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 D  A N  Ç  A  E N T O
 R  I R  A
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 X A U  L Í T I C A
 
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 P E R  F O R  M A N C E
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 P O
 

 COLEÇÃO ARTES PERFORMATIVAS E FILOSOFIA 

Direção: Cassiano Sydow Quilici e Luiz Fernando Ramos

Conselho Editorial: Christine Greiner, Eleonora Fabião, Fernando Mattos,

Gilberto Icle, Jos
Icle,  Joséé da
d a Cost
C osta,
a, Síl
Sílvia
via Fe
Ferna
rnande
ndess

 A cena contemporânea tem desafiado a teoria e a crítica, exigindo um pensamen-


to mais sintonizado com as práticas criativas e com a inventividade conceitual que
estas convocam. A hibridização e/ou o choque entre linguagens (teatro, perfor-
mance, dança, artes visuais etc), as diferentes proposições de articulação entre
arte e vida, envolvendo dimensões políticas, existenciais e culturais mais amplas,
ocorrem paralelamente à multiplicação de abordagens do fenômeno cênico, cons-
tituindo-se assim um campo emergente de reflexão. O crescimento da área da pós-
-graduação e da pesquisa em artes cênicas no Brasil demanda novos projetos edito-
riais. Esta coleção pretende trazer ao leitor uma produção brasileira significativa e
ousada nesse setor, mesclando pesquisadores e pensadores mais experientes com
trabalhos promissores de autores mais jovens. O projeto inclui também a tradução
de obras internacionais de autores importantes e pouco traduzidos entre nós.
 

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  D A N  Ç  A  E N T O
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 X A U  L Í T I C A
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 L e 
 p e 
c k i 

radução
Pablo Assumpção Barros Costa 
 

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Bibliotecária Juliana Farias Motta CRB7/5880

E󰁸󰁡󰁵󰁲󰁩󰁲 󰁡 D󰁡󰁮󰃧󰁡 
P󰁥󰁲󰁦󰁯󰁲󰁭󰁡󰁮󰁣󰁥 󰁥 󰁡 󰁰󰁯󰁬󰃭󰁴󰁩󰁣󰁡 󰁤󰁯 󰁭󰁯󰁶󰁩󰁭󰁥󰁮󰁴󰁯
Projeto, Produção e Capa 
Coletivo Gráfico Annablume
 Annablume Editora 
Conselho Editorial
Eugênio rivinho
Gabriele Cornelli
Gustavo Bernardo Krause
Iram Jácome Rodrigues
Pedro Paulo Funari
Pedro Roberto Jacobi

1ª edição: julho de 2017


© André Lepecki
 ANNABLUME editora . comunicação
Rua Dr. Virgílio
Virgílio de Carvalho Pinto, 554 . Pinheiros
05415-020 . São Paulo . SP . Brasil
elevendas (11) 3539-0225 – el.
el. e Fax. (11) 3539-0226
www.annablume.com.br
 

 A
 AGGRADECIMENTOS

Minha profunda gratidão a todos que contribuíram com


suas ideias, comentários, trabalho, amizade, orientação, inspira-
ção, inteligência
de começar com eum
artesincero
ao longo da escrita deste
agradecimento livro. Gostaria
aos artistas a cujos
trabalhos este livro se dirige: Jérôme Bel, risha Brown, Juan
Dominguez, Vera Mantero, Bruce Nauman, William Pope.L,
La Ribot e Xavier Le Roy. Agradeço também às companhias e
produtores destes artistas, por disponibilizarem materiais de ar-
quivo, fotografias e vídeos, bem como por suas pacientes e aten-
ciosas respostas às minhas perguntas sempre urgentes e quase
constantes. Portanto, obrigado Sandro Grando, Maria Carme-
la, Lydia Grey e Rebecca Davis. Gostaria de agradecer a Katrin
Schoof e Luciana Fina por gentilmente permitirem a publicação
de suas belas fotos. Alice Reagan revisou uma versão inicial do
manuscrito e eu a agradeço pela ajuda em um momento delica-
do do projeto. O Capítulo 6 foi publicado anteriormente com
um título levemente diferente em Blackening Europe (Routled-
ge, 2004), editado por Heike Raphael-Hernandez, e é publicado
aqui com permissão da editora. As ideias por trás do Capítulo
5 foram primeiramente ensaiadas em um breve ensaio publi-
cado em Women and Performance (n. 27, 2004). A versão final
do manuscrito foi revisado por Jenn Joy. Este livro deve muito
 

à dedicada atenção de Jenn aos detalhes, ao seu insight  crítico


  crítico
e à sua pesquisa de algumas pistas complicadas. Sou grato aos
leitores anônimos que primeiramente avaliaram o projeto do
livro junto
valiosos noàdesenvolvimento
editora Routledge.daSeus comentários
escrita. foram muito
Meu profundo agra-
decimento também aos dois leitores do primeiro manuscrito
completo, Ramsey Burt e Mark Franko. Os trabalhos de ambos
sempre foram uma fonte de inspiração e ter tido o privilégio de
receber seus comentários, sugestões e críticas fez deste um livro
muito melhor. O apoio que recebi das minhas duas editoras na
Routledge, alia
alia Rodgers
Rodg ers (Editora
(Ed itora para
p ara eatro
eatro e Estudos da Per-
formance) e Minh Ha Duong (Editora Assistente), ao longo de
todo o processo, foi simplesmente extraordinário. Meus agrade-
cimentos a Richard Schechner e Diana ayloraylor pela orientação e
ajuda na preparação do projeto inicial do livro. Obrigado tam-
bém a José
versões Muñoz
iniciais e avia
de alguns dosNyongo
capítulospelo precioso  feed
a seguir. back nas
 feedback
Um caloroso obrigado a três grupos de pessoas cujo traba-
lho e pensamento crítico informam muito da minha escrita: os
artistas com os quais tenho tido o privilégio de colaborar pelo
menos nas últimas duas décadas seja como dramaturgista ou
como co-criador, meus brilhantes estudantes e meus colegas
extraordinários no Departamento de Estudos da Performance
da Universidade de Nova York. Assim, meu sincero obrigado
a Francisco Camacho, Vera Mantero, João Fiadeiro, Sérgio
Pelágio, Meg Stuart, Rachael Swain, Eleonora Fabião Fabião e Bruce
Mau; a todos os meus estudantes, em especial Victoria Ander-
son, Gillian
 Jenn Lipton,
Joy,, Sean
Joy P. J.Nikki
Simon, Novelli, Shani Shakur, Rodrigo
Cesare-Bartnicki, isi,,
Kim Jordan
Jordan,
Dorita Hanna, Fernando Calzadilla, Michele Minnick e Sarah
Cervenack; e aos colegas Barbara Browning, Anna Deveare-
-Smith, Deborah Kapchan, Barbara Kirshenblatt-Gimblett,
 José Muñoz, avia
avia Nyon
Nyongo,go, Ann Pellegrini, Richard Schech-
ner, Karen Shimakawa, Diana aylor e Allen Weiss pelo apoio
e ensinamento constante.
 

Obrigado à minha mãe, Maria Lúcia, e obrigado ao meu


pai, Witold, pelo amparo e amor. Obrigado, Manuel. Obriga-
do, César. Obrigado, Kika e Fernando, Leo e Rê. Obrigado,
Elsa
gado,e meus
obias, pelosPedro
amigos seus lindos e inteligentes
e eresa, Luis Pedro, devires.
Sérgio eObri-
Sissi,
Vera, Scott, Myriam, Karmen e Matthew. Obrigado, Eleono-
ra. Este livro é para você.
 

SUMÁRIO

 A󰁰󰁲󰁥󰁳󰁥󰁮󰁴󰁡󰃧󰃣󰁯
 A󰁰󰁲󰁥󰁳󰁥󰁮󰁴󰁡󰃧󰃣󰁯
󰁵󰁭 󰁭󰁡󰁲󰁣󰁯 󰁮󰁡 󰁤󰁩󰁳󰁣󰁵󰁳󰁳󰃣󰁯 󰁤󰁡 󰁨󰁩󰁳󰁴󰁯󰁲󰁩󰁯󰁧󰁲󰁡󰁦󰁩󰁡
󰁤󰁯󰁳 󰁣󰁯󰁲󰁰󰁯󰁳 󰁱󰁵󰁥 󰁤󰁡󰁮󰃧󰁡󰁭 11

N󰁯󰁴󰁡󰁡 󰃠 󰁥󰁤󰁩󰃧󰃣󰁯 󰁢󰁲󰁡󰁳󰁩󰁬󰁥󰁩󰁲󰁡


N󰁯󰁴 15

I󰁮󰁴󰁲󰁯󰁤󰁵󰃧󰃣󰁯
 󰁡 󰁯󰁮󰁴󰁯󰁬󰁯󰁧󰁩󰁡 󰁰󰁯󰁬󰃭󰁴󰁩󰁣󰁡 󰁤󰁯 󰁭󰁯󰁶󰁩󰁭󰁥󰁮󰁴󰁯
󰁭󰁯󰁶󰁩󰁭󰁥󰁮󰁴󰁯 19

I – M ASCULINIDADE, SOLIPSISMO, COREOGRAFIA :


BRUCE N AUMAN, JUAN DOMINGUEZ , X  A VIER  L 
 L E R OY  
 AVIER  51

II – UMA  “ “ONTOLOGIA  MAIS LENTA ” DA  COREOGRAFIA :
 A  CRÍTICA  DA  REPRESENTAÇÃO EM JÉRÔME BEL   91

III – DESABAR   A 
 A  DANÇA :  A  CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO 
EM TRISHA  B
 BROWN E L  A  R 
 R IBOT
IBOT  125
 

IV – TROPEÇAR   A 
 A  DANÇA :  AS RASTEJADAS 
DE W ILLIAM
ILLIAM POPE.L   159

 VE–RA 
A M
 V ERA 
 MMELANCÓLICA  DANÇA  DO ESPECTRAL  PÓS-COLONIAL :
 ANTERO CONVOCA  J
 JOSEPHINE B AKER   191
C󰁯󰁮󰁣󰁬󰁵󰁳󰃣󰁯
󰁥󰁸󰁡󰁵󰁲󰁩󰁲 󰁡 󰁤󰁡󰁮󰃧󰁡 – 󰁰󰁡󰁲󰁡 󰁡󰁣󰁡󰁢󰁡󰁲 󰁣󰁯󰁭
󰁯 󰁰󰁯󰁮󰁴󰁯 󰁤󰁥 󰁦󰁵󰁧󰁡 221

B󰁩󰁢󰁬󰁩󰁯󰁧󰁲󰁡󰁦󰁩󰁡 237
 

UM MARCO NA DIS CUSSÃO DA


HISTORIOGRAFIA DOS CORPOS
QUE DANÇAM

 Já completa pouco mais de uma década desde a primeira


publicação de Exaurir a Dança, performance e a política do mo-
vimento, do professor, dramaturgista e curador André Lepecki.
Este livro se tornou uma referência fundamental para pensar
politicamente a dança e, não sem motivos, foi traduzido em
onze línguas. Mas apesar deste atraso, a excelente tradução
para o português, realizada pelo professor da Universidade Fe-
deral do Ceará Pablo Assumpção, chega em boa hora. E tendo
em vista a situação da dança e das artes em nosso país neste fa-
tídico ano de 2017 – marcado por forte instabilidade política
e econômica – a sua leitura será certamente bastante distinta
daquela que teria acontecido no momento de sua primeira
edição, em 2006.
partida
O contexto
algumasnoquestões
qual o livro
importantes,
emerge tem
mas como
a principal,
ponto ou
de
pelo menos aquela que impactou alguns leitores – entre os
quais me incluo – foi a construção conceitual e sensível de
uma demonstração muito bem fundamentada das transforma-
ções que aconteciam naquele momento com a dança. Através
de bibliografias e da análise de processos artísticos, Lepecki
detectou como, nos primeiros anos do novo milênio, alguns
 

artistas desestabilizaram os principais parâmetros que a torna-


vam reconhecida como dança até então.
 Assim como
como estava ocorrendo com outras linguagens,
linguagens, havia
havia
uma certae exaustão
suportes de paradigmas
procedimentos. e metodologias
A crítica para Krauss
de arte Rosalind pensar
havia observado, por exemplo, o surgimento de uma condição
pós-midiática, marcada pelo atravessamento de experiências e
zonas de indistinção entre linguagens e, consequentemente, o
surgimento de artistas que se negavam à compartimentação de
gêneros artísticos. Lepecki analisa como este processo se deu
em relação à dança e à performance e menciona, entre outros
aspectos, a exaustão da presença de movimentos com grandes
deslocamentos, realizados sempre em um ritmo veloz; e do
uso de técnicas, vocabulários e modelos dados a priori , que
marcavam quase todas as experiências de dança moderna.
estaComo
ediçãoobrasileira
próprio autor sintetiza
e em sua na sua
obra mais apresentação
recente para
Singularities,
dance in the age of performance  (2016),
 (2016), a questão das singula-
ridades da dança foi se tornando cada vez mais importante,
pedindo por um exercício diferente de análise. A meu ver, este
exercício poderia ser considerado uma espécie de empirismo
radical para analisar cada experiência a partir de seu próprio
contexto, sem generalizações ou práticas discursivas autoritá-
rias constituídas fora da experiência. As pontes com a perfor-
mance tornaram-se, pouco a pouco, inevitáveis, assim como
uma certa concepção de coreografia como um modo de pensar
o sujeito como corpo, e não mais como uma escrita da dança
emNestes
tempo ambientes
e espaço. singulares de criação, as questões que
acionavam e, ao mesmo tempo, emergiam dos processos, tor-
naram-se cada vez mais importantes e explícitas, como resulta-
do da aliança indissociável entre teoria e prática e suas tramas
indisciplinares que criaram pontes com a filosofia, a ciência e
outros saberes. Se a coreografia passou a ser entendida por vá-
rios artistas como um modo de pensar o sujeito como corpo,

12
 

ela também se tornou a explicitação de modos de agir (politi-


camente) no mundo. Os temas se transformaram em ações e
as obras em processos.
EstePelo
guiu. pensar/agir/dançar não cessou
contrário. Radicalizou-se. O na
quedécada
mudouque se se-
foram as
condições de constituição dos sujeitos/corpos, agora impreg-
nados de uma racionalidade neoliberal, como discutirá o pró-
prio Lepecki na etapa seguinte de sua pesquisa. Ao aprofun-
dar os diálogos com as inquietações de Wendy Brown, Erin
Manning, Brian Massumi, Giorgio Agamben, Judith Butler,
entre outros autores, Lepecki sugere que além das discussões
referentes às linguagens, deparamo-nos com dispositivos de
poder que fizeram da economia a grande força performativa,
impactando a todos, inclusive os artistas.
  Nada poderia fazer mais sentido
sentido para nós brasileiros. No
No
momento em que artesabsoluta,
estado de precariedade e educação
taistêm sido relegadas
discussões a uma
nos ajudam
enxergar como todas as ações cuja aptidão é a de ativar sub-
 jetividades, perderam a sua importância. A mobilização sem
fim que presenciamos agora não se refere à velocidade dos mo-
vimentos realizados pelo corpo que dança, mas sim, a uma
corrida caótica para sobreviver custe o que custar.
custar.
Como mencionei anteriormente, um dos pressupostos da
pesquisa de Lepecki sempre foi não apartar teoria de prática.
Neste sentido, a sua leitura pode ser vista como um agencia-
mento para, quem sabe, criar zonas de turbulência no niilismo
que nos assola, fortalecendo caminhos possíveis para criar e
pensar a dança, em tempos de neoliberalismo radical.

