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literário do
Jornal A União
Maio - 2020
Ano LXXI - Nº 3
R$ 6,00
Exemplar encartado no jornal A União apenas para assinantes. Nas bancas e representantes, R$ 6,00
Sivuca
90 anos
Um mergulho na trajetória
do músico paraibano que fez,
da sanfona, um respeitado
instrumento para sala de concerto
2020: Ano
Cultural
Sivuca, na
Paraíba
6 editorial
6 índice
, 20 @ 24 2 27 D 32
crônica ensaio coluna ao rés da página
Ao levar a fina Carolina Clemente Rosas Analice Pereira esmiúça Tiago Germano explica
Nabuco a uma feijoada no discorre sobre obras 'A Barragem', primeiro e quem é o "louco do arquivo
mercado, Gilberto Freyre de Guirmarães Rosa único romance de uma PDF", que perambula
atentava para a riqueza e a através de um estudo das pioneiras da literatura pelas redes sociais
importância sociológica de nada apologético do autor paraibana, Ignez Mariz, tentando emplacar suas
tal cozinha. mineiro. publicado em 1937. "colocações".
Sivuca:
uma história
de amor à sanfona
Alexandre Nunes
Especial para o Correio das Artes
N
inguém jamais poderia imaginar que Severino Dias de Oliveira, aquele menino
franzino e branquelo que sofria um enorme desconforto com a luz do sol por causa
do albinismo, nascido na zona rural de Itabaiana, precisamente no Campo Grande,
na várzea paraibana, pudesse um dia ser aclamado nos palcos internacionais e con-
siderado um dos grandes músicos do mundo.
O sexto filho de José Dias de Oliveira e Abdólia Albertina de Oliveira veio ao
mundo pelas mãos da parteira Dondon, numa casa perfumada por defumador de
alfazema, costume da época, no dia 25 de maio de 1930, como garante sua filha
Flávia Barreto, no livro Magnífico Sivuca, Maestro da Sanfona, ou no dia 26 de maio
de 1930, conforme reza no Registro Civil emitido 16 anos depois do nascimento.
Segundo anota a filha do artista, “o pequeno equívoco brindou Severino com a
possibilidade de duas comemorações: a verdadeira e a oficial, motivo de muitas
brincadeiras ao longo da vida”.
Aos nove anos, Sivuca teve o primeiro contato com a sanfona, instrumento que
passou a ser sua paixão pelo resto da vida. Isso aconteceu em 13 de junho de 1939,
uma terça-feira, Dia de Santo Antônio, quando seu pai chegou da feira de Itabaiana
com uma sanfona pendurada nos ombros, um presente para Gercino, um irmão
sete anos mais velho do que Severino e que também era albino.
Ainda conforme revela Flávia no seu livro, nos primeiros dias, o acesso ao instru-
mento era uma aventura de atrevimento. “Todos saíam para a lavoura e Severino
pegava a sanfona escondido, com Dona Bidu, sua mãe, fazendo vista grossa. Logo
ele tocou a primeira música, a marchinha de carnaval A Jardineira”, narra. Só que
com o passar tempo, Gercino abdicou do instrumento e Bilino, como Sivuca era
chamado pela família, foi em frente. c
c
Início Glória Gadelha,
esposa de Sivuca
da trajetória na vida e na arte,
O
Antes de sua mor-
foto: Reprodução
te, em 14 de dezem-
bro de 2006, na cida-
de de João Pessoa,
revolucionário Sivuca concedeu a
sua última entrevis-
Também existe barreira ideo-
ta, a mesma publi-
lógica no mundo da música e,
cada posteriormente
segundo a socióloga Flávia Bar-
na edição de maio de
reto, filha única de Sivuca, es-
2010 do Correio das
creve no livro Magnífico Sivuca,
Artes. Nela, ele dizia
Maestro da Sanfona, publicado
seguinte: “Fomos fa-
em 2011. Cedo, o músico enten-
zer um concerto com
deu a importância de derrubar
uma Sinfônica em
as muralhas conceituais que se Em parceria com Chico Buarque (D), Sivuca compôs a valsa ‘João e Maria’
Belo Horizonte, cuja
estabeleceram entre a música
erudita e a música popular e to-
dos os reflexos derivados dessa
barreira ideológica.
O virtuosismo de Sivuca com
a sanfona encantou o mundo e
fez com que ele levasse o instru-
mento a uma aceitação nunca
antes imaginada. Em entrevis-
ta concedida em novembro de
2006 ao jornalista Silvio Osias,
publicada na edição de maio
de 2010 do Correio das Artes,
Sivuca conta que quando mora-
va em Nova Iorque recebeu um
telegrama de Miles Davis que
dizia o seguinte: “Finalmente,
encontrei alguém que me fizesse
às pazes com este maldito ins-
trumento, o acordeon”.
