, em 25 de
pelos dois. vos de mulheres. fevereiro, de ataques em redes so-
ciais por ter divulgado na internet
Foi a manifestação preconceituo- A Federação Israelita do Estado de vídeo no qual Bolsonaro convocava
sa mais hedionda de Bolsonaro. São Paulo (Fisesp) se solidarizou manifestantes para um ato público
Seguiu-se-lhe uma chuva de com Patrícia, em nota assinada por contra o Congresso.

11 Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel”


liberdade de expressão\\
Segundo reportagem do Estadão, um para ser jornalista, para ficar Bolsonaro (originalmente Bolzona-
“apoiadores de Bolsonaro, como o semeando a discórdia e pergun- ro) é bisneto de italianos e ale-
youtuber Leandro Ruschel, publi- tando besteira por aí e publicando mães. Nunca passou pela cabeça
caram mensagens defendendo a coisas nojentas.” de ninguém perguntar o que ele
exposição de informações pessoais faz ou deixa de fazer no Brasil. A
de Vera, como o salário que ela re- Em janeiro de 2020, ao ser pergun- ofensa xenófoba e racista à colônia
cebe na TV Cultura (...). A deputada tado a respeito do livro Tormenta: japonesa provocou protestos
Alê Silva (PSL-MG) postou mensa- o governo Bolsonaro – crises, contidos. Entre outras razões,
gem na qual diz que Vera ‘também intrigas e segredos, ele disse: explicou-me um nikkei, porque
está louca para dar o... furo’”. “Esse é o livro dessa japonesa, que uma grande maioria dos descen-
eu não sei o que faz no Brasil, que dentes de japoneses votou nele
Não eram as primeiras jornalistas faz agora contra o governo” (sic). para presidente.
que Bolsonaro atacava. A autora, Thaís Oyama, é neta de
japoneses. Nasceu em Mogi das Bolsonaro, seus filhos e outros se-
Em maio de 2019, ele disse a uma Cruzes, SP. guidores conseguem ocupar todo o
repórter da Folha, Marina Dias, leque costumeiro de preconceitos
cuja pergunta lhe parecera e insultos.
inconveniente (ela usara a
palavra “corte” de gastos Jornalistas têm sido um alvo
e não, como ele desejava, preferencial. Não é difícil entender
“contingenciamento”): que, numa tentativa de ataque à
democracia por dentro das institui-
“Primeiro, você, da Folha ções, como é até aqui o caso, a im-
de S. Paulo, tem que en- prensa profissional independente
trar de novo numa facul- seja uma adversária proeminente.
dade que presta e fazer
um bom jornalismo. É No livro Como
isso que a Folha tem as democra-
que fazer e não con- cias morrem,
tratar qualquer uma Steven Levitsky
ou qualquer e Daniel Ziblatt
apresentam “qua-
tro principais indi-
cadores de compor-
tamento autoritário”
por parte de presidentes
ou dirigentes máximos de
países que caminharam ou
caminham para o autorita-
rismo. Seleciono aqui dois deles,
como um convite à reflexão.

“3. Tolerância ou encorajamento


à violência. (...) Patrocinaram ou
estimularam eles próprios ou seus
partidários ataques de multidões
[podem ser virtuais] contra seus
oponentes?”

“4. Propensão a restringir liberda-


des civis de oponentes, inclusive
a mídia.”

Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel” 12


INJÚRIAS EM SÉRIE “Se for uma reforma de japonês, ele nezuelanos que fogem da ditadura
vai embora. Lá tudo é miniatura” de seu país. Porque do jeito que
A Folha de S. Paulo organizou um (maio de 2019), em recado ao minis- estão fugindo da fome e da ditadu-
pequeno catálogo de injúrias profe- tro Paulo Guedes (Economia) sobre ra, tem gente também que nós não
ridas por Bolsonaro: a reforma da Previdência. queremos no Brasil” (novembro de
2018), já eleito presidente, durante
“Com toda a certeza, o índio mudou. “Tudo pequenininho aí?” (maio evento militar no Rio de Janeiro.
Está evoluindo. Cada vez mais o de 2019), ao posar para foto com
índio é um ser humano igual a nós” estrangeiro de feição asiática; pre- “No Japão tem pena de morte.
(23/1/20), em vídeo, quando falava sidente fez gesto com os dedos, em Tinha um japa gordo, de umas
da criação do Conselho da Amazônia. insinuação sobre órgão sexual. oito arrobas, que foi pego uns
dez anos atrás botando gás sarin
“O Hélio vai para a China comigo. “Quem quiser vir aqui [ao Brasil] no metrô. Foi executado no ano
Eu falei: ‘Tem algum problema? É fazer sexo com uma mulher, fique à passado” (agosto de 2018), durante
só você fazer assim [puxando as vontade. O Brasil não pode ser um ato da campanha eleitoral no Rio
pálpebras para os lados] que nin- país de turismo gay. Temos famí- de Janeiro.
guém vai te achar na multidão’” lias” (abril de 2019), durante café
(outubro de 2019), duran- da manhã com jornalistas. “Eu tenho cinco filhos. Foram
te live em rede social, com o quatro homens. A quinta eu dei
deputado Hélio Lopes (PSL-RJ), “Podemos perdoar, mas não pode- uma fraquejada e aí veio uma mu-
que é negro, a seu lado. mos esquecer [o Holocausto]. E é lher” (abril de 2017), na Hebraica
minha essa frase: quem esquece do Rio.
“Daqueles governadores paraíbas, seu passado está condenado a não
o pior é o do Maranhão [Flávio ter futuro” (abril de 2019), durante “Não empregaria [homens e mu-
Dino, do PC do B]. Tem que ter encontro com evangélicos no Rio lheres] com o mesmo salário. Mas
nada com esse cara” (julho de de Janeiro. tem muita mulher que é compe-
2019), gravação durante conversa tente” (fevereiro de 2016), durante
informal antes de encontro com “A criação de campos de refugia- entrevista ao programa Superpop,
jornalistas. dos, talvez, para atender aos ve- de Luciana Gimenez, na RedeTV!.

AI-5 E REFERÊNCIA AO NAZISMO Bolsonaro demitiu, mas não criticou, modo violento, a violência propria-
o secretário da Cultura, Roberto Al- mente dita encontra terreno fértil
Bolsonaro não criticou seu filho vim, que gravou um vídeo patrioteiro para se multiplicar. Nunca antes de
Eduardo, deputado federal, quando inspirado no ministro da propaganda 2019 as polícias mataram tantas
ele pregou a volta do AI-5. Nem o de Hitler, Joseph Goebbels. pessoas “em confronto”. Nunca tan-
general Augusto Heleno Ribeiro, tas mulheres foram mortas no país.
ministro do Gabinete de Segurança Se o vértice dispara manifestações O preconceito organizado é o caldo
Institucional, que o secundou. de intolerância, frequentemente de de cultura da selvageria. �
Mauro Malin é jornalista

13 Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel”


religião\\
Por Rabino Rogério Cukierman

DE PURIM A PESSACH:
PROTEÇÃO E VINGANÇA EM
DIÁLOGO NO CALENDÁRIO
JUDAICO Ou “os riscos de o perseguido
se transformar em perseguidor”

T odo ano, no começo de fevereiro, o mes-


mo cenário: em esquinas-chave de São
Paulo, encontramos grupos de jovens, suas
caras pintadas com os nomes das facul-
dades em que foram aprovados, pedindo
dinheiro aos motoristas para poderem ir
beber cerveja com os novos colegas. Acom-
panhando a alguma distância, estão os
recém-veteranos, alunos do segundo ano,
comemorando o fato de já não serem mais
eles que precisam passar pelo vexame.
Pedir dinheiro nas esquinas é, provavel-
mente, a prática mais visível e inocente do
trote pelo qual passam os calouros que, em
alguns casos, envolvem episódios sérios de
violência física e moral. A cada tantos anos,
voltam à imprensa casos menos visíveis
e menos inocentes, que nunca deixam de
causar polêmica.

Penso muito na transição de calouro para


veterano e sobre como, nela, o oprimido de
um ano passa facilmente para a condição
de opressor, no ano seguinte; o pensamen-
to corrente parece ser: “se alguém sofreu
o trote no seu ano, por que abriria mão de
dar o trote no ano seguinte? ” Todas as
práticas que incomodavam e humilhavam,
gerando alguma revolta, passam a ser

Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel” 14


justificadas, usando os mesmos Infelizmente, não é só no trote uni-
argumentos que, no ano anterior, versitário ou na história de Purim
eram prontamente rebatidos. que encontramos a transformação
de oprimido em opressor. Não são
Escrevo este artigo próximo de Pu- raras as vezes em que escutamos
rim, a festa judaica que comemora histórias de como “meus avós não
a salvação dos judeus da Pérsia. tinham nada e foram capazes de se
Segundo a história do Livro de estabelecer e prosperar. Quem não
Ester, o pérfido primeiro-ministro consegue progredir é por pregui-
Haman tinha planejado um genocí- ça e falta de esforço. ” Em vez de
dio contra os judeus, que só foram gerar solidariedade e empatia,
salvos porque Ester, a rainha que a experiência de ter vivido sob
tinha sido escolhida em um con- condições extremamente difíceis e
curso de beleza, era secretamente conseguido escapar delas pode dar

Foto: Arquivo pessoal


judia e intercedeu junto ao rei para origem a um sentimento de supe-
evitar a tragédia. Há um lado da rioridade que impede a conexão
história desta festa, no entanto, com quem vive às margens da
também descrito no Livro de Ester, sociedade hoje.
para o qual se dá, tradicionalmen-
te muito menos atenção: no final A perspectiva oposta a esta tem
da história, com um judeu tendo centralidade na tradição judaica, com muitos outros textos judaicos,
substituído Haman na posição de por exemplo, em Pessach, a festa que caracterizam e implementam
primeiro-ministro e com a autori- que celebramos depois de Purim e esta preocupação. Trata-se de
zação do rei de que utilizassem ar- na qual nos lembramos da liber- mandamentos sobre a forma como
mas para se defender, os judeus da tação dos hebreus do Egito, onde devemos pagar salários em dia
Pérsia cometeram um massacre e tinham sido mantidos como es- ou deixar áreas dos nossos cam-
mataram mais de 75.000 pessoas. cravos. Nossa experiência vivendo pos para que quem precisa possa
sob opressão no Egito determina entrar e se alimentar, entre muitos
Oprimidos sob risco de genocídio, que devemos ser especialmente outros. Pode-se argumentar que
esses judeus conseguiram chegar cuidadosos para proteger quem foi ao redor da ideia de proteger
próximos do poder e, em sua sede vive em condições similares hoje o vulnerável que toda a tradição
de vingança, se tornaram aquilo que em dia. Segundo o Talmud, a judaica foi construída: nossa expe-
eles mesmos mais rejeitavam. No obrigação de “proteger o estran- riência como escravos determinou
shabat que antecede Purim, cha- geiro porque fomos estrangeiros de tal forma a identidade judaica
mado Shabat Zachor, uma leitura na terra do Egito” aparece pelo que a preocupação com justiça
especial da Torá nos instrui a não menos 36 vezes no texto da Torá. social passou a fazer parte de for-
nos esquecermos de apagar a De acordo com muitos autores ma indissociável do judaísmo. Ao
memória de Amalek que, na tradi- “guer” (a palavra bíblica para “es- mesmo tempo, no entanto, preci-
ção judaica, é associado à violência trangeiro”) é uma metáfora para a samos reconhecer que uma leitura
contra aqueles em situação de condição de opressão sob a qual de autovitimização e revanchista
vulnerabilidade e tem, entre seus os estrangeiros viviam. Portanto, para Purim também faz parte da
descendentes, Haman, o vilão da his- a obrigação deve ser entendida tradição judaica — ignorá-la seria
tória de Purim. Uma leitura possível como nos instruindo a “proteger o um erro conceitual e, ainda pior,
deste mandamento é que devemos oprimido porque fomos oprimidos um erro estratégico para a promo-
erradicar fisicamente Amalek e seus na terra do Egito”. ção de um judaísmo que acredita
descendentes; outra possibilidade é na defesa permanente dos direitos
que a Torá está nos alertando para A centralidade de obrigação judaica humanos como um dos seus eixos
que não nos transformemos nós para com os menos favorecidos na fundamentais. �
mesmos em Amalek, nos orientando nossa sociedade é inquestionável,
para olharmos a história de Purim e tanto pelo número de vezes em Rogério Cukierman é rabino da
vermos como os judeus se transfor- que é repetida no texto da Torá Congregação Israelita Paulista
(CIP). Atualmente, integra o Diálogo
maram em Haman. como pelo diálogo que estabelece Católico-Judaico.

