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Suplemento

literário do
Jornal A União

Maio - 2020
Ano LXXI - Nº 3
R$ 6,00
Exemplar encartado no jornal A União apenas para assinantes. Nas bancas e representantes, R$ 6,00

Sivuca
90 anos
Um mergulho na trajetória
do músico paraibano que fez,
da sanfona, um respeitado
instrumento para sala de concerto
2020: Ano
Cultural
Sivuca, na
Paraíba
6 editorial

Sivuca, um paraibano do mundo


Apesar do coronavírus, 2020 Sivuca foi um mãos procura dar a dimensão
será lembrado como o “Ano do artista paraibano mais pres-
Cultural Mestre Sivuca”, re- cidadão do tigiado no exterior. Maestros
conhecimento, por parte do procuram traduzir a geniali-
Governo do Estado, a um dos
mundo e em dade dos arranjos de Sivuca.
maiores mestres da música do cada parte Um passeio pelas suas origens
nosso Estado. “Sivucão”, como mostram o caráter humano de
gostava de chamar o amigo e do planeta, Severino Dias de Araújo, do seu
praticamente sósia Hermeto berço em Itabaiana aos palcos
Pascoal, muito honrou não só
absorveu estilos, mais sofisticados da América e
a Paraíba, mas o Brasil com a harmonias Europa. Depoimentos inéditos,
compreensão que tinha da mú- como de Lucy Alves e Rucker
sica, traduzida em um talento e ideias, Bezerra, do Quinteto Uirapuru,
fora do comum para compor mostram a penetração e a ins-
arranjos e executar vários ins-
constituindo um piração de Sivuca para novos
trumentos, sobretudo o acor- legado rico que músicos ao redor do mundo.
deom e o violão. O resultado das próximas 16
Como você irá ler nas pági- deixou para a páginas é fruto de um mergu-
nas seguintes, Sivuca dignifi- lho profundo e abrangente do
cou a sanfona, levando-a a ser
história repórter Alexandre Nunes, que
aplaudida nas salas de concer- teve acesso ao acervo que Gló-
to ao redor do globo. Ninguém ria Gadelha, viúva do músico,
menos que Miles Davis, famo- Sivuca foi um cidadão do mantém em João Pessoa, e de
so por fincar vários pilares im- mundo - morou em Portugal, pesquisas feitas por este editor,
portantes que sustentam o jazz Estados Unidos, França, Sué- que complementam o trabalho
moderno, elogiou o paraibano, cia… - e em cada parte do pla- com uma apreciação dos discos
depois de vê-lo na TV: “Final- neta, absor veu estilos, harmo- e único DVD de sua carreira.
mente encontrei alguém que nias e ideias, constituindo um Boa leitura!
me fizesse as pazes com este legado rico que deixou para a
maldito instrumento, o acor- história. O editor
deom”. A edição que você tem em editor.correiodasartes@gmail.com

6 índice

, 20 @ 24 2 27 D 32
crônica ensaio coluna ao rés da página
Ao levar a fina Carolina Clemente Rosas Analice Pereira esmiúça Tiago Germano explica
Nabuco a uma feijoada no discorre sobre obras 'A Barragem', primeiro e quem é o "louco do arquivo
mercado, Gilberto Freyre de Guirmarães Rosa único romance de uma PDF", que perambula
atentava para a riqueza e a através de um estudo das pioneiras da literatura pelas redes sociais
importância sociológica de nada apologético do autor paraibana, Ignez Mariz, tentando emplacar suas
tal cozinha. mineiro. publicado em 1937. "colocações".

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6 capa

Sivuca:
uma história
de amor à sanfona
Alexandre Nunes
Especial para o Correio das Artes

N
inguém jamais poderia imaginar que Severino Dias de Oliveira, aquele menino
franzino e branquelo que sofria um enorme desconforto com a luz do sol por causa
do albinismo, nascido na zona rural de Itabaiana, precisamente no Campo Grande,
na várzea paraibana, pudesse um dia ser aclamado nos palcos internacionais e con-
siderado um dos grandes músicos do mundo.
O sexto filho de José Dias de Oliveira e Abdólia Albertina de Oliveira veio ao
mundo pelas mãos da parteira Dondon, numa casa perfumada por defumador de
alfazema, costume da época, no dia 25 de maio de 1930, como garante sua filha
Flávia Barreto, no livro Magnífico Sivuca, Maestro da Sanfona, ou no dia 26 de maio
de 1930, conforme reza no Registro Civil emitido 16 anos depois do nascimento.
Segundo anota a filha do artista, “o pequeno equívoco brindou Severino com a
possibilidade de duas comemorações: a verdadeira e a oficial, motivo de muitas
brincadeiras ao longo da vida”.
Aos nove anos, Sivuca teve o primeiro contato com a sanfona, instrumento que
passou a ser sua paixão pelo resto da vida. Isso aconteceu em 13 de junho de 1939,
uma terça-feira, Dia de Santo Antônio, quando seu pai chegou da feira de Itabaiana
com uma sanfona pendurada nos ombros, um presente para Gercino, um irmão
sete anos mais velho do que Severino e que também era albino.
Ainda conforme revela Flávia no seu livro, nos primeiros dias, o acesso ao instru-
mento era uma aventura de atrevimento. “Todos saíam para a lavoura e Severino
pegava a sanfona escondido, com Dona Bidu, sua mãe, fazendo vista grossa. Logo
ele tocou a primeira música, a marchinha de carnaval A Jardineira”, narra. Só que
com o passar tempo, Gercino abdicou do instrumento e Bilino, como Sivuca era
chamado pela família, foi em frente. c

4 | João Pessoa, maio de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


foto: pardim

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2020 | 5


foto: edson matos

c
Início Glória Gadelha,
esposa de Sivuca
da trajetória na vida e na arte,

artística durante visita à


Rádio Tabajara em
fevereiro de 2020

A médica, cantora e compo-


sitora Glória Gadelha, esposa
de Sivuca, explica que logo aos
primeiros contatos com o ins-
trumento, o menino revelou
seu grande talento para a mú-
sica. Como autodidata, dedicou
parte da infância e adolescên-
cia, de 1939 até 1945, no exercí-
cio da música pelo interior do
Nordeste.
“Ele recebeu influência mu-
sical de orquestras brasileiras e
americanas e iniciou sua carreira
profissional em 1945, em Recife,
apresentando-se no programa de
calouros Divertimentos Guarara-
pes. Seu grande talento chamou
a atenção do maestro Nelson
Ferreira, que o convidou para
tocar em um programa escrito e
apresentado por Antônio Maria,
na Rádio Clube de Pernambuco.
Foi quando passou a ser conhe-
cido como Sivuca. Permaneceu
trabalhando nessa rádio por três
anos”, detalha Glória Gadelha.
Ela acrescenta que, em 1948,
o artista ingressou na empre-
sa Jornal do Commércio. Com
os músicos da orquestra dessa
rádio estudou teoria musical,
tornando-se aluno do maestro
Guerra Peixe. Com ele, estudou Ainda segundo relato de Gló-
harmonia e desenvolveu suas ap- ria, em 1953 realizou temporadas
tidões de arranjador, exercitando anuais em São Paulo, apresenta-
a escrita em trilhas sonoras para -se em programas especiais na
novelas. Rádio Record, sem deixar de
“Em 1950, foi convidado pela apresentar-se na Rádio Jornal do
cantora Carmélia Alves, que ex-
Tornou-se aluno Comércio do Recife, cidade onde
cursionava pelo Recife, para gra- morava.
var, em São Paulo, dois discos de do maestro Guerra “Em 1º de abril de 1955, Sivuca
78 RPM - No Mundo do Baião. Em foi contratado como artista pelos
1951, gravou seu primeiro disco Peixe. Com ele, Diários Associados de Rádio e Te-
pela Continental, interpretando levisão Tupi, Rio de Janeiro, onde
o choro de Zequinha de Abreu, estudou harmonia passou a residir. Em 1958, foi de-
‘Tico-tico no fubá’, e de Valdir mitido da Tupi por ter aderido
Azevedo e Bonfiglio de Oliveira e desenvolveu suas a uma greve de músicos. Viajou
o choro ‘Carioquinha no Flamen- para a Europa integrando o grupo
go’. Em dezembro 1951, gravou aptidões de arranjador, Os Brasileiros, juntamente com o
seu segundo disco pela Conti- Trio Iraquitã, Dimas, Pernambuco
nental, com a música ‘Sivuca no exercitando a escrita e Abel Ferreira, sob a liderança de
baião’, dedicada a ele por Luiz Guio de Morais, dentro do proje-
Gonzaga e Humberto Teixeira, e em trilhas sonoras to de divulgação da MPB no ex-
o “Frevo dos Vassourinhas’ de terior promovido pela Lei Hum-
Matias da Rocha”, complementa. para novelas berto Teixeira. Apresentaram-se c

6 | João Pessoa, maio de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


fotos: Arquivo glória gadelha
vadora Odeon”. Glória Gadelha.
Sivuca fixou residência em Ela ressalta que, em 1976, o
Paris de 1960 até 1964, realizan- instrumentista paraibano parti-
do temporadas no night club La cipou do especial de Belafonte e
Grande Séverine, além de shows Marcel Marceau gravado para a
na Bélgica, Suíça e sul da França. TV francesa, em Paris, de onde
Em 1964, retornou ao Brasil e, me- embarcou de volta ao Brasil e fi-
ses depois, embarcou para os Es- xou residência no Rio de Janeiro.
tados Unidos a convite da cantora Em dezembro desse mesmo ano,
Carmen Costa. trabalhou no show do Hotel Na-
Na cidade de Nova Iorque, de cional, no Rio de Janeiro, dirigido
1965 até 1969, trabalhou como por Caribé da Rocha, ao lado de
instrumentista da cantora Miriam Nora Ney, Jorge Gulart e grande
Makeba. Nessa época, foi aplau- orquestra.
dido de pé quando acompanhou
a cantora em uma apresentação Seis e Meia e Chico Buarque
no Carnegie Hall. Como músico Em 1977, Sivuca apresentou
dela, realizou turnês pela Ásia, o marcante show no Teatro João
África, Europa, América do Sul Caetano, Sivuca e Rosinha de Valen-
e América do Norte (leia mais na ça, no Rio de Janeiro, gravado ao
página 17). vivo e lançado em vinil pela RCA.
“Em 1966, viajando para Ali, registra pela primeira vez a
shows com Miriam Makeba, música “Feira de mangaio”, uma
chegou a Estocolmo, a capital da parceria dele com Glória Gade-
Suécia, onde viria a gravar o LP lha, música essa que seria, poste-
Putte Wickman Meets Sivuca. Em riormente, grande sucesso na voz
1968, ainda morando em Nova da cantora mineira Clara Nunes.
Iorque, voltou duas vezes para Nesse mesmo ano, ele entre-
temporadas de shows na Escan- gou a Chico Buarque uma melo-
dinávia que resultam em progra- dia composta em Recife no ano
mas de televisão para a Finlândia de 1947, nascendo, então, a única
e Noruega (leia mais na página parceria desses dois composito-
18). Chegou ao Japão nesse mes- res: “João e Maria”.
mo ano e registrou, como violo- Sivuca continuou sua trajetó-
Nascido na zona nista, o compacto duplo Golden ria de sucesso, na sequência dos
rural de Itabaiana,
Severino Dias
Bossa Nova Guitar”, prossegue anos, com muitos shows e grava- c
de Oliveira se
apaixonou pela foto: reprodução / wikipedia
sanfona aos 9 anos
de idade

c no London Palladium, Olympia


de Paris, Exposição Internacional
de Bruxelas, além de emissoras
de rádio e televisão da Europa”,
relembra Glória Gadelha.
Ela continua: “Em 1959, retor-
nou à Europa com Waldir Aze-
vedo, Trio Fluminense, Vilma
Valéria, Norato, Eliseu, Swing,
Edison, Jorge e Tião Marinho,
com o grupo batizado de Brasí-
lia Ritmos. Na Itália, sofre um
acidente de bicicleta, pondo fim
à turnê. Não retorna ao Brasil.
Fixa residência em Lisboa duran-
te nove meses. Passa a trabalhar
Sivuca em apresentação na Tupi, do Rio de Janeiro,
no nigth club A Cova do Galo e onde trabalhou de 1955 a 1958, quando foi demitido
grava seu primeiro LP individual por ter aderido a uma greve de músicos
na Europa, Vê Se Gostas, pela gra-

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2020 | 7


c ções de discos. No ano de 1994, porque a ideia era elevar a san- primeira parte quem abriu foi
por exemplo, fez novos shows fona ao nível da orquestra sin- Arthur Moreira Lima. Depois
pela Europa, novamente dividin- fônica. Ela escreveu que, sem eu entrei com a minha ‘Rap-
do o palco com Glória Gadelha, arrefecer nunca, seu pai mante- sódia Gonzaguiana’, do meu
ainda com produção de Felippe ve a sanfona como instrumento repertório sinfônico. Quando
Rosemburg, quando reinaugu- maior, meio do qual se fez ex- terminou, ele olhou para mim
rou o Teatro Desjazet, em Paris, pressar. e disse: Sivuca, de quem são
como arranjador e músico do Concertos de música clássica, esses arranjos? Eu disse: sou
disco Cidades e Lendas, de Zé Ra- nas mãos do mestre da sanfona, eu mesmo que faço. Mas ele
malho, um trabalho que lhe deu representava a vida do interior. achou lindos os arranjos e disse
muita alegria. “Em 1996 regres- “Com isso, o instrumentista que não sabia que eu me dava
sou a Paris e fez uma semana de
rasgava o véu do preconceito tão bem com orquestra sinfôni-
shows com Baden Powell, no Le
e incluía, na execução de mui- ca. Aí eu disse: Olha, eu fiz um
Petit Journal”, recorda Glória.
tas orquestras sinfônicas, a me- curso de orquestração com o
O artista faleceu na cidade de
lancolia sonora do sertanejo, maestro Guerra-Peixe e apren-
João Pessoa em 14 de dezembro
de 2006, depois de lutar 32 anos alegria do Baião, musicalidade di”. E continuando a entrevista,
contra um câncer primário de ti- do Forró. Foi mais uma missão acrescentou: “Por exemplo, se
reoide com metástase para o sis- vencida por Sivuca, mesmo que eu tocasse piano, todo mun-
tema linfático. ainda tivesse, como arranjador, do já saberia que eu seria um
que se deparar com o precon- arranjador. Porém, quem toca
ceito que alguns segmentos da sanfona geralmente é tido como
sociedade ainda tinham contra um músico que não estudou”. c
a sanfona”, destaca a escritora.