Segundo explica Flávia Bar-
reto, a revolução musical acon-
tecia na imaginação de Sivuca
enquanto escrevia as partituras,
‘Os Trapalhões na Serra Pelada’ traz trilha sonora de Sivuca e uma breve aparição do músico
No
Mundo da Lua (1958).
Em 1962, fez uma rápida apa-
rição no filme Le Diable et les 10
Commandements (no Brasil, O Dia-
Maestros
trouxe para o fole repertórios ção da orquestra como um único
seletivos e sofisticados”
c instrumento multifacetado é sua
maior virtude”, analisa.
Carlos Anísio relata a sua ex-
reverenciam a genialidade de periência como maestro ao traba-
Si v u c a
lhar a música de Sivuca. “Tive o
privilégio de reger suas obras e
arranjos sinfônicos, em algumas
oportunidades, a saber: no lança-
“A qualidade da música de Si- da década de 1940, a Rádio Jornal mento, pela UFPB, do livro Sivuca:
vuca é indiscutível. Ele trafegou do Commércio, capitaneada pelo Partituras, em 2009, com Toninho
com desenvoltura por diversos paraibano F. Pessoa de Queiroz, Ferragutti e a Orquestra de Câme-
gêneros da canção e da música contratou o maestro e compositor ra da UFPB; no I Festival Interna-
instrumental com a genialidade carioca César Guerra-Peixe (1914- cional de Música Clássica de João
dos maiores mestres da música 1993) para dirigir as orquestras Pessoa, em 2013, com Lucy Alves
universal”. O comentário é do da emissora. Guerra-Peixe, além e a Orquestra Sinfônica Municipal
maestro, compositor e arranjador de suas funções na rádio, também de João Pessoa; no II Fórum de Et-
Carlos Anísio Oliveira Silva, pro- dava aulas de harmonia e compo- nomusicologia da UFPB em 2016,
fessor do Departamento de Músi- sição a jovens músicos da cidade também com Toninho Ferragutti e
ca da UFPB. do Recife, como Capiba, Clóvis a Orquestra Sinfônica da UFPB”.
Carlos Anísio acrescenta que Pereira e Sivuca, à época contrata- O maestro lamenta que, infeliz-
o virtuoso artista carregou seu do da emissora. mente, não teve a graça de atuar
instrumento, a sanfona, por ve- “O seu primeiro professor na com o artista tocando, pois este
zes tão estigmatizado, com a dig- arte da harmonia e da orques- morreu em 2006. “Desde 1999,
nidade de um príncipe e tirou tração era um grande composi- quando a UFPB outorgou-lhe o
dela timbres e recursos surpreen- tor. Escrevia música de concerto, Título de Doutor Honoris Cau-
dentemente originais. “Trouxe trilhas de cinema e rádio e era sa, ocasião em que eu era Chefe
para o fole repertórios seletivos também um pesquisador das do Departamento de Música e
e sofisticados: Johann Sebastian manifestações musicais do povo. fui encarregado da organização
Bach e Paganini dialogavam na- Portanto, Sivuca, iniciado que foi das comemorações, iniciei uma
turalmente com Luiz Gonzaga e por um mestre na arte da música, amizade que se manteve até o
Nelson Ferreira através das teclas aplicou com sabedoria os ensi- seu falecimento. Estive com ele na
e botões de sua sanfona”, ilustra. namentos que recebeu nas suas produção e organização de vários
Ele explica que, enquanto ar- obras e arranjos sinfônicos”, com- concertos, festivais e apresenta-
ranjador e orquestrador, o músico plementa. ções e participei também da equi-
facilitava a vida do maestro, por pe que realizou a edição do livro
utilizar bem os recursos da or- Diversas linguagens Sivuca: Partituras”, informa.