15 Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel”


matéria de capa\\
Por Nathaniel Braia

O IMBRÓGLIO
SIONISTA-NEOPENTECOSTAL
É DEBATIDO EM HAIFA
Pesquisadores do Brasil, Israel, Europa e América do Norte discutem as
relações entre evangélicos neopentecostais, o judaísmo e Israel

Foto: Nathaniel Braia

Da esquerda para a direita, Rafael Kruchin, diretor executivo do Instituto Brasil-Israel; Michel Gherman, coordenador da Conferência de Haifa; Marcos Silber, diretor do Departa-
mento de História Hebraica da Univ. de Haifa e, ao microfone, Paul Freston, da Universidade Wilfrid Laurier, Canadá

Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel” 16


M ais de 30 acadêmicos de seis
países acorreram à Univer-
sidade de Haifa em janeiro para,
minada neopentecostal da igreja
evangélica, em especial sua relação
com Israel e o judaísmo.
assim como a língua hebraica e a li-
turgia judaica empregadas de forma
crescente pelos pastores neopen-
junto com seus pares israelenses, tecostais, até a visão de Israel e da
participarem da discussão intitulada Para isso, reuniram-se acadêmicos e ocupação de territórios palestinos
“Política e Religião nas Américas: estudantes do Brasil, Israel, Canadá, na Cisjordânia – região a qual o
igrejas evangélicas e suas relações Alemanha, Irlanda, Reino Unido e ocupante se refere como “Judeia e
com judaísmo, sionismo e Israel”. Estados Unidos. No seminário, coor- Samaria” – como uma suposta mate-
denado pelo diretor do NIEJ, Michel rialização de profecias de uma volta
A denominada Conferência de Haifa Gherman, os acadêmicos se debru- dos hebreus à Terra Santa. Uma
2020 resultou de uma parceria çaram sobre diversos aspectos deste visão de mundo messiânica à qual
entre a Universidade de Haifa, o processo missionário que vem se se integra a fantástica crença num
Núcleo Interdisciplinar de Estudos estendendo e ganhando adeptos, de futuro Israel dominado por judeus
Judaicos e Árabes da UFRJ (NIEJ) e forma especialmente acelerada entre evangelizados como premissa
o Instituto Brasil-Israel. os mais pobres, não só no Brasil, mas determinante para o retorno de Je-
na América Latina e na África. sus Cristo (Messias) e a implanta-
Foi um corajoso esforço de abrir o ção de um milênio sob seu reinado
debate sobre uma das mais insti- Foram debatidos elementos que vão com o trono em Jerusalém.
gantes e fundamentais questões desde a apropriação dos símbolos
de nossa época: o comportamento judaicos para constituir uma nova Seguem alguns tópicos centrais
político e social da vertente deno- estética de templos evangélicos, debatidos no evento:

1. A APROPRIAÇÃO DA ESTÉTICA

Foto: Reprodução

Pastores usam
talitim em culto
neopentecostal

A apropriação de elementos da
estética e da liturgia judaicas
não é fator casual, mas está a
mostrar este aspecto no trabalho
“Sob a dupla honra divina: Etno-
grafia de uma igreja judaico-pen-
serviço de uma legitimação via tecostal no Recife”.
inserção das profecias neopente-
costais em perspectiva histórica. “Há igrejas judaizantes que
Coube à pesquisadora Tahyane incorporam símbolos e práticas
Fernandes, da Universidade judaicas na liturgia e celebram
Federal de Pernambuco (UFPE), festividades judaicas como

17 Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel”


matéria de capa\\
‘festividades bíblicas’ que vão

Foto: Nathaniel Braia


desde Purim até o Shabat e eles
utilizam talit [o manto usado na
liturgia judaica] e kipá [solidéu].
Buscam essa identidade por con-
ta de sua religiosidade embasada
no Antigo Testamento e é assim
que entendem o que é ‘judeu’, o
que é ‘judaísmo’”.

Já o antropólogo Rodrigo Toniol,


também presente à Conferência de
Haifa, afirma que “conectar-se com
o judaísmo é também um recurso
para sua expansão, garantindo a
comunicação a partir de outros Tahyane, da Universidade Federal de Pernambuco apresenta “Sob a dupla honra di-
referenciais e, ao mesmo tempo, vina: Etnografia de uma igreja judaico-pentecostal no Recife”. Na mesa o antropólogo
Rodrigo Toniol (Unicamp) e o professor Marius Katcewiak (Alemanha)
se inscrevendo na história global
do cristianismo”. Toniol, na matéria
“Judaicização do Pentecostalismo derando a centralidade dessas
Brasileiro”, publicada no jornal O figuras no Antigo Testamento, que
Estado de São Paulo, examina o a Universal apelou”, observa o an-
ponto culminante deste processo tropólogo da Unicamp. “Optou-se”,
de apropriação da estética judai- prossegue, “pela referência a uma
ca: a inauguração do Templo de teologia política do domínio, uma
Salomão, construído ao custo de teologia do templo, um projeto de
centenas de milhões de reais, com territorialização do sagrado. Olhar
pedras vindas de Israel. com mais cuidado para o templo
de Salomão nos dá indicações
“Foi a um rei, e não a um profeta, das reconfigurações do ativismo
como bem poderia ser, consi- político evangélico”, afirma.

2. PROFECIAS INUSITADAS
Haverá a Grande
Tribulação, um
P ara além dessa representação
estética, aspectos centrais do
relato teológico-profético neo-
por Amado, partindo de escritos
dos próprios teóricos dedicados a
este mister:

período de sete anos pentecostal remetem a judeus


e Israel, mas o fazem – como “Em sua soberania, Deus decidiu
no qual o anticristo observa o teólogo Marcos Ama-
do, ao elencar elementos dessa
que o revelar e a execução de
seu plano para a humanidade
se manifestará e vertente religiosa-profética, em
particular o dispensacionalismo
aconteceria por intermédio de um
diferente número das chamadas
se estabelecerá – aportando elementos de um
Israel imaginário e mesmo em
dispensações, introduzidas em
diferentes épocas.
firmemente na demarcada contradição com o
próprio judaísmo, como veremos No decorrer de uma delas haverá
Palestina como líder mais adiante. “a Grande Tribulação, um período
de sete anos no qual o anticristo
religioso e político” Por ora, vejamos trechos dessas se manifestará e se estabelecerá
inusitadas profecias compiladas firmemente na Palestina como

Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel” 18


líder religioso e político. O terceiro
templo será então reconstruído em
3. UMA SANTA ALIANÇA?
Jerusalém e o povo judeu, mais
uma vez, irá viver de acordo com a Em torno desta mística, os neo- primeiro-ministro, para essa mu-
lei mosaica. pentecostais, a direita israelense dança foi a de que Israel/Palesti-
e norte-americana forjaram uma na fora dada por Deus aos judeus;
“Depois do fim dos sete anos de aliança centrada na manutenção da por conseguinte, os judeus tinham
tribulação, acontecerá a grande ocupação da Palestina e na negação direito de se estabelecer em qual-
batalha do Armagedom, quando as dos direitos de seus habitantes. quer lugar desse território.
nações se unirão para lutar con-
tra Israel. Nesse momento, Jesus Essa aliança, que posteriormente E mais: quando, ainda em 1977,
retornará para defender Israel, se tornaria um elemento fulcral Jimmy Carter, afirmou que re-
derrotar o anticristo e amarrar no apoio aos candidatos da direita conhecia e apoiava os direitos
Satanás por mil anos. norte-americana disposta a tudo humanos dos palestinos, incluindo
por petróleo – a exemplo dos possuir sua própria terra, não de-
No intuito de convencer seus Bush e de Trump – começou a morou muito para que as primei-
adeptos e dar veracidade a ganhar corpo, como relata Amado, ras reações aparecessem. O Ins-
estas intrigantes antevisões, os “quando o Likud – partido de direi- tituto de Jerusalém para Estudos
líderes das diversas correntes ta israelense – ganhou as eleições da Terra Santa, uma organização
neopentecostais recorrem a gerais em 1977 e deu os nomes evangélica norte-americana criada
eventos atuais como se fossem bíblicos de Judeia e Samaria às para apoiar Israel, publicou anún-
“sinais” a demonstrar tanto a terras que, conforme o plano de cios de página inteira nos princi-
atualidade e a verdade de suas partilha feito pela ONU, deveriam pais jornais dos EUA asseverando
mais descoladas profecias com estar sob controle palestino. Os que “havia chegado o tempo de os
suposta base bíblica, quanto à dispensacionalistas ficaram exul- cristãos evangélicos afirmarem
iminência de sua realização. tantes. Afinal de contas, a razão sua crença na profecia bíblica e no
citada por Menachem Begin, então direito divino de Israel à terra”.
Amado enfatiza como a Guerra dos
Seis Dias (1967), quando Israel
assumiu o controle total sobre
Jerusalém, gerou uma euforia ente
os dispensacionalistas.

“Nelson Bell, à época o diretor


executivo da revista Christianity
Today, ficou pasmo com o fato
de ‘pela primeira vez em mais de
dois mil anos Jerusalém estar
completamente nas mãos dos
judeus, o que dá ao estudante da
Bíblia uma fé renovada e entu-
siasmada na acurácia e validade
da Bíblia’”.

Diante deste cenário, como des-


taca Amado, se criou o ambiente
ideal para os neopentecostais, pois
Foto: Nathaniel Braia

agora “o mundo estava pronto para


ouvir o que eles tinham a dizer e
se esforçaram para levar essas
‘boas novas’ para o maior número
Gideon Elazar, professor da Universidade Bar Ilan, apresenta seu trabalho “De volta à Terra:
possível de pessoas”. Sionismo Cristão e o Espaço Sagrado na Atividade do ‘Hayovel’”

19 Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel”


matéria de capa\\
O direito divino de Israel à
terra, acima mencionado,
vem se expressando nas visitas
ções não se mostram interessados
nesse território. Afinal, para que
conhecer o Israel moderno e real?
‘Hayovel’”. (A organização Hayovel,
fundada por neopentecostais do
Missouri/EUA, presta duas vezes ao
aos assentamentos judaicos na ano serviço voluntário na colheita de
Judeia e Samaria. Estamos diante de uma concepção uvas nos assentamentos judaicos de
que tem consequências práticas Har Bracha, Shiloa e Psagot):
Lá, as delegações de neopentecos- no apoio à tomada de assalto do
tais se veem como contribuintes território palestino. “Muito de acordo com os aderentes
para a retomada da “Terra Pro- à ideologia cristã-sionista, os mem-
metida”; uma relação mediatizada É o que ressaltou o antropólogo bros do Hayovel veem a Restaura-
pela associação direta com tais Gideon Elazar, professor da Univer- ção Judaica da Terra de Israel como
assentamentos passando por cima sidade Bar Ilan, em seu trabalho elemento essencial e necessário
das fronteiras do Estado de Israel, “De volta à Terra: Sionismo Cristão no desdobramento do processo de
pois os integrantes dessas delega- e o Espaço Sagrado na Atividade do redenção”, destaca Elazar.

4. EVANGÉLICOS SE DISTANCIAM

E vangélicos se distanciam das amor para to-

Foto: Reprodução
teses neopentecostais. Coube dos os povos. A
ao pastor Henrique Vieira, em sua escolha de Deus é
exposição, “Uso da memória de pela superação de
Israel no contexto de um extremis- uma atual con-
mo evangélico brasileiro”, afirmar dição econômica
esse distanciamento. “Sempre que e social: trata-se
um povo é vítima de espoliação, da condição dos
massacre, preconceito e genocídio, pobres e oprimi-
este é o lugar que Deus escolhe dos. Deus revela
estar para fazer seu rosto ser visto a universalidade
e seu grito ser ouvido. Na memória de Seu amor a
bíblica de Israel aprendi que por partir da experi-
amor Deus escolheu os pobres ência concreta de
e que toda forma de opressão é atenção às vítimas Pastor Henrique Vieira
anti-bíblica”, afirma o pastor. da Terra”.

O uso contrário esvazia o verdadei- O pastor Henrique por um sentimento de intolerân-


ro sentido dos textos bíblicos, pois enfatizou que além da intervenção cia religiosa e disseminação do
“a perspectiva exclusivista esvazia inapropriada diante do conflito racismo. “Não é por acaso que as
o sentido histórico e acaba por Israel-Palestina, também têm se religiões de matriz africana, as
ampliar projetos de poder”. verificado resultados contrários espiritualidades derivadas direta
ao sentido dos textos bíblicos no ou indiretamente da África foram e
“Numa compreensão mais con- Brasil. Neste sentido, “esta narra- ainda são perseguidas”.
textualizada dos textos bíblicos se tiva evangélica fundamentalista
percebe a escolha de Deus por um e extremista não inaugura mas “O racismo é uma operação sis-
povo oprimido para que aquele potencializa violências já existentes têmica, um projeto de sociedade
povo pudesse dar testemunho da na sociedade brasileira” e é extre- e um modelo de colonização que
justiça para outros povos. Deve- mamente perigosa pois substitui cria a imagem do inimigo, elabo-
mos dizer não a um exclusivismo o enfrentamento consciente dos rando sua inferioridade, forjando
intolerante, mas sim à responsa- problemas sociais e populares por sua subalternidade e, dessa for-
bilidade de sinalizar a justiça, o percepções contrárias aos interes- ma, autorizando seu extermínio”,
acolhimento, a misericórdia e o ses das camadas despossuídas, alerta o teólogo.

Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel” 20


5. ELEIÇÃO COM BANDEIRAS DE ISRAEL NAS RUAS DO BRASIL

A presença de bandeiras de

Foto: Euzivaldo Queiroz/ Conexão Política


Israel nas manifestações do
candidato direitista Jair Bolsonaro,
em grande parte graças à opção
neopentecostal, fez com que as
questões judaica, sionista e das
relações Brasil-Israel adquirissem
centralidade nunca antes presen-
ciada na vida nacional.

A este respeito, o professor Michel


Gherman afirma: “O judaísmo que
eu entendo é o judaísmo do debate,
da possibilidade de compreensão
do outro, é o judaísmo de Emma-
nuel Levinas, de Martin Buber, de
Hanna Arendt, é o judaísmo que
possibilita a ideia de que o mundo
Bolsonaro em campanha: envolto na bandeira dos Estados Unidos, junto com as bandeiras do Brasil e de Israel
pode ser aquele onde a troca subs-
titua a ocupação. Onde o debate se
instaure no lugar da conquista. É de Rabi Akiva, de Rav Meir, de a Bolsonaro apenas por sua declara-
um mundo em que há espaço para grandes nomes da Guemará [uma da simpatia irrestrita a Israel.
os judeus junto com os não judeus das coleções da discussão talmú-
na modernidade”. dica], dos princípios talmúdicos do Para ele, ao contrário, “esta con-
debate, da discussão. Não se pode cepção é tipicamente antijudaica,
“Os neopentecostais”, prossegue perder as fontes. E as fontes não é o contrário do judaísmo”. Ele
o professor Gherman, “não per- devem ir parar na mão da estrei- exemplifica isso ao afirmar que, ao
cebem que há uma Bíblia e seus teza direitista. A esquerda judaica mesmo tempo em que o encontro
complementos que são inúmeros precisa recuperar as fontes, fora com Bolsonaro na Hebraica, no
comentários em volta dela. E disso é um suicídio”. bairro de Laranjeiras, acontecia,
perder o debate é perder páginas vimos também “a primeira mani-
escritas na história. Esse é o meu Gherman se contrapõe a uma visão festação pública contra Bolsonaro,
judaísmo e eu estou bem acom- fatalista e maniqueísta, de que os ju- na frente da mesma Hebraica do
panhado. Estou acompanhado deus estariam cegamente se aliando Rio de Janeiro”.
Foto: Raman Aquim – Mídia Ninja

Manifestação na
frente da Hebraica do
Rio de Janeiro contra
palestra de Bolsonaro

21 Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel”


matéria de capa\\
6. COMUNIDADES JUDAICAS EM RISCO

aliança com setores da comuni-

Foto: Nathaniel Braia


dade judaica vêm criando uma
instabilidade no que eu chamo de
mundo judaico.

O que acaba se criando é uma


espécie nova de antissemitismo
no interior do judaísmo, que parte
de uma tentativa dos sionistas
religiosos de direita, que somente
enxergam como judaica a identi-
dade que engloba os colonos. Eles
se jogam na busca de desmante-
lar uma identidade judaica crítica
a Israel e que não seja necessa-
riamente embasada nessa reli-
giosidade e nesse messianismo”,
finaliza o professor Caraciki.
Leonel Ciraciki, professor da Universidade Ben Gurion, apresentou “Sionismo Cristão, um
Fator Desestabilizador no Mundo Judaico” No mesmo sentido, ao orientar
a última mesa de debates, o so-

I sso integrou a análise trazida


pelo professor Leonel Caraci-
ki, da Universidade Ben Gurion:
discutir sobre sionismo, se torne
algo estrangeiro à língua judaica
na diáspora. A ideia é não de-
ciólogo Rafael Kruchin, diretor
executivo do Instituto Brasil-Is-
rael (IBI) ressaltou que “parte
“Há uma ideia de que o apoio sistir de falar sobre Israel, não expressiva dos evangélicos
político desses cristãos sionis- desistir do engajamento, de ocu- veem a sociedade israelense e
tas é muito mais importante e par aqui o espaço que é nosso, os judeus de modo geral como
gera muito mais frutos do que dos judeus progressistas, não um grupo monolítico, conser-
ter que lidar com setores de é um espaço somente de quem vador e sagrado, sem enxergar
comunidades judaicas que não se propõe a definir, pelo prisma sua real complexidade e plura-
necessariamente apoiam o go- conservador/direitista, o que é e lidade. No entanto, a socieda-
verno de Israel. o que não é judeu. de israelense, longe de ser o
espaço desse consenso, envolve
O risco é que, daqui a algumas Analisei como o apoio do sionismo grupos heterogêneos, com as
gerações, falar sobre Israel, cristão a Israel e como parte dessa mais diversas visões”.

7. O DEBATE ESTÁ COMEÇANDO

N o encerramento dos debates,


o professor Paul Freston, his-
toriador e antropólogo da Univer-
se tornarem importantes e não
atores coadjuvantes no mundo”.
Mas ele acrescentou que é con-
BIBLIOGRAFIA
AMADO, Marcos – Israel, Armagedom e os Árabes
Palestinos, Editora Martureo, São Paulo, SP, 2019
Links para material consultado na internet
sidade Wilfrid Laurier, do Cana- traproducente dizer que se trata Portais http://institutobrasilisrael.org/ (Daniela
dá, sugeriu que o filossemitimo apenas de irracionalidade o que Kresch)
https://horadopovo.com.br/ (Reportagem e entrevistas
evangélico atual no Hemisfério os evangélicos pensam e o modo Nathaniel Braia)
Sul representa uma aspiração de como agem: “Há um racional
Nathaniel Braia é editor de Internacional do
“branqueamento”, de riqueza, de interno em tudo isso e se não o jornal Hora do Povo, graduado em História e pós-
ser parte do ‘Povo Escolhido’: “É entendermos, temos que estudar -graduado em Docência de Ensino Superior pela
Uninove e em Engenharia Operacional Elétrica
uma maneira de os evangélicos mais”, sintetizou. � pelo Instituto Tecnológico de Haifa

Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel” 22


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23 Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel”


fotos&notas\\
Anistia Internacional aponta O crescimento
retrocesso no Brasil do antissemitismo
O discurso abertamente contrário aos Homem de 57 anos é agredido
direitos humanos, adotado por autorida- a socos e chutes por ser judeu.
des federais e estaduais no Brasil, vem Crime ocorreu em Jaguariúna.
gerando a limitação e a perda de direitos Na hora do crime, a vítima ves-
fundamentais da população. Esta é a tia um quipá, chapéu usado pela
conclusão do relatório Direitos Huma- comunidade judaica.
nos nas Américas: Retrospectiva 2019,
divulgado pela Anistia Internacional, em
fevereiro. No capítulo sobre o Brasil, a Acesse: https://www.acidadeon.
entidade destaca os retrocessos asso- com/campinas/cotidiano/cida-
ciados à crise na Amazônia, a violência des/NOT,0,0,1489414,homem+-
policial, a perseguição de ativistas, a de+57+anos+e+agredido+a+so-
pressão contra povos indígenas e a cos+e+chutes+por+ser+judeu.
impunidade do assassinato da vereadora aspx?fbclid=IwAR0k8Q57BcZA_
Marielle Franco e de seu motorista. CjO2x-s7mNHyXkxFECYWnpqPI-
g-9vOs56jobtguwvQXiRg

ALDEIA GUARANI
RESISTE A
DESMATAMENTO
Ameaçados pela construção de empreendi-
mento imobiliário ao lado da Terra Indígena
do Jaraguá, índios guaranis convidaram as
Fotos: Samuel Neuman

pessoas a passar o domingo, 16 de feverei-


ro, conhecendo sua aldeia e seus costumes.
A ocupação indígena no terreno a ser des-
matado durou 40 dias. Retirados do terreno
por uma reintegração de posse, decidida
pelo poder Judiciário, agora, os índios se-
guem resistindo em frente ao portão.
Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel” 24
Fotos: Samuel Neuman
Evangélicos e judaísmo
O reverendo Jair Alves, da Igreja Metodista, e o jornalista Nathaniel Braia, con-
selheiro fiscal do Observatório Judaico “Henry Sobel”, debateram o tema “Os
evangélicos e o judaísmo”, na tarde de 7 de março, na Casa do Povo, em São
Paulo. Parte dos temas debatidos compõe a matéria que Braia elaborou para este
número da revista. Os participantes foram unânimes na necessidade de continuar
a discussão e as ações conjuntas.

Uma carta
para Lula
Dia 30 de janeiro, um
grupo de judias e judeus
realizou ato de entrega
de carta de apoio ao
presidente Lula. O evento,
que reuniu em torno de
400 pessoas, contou com
representantes de diver-
sos setores da sociedade
Foto: Paulo Rapoport

brasileira e foi pontuado


pela cultura judaica.

Fotos: Samuel Neuman


Mesa redonda “Holocaustos! Nós nos
importamos!”
Em 27 de janeiro, data instituída pela ONU em
memória as vítimas do holocausto, o Observató-
rio Judaico, em parceria com Hashomer Hatzair,
Judeus pela Democracia SP, Associação Mor-
dechai Anielewicz, Associação Cultural Moshe
Sharett realizaram a mesa redonda “Holocaus-
tos! Nós nos importamos!”, com a participação
de representantes de alguns dos grupos vítimas
de violências: negros, indígenas, imigrantes,
homoafetivos e judeus.

25 Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel”


entrevista\\
Por Ricardo Besen, Samuel Neuman, Clarisse Goldberg, Leana Bergel e Julio Moreira

SÉRGIO MAMBERTI: PAIXÃO


POR HITLER SE REPETE HOJE
NA PAIXÃO POR BOLSONARO
Em cartaz em São Paulo Revista do Observatório: Como foi para nós. Histórica. Ainda que não
com a peça “O Ovo de sua infância em Santos, a convi- tivéssemos ideia do que havia
vência com judeus, o impacto da acontecido com os judeus, sabía-
Ouro”, com temática Segunda Guerra? mos do antissemitismo.
relacionada ao Holocaus-
to, e próximo da comu- Sérgio Mamberti - “Minha mãe era Lembro muito bem do final da
nidade judaica, o ator educadora, trazia alunos para casa, guerra: as pessoas saíram de
em sua maioria filhos de pescado- casa e se abraçaram chorando, os
Sergio Mamberti, 80, fala res, com quem tive contato próxi- navios apitaram no cais, igrejas
ao Observatório Judaico mo. Meu pai, um constitucionalista tocaram os sinos...
sobre sua vida e carreira: de 1932, passou pelas trincheiras.
Ambos me apontaram o papel polí- Três meses depois, Hiroshima e as
a questão da cultura no tico da educação e da cultura e me notícias dos campos, as imagens
Brasil, sua ligação com o estimularam à leitura. Desde cedo, das valas. Ao mesmo tempo, a
PCB e o PT, a relação com li os clássicos infantis. perspectiva de um mundo novo.
a Casa do Povo, os perso- E a formação do Estado de Israel.
Em meu meio cultural, ouvi muitas Muitos de meus amigos foram para
nagens judeus, a parti- histórias: a vivência da guerra, de kibutzim.
cipação no TAIB – Teatro imigrantes judeus e não judeus.
Israelita Brasileiro e a Uma senhora alemã não podia Tive desde cedo contato com
ascensão de Bolsonaro ter rádio em casa, vinha ouvir em militantes de esquerda, com o
nosso rádio de ondas curtas as grêmio do colégio, com os portu-
notícias, os discursos do Hitler. ários. Pais de meus amigos foram
presos como comunistas. Eu não
Eu frequentava as casas de podia acreditar que pessoas boas
amigos judeus, cujos pais muitas estavam sendo presas e apare-
vezes trabalhavam como mas- cendo no jornal como bandidos.
cates. A luta contra Hitler e seu Nessa época, li Jorge Amado,
significado foi muito importante José Lins do Rego, os russos...

Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel” 26


Foto: Julio Moreira
Fotos: Samuel Neuman

Minha mãe era colega da mãe do RO: Como foi sua relação com a
Plinio Marcos. Em uma conversa, ela Casa do Povo e o TAIB?
lhe disse uma vez: “Estou preocupa-
da: meus dois filhos, Sérgio e Cláu- SM: Muitos de meus amigos judeus
dio, estão fazendo teatro”. Ao que a vieram comigo para São Paulo. Fiz
mãe do Plinio respondeu: “Parabéns, parte do Centro Popular de Cultura
o meu fugiu com o circo...”’. Minha (CPC). Comecei a conviver com a
mãe dizia que ficou mais consolada! Casa do Povo, que era ligada ao Par-

27 Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel”


entrevista\\

Foto: Reprodução - Arquivo pessoal


No teatro em “Presença de Vinicius”, e na TV, na novela “Vale Tudo”

tido Comunista Brasileiro (PCB). Eu mente o momento!’ Vivian era da


era muito amigo do artista plástico geração de Dina Sfat eJoana Fomm.
Guershon Knispel (1932-2018), que
foi ameaçado de morte e teve que fu-
gir para Israel. O dramaturgo Sylvio
Band me apresentou Fidel Castro e RO: Qual é sua relação com a
Che Guevara – que veio ao Brasil em cultura judaica?
1961 (ainda não tinha virado lenda,
era um doce revolucionário...). SM: Sempre tive uma identificação
profunda com a cultura judai-
Naquela época, Antonio Abujamra ca, que foi formadora da minha
chegou da Europa com as teorias personalidade. Vivi toda a epopeia
de Brecht (efeito de afastamento, da criação de Israel. Meus compa-
para raciocinar sobre o que estava nheiros queridos diziam: ‘a gente
acontecendo e tomar posição) e de vai ter uma pátria - e uma pátria
Roger Planchon. socialista!’ Isso foi uma vivência
tão forte quanto a da revolução
Minha estreia profissional aconte- cubana, por exemplo.
ceu em 1962, com a peça “Antígone
América”, no TAIB recém-inaugura- Há também uma ancestralidade ju-
do e com direção do Abujamra. daica no cristianismo, que sempre
me comoveu. Toda a história da
A comunidade judaica também era diáspora, as perseguições sofridas
então bem dividida, talvez não tão pelos judeus, inclusive pela preser-
radicalmente quanto hoje. Minha vação de sua cultura.
esposa Vivian, judia, foi de um
movimento sionista, conviveu com Convivi em Santos com uma refu-
jovens sionistas de esquerda, do giada judia polonesa, que passou a
Dror e do Hashomer Hatzair. Em época da guerra na Sibéria. Ela tinha
31 de março de 1964, ela procurou duas tranças de um loiro dourado, se
o Gianfrancesco Guarnieri e disse: chamava Rachela. Os pais conse-
‘Quero me filiar ao PCB!’ Guarnieri guiram enviá-la ao Brasil e ela iria
devolveu: ‘Acho que não é exata- prestar o exame de Português para

Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel” 28


admissão no colégio Canadá, o mais a cuidar dele como nem com meu neiro, de quase 100 pessoas, atores
difícil de Santos. Estava aqui há pou- pai fiz. Na peça, o quipá e o livro de jovens e também mais velhos. A
cos meses e minha prima lhe dava rezas são dele. revolução cubana foi para nós algo
aulas. Ela entrou em primeiro lugar! muito forte. Depois se formou o
Grupo Opinião, se criou o Pasquim...
Passei a frequentar a casa dela, Nossa reação foi complexa e eficien-
comia comida judaica, fui ao RO: E seu relacionamento com o te, a ponto de o grande estrategista
casamento da irmã. Então, isso PCB, o PT e a esquerda? que era o general Golbery do Couto
tudo fazia parte do meu cotidiano. e Silva perceber que a relação entre
Eu tinha outros amigos, mas essa SM: “Fui levado ao PCB, em 1963, educação e cultura era explosiva.
coisa da cultura judaica está fora pelo Juca [de Oliveira] e pelo [Gian-
do plano da consciência. Quando francesco] Guarnieri. O PCB teve Tínhamos também uma relação
fui fazer no teatro o Otto Frank, muitos erros de avaliação. Hoje, digo maravilhosa com a contracultura.
pai de Anne Frank, e mergulhei na que o PT poderia fazer uma autocrí- Foi o momento de uma revolta
história dos pogroms, mergulhei tica. Por exemplo, na questão da co- comportamental, em que entraram
profundamente e me identifiquei municação. Desde o Collor, já estava as conquistas das mulheres, dos
com ele: muito religioso, mas com claro que isso seria importante. LGBT.. Aí veio uma reação propor-
uma visão universal. Ele entendia cional, no sentido de barrar.
Anne dentro de um contexto maior, Em 1964, a esquerda era mais
além do contexto judaico. unida. Falávamos do poder totalitá- Trabalhei 12 anos no Ministério da
rio, muitos atores não pertenciam Cultura (MinC), ocupando vários
Para fazer o Sr. Green, me inspirei a partidos políticos (Paulo Autran, cargos, nos governos de Luiz Iná-
no meu sogro, um homem extre- Tônia Carrero, Cacilda Becker), cio Lula da Silva e Dilma Rousseff.
mamente compreensivo e que era mas estavam juntos, iam para a Fui o primeiro secretário da Identi-
filho de rabino. Minha sogra morreu, rua com a gente. dade e da Diversidade Cultural no
depois minha esposa, e eu o trouxe mundo. “O tempo inteiro as elites
para morar comigo. Tivemos uma Antes do golpe, já tínhamos uma tentaram desqualificar nosso tra-
convivência muito próxima e passei base forte, incluindo o Rio de Ja- balho e nossas bandeiras. O caixa

Foto: Reprodução - Arquivo pessoal

Dr. Vitor,
em “Castelo
Ratimbum”

29 Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel”


entrevista\\
2 do PT realmente existiu. Mas aprovação, mas caiu muito em pou-
era uma realidade política, você co tempo. E a questão da comuni-
não tinha outra alternativa. Até o cação também contribuiu para isso.
momento em que começaram os
marqueteiros, todas as campanhas Por conta disso, lutamos por uma
eram feitas por nós, pelo Carlito democratização do sistema de
Maia. O dinheiro levantado para as comunicação. Em 1971, o Golbery
campanhas vinha com a venda de criou as redes nacionais de televi-
camisetas, por exemplo. A partir do são e uniformizou tudo. Então, veja:
Collor, os marqueteiros se instala- o José Genoíno e o Luís Gushiken
ram e vieram os caras que faziam foram execrados, e o José Dirceu
campanhas nos Estados Unidos. A foi absolvido de várias acusações,
coisa passou para outro patamar. como formação de quadrilha. Agora,
arrumaram outra condenação para
Na época do mensalão, fiz uma en- ele. E é um cara com uma vida pes-
quete no Congresso. Fui fundador soal extremamente simples. Vive de
Para fazer do PT, queria saber o que estava
acontecendo. Ninguém tinha visto
favor na casa da sogra.

o Sr. Green, me nada. Mas existia a memória da


compra de votos para a reeleição
Tudo isso compõe um conjunto de
fatores que fez com que até parte
inspirei no meu do Fernando Henrique Cardoso. E
onde foram mirar? No José Dirceu,
da comunidade judaica acabasse
apoiando o governo Bolsonaro. Do
sogro, um homem o cara que construiu todo o pro-
cesso político que levou o Lula ao
ponto de vista da comunicação, há
uma construção: você não pode
extremamente poder. Pegaram todas as lideran-
ças, e aí o Jorge Bornhausen falou:
acreditar que pessoas que passa-
ram pelo que passaram possam
compreensivo e “acabamos com a raça”. Mesmo as- apoiá-lo. O que o Roberto Alvim fez
sim, Lula conseguiu eleger Dilma, foi uma tragédia. E ele continua
que era filho de que chegou a ter uma altíssima fazendo parte do governo...

rabino. Minha sogra

Foto: Ale Catan


morreu, depois
minha esposa, e eu
o trouxe para morar
comigo. Tivemos
uma convivência
muito próxima e
passei a cuidar dele
como nem com meu
pai fiz. Na peça, o
quipá e o livro de
rezas são dele” Em “Visitando Sr Green”

Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel” 30


Foto: Leekyung Kim
Alguns parentes da Vivian me
dizem: “Olha, nenhum presidente
tomou uma atitude tão positiva
com relação a Israel como o Bolso-
naro”. Não é verdade! Lula nunca
foi contra Israel.

RO: Como você avalia o totalitaris-


mo, hoje?

SM: Hoje, a questão identitária é


forte, ligada à pulverização de posi-
ções, fragmentação relacionada
às redes sociais, abrangência das
comunicações, que se tornaram
forma de pressão. Exemplo: Fer-
nanda Montenegro está recebendo
ameaças de morte por ter feito
críticas polidas à área da cultura,
ao Roberto Alvim.

O fantasma do totalitarismo, que


vivemos na época da Segunda
Guerra, se reproduz hoje a partir de
Contracenando com a atriz a atriz Martina Gallarza na peça teatral “Ovo de Ouro”
gente que você não esperava que
estivesse nessa comunhão, defen-
dendo pontos de vistas tão graves
quanto os de Hitler e Mussolini. RO: Como você analisa a multi-

Foto: Leekyung Kim


plicação de observatórios dos
O filme “Jojo Rabbit”, atualmente direitos humanos no Brasil?
em cartaz, é extremamente anti-
fascista. E a paixão que ele mostra, SM: Os observatórios têm justa-
de um menino por Hitler, se repete mente a função de detectar por
hoje na paixão por Bolsonaro, da onde a gente pode caminhar, de
própria Regina Duarte. Eu a vejo fazer uma radiografia do processo,
como a criança do filme, absoluta- a partir da qual as pessoas podem
mente encantada. tirar suas próprias conclusões. O
fato de um observatório existir já é
Ao final da peça “O Ovo de Ouro”, uma posição. E as pessoas que se
lemos um manifesto pela cultura. comunicam com ele estão procu-
Cada dia a plateia está reagin- rando entender o que está acon-
do com mais veemência: “Viva a tecendo. Temos todos nós coisas
cultura! Fora Bozo!”. O teatro tem sobre as quais nos interrogamos.
um público restrito, mas temos aí Em nenhum momento podemos
os depoimentos dos rappers, que falar: “as coisas são assim”. Essa Em “Um Panorama Visto da Ponte”

atingem outro tipo de público e imobilidade é mortal. Precisamos


falam de holocaustos, o genocídio dialogar o tempo todo. A diversi-
da juventude negra. Eles têm uma dade cultural é isso: o respeito à Por Ricardo Besen, Samuel Neuman, Clarisse
Goldberg, Leana Bergel e Julio Moreira integram
comunicação forte. alteridade. � a Diretoria e o Conselho Fiscal do Observatório

31 Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel”


Holocausto\\
Por Fabiana A. A. Jardim

CHEGAR A TEMPO, MESMO


QUE TARDE DEMAIS:
RELATO DE UMA VISITA A
AUSCHWITZ-BIRKENAU
“Este texto registra algumas
impressões e reflexões a Não consegui salvar
partir da experiência de visita nem uma vida
ao Memorial e ao Museu
de Auschwitz-Birkenau, não soube deter
realizada em 28 de janeiro nem uma bala

Foto: Fabiana A. A. Jardim


de 2020, no dia seguinte às então percorro cemitérios
comemorações pelos 75 anos que não existem
de liberação do campo pelo busco palavras
Exército soviético” que não existem
corro
A leitura das cinzas, de
Jerzy Ficowski (Belo Ho-
para o socorro não pedido rizonte/Veneza: Editora
para o resgate tardio Âyiné, 2018).

D ificilmente chegamos àquele local desacompanhados. Auschwitz, de fato,


coagulou os horrores do nazismo e assumiu uma posição central na cultu-
ra (e na cultura política) do mundo euroatlântico pós Segunda Guerra, de modo
que quase qualquer um tem alguma referência a respeito.

Ter visitado o Museu e o Memorial no dia seguinte às comemorações


em torno da liberação do campo certamente produziu contornos bastan-
te específicos à experiência. E isso já desde a chegada a Cracóvia. Nosso

Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel” 32


vôo teve escala em Frankfurt e, Mais do que em outros lugares, por todas as companhias (lite-
quando entramos no avião que ali há um silêncio ruidoso, espe- rárias, filosóficas, sociológicas,
nos levaria de lá à Cracóvia, ime- cialmente após adentrarmos a estéticas, pedagógicas) do que
diatamente reconheci um senhor porta estreita. Uma parte da sala aquele com o qual chegara ali.
sentado numa das cadeiras como da câmara está interditada por A coreografia do luto e os sinos
um sobrevivente. um cordão e, ao meu lado, dois dobrando – pouco importa se te-
homens recitam o Kadish – um nham tocado para marcar o meio-
(Demoro a escrever esta frase: deles, o mais jovem, lê a oração -dia – operaram o que a narrativa
primeiro ensaio dizer “reconhe- da tela de seu celular e o outro cadenciada da guia e a saturação
ci um sobrevivente”, o que seria chora, discretamente; ambos mo- das imagens e informações não
estranho, pois não o reconheci, vem o corpo, na gestualidade da tinha conseguido: fissuraram o
de fato – não sei seu nome, sua oração, mas também da dor e do tempo, misturaram ao presente
nacionalidade, sua história indivi- luto. A cena é comovente, me traz do lugar de memória organizado
dual; tento “reconheci em um dos o impulso de abraçá-los como a partir da lógica do museu – co-
passageiros, um sobrevivente”, se num velório, e é a primeira leção de fatos, objetos e mesmo
mais próximo da formulação acima vez desde o início da visita que de testemunhos –, o trabalho de
e estranho, ainda assim: como se sinto as lágrimas atravessarem luto e o passado das vidas e for-
ter sobrevivido a uma catástrofe o gesto de ver. Ao mesmo tempo, mas de vida que ali se pretendeu
impusesse uma marca, para além começo a ouvir sinos tocando exterminar mas que, no entanto,
de possíveis sequelas físicas e dos distantes e quase penso se tratar alcançaram permanência. Per-
números tatuados). de uma alucinação auditiva. Mas manência comprovada, inclusive,
percebo que o som vem do fone, pelos sobreviventes que encon-
Por quase três horas, sem pau- onde a voz da guia retoma a nar- tramos ao longo do percurso,
sa, entramos e saímos de pré- ração. Atravesso a porta para o geralmente acompanhados da
dios. Às vezes tento dedicar mais crematório, contíguo à câmara, e família e de algum encarregado
atenção a alguma explicação os sinos agora soam mais fortes. de registro.
escrita ou a algum objeto, mas Naquele momento exato em que
a voz da guia no fone começa a começaram, foi como se marcas- Durante a visita, a língua engas-
falhar, o que sinaliza que estou sem uma autorização para um gava. Chegamos com chuva e
me perdendo, que não estou endereçamento menos mediado sensação térmica de -4ºC, mas
seguindo o ritmo esperado, que
devo me apressar. Logo desis-
to de me conduzir a partir do
ritmo da atenção ou da emoção e
decido aderir de vez ao percurso
proposto pela guia, fotografando
meio a esmo.