O
Antes de sua mor-
foto: Reprodução
te, em 14 de dezem-
bro de 2006, na cida-
de de João Pessoa,
revolucionário Sivuca concedeu a
sua última entrevis-
Também existe barreira ideo-
ta, a mesma publi-
lógica no mundo da música e,
cada posteriormente
segundo a socióloga Flávia Bar-
na edição de maio de
reto, filha única de Sivuca, es-
2010 do Correio das
creve no livro Magnífico Sivuca,
Artes. Nela, ele dizia
Maestro da Sanfona, publicado
seguinte: “Fomos fa-
em 2011. Cedo, o músico enten-
zer um concerto com
deu a importância de derrubar
uma Sinfônica em
as muralhas conceituais que se Em parceria com Chico Buarque (D), Sivuca compôs a valsa ‘João e Maria’
Belo Horizonte, cuja
estabeleceram entre a música
erudita e a música popular e to-
dos os reflexos derivados dessa
barreira ideológica.
O virtuosismo de Sivuca com
a sanfona encantou o mundo e
fez com que ele levasse o instru-
mento a uma aceitação nunca
antes imaginada. Em entrevis-
ta concedida em novembro de
2006 ao jornalista Silvio Osias,
publicada na edição de maio
de 2010 do Correio das Artes,
Sivuca conta que quando mora-
va em Nova Iorque recebeu um
telegrama de Miles Davis que
dizia o seguinte: “Finalmente,
encontrei alguém que me fizesse
às pazes com este maldito ins-
trumento, o acordeon”.
Segundo explica Flávia Bar-
reto, a revolução musical acon-
tecia na imaginação de Sivuca
enquanto escrevia as partituras,

8 | João Pessoa, maio de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


Primeiro
arranjando para orquestras sinfô- ceu em cartaz por um ano nas ci-
c nicas. Glória Gadelha revela que, dades de São Francisco, Chicago
com este repertório, Sivuca fez e Nova Iorque, onde o show foi
vários concertos com algumas gravado ao vivo pela RCA.
concertino orquestras sinfônicas do Brasil,
participou dos discos das orques-
O músico paraibano participou
em 1971, a convite do cantor e ator
Em 1985, Sivuca escreveu sua tras sinfônicas da Paraíba e do Rio americano Harry Belafonte, do
primeira peça sinfônica, o ‘Con- Grande do Norte. especial de Harry e de Julie An-
certo sinfônico para Asa Branca’, Em Paris, onde fixou residên- drews na TV NBC, na cidade de
para uma apresentação com a cia de 1960 até 1964, foi o maestro Los Angeles. Na ocasião, Sivuca
Orquestra Sinfônica do Recife, no Paul Mauriat quem deu a primei- fez uso de violão e sanfona, fez ar-
Teatro Santa Isabel. A peça foi es- ra chance a Sivuca como arranja- ranjos para orquestra de cordas, a
crita a pedido do maestro irlandês dor. Trata-se de um arranjo que quatro mãos, com Nelson Riddle,
Eugene Egan. Na ocasião, Sivuca o paraibano fez para Mauriat de com destaque para o arranjo de
disse: “Tá bom, agora vou fazer, “Saudade da Bahia”, segundo re- uma canção escrita para Julie An-
mas como se trata de um even- lato do próprio artista. drews homenagear Vincent van
to nordestino, vou trabalhar em Em 1970, nos Estados Unidos, Gogh.
cima de Asa Branca. Aliás, foi o ainda de acordo com informações “Em junho de 2006, escreveu o
primeiro concertino para sanfona de Glória Gadelha, Sivuca atuou seu último arranjo sinfônico para
e orquestra que eu fiz”. no musical Joy, de Oscar Brown e ‘Choro de Cordel’, minha e dele.
Durante anos, o músico apri- Jean Pace, como diretor musical, O trabalho foi dedicado ao maes-
morou-se nessa escrita, criando e instrumentista, compositor e ar- tro Osman Gioia e a Orquestra
ranjador. Compôs “Mãe África” Sinfônica do Recife”, complemen-
foto: Reprodução para esse musical que permane- ta Glória Gadelha.
foto: divulgação

Paul Mauriat foi quem


deu a primeira chance a
Sivuca como arranjador

‘Os Trapalhões na Serra Pelada’ traz trilha sonora de Sivuca e uma breve aparição do músico

No
Mundo da Lua (1958).
Em 1962, fez uma rápida apa-
rição no filme Le Diable et les 10
Commandements (no Brasil, O Dia-

Cinema bo e os 10 Mandamentos, filme de


Julien Duvivier) tocando com seu
conjunto, e ganhou o prêmio de
Severino Dias de Oliveira, Si- melhor músico do ano concedido
vuca, nascido de família de sapa- pela imprensa francesa.
teiros e agricultores, em Itabaiana, Em 1973, realizou a trilha so-
no semiárido da Paraíba, também nora de seis filmes de curta me-
A revolução musical
acontecia na cabeça de teve como artista algumas incur- tragem para a TV Educativa
Sivuca enquanto ele escrevia sões no universo da sétima arte, o Americana, sobre Pelé e o futebol
partituras: desejo de elevar cinema. De acordo com informa- brasileiro: Pelé – O Mestre e Seu
a sanfona ao nível de uma ções de Glória Gadelha, essa histó- Método. Em 1981 e 1982 compôs,
orquestra sinfônica
ria começou em 1957, quando Si- arranjou e gravou trilhas sonoras
vuca fez arranjos e gravou trilhas para dois filmes de Os Trapalhões,
sonoras para dois filmes de Rober- Os Trapalhões na Serra Pelada (1982)
to Farias, Rico Ri à Toa (1957) e No e Os Vagabundos Trapalhões (1982). c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2020 | 9


sua música seja simples e sofisti-

foto: arquivo pessoal


cada”, ressalta.
Na avaliação de Carlos Anísio,
Sivuca em seus arranjos, tem o
domínio da orquestra, seus tim-
bres e possiblidades, com grande
habilidade. “Nenhum instrumen-
to musical incluído num arranjo
seu está colocado de forma gra-
tuita. Uma função melódica, tim-
brística ou rítmica está sempre
associada aos instrumentos mu-
Carlos Anísio, ao lado de sicais, de forma que a concepção
Sivuca e Glória Gadelha: “Ele do arranjo se complete. A utiliza-

Maestros
trouxe para o fole repertórios ção da orquestra como um único
seletivos e sofisticados”
c instrumento multifacetado é sua
maior virtude”, analisa.
Carlos Anísio relata a sua ex-
reverenciam a genialidade de periência como maestro ao traba-

Si v u c a
lhar a música de Sivuca. “Tive o
privilégio de reger suas obras e
arranjos sinfônicos, em algumas
oportunidades, a saber: no lança-
“A qualidade da música de Si- da década de 1940, a Rádio Jornal mento, pela UFPB, do livro Sivuca:
vuca é indiscutível. Ele trafegou do Commércio, capitaneada pelo Partituras, em 2009, com Toninho
com desenvoltura por diversos paraibano F. Pessoa de Queiroz, Ferragutti e a Orquestra de Câme-
gêneros da canção e da música contratou o maestro e compositor ra da UFPB; no I Festival Interna-
instrumental com a genialidade carioca César Guerra-Peixe (1914- cional de Música Clássica de João
dos maiores mestres da música 1993) para dirigir as orquestras Pessoa, em 2013, com Lucy Alves
universal”. O comentário é do da emissora. Guerra-Peixe, além e a Orquestra Sinfônica Municipal
maestro, compositor e arranjador de suas funções na rádio, também de João Pessoa; no II Fórum de Et-
Carlos Anísio Oliveira Silva, pro- dava aulas de harmonia e compo- nomusicologia da UFPB em 2016,
fessor do Departamento de Músi- sição a jovens músicos da cidade também com Toninho Ferragutti e
ca da UFPB. do Recife, como Capiba, Clóvis a Orquestra Sinfônica da UFPB”.
Carlos Anísio acrescenta que Pereira e Sivuca, à época contrata- O maestro lamenta que, infeliz-
o virtuoso artista carregou seu do da emissora. mente, não teve a graça de atuar
instrumento, a sanfona, por ve- “O seu primeiro professor na com o artista tocando, pois este
zes tão estigmatizado, com a dig- arte da harmonia e da orques- morreu em 2006. “Desde 1999,
nidade de um príncipe e tirou tração era um grande composi- quando a UFPB outorgou-lhe o
dela timbres e recursos surpreen- tor. Escrevia música de concerto, Título de Doutor Honoris Cau-
dentemente originais. “Trouxe trilhas de cinema e rádio e era sa, ocasião em que eu era Chefe
para o fole repertórios seletivos também um pesquisador das do Departamento de Música e
e sofisticados: Johann Sebastian manifestações musicais do povo. fui encarregado da organização
Bach e Paganini dialogavam na- Portanto, Sivuca, iniciado que foi das comemorações, iniciei uma
turalmente com Luiz Gonzaga e por um mestre na arte da música, amizade que se manteve até o
Nelson Ferreira através das teclas aplicou com sabedoria os ensi- seu falecimento. Estive com ele na
e botões de sua sanfona”, ilustra. namentos que recebeu nas suas produção e organização de vários
Ele explica que, enquanto ar- obras e arranjos sinfônicos”, com- concertos, festivais e apresenta-
ranjador e orquestrador, o músico plementa. ções e participei também da equi-
facilitava a vida do maestro, por pe que realizou a edição do livro
utilizar bem os recursos da or- Diversas linguagens Sivuca: Partituras”, informa.
questra. “Seus arranjos são bem Carlos Anísio observa que, Anísio enfatiza que Sivuca,
acessíveis. As dificuldades que as como Sivuca trilhou diversos ca- além de um gigante musical, foi
obras dele apresentam são de or- minhos da música, a exemplo uma pessoa generosa. “Quan-
dem musical, interpretativa, não da música autenticamente nor- do veio morar em João Pessoa,
técnica. Então, um maestro que se destina, rural e urbana, o jazz, a nos últimos anos de vida, não se
disponha a interpretar a música bossa nova, a improvisação, e tra- furtou a conviver e tocar com os
do multi-instrumentista não en- balhou com músicos americanos, músicos paraibanos com o entu-
contrará dificuldades desnecessá- europeus, africanos ao redor do siasmo de um jovem no início da
rias para os músicos da orquestra, mundo, conheceu e experimen- carreira, distribuindo seu caris-
porém o nível da parte do solista tou diversas linguagens harmô- ma, seus ensinamentos e sua arte
é bem virtuosístico”, reconhece nicas, das mais sofisticadas às para todos. Nas suas palavras,
Anísio. mais simples. “Seu conhecimento João Pessoa era a Viena brasilei-
O maestro conta que, no final harmônico era profundo, embora ra”, conclui. c

10 | João Pessoa, maio de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


Do

foto: arquivo pessoal


c

regional Durier, sobre Sivuca:


“Ele era capaz de
ouvir exatamente

ao
tudo que colocava no
papel, antes mesmo da
música ser executada,
e isso é uma
capacidade que poucos

universal
músicos têm
foto: thecles silva / ospb

“Sivuca é um gênio da músi-


ca nordestina e da MPB, que se
tornou universal. O mundo todo
celebra e reconhece nele uma vir-
tuosidade nata e acadêmica”. O
depoimento é do maestro Luiz
Carlos Durier, regente titular da
Orquestra Sinfônica da Paraíba
(OSPB).
Durier afirma que a convivên-
cia com o músico foi sempre um
aprendizado. “A sua simplicida- na elaboração dos arranjos, mas grande distribuição dos naipes,
de nos abraçava e tocava a todos. apenas de executá-los. Esse foi o respeitando e colocando em evi-
Eu tive a honra e a felicidade de meu papel”, esclarece. dência os timbres da orquestra,
acompanhá-lo junto com a OSPB Luiz Carlos Durier acrescen- com maestria. “Essa é uma coisa
em três ocasiões, conduzindo ta que a arte musical de Sivu- importante para ser ressaltada”,
suas composições muito bem or- ca revela sua genialidade, não complementa.
questradas, com conhecimentos só como virtuose, mas também Durier especifica que, nos con-
timbrísticos e sonoros de todos como arranjador e orquestrador, certos em homenagem a Sivuca
os instrumentos da orquestra. porque ele tinha um conheci- que conduziu, lidou com músicas
Seu trabalho está registrado em mento extremamente alto acerca populares do artista trabalhadas
partitura, CDs e DVDs excelen- de orquestração e sobre como fa- para orquestra. “Eram composi-
tes. Sua música influenciou mui- zer arranjo. ções de cunho popular, pensadas
tos artistas no Brasil e no mun- “Arranjo e orquestração são exatamente para a orquestra sin-
do”, enfatiza. duas coisas bem distintas. O ar- fônica. Reitero que ele tinha um
Na opinião do maestro, Sivuca ranjo é como você concebe a es- conhecimento pleno do trabalho
faz parte da identidade cultural trutura musical, e a orquestração da música de Bach, e não era uma
nordestina e brasileira. “Era um é quando você distribui isso para pessoa que tocava apenas música
estudioso da música universal. os instrumentos, de acordo com de Bach, ele tocava muitas músi-
Tocava a música de Bach muito a qualidade sonora que cada cas da literatura universal, que as
bem. Eu, particularmente, apren- instrumento tem. Ele tinha uma pessoas chamam de música clás-
di muito com ele. Gosto de ouvir sensibilidade muito grande, uma sica”, reforça.
sempre o seu vasto repertório. competência fora do comum, O maestro relata que, no con-
Para mim é um grande ídolo. porque ele era capaz de ouvir tato pessoal que teve com o ar-
Falei no presente, pois sua músi- exatamente tudo que colocava ranjador, pode observar que Si-
ca é atemporal. Ele nos faz ter o no papel, antes mesmo da músi- vuca era de uma nobreza, uma
orgulho de sermos nordestinos”, ca ser executada, e isso é uma ca- simplicidade, um alcance, uma
afirma. pacidade muito rara que poucos abertura para as pessoas com que
O regente da Orquestra Sinfô- músicos têm. Essa capacidade estava ou trabalhava. “Por exem-
nica da Paraíba explica que quan- é só para aqueles bastante trei- plo, uma das minhas preocupa-
do teve contato com o trabalho nados e que têm uma memória ções era se eu estava fazendo o
musical de Sivuca, regendo as fabulosa, o que era um grande tempo correto da música. E ele
composições do artista, o arranjo aspecto da cultura musical desse disse assim para mim: maestro,
já estava pronto. “Coube-me es- artista genial”, arremata. eu estou aqui para acompanhar o
tudar para interpretar exatamen- O maestro faz questão de evi- seu tempo, o senhor é o maestro.
te como ele pedia, ou seja, como denciar que o músico era dotado Eu tinha a preocupação de fazer
estava lá na partitura. Não tive a da capacidade inerente aos gran- o melhor para ele, mas ele esta-
oportunidade de acompanhá-lo des compositores de fazer uma va comigo, muito mais comigo c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2020 | 11


c e aquilo me deixou muito feliz e do DVD O Poeta do Som”, com- várias orquestras sinfônicas do
emocionado. Ouvir isso dele foi plementa. Nordeste, a exemplo das de Per-
uma das coisas mais legais. Tra- E prossegue Durier: “Como nambuco e Rio Grande do Norte.
balhei com ele nos dois concer- instrumentista, Sivuca era vir- Tocou também em Nova Iorque
tos populares com a Orquestra tuoso, conhecido mundialmente. e na Suécia. Ele tem concerto es-
Sinfônica, na Praça do Povo do Ele não só tocou com a Orquestra crito para sanfona em orquestra,
Espaço Cultural, e na gravação Sinfônica da Paraíba, mas com uma coisa espetacular”, pontua.