C󰁨󰁲󰁩󰁳󰁴󰁩󰁮󰁥 G󰁲󰁥󰁩󰁮󰁥󰁲 

13
 

NOTA À EDIÇÃO BRASILEIRA

Como começar de outro modo que não este: É com enor-


me e verdadeira alegria que escrevo esta nota à tradução de
Exhausting Dance 
Gostaria, antes de no
 no Brasil.
mais, de Eexpressar
como continuar
a minha amais
não ser assim:
profunda
gratidão a todos os que tornaram esta edição possível: Luiz
Fernando Ramos e José Roberto Barreto Lins pelo convite e
confiança no projeto; Pablo Costa pelo árduo, meticuloso,
atencioso e arguto trabalho de tradução; Sonia Sobral, pelo
seu apoio ao meu trabalho desde a época em que dirigia o
departamento de artes cênicas do Itaú Cultural – sua perseve-
rança em querer ver este livro traduzido e publicado no Brasil
foi fundamental. Agradeço ao Itaú Cultural o apoio institu-
cional sem o qual esta edição não seria possível. E, finalmente,
obrigado a Christine Greiner por ter aceitado escrever a intro-
dução a esta edição.
É sempre difícil antever quais caminhos ações ou palavras
tomarão a partir do momento em que deixam a esfera de in-
fluência delineada pelas sempre misteriosas “intenções” do seu
autor. No caso de uma tradução – onde tive por decisão e
vontade própria pouca “influência”,
“influência”, apesar de ter tentado res-
ponder o mais claramente possível a todas as questões e suges-
tões que Pablo Costa, com argúcia, inteligência e consciência
 

crítica foi me endereçando ao longo do processo –, esses des-


caminhos se ampliam ainda mais numa disseminação deveras
produtiva e inesperada. Uma disseminação de fato surpreen-
dente que advém
semânticas, desse transportar
mas também afetivas, de significados
uma língua epara
suasoutra.
zonas
Porém, por entre os descaminhos que as palavras em movi-
mento sempre abrem, fica uma esperança originária: espero
que o leitor de língua portuguesa possa encontrar neste livro
não apenas um retrato de algumas performances e obras core-
ográficas que, na sua singularidade afirmativa, complicaram (e
ainda complicam, nas suas sobrevidas) certas noções pré-esta-
belecidas, certos mandamentos estéticos do que a dança deve
ser, do que a dança deve parecer, de como dançarinos devem
se mover,
mover, e de como o movimento deve se manifestar; mas que
o leitor encontre também, e ao mesmo tempo, um impulso
crítico-teórico que possae contribuir
informam as diferentes para oscenas
muito pujantes atuais
dadebates
dança eque
da
performance brasileira hoje.
Onze anos após sua publicação em inglês (o livro foi escrito
entre setembro de 2004 e maio de 2005, e posto em circulação
em janeiro de 2006), e na sua décima primeira tradução, pos-
so dizer o que moveu a escrita deste livro então, e que talvez
ainda possa ajudar o movimento de uma dança experimental
hoje. Primeiro, esclarecer que “exaurir a dança” nunca signi-
ficou para mim acabar com a dança, acabar com o dançar,
mas sim identificar de que modo vários coreógrafos e dança-
rinos, por via da dança, acharam fundamental detonar uma
certa
quantoideia
arteoupois
imagem de dança
a obrigava, aliásque bloqueavaaoum
a condenava, seuagito
devirsem
en-
fim. Esse agito impedia a efetivação das promessas políticas,
estéticas, teóricas e afetivas de uma dança que se interessava
também por se tornar agente de intensificação do seu campo
interventivo. Assim, “exhausting dance ”, ”, na sua ambivalência
em inglês significa: uma dança que nos cansa, que nos suga a
energia, que nos deixa no mesmo lugar por via de uma agita-

16
 

ção sem pensamento e, ao mesmo tempo, indica também um


desejo expresso por coreógrafos de repensar o que seria uma
política intensiva de movimento, de esgotar essa ideia, ou ima-
gem, ou imperativo
um comando estético dominante,
transcendente que ininterrupto
de movimento alinha a dançae a
todo custo. Segundo, de que modo, “teoria”
“teoria” não é algo que se
aplica à dança ou à performance como um curativo, remédio
ou aditivo explicativo, mas é algo que emana de cada obra, que
pode ser entendida como uma proposição, uma problemática,
uma zona de intervenção no real cujas consequências se reba-
tem sobre as próprias premissas e clichés do que seja pensar.
erceiro, a vontade de demonstrar a relevância (na altura, há
onze anos atrás, não tão óbvia quanto já é hoje em dia) de que
a teoria da dança e da performance, e a prática de dançar e de
compor performances e coreografias, têm tudo a ganhar com
uma
raça einterlocução
com a teoria vital com a filosofia,
pós-colonial. Quarto,osrelembrar
estudos críticos de
que o pro-
 jeto cinético que impulsiona toda a modernidade modela e é
também modelado, pelo impulso colonizador que implemen-
ta em todo o planeta, a lógica dominante de uma “mobilização
infinita”” ou sem
infinita se m fim (expressão que tomei de Peter Sloterdijk),
cujo resultado final é a produção de uma profunda relação en-
tre capitalismo, colonialismo, racismo e movimento. Se Karl
Marx propôs uma vez que os bens de consumo (commodities )
guardam em si o segredo do capitalismo, e que bastaria ouvir
esses objetos para entendermos a lógica profunda do capital,
a ideia aqui é que uma parte dessa lógica é o controle de sua
circulação, a co-invenção
der e da coreografia comodaartemodernidade como lógica
de implementação de po-
dessa lógica.
Finalmente, minha escrita sobre dança sempre foi informada
pelo modo como comecei a trabalhar com a dança, como dra-
maturgista. Sempre me impressionou o modo como muito
do trabalho que me entusiasmava, e que entusiasmava toda
uma geração de coreógrafos, alguns dos quais presentes neste
livro, era descrito como chato, repetitivo, demasiado lento,

17
 

demasiado trêmulo, com demasiado pensamento (!). Como


muitos desses trabalhos eram literalmente citados como uma
ameaça ao futuro da dança  e
  e uma ameaça à essência da dan-
ça. Este não
preferir livroparticipar
tenta entender
de umaporque ficarimagem
ideia ou parado,hegemônica
ou porque
de agito, são ameaças tão profundas. Nesse sentido, o livro
coloca em diálogo figuras conceituais que contribuem, espero,
para a rearticulação das relações entre “política” e “movimen-
to”: Franz Fanon conversa com Martin Heidegger por via de
 William Pope.L;
Pope.L; um mestre de dança do século dezesseis, que
cunha a primeira versão da palavra coreografia, conversa com
 Jérôme Bel, Bruce Nauman e Juan Dominguez; o fantasma
de Josephine Baker dialoga com VeraVera Mantero; Paul Virilio se
dirige a La Ribot e a risha
risha Brown; e Gilles Deleuze (autor que
na época lia pouco e por isso seu famoso texto sobre Beckett,
“O Esgotado”,
altura) nãoafazia
tem muito dizerparte sequerLedaRoy.
a Xavier minha
Masbiblioteca
foi quandona
me vi invocando Henri Bergson para repensar a noção de efe-
meridade da performance de Peggy Phelan que entendi o que
a dança faz de melhor: ela curto-circuita o tempo de modo a
reconsiderar toda a relação entre (os) movimentos (dos) vi-
vos e (os) movimentos (dos) mortos. Este curto-circuito pode
ainda não ser exatamente uma política do movimento: mas é
certamente o ato que dança.
 André Lepecki, Junho
Junho 2017

18
 

INTRODUÇÃO
 A O N T O L O G I A P O L Í T I C A
DO MOVIMENTO

No diagnóstico do presente se tem de introduzir


uma dimensão cinética e cinestésica, porque, sem
esta,
passatudo quanto
ao lado se disser
do que há de sobre a Modernidade
mais real (Sloterdijk,
2002: 27).

Na edição de 31 de dezembro de 2000, o New York imes  


publicou um artigo de Anna Kisselgoff, editora-chefe de dan-
ça naquele jornal, intitulado “Partial to Balanchine, and a Lot
of Built-In Down ime” [Predileção por Balanchine, e Muito
Modo de Espera pelo Meio], uma resenha da cena de dança
em Nova York naquele ano que findava. Em dado momento,
Kisselgoff escreve: “Para e continua. Pode chamar de tendên-
cia ou decoreográfica
na arte tique, mas éa impossível
crescente aparição de sequências-soluço
de ignorar. Espectadores in-
teressados em fluxo ou continuidade de movimento têm en-
contrado poucas opções dentre as muitas estreias”. Após listar
alguns dos coreógrafos “soluçantes”, desde David Dorfman,
radicado em Nova
Nova York,
York, até William Forsythe,
Forsythe, radicado em
Frankfurt, Kisselgoff conclui: “É tudo muito ‘hoje’. Mas, e
amanhã?” (Kisselgoff, 2000: 6).
 

 A percepção de um “soluçar” no movimento coreografado


produz ansiedade crítica: é o próprio futuro da dança que re-
sulta ameaçado pela erupção de uma tal gagueira cinestésica.
Confrontada
ográfico ou dacom a interrupção
“continuidade do proposital
movimento”,do “fluxo”
a críticacore-
ofe-
rece duas leituras possíveis: ou bem estas estratégias podem
ser descartadas como uma “tendência
tendência”” – logo entendida como
epifenômeno limitado, um “tique” aborrecido que não merece
grande consideração crítica; ou elas podem ser denunciadas,
mais seriamente, como um perigo, uma ameaça ao “amanhã”
da dança, à capacidade da dança de se reproduzir docilmente
no futuro a partir de seus parâmetros mais reconhecíveis. Esta
última percepção – de que a intrusão de soluços paralisantes
na coreografia contemporânea ameaça a própria futuridade
da dança – é pertinente para a discussão de algumas estraté-
gias coreográficas
o movimento estárecentes nas quaisMeu
sendo exaurida. a relação da dança
argumento coma
é que
concepção da paralisia do movimento como uma ameaça ao
futuro da dança sugere que qualquer ruptura no fluxo da dan-
ça – qualquer coreografia que questione a identidade da dança
como ser-em-movimento – representa não só uma crise locali-
zada na habilidade do crítico de fruir esta
e sta dança, mas opera, o
que é bem mais relevante, um ato crítico de profundo impacto
ontológico. Não é de surpreender que uma tal convulsão on-
tológica seja tomada como uma traição da própria essência e
natureza da dança, de sua assinatura, de seu domínio privile-
giado: a traição do laço entre dança e movimento.
oda acusação
reificação de traição
e reafirmação contémcom
de certezas em relação
si necessariamente
ao que cons-a
titui as regras do jogo, qual o caminho certo, a postura correta
ou a forma de ação apropriada. Em outras palavras: qualquer
denúncia de traição implica uma certeza ontológica carregada
de características coreográficas. No caso da suposta traição efe-
tuada pela dança contemporânea, a acusação descreve, reifica e
reproduz toda uma ontologia da dança que pode ser sintetizada

20
 

da seguinte forma: a dança imbrica-se, ontologicamente, com o


movimento; ela é isomórfica a ele. Somente ao aceitar tal fun-
damentação da dança no movimento pode alguém acusar certas
práticas coreográficas
É digno contemporâneas
de nota que acusações dedetraição
trair acomo
dança.esta (e a
implícita reificação ontológica que elas carregam) não são
confinadas ao contexto da crítica de dança norte-americana.
 Juízos similares também surgiram nos tribunais
tribunais europeus. Em
7 de julho de 2004, por exemplo, o ribunal Regional de Du-
blin julgou um processo civil contra o Festival Internacional
de Dança da Irlanda (IDR). O Festival fora acusado de aten-
tado ao pudor por ter exibido nudez e supostos atos lascivos
numa peça de dança intitulada  Jérôme Bel  (1995)
  (1995) do coreó-
grafo contemporâneo francês Jérôme Bel.1 A peça havia sido
apresentada no IDR na edição de 2002. Devido a alguns deta-
lhes técnicos, o juiz
 Aparentemente, que presidia
a parte o caso
acusatória, Sr..acabou
Sr por Whitehead,
Raymond descartá-lo.
baseando seus argumentos numa mistura mal-acabada de leis
que regulamentavam a obscenidade e a propaganda engano-
sa, pedia indenização por “quebra de contrato e negligência”
(Falvey
(F alvey,, 2004: 5). O interessante neste caso particular é que o
Sr. Whitehead sustentava sua acusação de obscenidade e pro-
paganda enganosa na alegação de que  Jérôme Bel  não  não poderia
ser propriamente classificada como uma performance de dan-
ça. Numa declaração ao Irish imes  de  de 8 de julho de 2004, o
Sr. Whitehead articulou uma ontologia da dança muito se-
melhante àquela articulada por Kisselgoff. De acordo com o
Irish imes , “não
“nãodança,
havia nada
descrever como a qualnadefiniu
performance que [ele]
como ‘pessoas pudesse
movendo-
-se ritmicamente, pulando para cima e para baixo, em geral
associado à música, mas não necessariamente’ e transmitin-
do alguma emoção. Seu pedido de reembolso foi recusado”
(Holland, 2004: 4).

1. Eu discuto o trabalho de Jérôme Bel detalhadamente no Capítulo 3.

21
 

Postos lado a lado, estes dois momentos discursivos pedem


consideração. Eles refletem o fato de que na última década
algumas coreografias contemporâneas norte-americanas e eu-
ropeias
noção detêm de fato
dança – a senoção
empenhado em desmantelara associa
que ontologicamente uma certa
ao
“fluxo e à continuidade de movimento” e com “pessoas pu-
lando para cima e para baixo” (com ou sem música). Mas eles
também refletem uma certa inabilidade generalizada, e até uma
má vontade, em considerar criticamente as práticas coreográ-
ficas recentes como experimentos artísticos de valor. Assim, a
deflação de movimento na recente coreografia experimental
é meramente descrita como sintoma geral de um “modo de
espera” na dança.2 Mas talvez seja esta formulação mesma um
sintoma do “modo de espera” no qual se encontra o discurso
crítico sobre a dança, sinalizando a profunda disjunção entre
as atuais apráticas
apegado coreográficas
ideais da dança comoe agitação
um modoconstante
de escrita ainda
e contí-
nua mobilidade. Devemos lembrar que a operação de igualar
o ser da dança ao movimento – por mais senso comum que
isso possa parecer hoje – é na realidade um desenvolvimento
histórico razoavelmente recente. O historiador da dança Mark
Franko mostra como, no Renascimento, a coreografia se defi-
nia apenas secundariamente em relação ao movimento:
O corpo dançante como tal é raramente tematizado nos
tratados. Como o pesquisador da dança Rodocanachi
colocou, ‘... quant aux mouvements, c’est la danse en elle-
même dont laduconnaissance
occupations danseur ’ [...semble avoir
quanto aosétémovimentos,
la moindre deso

2. O autor recupera aqui a expressão “down time ”,”, utilizada por Anna Kisselgoff no título
da resenha mencionada no primeiro parágrafo. A expressão “down time”  refere-se
 refere-se ao tem-
po de espera ou inatividade de um sistema enquanto ele encontra-se em manutenção ou
fora do ar, implicando portanto a expectativa de um recomeço. No caso da resenha citada,
“down time ” (que traduzimos como “modo de espera”) seria justo o tempo no qual os
dançarinos permanecem parados em cena, no qual (supostamente) a “dança” é suspensa,
para depois (supostamente)
(supostam ente) recomeçar (N.
( N. .).
.).