Algo muda, no entanto, quando


entramos no edifício da câmara de
gás, ainda em Auschwtiz I. Antes
de chegar, a guia nos descreve o
processo – a câmara, os corpos
nus, as aberturas por onde se in-
troduzia o Zyklon B, a retirada dos
corpos, o crematório.
Foto: Fabiana A. A. Jardim

(Foi só revendo as fotografias


tiradas por meu amigo que me dei
conta de que a imagem acima é de
uma coroa de flores deixada sob a
janela deste edifício).
Esquecer, jamais

33 Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel”


Holocausto\\
“[...] a Shoah requer memó-

Foto: Fabiana A. A. Jardim


ria e testemunhas, não para
que estas a escrevam, mas
precisamente porque isso
não cessa de não se escre-
ver” (Wajcman, 2016, p.75).

Certa formulação da angústia ante


ao desaparecimento dos sobrevi-
ventes – como continuar lembran-
do depois que não estiverem mais
entre nós? – faz pesar sobre suas
vidas uma tarefa que é coletiva:
embora não seja exatamente isso,
é uma angústia que diz de um
desejo de que sigam sendo porta-
dores da memória, de que sejam
eles a suportar o dever de lembrar
indefinidamente; o que não deixa
de ser uma espécie de recusa a
aceitar sua sobrevivência, aquilo
que permitiu que pudessem cres-
cer – viver – morrer de velhice.

como dizer que passamos frio? tudo o que há para ver ali já foi visto, Mas todo o dispositivo da memória
Tomamos café às 6h30 da manhã mas a rapidez da visita e o excesso não tinha como objetivo, justamen-
e só fomos comer quase às 13h, de brancura do céu e da neblina me te, fazer de cada um de nós, que
mas como dizer que o que senti- forçaram a fotografar sem plano. aceita o apelo para escutar tais his-
mos foi fome? Os problemas de tórias, também uma testemunha?
joelho e quadril me faziam temer Entre as fotos, encontro esta e Aceitar testemunhar, deste lugar
cair, mas não doíam e a sensação me assusto: não era o edifício do de quem não viveu diretamente a
de vulnerabilidade que sentia era crematório, é claro, e nem sei bem catástrofe, não significa também
nada frente à narrativa do medo porque apontei a câmera para o colocar-se no movimento de jamais
que tinham os prisioneiros de cair, alto, mas não consigo evitar de deixar de se interrogar a respeito
em especial durante as longas ver nesta foto uma imagem do daquilo que permanece incompre-
chamadas de manhã e de noite – a passado. Como se os mortos nas ensível? Tornar-se “cúmplice desta
fragilidade do corpo tinha começa- câmaras de gás, as testemunhas lembrança” : não é este o apelo
do a se produzir já no trajeto e cair impossíveis cujas cinzas e restos que faz da Shoah um acontecimen-
doente era sentença de morte. Ali, estão dispersos naquele espaço, to que “não cessa de se escrever”?
caminhando pelas ruas do Museu tentassem nos dizer algo. Uma
e Memorial que outrora foi palco iluminação, nada feito de palavras, Nossa visita terminou em frente ao
de um crime impensável, a língua apenas a coincidência da luz com crematório V, junto à reprodução de
o tempo todo encontrava onde o olhar mediado pela câmera. três, das quatro fotografias clandes-
tropeçar, pronta para resvalar da Como se o lugar de horror trans- tinas tiradas em 1944 por integran-
tragédia ao drama. formado em lugar de memória tes do Sonderkommando – ima-
fosse habitado por fantasmas; gens que, conforme as análises de
Tendo viajado sem computador, só como se ali – e apenas ali –, eles Georges Didi-Huberman, consistem,
consegui ver as fotografias que tirei ainda pudessem cruzar de volta em si mesmas, em gesto de resis-
já depois de voltar ao Brasil. Tinha a fronteira da morte para nos tência e de sobrevivência . Embora
medo do que encontraria, pois esta- transmitir algo. Ler a foto desse seus autores soubessem que não
va decidida a evitar os clichês visuais modo é também, eu sei, resvalar sobreviveriam – justamente por sua
que reiteram a sensação de que da tragédia ao drama. proximidade com a dimensão dos

Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel” 34


campos que deveria permanecer porta da câmara de gás –, os limi- o que foi destruído antes do
não vista –, arriscaram a vida para tes dos esforços de fazer da Shoah Exército Vermelho chegar. Nosso
produzi-las: estas pequenas ima- uma espécie de vacina contra o ônibus saía às 16h10, de modo
gens de 6x9, que retratam homens, antissemitismo e o racismo se evi- que logo voltamos à sede, em
mulheres e crianças a caminho da denciavam, tanto porque operavam Auschwitz e, depois de olhar a
câmara de gás e sua incineração a passagem da especificidade do livraria por algum tempo, segui-
ao ar livre, no momento em que acontecimento ao lugar comum, mos para Cracóvia.
a deportação massiva de judeus quanto porque, na própria fala da
húngaros levava os crematórios a guia, denunciavam a impotência Muitas vezes Auschwitz funciona
operar ininterruptamente. de setenta e cinco anos de intensa como a parte que diz do todo: de
memória em erigir uma experiên- todos os campos de concentração
Ali, bem em frente ao lugar em que cia política distinta. e de extermínio, da produção in-
um gesto de sobrevivência se deu, dustrializada da morte em massa,
as contradições de uma pedago- Após o encerramento da visita, da escala desconhecida do desa-
gização da memória se aprofun- ainda caminhamos um pouco parecimento de indivíduos e de um
daram – em frente às fotografias pelas ruínas de Birkenau. A povo, dos efeitos mais extremos do
ampliadas (que também estavam chuva havia parado, o sol estava antissemitismo e do racismo – uma
expostas em um dos edifícios, aparecendo. Encontramos um vez que, sempre vale lembrar, os
junto aos registros escritos e gato preto passeando em meio a judeus não foram mortos somente
enterrados por outros membros do alguns edifícios, vimos os lagos por sua religião, mas devido às
Sonderkommando), reenquadra- congelados e restos de neve, operações políticas que os consti-
das para se apresentarem como ouvimos uma cerimônia judaica tuíram como raça.
documento visual e ocupando o se encerrar com uma oração cujo
lugar dos fotografados – estima- som se espraiou pelo ar – nesse Embora desejemos circunscrever
do a partir do ângulo possível ao campo que é quase aberto, tão o horror às margens daqueles
fotógrafo, escondido no batente da marcado pela ausência de tudo campos, às margens daquele
tempo, sua dimensão desmedida
também se revela no fato de que
a vida continuava fora dali e que,
apesar da guerra, em nenhum outro
lugar houve violência tão dispara-
tada, nenhuma expulsão tão radical
das fronteiras do humano. Essas
cápsulas do mal – nos guetos, nos
campos – não se desfizeram sim-
plesmente pela destruição preme-
ditada ou pela passagem do tempo:
viajam até nós, repetem a pergunta
que não foi ouvida quando então
era o agora; repetem a pergunta
que estamos ainda (re)aprendendo
a ouvir e que é urgente que logo o
façamos, que não nos atrasemos
mais, uma vez que nosso agora pa-
rece cada vez mais contemporâneo
de então. �
Foto: Fabiana A. A. Jardim

Fabiana A. A. Jardim é cientista social, dou-


tora em Sociologia e docente da Faculdade
de Educação/USP, onde tem se dedicado ao
ensino e à pesquisa de temas ligados às re-
lações entre educação, violência, memória,
testemunho e transmissão.
Museu e Memorial Auschwitz-Birkenau

35 Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel”


debate\\
Por Déborah Danowski

POR QUE PRECISAMOS


(AINDA E DE NOVO) Os termos Holocausto e

FALAR DO
negacionismo devem ser
restritos ao massacre dos
judeus na Segunda Guerra

HOLOCAUSTO?
[1] ou podem ser estendidos a
outras barbaridades, como o
caos climático?

Após os crimes cometidos pelo mais premente de negacionismo campos de concentração nazistas.
regime nazista contra os judeus, o hoje, que é o do aquecimento global Me parecia que trazer o termo
termo Holocausto, que em grego de origem antrópica.[3] holocausto para o presente poderia
designa um sacrifício pelo fogo nos ajudar a despertar a mesma
oferecido aos deuses, no qual o Mas aos poucos foi ficando claro indignação e vergonha, impressio-
animal sacrificado era consumido para mim que poderia ser impor- nar, chocar, nos fazer parar e acor-
por inteiro, passou a ser empregado tante, até necessário, compreender dar para o que está acontecendo.
no Ocidente como um nome próprio de que modo a própria singulari-
para designar esse mal extremo e dade do acontecimento que foi o Digo isso ciente de que usar a
sem sentido aparente exercido pelo Holocausto judeu (em hebraico, referência ao Holocausto para
Terceiro Reich, que, entre muitas Shoah, que significa catástrofe ou falar de outros crimes, ainda que
outras atrocidades, tinha o projeto destruição) poderia tornar o nome atrozes e enormes, pode ser visto
de exterminar os judeus europeus. holocausto um instrumento impor- por parte da comunidade judaica
No final da década de 1980, o termo tante na luta contra os diversos como uma espécie de desrespeito
negacionismo [négationisme] pas- tipos de atrocidades que estão ou até mesmo de traição às vítimas
sou a ser usado, primeiramente, em sendo cometidas por essa outra do nazismo durante a Segunda
referência a certos historiadores máquina de morte que culmina Guerra. É certo que aquele acon-
de direita que se auto-intitulavam no Antropoceno – e aqui incluo tecimento não se compara, muito
“revisionistas”, e em seguida às não apenas sua expressão mais menos equivale a nenhum outro,
posições de vários outros inte- extrema, o Ecocídio e a extinção e não é meu objetivo fazer essa
lectuais e políticos que negavam em massa das espécies vivas, aproximação – e por isso a ele re-
quer a existência, quer a dimensão, mas coisas como o abandono das servo, e evidentemente não sou a
quer as causas desse fato histórico populações mais pobres na linha única a fazê-lo, o termo Shoah. Mas
plenamente comprovado. Em meu de frente dos desastres produzidos não penso que o reconhecimento
trabalho sobre a catástrofe ecológi- pelas elites, enquanto estas mes- da singularidade, nem sequer da
ca atual, recuei até o Holocausto[2] mas elites criam muros, e confi- extrema gravidade do Holocausto
justamente porque estava tentando nam um número cada vez maior de judeu deva nos impedir de esta-
entender melhor o negacionismo, refugiados em instituições que nos belecer paralelos e analogias, de
ou, mais precisamente, a forma lembram muito incomodamente os aprender com as semelhanças e

Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel” 36


Foto: bondvit / Shutterstock.com
continuidades, mas também com “mais”, o que é que, ao rememorar-
as diferenças e descontinuidades mos e ao ouvirmos novamente as
entre aquele e outros crimes, so- testemunhas, tentamos evitar que
bretudo se esses outros crimes es- se repita?
tão se desenrolando agora, debaixo
de nossos próprios olhos, muitas Ora, hoje estamos todos diante
vezes em nossa própria casa, por de uma catástrofe de dimensões
assim dizer, e com nossos próprios planetárias, um novo hapax, com
Haverá a Grande conterrâneos. Uma das frases mais força suficiente para engolir em
repetidas nas celebrações em me- seu caminho todos os povos, todas
Tribulação, um mória das vítimas do Holocausto as classes sociais, grande parte

período de sete anos no mundo todo, “Nunca mais”, de-


veria por si só nos advertir de que
das espécies vivas, que habitam
desde as mais altas montanhas
no qual o anticristo pretender manter isolado aquele
acontecimento seria não apenas
até o fundo mais profundo dos
oceanos, mudando radicalmente
se manifestará e equivocado, mas indesejável. Pois,
embora seja verdade que o Ho-
a face da Terra – mas não sem
antes agravar enormemente as
se estabelecerá locausto é um hapax, um nome
que se diz uma única vez, que se
desigualdades e todo tipo de
injustiça, trazendo guerras, fome,
firmemente na refere a um acontecimento absolu-
tamente singular, sem precedente,
doenças, devastação. Apesar do
que os novos (e antigos) negacio-
Palestina como líder inesperado, intraduzível, embora
isso tudo seja verdade, o que é
nistas tentam nos fazer crer, essa
catástrofe e o aquecimento global,
religioso e político” que não queremos que aconteça tem origem humana, o que nos

