A sabedoria e a questão linguística na África negra
Seu nome está agora ligado a uma frase que os intelectuais
geralmente têm o hábito de citar em suas conversas: "Na África, quando um velho morre, é uma biblioteca que queima." Seria possível revelar esta imagem para os nossos leitores?
Amadou Hampaté Bâ: Quando fui nomeado membro do Conselho
Executivo da Unesco, eu me dei como objetivo falar com os europeus da tradição Africana como também da sua cultura. E isso foi muito mais difícil porque na tradição ocidental foi estabelecido de uma vez por todas que, quando não há nenhuma escrita, não existe uma cultura; tanto que quando eu propus pela primeira vez considerar tradições orais como fontes históricas e fontes de cultura, eu provoquei risos. Alguns até perguntaram ironicamente que benefício a Europa poderia tirar das tradições africanas! A um interlocutor que me perguntou um dia: "O que poderia então a África nos trazer?" Lembro-me de ter respondido: “O riso que você perdeu" Talvez poderíamos acrescentar hoje: uma certa dimensão humana, que a civilização tecnológica moderna está fazendo desaparecer. O fato de não ter escritos, não priva a África nem de longe, de ter um passado e um saber. Como dizia meu mestre Tierno Bokar: "A Escrita é uma coisa e o saber é outra. A escrita é a fotografia do saber, mas ela não é exatamente o saber. O saber é uma luz que está no homem. É a herança que todos os antepassados aprenderam e que nos transmitiram como semente, assim como o baobá está contido potencialmente em sua semente ". É claro que esse conhecimento herdado e transmitido de boca em boca pode se desenvolver ou murchar. Ele cresce onde existem centros de iniciação e jovens para receber formação. Ele se perde onde a iniciação desaparece. O conhecimento ou sabedoria africanos é imenso, variado e abrange todos os aspectos da vida. O "conhecedor" não é jamais um "especialista". É um generalista. O mesmo velho, por exemplo, terá conhecimento tanto na farmacopeia quanto em "ciência da terra" (propriedades agrícolas ou medicinais de diferentes tipos de terra) em "ciência da água" ou em astronomia, cosmologia, psicologia, etc. Pode-se falar aqui de uma "ciência da vida", a vida é concebida como uma unidade, onde tudo está interconectado, interdependente e interagindo. Na África, tudo é "História". A grande história de vida inclui seções que serão, por exemplo: o História da terra e da água (geografia) o História das plantas (botânica e farmacopeia) o História do "ventre da terra" (mineralogia) o História dos astros e estrelas (astronomia, astrologia) o história de águas, etc. Este conhecimento é sempre concreto e dá lugar a usos práticos. Em ordem de conhecimento, começamos "de baixo", isto é, por criaturas e coisas menos desenvolvidos ou menos animados em relação ao homem, para chegar até o homem. A terra, considerada como "umbigo" do mundo, é o principal habitat dos três tipos de seres, ou três modos de manifestação de vida: 1. Na parte inferior da escala estão os seres inanimados, chamados de "mudos", cuja língua é considerada oculta, sendo incompreensível ou inaudível para os mortais comuns. É o mundo de tudo o que está contido na superfície da Terra (areia, água, etc.) ou no seu interior (minerais, metais, etc.). 2. Em seguida, vêm as criaturas 'animadas imóveis. "Tratam-se de seres que não se movem. São as plantas, que podem estender seus braços no espaço, mas cujo caule ou tronco não pode se mover. 3. Finalmente, os "animados móveis", que vão desde os pequenos animais ao homem, passando por todas as classes de animais. Cada categoria é subdividida ainda mais em três grupos: a. Entre os inanimados mudos estão: ● os inanimados sólidos ● os inanimados líquidos ● os inanimados gasosos (literalmente "fumaçante"). b. Entre os animados imóveis encontram-se ● as plantas rastejantes ● as plantas verticais que constituem a classe superior. c. Os animados móveis ainda incluem: ● animais terrestres (incluindo os animais sem ossos, tais como vermes, etc., e animais com ossos) ● O Animais aquáticos ● Os animais que voam. Essas nove classes de seres constituem períodos de ensinamentos específicos, mas que não são necessariamente sucessivos ou progressivos. O ensino é de fato ligado à vida e é fornecido conforme as circunstâncias que possam surgir. Se, por exemplo, uma serpente aparece de repente de um mato, esta será uma oportunidade para que o velho mestre dê uma lição sobre serpente. O seu discurso será então direcionado e adaptado ao público, sendo ele de adulto ou de crianças. Ele pode falar sobre as lendas de serpente, ou remédios que podem curar sua mordida. Se ele é cercado por crianças, ele vai falar um pouco mais sobre os problemas que uma serpente pode causar, para ensiná-los a ter mais cuidado. O estudo da terra, da água, da atmosfera e tudo o que eles contêm, como manifestações da vida constitui a totalidade do conhecimento humano legado pela tradição. Mas, a maior parte de todas as "histórias", as mais desenvolvidas, a mais significativa é a história do próprio homem, que está no topo dos “animados móveis." É o conhecimento do homem e a aplicação deste conhecimento na vida prática que faz do homem um "ser superior" na escala de vida. Só então poderemos dizer que é no estado de "neddhaaku" (Fulani) ou "maayaa" (Bambara), ou seja, no estado do homem integral. A história do homem inclui, por um lado, os grandes mitos da criação do homem e de sua aparição na Terra, com a significação do posto que ele ocupa no centro do universo, o papel que ele deve desempenhar (essencialmente de equilíbrio axial) e sua relação com forças vitais que o cercam e habitam nele. Compreende também a história dos grandes ancestrais, inumeráveis contos educativos e enfim, a história, a sua própria história, com as grandes tradições reais, crônicas históricas, epopeias, etc. A tradição transmitida oralmente é tão precisa e tão rigorosa que se pode, com várias sobreposições, reconstruir os grandes eventos de séculos passados em cada detalhe, incluindo a vida dos grandes impérios ou grandes homens que ilustraram a história. É notadamente com base nas várias tradições orais que eu poderia reconstruir a história do Império Fulani de Macina no século XVIII. São também as sobreposições de tradições orais que possibilitaram meu amigo Boubou Hama, do Níger, de fornecer sua volumosa produção sobre a história e o conhecimento tradicional dos povos africanos. Nas civilizações orais, o homem se compromete com a palavra, a palavra é o homem. Daí o profundo respeito por histórias tradicionais legadas do passado, que têm permissão de embelezar a forma ou viés poético, mas o corpo mantém-se inalterado ao longo dos séculos, transmitido por uma memória prodigiosa, que é a mesma característica dos povos por tradição oral. Na civilização moderna, o papel substituiu a palavra. É o papel que compromete o homem. Mas podemos dizer com certeza, nestas condições, que a fonte escrita é mais confiável do que fonte oral, continuamente monitorada pelo meio tradicional?