22
 

conhecimento da dança em si é o que parece ter sido a


menor das ocupações do dançarino] (Franko, 1986: 9).

O antecessor de Anna Kisselgoff, John Martin, primeiro


editor exclusivo de dança do New York im es , certamente esta-
York imes 
ria de acordo com Franko
Franko.. Em 1933, ele afirmou: “quando co-
meçamos a perceber a dança assumindo algo como uma forma
teatral – isto é, depois dos dias antigos – nós percebemos que
ela se preocupa pouco ou nada com o movimento do corpo”
(Martin, 1972: 13). Por que, então, esse interesse obsessivo
pela exibição de corpos em movimento, essa necessidade de
que a dança esteja em estado constante de agitação? E por que
enxergar nas práticas coreográficas que recusam tal exibição e
agitação uma ameaça ao ser da dança? Estas questões refletem
como o desenvolvimento da dança no Ocidente como for-
ma
modo artística autônoma,
crescente desde
a um ideal o Renascimento,
de contínua alinha-se
motilidade. de
A pulsão
da dança rumo à exibição espetacular do movimento torna-
-se a sua própria modernidade, no sentido definido por Peter
Sloterdijk na epígrafe deste capítulo: como uma época e um
modo de ser  em
 em que o cinético corresponde ao que nela “há de
mais real ” (2002: 27, grifo meu). Na medida em que o projeto
cinético da modernidade se torna a sua própria ontologia (sua
inescapável realidade, sua verdade fundamental), também o
projeto da dança ocidental alinha-se mais e mais à produção
e à exibição de um corpo e de uma subjetividade adequados a
representar esta motilidade desenfreada.
 Assim, desde
percebemos a consolidação
claramente a dançadorepresentando
ballet d’actiona romântico,
si mesma
como um espetáculo de fluida mobilidade. Como argumen-
tam as pesquisadoras da dança Susan Foster (1996), Lynn Ga-
rafola (1997) e Deborah Jowitt (1988), a premissa do balé
romântico era apresentar a dança como contínuo movimento,
preferencialmente ascendente, animando um corpo que viceja
suavemente no ar. al ideologia conformou estilos, prescre-

23
 

veu técnicas e configurou corpos, além de modelar critérios


críticos para a avaliação do valor estético da dança. Embora
a produção de Filippo aglioni de La Sylphide  em
  em 1832 seja
considerada o primeiro
de Paris, é possível acharbalé
em romântico,
um texto deestreado
1810 anaprimeira
Ópera
e mais profundamente articulada teorização da dança como
performance do fluxo ininterrupto do movimento. rata-se
da parábola clássica de Heinrich von Kleist, “Über das Ma-
rionettentheater ”,
”, que exalta a superioridade da marionete em
relação ao dançarino humano, já que aquela não precisa parar
seu movimento para recuperar sua força:
Marionetes, como os elfos, só precisam do chão para tocá-
-lo suavemente e renovar a força de seus membros com
uma pausa momentânea. Nós [humanos] precisamos dele
para repousar e nos recuperarmos do esforço da dança,
um momento que claramente não faz parte da dança 3 (In:
Copeland and Cohen, 1983: 179).

Entretanto, é só na década de 1930 que a total identifica-


ção ontológica entre movimento ininterrupto e o ser da dança
é claramente articulada como uma exigência inescapável para

3. Uma das outras razões para a superioridade da marionete é sua falta de vida interior,
interior,
psicológica, a qual previne o boneco deslocar seus “centros naturais de gravidade” para
outras partes do corpo, garantindo assim a pura expressão de movimentos graciosos. O
texto de Kleist foi objeto de numerosas leituras e análises críticas. A mais influente, sem
dúvida, é a de Paul de Man em Te Rhetoric of Romanticism (1984). Resumidamente, de

Man compreende
é entendida como umo texto
testedeinacabável
Kleist como
parauma parábque
parábola
o leitor, ola sobre
sempreo ato de ler,as no
perderá qual da
marcas a leitura
escri-
ta. Sem negar a leitura proposta por de Man, eu diria que “On the Puppet Teatre” requer
uma expansão de sua interpretação como um comentário unicamente sobre a leitura, se
levarmos em conta os três argumentos ontocinético-teológicos que ele propõe entre o
movimento humano, o movimento animal e o movimento da marionete em suas relações
com a expressividade, a verdade, Deus e o ser. Devemos notar também que a evocação
feita por Kleist dos elfos nessa citação é historicamente sugestiva, e que sua descrição das
dançantes marionetes como resistentes à gravidade poderiam muito bem se encaixar nas
performances de “técnicas do voo” encenadas por Charles Didelot – máquinas teatrais que
criaram, no final do século XVIII, a ilusão de voar em cena.

24
 

qualquer projeto coreográfico. John Martin, em suas famosas


palestras de 1933 na New School University de Nova York,
propôs que só após o advento da dança moderna a dança final-
mente achou “este
do) começo: seu verdadeiro
começo foi(e aontologicamente fundamenta-
descoberta da real substância
da dança, que é o movimento” (Martin, 1972: 6). Para Mar-
tin, as explorações coreográficas do balé romântico e clássico, e
mesmo a libertação anti-balé da expressividade corporal enca-
beçada por Isadora Duncan, haviam se desviado do verdadeiro
ser da dança. Não se compreendera que a dança deveria ser
fundada apenas no movimento. Para Martin, o balé era dra-
maturgicamente dependente da narrativa e coreograficamen-
te investido na pose de efeito, enquanto a dança de Duncan
era demasiado subserviente à música. De acordo com Martin,
foi só com Martha Graham e Doris Humphrey nos EUA, e
Mary
modernaWigman e Rudolph
descobriu von Laban
o movimento na Europa,
como que a dança
a sua essência e “se
tornou uma arte independente pela primeira vez” (1972:6).
O alinhamento estrito da dança com o movimento que
 John Martin anunciou e celebrou é o resultado lógico de sua
ideologia modernista, de seu desejo de assegurar teoricamente
uma autonomia para a dança que a deixasse em pé de igual-
dade com outras formas de arte erudita. O modernismo de
Martin é um constructo, um projeto que, como mostrou o
historiador da dança Mark Franko, toma forma não apenas
em seus escritos e resenhas, mas também no disputado espaço
entre o coreográfico e o teórico, o corpóreo e o ideológico, o
cinético
ça Randye oMartin
político (Franko,
observa 1995).
como O pesquisador
o projeto em dan-a
de fundamentar
ontologia da dança no puro movimento leva a “uma suposta
autonomia do estético no campo da teoria, que é [...] o que
funda, sem precisar nomear ou situar, a autoridade do teórico
ou do crítico” (Martin, 1998: 186). Essa luta por autoridade
crítica e teórica define a dinâmica discursiva que informa a
produção, a circulação e a recepção crítica da dança; ela de-

25
 

fine como em resenhas jornalísticas de dança, em decisões


curatoriais, bem como em processos legais, algumas danças
são consideradas adequadas enquanto outras são descartadas
como atosnesse
acontece de traição
espaço ontológica.
de disputa Compreender
esclarece comoque a dança
as recentes
acusações de traição dão voz a um programa ideológico que
define, fixa e reproduz o que deve ser valorizado como dança
e o que deve ser excluído de seu domínio como “sem futuro”,
futuro”,
“insignificante” ou “obsceno”.
Enquanto isso, a questão da ontologia da dança continua
em aberto.
É por essa questão em aberto, com todas as suas implica-
ções estéticas, políticas, econômicas, teóricas, cinéticas e per-
formativas, que Exaurir a Dança  se  se interessa. Eu dedico cada
capítulo deste livro à leitura detalhada de peças de coreógrafos
contemporâneos
e de performance,europeus e norte-americanos,
cujos trabalhos artistas
(a despeito de caíremvisuais
ade-
quadamente ou não na categoria da dança cênica) propõem,
com particular intensidade, uma crítica de alguns dos elemen-
tos constitutivos da dança cênica ocidental. Os elementos crí-
ticos que eu destaco são, por ordem de aparição: o solipsismo,
a imobilidade, a materialidade linguística do corpo, a derro-
cada do plano vertical de representação, o tropeço no terreno
racista, a proposta de uma política do chão e a crítica da pul-
são melancólica no coração da coreografia. Os artistas cujos
trabalhos acionam estes elementos críticos são (também em
ordem de aparição): Bruce Nauman, JuanJuan Dominguez, Xavier
Le Roy,Mantero.
e Vera Jérôme Bel, risha Brown, La Ribot, William Pope.L
O fato de dois destes artistas não serem “propriamente”
dançarinos e de não descreverem a si mesmos como coreó-
grafos, embora tenham explicitamente experimentado exercí-
cios coreográficos (Bruce Nauman) e explicitamente tratado
da política da motilidade na contemporaneidade (William
Pope.L), é metodologicamente importante para o argumen-

26
 

to que o livro avança. Os trabalhos de ambos permitem um


reenquadramento da coreografia fora de limites disciplinares
artificialmente autônomos, bem como o reconhecimento da
força da eontologia
estranho política
hipercinético ser. da modernidade
ratar em todo
o coreográfico o seu
fora dos li-
mites próprios da dança sugere uma expansão do privilegiado
objeto de análise da pesquisa em dança; exige dessa pesquisa
que ela pise em outros campos artísticos, criando novas possi-
bilidades de se pensar as relações entre corpos, subjetividades,
política e movimento.
Uma das relações que este livro privilegia é aquela entre a
dança, os estudos da dança e a filosofia. Este diálogo teórico
parte da observação de que a dificuldade em avaliar critica-
mente a dança que recusa manter-se confinada ao “fluxo ou
continuidade de movimento” sinaliza uma reconfiguração da
relação
presente.daOra,
dança“presença”
com sua presentificação,
não é simplesmentecom oumseutermo
tornar-se
que
se refere à habilidade do dançarino em negociar proficiência
técnica e artística na performance de uma coreografia. É tam-
bém um conceito filosófico fundamental, um dos principais
objetos da destruktion  da metafísica de Heidegger e da des-
construção de Derrida.4 Logo, qualquer dança que investiga
e complica os modos pelos quais se torna presente e o lugar
onde estabelece o alicerce de seu ser
ser,, exige dos estudos críticos
em dança um diálogo renovado com a filosofia contemporâ-
nea. Eu estou aqui a pensar sobretudo naqueles autores que
dão seguimento à destruição da filosofia tradicional empre-
endida por Nietzsche através da proposição de uma crítica
da vontade de potência – um projeto que informa o trabalho
filosófico e  político
 político de Michel Foucault, Jacques
Jacques Derrida, Gil-

4. Para Derrida, toda a história


história da metafísica ocidental (que ele identificava como a “his-
tória do Ocidente”) girava em torno de um centro fixo: o “Ser como presença em todos
os sentidos da palavra” (Derrida, 1978: 279). Para Derrida, foi somente com Nietzsche,
Freud e Heidegger que a presença como Verdade, a presença como Sujeito e a presença
como Ser, respectivamente, são fundamentalmente decentralizadas (1978: 279).

27
 

les Deleuze e Félix Guattari, trabalhos e autores que invoco


frequentemente ao longo deste livro. Ora, a filosofia destes
autores não é apenas uma filosofia do corpo, mas uma filosofia
que
tico cria conceitos
do corpo. Umaque permitem
filosofia que um reenquadramento
percebe polí-
o corpo não como
entidade encerrada em si mesma, mas como sistema aberto
e dinâmico de trocas, constantemente produzindo modos de
sujeição e controle, bem como modos de resistência e devir.5 
Como explica a teórica feminista Elizabeth Grosz, depois de
Nietzsche [...] o corpo é o lugar de emanação da vontade
de potência (ou de múltiplas vontades), um locus  intensa-
 intensa-
mente energético para toda produção cultural, um concei-
to que acredito ser mais adequado para repensar o sujeito
em termos do corpo. (Grosz, 1994: 147)

Repensar o sujeito em termos do corpo é precisamente a


função da coreografia, uma tarefa que nem sempre é submissa
s ubmissa
ao imperativo da cinética, uma tarefa que está sempre e já em
diálogo com a filosofia e a teoria crítica. Frederic Jameson vê
o retorno à filosofia nos recentes Estudos Culturais como um
retorno perigoso aos ideais e ideologias modernistas e con-
servadores (Jameson, 2002: 1-5). Eu não considero que uma
coisa necessariamente leve à outra. Eu vejo o posicionamento
de Jameson como um exemplo perfeito das certeiras palavras
de Homi Bhabha em seu ensaio “O Compromisso com a e-
oria”: “Existe uma pressuposição prejudicial e autodestrutiva
de
sãoque a teoria é necessariamente
privilegiados a linguagem
social e culturalmente da elite
(Bhabha,e lite dos 43).
2003: que

5. Derrida permanece um filósofo do corpo no sentido de que ele reconfigura radicalmente


a questão da linguagem como uma questão de gramatologia, prestando rigorosa atenção
à prática da escritura e aos efeitos fantasmáticos desta. O fato de que o corpo é, para
Derrida, já linguístico, já imbuído numa máquina de escritura, no sentido que Kafka deu
ao corpo, não o torna menos corpóreo. Ver, nesse sentido, a preocupação de Derrida com
as performances em si e com a centralidade dos performativos em alguns de seus mais
estimados temas: a força de lei, o ato
a to de dar, a ética, a morte, a escuta do outro, a teologia.