37 Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel”


debate\\
torna a todos, de diversas formas, é para nos sentirmos confortáveis e teria achado aceitável lucrar como
implicados, tanto enquanto vítimas em paz diante do que está aconte- dirigente de uma grande companhia
como enquanto perpetradores e cendo, dizer que está tudo normal, ferroviária (como fizeram a SNCF
espectadores, para me apropriar ou que não fomos nós porque, no francesa e várias outras), mesmo
dos três tipos de personagens/ íntimo, somos boas pessoas, ou que desconfiando que talvez as novas
testemunhas do Holocausto tão não sabíamos, e com isso simples- demandas de rotas de trens escon-
bem designados por Raul Hilbert e mente deixar que essas atrocidades diam coisas terríveis e inomináveis?
retomados por Claude Lanzmann se mantenham na invisibilidade. Será que acho normal? Será que
em seu filme Shoah. Desta vez somos nós que (se antes viro o rosto?
não sabíamos) hoje sabemos, e por
Que todos estejamos implicados, isso penso que temos motivos de Pensando no caso do Brasil, mais
entretanto, não significa que sejamos sobra para nos envergonhar, seja particularmente na recente eleição
todos igualmente culpados, mas enquanto humanos diante de outros deste governo de extrema direita,
tampouco igualmente inocentes. humanos e de outras espécies, seja aqui foram muitos os que, na elite
É preciso distinguir com máxima enquanto ocidentais modernos dian- neoliberal, aceitaram essa espécie
clareza entre o usuário de transpor- te dos povos indígenas e tradicionais, de pacto com o diabo; aceitaram
te público e o grande empresário da seja enquanto moradores de bairros negociar não só o direito à vida,
indústria de combustíveis fósseis, privilegiados diante dos moradores mas os direitos de forma geral e a
entre as pessoas que comem carne das periferias… Devíamos nos per- justiça social, em troca da aposta
duas ou três vezes por semana e os guntar, como fizeram muitos pesqui- em medidas econômicas (que aliás
donos da JBS ou o governo que pro- sadores não judeus do Holocausto já se mostraram desastrosas em
tege e incentiva os desmatadores, judeu: será que eu, naquela situação, outros países), como as reformas
entre os indígenas da Amazônia e os também teria virado o rosto para da Previdência e trabalhista, de
ruralistas que põem fogo na floresta não ver; eu, o cidadão de bem ou o olho nos possíveis lucros a extrair
e invadem suas terras. O que não dá correto empresário de hoje, será que das privatizações, nas isenções
Foto: Steve Allen / Shutterstock.com

Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel” 38


fiscais para os grandes empresá- dizem analistas: No dia em que pelo hediondo Dia do Fogo; ou Wein-
rios, no relaxamento do controle ministro da Cultura é exonerado, traub, ou Damares, ou etc.
ambiental e fiscal. Nesses casos, Bolsa sobe 1,5% e se aproxima do
nem creio que se trate de negação recorde”. Será que amanhã dará Quando se negam os fatos, é pre-
das evidências científicas, mas para dizer que “eles não sabiam”? ciso colocar alguma coisa no lugar
de total desinteresse e irrespon- deles, e isso é feito, por um lado,
sabilidade, acompanhados, claro, Este é um governo negacionista. transformando criminosos (coro-
de uma confiança na impunidade Não estou falando da simples dene- nel Brilhante Ustra, o torturador;
e da certeza (mal fundada) de gação, que é o caso daqueles que Adriano da Nóbrega, o miliciano
que seus privilégios também irão não querem ou não suportam ver envolvido na morte de Marielle
protegê-los em caso de colapso e por isso negam ou distorcem a Franco) em heróis (o “pavor de
(social, econômico, político, ecoló- realidade de modo a fazê-la con- Dilma Rousseff”; o militar conde-
gico ou todos esses juntos). Mas cordar com seus próprios desejos corado com a medalha Tiradentes
é claro que a esses mesmos que – nesse sentido, todos nós negamos por desenvolver sua função com
se acreditam protegidos de tudo, em muitos momentos, de diferentes “dedicação e brilhantismo”), por
ainda que estejam bem informados modos e em diferentes graus. Mas outro lado fabricando espantalhos,
sobre a real situação do planeta, é não, esse é um governo de negacio- bodes-expiatórios a serem detes-
muito conveniente a atuação dos nistas profissionais, gente dedicada tados e, se possível, eliminados:
negacionistas profissionais, que à tarefa da negação, ou seja, pesso- ora a academia e os cientistas, ora
fazem por eles o trabalho sujo de as que negam os fatos por interesse os artistas, ora os professores, os
ir a público para semear a dúvida econômico, político ou até religioso. índios, os negros, as mulheres, os
ou mesmo o descrédito face aos Essas pessoas mentem mesmo. LGBTs, agora são os pobres... Não
resultados das pesquisas dos cien- Tomemos o exemplo de Luiz Carlos pode ser por acaso que esse go-
tistas do clima. Molion (que não está no governo, verno reúne tudo isso. Quem não
mas parece que gostaria de estar, enxergou antes, como pode não
Também é muito conveniente o como mostra a carta que encabe- enxergar agora? O negacionismo
trabalho sujo da maior parte da çou, dirigida ao ministro do Meio se alimenta do ódio, do ressenti-
grande imprensa, que normaliza Ambiente e ao Governo Federal mento, da paranoia, da vingança,
não só este governo de extrema como um todo;[4] e sua participação da exclusão. Todos esses afetos
direita, mas também os efeitos em audiência pública sobre mudan- tristes são muito conspícuos hoje
das mudanças climáticas negadas ças climáticas na Comissão de Rela- no Brasil, infelizmente. Estão nas
por ele. Contanto que o “mercado” ções Internacionais do Senado, em ruas, estão nas bicicletas do novo
fique calmo, ou, melhor ainda, maio de 2019): ele sabe muito bem precariado, estão nos transportes
continue engordando o lucro que o aquecimento global antro- públicos, nas periferias, nos pre-
dos investidores, eles fecham os pogênico é real e grave, mas diz o sídios, estão em qualquer lugar e
olhos para qualquer coisa. Daí, contrário para defender os interes- em todos os lugares. E isso só vai
um dia, o secretário de Cultura ses do agronegócio e da mineração. piorar, porque, por cima de todas
Roberto Alvim faz um pronuncia- Ou o caso de Olavo de Carvalho: ele as injustiças e crimes, vêm chegan-
mento explicitamente inspirado no pode não ser muito inteligente, mas do, já chegaram, o dilúvio e o fogo
regime nazista e, paralelamente não é estúpido a ponto de acreditar do Antropoceno.�
aos fortes protestos, no Brasil e que a Terra é plana e que o nazismo
no exterior, que levaram à sua é de esquerda. Diz qualquer coisa
[1] Agradeço a Breno Isaac Benedykt pelas questões a mim
demissão (na verdade ele apenas para criar polêmica e para chamar colocadas, que me levaram a escrever este pequeno texto.

errou a mão, exagerou, pois está a atenção sobre si mesmo. Ou [2] Danowski, D. (2018). Negacionismos. Coleção Pandemia. São
Paulo: Editora n-1, 26 pp.
em total sintonia com seu chefe Ricardo Salles, o “antiministro” do
[3] Aqueles que negam as mudanças climáticas antropogênicas
Bolsonaro e, se tivesse sido mais meio ambiente, aquele que foi posto costumam se autodenominar “céticos do clima”, mas seus críticos
(entre os quais me incluo) preferem chamá-los de negacionistas.
prudente, teria permanecido no ali para destruir o meio ambiente
[4] https://www.noticiasagricolas.com.br/noticias/meio-ambien-
cargo). A gente acaba tendo que e que, não contente em negar a te/231554-cientistas-liderados-por-lcmolion-confrontam-am-
ler coisas como esta manchete da ciência do clima, o aquecimento bientalistas-que-defendem-o-aquecimento-climatico.html#.
XIaeE9F7kWo.
Folha de S. Paulo de 17 de janeiro: global e os dados do INPE sobre
“Citação nazista na cultura e agen- o desmatamento na Amazônia, Déborah Danowski é professora do Departamento
de Filosofia da PUC-Rio. pós-doutora pela Universi-
da econômica não se misturam, acusou ativistas de serem culpados dade de Paris IV e pela PUC-SP

39 Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel”


direitos humanos\\
Por Oriana Jara

MIGRAÇÕES E OS
DIREITOS HUMANOS
Multidões de deslocados por crises econômicas,
perseguições políticas ou religiosas vagam pelo mundo
enfrentando constantes violações de direitos

O direito de viver em sua ter-


ra natal, sair dela, retornar
livremente e reunir suas famílias
to de sobrevivência? Devemos con-
templar também o direito humano
de não migrar e considerar aque-
No Brasil, atualmente temos
menos de 1% de migrantes,
diante de uma média mundial
é conhecido como direito de ir e les migrantes como refugiados de 3,5%. O Brasil é considerado
vir. Porém, qual é a real liberdade econômicos e/ou ambientais? um país de emigração; acredita-
de escolha de pessoas assoladas -se que o número de brasileiros
pela fome, seca, pobreza, ou pelas Estima-se que haja 257,7 milhões de no exterior seja de cerca de
extremas desigualdades socioe- migrantes[1] no mundo, representan- 2,5 milhões[2].Dados de 2016[3]
conômicas que geram situações do 3,5% da população do planeta. Em estabeleciam que havia 65,6
de violência estrutural, sistêmica, 2000, tínhamos 173 milhões, 2,8 % milhões de pessoas deslocadas
social e familiar? Podemos consi- da população mundial. O fato é que forçosamente em todo o mundo.
derar que se trata de uma escolha a porcentagem de migrantes cresce Desse total, 76,2% eram crianças
voluntária ou apenas um movimen- mais do que a população mundial. e 48%, mulheres.

Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel” 40


A expressão “crise migratória”, Até o século XIX, muitos países não
muito usada na Europa, EUA e pela tinham restrições ou diferenças em
imprensa, procura legitimar medos relação aos direitos de nacionais
infundados ou xenofobia. Busca, e estrangeiros, excetuando-se os
muitas vezes, condicionar a socie- escravos; existia uma circulação
dade civil ao uso de expressões quase livre das pessoas. Havia,
como “risco migratório”, que surgiu naquela época, exemplos de perse-
no vocabulário político para legiti- guições e de necessidade forçada
mar atitudes contrárias à migração. de migrar, assim como exemplos
de promoção de migrações. É o
Embora a migração no Hemisfério caso da América Latina, onde 12
Norte seja tratada como uma ame- milhões de europeus, principal-
aça, vista como uma invasão de po- mente espanhóis, portugueses e
bres do Sul, procurando os países italianos, se estabeleceram entre
chamados desenvolvidos, devemos 1810 e 1950. Esta migração foi
destacar que a migração, atualmen- promovida para colonizar terras
te ocorre, majoritariamente no sen- conquistadas ou ocupar territórios
tido Sul-Sul. Na América Latina, por vazios no contexto do colonialismo
exemplo, 60% da migração acontece e do imperialismo. Na época, a
dentro da mesma região; na África, porcentagem de migrantes chegou
isso ocorre em 73% dos casos. a superar 5%

A violação de direitos humanos A Primeira Guerra Mundial (1914-


sofridas por imigrantes e refugia- 18) trouxe as primeiras mudanças
dos, as condições em que parte da nessa relativa liberdade de cir-
humanidade vive – produto das de- culação. Apareceram com maior
sigualdades entre e/ou dentro dos destaque as desigualdades de
países – é a real ¨crise humanitária¨ direitos entre nacionais e estran-
do planeta. E pela primeira vez a geiros, produto da proliferação de
sociedade global assiste ao vivo e estados nacionais. Surgiu também
on line, por conta da ampla cober- a primeira iniciativa de regulação e
tura midiática. A "crise" está mais governança sobre o tema dos refu-
relacionada a como essas popu- giados. Criou-se a Liga da Nações e
lações são recebidas pelos países
de destino que pelos números de
pessoas que se deslocam.
Refugiados
A sociedade internacional en-
frenta um grande desafio e um Refugiados são pessoas que
dilema: conciliar o respeito da saem de seus países por perse-
soberania territorial dos estados guição, conflito, violência ou ou-
e as obrigações internacionais tras circunstâncias e que, como
inerentes à proteção dos direitos resultado, necessitam de prote-
dos migrantes. Um dilema que ção internacional. Para essas
envolve as diversas categorias de pessoas é perigoso retornar; sua
migrantes, que requerem dife- volta pode ter consequências
rentes respostas. São migrantes fatais. Por isso, são especifica-
econômicos, expatriados, refu- mente definidos e protegidos no
giados, demandantes de asilo, Direito Internacional. Ao contrá-
sem-documentos, trabalhadores rio dos migrantes que deixam e
transfronteiriços, trabalhadores podem voltar de seus locais de
sazonais, binacionais etc. origem de forma voluntária.

