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06/06/2020 Direita e esquerda, origem e fim – SAPIENTIAM AUTEM NON VINCIT MALITIA

Mas é um conservador no século XXI porque fala em nome da experiência adquirida de dois séculos de
capitalismo moderno e já não pretende chegar a um paraíso libertário e sim apenas conservar, prudentemente
intactos, os meios de ação comprovadamente capazes de fomentar a prosperidade geral. Pode, no entanto,
tornar-se um revolucionário no instante seguinte, quando aposta que a expansão geral da economia de mercado
produzirá a utopia global de um mundo sem violência. Em cada etapa dessas transformações, o coeficiente de
esquerdismo e direitismo de sua posição pode ser medido com precisão razoável.

É inevitável, também, que, pelo menos em certos momentos do processo, esquerdistas e direitistas se
equivoquem profundamente no julgamento de si próprios ou de seus adversários. Da parte dos direitistas, tanto
hoje como ao longo de todo o século XX, a grande ilusão é a da equivalência. Como estão acostumados à idéia
de que direita e esquerda existem como dados mais ou menos estáveis da ordem democrática, acreditam que
essa ordem pode ser preservada intacta e que para isso é possível “educar” os esquerdistas para que se afeiçoem
às regras do jogo e não tentem mais destruir a ordem vigente. Pelo lado esquerdista, porém, essa acomodação é
impossível. No mundo dos direitistas pode haver direitistas e esquerdistas, mas, no mundo dos esquerdistas, só
esquerdistas têm o direito de existir: o advento do reino esquerdista consiste, essencialmente, na eliminação de
todos os direitistas, na erradicação completa da autoridade do antigo. Foi por essas razões que os EUA
retiraram pacificamente suas tropas dos países europeus ocupados depois da II Guerra Mundial, acreditando
que os russos iam fazer o mesmo, quando os russos, ao contrário, tinham de ficar lá de qualquer modo, porque,
na perspectiva da revolução, o fim de uma guerra era apenas o começo de outra e de outra e de outra, até à
extinção final do capitalismo. A sucessão quase inacreditável de fracassos estratégicos da direita no mundo
deve-se, no fundo, a uma limitação estrutural do direitismo: eliminar a esquerda completamente seria uma
utopia, mas a direita não pode tornar-se utópica sem deixar de ser o que é e transformar-se ela própria em
revolucionária, absorvendo valores e símbolos da esquerda ao ponto de destruir a própria ordem estabelecida
que desejava preservar. O fascismo, como demonstrou Erik von Kuenhelt-Leddin no clássico “Leftism: From
De Sade and Marx to Hitler and Marcuse” (1974), nasce da esquerda e arrebata a direita na ilusão suicida da
revolução contra-revolucionária. Ser direitista é oscilar perpetuamente entre uma tolerância debilitante e acessos
periódicos de ódio vingativo descontrolado e quase sempre vão. Mas a direita no Brasil está em decomposição
há décadas e não tem graça nenhuma falar dela.

A esquerda, por sua vez, como se apóia integralmente na imagem móvel de um futuro hipotético, não pode
julgar-se a si própria pelos padrões atualmente existentes, condenados “a priori” como resíduos de um passado
abominável. Seu único compromisso é com o futuro, mas quem inventa esse futuro e o modifica conforme as
necessidades estratégicas e táticas do presente é ela própria. Por fatalidade constitutiva do seu símbolo
fundador, ela é sempre o legislador que, não tendo autoridade acima de si, legisla em causa própria, faz o que
bem entende e, a seus olhos, tem razão em todas as circunstâncias, embriagando-se na contemplação vaidosa de
uma imagem de pureza e santidade infinitas, mesmo quando chafurda num lamaçal de crimes e iniqüidades
incomparavelmente superiores a todos os males passados que prometia eliminar. Ser esquerdista é viver num
estado de desorientação moral profunda, estrutural e incurável. É mergulhar as mãos em sangue e fezes jurando
que as banha nas águas lustrais de uma redenção divina.

Por isso não se deve estranhar que o partido mais ladrão, mais criminoso, mais perverso de toda a nossa
História, o partido amigo de narcoguerrilheiros e ditadores genocidas, o partido que aplaudia a liquidação de
dezenas de milhares de cubanos desarmados enquanto condenava com paroxismos de indignação a de trezentos
terroristas brasileiros, o partido que condena os atentados a bomba quando acontecem na Espanha e aplaude os
realizados no Brasil, o partido que instituiu o suborno e a propina como sistema de governo, seja também o
partido que mais bate no peito alegando méritos e glórias excelsos.

Ser esquerdista é ser precisamente isso.

***

Direita e esquerda são politizações de símbolos mitológicos cujo conteúdo originário se tornou inalcançável na
experiência comum. Elas existirão enquanto permanecermos no ciclo moderno, cujo destino essencial, como
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06/06/2020 Direita e esquerda, origem e fim – SAPIENTIAM AUTEM NON VINCIT MALITIA

bem viu Napoleão Bonaparte, é politizar tudo e ignorar o que esteja acima da política. Não existirão para
sempre. Mas, quando cessarem de existir, a política terá perdido pelo menos boa parte do espaço que usurpou
de outras dimensões da existência.

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