28
 

Bhabha nos lembra que há uma “distinção a ser feita entre a


história institucional da teoria crítica e seu potencial conceitu-
al para a mudança e inovação
inovação”” (2003: 60). Esta é precisamente
afilosofia
posiçãoe força
de Deleuze
políticaaodadistinguir a história1992:
filosofia (Deleuze, institucional da
169-193).
Se há uma proposição que me cabe fazer aos estudos da dança
é justamente a de investigar como a coreografia e a filosofia
partilham daquela questão fundamental – política, ontológi-
ca, fisiológica e ética – que Deleuze recupera a Espinosa e a
Nietzsche: o que pode um corpo?
O trabalho dos filósofos e teóricos críticos com os quais dia-
logo desdobram a força política que esta questão fundamental
articula, no cruzamento necessário que ela propõe entre teoria
crítica, filosofia e todos as formas de performance, incluindo
a dança. Assim, ao longo de todo o livro eu invoco a crítica à
autoridade
Foucault, a do autor
crítica elaborada geral
à economia por Roland Barthes e em
da representação Michel
Jac-
ques Derrida, a noção de Avery Gordon sobre a força socioló-
gica do fantasmagórico/espectral, a releitura de Ann Cheng do
conceito de melancolia em Freud, o conceito do Corpo sem
Órgãos de Deleuze e Guattari, o desvendamento da ontologia
cinética da modernidade por Peter Sloterdijk, a crítica da on-
tologia na condição colonial em Frantz FanonFanon e a reanimação
do performativo de Austin por Judith Butler – tudo de modo
a compreender a implementação especificamente coreográfica
destes conceitos cruciais. De resto, o diálogo com a filosofia é
um no qual também os artistas que discuto estão engajados.
De fato, poderíamos
explicitamente dizer que secom
comprometidos estes artistas não
a filosofia estivessem
e com a teoria
crítica, seus trabalhos provavelmente não teriam emergido.
Como mostrarei ao longo dos capítulos, Vera Vera Mantero dialoga
diretamente com a noção de imanência de Deleuze, William
Pope.L “conversa” com Heidegger e Frantz Fanon, Jérôme Bel
cita a importância das noções deleuzianas de diferença e repe-
tição para seu trabalho, Bruce Nauman invoca Wittgenstein,

29
 

enquanto Xavier Le Roy explicitamente reconhece a influ-


ência de Elizabeth Grosz. Mesmo quando este diálogo não
é totalmente explicitado, podemos tornar claro como risha
Brown
entra emconversa
debate com a teoria
noção da
dearquitetura
Verfallen eme como La Ribot
Heidegger. Em
todo o livro, tudo que eu faço é escutar as proposições de cada
coreógrafo e dar relevo à filosofia que eles articulam. E a cada
capítulo eu reitero a questão de Bhabha: “Em que formas hí-
bridas, portanto, poderá emergir uma política da afirmativa
teórica?” (2004: 47).
Grande parte do meu argumento neste livro gira em torno
da formação da coreografia como uma invenção peculiar da
modernidade, como uma tecnologia que cria um corpo dis-
ciplinado para se mover de acordo com os comandos da es-
crita. A primeira versão do termo “coreografia
coreografia”” foi forjada em
1589, quando
sos daquele nomeou
período: um dos manuais de dança
, do padre
Orchesographie  mais
jesuíta famo-
Toinot
 Arbeau (literalmente: a escrita,  graphie , da dança, orchesis ).
).6 
Fundidas em uma só palavra, cruzadas uma com a outra, dan-
ça e escrita qualitativamente produziram relações tão forçosas
quanto insuspeitas entre o sujeito que se move e o sujeito que
escreve. Com Arbeau, estes dois sujeitos tornaram-se um. E
através desta assimilação em nada óbvia, o corpo moderno
revelou-se a si mesmo como uma entidade linguística.
Não é por acaso que a invenção desta nova arte de codificar e
exibir o movimento disciplinado coincide historicamente com
o desenrolar do projeto da modernidade e a sua consolidação.
Desde o Renascimento, ao perseguir sua própria autonomia
6. Toinot Arbeau cunha o termo “orchesographie ” – uma escrita (“ graphie ”) ”) da dança (“or-
chesis ”)
”) em 1589. O sinônimo atualmente em uso, “coreografia”, é introduzido em 1700
no tratado clássico de mesmo nome escrito por Raoul-Auger Feuillet.Feuillet . Curiosamente, em
1706, John Weaver publica  An Exact and Just ranslation
ranslation from the French of Monsieur
Feuillet  na
 na qual ele traduz o título original Chorégraphie  como
 como “orchesography”, indicando
portanto a validade do antigo termo no século XVIII. Em ambas configurações da palavra,
a fusão da dança com a escrita nomeia uma prática cujas forças programáticas, técnicas,
discursivas, econômicas, ideológicas e simbólicas permanecem ativas até hoje.

30
 

como forma artística, a dança conjuga-se à consolidação desse


grande projeto do Ocidente conhecido como modernidade.
Dança e modernidade se entrelaçam num modo cinético de
ser-no-mundo. O historiador
creveu que “o único elemento da culturadaHarvie
imutável Ferguson
modernidade é suaes-
propensão ao movimento, o que se torna, por assim dizer
dizer,, seu
emblema permanente” (Ferguson,
(Ferguson, 2000: 11). É assim
ass im que para
buscar sua essência a dança volta-se de modo crescente para o
movimento. O filósofo alemão Peter Sloterdijk defendeu que
o projeto da modernidade é um projeto fundamentalmente
cinético: “A modernidade é, ontologicamente, puro ser-para-
-o-movimento” (Sloterdijk, 2002: 33). A dança acessa a mo-
dernidade por via de seu alinhamento ontológico crescente
com o movimento, este por sua vez tomado como espetáculo
do ser desta modernidade. Ao escrever sobre dança barroca,
em
Sol,particular
Franquando
Mark Franko realizada
ko enfatiza comopelo corpo de Luís
a coreografia XIV
XIV,
é antes de, otudo
Rei
uma performance centrada na exibição de um corpo discipli-
nado que encena o espetáculo de sua própria capacidade de se
colocar em movimento:
Qualquer um que tenha feito aulas de dança barroca sob
a atenta supervisão de um professor pode comprovar que
a forma permite pouca ou nenhuma improvisação. O
corpo régio dançando era levado a representar a si mesmo
como remaquinado a serviço de uma coordenação muito
precisa entre os membros inferiores e superiores, tudo
controlado por uma rigorosa estrutura musical. Tra-
tava-se de um tecno-corpo do início da era moderna.
(Franko, 2000: 36, grifo meu)

Se a coreografia emerge no início na modernidade de modo


a remaquinar o corpo para que este “represente a si” como
total “ser-para-o-movimento”,
“ser-para-o-movimento”, talvez a exaustão recente da no-
ção de dança como pura exibição do movimento ininterrupto
compartilhe de uma crítica geral deste modo de disciplinar a

31
 

subjetividade, de constituir o ser como sujeito. Se concorda-


mos com Ferguson em que o movimento é o “emblema per-
manente” da modernidade, então este ponto de partida teórico
pode
tão danos ajudar
dança. Se oa “único
reenquadrar discursivamente
elemento imutável” da amodernidade
atual exaus-
(Ferguson, 2000: 11) é, paradoxalmente, o movimento, então
poderíamos dizer que ao romper a aliança entre dança e movi-
mento, ao criticar a possibilidade de se sustentar um modo de
se mover num “fluxo e continuidade de movimento”,
movimento”, algumas
danças recentes estejam de fato desafiando política e teorica-
mente aquela velha aliança entre as simultâneas invenções da
coreografia e da modernidade como “ser-para-o-movimento”
e a ontologia política do movimento na modernidade. Neste
sentido, exaurir a dança é exaurir o emblema permanente da
modernidade. É levar ao limite esse modo de criar e privilegiar
uma subjetividade
nal, exaurir cinética instituído
a modernidade, para usarpela era moderna.
a potente É, afi-
expressão de
eresa Brennan, a qual poderia ser tomada como sinônimo do
título deste livro (Brennan, 1998).
 Já que “modernidade”
“modernidade” e “subjetividade”
“subjetividade” são termos centrais
nos capítulos a seguir, eles merecem alguma clarificação desde
 já. Meu uso do termo “subjetividade” não indica um retorno
à noção de sujeito e nem uma reapropriação desta noção. O
“sujeito” é usualmente associado a uma reificação da subje-
tividade na figura legal da pessoa, junto a uma afirmação da
pessoa como indivíduo autônomo e autocontido ligado a uma
identidade fixa, e com a identificação de uma presença plena
no centro
38-44). do discurso (Dupré, 1993: 13-17, Ferguson, 2000:
7  Ao longo deste livro, a subjetividade não deve ser
confundida com essa noção de um sujeito fixo. Ao contrário,
ela deve ser percebida como um conceito dinâmico, ressaltan-
do modos de agência (política, desejante, afetiva, coreográfica)
7. “O traço distintivo da corporeidade moderna repousa no processo
processo de individuação, na
identificação do corpo com a pessoa como indivíduo exclusivo e, portanto, como porta-
dor de valores e direitos legalmente sancionáveis” (Ferguson, 2000: 38).

32
 

que revelam “um processo de subjetivação, isto é, uma produção


de modo de existência [que] não pode se confundir com um
sujeito”” (Deleuze, 1992: 123, grifo meu) 8. Subjetividade deve
sujeito
ser entendida
de da como força performativa,
vida ser constantemente inventada ecomo a possibilida-
reinventada, como
um “modo intensivo e não um sujeito pessoal” (1992: 123).
O entendimento de Deleuze sobre subjetividade é próximo
das “tecnologias de si” que Foucault define como operações .
ecnologias de si
permitem aos indivíduos efetuar, com seus próprios meios
[...] um certo número de operações em seus próprios
corpos, almas, pensamentos, conduta e modo de ser, de
modo a transformá-los com o objetivo de alcançar um
certo estado de felicidade (Foucault, 2004: 323).

Desta forma, tanto para Foucault quanto para Deleuze,


subjetividades são sempre processos de subjetivação, devires
ativos, expansão de potências e forças de modo a criar para si
a possibilidade da “existência como obra de arte” (Deleuze,
1992: 120).
Nesta dinâmica, não é possível negligenciar o efeito destru-
tivo de forças hegemônicas que constantemente tentam domi-
nar e prevenir a criação de subjetividades ao amarrar indiví-
duos em mecanismos de sujeição, abjeção e dominação. Para
esclarecer esse efeito hegemônico, eu gostaria de suplementar
as noções de subjetividade em Deleuze e Foucault invocando
um
ram,modelo
mas quedetodavia
subjetivação que elesútilexplicitamente
eu considero rejeita-
para reconhecermos
criticamente as múltiplas forças em jogo na constituição das
subjetividades. Este modelo é descrito por Louis Althusser
em seu ensaio “Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado”

8. As citações de Gilles Deleuze nesta seção, retiradas


retiradas do ensaio “Life as a Work of Art ”,
”, fo-
ram traduzidas da própria versão em inglês, já que não encontramos este ensaio traduzido
para o português (N..).

33
 

(2008). Althusser propôs que as forças hegemônicas estão


permanentemente “interpelando os indivíduos como sujeitos
em nome de um Sujeito Único e Absoluto” (2008: 290). E o
modo como Althusser
estranhamente descreve esse mecanismo tem algo de
coreográfico:
O indivíduo é interpelado como sujeito (livre) para que se
submeta livremente às ordens do Sujeito, portanto, para
que aceite (livremente) seu submetimento e, portanto,
para que ‘cumpra por si mesmo’ os gestos e atos de seu
submetimento. Os sujeitos só existem por meio de e para
seu submetimento. É a razão pela qual ‘funcionam sozi-
nhos’ (2008: 291-292).

Podemos entender porque Deleuze e Foucault criticariam


esse mecanismo, onde não parece haver qualquer possibili-
dade de agência e onde a reificação é crucial. Entretanto, a
relevância do modelo de Althusser para os estudos da dança
foram ressaltados por Mark Franko. Mesmo criticando o fato
de Althusser alocar os centros de poder ideológico em insti-
tuições específicas (igreja, polícia, estado), Franko interessa-
-se por como a interpelação “implica um dirigir-se ao outro
visceralmente” e portanto permanece uma noção muito útil
para os estudos da dança e da performance, uma noção que
propõe que dança e “performance também podem chamar o
espectador a ocupar uma posição de sujeito” (Franko, 2002:
60). Eu concordo com Franko quando ele propõe que o mo-
delo de Althusser para como os indivíduos são “recrutados”
para a subjetividade normativa é particularmente útil para
entendermos como a coreografia cria seu processo de subje-
tivação. A coreografia demanda uma aquiescência às vozes e
comandos dos mestres (vivos e mortos), uma submissão do
corpo e do desejo a regimes disciplinares (anatômicos, die-
téticos, de gênero e de raça), tudo pelo cumprimento perfei-
to de um conjunto transcendental e preordenado de passos,

34
 

posturas e gestos que todavia devem parecer “espontâneos”.


Quando Althusser escreve que o indivíduo deverá submeter-
-se “livremente às ordens do Sujeito, portanto, para que aceite
(livremente)
por si mesmo’seuossubmetimento e, portanto,
gestos e atos de para que ‘cumpra
seu submetimento” (2008:
291-292), isto evoca precisamente o mecanismo fundamental
estabelecido pela coreografia para seu sucesso
s ucesso representacional
e reprodutivo.
Mas há ainda outro aspecto do modelo de Althusser que
é de suma importância para a minha análise. Em Excitable
Speech, Judith Butler recupera a noção de interpelação em Al-
thusser de modo a demonstrar como a subjetividade é con-
tinuamente constituída por uma dialética de resistência e
sujeição que é o próprio “mecanismo dos discursos cuja efi-
ciência é irredutível ao momento de sua enunciação” (Butler,
1997b: 32). discursivos
mecanismos As noções de chamado
serão e de interpelação
particularmente úteis no como
Capí-
tulo 5, quando eu discuto as estratégias cinéticas de William
Pope.L ao pôr-se em movimento no traiçoeiro terreno, racista
e neoimperial, da contemporaneidade – um terreno onde pro-
ferimentos injuriosos derrubam corpos ao chão e dão forma a
gestos, posturas e movimentos.
 Agora gostaria de voltar à questão da modernidade. Harvie
Harvie
Ferguson afirma que a “modernidade
“modernidade é a nova forma da subje-
tividade” (Ferguson,
(Ferguson, 2000: 5). Dado que para Ferguson, como
vimos, o emblema da modernidade é o movimento, segue-se
que a modernidade interpela seus sujeitos a se constituírem
como espetáculos
subjetividade emblemáticos
da modernidade de movimento,
é seu seu ser: motilidade.
motela
ilidade. A
cria seus
sujeitos interpelando corpos a constantemente exibirem-se
em movimento, a assumirem a agitação ontológica que Peter
Sloterdijk identifica como o “ex
“excedente
cedente cinético” da moderni-
dade (2002:
(2002: 29). É de dentro deste
deste imperativo ontopolítico
esmagador de movimentar-se que as subjetividades criam suas

35
 

rotas de fuga (seus devires) e negociam seu auto-aprisiona-


mento (suas sujeições).
Se a modernidade é uma nova forma de subjetividade, qual
seria
dade”seu escopo
para tratarhistórico? Podemos usar oAqui,
da contemporaneidade? termonão
“moderni-
há con-
senso. Frederic Jameson escreveu sobre as “dinâmicas políticas
da palavra modernidade, a qual tem sido reavivada por todo o
mundo” e associou essa dinâmica e seu ressurgimento recente
à morte (para ele desconcertante) da pós-modernidade (Ja-
meson, 2002: 10). Jameson enxerga vários tipos de regressão
acontecendo com o ressurgimento da palavra modernidade.
Para ele, a morte da pós-modernidade e o retorno da moder-
nidade como conceito indica um retorno indesejável da filoso-
fia, da estética e do “falocentrismo
“falocentrismo”” do modernismo no discur-
so crítico (2002: 9-17).9 Quanto à identificação da época da
modernidade,
satisfatório da Jameson
modernidadeafirmarepousa
que “oemúnico
suasentido semântico
associação com o
capitalismo” (2002: 11). Portanto, de acordo com Jameson,
podemos falar em modernidade apenas quando duas condi-
ções são cumpridas: a emergência da crítica do Iluminismo
em Kant e o estabelecimento dos modos de produção do ca-
pitalismo industrial (2002: 99). A opinião de Jameson é pró-
xima a de Foucault e de Habermas, para quem a formação das
condições políticas, epistêmicas e afetivas que prevalecem na
contemporaneidade podem ser localizadas no século XVIII,
particularmente na filosofia de Kant.
Entretanto, outra forma de temporalizarmos a modernida-
de seriaéseguir
nidade de fatoas“uma
pistasforma
de Ferguson e considerarAque
de subjetividade”. a moder-
periodização
da modernidade dependeria assim não de identificarmos um
período ou geografia particular
par ticular,, mas processos de subjetivação
que produzem e reproduzem esta forma particular. O histo-