Ecletismo
musical nos arranjos
O instrumentista e arranjador
Sivuca está entre os grandes mú-
sicos do mundo, com destaque
para uma sonoridade múltipla
e de arranjos para várias moda-
lidades orquestrais, que incluem
concertos sinfônicos, big band,
quinteto de cordas ou de sopros,
sexteto de trombone, quarteto
de sax, camerata, grupo de jazz,
de choro e de forró pé de serra,
entre outras formações instru-
mentais. As informações são da
cantora e compositora Glória Ga-
delha, esposa e parceira musical
do artista. Chiquito, com
Glória Gadelha (ao
Um dos momentos na vida
lado) e regendo a
do músico que concretiza essas Metalúrgica Filipéia
informações, conforme revela na gravação do DVD
Glória Gadelha, acontece entre de Sivuca: “A música
dele é atemporal e
2004 e 2005, quando Sivuca faz
com aquele toque
os arranjos e realiza a gravação bem brasileiro”
do CD Terra Esperança - ideali-
zado, produzido e dirigido pela
própria Glória Gadelha, no qual
participam 11 grupos da Paraí-
ba, de formações distintas, en-
tre eles a big band regida pelo
maestro Chiquito, a Metalúrgi-
ca Filipéia. choveram LPs e CDs para ele es- musical em suas partituras.
Francisco Fernandes Filho, cutar. Ele escutou alguns e não “A gente pegava a partitura e
mais conhecido como Maestro gostou. não sabia como ia soar. Ele escre-
Chiquito, conta que sua expe- “Foi exatamente nesse perío- via de maneira muito simples,
riência com Sivuca foi muito do que a gente mandou o LP da mas quando soava era uma coisa
enriquecedora, tanto em nível Metalúrgica Filipéia, produzido do outro mundo. Era uma sumi-
musical como humano, e garan- por Paulo de Tarso. Por interse- dade, realmente. Ele tinha uma
te que, para os artistas locais que ção do compositor Newton Coe- maneira diferente de harmoni-
tiveram a oportunidade de fazer lho e do maestro José Américo, zar, de distribuir as partes. Era
algum trabalho conjunto com o Sivuca ouviu e gostou do nosso muito interessante isso”, destaca.
este gênio da música, isso signi- trabalho. Isso resultou em um te- Chiquito reitera que o que
ficou um salto de qualidade na lefonema dele para mim, dizen- pode ser destacado no Sivuca ar-
música paraibana como um todo. do que havia escrito uma músi- ranjador, por meio de suas parti-
O maestro revela como foi que ca para a Metalúrgica Filipéia”, turas e que revela sua genialida-
Sivuca teve o primeiro contato lembra. de tão comentada, é justamente
com o trabalho musical da Me- Na opinião do maestro Chi- a maneira como ele trata cada
talúrgica Filipéia. Quando Ele quito, Sivuca enquanto arranja- naipe, cada instrumento, para
voltou da Europa para o Brasil, dor e orquestrador facilitava a soar bem harmonizado. “A músi-
especificamente para o Rio de vida do maestro, porque escrevia ca dele é atemporal e com aquele
Janeiro, onde já tinha morado, muito bem, sem complexidade toque bem brasileiro”, salienta. c

12 | João Pessoa, maio de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


Sivuca à frente do Uirapuru:
primeira gravação original
de sanfona e quinteto de
cordas feita em estúdio, ao
vivo e sem cortes”

Sivuca
e lançamos em junho de 2004.
c Foi um sucesso muito grande,
porque tanto no Brasil, quanto

e Quinteto Uirapuru: fora, não existia uma gravação


original de sanfona e quinteto de
Uma parceria musical de sucesso cordas, feita em estúdio, mas ao
vivo e sem cortes”, detalhou.
Uma simbiose perfeita entre a Paraíba, o que coincide com a Rucker Bezerra esclarece que
a sanfona e os instrumentos de época em que o Quinteto Uira- a gravação ao vivo foi uma exi-
cordas fez gerar uma sonoridade puru estava fechando o repertó- gência de Sivuca. Ele lembra que,
única, numa experiência inédita rio de um disco. em alguns momentos, a gravação
da primeira gravação original de “Tinha uma música de Si- começava pela manhã e levava o
sanfona e quinteto de cordas. É vuca, ‘Homenagem à Velha dia inteiro, até entrar pela noi-
como o doutor em Música, pes- Guarda’, que eu queria gravar te. “Tinha um take que o grupo
quisador e diretor artístico do no disco. Fiz um arranjo dessa achava que estava fantástico,
Quinteto Uirapuru, Rucker Be- música para quinteto de cordas. mas quando eu dava o último
zerra de Queiroz, define o disco Só que eu tinha que pedir auto- acorde e errava uma nota, ou a
Sivuca e Quinteto Uirapuru, lança- rização a ele. Então, aproveitei viola desafinava um pouquinho,
do em 2004 pela gravadora Kua- que Sivuca estava morando em ou ainda parava e a pausa era um
rup e que foi vencedor do Prêmio João Pessoa e organizei um sa- pouco antes, tinha que gravar
Tim 2005, atual Prêmio da Músi- rau para ele lá em casa. Chamei tudo de novo. Não existia essa
ca Brasileira, na categoria Melhor algumas pessoas, até o pessoal história de só gravar o acorde
Arranjo. da imprensa. Fiz um negócio final. Sivuca considerava que a
Rucker Bezerra, ao relembrar bacana e o quinteto fez um poc- gravação com cortes quebrava a
sua convivência com Sivuca, ex- ket show, como se fala hoje. A unidade e que sem cortes a alma
plica que o maestro era diferen- ideia foi mostrar a música para era outra”, complementa.
ciado, tinha algo meio místico, Sivuca e pedir para ele autori- Outro detalhe que revela o
alguém que procurava incansa- zar a gravação”, relata. cuidado que Sivuca tinha na exe-
velmente a perfeição da técnica e Rucker recorda que ao per- cução musical e que, segundo
da musicalidade, no estágio mais guntar se Sivuca havia gostado Rucker, é que existem marcações
profundo da interpretação. do arranjo, ele disse que sim, para os instrumentos de cor-
“Numa crítica que o nosso tra- mas quando indaga se autoriza- das, na partitura, que mostram
balho recebeu de um periódico ria a gravação, ele disse que não. quando o arco vai para baixo e
norte-americano, o cara falava Rucker então perguntou: por quando vai para cima. “Sivuca
que achava incrível como a san- que maestro? Ao que Sivuca res- fazia isso nas partituras dele, re-
fona parecia um instrumento de pondeu, surpreendendo a todos: lacionando a sanfona e os instru-
cordas, de tão simbiótico que foi porque eu queria gravar um ál- mentos de cordas. Ele dizia que
a questão da sonoridade, porque, bum todo com vocês, inclusive já quando abria o fole, o arco do
à principio, a gente sempre liga escrevi um arranjo para a canção instrumento de cordas era para
sanfona ao forró, mas quando “Em nome do amor” para a gen- baixo e quando fechava, o arco
entra os instrumentos ditos eru- te tocar justamente nesse sarau. era para cima. Ele mudava o mo-
ditos, instrumentos acústicos, “Então começamos a gravar. vimento da sanfona de acordo
teoricamente é uma coisa que pa- Fechamos um repertorio de 12 com o movimento do arco que a
recia muito distante da sonorida- músicas, sendo oito de Sivuca e gente fazia. Sivuca me explicou
de”, complementa. de Glorinha Gadelha, duas mi- que ouviu de Astor Piazzolla que
Rucker revela que tudo co- nhas e duas de Hercílio Antu- os foles abrindo e fechando não
meçou em 2003 quando Sivuca nes, que é o baixista do quinteto. emitem o mesmo som”, comenta
mudou-se definitivamente para Gravamos no finalzinho de 2003 Rucker Bezerra. c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2020 | 13


Músicas
vuca/Oswaldinho do Acordeon), Salvador, Rio Grande do Nor-
com a qual rendeu uma homena- te, Pernambuco e Nordeste in-
gem a outro amigo genial, Tom teiro. A gente tinha, inclusive,
Jobim; “Espreguiçando” (Hercílio contrato fechado para ir à Eu-
Shows Antunes) é uma música descriti-
va que sugere exatamente o que
ropa, mas infelizmente a saú-
de de Sivuca não permitiu”,
e premiação propõe o título; “Feira de Man-
gaio” (Sivuca/Glória Gadelha) é
observa Rucker.
E prossegue: “A gente tocou
Rucker Bezerra comenta talvez uma das mais importan- junto em 2004, 2005 e 2006.
que, entre as 12 músicas que tes músicas da história da MPB, Ele morreu em 2006. Inclu-
compõem o disco Sivuca e regravada nos quatro cantos do sive, duas semanas antes do
Quinteto Uirapuru estão “Cho- mundo, com inúmeros arranjos. seu falecimento, a gente fez
ro de Cordel” (Sivuca/Glória São as três canções que comple- uma apresentação, um show
Gadelha) - um choro estili- tam o álbum que, segundo infor- beneficente para uma colega
zado, com uma harmonia re- ma Rucker, está em todas as pla- que estava com uma doença
buscada, muito característica taformas digitais, disponibilizado muito grave. Lembro que foi
da obra de Sivuca; “Em nome pela gravadora. a última vez que Sivuca subiu
do amor” (Glória Gadelha) - a Participaram da gravação e das no palco, justamente nessa
música que marcou o início apresentações ao lado de Sivuca, apresentação, no Teatro Paulo
da parceria com o quinteto Pontes”, constata.
e que chegou a fazer parte Uma passagem marcan-
da trilha sonora da nove- te lembrada por Rucker é
la Velho Chico; “Sanhauá“ referente à entrega do prê-
(Sivuca/Glória Gadelha) mio TIM de Música, em
- uma canção com forte ca- 2005. “O evento aconteceu
racterística armorial. no Teatro Municipal do
O disco tem, ainda, Rio de Janeiro e como eram
“Luz” (Rucker Bezerra) muitas categorias, o artis-
- música que o diretor ar- ta premiado subia rápido
tístico do quinteto dedicou ao palco. Quando chamou
a Sivuca; “Filhos da Lua” o nosso, a mobilidade de
(Glória Gadelha) - uma Sivuca já estava muito re-
canção em homenagem duzida. Quando ele levan-
aos albinos; “Chibanca no tou e foi subindo devagar,
Uirapuru” (Hercílio An- houve uma quebra de pro-
tunes) - um baião que no tocolo, já que tudo era mui-
CD não tem sanfona, mas to dinâmico. O público foi
que nas apresentações Sivuca por parte do Quinteto Uirapuru, se levantando e aplaudindo.
fazia uns improvisos; “Canção os músicos Rucker Bezerra (1º Foi o momento mais bonito da
Piazzollada” (Sivuca/Glória Violino), Renata Simões (2º Vio- noite”, narra.
Gadelha) - escrita em homena- lino), Luís Carlos Júnior (Viola), Outra passagem interes-
gem ao seu amigo Astor Piaz- Kalim Campos (Violoncelo) e sante, já sem a presença física
zolla, uma das mais belas do Hercílio Antunes (Contrabaixo). de Sivuca, aconteceu em 2016,
álbum. Rucker Bezerra que, atualmen- quando Rucker Bezerra foi
Outra música do disco é te, além das atividades acadêmi- tocar um concerto em Nova
“Minha Luíza” (Rucker Be- cas, onde é membro permanente Iorque. “Um velhinho muito
zerra), composta na época do Programa de Pós-Graduação elegante chegou e disse: -Olhe,
em que nasceu a filha do au- em Música da UFRN, é spalla da eu vi no seu currículo que o se-
tor da canção. “Luíza nasceu Orquestra Filarmonia do Rio de nhor tinha tocado com Sivuca.
em 2002 e eu fiz essa música Janeiro, revela que a parceria do Meu nome é Angel Allende e
para ela. Aí o povo confundia Quinteto Uirapuru com Sivuca eu fui percussionista durante
com “Luíza” de tom Jobim. rendeu diversos shows. dez anos do grupo de Sivuca,
Resolvi mudar o titulo para “A gente lançou o disco no aqui em Nova Iorque. Esse se-
“Minha Luíza”, explica Ruc- Teatro da Paz, em Belém do Pará nhor também trabalhou com
ker, acrescentado que, em e foi um negocio fantástico. Fize- Frank Sinatra e com Sammy
seguida, o disco traz a faixa mos duas sessões, com lotação de Davis Jr. E ele acrescentou:
“Aquariana” (Sivuca), escrita mais de 500 pessoas, um sucesso. -Olhe, eu nunca vi um músico
para Glorinha, que é do signo Depois fizemos no Rio, São Paulo, como Sivuca”. E
de Aquário e musa inspirado-
ra do autor. Alexandre Nunes é jornalista e escreve sobre política, economia, cultura e
“Um tom para Jobim” (Si- religião. Mora em Santa Rita (PB).

14 | João Pessoa, maio de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


6 capa Com o Clã Brasil ao fundo, a
sanfona de Lucy “duela” com a
de Sivuca na gravação do DVD
do grupo: “Preste atenção a essa
menina, ela é um grande talento”,
atestou o mestre

Lucy Alves: como sanfoneira, como musicis-


ta, isso tem um valor inestimá-
vel”, relembra a cantora.
Lucy, hoje com 34, afirma que

“Sivuca foi uma quando o assunto é acordeon,


ou sanfona, há três ídolos: os

grande referência”
pernambucanos Luiz Gonzaga
e Dominguinhos, e Sivuca. “A
santíssima trindade dos san-
foneiros, para mim, é essa aí”,
comenta. “Eu tive a sorte de
André Cananéa conhecer dois deles, Domingui-
andrecananea2@gmail.com nhos e Sivuca. Sivuca, paraiba-
no, e eu lembro como se fosse
hoje, da nossa aproximação,
minha, do meu pai (o também
Sivuca foi um dos grandes nomes a enxergar o ta- músico Badu Alves), da minha
lento da cantora, compositora e multi-instrumentista família através de Radegundis
paraibana Lucy Alves, hoje radicada no Rio de Janei- Feitosa (1962-2010), do grande
ro. “Preste atenção a essa menina, ela é um grande trombonista e conterrâneo do
talento”, comentou o mestre de Itabaiana ao jorna- meu pai da cidade de Itaporan-
lista Silvio Osias quando ambos assistiam ao DVD O ga”, recorda.
Poeta do Som, que seria lançado em breve (leia mais Para ela, Sivuca é a grande
na página 16). referência, tanto para acordeo-
Lucy nem tinha 20 anos quando subiu ao palco nistas, quanto para sanfoneiros,
com o Clã Brasil para gravar uma participação no “porque ele conseguiu transitar,
DVD do mestre, em julho de 2005. E mais: com Glo- desde a feira de Itabaiana, com a
rinha Gadelha, Sivuca compôs uma música inédita música popular, uma música de
para tocar com o grupo, “Visitando Zabelê”. raíz, os forrós, os baiões, até as
Meses depois, foi a vez do Clã Brasil convidar Si- salas de concerto. Isso me mo-
vuca para a gravação do DVD do grupo formado por tivou muito, porque na minha
Lucy, as irmãs e os pais. “Sivuca é um dos meus pa- formação musical, eu tenho a
Através de seu
drinhos de musicais. Ele e Hermeto (Pascoal) são dois música erudita; eu fiz bachare-
smartphone bruxos da música e acho que a música brasileira deve lado na UFPB, e ele foi um bom
conectado à muito à eles”, comenta a artista, hoje. referencial”, revela, antes de ar-
internet, veja Clã “Eu tive a grata oportunidade de conviver com ele, rematar: “Sivuca tem um reper-
Brasil e Sivuca de absorver o que pude no curto tempo que a gente tório incrível, além de ser multi-
tocando ‘Feira de
mangaio’, trecho
teve contato. Melhor ainda: de estar imortalizada ao -instrumentista e produtor. São
extraído do DVD lado dele, junto da minha família, no DVD dele, único desses gênios que a gente teve
do grupo DVD que ele lançou. Para mim, como acordeonista, na Música Popular Brasileira”. c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2020 | 15


c
Primeiro
e único DVD
O Poeta do Som é o primeiro e
único DVD da carreira de Sivu-
ca. Foi gravado em julho de 2005
em João Pessoa, com registros
feitos entre o teatro Santa Roza
e o então cine-teatro Bangüê.
Idealizado e dirigido por Glória
Gadelha, o roteiro contempla 12
números em que Sivuca prota-
goniza soberbas interpretações
acompanhado pela nata da mú-
sica instrumental paraibana de
então.
A apresentação abre com um
solo de acordeon para “Quando
me lembro”, de Luperce Miran-
da. “Luperce Miranda foi um
dos autores prediletos de Sivu-
ca, além de seu grande amigo.
Era chamado de ‘O Paganini do
Choro’ pela elegância com que
compunha e tocava”, informa o
encarte do DVD.
Segue-se, a partir daí, o rol de
convidados, deleitando-se sobre
o cancioneiro de Sivuca e Glori-
nha Gadelha: Quinteto da Paraí-
ba (“Amoroso coração”), Came-
rata Brasílica (“A doce canção Sivuca no DVD ‘O Poeta do Som’: acompanhado pela nata da música instrumental paraibana
de Nélida”), Quinteto Uirapuru
(“Comigo só”), Quinteto Lati- que ficou a cargo da big band
noamericano de Sopros (“Sem-
A apresentação
Metalúrgica Filipeia. Nos ex-
pre uma presença”), JP Sax (“A tras do DVD, mais quatro nú-
chama do amor”) e Brazilian meros, dois com Glorinha Ga-
abre com um solo
Trombone Ensemble (“Barra vai delha (“A vida é uma festa” e a
quebrando”). famosa “João e Maria”, de Sivu- de acordeon para
Com o Sexteto Brassil, Sivu- ca e Chico Buarque, (aqui com
ca faz “Mãe África”, parceria o grupo Nossa Voz a escudar o “Quando me lembro”,
dele com Paulo César Pinheiro, casal de afitriões), e dois com a
arranjador e marido de Elis Re- Orquestra Sinfônica (“Aquaria- de Luperce Miranda,
gina. Segue o roteiro com Poty na” e a clássica “Feira de man-
Lucena e Valtinho do Acordeon gaio”, com arranjo baseado no um dos autores
(“De bom grado”), “Um sol em CD experimental Ouro e Mel, de
mim”, da pianista Thaíse Gade- Glorinha).
lha, executada por uma banda
prediletos de Sivuca,
Os arranjos de todos os nú-
chamada de Amigos do Sivuca, meros foram feitos pelo próprio
formado por Thaíse, Sérgio Gal- Sivuca. A direção geral do DVD
além de seu grande
lo (contraabaixo), Heleno Feito- ficou a cargo de Gal Cunha
sa (saxofone) e Glauco do Nas- Lima, que também assina a amigo. Era chamado de
cimento (bateria), e “Visitando produção executiva junto com
Zabelê”, com o Clã Brasil. Antônio Alcântara, sob a reali- "O Paganini do Choro"
O concerto termina com o zação do Governo do Estado.
tema-exaltação escrito por Glo- O cineasta Carlos Dowling foi o pela elegância com que
rinha Gadelha para os 500 anos responsável pela direção artísti-
do Descobrimento do Brasil ca do DVD. compunha e tocava c