41 Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel”


direitos humanos\\
vado deles e, por isso, cada pessoa Apesar de ser um fato e um dos
Migração migra na posse de seus direitos;
entra no país de acolhida na posse
tópicos de relevância a ser en-
frentado no século XXI, destaca-
Migração é um fenômeno com- da totalidade deles. Não podemos mos que não há um instrumento
plexo que sempre existiu como renunciar nem ser privados de internacional amplo que regule a
resultado de crises humanitá- nenhum direito. conduta dos Estados com relação
rias, produto de guerras, desas- às variáveis existentes no proces-
tres naturais, secas, pobreza, Estes instrumentos internacio- so migratório. Temos normas que
fome, perseguições políticas, nais, no que se refere à pessoa do regulam temas como segurança,
religiosas, étnicas e agora, em imigrante, consagram a liberdade nacionalidade, reunião familiar,
decorrência das mudanças de circulação, que pode ser restrin- circulação de pessoas, tráfico
climáticas. Implicam mudanças gida mediante processo legal e por de pessoas, e também normas
temporárias ou permanente de assuntos contemplados na lei. Mas relativas à proteção de todos os
residência e podem acontecer não contemplam direitos para as seres humanos ou todos os traba-
dentro do pais (migração in- pessoas sem documentos (tratada lhadores estrangeiros. Mas sobre
terna) ou de um país a outro, pela Organização Internacional migração, podemos só mencionar o
migração internacional. A carac- do Trabalho (OIT), na Convenção recente Pacto Global Mundial para
terística principal da migração é 45/158). Estabelecem a universa- as Migrações Ordenadas, Seguras
ser um ato voluntário, individual lidade dos direitos humanos e de e Reguladas, que tenta ser um ins-
ou de familiares e amigos. não discriminação pela origem ou trumento que colabore na gover-
qualquer outra circunstância, mas nança das migrações.
deixam de contemplar a situação
a percepção mundial da necessida- de imigrantes administrativamente “Acolher, proteger, promover e
de de estabelecer o direito interna- irregulares, que não têm a garantia integrar”. Lema da Conferência
cional dos refugiados. de realização de seus direitos. Intergovernamental, realizada em
Marrakesh, no Marrocos. O resul-
Depois da Segunda Guerra Mundial, tado desse evento foi a adoção
devido ao fluxo considerável de pes- do Pacto Global das Migrações
soas deslocadas que não podiam
retornar a seus lugares de origem,
A violação (PGM), aprovado por 164 países
no dia 10 de dezembro, 70º aniver-
surgiu o Acnur e foram adotados a
Convenção de 1951 e o Protocolo
de direitos sário da Declaração Universal dos
Direitos Humanos.
de 1967, sobre os refugiados, as
convenções de 1954 e 1961 sobre
humanos sofridas A visão mundial e global dos atuais
os apátridas, o Pacto Internacional por imigrantes horrores do Mediterrâneo, entre
sobre Direitos Civis e Políticos outros, impulsou os estados a uni-
(1966). São iniciativas internacionais e refugiados, as rem esforços rumo a um conjunto
para a proteção dos direitos huma- de instrumentos que os estados
nos, instituída como consequência condições em que podem decidir aplicar em nível
do massacre de milhões de civis
durante o Holocausto, e da consci- parte da humanidade interno, bilateral ou até regional, de-
pendendo das suas circunstâncias
ência da comunidade mundial sobre
a urgência de criar uma estrutura vive – produto das e necessidades particulares. O PGM
é um acordo juridicamente não vin-
global fundamentada no respeito
e na dignidade da pessoa humana.
desigualdades entre culativo. O Pacto tem como base a
ideia de que os estados não devem
Surge o valor da pessoa humana
como fonte de direito e a Declaração
e/ou dentro dos agir de forma isolada, mas atuar
de forma coletiva, cooperando para
Universal dos Direitos Humanos[4]
(1948), base do sistema internacio-
países – é a real alcançar resultados significativos.
Outro objetivo do Pacto é promover
nal de defesa e proteção da pessoa
humana. Os direitos são universais,
“crise humanitária” a cooperação de forma eficiente e
menos desburocratizada, para me-
inalienáveis, ninguém pode ser pri- do planeta” lhorar e fortalecer os mecanismos

Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel” 42


Foto: Ververidis Vasilis / Shutterstock.com
Sem direitos desde a infância

de proteção da pessoa do imigrante, representante da sociedade civil divulgar um novo olhar sobre as
com ou sem documentos.  O obje- na coordenação do grupo de São migrações, focado no imigrante
tivo do Pacto Global é servir como Paulo. Levantamos várias propos- como fator de desenvolvimento,
um Norte para as ações dos países tas todas contempladas e muitas de contribuição social e cultural,
que aderirem a ele. incluídas no texto final. esclarecer ideias errôneas que
sustentam vários mitos sobre a mi-
A sociedade civil participou ativa- Estados de todo o mundo, excetu- gração e que estão no imaginário
mente. Pessoalmente, participei na ando os Estados Unidos de Améri- coletivo. Inclusive porque o total de
regional de América Latina, como ca, se comprometem a aumentar migrantes no mundo contribui com
as vias de migração regular, mais do 9% do PIB Mundial e suas
melhorar a proteção dos migrantes remessas são de quase 7 trilhões
Declaração Universal tanto na saída, trânsito e chegada, de dólares anuais, três vezes mais
assim como dar garantia de acesso que toda ajuda internacional dada
dos Direitos aos serviços básicos com isonomia pelas organizações internacionais
A Declaração Universal dos de direitos com os nacionais. O aos países em desenvolvimento. �
Direitos Humanos estabelece, Brasil, que tinha assinado durante
[1] Relatório da Divisão de População do Departamento dos
no Art. 14 (Direito de Asilo), o administração Temer, nos primei- Assuntos Econômicos e Sociais do Secretariado das Nações
direito da pessoa que é vítima de ros dias do governo Bolsonaro se Unidas. United Nations, 2017, p. 1.

perseguições, a procurar e gozar retirou do Pacto. Como represen- [2] Brasileiros no mundo. Ministério de Relações Exteriores
. http://www.brasileirosnomundo.itamaraty.gov.br/noticias/
de asilo em outros países. Já o tante da sociedade civil, lamentei censo-ibge-estima-brasileiros-no-exterior-em-cerca-de-500-mil/
impressao
Art. 13 (Direito à Liberdade de que, sem consultar a nação ou a [3] Relatório Global Trends do Alto Comissariado das Nações
Movimento), estabelece o direito outros poderes do Estado, o Brasil Unidas para Refugiados (Acnur) 2017.

à livre circulação e residência se colocasse ao lado de Trump no


dentro de cada estado, assim boicote ao Pacto. Oriana Jara é socióloga e psicóloga social. Preside a
Presença da América Latina e o Conselho do Espaço
como de sair ou deixar seu país sem Fronteiras (ESF). diretora do “Projeto Latinoame-
e a este regressar. Nada se fala Independentemente dos resulta- ricano, Mujer tú eres parte” e membro do Conselho
Municipal de Politicas Publicas para Imigrantes e
da obrigação de ser acolhido. dos do PGM, sua importância foi Refugiados de São Paulo.

43 Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel”


cidade em foco\\
Por Raquel Rolnik e Eva Garcia-hueca

MUNICIPALISMO
E DIREITO À CIDADE –
contradições e desafios [1]

“O crescimento O DIREITO À CIDADE: DAS RUAS


descontrolado do AO MUNDO INSTITUCIONAL
ambiente físico das

V
cidades e a preca- ivemos na era das cidades: mundo todo, etc. Da mesma forma,
rização do acesso mais da metade da popula- a degradação ambiental, o cresci-
à moradia, entre ção mundial vive em cidades e mento descontrolado do ambien-
as previsões apontam para uma te físico das cidades e a precari-
outros, tornaram-se elevação desta tendência nas pró- zação do acesso à moradia, entre
fenômenos urbanos ximas décadas. Vivemos também outros, tornaram-se fenômenos
globais” na era da globalização: atualmente, urbanos globais.
o mundo está irremediavelmente
interconectado e sujeito a interde- Os processos acima mencionados
pendências que obrigam a pensar geraram sérios problemas sociais
e a atuar fora dos marcos teóri- e econômicos, com destaque para
cos e políticos convencionais. Os os altos níveis de desemprego, o
fenômenos da urbanização e da crescimento da informalidade, as
globalização, longe de se darem bolhas no mercado imobiliário re-
em paralelo, estão íntimamente sidencial ou o crescimento urbano
entrelaçados. A urbanização é um acelerado pela chegada de fluxos
fenômeno global e a globalização, migratórios. A ausência de uma
por sua vez, se expressa com força resposta política e institucional
nas cidades: deslocamento da ati- suficiente para esses fenômenos,
vidade produtiva, transnacionaliza- por parte dos governos, levou à
ção das finanças e reestruturação eclosão de protestos e mobiliza-
econômica das cidades, surgimen- ções nas ruas. Durante a última
to de dinâmicas de mobilidade que década, várias mobilizações
superam as fronteiras nacionais, e urbanas atravessaram o planeta
que têm como epicentro cidades do de ponta a ponta: do movimento

Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel” 44


Occupy nos Estados Unidos, dos cidades, expresso por meio de uma
“indignados” no sul da Europa multiplicidade de reivindicações:
ou as revoltas contra o modelo mais espaços participativos para
de desenvolvimento urbano em tomadas de decisão; mais espaços
Istambul em 2011, passando públicos e verdes, administrados
pelos protestos no Brasil contra o para serem áreas comuns, não
aumento do preço do transporte mercantilizados ou controlados por
público, o movimento Black Lives entidades privadas; serviços públi-
Matter contra a violência dirigida cos acessíveis; tratamento iguali-
às comunidades afrodescendentes tário aos diferentes grupos sociais,
nas cidades norte-americanas a étnicos e de gênero da cidade,
partir de 2013, até os graves con- etc. Nesse sentido, os ativistas e
frontos em Santiago do Chile após analistas do fenômeno concordam
o aumento de preço do metrô em apontar o “direito à cidade”
iniciados em outubro de 2019. como o guarda-chuva que articula
e sintetiza esse clamor comparti-
Apesar da heterogeneidade desses lhado. A luta pelo direito à cidade
protestos massivos, tanto no que parece, portanto, ter se tornado
diz respeito às suas origens quanto o depositário das expectativas de
aos seus impactos, há um elemen- mudança, afirmação de justiça, de
to comum em todos eles: o clamor democracia e de igualdade nas
popular por uma vida digna nas cidades, tanto pelo uso que os mo-

45 Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel”


vimentos sociais têm feito desse
direito, como pelas tentativas de
interpretar esses protestos sob a
ótica acadêmica (Harvey, 2003[2] e
2008[3]; Brenner,Marcuse y Mayer
2011[4]).

Vale notar que a expressão “direito


à cidade” - aparentemente ressur-
gida nas ruas - também penetrou
o mundo institucional. Desde a sua
presença em conferências interna-
cionais até a adoção do termo nas
constituições por meio de dispo-
sitivos legais locais e plataformas
políticas municipais, a circulação
do termo penetrou o ambiente
político e as políticas públicas em
nível local e internacional. Embora
muito tenha sido escrito sobre o
papel dos movimentos sociais e
da sociedade civil nesse campo, a
incorporação dessa narrativa ao
municipalismo internacional ainda
permanece um tópico pouco explo-
rado na literatura acadêmica.

QUAL O DIREITO À CIDADE?


CONTRADIÇÕES E DESAFIOS DO desgastado. Na opinião de alguns deve permitir que se reinvente
CONCEITO autores, é precisamente nisso que a cidade de acordo com reivindi-
reside a perda de seu potencial cações coletivas que incidam de
Com a generalização do direito crítico, como se o direito à cidade modo efetivo sobre o processo
à cidade em reivindicações dos tivesse capturado toda a imagina- de urbanização (Lefebvre, 2009
mais diversos movimentos sociais, ção social e política, passando a [1968])[7]. No nosso ponto de vista,
círculos acadêmicos, conferências tematizar praticamente qualquer é aqui que se encontra o denomi-
internacionais, leis e propostas questão urbana, indiscriminada- nador comum do clamor expresso
institucionais em vários países do mente (Tavolari, 2016)[6]. nas ruas e, certamente, o ponto de
mundo, houve vários processos de conexão entre narrativas (políticas,
ressignificação do conceito. Esses Essa proliferação de significados e institucionais) e as lutas sociais
diferentes usos e apropriações - leituras do direito à cidade coop- que precisam ser restauradas.
alguns mais emancipatórios do tou o conceito, preenchendo-o de
que outros (Garcia-Chueca, 2016) contradições que precisam ser Uma primeira contradição diz
[5]
- foram interpretados como uma dissecadas, pois podem limitar respeito à definição do direito à
ausência de precisão conceitual do seu potencial revolucionário e cidade a partir da estrutura clás-
termo, de modo que às vezes ele sua capacidade de promover uma sica dos direitos humanos. Desde
ficou marcado como sendo um con- mudança no modelo de produção o pós-guerra, os direitos humanos
ceito vago, sem especificidade ou e gestão da cidade. Essa mudança se tornaram uma palavra chave

Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel” 46


Foto: blvdone / Shutterstock.com
oferecer um marco conceitual
idôneo para o exercício do poder
coletivo e de não-proprietários? A
maior parte da humanidade e dos
habitantes das cidades, particu-
larmente os que estão excluidos
de uma vida digna, fica inevitavel-
mente de fora desse esquema de
direitos individuais baseado no
direito à propriedade.