9. Jameson exagera levemente sua argumentação quando identifica Deleuze como “um
modernista quintessencial” (2002: 4).

36
 

riador cultural Louis Dupré identifica uma forma moderna de


subjetividade claramente tomando lugar por volta do século
 XVII e se prologando até o nosso (Dupré, 1993: 3, 7). O en-
tendimento temporal
livro alinha-se com o da demodernidade
Dupré, mas que eu emprego
também neste
com aqueles
dispostos por Francis Barker (1995), eresa Brennan (2000),
Gerard Delanty (2000), Harvie Ferguson (2000) e Peter Slo-
terdijk (2002). Estes autores identificam a fundação da moder-
nidade na subjetivação implementada pela divisão cartesiana
entre res cogita  e
 e res extensa . Mesmo Jameson, em sua dura crí-
tica do ressurgimento da palavra modernidade, afirma que “é
apenas por meio desta recém-assegurada certeza [exposta pelo
método de Descartes] que uma nova concepção de verdade
como justeza pode emergir historicamente; ou, em outras pa-
lavras, que algo tal como a ‘modernidade’ pode aparecer” (Ja-
meson,
Heidegger2002: 47). Aqui, Jameson
à representação está )explicando
(Vorstellung  em relaçãoa àcrítica de
filosofia
de Descartes e defendendo que a crítica de Heidegger ilumina
a modernidade como um modo de “subjetivação
subjetivação”” (2002: 47).
 Jameson admite que tal entendimento
entendimento da modernidade como
subjetivação “é provavelmente
provavelmente preferível às numerosas e fanta-
siosas histórias do enfadonho humanismo”
humanismo” (2002: 49).
O que caracteriza este modo ou forma de subjetivação? Pri-
meiro e mais importante: ele isola a subjetividade dentro de
uma experiência de corte com o mundo externo. Na moder-
nidade, a subjetividade está capturada dentro de uma expe-
riência solipsista do “ego como sujeito final para e da repre-
sentação” (Courtine, 1991: 79)e governado
existindo independentemente que considera
por “o
leiscorpo como
imanentes”
(Ferguson, 2000: 7). Brennan é particularmente insistente em
chamar atenção para a centralidade desse sujeito que experien-
cia seu ser como totalmente independente e ontologicamente
separado do mundo como constitutivo do processo moderno
de subjetivação. Ela identifica no sujeito monádico autossu-
ficiente o trabalho psíquico de uma “fantasia fundamental”

37
 

particularmente alienante (Brennan, 2000: 36).10 Esta fantasia


deve reproduzir a si mesma a todo custo, de modo a manter
no lugar a pilhagem afetiva e ecológica que sustenta os modos
de produção
bados desencadeados
a um paroxismo pelo contemporaneidade
em nossa capitalismo inicial e neoim-
exacer-
perial. Ela diz:
Podemos debater se o nascimento da consciência interior
marca a modernidade, o que seria difícil de sustentar da-
das as evidentes exceções a ela. Eu diria que uma medi-
da mais justa seria a invariável negação, no Ocidente, da
transmissão dos afetos que vemos efetuada desde o século
 XVII até hoje. (Brennan, 2000: 10)

Para a subjetividade moderna, o desafio ético, afetivo e po-


lítico é achar modos sustentáveis de relacionalidade. Como
pode um suposto ser independente estabelecer uma relação
com as coisas, com o mundo, com o outro, e ainda manter-se
como um bom avatar do “emblema” da modernidade: o mo-
vimento? A inclusão do cinético na questão ético-política da
subjetividade moderna nos leva de volta ao problema de como
dançar contra as fantasias hegemônicas da modernidade, uma
vez que estas fantasias são ligadas ao imperativo de exibir cons-
tantemente a mobilidade.
É por isso que a análise de coreografias e performances que
tratam diretamente da impossibilidade de sustentar o “fluxo
ou continuidade de movimento”
movimento” são de interesse teórico e po-
lítico. Se levarmos em conta o que Randy Martin chamou de
“estudos críticos da dança”, então a proposição desenvolvida
em seu livro Critical Moves  – – a necessidade de reexaminarmos
10. “É uma fantasia que confere certos atributos ao sujeito e que desapossa o resto
resto deles
como – e por – um processo que faz do outro, um objeto, um entorno (como Heidegger
diria), um pano de fundo ausente contra o qual ele se faz presente. É uma fantasia que
confia num divórcio entre configuração mental e ação corporal
corpo ral para sustentar sua negação
onipotente. Nesta fantasia, o sujeito deve também negar sua história, já que essa história
revela sua dependência numa origem materna” (Brennan, 2000: 36).

38
 

a noção de “mobilização” como “um conceito que faz a me-


diação entre dança e política” – é particularmente relevante
para nossa discussão. De fato, para Martin, mobilização é um
conceito chavedesde
e aprofundar, que os
queestudos da dança
o objetivo precisam
seja sair de suainvestigar
estranha
paralisia política.  A formação de uma prática e de uma teo-
11

ria política calcada na primazia do movimento deve partir da


sugestão de Martin de que “a relação da dança com a teoria
política não pode ser proveitosamente tomada como mera-
mente analógica ou metafórica” (1998: 6). Assim, considerar
as relações entre dança e política como literais e metonímicas
(em oposição a analógicas e metafóricas) vira requisito funda-
mental para a teoria crítica e política tratar as dinâmicas core-
ográficas das mudanças e dos movimentos sociais, a despeito
destes movimentos e mudanças manifestarem-se num palco
ou nas ruas. Martin aponta que
as teorias da política são cheias de ideias, mas ela têm sido
menos exitosas em articular como o trabalho concreto da
participação necessário para executar tais ideias é acumu-
lado através do movimento dos corpos no tempo e no
espaço sociais. A política não vai a lugar algum sem o mo-
 vimento. (Martin, 1998: 3)

Poderíamos ler o projeto de Martin não apenas como uma


atualização crítico-cinética das famosas onze teses de Marx
sobre Feuerbach,12 mas também como uma provocante afir-
mação de que a percepção e a prática da dança vista pela lente
do pensamento político poderia realmente possibilitar a mo-
bilização não apenas de teorias, mas também de corpos que de
outro modo permaneceriam politicamente passivos. A palavra
11. “Grande parte da crítica e pesquisa sobre dança contemporânea ainda é propensa a
acreditar [...] que olhar para a dança politicamente pode de alguma forma interferir na
sua eficácia” (Martin, 1998: 14).
12. “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo, de várias formas; a questão é mudá-lo”
mudá-lo”
(Marx e Engels, 1969: 15).

39
 

“participação” na teoria de Martin é importante pois contém


em si uma crítica da representação. Para Martin, mobilização
 já é participação, um mover-se-em-direção-ao-mundo, naque-
le
quesentido
desafiadeasque a methexis 
forças  propõe um encontro
 propõe
de distanciamento participativo
da mimesis 
. De fato, a
argumentação de Martin apoia-se numa política progressista
entendida como “aquelas forças mobilizadoras contra a fixidez
do que é dominante na ordem social” (1998: 10).
 A observação de Martin repete uma noção geralmente in-
contestada que associa a força do movimento com uma dinâ-
mica politicamente positiva. Pensemos por exemplo em Gilles
Deleuze, quando ele define duas posições políticas básicas: “es-
posar o movimento ou então brecá-lo” (Deleuze, 1992: 158).
Deleuze associava à última uma força reacionária. Pensemos
também nas noções de devir em Deleuze e Guattari, como
forças
definidoe poderes amalgamando-se
como plano de imanêncianum plano
onde de consistência
intensidades circu-
lam desbloqueadas, bem como do Corpo sem Órgãos – lem-
bremos como para Deleuze e Guattari o Corpo sem Órgãos
pode lograr êxito ou não, o último sendo definido sempre pela
obstrução das intensidades.
Seja em Randy Martin, Deleuze ou Guattari, o movimen-
to é aparentemente associado de forma positiva como aquilo
que sempre utilizará sua força na direção de uma política do
progresso, ou pelo menos na direção de uma formação críti-
ca que poderia ser considerada progressista. Podemos pensar
em muitos outros exemplos similares desta mesma associa-
ção.
nidadeMasserdiante do que expus
sua emblemática sobre a condição
motilidade, dasemoder-
a questão torna
não a de descobrir onde “a fixidez do que é dominante” pode
estar. A questão é saber se e como o dominante se move. E,
mais além, saber quando, o quê e quem é que o dominante
obriga a se mover
mover..

40
 

É aqui que a “crítica da cinética política” proposta por


Peter Sloterdijk em seu livro Eurotaoismus 13 se torna particu-
larmente relevante. Sloterdijk defende que a única maneira
de calcular plenamente
é examinando a ontologia
criticamente política
o que ele chamadademodernidade
“motivo ci-
nético e cinestético da modernidade” (Sloterdijk, 2002: 31).
Sloterdijk postula que “a modernidade é, ontologicamente,
puro ser-para-o-movimento” (2002: 33). Logo, “um discur-
so filosófico da modernidade não é possível salvo como uma
teoria crítica da mobilização” (2000b: 126). Aqui, podemos
quase ler as palavras de Randy Martin em Critical Moves  nas
  nas
proposições de Sloterdijk, já que para ambos é o ser cinético
da modernidade que vem sendo profundamente negligencia-
do pela teoria crítica. Mas as ideias de Sloterdijk poderiam
também ser lidas como advertência que discorda e ao mesmo
tempo dá de
contrário suporte e suplementa
Martin, Sloterdijk adefende
compreensão de Martin.
que a teoria críticaAoe
a política progressista devem levar em conta que não há nada
 fixo na ordem dominante ou hegemônica. A rigor rigor,, para Sloter-
dijk, é precisamente o impulso cinético da modernidade articu-
lado como mobilização o que revela o processo de subjetiva-
ção na contemporaneidade como uma materialização parva da
subjetividade associada a performances cinéticas amplamente
difundidas de eficácia, eficiência e efetividade tayloristas (para
usar os termos de Jon Mackenzie [2000]). Para Sloterdijk, a
falta de uma teoria crítica do impulso cinético na modernida-
de é uma falha central na teoria marxista, a qual teoricamente
negligenciou ocupar-se
sua entusiástica
entusiástica aceitaçãodedauma crítica do cinético
industrialização plena. devido
plena. Emboraa
as proposições de Randy Martin pareçam ter sido articuladas
sem o conhecimento da filosofia política de Sloterdijk, e apesar
13 Eutotaoismus : Zur Kritik der politischen Kinetik (1989) é o título do original em alemão
do livro  A Mobilização Infinita , o qual vem sendo citado até aqui. Em nota, o editor da
publicação francesa (originalmente utilizada por Lepecki) informa que o título mudou
para La Mobilisation infinie  a
 a pedido de Sloterdijk . Ver Sloterdijk (2000b). (N.
(N..).)

41
 

de em alguns momentos ele possa estar em


e m direta discordância
com algumas leituras de Sloterdijk sobre Marx, a crítica da
modernidade como “excesso cinético” proposta pelo filósofo
alemão
usos quecomplementa
podemos fazeras da
noções de Martin
mobilização em sobre os diferentes
processos e pensa-
mentos políticos. Se Sloterdijk é muito mais crítico da teoria
marxista do que Martin provavelmente permitiria, ambos es-
tão entretanto procurando articular “se é possível imaginar a
política de dentro da mobilização” (Martin, 1998: 12). Sloter-
dijk, assim como Martin, também busca possibilidades de se
contrariar diretrizes hegemônicas ao pensar a partir da mobi-
lização, ainda que aponte para as contradições que este termo
arrasta consigo. Penso que Martin concordaria com Sloterdijk
quando este afirma que:

 As
queduas versões
pensar, de teoria
sobretudo, nascrítica
escolasaté agora conhecidas
marxista (há
e de Frankfurt)
ainda permanecem sem sentido, porque ou não apreendem
o seu objeto – a realidade cinética da Modernidade enquanto
mobilização – ou não podem apresentar uma diferença crí-
tica em relação a esta, já que elas próprias são, pelo seu efei-
to, mobilizadoras. (Sloterdijk, 2002: 27, grifo no original)

 A filosofia de Sloterdijk delineia uma crítica da mobiliza-


ção ao tratar da “política
“política cinestésica”
cinestésica” da modernidade como um
exausto e exaustivo projeto ontopolítico do “ser-para-o-movi-
mento” (2002: 33). O que os trabalhos de Sloterdijk e Martin
evidenciam é que chegamos num momento da teoria crítica e
dos estudos críticos da dança de onde o problema político da
modernidade contemporânea, do capitalismo e da ação são dis-
postos como pertencendo essencialmente
essencialmente ao domínio da onto-
logia coreográfica da modernidade. Este é um desdobramento
importante não só para a teoria crítica, mas também para as
possíveis intervenções teóricas que os estudos da dança porven-
tura venham a empreender na análise das subjetividades.