16 | João Pessoa, maio de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


Miriam Makeba e
Sivuca: África e Nordeste Miriam Makeba e Sivuca,
parceria que durou até
produziram ‘Pata pata’ o fim dos anos 1960 e
rendeu alguns discos

ticamente, sofreu maus tratos da


c
N ascida em Joanesburgo, Áfri-
ca do Sul, a cantora Miriam
Makeba (1932-2008) começou a se
polícia (em seu país), e eu acho
curioso, afinal quando Sivuca gra-
destacar na música cantando blues vou essa música com ela, existia
em seu país, onde fazia muito suces- uma Ditadura no Brasil”, comenta
so. Mas as péssimas condições im- Sérgio Martins.
postas pelo apartheid na África nos Sivuca voltou ao staff de Mi-
anos 1960 a fizeram emigrar para riam Makeba, pelo menos para
os Estados Unidos, onde conheceu uma apresentação, em 1974. É
Sivuca através de Harry Belafonte, possível vê-lo tocando violão no
músico e ativista que acolheu a can- grupo que acompanhou a cantora
tora na sua chegada aos EUA. no lendário festival de música rea-
Corria meados dos anos 1960 lizado naquele ano, na África, re-
quando a cantora africana se apro- Cantora africana gravou unindo uma constelação de artis-
ximou do instrumentista paraiba- duas músicas brasileiras tas afro-americanos, como James
no. Logo, ele estaria não só escre-
nesse disco, que foi Brown e B.B. King. O registro do
arranjado e produzido por
vendo arranjos para o repertório festival deu origem ao documen-
Sivuca
dela, como tocando violão no gru- tário O Poder do Soul, lançado no
po que acompanhava a cantora. mercado brasileiro em 2009.
Crítico de música, ex-repórter Nos comentários em áudio do
de revistas como Bizz e Veja, Sér- que nada’, de Jorge Ben Jor. blu-ray, o diretor Jeffrey Levy-Hint
gio Martins lembra que Sivuca “É curioso, porque o Nordeste e o idealizador do festival, Stewart
produziu o LP All About Miriam tem muito da influência africana, Levine, fazem questão de registrar
(1966) e, por influência dele, ela tem muito da influência árabe, e é a presença do paraibano no palco,
acabou por gravar ‘Adeus Ma- incrível como casou o violão do Si- durante a performance de Makeba:
ria Fulô’ (grafado apenas ‘Maria vuca, meio bossa nova em alguns “O cara de barba atrás dela é Sivu-
Fulô’), parceria do paraibano com momentos, com aquele canto ras- ca, um músico brasileiro muito re-
Humberto Teixeira, o letrista das gado, potente, da Miriam Make- verenciado. Ele tocava com ela nos
canções de Luiz Gonzaga, e ‘Mais ba”, comenta Martins. anos 1960 e tinha dado um tempo,
Sivuca seguiu excursionando e mas voltou para esta apresentação”,
produzindo os discos de Miriam recorda Levine, anotando que, ao
Makeba, então uma grande estrela lado de Sivuca, no baixo, tocava Bill
do que viria a ser chamado no fu- Lee, pai do cineasta Spike Lee.
turo de “world music” até o final Certa vez, Glorinha Gadelha
dos anos 1960, incluindo o maior disse que quando conheceu Sivu-
sucesso comercial da cantora, ca, ele havia acabado de chegar
“Pata pata”, cujo arranjo é atribuí- dessa viagem que fizeram com
Através de seu do ao paraibano. Miriam Makeba.
smartphone “A Miriam ficou muito conhe- A cantora africana morreu qua-
conectado à cida no Brasil com a canção ‘Pata se dois anos depois de Sivuca, em
internet, ouça a
gravação original
pata’, mas ela tem uma história de novembro de 2008. Curiosamente,
de “Pata pata”, com luta contra o racismo que é muito tinha a mesma idade do paraiba-
arranjos de Sivuca importante. Foi perseguida poli- no: 78 anos. c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2020 | 17


Sivuca
Através de seu
smartphone conectado
à internet, veja o
especial da TV sueca

e o violão estrelado por Sivuca


em 1969

M
ulti-instrumentista, Lobo) e ‘Berimbau‘, precedida trou ‘Felicidade‘ (Tom Jobim/
Sivuca era hábil tanto por uma breve explicação a Vinicius de Moraes), ‘La pluie
no acordeon, quanto respeito do instrumento que dá sur la mer‘, música de Sivuca
no violão. Em um especial da nome à composição de Baden lançada um ano antes no dis-
TV sueca, levada ao ar em 1969 Powell e Vinicius de Moraes. co que o paraibano fez com o
e disponível, na íntegra, no No palco, Sivuca e seu trio sueco (Sivuca Med Putte Wick-
Youtube (você pode assistí-lo – James Phillips (contrabai- man Orkester) e o standard
a partir do QR Code no topo xo), Luizito Ferreira (bateria) e ‘There will neve be another
desta página) mostra que tan- Leopoldo Fleming (percussão) you‘, de Harry Warren, regra-
to numa posição, quanto em - recebem dois convidados vada por Chet Baker, Frank
outra, ele era um craque. suecos, amigos músicos que Sinatra e Shirley Bassey, entre
Mas o que torna o vídeo é Sivuca fez em sua temporada muitos outros.
um raro momento em que Si- no país. No encerramento, Sivuca
vuca, além de tocar, canta. Lá, O primeiro é clarinestista chamou a cantora (e atriz) Mo-
é possível ouví-lo entoar clássi- sueco Putte Wickman (1924- nica Zetterlund (1937-2005),
cos como ‘Arrastão’ (creditada 2006), com quem Sivuca gra- que deu voz à versão em in-
pelo programa somente à Vini- vou dois discos entre 1968 e glês de ‘Insensatez’, de Tom e
cius de Moraes, ignorando Edu 1969. Com ele, Sivuca mos- Vinicius.

18 | João Pessoa, maio de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


Discografia
de Sivuca

D
e acordo com o Dis- volume, lançados, respecti- Bar, 1985), Putte Wickman
cogs, maior ban- vamente, em 1957 e 1958. (Putte Wickman Meets Sivu-
co de dados sobre Em 1959, Sivuca e Seu ca, de 1966, e Putte Wick-
registros fonográficos do Conjunto estreou na Odeon man & Sivuca, 1982) e Oscar
mundo, Sivuca lançou 38 com o LP Vê Se Gostas e a Brown Jr e Jean Pace (na tri-
álbuns com seu nome como partir daí, sua discogra- lha sonora Joy, 1970).
estrela principal. O primei- fia passou a ser registrada A partir dos anos 1980, os
ro não poderia ter um título por selos internacionais, discos gravados por Sivu-
mais apropriado para apre- como Barclay, RCA-Victor ca passam a sair tanto por
sentar ao mundo o músico e Reprise até 1978, quando selos estrangeiros, quanto
paraibano: Eis Sivuca!. O voltou a gravar pelo Copa- nacionais, até os anos 2000,
10 polegadas com dez fai- cabana, que lançou discos quando ele lançou seus
xas saiu em 1956 pela Co- que se tornariam bastante quatro últimos álbuns, to-
pacabana Discos e nele, o conhecidos do músico no dos em CD: Cada Um Belisca
instrumentista de apenas Brasil, como Forró e Frevo Um Pouco (2004), com Do-
26 anos exibia todo seu e Cabeço de Milho, ambos minguinhos e Oswaldinho,
virtuosismo ao acordeon lançados em 1980, os quais indicado ao Grammy Lati-
ao dedilhar um repertório registram a transição do no; Sivuca Sinfônico (2004)
que ia de Ary Barroso a Se- violonista para o acordeo- - ambos pela Biscoito Fino
bastian Bach, passando por nista em disco. -; Sivuca E Quinteto Uirapu-
Guerra Peixe e Ernesto Na- Muitos desses álbuns, o ru (2004) e Terra Esperança
zareth, entre outros. paraibano divide a titulari- (2007), os dois últimos já
A Copacabana ainda dade com outros nomes, es- pela Kuarup.
editaria os dois álbuns se- trelas da música nacionais, Não todos, mas boa parte
guintes do músico (que na como Rosinha Valença (Ao desses discos podem ser en-
época assinava Sivuca e Seu Vivo Seis e Meia, de 1977), e contrados nas plataformas
Conjunto), Motivo Para Dan- internacionais, do porte de de streaming, como Spotify,
çar, o primeiro e o segundo Toots Thielemans (Chiko’s Deezer e Google Music. E

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2020 | 19


ilustr ação: tonio

6 crônica

Uma dama
no Mercado de São José,

no Recife I
sto mesmo: uma dama no Mercado de
São José, no Recife. A dama era nada
mais nada menos que Carolina Nabu-
co, a filha mais moça de Joaquim Na-
buco, escritora de nome e biógrafa do
pai, legítima representante da mais
fina aristocracia pernambucana e ca-
Francisco Gil Messias rioca, aquela não necessariamente ba-
gmessias@reitoria.ufpb.br seada no dinheiro e na propriedade,
mas, antes, numa cultivada tradição
patrícia, filha do Tempo e da Cultura,
a mesma que distingue, por exemplo,
os Melo Franco, estirpe mineira que
tantos nomes de relevo deu ao Brasil,
em várias áreas. c

20 | João Pessoa, maio de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


c Pois um dia, em meados ele talvez tenha sido o primei- suficientemente reconhecido
do século passado, Carolina ro estudioso a conceder “sta- em sua importância pelos in-
estava visitando o Recife, cer- tus” sociológico às questões telectuais paulistas (pessoal
cada, naturalmente, de todas da culinária em nosso país e da USP e companhia), da mes-
as homenagens locais. Um de a muitas outras questões até ma forma que sempre fizeram
seus cicerones foi Gilberto então consideradas “meno- questão de diminuir o papel
Freyre, que ousadamente op- res” e indignas de constituí- inovador da obra de Freyre,
tou por levá-la para almoçar rem objeto de estudos com não só por mesquinhos ciú-
não as finuras do restauran- pretensões acadêmicas e cien- mes acadêmico/bairristas,
te Leite, o mais tradicional e tíficas. como também por razões
grã-fino da cidade, mas uma Sabe-se que outros escân- ideológicas.
feijoada pernambucana no dalos dessa natureza provo- A esse respeito e a propó-
“Dudu”, no Mercado de São cou Gilberto Freyre no Reci- sito, ninguém desconhece o
José, local simples e popular, fe de seu tempo, um Recife imenso “silêncio” imposto ao
é certo, mas também um dos ainda provinciano e apegado autor de Casa Grande & Sen-
endereços consagrados da a valores europeus, equivoca- zala não só nas universidades
mais genuína gastronomia damente elitistas, um Recife do eixo Rio-São Paulo como
recifense. não suficientemente prepara- também na mídia desse mes-
Foi um escândalo, é claro. do para apreciar as boas coi- mo eixo, silêncio este que, de
Um certo cronista recifense, sas do patrimônio cultural modo geral, e para prejuízo
ignorante, chegou mesmo a nordestino. do Brasil, persevera até os
protestar publicamente con- Frequentou ele, por exem- nossos dias, com raras exce-
tra a escolha de Freyre, cha- plo, também para espanto dos ções.
mando-a de “uma vergonha”. puristas, o famoso Terreiro do Mas voltando a Carolina,
Vejam só. Não sabia o tal es- Pai Adão, conhecido centro pelo que já li sobre a mes-
criba que, como bem disse umbandista da capital per- ma, imagino o quanto deve
Mauro Mota posteriormente, nambucana, legítimo repre- ter gostado de ir ao Mercado
era com “vergonhas” como sentante de cultos africanos, de São José, ela sem dúvida
essa que o sociólogo valori- tão presentes e tão impor- já enfastiada das finesses e
zava o que é nosso, a cultura tantes na formação do Brasil etiquetas cariocas, elegante
local e regional. mestiço e multicultural. e sábia o bastante para sa-
Mas por que especifica- Idêntico apreço, como se ber valorizar a simplicidade
mente uma feijoada para Ca- sabe, teve Jorge Amado, outro e o sabor de tudo que é au-
rolina? Ora, certamente não cultor de nossas raízes, pelos têntico. Sem falar, é claro, na
só pelo fato de essa feijoada terreiros de Salvador, no mes- qualidade excepcional do seu
do Dudu ser muito boa, dig- mo espírito de valorização do guia, o maior dos recifenses
na de reis (e rainhas). Poderia local e do regional, com vistas da época, quiçá de todos os
muito bem ter sido um sara- a alcançar-se o universal. tempos.
patel, um vatapá, um guisa- Pode-se também ver essa Divagando, fico a pensar
do qualquer, um pirão ma- inusitada feijoada como uma numa visita dessas aqui na
ravilhoso, enfim, qualquer manifestação concreta (e sa- aldeia. Quem seria a visitan-
prato saboroso da culinária borosa) dos princípios pre- te ilustre? Quem seria esco-
pernambucana e nordestina, gados por Gilberto Freyre no lhido para seu guia? E para
pois o que Freyre queria era Manifesto Regionalista de 1926, que lugar esse guia a levaria
não só oferecer à convidada mais importante para o ho- para almoçar? Para o nosso
um belo almoço mas também mem de Apipucos que o pró- lastimável Mercado Central
chamar a atenção de todos, prio Manifesto Modernista de é que não seria, certamente.
recifenses ou não, para a ri- 1922. Porque aí, sim, não tenho dú-
queza e a importância socio- Esse Manifesto recifense e vida, seria uma vergonha de
lógica dessa cozinha local e nordestino, diga-se, nunca foi verdade. E
regional, também definidora,
ao lado de tantos outros as-
pectos culturais, da identida-
de do Recife, de Pernambuco,
do Nordeste e do Brasil. Esta,
aliás, uma preocupação que
Gilberto já proclamava, de Francisco Gil Messias, paraibano de João Pessoa, onde reside, é bacharel
em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal da Paraíba
forma praticamente inaugu- (UFPB) e mestre em Direito do Estado, pela Universidade Federal de
ral, em Casa Grande & Senzala, Santa Catarina (UFSC). É membro da Academia Paraibana de Filosofia e
como se sabe. do Instituto de Estudos Kelsenianos. Publicou os livros Olhares – poemas
bissextos e A medida do possível (e outros poemas da Aldeia). Contato:
Pode-se, aliás, afirmar que gmessias@reitoria.ufpb.br.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2020 | 21


6 ensaio

Reflexões
sobre o romance
‘Auto-de-Fé’
José Mário da Silva
Especial para o Correio das Artes