questra. “Seus arranjos são bem Carlos Anísio observa que, Anísio enfatiza que Sivuca,
acessíveis. As dificuldades que as como Sivuca trilhou diversos ca- além de um gigante musical, foi
obras dele apresentam são de or- minhos da música, a exemplo uma pessoa generosa. “Quan-
dem musical, interpretativa, não da música autenticamente nor- do veio morar em João Pessoa,
técnica. Então, um maestro que se destina, rural e urbana, o jazz, a nos últimos anos de vida, não se
disponha a interpretar a música bossa nova, a improvisação, e tra- furtou a conviver e tocar com os
do multi-instrumentista não en- balhou com músicos americanos, músicos paraibanos com o entu-
contrará dificuldades desnecessá- europeus, africanos ao redor do siasmo de um jovem no início da
rias para os músicos da orquestra, mundo, conheceu e experimen- carreira, distribuindo seu caris-
porém o nível da parte do solista tou diversas linguagens harmô- ma, seus ensinamentos e sua arte
é bem virtuosístico”, reconhece nicas, das mais sofisticadas às para todos. Nas suas palavras,
Anísio. mais simples. “Seu conhecimento João Pessoa era a Viena brasilei-
O maestro conta que, no final harmônico era profundo, embora ra”, conclui. c
ao
tudo que colocava no
papel, antes mesmo da
música ser executada,
e isso é uma
capacidade que poucos
universal
músicos têm
foto: thecles silva / ospb
Ecletismo
musical nos arranjos
O instrumentista e arranjador
Sivuca está entre os grandes mú-
sicos do mundo, com destaque
para uma sonoridade múltipla
e de arranjos para várias moda-
lidades orquestrais, que incluem
concertos sinfônicos, big band,
quinteto de cordas ou de sopros,
sexteto de trombone, quarteto
de sax, camerata, grupo de jazz,
de choro e de forró pé de serra,
entre outras formações instru-
mentais. As informações são da
cantora e compositora Glória Ga-
delha, esposa e parceira musical
do artista. Chiquito, com
Glória Gadelha (ao
Um dos momentos na vida
lado) e regendo a
do músico que concretiza essas Metalúrgica Filipéia
informações, conforme revela na gravação do DVD
Glória Gadelha, acontece entre de Sivuca: “A música
dele é atemporal e
2004 e 2005, quando Sivuca faz
com aquele toque
os arranjos e realiza a gravação bem brasileiro”
do CD Terra Esperança - ideali-
zado, produzido e dirigido pela
própria Glória Gadelha, no qual
participam 11 grupos da Paraí-
ba, de formações distintas, en-
tre eles a big band regida pelo
maestro Chiquito, a Metalúrgi-
ca Filipéia. choveram LPs e CDs para ele es- musical em suas partituras.
Francisco Fernandes Filho, cutar. Ele escutou alguns e não “A gente pegava a partitura e
mais conhecido como Maestro gostou. não sabia como ia soar. Ele escre-
Chiquito, conta que sua expe- “Foi exatamente nesse perío- via de maneira muito simples,
riência com Sivuca foi muito do que a gente mandou o LP da mas quando soava era uma coisa
enriquecedora, tanto em nível Metalúrgica Filipéia, produzido do outro mundo. Era uma sumi-
musical como humano, e garan- por Paulo de Tarso. Por interse- dade, realmente. Ele tinha uma
te que, para os artistas locais que ção do compositor Newton Coe- maneira diferente de harmoni-
tiveram a oportunidade de fazer lho e do maestro José Américo, zar, de distribuir as partes. Era
algum trabalho conjunto com o Sivuca ouviu e gostou do nosso muito interessante isso”, destaca.
este gênio da música, isso signi- trabalho. Isso resultou em um te- Chiquito reitera que o que
ficou um salto de qualidade na lefonema dele para mim, dizen- pode ser destacado no Sivuca ar-
música paraibana como um todo. do que havia escrito uma músi- ranjador, por meio de suas parti-
O maestro revela como foi que ca para a Metalúrgica Filipéia”, turas e que revela sua genialida-
Sivuca teve o primeiro contato lembra. de tão comentada, é justamente
com o trabalho musical da Me- Na opinião do maestro Chi- a maneira como ele trata cada
talúrgica Filipéia. Quando Ele quito, Sivuca enquanto arranja- naipe, cada instrumento, para
voltou da Europa para o Brasil, dor e orquestrador facilitava a soar bem harmonizado. “A músi-
especificamente para o Rio de vida do maestro, porque escrevia ca dele é atemporal e com aquele
Janeiro, onde já tinha morado, muito bem, sem complexidade toque bem brasileiro”, salienta. c
Sivuca
e lançamos em junho de 2004.
c Foi um sucesso muito grande,
porque tanto no Brasil, quanto
grande referência”
pernambucanos Luiz Gonzaga
e Dominguinhos, e Sivuca. “A
santíssima trindade dos san-
foneiros, para mim, é essa aí”,
comenta. “Eu tive a sorte de
André Cananéa conhecer dois deles, Domingui-
andrecananea2@gmail.com nhos e Sivuca. Sivuca, paraiba-
no, e eu lembro como se fosse
hoje, da nossa aproximação,
minha, do meu pai (o também
Sivuca foi um dos grandes nomes a enxergar o ta- músico Badu Alves), da minha
lento da cantora, compositora e multi-instrumentista família através de Radegundis
paraibana Lucy Alves, hoje radicada no Rio de Janei- Feitosa (1962-2010), do grande
ro. “Preste atenção a essa menina, ela é um grande trombonista e conterrâneo do
talento”, comentou o mestre de Itabaiana ao jorna- meu pai da cidade de Itaporan-
lista Silvio Osias quando ambos assistiam ao DVD O ga”, recorda.