42
 

Em resumo, a modernidade é entendida neste livro como


um longo projeto duracional que produz e reproduz, metafísi-
ca e historicamente, um enquadramento psicofilosófico (Phe-
lan, 1993:
pre do 5) em
gênero que o sujeito
masculino, privilegiado dodadiscurso
heteronormativo, é sem-e
raça branca,
cuja experiência da verdade é – e emerge de – uma pulsão in-
cessante pelo movimento autônomo, automotivado, infinito e
espetacular.. Mas como pode um corpo mover-se de modo tão
espetacular
espetacular,, tão eficiente e tão autossuficiente? Que chão é esse
espetacular
sobre o qual o sujeito cinético se movimenta aparentemente
tão sem esforço, sempre tão energizado e livre de tropeços? É
aqui que a inescapável fantasia topográfica da modernidade
informa sua formação coreográfica: pois a modernidade sem-
pre imagina sua topografia abstraindo o fato de que seu assen-
tamento deu-se numa terra previamente ocupada por outros
corpos humanosgestos,
tras dinâmicas, e outras formas
passos de vida, habitada
e temporalidades. Como porexpli-
ou-
ca Bhabha, “para a emergência da modernidade – como uma
ideologia do começo, a modernidade como o novo – o molde
desse ‘não-lugar’
‘não-lugar’ se torna o espaço colonial (2003: 339). Fun-
damental para nossa discussão aqui é o fato de que o chão da
modernidade é o terreno colonizado, alisado e terraplanado
onde a fantasia da infinita e autossuficiente motilidade ocorre.
 Já que a rigor não existe um sistema vivo autossuficiente, en-
tão toda mobilização e toda subjetividade que se acha um to-
tal “ser-para-o-movimento” deve retirar sua energia de algum
lugar. A fantasia do sujeito cinético moderno é que a encena-
ção da modernidade
O espetáculo cinéticocomo movimento acontece
da modernidade apaga danaimagem
inocência.
do
movimento todas as catástrofes ecológicas, tragédias pessoais e
fraturas coletivas provocadas pela pilhagem colonial de recur-
sos naturais, corpos e subjetividades que sustentam a realidade
“mais real” da modernidade no seu lugar: o seu ser cinético.
 Já que toda criação social e política hoje ocorre já circunscrita
pelo colonialismo e suas metamorfoses, eu tomo a teoria pós-

43
 

-colonial e a crítica da raça como parceiros fundamentais na


observação de como algumas peças de dança contemporânea e
de performance provocam o colonialismo e suas aparições. Eu
exploro
práticas acoreográficas
força colonialista da modernidade
contemporâneas e seu impacto
nos capítulos 3, 4 enas
6,
quando discuto trabalhos de risha Brown, La Ribot, William
Pope.L e Vera Mantero, e invoco as teorias críticas de Homi
Bhabha, Henri Lefebvre,
Lefe bvre, Frantz Fanon, Paul Carter, Anne An-
lin Cheng, José Muñoz e Avery Gordon.
Uma ultima observação epistemológica feita por Bhabha,
ao identificar a condição colonial como a condição da moder-
nidade, é que o projeto colonial não só inaugura
i naugura uma cegueira
espacial (a percepção de que todo espaço é um “espaço vazio”),
vazio”),
mas introduz também uma temporalidade fantástica da qual o
conceito de pós-modernidade participa. Minha relutância em
usar
só doesse termo
debate tão central no
inconclusivo parafinal
os estudos
edos
studos
anosda1980
dançaentre
deriva não
Susan
Manning e Sally Banes sobre o que constitui a “dança pós-
-moderna”,14 publicado no Te Drama Review , mas também
da profunda compreensão de Bhabha quando ele escreve que
“o projeto da modernidade se revela ele próprio tão contra-
ditório e irresolvido através da inserção do ‘entre-tempo’, no
qual os momentos colonial e pós-colonial emergem como sig-
no e história, que vejo com ceticismo aquelas transições para a
pós-modernidade” que “os escritos acadêmicos do Ocidente”
teorizam” (Bhabha, 2003: 329). Por todo este livro, meu uso
da palavra “modernidade”
“modernidade” resulta do mesmo ceticismo, apon-
tado pela teoria
sibilidade pós-colonial
da velha brutalidadee reforçado pelae recente
imperialista hipervi-
colonialista que
habilmente agencia corpos e mobiliza a morte. O insight   de
Bhabha reenquadra a descrição de Habermas da modernidade
como um “projeto incompleto”
incompleto” (Habermas, 1998) – enquan-

14. Ver Banes (1989), Manning


Manning (1988). Ver também Siegel
Siegel (1992).

44
 

to a condição colonial existir (não importa sob qual aparência)


não teremos chegado ao fim da modernidade.
Durante o intervalo de tempo em que Sloterdijk (em
1989) e Martin
chamando (emda1998)
atenção teoriaestavam
crítica cada
para qual a sua maneira
as formações ciné-
tico-políticas das modernidade contemporânea, alguns dan-
çarinos e coreógrafos experimentais na Europa e nos EUA
estavam reorganizando a relação da dança com sua própria
política e ética do movimento. Os dançarinos desafiavam a
própria ontologia política da dança através da performance
do não-movimento, da prática daquilo que Gaston Bache-
lard chamou de “ontologia mais lenta” (Bachelard, 1978:
337). Como ficará claro nos trabalhos discutidos ao longo
deste livro, a inserção de corpos parados na dança e o uso
de várias formas de desacelerar o movimento e o tempo são
proposições
e a motilidadeparticularmente fortes paraem
através de atos-parados, repensarmos
oposição aoa ação
mo-
vimento contínuo.   15

O “ato-parado” é um conceito proposto pela antropóloga


Nadia Seremetakis para descrever os momentos em que o su-
 jeito interrompe o fluxo histórico e pratica  uma
  uma interrogação
histórica. Assim, ainda que o ato-parado não acarrete rigidez
ou morbidez, ele demanda uma performance de suspensão,
uma interrupção corporalmente assentada dos modos de im-
posição dos fluxos. A paragem age  porque
  porque ela interroga eco-
nomias do tempo, porque revela a possibilidade de agência
mesmo dentro dos regimes autoritários do capital, da subjeti-
vidade, do trabalho
sente”, escreve e da motilidade. “Contra o fluxo do pre-
Seremetakis,
há um estar-parado na cultura material do que é histórico:
h istórico:
aquelas coisas, espaços, gestos e anedotas que mediam a
capacidade perceptual para uma criação histórica elemen-

15. Eu discuto a “ontologia mais lenta” de Bachelard no Capítulo 3.

45
 

tar. O estar-parado é o instante em que aquilo que está


enterrado, descartado e esquecido sobe para a superfície
social da percepção como oxigênio vital. É o escapar da
poeira histórica (1994: 12).

Escapar da poeira histórica é recusar a sedimentação da his-


tória em camadas muito nítidas e organizadas. O ato-parado
revela como a poeira da história na modernidade pode ser agi-
tada, borrando as divisões artificiais entre o sensorial e o social,
o somático e mnemônico, o linguístico e o corporal, o móvel e
o imóvel. A poeira histórica não é simplesmente uma metáfora.
omada literalmente, ela demonstra como as forças históricas
penetram profundamente nas camadas internas do corpo: a po-
eira sedimenta o corpo, opera enrijecendo as rotações suaves
s uaves dos
ligamentos e articulações, fixando o sujeito dentro de trilhas e
passos altamente prescritos, colando o movimento a certas polí-
ticas do tempo e do lugar. A coreografia contemporânea, através
do paradoxal ato-parado, mapeia as tensões no sujeito, isto é, as
tensões na subjetividade sob a força da sedimentação histórica e
empoeirada do corpo. Contra a brutalidade da poeira histórica
que literalmente recai sobre os corpos, o ato-parado reorganiza
a posição do sujeito em relação ao movimento e a passagem do
tempo. Como atesta Bhabha, “a “a função do lapso é desacelerar o
tempo linear,
linear, progressivo, da modernidade para revelar seu
se u ‘ges-
to’, seus tempi , ‘as pausas e marcações de toda a performance’”
(Bhabha, 2003: 350). Meu primeiro encontro com a exaustão
cinética da dança em ato-parado, como resposta em suspensão
auma
eventos
sériepolíticos prementes,
de atos-parados foi no
foram outono de por
apresentados 1992,umquando
grupo
imensamente diverso de coreógrafos, músicos, críticos e artistas
reunidos da Cité Universitaire em Paris, durante um laborató-
rio coreográfico que levou o nome de SKIE, com duração de
um mês e curadoria do programador e crítico de dança francês
 Jean-M
 Je an-Marc
arc Adolphe.
Adolphe. A intr
introduçã
oduçãoo do ato-p
ato-parado
arado tinha
tinha tudo a
ver com as violentas performances do colonialismo e do racis-

46
 

mo. Era logo após a primeira guerra do Golfo. A guerra civil na


Bósnia e Herzegovina estava no auge. Os motins de Los Angeles
haviam estourado há pouco. No SKIE, tanto a coreógrafa por-
tuguesa
SempereVera Manteroque
declararam quanto o coreógrafo
os eventos políticosespanhol Santiago
no mundo eram
tantos e tão intensos que eles não podiam dançar. A coreógrafa
norte-americana Meg Stuart compôs uma dança parada para
um homem deitado no chão, procurando alcançar cuidadosa-
mente suas memórias passadas.16 O coreógrafo australiano Paul
Gazzola deitou, silenciosamente, à noite, nu, num improvável
abrigo ao largo de uma autoestrada. Eu vejo esse momento du-
rante o SKIE como um no qual as forças sedimentárias da
poeira histórica foram reconhecidas pelos coreógrafos através de
suas elaborações da própria noção de dança: não só da posição
da dança em relação à política, mas do papel ontológico e políti-
co do movimento
a manifestação na formação
coreográfica destes perturbadores
aconteceu eventos. E
por meio do ato-parado.
Naquele momento, eu senti que as peças tinham uma qualidade
espontânea, afinal não havia ocorrido qualquer discussão para
que se criassem trabalhos baseados na dramaturgia do parado.
Mas a sucessão de atos-parados parecia sugerir uma crise súbita
da imagem da presença do dançarino (no palco e no mundo)
como um serviçal do movimento. O ato-parado, a exaustão da
dança, abria a possibilidade de pensar a autocrítica da dança
experimental contemporânea como uma crítica ontológica e,
mais além, como uma crítica da ontologia política da dança.
 A aboli
abolição
ção do alinh
alinhament
amentoo até então inqu
inquestion
estionável
ável da danç
dançaa
com o movimento
ticipação iniciada
do dançarino pelo ato-parado
no projeto reconfigura
de mobilidade moderno:a par-
ela
inicia uma crítica performativa de sua participação na economia
geral da mobilidade que informa, reproduz e dá suporte às for-
mações ideológicas da modernidade capitalista tardia.

16. O homem em questão


questão é o crítico e programador francês Jean-Marc Adolphe.

47
 

Os capítulos a seguir podem ser lidos em qualquer ordem,


mas eu devo delinear a progressão temática principal entre
eles. Cada capítulo investiga um elemento particular que eu
creio
ografiasernaimportante para uma
ontologia política dacrítica da participação da core-
modernidade.
No próximo capítulo, eu discuto alguns elementos e forças
não cinéticas que são intrínsecas à coreografia e que têm perse-
guido suas condições de possibilidade tão fortemente quanto
o próprio desejo de se mover. Estes elementos e forças são: a
voz do mestre morto, a relação entre coreografia e o que Jac-
ques Derrida chamou de “força ilocucionária ou perlocutória”
perlocutória”
no cerne da lei (Derrida, 2010: 11), a natureza solipsista do
estúdio de dança e o desejo homossocial masculino no co-
ração do coreográfico. Eu identifico estas forças numa série
de filmes criados pelo artista visual Bruce Nauman no final
dos
vazioanos 1960, nos quais
rigorosamente ele aparece
executando sozinho
passos em seu estúdio
predefinidos. Minha
leitura desses filmes considera a força de assombração [haun-
ting ] do coreográfico, uma força que elimina o tempo linear
e que sempre irrompe quando certas condições de subjetiva-
ção são cumpridas. Daí eu analiso duas obras dos coreógrafos
contemporâneos europeus Juan Dominguez e Xavier Le Roy
nas quais o solipsismo e a masculinidade são ativados numa
crítica do coreográfico que reimagina o corpo masculino do
dançarino em relação à linguagem (Juan Dominguez) e em
seu investimento nos devires (Le Roy).
O capítulo 3 expande algumas noções exploradas no capí-
tulo 2 através
 Jérôme da quais
Bel, nas análisepesa
de várias peçasodo
sobretudo usocoreógrafo francês
da repetição, da
imobilidade e da linguagem. Eu proponho que a materialida-
de linguística do corpo proposta por Bel, uma vez associada
à deflação de movimento que é também emblemática de seu
trabalho, permite a identificação de efeitos paronomásticos
que reinauguram a relação da coreografia com a temporali-
dade, aproximando assim o trabalho de Bel às filosofias de

48
 

Heidegger e Derrida. Eu sugiro também que o trabalho de Bel


opera temporalmente de acordo com o que Gaston Bachelard
chamou de uma “ontologia lenta”,
lenta”, a qual desconfia da estabili-
dade das formas,
privilegia recusa uma aos
uma aproximação estética da geometria
fenômenos como e,campos no lugar,
de
força e sistemas de intensidade.
Minha leitura do trabalho de Bel introduz um enquadra-
mento teórico para a crítica da representação que eu adoto no
capítulo 4, quando passo a focar em duas peças de duas core-
ógrafas bastante diferentes: a norte-americana risha Brown
e a espanhola La Ribot. Aqui, tenho interesse em investigar
como cada uma delas engaja-se num diálogo direto com as ar-
tes visuais de modo a reconfigurar aquilo que consiste o chão
ou fundamento da dança. Eu observo como a obra It It’s’s a Draw/ 
Draw / 
Live Feed  de
 de Brown articula uma crítica da verticalidade
ver ticalidade a par-
tir da crítica
invoco à pulsão
as leituras masculinista
de Rosalind Kraussnadapintura de Pollock.
noção do Eu
informe em
Georges Bataille e a revelação de Henri Lefebvre sobre a “erec-
tilidade” que se articula na formação arquitetônica de “espaços
abstratos”, considerando assim como Brown cria seu espaço
ao confundir relações normativas e disciplinares entre dança
e desenho. Minha leitura da performance de longa duração
Panoramix  de  de La Ribot introduz o oblíquo como espaço de
provocação dismórfica diante do favorecimento arquitetônico
do vertical. O trabalho de La Ribot,
Ribot, entretanto, acrescenta a
questão fenomenológica do peso do olhar, a qual suplementa
o apego à perspectiva que Brown mantém em sua performan-
ce de
 Já que a subjetividade. moderna propõe um “ser-para-o-
It’s a Draw/Live Feed 
-movimento”” vagando por campos colonizados e racializados,
-movimento
qualquer crítica da ontologia política da dança invariavelmen-
te implica uma crítica de como mover num solo devastado
por injúrias racistas e pilhagens colonialistas. No capítulo 5,
eu constato o tropeço como termo mediador entre a política e
a cinética ao fazer uma leitura de Frantz Fanon
Fanon no seu famoso

49
 

capítulo L’expérience vécue du Noir  (1967)


 (1967) e relacionando-o às
práticas paracoreográficas do artista de performance William
Pope.L. Sugiro que as rastejadas
ras tejadas de Pope.L revelam uma imen-
sa
lo força coreopolítica
que Paul quando“uma
Carter chamou colocados em do
política relação
chão”com a qui-
aqui-
(Carter,
1996). E sustento que tal política do chão reconfigura a crítica
da ontologia em Fanon. Eu proponho o esforço sobres obre o plano
sagital na performance de Pope.L como um abrandamento do
cinético que diretamente responde e profundamente interpela
o neocolonial que nos rodeia e nos atravessa.
Observar os modos como o colonialismo e a coreografia –
estas facetas do ser-para-o-movimento cinético moderno – de-
pendem de uma determinada política do chão revela aqueles
movimentos desencadeados pelos “corpos mal enterrados da
história”, os corpos que Avery Gordon acredita assombrarem
[poderosas
haunt ] a epistemologia,
(Gordon, 1997). como forças éticas
No capítulo 6, eueme
críticas muito
detenho no
solo uma misteriosa Coisa disse e.e. cummings , de Vera Mante-
ro, de modo a repensar a melancolia pós-colonial. Dou ênfa-
se especial à ética da lembrança e do esquecimento, na rela-
ção com os estudos críticos de raça (particularmente em José
Muñoz) e com o projeto ontológico da coreografia. Ao focar
as particularidades de um solo criado na última nação euro-
peia abertamente imperial, Portugal, eu procuro mostrar a
centralidade do Outro racializado como fonte de energia para
a mobilidade coreográfica em geral. O livro conclui com uma
breve nota, onde trato do “projeto da melancolia” na moder-
nidade
projeto (Agamben,
nas recentes1993) de modo
concepções a mapeardaocoreografia
ontológicas impacto deste
nos
estudos da dança e da performance, e onde eu proponho uma
modalidade alternativa de tempo e um tipo diferente de afeto
para estas duas disciplinas.