P
oucas obras literárias infundem no espírito de quem as aprecia um sen-
timento tão profundamente desconfortável quanto Auto-de-Fé, clássico
romance de autoria do notável escritor Elias Canetti, romance esse re-
putado como uma das mais geniais expressões da ficção mundial de
todos os tempos. A desconfortabilidade existencial que recai sobre os
leitores de o Auto-de-Fé decorre das teias e tramas de um enredo vis-
ceralmente fraturado, que é composto por estórias intranscendentes,
destituídas de qualquer vestígio de elevação ética e moral; estórias cer-
cadas por violência e desumanidade por todos os lados. Ao percorrer-
mos as sinistras páginas do doloroso romance, temos a sensação de
estar num casa sombria, sem portas e sem janelas, na qual jamais pene-
trou ou nunca penetrará o mais
tênue raio de sol, dado que o que
fotos: reprodução

nela prevalece é a gélida frieza


das embrutecedoras relações
que as personagens romanescas
estabelecem entre si, completa-
mente desprovidas de qualquer, c

Elias Canetti e a capa


de uma edição de
‘Auto-de-Fé’ lançada
peça Cosac & Naify
em 2011: romance
doloroso

22 | João Pessoa, maio de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


c ainda que ínfimo traço de que ele trata a todos os que Kien anelava atingir a condi-
fraternidade. Aliás, conforme cruzam o seu caminho, prin- ção de sábio, habilitado a lidar
belo ensaio que consagrou ao cipalmente, os desvalidos so- com a vida de maneira supe-
romance de Elias Canetti, Ma- ciais, a exemplo dos mendigos, rior, utopia, de resto, inalcan-
rio Vargas Llosa afirma que o que ele tem prazer em surrar çável, seja por seu fechamento
propósito do escritor, perse- de maneira impiedosa; e, tam- para com o outro, seja pela
guido e cumprido à risca, era bém, as mulheres, como a sua realidade nua e crua da vida
escrever um texto “rigoroso e esposa e filha, as quais, depois como ela é ou como não deve-
desapiedado consigo mesmo e de serem alvos de humilha- ria ser.
com o leitor”. E, arremata Ca- ções e sevícias dos mais ig- A esposa de Peter Kien cul-
netti: “Achava-me imunizado nóbeis tipos, são brutalmente tiva estranha paixão por uma
contra tudo quanto pudesse assassinadas. Entre Benedikt saia engomada da cor azul,
ser agradável ou complacen- Pfaff e o mundo ergue-se, in- arde em sensualidade e tem no
te”. Tal objetivo, Elias Canetti transponivelmente, a barreira testamento do assexuado Kien
alcança plenamente, ao erigir da truculência que ele exibe o ponto de convergência de to-
uma ficção atormentada, cuja com o doentio orgulho dos so- das as suas cogitações.
atmosfera, poluída e dramati- ciopatas consagrados. Fischerle é um anão cor-
camente irrespirável, só a mui- Peter Kien é o protagonista cunda, jogador de xadrez, que
to custo é suportada pelo leitor da trama. Erudito abalizado e sonha com o estrelato e faz do
que, obstinadamente, atraves- emérito conhecedor da mile- submundo do crime o seu ha-
sa as suas quase setecentas pá- nar civilização chinesa, Peter bitat privilegiado.
ginas. Kien, de quebra, é proprietário Georges Kien, irmão de Pe-
Dentre os diversificados da maior biblioteca da cidade, ter Kien, outrora um ginecolo-
temários que presidem o ro- que conta com um acervo que gista mulherengo, agora é um
mance em pauta, um há que, a ultrapassa a casa dos 25 mil psiquiatra que lida com mais
meu ver, impõe-se como uma volumes. de oitocentos internados.
prevalecente nota, uma inva- Culto ao extremo e nutrin- Nos capítulos finais do ro-
riante básica, numa sinfonia do inocultado desprezo pelos mance, assistimos a uma renhi-
dominada por recorrentes e demais seres humanos, por ele da discussão entre os irmãos
insuportáveis horrores. É a reputados como ignorantes e Peter e Georges Kien, também
que atende pela incomunica- confinados nos estreitos limi- separados por cosmovisões
bilidade radical entre os seres tes da busca por uma felicida- diametralmente opostas.
que habitam este insólito terri- de ditada pela mediocridade Publicado na década de
tório ficcional. Embora contra- das convenções sociais, Peter 1930, Auto-de-Fé, no reflexo e
cenem o tempo todo entre si, Kien somente nutre interesse no revide, espelha o ambiente
no final das contas, as persona- pelos livros, com quem se re- de horror inerente à ascensão
gens são seres hermeticamente laciona de modo obsessivo e do nazismo na Europa de en-
fechados em seus universos idolátrico, relegando tudo o tão, mas, como obra de arte li-
interiores dominados por ta- mais ao território da mais ex- terária que é, e não uma mera
ras morais de toda espécie, plícita desimportância. alegoria política de um tempo
por interesses os mais mesqui- Peter Kien, depois de ser asfixiado pela cultura da mor-
nhos e anéticos, por projetos expulso do apartamento onde te, o romance transcende as
existenciais, se é que assim os morava e perambuilar pelos suas lindes cronológicas e es-
podemos classificar, voltados porões mais sombrios da so- paciais mais facilmente demar-
para a sua própria satisfação, ciedade na qual estava inse- cáveis, ao se atemporalizar, na
mesmo que para o atingimen- rido, morre nas chamas de medida em que, em última
to de tais espúrios interesses, um incêndio que ele mesmo análise, incide sobre a nature-
o outro tenha de ser sumaria- provocou, abraçado com os za humana, notadamente, so-
mente sacrificado, não somen- livros, numa cena pungente bre os aspectos malévolos que
te com a violência das palavras que encerra o livro e o ancora ela é pródiga em exibir.
engravidadas por toda forma no porto da completa irracio- Para o mestre Eduardo Por-
de desamor, mas também com nalidade. Irracionalidade que tella, “nós somos um ser para
o aniquilamento físico puro e é o combustível que energiza o outro e fora do diálogo o que
simples. o ser/fazer de personagens existe é o precipício”. O Auto-
Nesse particular, ganha re- adoecidas e encalacradas em -de-Fé é o romance do precipí-
levo uma personagem demo- seus mundinhos cercados de cio, do ilhamento e da solidão
níaca chamada Benedikt Pfaff, perversões por todos os lados. mais incurável.I
que atua como porteiro de um Mais do que o conhecimen-
edifício, cujo paradigma com- to livresco acumulado, Peter
portamental predileto, por ele
posto em prática sem o me-
nor laivo de arrependimento
José Mário da Silva é professor da Universidade Federal de Campina Grande
ou remorso, é a injustificável (UFCG) e membro da Academia Paraibana de Letras (APL) e da Academia de
e descomunal violência com Letras de Campina Grande (ALCG). Mora em Campina Grande (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2020 | 23


6 artigo

GUIMARÃES
ROSA
– UMA VISÃO NÃO
APOLOGÉTICA
Clemente Rosas
Especial para o Correio das Artes

“Literature is a criticism of life” – Matthew Arnold

A
publicação de luminoso artigo de Paulo Gustavo, da plomata, e, portanto, homem de
Academia Pernambucana de Letras, a propósito dos ciência, esta opção é para mim
50 anos da morte de Guimarães Rosa, levou-me a en- decepcionante. E aqui concluo
carar projeto bastante antigo, para cuja realização me o alerta contra possíveis vieses
vinha faltando coragem. Nada menos do que uma na minha abordagem analítica,
abordagem não apologética do escritor tão louvado recorrendo à lição de Gunnar
quanto pouco lido, verdadeiro monstro sagrado da Myrdal, para quem “o único ca-
nossa literatura, assim como já arrisquei com outra minho pelo qual podemos nos
figura hierática que lhe faz páreo: Clarice Lispector* esforçar pela objetividade em
Duas preliminares, por dever de honestidade, fa- análise teórica é trazer os juí-
zem-se necessárias. Não me situo no grupo dos críti- zos de valor à plena luz, fazê-los
cos que apenas analisam o texto literário, em seu as- conscientes e explícitos, e per-
pecto formal. Para mim, o que conta mesmo é o valor
mitir que determinem os pontos
social da experiência transmitida, o recado que se dá.
de vista, os enfoques e os con-
Como diz o Prêmio Nobel Octavio Paz, “o papel da
ceitos usados”.
literatura não é falar solipsisticamente da linguagem,
Vamos agora aos livros do fa-
mas servir-se desta para falar de outra coisa”. E tam-
bém meu ilustre conterrâneo, o professor Hildeberto moso escritor. Li, além de tex-
Barbosa Filho: “Um grande escritor é aquele que, atra- tos dispersos, Sagarana, Grande
vés da sua obra, alarga e transforma a nossa visão do Sertão: Veredas e Estas Estórias
mundo”. Por isso, li e louvo o “Retrato de um Artis- (coletânea póstuma de contos).
ta Quando Jovem”, de Joyce, mas não me disponho a Para mim, seu melhor livro é Sa-
mergulhar nas arapucas verbais de “Ulisses”. garana, do qual guardo forte me-
A outra preliminar é a postura, digamos, político- mória dos contos “O Burrinho
-filosófica de Rosa, por ele mesmo proclamada, que se Pedrês”, “Sarapalha”, “Conversa
opõe diametralmente à minha, racionalista convicto. de Bois” e “Augusto Matraga”.
Escreveu ele, referindo-se a seus livros: “Eles são, em Mas também apreciei, em Estas
essência, anti-intelectuais... e defendem o altíssimo Estórias, “Meu Tio, o Iauaretê”
primado da intuição, da revelação, da inspiração so- e “Bicho Mau”. No primeiro, o
bre o bruxulear presunçoso (grifo meu) da inteligên- narrador (provocado por per-
cia reflexiva, da razão, a megera cartesiana (idem)... guntas que o escritor omite) fala
Quero ficar com o Tao, com os Vedas e Upanishad, de sua vida de “onceiro”, caboclo
com os Evangelistas e com São Paulo, com Plotino, contratado apenas para matar
com Bergson, com Berdiaeff – com Cristo, principal- onças, vivendo isolado nas bre-
mente”. Para um médico como ele era, além de di- nhas. E sente-se a familiarida-
* Ver “Marília e Clarice”, Revista Será?, setembro de 2016 de, quase irmandade, do cabo- c

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fotos : reprodução
c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2020 | 25


c clo com os bichos com quem con- sua sintaxe inusitada, construiu ção que, espero, não magoe os
vive, e que respeita, apesar de uma nova linguagem. E eu per- admiradores incondicionais do
ter que matá-los. No segundo, gunto: que mérito há nisso? A autor de Sagarana. Arrisco uma
choca e comove a ingenuidade missão da literatura não deve ser hipótese explicativa para a no-
dos matutos que veem morrer, essa, como afirmou Octavio Paz, toriedade desse ficcionista, lido
aos poucos, o companheiro pi- já aqui citado. Ou vamos fazer por pouca gente e compreendido
cado por cascavel, sem recorrer coro a Paulo Leminski, que de- por ainda menos. Não haveria,
ao soro antiofídico, iludindo-se, clarou, em relação a seu cauda- mesmo que subconsciente, uma
confiando até o fim nas rezas do loso livro Catatau, que seu único motivação política para exaltá-lo,
curandeiro. objetivo era “torturar palavras, em contraposição a romancistas
Quanto a Grande Sertão: Vere- e a sintaxe”? Concluo com Mer- “engajados” de alguma forma,
das, considerada a obra-prima quior: “O formalismo é o nome como Jorge Amado, Graciliano,
do escritor, faço restrição ao seu geral da consciência estética aco- José Lins, Rachel de Queiroz (por
formato: um “tijolaço” de mais metida por indiferença ou insen- algum tempo) e outros menos co-
de 450 ´páginas, sem divisão em sibilidade em relação à proble- nhecidos?
capítulos e quase sem parágra- mática da civilização”. Todos esses escritores tratam
fos, com uma estrutura narrati- Por outro lado, faço distinção de problemas sociais, mais ou
va de vai-e-volta, que confunde entre os escritores que viveram menos diretamente, e podem
o leitor, além do esforço que lhe a realidade de onde extraem a ter sido incômodos, em período
é exigido para vencer frases tor- matéria de sua ficção, e os que histórico de exacerbação de ten-
tuosas, pontuadas de neologis- a investigam e reportam, como dências políticas. Enquanto em
mos e jargões desconhecidos. Na pesquisadores ou jornalistas. Rosa, tomando como principal
minha modesta opinião, antes de Ariano morou até a adolescência referência Grande Sertão: Veredas,
tudo, um desrespeito ao público, no sertão paraibano; José Lins não há qualquer indicação, por
para quem, afinal, é feita a lite- foi criado num engenho do Vale exemplo, das motivações dos
ratura. do Paraíba. É o caso também grupos armados que se digladia-
Mas vamos ser mais objeti- de Melville e Conrad, marujos vam no interior mineiro, nem da
vos na crítica, recorrendo a dois que falam de suas vivências em condição social dos combatentes.
exemplos concretos. O primeiro Moby Dick e Lord Jim. E, embora Por que combatiam eles?
é de um conto lido em alguma re- não conheça as vidas pregressas O substrato histórico-social
vista que, infelizmente, não pude deles, imagino situação seme- permanece oculto, intocado.
recuperar. Lembro apenas do tí- lhante em José Cândido de Car- Seus personagens parecem ato-
tulo: “Manantônio, meu Tio”. E valho (O Coronel e o Lobisomem) res sem papel, num picadeiro ao
posso dizer que, mesmo me con- e Mário Palmério (Vila dos Con- léu. Por isso, o autor seria uma
siderando um leitor persistente, fins), este, mineiro como Rosa, alternativa mais palatável para
que encarou obras como Os Lu- injustamente esquecido. os conservadores e os que veem
síadas, Dom Quixote e Os Sertões, Todos esses não configuram a literatura apenas como “o sor-
daquele texto não entendi nada. o caso do nosso comentado, que riso da sociedade”.
O outro exemplo está no livro Es- apenas seguiu, por 45 dias, uma Não desconheço a nobre atitu-
tas Estórias, e posso comentá-lo. “comitiva” de gado, com um ca- de dele, enquanto nosso cônsul
Trata-se do conto “Os chapéus derninho ao pescoço, anotando na Alemanha, ao facilitar a emi-
transeuntes”, cuja empulhação dizeres e falares, que depois re- gração para o Brasil de judeus
começa no título, pois se trata da produziu em seus textos, retra- perseguidos pelo Nazismo – para
descrição de um velório. balhados com sofisticação. o que foi motivado, ressalve-se,
São 36 páginas, longo percur- Cabe aqui outro registro, do pela sua esposa, funcionária do
so para descrever, em linguagem crítico espanhol Antonio Vila- Consulado. Mas, além do decla-
rebuscada, a vigília e o sepulta- nova: “Os escritores que não têm rado misticismo a que me referi
mento de um morto, com o regis- uma verdade no sangue, raízes, inicialmente, com expresso desa-
tro da presença de familiares de origens, espaço/tempo a que se cordo, não se conhece manifesta-
nomes arrevesados: Junhoberto, sintam pertencer e que aceitem ção político-filosófica sua, a não
Maricocas, Nearquineias, Mar- ou repudiem, não realizam uma ser a afirmação de que o maior
marina, Panegírica, Reneném, obra. Apenas escrevem livros problema da humanidade é sa-
Veratriz, Etcetera, Ratapulgo que até podem ser bons, interes- ber se Deus existe... Seria pela
Bugubu... Entre estes, um certo santes ou emocionantes no ato condição de diplomata? Aqui
tio Nestornestório, cujo nome da leitura... mas que não duram deixo a questão, para os aprecia-
é referido 41 vezes, com varia- na memória do tempo”. dores da sua obra. E
ções alternadas: Nestorionestor, Finalizo com uma especula-
Nestornestório, Nestorionestor,
Nestornestório... Ora, amigos, o
que é isto, além de maneirismo, Clemente Rosas Ribeiro nasceu em João Pessoa, em 27 de setembro de 1940.
É formado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba e pós-graduado
ludismo verbal inconsequente,
em Desenvolvimento Econômico. Integrou o grupo de poetas conhecido como
trato leviano do nosso idioma? “Geração 59”. Publicou Praia do Flamengo, 132 memórias), Coco de roda (ensaios),
Fala-se, em tom de louvor, que Administração & Planejamento (artigos) e Lira dos anos dourados (textos líricos
Rosa, com seus neologismos e da sua juventude). Mora em Praia Formosa, Cabedelo (PB).