Poeta do Som, que seria lançado em breve (leia mais Para ela, Sivuca é a grande
na página 16). referência, tanto para acordeo-
Lucy nem tinha 20 anos quando subiu ao palco nistas, quanto para sanfoneiros,
com o Clã Brasil para gravar uma participação no “porque ele conseguiu transitar,
DVD do mestre, em julho de 2005. E mais: com Glo- desde a feira de Itabaiana, com a
rinha Gadelha, Sivuca compôs uma música inédita música popular, uma música de
para tocar com o grupo, “Visitando Zabelê”. raíz, os forrós, os baiões, até as
Meses depois, foi a vez do Clã Brasil convidar Si- salas de concerto. Isso me mo-
vuca para a gravação do DVD do grupo formado por tivou muito, porque na minha
Lucy, as irmãs e os pais. “Sivuca é um dos meus pa- formação musical, eu tenho a
Através de seu
drinhos de musicais. Ele e Hermeto (Pascoal) são dois música erudita; eu fiz bachare-
smartphone bruxos da música e acho que a música brasileira deve lado na UFPB, e ele foi um bom
conectado à muito à eles”, comenta a artista, hoje. referencial”, revela, antes de ar-
internet, veja Clã “Eu tive a grata oportunidade de conviver com ele, rematar: “Sivuca tem um reper-
Brasil e Sivuca de absorver o que pude no curto tempo que a gente tório incrível, além de ser multi-
tocando ‘Feira de
mangaio’, trecho
teve contato. Melhor ainda: de estar imortalizada ao -instrumentista e produtor. São
extraído do DVD lado dele, junto da minha família, no DVD dele, único desses gênios que a gente teve
do grupo DVD que ele lançou. Para mim, como acordeonista, na Música Popular Brasileira”. c
M
ulti-instrumentista, Lobo) e ‘Berimbau‘, precedida trou ‘Felicidade‘ (Tom Jobim/
Sivuca era hábil tanto por uma breve explicação a Vinicius de Moraes), ‘La pluie
no acordeon, quanto respeito do instrumento que dá sur la mer‘, música de Sivuca
no violão. Em um especial da nome à composição de Baden lançada um ano antes no dis-
TV sueca, levada ao ar em 1969 Powell e Vinicius de Moraes. co que o paraibano fez com o
e disponível, na íntegra, no No palco, Sivuca e seu trio sueco (Sivuca Med Putte Wick-
Youtube (você pode assistí-lo – James Phillips (contrabai- man Orkester) e o standard
a partir do QR Code no topo xo), Luizito Ferreira (bateria) e ‘There will neve be another
desta página) mostra que tan- Leopoldo Fleming (percussão) you‘, de Harry Warren, regra-
to numa posição, quanto em - recebem dois convidados vada por Chet Baker, Frank
outra, ele era um craque. suecos, amigos músicos que Sinatra e Shirley Bassey, entre
Mas o que torna o vídeo é Sivuca fez em sua temporada muitos outros.
um raro momento em que Si- no país. No encerramento, Sivuca
vuca, além de tocar, canta. Lá, O primeiro é clarinestista chamou a cantora (e atriz) Mo-
é possível ouví-lo entoar clássi- sueco Putte Wickman (1924- nica Zetterlund (1937-2005),
cos como ‘Arrastão’ (creditada 2006), com quem Sivuca gra- que deu voz à versão em in-
pelo programa somente à Vini- vou dois discos entre 1968 e glês de ‘Insensatez’, de Tom e
cius de Moraes, ignorando Edu 1969. Com ele, Sivuca mos- Vinicius.
D
e acordo com o Dis- volume, lançados, respecti- Bar, 1985), Putte Wickman
cogs, maior ban- vamente, em 1957 e 1958. (Putte Wickman Meets Sivu-
co de dados sobre Em 1959, Sivuca e Seu ca, de 1966, e Putte Wick-
registros fonográficos do Conjunto estreou na Odeon man & Sivuca, 1982) e Oscar
mundo, Sivuca lançou 38 com o LP Vê Se Gostas e a Brown Jr e Jean Pace (na tri-
álbuns com seu nome como partir daí, sua discogra- lha sonora Joy, 1970).
estrela principal. O primei- fia passou a ser registrada A partir dos anos 1980, os
ro não poderia ter um título por selos internacionais, discos gravados por Sivu-
mais apropriado para apre- como Barclay, RCA-Victor ca passam a sair tanto por
sentar ao mundo o músico e Reprise até 1978, quando selos estrangeiros, quanto
paraibano: Eis Sivuca!. O voltou a gravar pelo Copa- nacionais, até os anos 2000,
10 polegadas com dez fai- cabana, que lançou discos quando ele lançou seus
xas saiu em 1956 pela Co- que se tornariam bastante quatro últimos álbuns, to-
pacabana Discos e nele, o conhecidos do músico no dos em CD: Cada Um Belisca
instrumentista de apenas Brasil, como Forró e Frevo Um Pouco (2004), com Do-
26 anos exibia todo seu e Cabeço de Milho, ambos minguinhos e Oswaldinho,
virtuosismo ao acordeon lançados em 1980, os quais indicado ao Grammy Lati-
ao dedilhar um repertório registram a transição do no; Sivuca Sinfônico (2004)
que ia de Ary Barroso a Se- violonista para o acordeo- - ambos pela Biscoito Fino
bastian Bach, passando por nista em disco. -; Sivuca E Quinteto Uirapu-
Guerra Peixe e Ernesto Na- Muitos desses álbuns, o ru (2004) e Terra Esperança
zareth, entre outros. paraibano divide a titulari- (2007), os dois últimos já
A Copacabana ainda dade com outros nomes, es- pela Kuarup.