50
 

I
MASCULINIDADE,
SOLIPSISMO, COREO GRAFIA
BRUCE NAUMAN, JUAN DOMINGUEZ,
XAVIER
XA VIER LE ROY 

Se desejarmos entender e descrever corretamente


essa performance e sua temporalidade em parti-
cular precisamos largar mão completamente da
terminologia da causalidade, memória e expecta-
tiva, e representação (Carr, 1986: 36).

O lugar da dança circula através do tempo, as-


sombrando tanto o real como o imaginário (Lou-
ppe, 1994: 13).

Sofrer assombração é estar preso aos efeitos his-


tóricos e sociais (Gordon, 1997: 190).

 Assombrando17  o lugar temporalmente circulatório da


dança e desafiando as lógicas da representação e do princípio

17. Em inglês: haunting , verbo que denota as ações de um fantasma no mundo dos vivos
(perseguir, assombrar, possuir, obsidiar etc.). O uso do conceito de “ haunting ” na teo-
ria crítica anglo-saxã é muito difundido e sua força é particularmente importante neste
livro. Mas trata-se de um uso (e de um termo) particularmente difícil de traduzir. Jac-
ques Derrida (1994), em Espectros de Marx , inventa o conceito de hauntology  [ [hantologie ],],
um neologismo unindo “haunting ” e “ontology ”, ”, que se refere à indecidibilidade do ser
como uma disjunção temporal, histórica e ontológica na qual a presença é continuamente
continuament e
substituída por sua não-origem ausente; de fato, o ser como um fantasma: nem presente
nem ausente, nem corpo nem alma, nem dentro nem fora, nem presente nem passado,
 

de causalidade, move-se uma subjetividade particular, a qual


é ontohistoricamente fundamental à coreografia ocidental:
o macho dançarino solitário. Este capítulo cruza os tempos
históricos da dança
do surgimento para examinar
da coreografia os ecos
ocidental contemporâneos
– desde o manual de
dança Orchesographie  (1589)
 (1589) de Toinot-Arbeau – como uma
máquina de subjetivação do começo da era moderna em que o
solipsismo masculino é um elemento essencial. Logo, todas as
peças analisadas neste capítulo trazem homens movimentan-
do-se solitários em espaços explicitamente fechados e vazios
– quartos fechados, estúdios fechados, cômodos fechados, vá-
cuos sombrios onde a solidão assombrada [haunted solitude ],
], a
absorção da vontade e a precisão na execução juntam-se para
criar o que só podemos descrever como excesso solipsista. É o
caso dos experimentos paracoreográficos de Bruce Nauman do
final dos anos
ted Manner 1960,the
Around particularmente
Perimeter
Pe Walking in an Exaggera-
 [Andar
 [Andar
rimeter of a Square  de Modo
Exagerado Ao Redor do Perímetro de um Quadrado] (1967-
8),18  Dance or Exercise on the Perimeter of a Square   [Dança
ou Exercício no Perímetro de um Quadrado] (1967-8),19  e o
lindamente pueril exercício antigravitacional Revolving Upside
nem vivo nem morto. No livro de Derrida, a força da espectralidade vem tanto de Marx
e Engels (quando estes afirmam no  Manifesto do Partido Comunista  que  que um “espectro
ronda [hante ] a Europa – o espectro do comunismo”), quanto do Hamlet de Shakespeare
(o qual, assombrado pelo fantasma do pai, apreende com certa clareza a “disjunção do
tempo” ao asseverar: “ime is out of joint ”).
”). Derrida recupera a ideia da disjunção do
tempo e da história em Hamlet e a força do espectral em Marx e Engels para referir-se

 justo à heterogeneidade
múltiplas temporalidades,dauma
presença
ideia efundamental
do presente,paraambos habitados eo assombrados
assimilarmos modo como por Le-
pecki conceitua “coreografia” aqui, bem como sua compreensão do próprio “dançarino”,
sempre possuído e animado por espectros de dançarinos ausentes. A traduçãotraduçã o de haunting  
na edição brasileira de Espectros de Marx  é  é “obsessão” na forma substantiva e “obsidiar”
na forma verbal. Em Exaurir a Dança , entretanto, decidimos usar “assombração” e “as-
sombrar”, que além de traduzirem o verbo hanter  (francês)
  (francês) e haunt  (inglês),
 (inglês), acreditamos
evocar a performatividade e o afeto
afet o do espectral de modo mais objetivo
ob jetivo do que “obsessão”
ou “obsidiar”. (N..)
18. Filme, 16 mm, preto e branco, silencioso, 400 pés, pés, aproximadamente
aproximadamente 10 minutos.
19. Filme, 16 mm, preto e branco, som, 400 pés, aproximadamente 10 minutos.

52
 

Down [Girar de Cabeça para Baixo] (1969).20 Igual é o caso


do absolutamente autocentrado e textual  AGSAMA (2003),
de Juan Dominguez, e do divertido Self Unfinished  [Eu
  [Eu Ina-
cabado] (1999)
lhos rastreia de Xavier
como Le Roy.
os efeitos Roy . Minhasociais
históricos, leituraedestes
des tes traba-
ontológicos
da coreografia assombram [haunt ] a (e são assombrados pela)
masculinidade solipsista.
O solipsismo na coreografia reflete sua condição dúbia na
filosofia. Para pensar a ambiguidade filosófica do solipsismo,
concentro-me particularmente nos breves comentários sobre
o tema no ractatus Logico-Philosophicus   de Ludwig Witt-
genstein (proposições 5.6 a 5.6331, Wittgenstein, 1968), nos
quais o filósofo austríaco identifica o solipsismo no centro da
relação do sujeito metafísico com a experiência, revelando
inesperadamente o solipsismo para o mundo. As proposições
de Wittgenstein
precisamente no ractatus 
no ponto crítico  nos possibilitam
em que pensar
o solipsismo que aé
vincula
subjetividade à lógica da linguagem, que o coreográfico – isto
é, a tecnologia que liga o moderno “ser-para-o-movimento” à
escrita – decididamente alinha-se com a filosofia para simulta-
neamente gerar e criticar a masculinidade solitária.
Estas observações preliminares exigem uma fundamenta-
ção mais clara. Começo por destacar os experimentos paraco-
reográficos do artista visual Bruce Nauman nos seus filmes em
vídeo e 16mm. Ao completar sua pós-graduação em pintura e
escultura na Universidade da Califórnia em Davis, em 1966,
Nauman começa a criar fotografias, esculturas e filmes toman-
do o próprio
Coosje corpo como
van Bruggen defineelemento central.
1966 e 1967 como A crítica de arte
o período em
que “Nauman começa a desenvolver uma forte consciência
corporal” em seu trabalho (van Bruggen In: Morgan, 2002:
43). A “consciência corporal” de Nauman gerou três séries
de trabalhos significativamente divergentes, embora comple-

20. Vídeo, preto e branco, silencioso, 8 minutos.

53
 

mentares: moldes corporais (o belo From Hand to Mouth [Da


Mão à Boca], 1967); estruturas ocupadas pelo corpo móvel
do espectador (o inquietante Performance Corridor  [Corredor
 [Corredor
da Performance],
performativo, 1969);
do seu e um
próprio intrigante
“corpo como uso, maispara
critério elusivo
medire
seus arredores” (Bruggen In: Morgan, 2002: 43). Desta tercei-
ra série, algumas performances foram executadas em galerias
(como Performance (Slightly Crouched)  [Performance (Leve-
mente Agachado)], 1968) enquanto outras foram gravadas em
vídeo e filme. Meu interesse é nestas últimas, as performances
filmadas de Nauman (1967-9), pois elas revelam, de forma
extraordinária, como a coreografia vem assombrar [haunts ]
sempre que seus elementos ontohistóricos são convocados.
Os filmes de ateliê de Nauman, primeiramente filmados
em seu ateliê na Califórnia (1967-8) e mais tarde em Nova
 Y
 York
ork (1968-9),
paços esvaziados,retratam Nauman
abandonados, movimentando-se
executando em es-e
séries rigorosas
obsessivas de ações centradas em seu próprio corpo, conscien-
temente isolado, e as relações do seu corpo com o movimento,
o som, a anatomia, a linguagem, o equilíbrio, o espaço, a mas-
culinidade e a dança. Nauman: “Eu pensava nelas como pro-
blemas de dança sem que eu fosse um dançarino” (entrevista
com Willoughby Sharp In: Kraynak, 2003: 142).
 Alguns críticos avaliam que a relação de Nauman com a
dança deriva da sua “dívida com a dança experimental da pri-
meira metade dos 1960, na qual o significado e os materiais
mais básicos da dança foram escrutados” (Kraynak, 2003: 15).
 Janet
ciadosKraynak refere-se
ao movimento especificamente
Judson aos da
Dance Teater coreógrafos
Nova York assdo
asso-
o-
início dos anos 1960 – em especial Yvonne
Yvonne Rainer. A curadora
e crítica de arte Susan Cross também defende uma influência
do movimento Judson sobre Nauman (Cross, 2003: 14). Situ-
ar Nauman diretamente no contexto da dança contemporânea
da década de 1960 é uma alegação historiográfica provocan-
te e cada vez mais comum em contextos distintos e inespe-

54
 

rados. Numa entrevista com Eric de Bruyn, o artista visual


Dan Graham relembra como “em São Francisco, aquela era a
época de La Monte Young, erry Riley (que influenciou Steve
Reich),
os quaisedesenvolviam
de dançarinostrabalhos
como Simone Forti e Bruce
no workshop [sic],
Nauman
de Anne
Halprin”” (Graham; de Bruyn, 2004: 110, grifo meu).
Halprin me u). Colocar
Nauman no estúdio de Halprin, como fez Graham, é algo
fora do comum. Até minha leitura desta menção,21  absolu-
tamente nenhuma das pesquisas realizadas para este capítulo
até então haviam indicado qualquer participação de Nauman
no famoso (e até mesmo inaugural, no que concerne o Judson
Dance Teater) estúdio de dança de Halprin.22 Eventualmen-
te, eu recebi duas confirmações independentes de que Nau-
man não havia de fato participado do workshop de Halprin
– primeiramente de Constance M. Lewallen, curadora-chefe
do Berkeley
depois Art Museum,
diretamente da Universidade
do estúdio da Califórnia,
de Bruce Nauman, através dae
Galeria Donald Young.23 Com estas refutações, a lembrança
de Graham adquire um sugestivo contorno de lapso de me-
mória – que por sua vez sintomatiza esse desejo recente de
restabelecer uma relação de Nauman com a dança. Ao chamar
Nauman de dançarino e localizá-lo numa das principais ori-
gens do movimento estético de Judson, o lapso de memória
de Graham faz ressoar o desejo de Kraynak de recompor uma
relação de Nauman com a coreografia e de incluir o artista na
21. Meu agradecimento a Ramsey Burt por me apontar esta
esta entrevista.

22. fizeram
Membros do Judson
aula com Judson Dance
Halprin Teatre,
em seu bem como
workshop de Sãoartistas próximos
próximos
Francisco ao movimento,
incluem que
Yvonne Rainer,
Ruth Emerson, Simone Forti, Robert Morris, risha Brown e La Monte Young. Mais
tarde, Meredith Monk também fez aulas com Halprin (ver Banes, 1993: 141-2; Banes,
1995: passim). Janice Ross escreve: “Para Halprin, era da dança moderna institucionaliza-
da e de todas as suas leis de representação, teatralidade e ilusão” que ela queria fugir (In:
Banes e Baryshnikov, 2003: 29). A rejeição de Halprin da teatralidade e das sufocantes
regras da representação antecipam o posterior alinhamento de Rainer com co m o minimalismo
e a rejeição explícita da ilusão e da representação conforme registrada famosamente em
seu “NO Manifesto”.
23. Meu agradecimento a Jenn Joy por sua ótima pesquisa sobre esse assunto.

55
 

grande narrativa da dança pós-moderna norte americana. Mas


este impulso é perturbador, pois que atribui ao movimento
 Judson um papel totalitário em relação a outras formas de pes-
quisa experimental
“Lembrar” do movimento
de Nauman nos EUA
onde ele nunca doschamá-lo
esteve, anos 1960.
de
dançarino pós-moderno, ou alegar uma “dívida”
“dívida” sua para com
o movimento Judson de certa maneira impede uma leitura
alternativa das funções específicas que o coreográfico muito
especialmente assume em seu trabalho.
Coosje van Bruggen, num texto de 1988, enfatiza a qua-
lidade pedestre das “danças” de Nauman (a qualidade “pe-
destre” é uma das características definidoras da dança de Ju-
dson), mas pelo menos a autora não estende as influências
de Nauman a uma suposta “dívida” com Judson. A rigor, ela
descreve a relação de Nauman com a dança durante o perí-
odo
MercedosCunningham
seus filmes
Cunningh am de
e aoateliê como
uso que esteefeito
fazia de
dossua atenção a
movimentos
cotidianos e de dançarinos não-treinados na primeira meta-
de da década de 1950, no Brandeis University Creative Arts
Festival (1952) (Bruggen In: Morgan, 2002: 50). E quanto a
Nauman? O que ele pessoalmente tem a dizer sobre sua rela-
ção com a dança? Em 1972, em entrevista a Lorraine Sciarra,
Nauman relembra o que lhe passava à cabeça enquanto tra-
balhava nos seus filmes de ateliê:
Eu conheci Meredith Monk, que era dançarina em São
Francisco. Ela havia visto parte dos trabalhos [os seus
lmes de ateliê] na costa leste e nós conversamos um
pouco, foi muito bom conversar com alguém sobre isso.
Porque de alguma maneira eu pensava no que eu fazia
como um tipo de dança, pois eu conhecia algumas das
coisas que Cunningham havia feito e outros dançarinos
também, onde você pode pegar qualquer movimento
comum e transformá-lo em dança, pelo simples fato
de apresentá-lo como tal. Eu não era dançarino, mas
de certo modo pensei que, se eu pegasse coisas que eu

56
 

não sabia fazer e as levasse muito a sério, então que elas


também seriam levadas a sério (Entrevista com Lorraine
Sciarra In: Kraynak, 2003: 166).

Há uma clara relação estabelecida com a dança na lem-


brança de Nauman sobre seu processo de trabalho nos filmes:
“de alguma maneira eu pensava no que eu fazia como um tipo
de dança”. Mas talvez mais clara ainda seja sua hesitação  em
definir o que ele pensava estar fazendo, bem como em definir
suas influências, linhas de transmissão estética e débito auto-
ral. A hesitação de Nauman solicita um certo comedimento
em relação às declarações que afirmam uma direta influência
de Judson em seu trabalho. Nauman não nomeia aqueles “ou-
tros dançarinos” que podem tê-lo influenciado na costa oeste.
Confirmando o argumento mais prudente de van Bruggen,
Nauman
seu interesse
de fato
pelosrefere-se,
experimentos
durantedeaCunningham
entrevista de do
1970,
início
ao
da década de 1950 (eventualmente, em 1969, Nauman dese-
nharia o cenário da peça read , de Cunningham, que estreou
em 1970). Mas, na mesma entrevista, ele também afirma que
“a primeira vez que eu realmente conversei com alguém sobre
consciência corporal foi no verão de 1968” (“Entrevista com
Bruce Nauman, 1971 (Maio de 1970)”, Willoughby Sharp
In: Kraynak, 2003: 142). Nauman referia-se aqui a Meredi-
th Monk, que na época encontrava-se em São Francisco. 24 As
alegações sobre uma dívida de Nauman com o movimento
 Judson são embasadas numa sincronicidade
sincronicidade histórica, mas elas
são contraditas
rações a respeitopelo silênciodedoseu
da relação próprio artista
trabalho comem suas decla-
a dança e em
particular com a vibrante cena da dança nos EUA ao longo

24. Em 1969, Nauman fez uma versão a três do seu filme de ateliê Bouncing in the corner
corner,,
No. 1  (1968) com sua mulher à época, Judy Nauman, e Meredith Monk, na exposi-
ção Anti-Ilusions: Procedures/Materials 
Procedures/Materials  (1969)
 (1969) no Whitney Museum of American Art, em
Nova York.