26 | João Pessoa, maio de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


6 clarisser
Analice Pereira
marianalice@hotmail.com

A voz
silenciada de
Ignez Mariz

U
m tanto desconhecidos do públi- além de colaborar com jornais e re-
co leitor em geral, mas também do vistas da época, envolveu-se com
meio acadêmico (salvo alguns tra- educação de jovens e escreveu um
balhos desenvolvidos), Ignez Mariz livro passível de provocar algumas
e seu romance A Barragem têm mui- inquietações.
to a nos contar em termos de histó- Natural de Sousa, Paraíba, Ignez
rias de vida e de ficção. Ser mulher, Mariz escreveu A Barragem, em 1934,
que escreve romance na década de sendo publicado pela Editora José
1930 no Nordeste brasileiro, assina- Olympio em 1937. Em 1994, O Conse-
do com seu próprio nome, nome de lho Estadual de Cultura da Paraíba
família tradicional e com represen- publicou uma segunda edição fac-
tações políticas bastante conhecidas -similar, pela Editora A União, numa
do cenário paraibano, que traz em coleção intitulada “Biblioteca Parai-
sua biografia o primeiro registro de bana”, e coordenada por Gonzaga
desquite na região, e que seguiu so- Rodrigues. A leitura aqui apresenta-
zinha criando seu filho, tudo isso já da se deu, portanto, nesta segunda
indica a que veio essa mulher que, edição. A primeira, da José Olympio,
não foi encontrada sequer no site es-
tantevirtual, reconhecido por agrupar
Ignez Mariz, aqui
Arquivo de bernadete mariz melo

um número bastante considerável de


com seu filho
Paulo Antônio:
sebos de todo o Brasil. Também não
primeiro desquite consta do catálogo da José Olympio,
na região e hoje integrada ao Grupo Editorial
romance com Record. Cinquenta e sete anos sepa-
nome na capa na ram a primeira da segunda edição.
década de 1930 Esse hiato revela o esquecimento a
que ela foi colocada. Esquecimen-
to que só não é total graças,
primeiramente, à edição de A
União, de 1994, e, em segundo
lugar, a alguns pesquisadores
que se debruçaram sobre os
estudos de e sobre a escrito-
ra, a exemplo de
Isaías de Oliveira
Publicado em Ehrich (UFCG,
1937, obra 2009), Marcelo
é passível Medeiros da Sil-
de provocar va (UEPB, 2018),
inquietações Ana Maria Cou- c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2020 | 27


6 clarisser
c
tinho de Sales (UFPE, 2005), dunidense declara no posfácio tral agrega os demais temas,
Elis Regina Guedes de Souza da edição da Companhia das pois a história da construção
(IFPB, 2020 – ainda em constru- Letras de 2019. Mas por quê? do açude envolve, imprescindi-
ção), dentre outros. Porque tem a ver com a sua es- velmente, a história das famí-
À medida que esses dados treia, portanto, com o exercício lias que tiveram de se deslocar
vão aparecendo, vai se fazendo ainda incipiente da escrita, com para o local a fim de trabalha-
necessária uma reflexão sobre a “falta de sofisticação”, con- rem e, assim, poderem sair da
os porquês do esquecimento forme suas palavras, que não condição de pobreza deixada
dessa escritora e de seu roman- estava ao alcance da escritora, pela seca de 1932.
ce pelo setor editorial do Brasil. ainda. Mas Morrisson seguiu Como núcleo da trama, tem-
As respostas aos questiona- na sua trajetória de romancista, -se a família de Mariquinha e
mentos que se levanta podem publicando outros tantos livros Zé Marianno, que, ao longo da
até parecer óbvias. Mesmo as- e obtendo o reconhecimento da história, recebe algumas pro-
sim, vale registrá-los aqui e, crítica especializada e do No- gressões no trabalho de acom-
quem sabe (?), a partir deles bel de Literatura, em 1993. panhamento do serviço dos
contribuir, de alguma manei- Como romancista, pelo que “cassacos”, passando a admi-
ra, para o debate. Poderíamos, se sabe, Ignez Mariz parou em nistrador, pela sua competên-
assim, perguntarmo-nos, por A Barragem, romance que, se cia, mas, também por saber ler.
exemplo: 1. Estaria esse esque- não se sobressai com destacada Trata-se, portanto, de um ro-
cimento relacionado a interes- qualidade literária, apresenta- mance que traz para sua cena
ses em torno da constituição de -se como um exercício de escri- a questão do analfabetismo,
um cânone numa época, ainda ta para o que poderia se tornar revelada como uma preocupa-
mais do que hoje, de predomi- a escritora. Noutras palavras, ção da escritora enquanto pe-
nância masculina? 2. Cânone e o romance pode ser lido como dagoga que foi. O que se pode
gênero seriam aspectos afins uma promessa do que Ignez depreender disso, por exemplo,
para se colocar no limbo a obra Mariz poderia ter escrito em é que, ao passo que o romance
de uma escritora? 3. O enten- sua vida, posteriormente. Cla- representa uma realidade fac-
dimento do que se apresenta ro que essa reflexão é bastante tual da época, por meio de al-
como necessário para a cons- especulativa e pode em nada guns personagens analfabetos,
tituição do cânone, somado ao contribuir para a interpretação como Mariquinha, por exem-
entendimento do projeto esté- do romance, mas, de alguma plo, configura-se, também por
tico dos regionalistas à época, maneira, auxilia no entendi- sua voz narrativa, uma rein-
seriam, também, forças contí- mento do desprezo pela escri- vindicação pelo ensino escolar,
guas para afastar essa escritora tora por mais de meio século. apresentado criticamente como
do mercado editorial e, assim, precário.
torná-la desconhecida do gran- Açude São Gonçalo Maria dos Remédios, por
de público leitor? 4. Ou, sim- Ainda sobre qualidade lite- exemplo, filha de Mariquinha
ples e objetivamente, tratava-se rária, se A Barragem não entra e Zé Marianno, é instigada a ir
de um romance de qualidade no rol dos grandes romances, para a escola, tanto pelos pais,
literária questionável? também não significa que não quanto pela figura da professo-
Discorrer sobre este aspecto seja uma história muito bem ra, “auctoritaria, mandona”, a
da escrita de Ignez Mariz tal- contada. Uma coisa, necessa- “ilustre d. Eudocia”, conforme
vez, agora, importe menos do riamente, não diz a outra. E, descrição do narrador.
que refletir sobre outras ques- para além de tudo isso, o ro- Podemos associar à questão
tões referentes, por exemplo, as mance apresenta alguns ele- do analfabetismo outras ques-
suas condições de escrita. Afi- mentos temáticos que, por si só, tões importantes representa-
nal, se ela não alcançou uma já poderiam interessar ao setor das no romance, considerando
qualidade exigida por parâme- livreiro e, assim, colocar a es- a pobreza decorrente da seca
tros de uma crítica dita espe- critora num lugar de destaque. no Nordeste, como um elo te-
cializada é devido à possibili- São elementos que vão desde mático, por meio do qual os
dade de ela ter sido tolhida. questões do feminino, passan- demais temas são representa-
do pelo vocabulário, por aspec- dos, numa compreensão mais
Autora de único romance tos da política, da cultura, de ampla de que, se há pobreza,
A Barragem pode ter sido, organizações sociais, trabalhis- há analfabetos; se há analfa-
para Ignez Mariz, o que foi O tas etc., para contar a história betos, há atraso; se há atraso,
Olho Mais Azul para Toni Mor- da construção do açude de São há violência, machismo, pa-
risson, ou seja, “desprezado, Gonçalo, distrito do município triarcalismo, clientelismo etc.
trivializado, mal interpretado”, de Sousa, à época, no início da Digamos que tudo isso consti-
como a própria escritora esta- década de 1930. Esse tema cen- tui aspectos de uma sociedade c

28 | João Pessoa, maio de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


6 clarisser

c que se apresenta como pobre pois os irmana desde crianças a editorial brasileiro, dentre as
e atrasada, cujos personagens lucta sontra a calamidade das Sêc- quais podemos destacar um
têm como preocupação maior cas, os operarios nordestinos po- “lugar de fala” num dos mo-
conseguir trabalho na constru- deriam ser facilmente syndicaliza- mentos mais significativos da
ção do açude, mesmo que sem dos. Como podemos, porém, exigir produção romanesca no Brasil,
receber, pontualmente, o par- idéas de homens que nunca demo- titulado pelo nome de “Regio-
co salário, revelando-se, ainda raram um livro entre as mãos? nalismo de 30” ou “Romance
assim, como a melhor (senão No Nordéste, a região mais de 30”, ou, ainda, “Romance
única) oportunidade de sobre- brasileira do Brasil, nós não care- Regionalista”, “Segunda Gera-
vivência dessa gente. cemos somente dagua. Precisamos ção do Modernismo Brasilei-
Além desses, outros ele- igualmente de livros. (p, 236).
ro” etc.
mentos romanescos que põem Em que pese o projeto es-
Atenta-se, também, para a
a obra e sua autora em desta- tético e ideológico do movi-
ortografia mantida no roman-
ques estão na investida que a mento literário em questão, o
ce, tendo em vista que o que
narração faz do tema da mo- Romance de 30 é reconhecido,
dernização, seja pelos com- parece, às vezes, desvio lin- inclusive, por ter influenciado,
portamentos dos personagens, guístico, pode não passar de numa contramão interessante,
apresentados em sua grande convenção da escrita própria algumas produções portugue-
parte por meio dos diálogos, de uma época. Não esquecen- sas. Por isso, também, destaca-
seja pela representação dos do, também, de observar a -se como um dos movimentos
ambientes narrativos, seja pelo presença de estrangeirismos, literários mais importantes de
próprio enredo, mas, também, como “flanar” e “toalete”, o nosso país. Mas é no seio des-
pela voz narrativa, já que a que pode decorrer de alguns se tão importante movimento
configuração desses elemen- fatores interessantes, dentre que encontramos alguns equí-
tos narrativos está subjugada eles, o acesso da escritora aos vocos.
à ótica do narrador em terceira escritores franceses. Um deles, por exemplo,
pessoa. refere-se a outro paraibano
Pode-se observar essa re- Condicionamentos sociais da mesma época. Lembre-
invindicação de uma moder- Bom, essas ideias ora expos- mos que José Lins do Rego foi
nização, por exemplo, pelos tas decorrem de inquietações considerado “escritor menor”,
seguintes elementos: 1. Pela causadas pela leitura de A por escrever numa linguagem
relação de gêneros, na confi- Barragem, de Ignez Mariz, não “rude”, apontada como um
guração de Remédios, uma apenas pelo que se imprime defeito e, só posteriormente,
personagem feminina que en- nas páginas desse livro, mas, reconhecida como a força mo-
cara o tema do patriarcalismo também, pelos condiciona- triz da produção literária do
quando se coloca contrária ao mentos sociais que conferem escritor, conforme estudo de
comportamento submisso de ao romance o seu caráter de Manuel Cavalcanti Proença.
outras mulheres, incluindo realidade factual, bem como Outros equívocos existem.
sua mãe Mariquinha; 2. Pela pelas condições sob as quais Relacionados a Jorge Amado,
empatia do narrador para com essa escrita surge e que in- a Graciliano Ramos, por exem-
os “cassacos” no que se refere cluem ser mulher, sertaneja, plo. Mas não cabe, na brevida-
a alguns direitos trabalhistas, nordestina, desquitada, pro- de desse texto, ampliar o terri-
incluindo o direito à educação, fessora de jovens e numa época tório. Fiquemos na Paraíba e na
portanto ao livro, por meio de de predominância masculina possibilidade de, a partir des-
uma voz narrativa empolgada no setor livreiro no Brasil. sas reflexões, talvez podermos
quanto à criação do “Syndicato Várias questões foram, por- construir um entendimento
dos Agricultores e Trabalha- tanto, suscitadas e/ou provo- sobre a escritora Ignez Mariz
dores á União”. Vejamos um cadas por essa leitura e não se que, ainda pior do que seu
trecho do narrador sobre sin- pretende esgotar aqui a dis- conterrâneo e contemporâneo
dicalismo, seguido do questio- cussão. Pelo contrário. A ideia Zé Lins, foi completamente es-
namento de um personagem é, de alguma forma, provocar quecida pelo setor livreiro na-
sobre a necessidade de posto o debate sobre questões que cional e, por isso, quase desco-
médico na região: estão em torno do mercado nhecida do público leitor. I
“Pôstos médico? Pra que? Os
meninos está bom de saúde...
Bem de saúde, sendo a vermi-
nose e a carie dentaria os seus ma- Analice Pereira é professora de Língua Portuguesa e Literatura
Brasileira do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da
les menores...
Paraíba (IFPB). Escreve sobre literatura e, vez ou outra, aventura-se pela
Cooperativistas de nascença, ficção. Mora em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2020 | 29


6 artigo tal - da cultura sonora e de inédita
sensibilidade auditiva do público
jovem. A canção popular é arte
feita mercadoria. A mercadoria
canção, composta para atrair o

Beatles
público, tem recepção de produto
artístico. 

2 - A revolução, enquanto
acontece, para o idealismo, é o

em 7 notas princípio de realidade como no-


ção de causa. No existencialismo
sartriano, uma situação-limite.
Com os Beatles, há uma “tomada
Walter Galvão de poder” simbólica, não violen-
Especial para o Correio das Artes ta, pelos jovens, na perspectiva,