editaria os dois álbuns se- trelas da música nacionais, Não todos, mas boa parte
guintes do músico (que na como Rosinha Valença (Ao desses discos podem ser en-
época assinava Sivuca e Seu Vivo Seis e Meia, de 1977), e contrados nas plataformas
Conjunto), Motivo Para Dan- internacionais, do porte de de streaming, como Spotify,
çar, o primeiro e o segundo Toots Thielemans (Chiko’s Deezer e Google Music. E
6 crônica
Uma dama
no Mercado de São José,
no Recife I
sto mesmo: uma dama no Mercado de
São José, no Recife. A dama era nada
mais nada menos que Carolina Nabu-
co, a filha mais moça de Joaquim Na-
buco, escritora de nome e biógrafa do
pai, legítima representante da mais
fina aristocracia pernambucana e ca-
Francisco Gil Messias rioca, aquela não necessariamente ba-
gmessias@reitoria.ufpb.br seada no dinheiro e na propriedade,
mas, antes, numa cultivada tradição
patrícia, filha do Tempo e da Cultura,
a mesma que distingue, por exemplo,
os Melo Franco, estirpe mineira que
tantos nomes de relevo deu ao Brasil,
em várias áreas. c
Reflexões
sobre o romance
‘Auto-de-Fé’
José Mário da Silva
Especial para o Correio das Artes
P
oucas obras literárias infundem no espírito de quem as aprecia um sen-
timento tão profundamente desconfortável quanto Auto-de-Fé, clássico
romance de autoria do notável escritor Elias Canetti, romance esse re-
putado como uma das mais geniais expressões da ficção mundial de
todos os tempos. A desconfortabilidade existencial que recai sobre os
leitores de o Auto-de-Fé decorre das teias e tramas de um enredo vis-
ceralmente fraturado, que é composto por estórias intranscendentes,
destituídas de qualquer vestígio de elevação ética e moral; estórias cer-
cadas por violência e desumanidade por todos os lados. Ao percorrer-
mos as sinistras páginas do doloroso romance, temos a sensação de
estar num casa sombria, sem portas e sem janelas, na qual jamais pene-
trou ou nunca penetrará o mais
tênue raio de sol, dado que o que
fotos: reprodução
GUIMARÃES
ROSA
– UMA VISÃO NÃO
APOLOGÉTICA
Clemente Rosas
Especial para o Correio das Artes
A
publicação de luminoso artigo de Paulo Gustavo, da plomata, e, portanto, homem de
Academia Pernambucana de Letras, a propósito dos ciência, esta opção é para mim
50 anos da morte de Guimarães Rosa, levou-me a en- decepcionante. E aqui concluo
carar projeto bastante antigo, para cuja realização me o alerta contra possíveis vieses
vinha faltando coragem. Nada menos do que uma na minha abordagem analítica,
abordagem não apologética do escritor tão louvado recorrendo à lição de Gunnar
quanto pouco lido, verdadeiro monstro sagrado da Myrdal, para quem “o único ca-
nossa literatura, assim como já arrisquei com outra minho pelo qual podemos nos
figura hierática que lhe faz páreo: Clarice Lispector* esforçar pela objetividade em
Duas preliminares, por dever de honestidade, fa- análise teórica é trazer os juí-
zem-se necessárias. Não me situo no grupo dos críti- zos de valor à plena luz, fazê-los
cos que apenas analisam o texto literário, em seu as- conscientes e explícitos, e per-
pecto formal. Para mim, o que conta mesmo é o valor
mitir que determinem os pontos
social da experiência transmitida, o recado que se dá.
de vista, os enfoques e os con-
Como diz o Prêmio Nobel Octavio Paz, “o papel da
ceitos usados”.
literatura não é falar solipsisticamente da linguagem,
Vamos agora aos livros do fa-
mas servir-se desta para falar de outra coisa”. E tam-
bém meu ilustre conterrâneo, o professor Hildeberto moso escritor. Li, além de tex-
Barbosa Filho: “Um grande escritor é aquele que, atra- tos dispersos, Sagarana, Grande
vés da sua obra, alarga e transforma a nossa visão do Sertão: Veredas e Estas Estórias
mundo”. Por isso, li e louvo o “Retrato de um Artis- (coletânea póstuma de contos).
ta Quando Jovem”, de Joyce, mas não me disponho a Para mim, seu melhor livro é Sa-
mergulhar nas arapucas verbais de “Ulisses”. garana, do qual guardo forte me-
A outra preliminar é a postura, digamos, político- mória dos contos “O Burrinho
-filosófica de Rosa, por ele mesmo proclamada, que se Pedrês”, “Sarapalha”, “Conversa
opõe diametralmente à minha, racionalista convicto. de Bois” e “Augusto Matraga”.