Vale ressaltar aqui que, na África, ao lado visível e aparente das
coisas, há sempre um correspondente de aspecto invisível e oculto, que é como se fosse sua origem ou princípio. Da mesma forma que o dia sai da noite, tudo tem um aspecto diurno e um aspecto noturno, um lado visível e um lado escuro. Cada ciência aparente corresponderá sempre uma ciência muito mais profunda, especulativa e como poderíamos dizer, esotérico, baseada no conceito fundamental da unidade da vida e da inter-relação de todos os diferentes níveis de existência. Há uma área que, por estar menos imediatamente explorável, merece ser aprofundada e explorada antes que os últimos depositários desta ciência desapareçam. Como vimos, o conhecimento africano é um conhecimento global, um conhecimento de vida, razão pela qual os homens velhos que são os últimos repositórios de conhecimento podem ser comparados a vastas bibliotecas cujas prateleiras múltiplas são ligadas por "elos invisíveis” que constituem precisamente a chamada "ciência do invisível ", autenticada pelas cadeias de transmissão de iniciação. Anteriormente, esse conhecimento era transmitido regularmente de geração em geração, pelos ritos de iniciação e por várias formas de educação tradicional. Esta transmissão regular foi interrompida devido à ação externa, extra africana: o impacto da colonização. Este impacto, vindo com a sua superioridade tecnológica, com seus métodos e seu próprio ideal de vida, fez de tudo para substituir a maneira correta de viver dos africanos. Como nunca se semeia no pousio, período de descanso da terra, as potências coloniais foram forçadas a "clarear" a tradição africana para poder plantar sua própria tradição. A escola ocidental começou primeiro a combater a escola tradicional africana e perseguir os detentores de conhecimentos tradicionais. Era a época em que todo curandeiro era preso como um "charlatão" ou por "prática ilegal da medicina" ... Foi também o momento em que as crianças foram impedidas de falarem sua língua materna e foram removidas de suas influências tradicionais. Tanto assim que, na escola, a criança que fosse pega falando sua língua materna, seria vista com uma prancheta chamada de "símbolo", na qual era desenhada uma cabeça de burro, e a criança tinha que almoçar sozinha ... As sementes desta nova tradição, uma vez semeada, cresceu e deu frutos. É por isso que o jovem africano, nascido da escola ocidental, tende a viver e pensar como os europeus, e é claro que não se pode culpá-lo, porque ele só tem conhecimento disso. O estudante vive sempre de acordo com as regras da sua escola. Nos tempos coloniais, a transmissão de iniciação, que outrora fora feita a céu aberto e em uma base regular, teve que se refugiar em uma espécie de clandestinidade. Aos poucos, o distanciamento das crianças de suas famílias fez que os velhos não pudessem mais estar ao redor dos jovens suscetíveis a receberem sua educação. A iniciação saiu, pouco a pouco das cidades para se refugiar no mato. Mas o golpe final aconteceu pelo advento da independência, com base em ideias e ideologias exclusivamente europeias. Enquanto que o colonialismo, de fato, suscitava reservas e penetrava muito pouco no interior, essas mesmas ideias europeias, veiculadas pelos partidos políticos modernos, mobilizaram massas até no meio dos recantos do interior, de tal sorte que a transmissão não encontra campo para ser exercida. Numa época em que diversos países ao redor do mundo, através da Unesco, gastam dinheiro e esforço para salvar os grandes monumentos da Núbia ameaçada pelas águas da barragem de Assuão, não é tão mais urgente salvar a riqueza prodigiosa de conhecimento e a cultura humana acumulada ao longo de milênios nestes monumentos frágeis que são os homens, e cujos últimos guardiões estão desaparecendo? Hoje em dia, devido à quebra na transmissão tradicional, quando um desses homens sábios antigos desaparecem, é como se todo o seu conhecimento fosse engolido durante a noite. E eu não desejo isso para África, ou mesmo para a humanidade.