1-
mutatis mutandi, da revolução
passiva teorizada por Grams-
Antecedentes da Era Beatles (1960 -1970).  A banda fru- ci, e na contramão da revolução
to agridoce da revolução jazz-rock. A ótima versão da radical-jacobina liderada pela
invenção estético-musical da cultura artística afro-ame- juventude cubana. Maio de 1968
ricana estadunidense de inigualável repercussão mundial. aspira à condição revolucionária
(Anos 1940-1950, criação do rock’n roll, Paul Bascomb, Wild radical. 
Bill Moore, William John Clifton - pseudônimo de Bill Haley A bibliografia de qualquer área
-, Buddy Holland, Elvis Presley, Chuck Berry, Little Richard, e a arte dos anos 1960 exorbitam
Jerry Lee Lewis...)   o uso da palavra revolução. Trata-
Antecedentes Beatles poeticamente considerados. Para -se, no entanto, de um símbolo
além das relações causais e  musicais. Como ciclos genealó- vivo inscrito com fogo na pele
gicos de padrões de sensibilidade em regeneração evolutiva.  do tempo. Em 1970, George, Paul,
Antecedente igual a insinuação intuitiva do conceito de Ringo e John decidem dissolver
eterno retorno do mesmo. O mesmo anseio cíclico, intergera- a banda revolucionária. No mes-
cional, - geração perdida (Hemingway, Fitzgerald, Paris, anos mo ano, Andreas, Gudrun, Ulrik
1920) e a era do jazz (anos 1920-1930-1940), rebeldes sem causa e Horst anunciam a criação do
(anos 1950, Marlon Brando, James Dean) -  por mais ar carac- grupo terrorista revolucionário
terístico das grandes rupturas. As rupturas revolucionárias.  Baader-Meinhof na Alemanha. 
Revolução Beatles: incorporação de instrumentos inco- Justamente na Alemanha onde
muns no pop-rock, novas tecnologias (mellotron, precursor os Beatles, mais precisamente em
do sintetizador, neto do sampler, estreia em “Strawberry fields Hamburgo (shows em 1960-1962),
forever”), pesquisa de sonoridades, riffs magnéticos panfletá- fizeram o laboratório para desen-
rios, colagens, ruídos. Fenômeno social urbano híbrido: nova volver a técnica de apresentações
acuidade acústica dos artistas promove expansão - via rádio, com a qual o grupo conquistou o
TV, cinema, discos em modulação mercadológica monumen- mundo. O sonho acabou, escreve c

ilustr ação: Victor Eloi

30 | João Pessoa, maio de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


c Lennon em “God” (1970). O pesa- portante para fundamentar ar- e Osmar, Nirvana, Bruce Springs-
delo, não.   tisticamente o repertório da lite- teen, Blur, Supertramp, Electric
ratura emergente, como divulga Light Orchestra… Uma multidão.
3 -  Testemunhos sobre tempo um conjunto de textos publicados Sem falar naqueles que soam à
(mentalidade) e cultura (com- entre 1283 e 1292 que, à sua época maneira dos fab four, mas sem
portamento). Um testemunho causou, por força de seu experi- nada declarar, como é o caso de
antecedente Beatles, um faiscar mentalismo, impacto semelhante Elton John. 
do dilema crítico ético do way of aos textos da geração beat do qual
life da América. Os Beatles ex- o autor de On the Road foi um dos 6 -  A canção jovem da banda
pressariam criticamente o dilema mais expressivos criadores. é a nova escola.  Som e imagem
(destino manifesto, consumismo, Dez anos depois, 1959, indica do grupo conquistam a indústria
moralismo, narcisismo, sucesso Russel Jacoby em Os Últimos In- cultural na Grã-Bretanha e nos
acima de tudo, racismo, segre- telectuais, a revista Life publica o Estados Unidos. A guitarra eletri-
gacionismo), amplificando-o em seguinte: “Eles zombam, virtual- za a emoção, a música popular re-
dimensão global por meio de mente, de todos os aspectos da define padrões comportamentais
canções a exemplo de “Taxman”, sociedade americana atual: mãe,  e estimula novas propostas e res-
“Piggies”, “Revolution”, “Black pai, politica, casamento, cader- postas sensíveis de uma geração. 
bird”, “Baby you’re a rich man”...  netas de poupança, religião orga- A banda inglesa de Liverpool
“Não são os oceanos que nos nizada”. A opinião ainda não era (Ringo, Lennon, George e Paul)
isolam do mundo - é o jeito ame- sobre os Beatles. A zombaria era fenômeno de massa internacio-
ricano de olhar as coisas. Nada se protagonizada pelos escritores nal, expressão de uma nova poé-
realiza aqui a não ser projetos uti- e escritoras beat. Mas em 1964, tica mítico-ideológica da cultura
litários. Aprende-se a respeito de quando os filhos diletos da re- pop agora eletro tecnificada. A
cerveja, leite condensado, produ- volução jazz-rock chegaram aos música, com eles, conquista sta-
tos de borracha, comida enlatada, Estados Unidos, houve um críti- tus de novo idioma tonal ao nível
colchões infláveis etc, mas não se co que acusou a letra de “Please de um idioma artístico a oferecer
vê nem se ouve nada a respeito please me” de ser uma apologia novas experiências ao público,
das obras-primas da arte. Para ao sexo oral.  notadamente uma experiência de
mim, parece nada menos que um Em 1969, John Lennon, célula totalidade. Com ela, o público se
milagre os jovens da América ja- originária da banda, filósofo do identifica, vivencia emoções, am-
mais ouvirem nomes como Picas- neo-rock - Caetano Veloso diz se- plia a sensibilidade.
so, Céline, Giotto ou que tais”.  rem os Beatles uma nova chave da
O depoimento é de Henry Mil- cultura rock, o neo-rock  gênero 7 - Na totalidade, uma das cate-
ler, romancista referência dos jo- evolutivo do rock’n roll - imerso gorias do entendimento da filoso-
vens beat.  Está em O Pesadelo Re- no psicodrama das rupturas pes- fia idealista teorizadas por Kant,
frigerado, relato de viagens. O ano soais, símbolo burguês do rock se afirma a convergência da uni-
é 1939, quando ele retorna do lon- star entre a neurose e a autocons- dade (dos integrantes da banda)
go período morando em Paris. É ciência, pede, numa canção, uma e da pluralidade dos sentidos das
nesse mesmo ano em que Charlie chance à paz.  canções. Os conteúdos emocionais
Christian toca, e grava pela pri-   comunicados em letras e acusti-
meira vez nos EUA, uma guitarra 5 -  Os Beatles foram imitados camente pelo grupo nas canções
elétrica com a orquestra de Benny por jovens do mundo inteiro. João refletem sobre natureza, vontade,
Goodman.  Pessoa e Campina Grande tive- mundo e destino. A agenda dos
ram bandas cover dos Beatles nos anos 1960 decantada no mais ou-
4 - Dante revolucionário contra anos 1960. Os Quatro Loucos (JP) sado dos álbuns do pop-rock: Sgt.
o deserto cultural. Dez anos de- e Sebomatos (CG), os mais ativos Pepper’s Lonely Hearts Club Band,
pois do que afirma Miller,  em se- na Paraíba.  de 1967, 700 horas de estúdio,
tembro de 1949, está escrito o se- Bráulio Tavares, Zé Ramalho, cinco meses de gravação, quatro
guinte no diário de Jack Kerouac: Vital Farias, Mestre Fuba e Elba prêmios Grammy. Eis a música
“Agora, enquanto escrevo, es- Ramalho, entre outros, foram rock dos Beatles: esse fazer-sentir
tou muito feliz e não tenho sequer músicos de conjuntos inspirados dionisíaco dançável e reflexivo.
um pensamento na cabeça. Arte é nos ingleses.  Mas que se desdobra em esfera
infelicidade (?) Ócio, ócio - estou Artistas que declaram a in- cultural autônoma na trama da
lendo “La Vita Nuova”.  fluência dos ingleses: Gil e Cae- contracultura do pós-guerra. Um
O deserto intelectual dos jo- tano, Os Mutantes, Kurt Cobain, jeito de ser e de estar. Uma forma
vens vislumbrado na reflexão de Kiss, Oasis, Beach Boys, Roberto de pensar. Um mundo em aberto
um Miller niilista é refutado dez e Erasmo, Luiz Caldas, Billy Joel, a nos seduzir com música de on-
anos depois pela voz de um autor U2, Ozzy Osbourne, Zé Ramalho, tem. Música também para hoje e
também importante na cultura Célia Cruz, Los Mustangs, Dodô para sempre. I
estadunidense de uma nova ge-
ração. Ao anunciaro mergulho
em Dante, nos poemas de A Vida
Nova, Kerouac não só evidencia Walter Galvão é jornalista e escritor paraibano. Cantor de baile nos anos 1970
uma curiosidade intelectual im- em João Pessoa, fez cover dos Beatles integrando o conjunto musical Santana’s. 

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2020 | 31


6 ao rés da página
Tiago Germano
tdgermano@gmail.com

O louco do
arquivo
em PDF

M
uito já se escreveu sobre o louco
de palestra, aquele sujeito que
comparece a qualquer evento
– do congresso científico à reu-
nião de condomínio – e nunca
perde a oportunidade de pedir a
palavra para fazer “uma rápida
colocação”. Se você nunca viu
um louco de palestra, é muito
provável que você mesmo seja
um, embora muita gente defen-
da que se trata de um fenômeno
sobrenatural, de uma entidade
maligna que vaga livremente
pelos centros culturais apenas
esperando a oportunidade de se
manifestar. O espírito do louco
de palestra é invocado sempre
que alguém segura o microfone
(verdadeiro para-raio pra esse
tipo de maluco) e dá aquelas
três batidinhas com a ponta dos
dedos, geralmente provocando
um estampido ou um som cor-
tante, que fere os ouvidos. Não
é uma microfonia, mas o baru-
lho do demônio sendo liberado
e tentando tomar o corpo de al-
guém. A partir daí, meu amigo,
melhor ir embora: ele pode en-
carnar em qualquer um.
Eu não queria dar uma de
louco de palestra aqui, fazendo
uma intervenção longa e óbvia
ilustr ações: reprodução sobre um assunto que nem é o c

32 | João Pessoa, maio de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


6 ao rés da página
c que está sendo discutido. Mas é
que o personagem sobre o qual
falarei hoje tem muito da perso-
nalidade do seu primo-irmão. É
algo como um louco de palestra
que ficou meio tímido e parou
de ir aos eventos, começando a
alimentar aspirações literárias
e transcrever suas “colocações”.
Ele perambula pelas redes so-
ciais de escritores, jornalistas,
agentes, editores e professores
de literatura. Você não o conhece,
mas vez por outra ele surgirá no
palquinho do seu chat privado
cheio de boas intenções, partindo
das gentis saudações para uma
solicitação singela e aparente-
mente inofensiva. Acredite: ele
vai transformar sua vida num
inferno digno de uma vinheta do
Supercine.
“Você pode ler uma coisinha
que eu escrevi?”
Trata-se do louco do arquivo
em PDF – e antes que você me
pergunte se podem variar os for-
matos, ele mesmo esclarecerá que empenhou toda uma pequena páginas de puro delírio ilegível e
sim, pode enviar o arquivo em fortuna na edição da trilogia que que não é muito diferente do dis-
Word também, mas como se sabe ele acreditava ser capaz de revo- curso de alguém que, possuído
o arquivo fechado é mais seguro, lucionar a literatura contempo- pelo espírito do louco de palestra,
menos suscetível a alterações e rânea mas foi claramente vítima conseguisse a proeza de tomar
sobretudo ao plágio (um dos pe- do mau trabalho da editora ou de o lugar do palestrante e de fato
sadelos do louco do arquivo em um jornalismo cultural oportu- substitui-lo na mesa.
PDF). Evasivas não o detém: uma nista e preguiçoso, pautado pelos “Bom dia”, pipoca como que
coisa que a vida lhe ensinou é a prêmios literários e por leitores por coincidência um inbox do
ser persistente, em sua constan- que preferem comprar o livrão louco do arquivo em PDF, e você
te busca por uma aprovação que do Youtuber da semana em vez sabe que já há neste inbox uma
lhe vem sendo negada, seja pelas de boa literatura. cobrança velada. Uma cobrança
grandes editoras que se recusam Você topa baixar o arquivo em que vai continuar existindo todas
a publicar o seu trabalho, seja pe- PDF. Você faz a ressalva de que lê as vezes que o louco do arquivo
los leitores que não compraram devagar no computador e se des- em PDF disser: “Não sei se você já
os seus livros já publicados, seja pede, volta para suas leituras em começou a ler, mas...”, e de repen-
ainda por outras vítimas anterio- papel, mas o discurso do louco é te a loucura do louco do arquivo
res de sua loucura que ou jamais quase lúcido de tão convincente em PDF está tomando você, já é
responderam suas mensagens ou e se transforma agora num pano maior que a sua própria loucura,
deixaram por alguma razão de de fundo para todos os livros que você escreve duas páginas de um
respondê-las. você escolheu ler em vez do dele, texto sem pé nem cabeça, fecha o
Os argumentos são razoáveis, você é também um culpado pelo arquivo e envia para os amigos
você mesmo já se viu nesta situa- seu fracasso – olhando preguiço- antes de publicá-lo.
ção aflitiva e foi provavelmente so o Portinari da galeria, enquan- No inbox, a pergunta:
o louco do arquivo em PDF dos to o Bispo padecia no armário “Você pode ler uma coisinha
seus amigos mais próximos. Você do hospício... Você abre o PDF e que eu escrevi?” I
ou trabalha com leitura crítica ou descobre que a “coisinha” que o
conhece alguém que trabalha e louco escreveu são mais de 300
recomenda ao louco seus prés-
timos, mas o louco ou já chegou
a pagar pelo serviço e não tem Tiago Germano é escritor, autor do romance “A Mulher Faminta” (Moinhos, 2018)
mais dinheiro ou simplesmen- e do livro de crônicas “ Demônios Domésticos ” (Le Chien, 2017), indicado ao
te nunca teve dinheiro mesmo, Prêmio Jabuti. Mora em João Pessoa.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2020 | 33


POE

Daniel Sampaio
Estudos nº 01
ilustr ações: tonio

Soneto da mulher que acorda


A noite surge, e teu rosto nela foge.
Um Azul-de-Lear, véu de avelã
A voar névoas e sombras da manhã,
Até que o Sol te encubra e te console.

A luz clareia o quarto em que tu dormes.


Sua cor vazia esparsa as malhas brancas
E as rendas dos lençóis de tua cama,
Até que um alvar dúctil tudo absorve.

É dia, e teu olho arpeja como o Sol.


Clarina, grasna, gralha, abre teus cílios
Qual galhos no arboreto do arrebol,

Como árvore que nasce por entre círios,


Um pássaro que se alça e – duplo golpe –
Abre as asas a um voo de precipícios.

Soneto a um Anjo
Tocam teus dedos comovente acorde,
que emula ao ressoar tuas manhãs
vermelhas. Tuas asas – o recorte
de nuvens enfronhadas em danças –

Balançam sutilmente teu doce


Alaúde. Que música louçã
escutas? Que Celeste timbre entoas?
Acaso Deus consagra o coração?

Vejo que agora voas! Um anjo (és?)


tão pequeno que assombra tamanha Soneto dominical
Beleza, cujo assomo faz do reles O domingo nasce mais claro e quente,
sob um Sol de fornalha, intenso e forte.
humano, húmus. Lembras tu do estanco Meu corpo adormecido e indolente
que fui, que sou? Se não, vê tu: talvez em vão procura abrigo que o conforte.
não te espante meu canto neste pântano...
Mas se busca, ainda estando dormente,
as sombras contra o Sol, nada o socorre.
Das fístulas de fogo, para além de
torpor, meu corpo como círio escorre.

Do nada, uma nuvem aparece


cheia de afrescos em fractais de chuva.
Cortina de avelã, uma fagulha

de cristais radiados – anoitece:


as ondas irisadas da laguna
refratam o céu negro em volutas.

34 | João Pessoa, maio de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


SIA

paio de Azevedo
Estudos nº 02

Van Gogh
Amarelo, o feno
parece flutuar
sob um azul azul.

Azul

Amarelo, o trigo
esmilhara-se ao vento
como um tiro surdo.

Surdo

entre a cor & o som,


a Noite se projétil
de estrelas e texturas.

Abutre
Vulto sobre os Aqueus – o
o perigo é
Plenipotenciário. Sabem-
no,
As aves rapaces.

Abrem as asas e flanam.