Escreveu ele, referindo-se a seus livros: “Eles são, em Mas também apreciei, em Estas
essência, anti-intelectuais... e defendem o altíssimo Estórias, “Meu Tio, o Iauaretê”
primado da intuição, da revelação, da inspiração so- e “Bicho Mau”. No primeiro, o
bre o bruxulear presunçoso (grifo meu) da inteligên- narrador (provocado por per-
cia reflexiva, da razão, a megera cartesiana (idem)... guntas que o escritor omite) fala
Quero ficar com o Tao, com os Vedas e Upanishad, de sua vida de “onceiro”, caboclo
com os Evangelistas e com São Paulo, com Plotino, contratado apenas para matar
com Bergson, com Berdiaeff – com Cristo, principal- onças, vivendo isolado nas bre-
mente”. Para um médico como ele era, além de di- nhas. E sente-se a familiarida-
* Ver “Marília e Clarice”, Revista Será?, setembro de 2016 de, quase irmandade, do cabo- c
A voz
silenciada de
Ignez Mariz
U
m tanto desconhecidos do públi- além de colaborar com jornais e re-
co leitor em geral, mas também do vistas da época, envolveu-se com
meio acadêmico (salvo alguns tra- educação de jovens e escreveu um
balhos desenvolvidos), Ignez Mariz livro passível de provocar algumas
e seu romance A Barragem têm mui- inquietações.
to a nos contar em termos de histó- Natural de Sousa, Paraíba, Ignez
rias de vida e de ficção. Ser mulher, Mariz escreveu A Barragem, em 1934,
que escreve romance na década de sendo publicado pela Editora José
1930 no Nordeste brasileiro, assina- Olympio em 1937. Em 1994, O Conse-
do com seu próprio nome, nome de lho Estadual de Cultura da Paraíba
família tradicional e com represen- publicou uma segunda edição fac-
tações políticas bastante conhecidas -similar, pela Editora A União, numa
do cenário paraibano, que traz em coleção intitulada “Biblioteca Parai-
sua biografia o primeiro registro de bana”, e coordenada por Gonzaga
desquite na região, e que seguiu so- Rodrigues. A leitura aqui apresenta-
zinha criando seu filho, tudo isso já da se deu, portanto, nesta segunda
indica a que veio essa mulher que, edição. A primeira, da José Olympio,
não foi encontrada sequer no site es-
tantevirtual, reconhecido por agrupar
Ignez Mariz, aqui
Arquivo de bernadete mariz melo
c que se apresenta como pobre pois os irmana desde crianças a editorial brasileiro, dentre as
e atrasada, cujos personagens lucta sontra a calamidade das Sêc- quais podemos destacar um
têm como preocupação maior cas, os operarios nordestinos po- “lugar de fala” num dos mo-
conseguir trabalho na constru- deriam ser facilmente syndicaliza- mentos mais significativos da
ção do açude, mesmo que sem dos. Como podemos, porém, exigir produção romanesca no Brasil,
receber, pontualmente, o par- idéas de homens que nunca demo- titulado pelo nome de “Regio-
co salário, revelando-se, ainda raram um livro entre as mãos? nalismo de 30” ou “Romance
assim, como a melhor (senão No Nordéste, a região mais de 30”, ou, ainda, “Romance
única) oportunidade de sobre- brasileira do Brasil, nós não care- Regionalista”, “Segunda Gera-
vivência dessa gente. cemos somente dagua. Precisamos ção do Modernismo Brasilei-
Além desses, outros ele- igualmente de livros. (p, 236).
ro” etc.
mentos romanescos que põem Em que pese o projeto es-
Atenta-se, também, para a
a obra e sua autora em desta- tético e ideológico do movi-
ortografia mantida no roman-
ques estão na investida que a mento literário em questão, o
ce, tendo em vista que o que
narração faz do tema da mo- Romance de 30 é reconhecido,
dernização, seja pelos com- parece, às vezes, desvio lin- inclusive, por ter influenciado,
portamentos dos personagens, guístico, pode não passar de numa contramão interessante,
apresentados em sua grande convenção da escrita própria algumas produções portugue-
parte por meio dos diálogos, de uma época. Não esquecen- sas. Por isso, também, destaca-
seja pela representação dos do, também, de observar a -se como um dos movimentos
ambientes narrativos, seja pelo presença de estrangeirismos, literários mais importantes de
próprio enredo, mas, também, como “flanar” e “toalete”, o nosso país. Mas é no seio des-
pela voz narrativa, já que a que pode decorrer de alguns se tão importante movimento
configuração desses elemen- fatores interessantes, dentre que encontramos alguns equí-
tos narrativos está subjugada eles, o acesso da escritora aos vocos.