A segunda contradição situa-se no


âmbito dos modelos de cidades
que se difundiram nas últimas
décadas. Vivemos em cidades cada
vez mais divididas e fragmentadas,
fruto de uma polarização crescente
no que diz respeito à distribuição
de riqueza e de poder. Cidades
de muros (Caldeira, 2007)[9], tanto
materiais quanto simbólicos, onde
proliferam de forma progressiva
enclaves fortificados, condomí-
nios fechados e espaços públicos
privatizados, submetidos a uma
vigilância constante. O resultado
é o surgimento de microestados
privados no território de uma
para modelos políticos e éticos mesma cidade e a configuração de
O resultado democráticos, definindo-se como
pilar para a construção de um
separações abismais que dividem a
população entre aqueles que des-
é o surgimento mundo melhor. No entanto, sua frutam de níveis de hiperinclusão
matriz individual e a centralidade (ou semi-inclusão) e aqueles que
de microestados do direito à propriedade (individu- foram lançados a um novo estado
al), incorporadas no termo direi- natural, desprovidos de quaisquer
privados no tos humanos, torna impossível, a direitos de cidadania (Santos, 2009)
partir desse quadro, questionar . Estes últimos estão fora do
território de uma
[10]

a lógica do mercado liberal e contrato social moderno e vivem


mesma cidade e neoliberal hegemônico, no qual a
propriedade privada e o lucro pre-
afastados do abrigo do Estado de
direito ou do Estado de bem-estar
a configuração de valecem sobre todos os outros di-
reitos (Herrera Flores, 2005)[8]. Até
social, perseguidos pelas mais
cruéis formas de fascismo social.
separações abismais que ponto um esquema de direitos
individuais, construído sobre um
Esses grupos estão localizados,
como diria Frantz Fanon (2002
que dividem a pensamento político-filosófico ba-
seado na idéia de uma “democra-
[1961])[11], na “zona do não ser”.
Nessas circunstâncias torna-se
população” cia dos proprietários livres”, pode muito mais difícil materializar os

47 Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel”


cidade em foco\\
ideais de cidadania e de pertenci- destino de cidades não em função ciedades capitalistas e, deste pon-
mento (intimamente relacionados das necessidades do povo, mas to de vista, buscaram modificar
ao direito à cidade), também amea- das expectativas de remunera- certas políticas ou marcos legais
çados pela crescente expansão da ção desses capitais. As políticas através de uma maior cobertura
ética neoliberal individualista. urbanas, em nome do ajuste dos chamados “direitos urbanos”.
fiscal e da promoção do desen- Essa dimensão está relacionada à
A terceira contradição refere-se volvimento e do emprego, foram reivindicação do direito à cidade
ao tipo de política urbana que fundamentais para atrair inves- como clamor, como uma urgência
acabou sendo imposta mundial- tidores internacionais e possibi- ou uma necessidade (Marcuse,
mente, há várias décadas, e que litaram processos massivos de 2009)[13]. Ou seja, apela para uma
foi direcionada à abertura de desapropriação. Dessa forma, as melhoria das condições de vida
novas fronteiras urbanas capazes metrópoles se transformaram no dos habitantes das cidades no que
de absorver os excedentes de ponto de encontro de processos diz respeito ao acesso à moradia,
capital financeiro global (Rolnik, aparentemente contraditórios: aos serviços, à infraestrutura,
2018)[12]. Graças a essas políticas por um lado, a desapropriação ao transporte público, para citar
urbanas, projetos urbanísticos massiva imposta aos menos fa- apenas alguns exemplos. No
espetaculares e de grande escala vorecidos e, por outro, uma nova entanto, o direito à cidade, além
tomaram nossas cidades, impon- colonização do espaço urbano de sua dimensão material, tem
do uma lógica global ao âmbito para torná-lo disponível para uma dimensão política e simbólica
local, graças à eliminação de aqueles que concentram esse ca- que se confunde com a utopia de
barreiras à livre circulação do ca- pital excedente. Nesse profundo transformar o modelo urbano pre-
pital financeiro global e à criação, paradoxo reside o ponto cego das dominante em outro que não seja
desde os anos oitenta do século lutas sociais e o limite estrutural moldado pelo capital (Lefebvre,
passado, de novas instituições e de seu horizonte emancipatório. 2009 [1968])[14], mas por valores
instrumentos financeiros. Entre Neste cenário, é possível falar de de justiça social e pela atenção
eles, destacam-se em particular um direito universal à cidade? às necessidades vitais. Embora
a securitização e a formação de a dimensão material das cidades
pacotes de hipotecas locais para A quarta contradição tem a ver possa ser transmitida através das
venda a investidores internacio- com a inserção do direito à cidade instituições, o que tem a ver com
nais, processos que contribuíram na agenda institucional. Muitas ve- sua dimensão política e simbólica
para gerar imensas fortunas zes as lutas pelo direito à cidade necessariamente lhes escapa,
para intermediários financeiros visavam influenciar os mecanis- porque implica uma estratégia re-
e, ao mesmo tempo, definiram o mos de reprodução social nas so- volucionária e não reformista. Isso

Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel” 48


Muitas vezes as lutas pelo direito à cidade visavam
influenciar os mecanismos de reprodução social nas
sociedades capitalistas e, deste ponto de vista, buscaram
modificar certas políticas ou marcos legais através de uma
maior cobertura dos chamados ‘direitos urbanos’”

é particularmente relevante em velmente, uma resposta binária [10] Santos, Boaventura de Sousa. Sociología jurídica
crítica. Para un nuevo sentido común en el derecho. Madrid,
contextos pós-coloniais, em que para esta pergunta é insuficiente Bogotá: Trotta, ILSA, 2009.
os modelos de cidades (coloniza- para captar a complexidade dos [11] Fanon, Frantz. Les damnés de la terre. París: La Décou-
verte, 2002 [1961].
doras) historicamente negaram o processos de configuração das [12] Rolnik, Raquel. La guerra de los lugares. La coloni-
know-how às maiorias, definindo- políticas. Pode ser que ambos os zación de la tierra y la vivienda en la era de las finanzas.
Barcelona: Descontrol, 2018.
-as como “subnormais”, “carentes” circuitos, de cima para baixo e de [13] Marcuse, Peter. «From Critical Urban Theory to the
ou “marginais”, e lhes impuseram baixo para cima, tenham a ver com Right to the City». CITY, vol. 13, n.° 2-3 (2009), p. 185-196.

uma certa maneira de fazer uma certos avanços políticos e legais. [14] Lefebvre, Henri. Le droit à la ville. París: Economica-
-Anthropos, 2009 [1968]
cidade afastada de suas práticas e Por esta razão é que é tão neces- [15] Rolnik, Raquel. La guerra de los lugares. La coloni-
realidades (Rolnik, 2018)[15]. sário analisar esta questão com zación de la tierra y la vivienda en la era de las finanzas.
Barcelona: Descontrol, 2018.
um olhar atento que não se deixe
A quinta contradição tem uma afetar por discursos auto-compla-
relação íntima com a anterior. Se centes. � Referencias bibliográficas
o máximo potencial emancipatório Brenner, Neil; Marcuse, Peter y Mayer, Margit (eds.). Cities
for people, not for profit. Critical urban theory and the
do direito à cidade fica de fora da Raquel Rolnik é catedrática de Arqui-
right to the city. Londres y Nueva York: Routledge, 2011.
tetura e Urbanismo, Universidade de
agenda institucional, então, que São Paulo. raquelrolnik@usp.br Caldeira, Teresa Pires. Ciudad de Muros. Barcelona:
Gedisa, 2007.
papel podem exercer o municipa- Eva Garcia-hueca é coordenadora
científica, Programa Ciudades Globa- Fanon, Frantz. Les damnés de la terre. París: La Décou-
lismo internacional e os governos les, CIDOB. egarcia@cidob.org verte, 2002 [1961].
municipais? Desde 2016, um núme- Tradução: Claudia Heller Frediani, Alexandre Apsan. «El derecho a la ciudad como
ética de compromiso: enseñanzas de las experiencias de
ro crescente de governos locais ar- la sociedad civil en el Sur global». En: Garcia-Chueca,
Eva y Vidal, Lorenzo (eds.). Ampliando derechos urbanos.
ticulados em rede decidiu defender Notas Igualdad y diversidad en la ciudad. Barcelona: CIDOB,
o direito à cidade em determinados [1] Versão traduzida e editada da Introdução à Revista 2019, p. 131-143.
CIDOB d’Afers Internacionals, n.º 123 (diciembre de 2019), Garcia-Chueca, Eva. «Human rights in the city and the
fóruns internacionais e agendas p. 7-18. DOI: doi. doi.org/10.24241/rcai.2019.123.3.7 - La cita right to the city: two different paradigms confronting
globais. No entanto, não está claro de Brenner debería en el texto debería ser Brenner, Marcu-
se y Mayer, 2011 (y no Brenner, 2007 como figura ahora).
urbanisation». En: Oomen, Barbara; Davis, Martha F. y
Grigolo, Michele (eds.). Global Urban Justice: The Rise of
até que ponto essa declaração de [2] Harvey, David. «The Right to the City». International Human Rights Cities. Cambridge: Cambridge University
Press, 2016, p. 103-120.
intenções em relação ao direito à Journal of Urban and Regional Research, vol. 27, n.° 4
(2003), p. 939-941 Harvey, David. «The Right to the City». International
cidade se traduz efetivamente na [3] Harvey, David. «The Right to the City». New Left Review, Journal of Urban and Regional Research, vol. 27, n.° 4
n.° 53, 2008, p. 23-40 (2003), p. 939-941.
elaboração de políticas transfor- Harvey, David. «The Right to the City». New Left Review,
[4] Brenner, Neil; Marcuse, Peter y Mayer, Margit (eds.).
madoras concretas. Embora nos Cities for people, not for profit. Critical urban theory and the n.° 53, 2008, p. 23-40.
right to the city. Londres y Nueva York: Routledge, 2011
últimos anos algumas cidades Herrera Flores, Joaquín. Los derechos humanos como
productos culturales. Madrid: Catarata, 2005.
[5] Garcia-Chueca, Eva. «Human rights in the city and the
tenham adotado políticas urbanas right to the city: two different paradigms confronting urba- Lefebvre, Henri. Le droit à la ville. París: Economica-An-
nisation». En: Oomen, Barbara; Davis, Martha F. y Grigolo,
corajosas (especialmente no que Michele (eds.). Global Urban Justice: The Rise of Human
thropos, 2009 [1968].
Marcuse, Peter. «From Critical Urban Theory to the Right
diz respeito ao direito à moradia), Rights Cities. Cambridge: Cambridge University Press,
2016, p. 103-120.
to the City». CITY, vol. 13, n.° 2-3 (2009), p. 185-196.
vale perguntar até que ponto isso [6] Tavolari, Bianca «Direito à cidade: uma trajetória concei-
Santos, Boaventura de Sousa. Sociología jurídica crítica.
Para un nuevo sentido común en el derecho. Madrid,
foi motivado por essa relevância tual». Novos Estudos CEBRAP, vol.35, n.° 1 (2016), p. 93-109.
Bogotá: Trotta, ILSA, 2009.
[7] Lefebvre, Henri. Le droit à la ville. París: Economica-An-
internacional do direito à cidade thropos, 2009 [1968].
Rolnik, Raquel. La guerra de los lugares. La colonización
de la tierra y la vivienda en la era de las finanzas. Barcelo-
ou, melhor dizendo, pela pressão [8] Herrera Flores, Joaquín. Los derechos humanos como na: Descontrol, 2018.
productos culturales. Madrid: Catarata, 2005.
das lutas sociais concretas desen- [9] Caldeira, Teresa Pires. Ciudad de Muros. Barcelona:
Tavolari, Bianca «Direito à cidade: uma trajetória con-
ceitual». Novos Estudos CEBRAP, vol.35, n.° 1 (2016), p.
volvidas em seu território. Prova- Gedisa, 2007. 93-109.

49 Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel”


humor\\

Ivo Minkovicius, autor de


literatura infantojuvenil

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