Os Aqueus mortos, todos,
sobram no campo, Amor
infectam,
mas o Abutre lhes come Dizem que teus olhos se
dos outros veem/ límpidos/ como uma
A memória do corpo. águia entre sóis/
lívidos/ como, entre
lençóis, seios túmidos/
Cortesã do inferno vívidos

nas mãos, não carregas Dizem que disto


que não mão e braço
de teus amantes. vem Amor.

teu robe vermelho Foto: reprodução


esconde o inferno Daniel Sampaio de Azevedo, natural
e o riso do rei. de João Pessoa (PB), é autor da
plaquete Terror Sagrado sob o Sol
de Meio-dia (Mondrogo), lançado
Dançam, gritam, brincam em 2019, participou da antologia
Mortos, descarnados – Todo Começo é Involutário: A Poesia
Súbito, és tu. Brasileira no Início do Século 21
(Lumme editor), organizada por
Claudio Daniel, e já teve poemas
publicados pelo Correio das Artes.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2020 | 35


6 artigo de um tio. E o velho Graça não
me deu ainda aquele estalo, mas
nunca esqueci a sequidão da des-
coberta.
Cor é uma entidade da memó-
ria, agora sei. Do amarelo-andan-
te vem a imagem do carteiro me

Alguns fatos
entregando pacotes generosos
em peso e medida, os livros do
círculo do livro. Antes, numa
revista, tínhamos uma ideia do
que pedir. Eu pedia mais Agatha

sobre o ato de ler Christie. Queria o mistério a todo


custo. Mas algumas coisas eram
bem claras pra mim, e foi se fir-
mando, dando seiva ao leitor que
hoje sou. Como o seguinte fato:
André Ricardo Aguiar leitor se mexe. Não pense que
Especial para o Correio das Artes não. Quando se quer ler, lê-se em
todo canto, em movimento, em
posição fetal. Li Eça numa via-
gem de trem e Machado em fila

D
izem que a memória é branca, só
algumas vezes ganha uns tons. A
ilustr ação: Comfreak/Pix abay

minha tem cor de papel, pode ser


amarelado, vá lá. E cheira. Os cinco sen-
tidos ganham então uma ambientação,
prontos para um resgate. Digo isto por-
que virou moda citar fatos a respeito de
gente. Daí, quando invento de me bus-
car, cavar nas reminiscências, só encon-
tro livro. Livro e leitura. Nos primeiros
lampejos, José Lins do Rego. Eu li Menino
de Engenho quase de uma talagada, mel
dos bons, daquele que você acha que o
que está lembrando é mais seu do que o
personagem Carlinhos. Não é isso que
faz a melhor literatura? Tornar o que é
dos outros nosso. Foi a mesma coisa com
o Lobato, um dos itens que virou fato
corriqueiro. Obra lida, obra domada. Só
minha. Sítio.
Lá vem mais memória. A cor, o tom é
meio pastel. Cor de uma gaveta. Meus
primeiros livros amontoados feito um
jogo de dominó, combinados. Toda bi-
blioteca deve começar assim, humilde,
o rastro do leitor. Dei vários apelidos a
esta gaveta: caverna, limbo. Chamava
assim, de estimação. Entrou muito livro
nesta gaveta até dar lotação. E procu-
rar outro cavadouro. Até lembro que o
primeiro poeta a ter entrado por lá foi
o Drummond, naquela ediçãozinha do
Literatura Comentada. Depois outros e
outros. Mas o itabirano era a base. Me
fez lembrar outro fato, anterior a essa
chance de ir empilhando livros. Os livros
da família, mais precisamente, dos avós.
Bote mais cor amarelada, quase com o
amarelo de uma réstia de sol. É que vi
o Vidas Secas numa edição de papel jor-
nal, dando sopa, num quartinho dos fun- c
dos. Ninguém ia lá. Coisa de guardados

36 | João Pessoa, maio de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


c de banco. Antes de chegar à esta- saídas da tinta, do útero da má- queira perguntar mais de mim,
ção ou ao caixa, guardava o livro quina. Mas voltei a ter a libido com perguntas meio interroga-
para ler quando pudesse. de abrir livros velhos no sebo. O tório, como quem zapeia o ins-
Há fatos de cores mais esmae- ato é aceito, afinal, somos ratos. tante, aí vai. Sim, fato azul, meu
cidas. Por exemplo, como não Para roer é um pulo. Mas fico no primeiro poeta foi mesmo Drum-
pude devolver certos livros. Não cheiro. Fato. É como uma apro- mond. E sim, vermelho, li Dante
é culpa minha. Talvez, por uma ximação, uma sedução. E parece em condições infernais. E tenho
questão de destino, livro escolhe até dizer mais da gente. Como toques, tocs, então ta valendo,
dono. O empréstimo foi firmado que dizendo: eu estive desabro- vou pra livraria com espírito de
por uma confiança, mas quando chando em outros narizes. Tenho fiscal, quero o livro tal, íntegro. E
o dono apaga os rastros, some, pólen. Daí, cheiro livro. Alguns para o resto dos dias brancos do
ganha o mundo. A quem devol- até não são lá essas coisas, mas a ano, tenho o mesmo número de
ver. Na dúvida, guardo o livro. curiosidade é maior. fatos sobre o ato de ler. Mas isto
E livro guardado vai adquirindo Opa, um clarão, mais resquí- só lendo com a vida. E ela segue
parentesco. Vai ficando como ir- cios de memória. Para você que em novas cores. I
mão, primo, o que for. Um belo
dia, ele tem a nossa marca, as
nossas impressões. Uso capião,
André Ricardo Aguiar é autor de livros publicados pela Patuá (‘A Idade das
uso copiado. Chuvas’, poesia; e ‘Fábulas Portáteis’, contos). Também atua na literatura infantil,
Uma cor que não abandono, publicando ‘O Rato que Roeu o Rei’ (Rocco) e ‘Chá de Sumiço e Outros Poemas
cheirar livros. Penso que isso foi Assombrados’ (Autêntica), ambos selecionados para o PNBE. Em breve, no prelo,
cultivado com obras novíssimas, Da Existência Enquanto Gato, a sair em breve. Mora em Florianópolis (SC).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2020 | 37


6 festas semióticas
Amador Ribeiro Neto
amador.ribeiro@uol.com.br

Isolamento
social,
ventilação e apneia

Q
uando o poeta Alberto Bresciani es-
creveu e publicou Fundamentos de
Ventilação e Apneia (S. Paulo, editora
foto: divulgação Patuá, 2019), ainda não se falava em
coronavírus. Porém, não deixa de ser
indicial que a literatura, mais uma
vez, antecipe a realidade. Senão, con-
sideremos o que uma das estrofes do
poema “Metabolismo” pontua:

Pode ser que um vírus se espalhe,


Uma brand new de gripe
Todo acaso pode ser letal

Me lembro que o saudoso Bóris


Schnaidernann, em uma de suas au-
las, nos dizia que o cinema existia na
literatura antes de ser inventado pelos
irmãos Lumière, com os planos de
câmera, iluminação, fade out e fade
in etc. Iúri Lótman, pai da Semiótica
Russa, na mesma direção, não hesita
em afirmar que as artes antecipam as
tecnologias.
Bem, falávamos da poesia de Alber-
to Bresciani, e é o que importa aqui.
Seu livro, desde o título é um feliz
achado em qualquer época. Nesta
nossa, de isolamento social e afins, ga-
nha especial realce. Friso: sua poesia
não é destinada apenas a este momen-
to, a esta circunstância: ela transpõe o
Alberto Bresciani:
agora porque é: 1) linguagem poética
seu livro, desde transtemporal e 2) imersão na condi-
o título, é um ção humana. Ou como diria Pound:
feliz achado e linguagem carregada de significado.
em tempos de
isolamento social
O livro de Bresciani possui duas
e afins, ganha partes/dois pulmões: 1) Ventilação
especial realce espontânea e 2) Apneia. Ambas são c

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6 festas semióticas

'Fundamento de
Ventilação e Apneia'
vale-se da mais fina
linguagem coloquial e
poética sem nenhum
cacoete literário.
Lê-se o livro como se
estivéssemos numa
sessão de cinema

coloquiais mas têm, no entanto, mento literário”, para valer-me aqui de


distintas dicções poéticas. E tal uma expressão cara a Cortázar, tinge-se de
procedimento oxigena o livro. tal naturalidade que lemos os poemas em
Lembro-me que comentando In- um ritmo que chega a dispensar seus títu-
completo Movimento, livro de es- los. A poesia flui em música e imagens. A
treia do poeta (2011), escrevi: “A narratividade é de tal forma fluida em rit-
poesia de Alberto Bresciani tem mo e melodia, que o tema se faz música e
um dos pés na busca do coloquial dança para o leitor.
e outro na tradição clássica. Ora Mas há o outro lado da moeda. O medo
acerta, ora não. Ele parece almejar do inevitável, a crueldade da evolução dos
uma descontração da linguagem, acontecimentos e a inexorabilidade da se-
mas tolhe-a com construções que quência dos fatos apavorantes ganham
c lembram a poesia canônica bem igualmente os sentimentos e a cumplicida-
comportada. Aquela poesia que de de quem lê. A forma poética imanta. Há
nos remete aos neoclássicos, aos desespero e regozijo, febre e gozo, temor e
parnasianos e até – parece para- alívio. Pode o leitor vivenciar a catarse, ou
doxo – aos simbolistas”. o distanciamento brechtiano. Depende de
No livro seguinte, Sem Passa- seu grau de consciência/vivência poética.
gem para Barcelona (2015), ele faz De toda forma – com ou sem trocadilho –, a
uma transição entre o primeiro e arte pulsa e impulsiona-se enquanto provo-
o agora lançado. Pois Fundamento cação. Regozijo ou flagelo, cabe a cada um.
de Ventilação e Apneia vale-se da
mais fina linguagem coloquial e
poética sem nenhum cacoete li- Versos como
terário. Lê-se o livro com desem-
baraço e leveza tais como se esti- E então um tombo da cama para a vala
véssemos numa sessão de cinema de corpos passados nos desperta,
assistindo a um bom filme. E, se assusta e empurra e estamos de pé
faço a comparação com cinema,
ela não é gratuita. Desde o livro são um cutucão no leitor apático, ou ao
de estreia, o mundo imagético é menos, desligado. O que ele fará com este
uma das dominantes da poesia desenredar-se, só a ele lhe cabe. À poesia,
brescianiana. a sequência de vogais fechadas (poucas) e
Na primeira parte, o “trata- abertas nos versos acima, bem como as con-

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6 festas semióticas
soantes línguo-dentais e bilabiais entre surdas e Retorne o tempo gasto no nada
sonoras, desenham o tombo e o abrir-se para o E reconheçamos nossos quartos,
despertar do novo mo(vi)mento. Feridos e mortos, os fantasmas,
No poema a seguir, a urgência do aprovei- Por mais que relutem em abandonar
tamento de cada instante faz-se na brutalidade A cena de sangue que nos retrata
de atos desesperados de felicidade. O poema Acreditar pode ser o estopim da queda.
que leva o nome de um multicolorido peixinho
moçambicano de apenas seis centímetros, “No- Corvos
thobranchius Rachovii”, traz a convocação sob
forma concisa, leve e breve: Não via os corvos,
mas eram corvos,
Façamos como killifishes africanos prendendo o tempo
: que explodem as cores mais violentas, E eu criava pombos
Cuspamos agora todo som, ódio, fúria
Quando você saiu,
Sabemos que tudo se vai à brevidade as sombras
de um único ano e nossas vidas nunca tinham penas negras
terão a chance de beber outra chuva e ficaram pela casa,
pela garganta,
A segunda parte, igualmente narrativa, ao as suas penas
abdicar da terceira pessoa e da fluência rítmica,
opta por abrir mão de alguma indagação e mis- Ontem entendi
tério. E por trabalhar certa cadeia de sons com e acendi a luz.
mais cadência.
Agora as emoções nascem de um eu que fala, Eis uma das belezas de Fundamentos de
via de regra, diretamente ao leitor. Mas como ventilação e apneia, de Alberto Bresciani:
aquele é também alguém interessado, parte do colocar a palavra em primeiro plano, privi-
problema, a empatia se estabelece com rapidez. legiar o lugar da linguagem poética e, con-
Embora com menor taxa de adesão. A dicção comitantemente, anexar elementos essenciais
da voz poética, ainda que em alta, tem menor da vida pessoal e social. De hoje? De hoje e
amplitude que na primeira parte. de sempre. Pois sua poesia não é didática e
Esta parte, ao ser aberta com uma epígrafe sequer datada. A atemporalidade é sua mar-
dúbia – “Que a vida não tinha cura, / o tem- ca histórica. Ela é aliada do leitor que busca
po me ensinou, e mais tarde” – orienta-se com ver beleza.
seguidos movimentos de oxigenação e sufoco, Ver beleza é afundar os dedos no peito
ventilação e apineia. A epígrafe desenha os até alcançar o coração com as mãos quentes
movimentos que esta seção terá. Poemas como e acolher-lhe os pulsares: os todos-inteiros e
“Escape” e “Corvos” desenham o percurso da os quase-quereres. As migalhas trituradas e
vida que se afirma e se nega, avança e retrai, as dores de imensos vermelhidões sangran-
pois a vida não é unidirecional. Antes: é com- do coágulos. A beleza da entrega e da recusa.
plexa, bastante complexa – e os tempos, cônca- Do amor e da indiferença. Do temor e da li-
vos e convexos. cenciosidade. Do mar e do semáforo fechado.
Esta é a oferenda, o ofertório, o dom, a dá-
Escape diva do mundo de poesia que Bresciani nos
brinda com ventilação e brisa.
Tanto rumor nos ossos e ainda Beleza para todos os tempos, num livro
Esperamos a válvula, alavanca maduro, elaborado, sólido – e, acima de tudo,
Que desarme, alavanca muito bonito. I
Que desarme artefatos fatais,
Espalhados pelos companheiros
De causa, doces irmãos, pais

Erga-se o velame, abra-se o ar,


Venha outra voz, convencimento
De que vale ainda respirar
Neste mundo ou em outro plano
Imaterial, se mais houver além
De nervos vocacionados ao fim
Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico de literatura
e professor da Universidade Federal da Paraíba.
Mora em João Pessoa (PB)

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P O E S I A

Ilustr ação: Domingos Sávio


Lau Siqueira
Uma máscara
cairá sobre o seu
rosto
Os dias se arrastam
numa velocidade
sem limites. No entanto,
sabemos que nada saiu
do lugar.

As ruas estão plenas:


caos e silêncio na espera
de uma normalidade tão
mais louca que a memória
das noites sem estrelas,

sem nuvens, sem lua...

Aquelas que pesam. Perdem


altitude. As que escondem
nossos passos. Comem nossas
sombras e prometem não
amanhecer.

Um inimigo invisível corre


pelas calçadas com motivos
para destruir. Devastando
o silêncio que somos quando
nos tiram o ar.

A morte e a vida caminham


lado a lado. Trocam flores
e trocam tapas. Se escondem
no medo de nunca mais voltar.
Outros serão metade, ou É bárbaro o que não voa,
(suspiro)
quem sabe até bem menos. mas nos joga pelos ares.
Alguma coisa invisível Como se fôssemos
Hoje foi um dia sisudo.
nos jogou contra a parede. a dobra de toda leveza.
Troquei sementes de cedro
e jacarandá. Não porque
Tudo é mar e tudo é sede. A vida é um susto.
sejam eternas, mas por
No alto de um prédio E eu abri mais uma
serem a própria resistência.
tremula uma sentença. cerveja.
Estamos seguros como
O ignóbil passeia nas redes.
o suicida antes do salto.
A farsa grotesca da miséria
não esconde a tristeza ou
a tatuagem sangrada dos Lau Siqueira
que não temem a eternidade. “Eu me interesso pela linguagem porque ela me fere ou me seduz”.
(Roland Barthes)
Mas quando amanhecer
ainda estaremos aqui.
Vamos comer o que sobra Lau Siqueira é escritor e poeta. Publicou
da vida que pouco temos. os livros ‘O Comício das Veias’ (1993), ‘O
Guardador de Sorrisos’ (1998), ‘Poesia Sem
Pele’ (2011) e ‘Livro Arbítrio’ (2015), entre
outros, além de integrar diversas antolo-
gias nacionais. É natural de Jaguarão (RS) e
mora, há 30 anos, em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, maio de 2020 | 41


6 cantinho do conto
Rinaldo de Fernandes
rinaldofernandes@uol.com.br

Modos de orações
V
ocê escava argumentos luzidios, faz-se de espavorido e
suores lhe escapam do rosto, relampejam à réstia da luz
que pende do poste na rua. Você é irregular – irriga e enxu-
ga. Intenta me levar aos gramados da praia para a tal cami-
nhada fria, vil no jeito de observar as pernas mais fornidas.
Durante tempos me submeti, compus modos de orações para te reter, imo-
bilizar teus passos com sapatos bem polidos. Averiguei teus bolsos, achei
areias em teus ouvidos. Procurei pistas em teus cotovelos, que um dia che-
garam da rua azuis. Teus botões da camisa nova eu comi às pressas, triturei,
temendo tuas palavras postergadas para depois do sopapo. Sempre ocultei
as assinaturas impressas no meu corpo – as tuas sinistras assinaturas. E de
tudo restou esse agora, esse tapete onde observo formigas se acenderem e
que, de repente, são apagadas pelos tênis do meu filho que entra da escola
e que, sempre obtuso, fechado, sequer me dilata um bom dia. I

ilustr ação: tonio

Rinaldo de Fernandes
é escritor, crítico de literatura e professor da Universidade
Federal da Paraíba. Mora em João Pessoa (PB).

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