à ótica do narrador em terceira escritores franceses. Um deles, por exemplo,
pessoa. refere-se a outro paraibano
Pode-se observar essa re- Condicionamentos sociais da mesma época. Lembre-
invindicação de uma moder- Bom, essas ideias ora expos- mos que José Lins do Rego foi
nização, por exemplo, pelos tas decorrem de inquietações considerado “escritor menor”,
seguintes elementos: 1. Pela causadas pela leitura de A por escrever numa linguagem
relação de gêneros, na confi- Barragem, de Ignez Mariz, não “rude”, apontada como um
guração de Remédios, uma apenas pelo que se imprime defeito e, só posteriormente,
personagem feminina que en- nas páginas desse livro, mas, reconhecida como a força mo-
cara o tema do patriarcalismo também, pelos condiciona- triz da produção literária do
quando se coloca contrária ao mentos sociais que conferem escritor, conforme estudo de
comportamento submisso de ao romance o seu caráter de Manuel Cavalcanti Proença.
outras mulheres, incluindo realidade factual, bem como Outros equívocos existem.
sua mãe Mariquinha; 2. Pela pelas condições sob as quais Relacionados a Jorge Amado,
empatia do narrador para com essa escrita surge e que in- a Graciliano Ramos, por exem-
os “cassacos” no que se refere cluem ser mulher, sertaneja, plo. Mas não cabe, na brevida-
a alguns direitos trabalhistas, nordestina, desquitada, pro- de desse texto, ampliar o terri-
incluindo o direito à educação, fessora de jovens e numa época tório. Fiquemos na Paraíba e na
portanto ao livro, por meio de de predominância masculina possibilidade de, a partir des-
uma voz narrativa empolgada no setor livreiro no Brasil. sas reflexões, talvez podermos
quanto à criação do “Syndicato Várias questões foram, por- construir um entendimento
dos Agricultores e Trabalha- tanto, suscitadas e/ou provo- sobre a escritora Ignez Mariz
dores á União”. Vejamos um cadas por essa leitura e não se que, ainda pior do que seu
trecho do narrador sobre sin- pretende esgotar aqui a dis- conterrâneo e contemporâneo
dicalismo, seguido do questio- cussão. Pelo contrário. A ideia Zé Lins, foi completamente es-
namento de um personagem é, de alguma forma, provocar quecida pelo setor livreiro na-
sobre a necessidade de posto o debate sobre questões que cional e, por isso, quase desco-
médico na região: estão em torno do mercado nhecida do público leitor. I
“Pôstos médico? Pra que? Os
meninos está bom de saúde...
Bem de saúde, sendo a vermi-
nose e a carie dentaria os seus ma- Analice Pereira é professora de Língua Portuguesa e Literatura
Brasileira do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da
les menores...
Paraíba (IFPB). Escreve sobre literatura e, vez ou outra, aventura-se pela
Cooperativistas de nascença, ficção. Mora em João Pessoa (PB).
Beatles
público, tem recepção de produto
artístico.
2 - A revolução, enquanto
acontece, para o idealismo, é o
1-
mutatis mutandi, da revolução
passiva teorizada por Grams-
Antecedentes da Era Beatles (1960 -1970). A banda fru- ci, e na contramão da revolução
to agridoce da revolução jazz-rock. A ótima versão da radical-jacobina liderada pela
invenção estético-musical da cultura artística afro-ame- juventude cubana. Maio de 1968
ricana estadunidense de inigualável repercussão mundial. aspira à condição revolucionária
(Anos 1940-1950, criação do rock’n roll, Paul Bascomb, Wild radical.
Bill Moore, William John Clifton - pseudônimo de Bill Haley A bibliografia de qualquer área
-, Buddy Holland, Elvis Presley, Chuck Berry, Little Richard, e a arte dos anos 1960 exorbitam
Jerry Lee Lewis...) o uso da palavra revolução. Trata-
Antecedentes Beatles poeticamente considerados. Para -se, no entanto, de um símbolo
além das relações causais e musicais. Como ciclos genealó- vivo inscrito com fogo na pele
gicos de padrões de sensibilidade em regeneração evolutiva. do tempo. Em 1970, George, Paul,
Antecedente igual a insinuação intuitiva do conceito de Ringo e John decidem dissolver
eterno retorno do mesmo. O mesmo anseio cíclico, intergera- a banda revolucionária. No mes-
cional, - geração perdida (Hemingway, Fitzgerald, Paris, anos mo ano, Andreas, Gudrun, Ulrik
1920) e a era do jazz (anos 1920-1930-1940), rebeldes sem causa e Horst anunciam a criação do
(anos 1950, Marlon Brando, James Dean) - por mais ar carac- grupo terrorista revolucionário
terístico das grandes rupturas. As rupturas revolucionárias. Baader-Meinhof na Alemanha.
Revolução Beatles: incorporação de instrumentos inco- Justamente na Alemanha onde
muns no pop-rock, novas tecnologias (mellotron, precursor os Beatles, mais precisamente em
do sintetizador, neto do sampler, estreia em “Strawberry fields Hamburgo (shows em 1960-1962),
forever”), pesquisa de sonoridades, riffs magnéticos panfletá- fizeram o laboratório para desen-
rios, colagens, ruídos. Fenômeno social urbano híbrido: nova volver a técnica de apresentações
acuidade acústica dos artistas promove expansão - via rádio, com a qual o grupo conquistou o
TV, cinema, discos em modulação mercadológica monumen- mundo. O sonho acabou, escreve c
O louco do
arquivo
em PDF
M
uito já se escreveu sobre o louco
de palestra, aquele sujeito que
comparece a qualquer evento
– do congresso científico à reu-
nião de condomínio – e nunca
perde a oportunidade de pedir a
palavra para fazer “uma rápida
colocação”. Se você nunca viu
um louco de palestra, é muito
provável que você mesmo seja
um, embora muita gente defen-
da que se trata de um fenômeno
sobrenatural, de uma entidade
maligna que vaga livremente
pelos centros culturais apenas
esperando a oportunidade de se
manifestar. O espírito do louco
de palestra é invocado sempre
que alguém segura o microfone
(verdadeiro para-raio pra esse
tipo de maluco) e dá aquelas
três batidinhas com a ponta dos
dedos, geralmente provocando
um estampido ou um som cor-
tante, que fere os ouvidos. Não
é uma microfonia, mas o baru-
lho do demônio sendo liberado
e tentando tomar o corpo de al-
guém. A partir daí, meu amigo,
melhor ir embora: ele pode en-
carnar em qualquer um.
Eu não queria dar uma de
louco de palestra aqui, fazendo
uma intervenção longa e óbvia
ilustr ações: reprodução sobre um assunto que nem é o c
Daniel Sampaio
Estudos nº 01
ilustr ações: tonio
Soneto a um Anjo
Tocam teus dedos comovente acorde,
que emula ao ressoar tuas manhãs
vermelhas. Tuas asas – o recorte
de nuvens enfronhadas em danças –
paio de Azevedo
Estudos nº 02
Van Gogh
Amarelo, o feno
parece flutuar
sob um azul azul.
Azul
Amarelo, o trigo
esmilhara-se ao vento
como um tiro surdo.
Surdo
Abutre
Vulto sobre os Aqueus – o
o perigo é
Plenipotenciário. Sabem-
no,
As aves rapaces.
Alguns fatos
entregando pacotes generosos
em peso e medida, os livros do
círculo do livro. Antes, numa
revista, tínhamos uma ideia do
que pedir. Eu pedia mais Agatha
D
izem que a memória é branca, só
algumas vezes ganha uns tons. A
ilustr ação: Comfreak/Pix abay
Isolamento
social,
ventilação e apneia
Q
uando o poeta Alberto Bresciani es-
creveu e publicou Fundamentos de
Ventilação e Apneia (S. Paulo, editora
foto: divulgação Patuá, 2019), ainda não se falava em
coronavírus. Porém, não deixa de ser
indicial que a literatura, mais uma
vez, antecipe a realidade. Senão, con-
sideremos o que uma das estrofes do
poema “Metabolismo” pontua:
'Fundamento de
Ventilação e Apneia'
vale-se da mais fina
linguagem coloquial e
poética sem nenhum
cacoete literário.
Lê-se o livro como se
estivéssemos numa
sessão de cinema
Modos de orações
V
ocê escava argumentos luzidios, faz-se de espavorido e
suores lhe escapam do rosto, relampejam à réstia da luz
que pende do poste na rua. Você é irregular – irriga e enxu-
ga. Intenta me levar aos gramados da praia para a tal cami-
nhada fria, vil no jeito de observar as pernas mais fornidas.
Durante tempos me submeti, compus modos de orações para te reter, imo-
bilizar teus passos com sapatos bem polidos. Averiguei teus bolsos, achei
areias em teus ouvidos. Procurei pistas em teus cotovelos, que um dia che-
garam da rua azuis. Teus botões da camisa nova eu comi às pressas, triturei,
temendo tuas palavras postergadas para depois do sopapo. Sempre ocultei
as assinaturas impressas no meu corpo – as tuas sinistras assinaturas. E de
tudo restou esse agora, esse tapete onde observo formigas se acenderem e
que, de repente, são apagadas pelos tênis do meu filho que entra da escola
e que, sempre obtuso, fechado, sequer me dilata um bom dia. I
Rinaldo de Fernandes
é escritor, crítico de literatura e professor da Universidade
Federal da Paraíba. Mora em João Pessoa (PB).