57
 

dos anos 1960. Será que o problema aqui não surge de um uso
acrítico da palavra “dança”?
Então, como reformular esse problema? A despeito de
quem
Manningprocriou quem (umadescarta
acertadamente questãocomo
que a insuportavelmente
historiadora Susan
edipiana, de tão persistente e obsessiva que é na historiografia
da dança [2004: 13]), o fato é que ao romper o inverno de
1967/1968, Nauman começou a trabalhar numa série de fil-
mes e vídeos aonde ele aparece executando movimentos muito
precisos em seu ateliê vazio. A qualidade hiperbólica da pre-
sença solitária de Nauman é extraordinária em si mesma, e ela
só aumenta na medida em que assistimos sucessivamente os
mais de vinte filmes e vídeos criados durante os anos 1967-
1969. O que é verdadeiramente notável nos filmes de ateliê de
Nauman é a inquietante, embora explícita, emergência não ne-
cessariamente da dança,metódica
pela execução rigorosa, mas sim edomonomaníaca
coreográfico de
– sinalizada
Nauman
de uma série de passos previamente estabelecidos. omemos,
por exemplo, Walking in an Exaggerated Manner Around the
Perimeter of a Square  (preto
 (preto e branco, filme em 16mm, 1967-
8).  Anotemos seus movimentos. Coreografemo-los.
25

Encontre um aposento vazio. ranque-se lá dentro. Como


no teatro, defina um boca de cena e limpe o chão ao centro.
Encoste um espelho retangular não muito pequeno na parede
do fundo, seu lado mais estreito no chão, virado para o espa-
ço aberto, mas sem refletir ninguém. Marque com fita crepe
branca um quadrado de aproximadamente três metros sobre o
chão. Por dentro
lados paralelos ao deste quadrado,
primeiro, marque
mantendo umaoutro menor,
distância com
aproxi-
mada de 30 centímetros entre eles. Coloque-se de pé sobre
um dos lados do quadrado de fora, com um pé na frente do
outro, calcanhar contra o dedão, como numa corda bamba.
25. As datas nos filmes e vídeos
vídeos de Nauman sãosão por vezes contraditórias e podem variar
a depender das fontes consultadas. Eu sigo aqui a “Videografia” de Nauman listada em
Bruce Nauman, de Robert C. Morgan (2002).

58
 

Comece a andar calmamente, colocando um pé sempre na


cola do outro, certificando-se que ambos permaneçam sempre
em cima da fita branca, enquanto você ondula os quadris de
modo muito exagerado
car levemente arqueada,com cada passo
projetando (facilita
a barriga se afrente,
para lombarcom
fi-
uma aparência meio ridícula). Ao completar um perímetro
inteiro, reverter a ação, caminhando para trás de modo exa-
gerado, colocando um pé atrás do outro, calcanhar encostado
aos dedos. Ao completar outro perímetro inteiro, reverter e
caminhar novamente para frente. Repetir.
Repetir. Ad nauseam. (Nota:
deixar um banquinho vazio ao lado daquele espelho encostado
na parede e que nada reflete, para o caso de não haver certeza
absoluta, apesar da aparência, de se estar realmente sozinho no
aposento vazio.)
Descrever a coreografia metódica de Nauman neste filme
silencioso
quer um édecapaz
dez minutos é quase
de executar. sugerir
Mas uma dança
será mesmo? que qual-
Como mui-
to da arte de performance do final dos anos 1960 e começo
dos 1970, a questão não é exatamente se qualquer um pode
executá-la ou não, ou mesmo se “qualquer coisa é possível”
– para citar o subtítulo de um livro sobre a dança dos anos
1960 (Banes e Baryshnikov,
Baryshnikov, 2003) – mas sim sondar o que se
pode produzir – fisicamente, subjetivamente, temporalmen-
te, politicamente, formalmente – sempre que alguém decide
seguir estrita e metodicamente um programa preestabelecido
até suas últimas consequências. No caso dos filmes de ateliê de
Nauman, é muito claro que, seja qual for o programa, ele deve
ser seguido minunciosamente até o fim. Kraynak observa que
todos os Filmes de Ateliê de Nauman, com a execução preci-
sa das tarefas delineadas em seus títulos, constituem essencial-
mente a demonstração de um conjunto de instruções . Em outras
palavras, eles retratam não simplesmente o corpo, mas tam-
bém a partitura coreográca: o que pode ser entendido como
a linguagem do movimento (Kraynak, 2003: 17, grifo meu).

59
 

Permaneçamos por um momento no vínculo associati-


vo estabelecido por Kraynak entre a demonstração de “um
conjunto de instruções” e a apresentação de uma “partitura
coreográfica” como ade“linguagem
percurso associativo do movimento”.
Kraynak é entender Seguir
coreografia comoo
o meio pelo qual instruções podem ser claramente demons-
tradas, inteiramente realizadas, tornadas visíveis. Kraynak liga
coreografia ao problema da obediência, à questão da lei e à
misteriosa capacidade da coreografia de visibilizar e presen-
tificar forças e vozes de comando de outro modo ausentes.
Ora, se este for o caso – se a coreografia demonstra e torna
presente a força de lei – então a inclusão da palavra “lingua-
gem” no final da sequência associativa de Kraynak complica
a questão. Pois essa inclusão não tem procedência lógica nem
etimológica, já que “coreografia” não é, e jamais pode ser, “a
linguagem
(uma escritadoque
movimento” 26
 – antes,
ou bem precede trata-se da
o movimento, ouescrita dele
se organiza
depois dele).27  Mas então, onde a linguagem se equivale ao
coreográfico, à escrita do movimento? Minha sugestão é que,
ao invocar a “linguagem” após definir o coreográfico como a
execução cuidadosa e dedicada de um conjunto de instruções
preestabelecidas, a frase de Kraynak revela a linguagem como
análoga à coreografia apenas naqueles casos estritos em que a
fala pode ser classificada de performativa – particularmente
naqueles casos em que o efeito perlocucionário do ato de fala
põe corpos em movimento (no proferimento perlocucionário
a “fala produz efeitos, mas não é ela mesma o efeito” [Butler,
1997b: 39]). Os experimentos coreográficos de Nauman reve-

26. Para uma crítica da noção de movimento


movimento como “linguagem” na dança ver a discussão
de José Gil (1997) sobre a “infra-linguagem”
“infra-linguagem” em Metamorfoses do Corpo.
27. Mark Franko observa que, embora desde o século século XVI a “dança
“dança seja frequentemente cha-
mada de linguagem, os efeitos dos passos e movimentos na comunicação de uma mensagem
não é tratada e nem seus possíveis valores como signos são levados em conta” (Franko, 1986:
8). A distinção entre linguagem e escrita que estou propondo agora será particularmente
relevante quando eu discutir o efeito espectral da escrita dentro do coreográfico.

60
 

lam a linguagem agindo sobre e através do corpo; eles expõem


como a linguagem mobiliza.
Kraynak constata como nos filmes de ateliê “todo o processo
épor
gerado
assimadizer”
partir(Kraynak,
de um enunciado linguístico:
2003: 23). uma instrução,
al enunciado-instrução
al
é sempre manifesto no título de cada peça. Cada filme de Nau-
man “performa” ou “faz” o que seu título anuncia. O título ga-
nha uma autoridade autoral, definindo um espaço muito restri-
to para o comportamento e o ser.28 Kraynak sagazmente sugere
que os títulos de Nauman para seus filmes de ateliê operam
precisamente aquilo que J. L. Austin chamou de “performati-
vos perlocucionários”, indicando assim o interesse de Nauman
pelos aspectos “de ação” da linguagem, sua função não-consta-
tativa: “Devemos distinguir o ato ilocucionário do ato perlo-
cucionário. Por exemplo, devemos distinguir entre ‘ao dizer tal
coisa eu o estavaouprevenindo’
ou surpreendi, prevenindo ’ e ‘por
o fiz parar’” dizer1990:
(Austin, tal coisa
96).euÀosagacidade
convenci,
de Kraynak eu gostaria de acrescentar que “por dizer” (o título)
Nauman “convenceu-se” e “fez-se ir” (irrecusavelmente, como
sob comando), expondo assim uma essência ess ência estranhamente co-
reográfica no cerne do ato de fala perlocucionário.
 As ações cuidadosamente executadas de Nauman – precisa
e metodicamente dando corpo e movimento a um conjunto
de instruções prévias – revelam uma força de comando tanto
na linguagem como na coreografia. Ou melhor, elas revelam
como a relação entre linguagem e coreografia é uma relação
mediada pela força. Quando Nauman caminha de uma ma-
neira exagerada
dicadamente ao longo do
obedecendo perímetro
ao título de um
da peça como quadrado, de-
organização
imperativa de sua motilidade, ele expõe as tensões e fissuras na
“relação entre a força e a forma, entre a força e a significação,
[...] força performativa, força ilocucionária ou perlocutória”,

28. Sobre a função de comando nos títulos de esculturas


esculturas e desenhos de Nauman,
Nauman, ver o
ensaio de Paul Schimmel “Pay Attention” (in. Simon, 1994).

61
 

para usar as reflexões de Jacques Derrida sobre o “caráter dife-


rencial da força” (Derrida, 2010: 11).
O que significa submeter-se compulsoriamente à força de
um proferimento
ográfica perlocucionário,
como programa seguir
inescapável? Umaumaresposta
demanda core-
possível
seria: sujeitar-se a uma estrutura de comando, seguir as regras
do jogo, ceder à força citacional do ato de fala proferido sob
o signo da lei – uma força que sempre precede e determina a
entrada de um indivíduo na subjetivação/subjetividade. Mas
talvez ainda existam outras formas de pensar esse desejo de
submeter-se tão completamente à execução perfeita de um co-
mando coreográfico. Em seu ensaio “Dance with the Law” (In:
Morgan, 2002), Jean-Charles Massera associa explicitamente
o coreográfico àquela aquiescência programática de Nauman
à lei. Mas ele propõe aquiescência à lei como um modo pelo
qual o cumprimento
submissão passiva, umadaobediência
demanda coreográfica vira nãoativa-
cega, mas a resoluta uma
ção de uma vontade, de um poder: “a lei é uma cadência, um
ritmo que circula pelos corpos. Quanto mais suas pulsões são
sincronizadas com o ritmo da lei, mais fácil será a execução de
uma tarefa” (In: Morgan, 2002: 178). Esta dança-conforme-
-à-lei, em nome da facilidade da expressão, é a cadência ideo-
lógica do coreográfico. Haveria uma associação histórica, e até
mesmo ontológica, entre o coreográfico, a escrita e a lei? Uma
associação, inclusive,
inclusive, onde o solipsismo e a masculinidade
girariam um ao redor do outro para estabelecer a ambiguidade
da coreografia com relação ao seu projeto para a subjetividade?
queCirculemos então no
a dança ocidental tempo
fundiu da ser
o seu dança
comatéa escrita
o momento em
para criar
o neologismo “orchesographie ” (uma escrita,  graphie , da or-
chesis , dança), título do famoso manual de dança de Toinot
 Arbeau, de 1589.29 Encontramos não apenas que a fusão da
29. O nome real do autor era Jehan abourot (1519-93). De 1542 até sua sua morte, a-
bourot serviu na Catedral de Langres, onde exerceu as funções de tesoureiro, juiz eclesi-
ástico e vigário geral. Os laços jurídicos e históricos entre a coreografia, o teológico e o

62
 

escrita com a dança em um novo vocábulo criou um nome


próprio para o “ser-para-o-movimento” moderno (Sloterdijk,
2002: 33),30  mas também que este ato léxico com implica-
ções corporais realizou-se
Em Orchesographie  graçasadvogado
, um jovem à solicitação de um
retorna deadvogado.
aParis
dvogado.
para
Langres para visitar seu velho mestre de “matemática”. Mas o
professor do advogado, Toinot Arbeau, não é só um mate-
mático, ele é também um padre jesuíta e um mestre de dança.
Capriol, o advogado, implora ao seu professor Arbeau, mestre
mes tre
de dança/padre/matemático, que o ensine a arte de dançar,
para que Capriol possa viver mais adequadamente na socieda-
de, ou, como ele mesmo coloca, para que “não seja difamado
por ter o coração de um porco e a cabeça de um burro” (Arbe-
au, 1966: 17). No momento crítico em que a dança encontra
seu destino como coreografia, vemos o trabalho coordenado
de um advogado
inaugural e de um padre.a relação
para considerarmos Eis aquiontohistórica
um poderosoda dueto
co-
reografia com a força de lei. Um casal de homens, dançando
dentro de um espaço psicofilosófico, teológico e sexualmente
específico [ gendered 
 gendered ],
], triangulado por discursos e disciplinas
bastante severas: matemática, religião, direito. O desejo do
 jovem advogado pela dança como modo de socialização ini-
cia um projeto que é tão cinético quanto textual, tanto social
quanto subjetivo, tanto corporal quanto escritural: orchesogra-
 phie . Na emergência de orchesographie  como
 como novo significante,
como prática, como vínculo tecnológico da dança com a escri-
ta, como laço pedagógico entre homens, como resposta a um
chamado
intrigantesdaassumem
e pela lei,
umalguns
papel fatores não-cinéticos
importante: bastanteo
a lei, a escrita,
ateliê recluso, a homossociabilidade pedagógica e, paradoxal-
mente (dado o casal dialógico), o solipsismo.

 jurídic o são portant


 jurídico p ortantoo bem mais do que meros
mer os floreios
floreio s narrativos
narra tivos ensaiados
ensa iados por
po r Arbeau,
Arbea u,
o alter ego de abourot.
30. Eu discuto o conceito de Sloterdijk na Introdução.

63
 

Capriol solicita aulas de dança para alcançar o que Erving


Goffman chamou de uma “representação do eu” socialmente
aceitável (Goffman, 1959: 17-79) – uma performance que da-
ria ao jovem advogado
heterossexual normativaingresso no teatro
da sociedade. O do
quesocial,
parecenainteres-
dança
sante, sob esse aspecto, é que Orchesographie  assegura
 assegura a possibi-
lidade da dança e do acasalamento heterossexual numa prévia
homossocialização pedagógica. Mais além, a socialização com
o mesmo-outro surge em Orchesographie  como como o modo espe-
cífico da coreografia acessar presenças ausentes. Não se trata
aqui de um efeito retórico. Em Orchesographie , o projeto de
dança-escritura, a arte nascente da coreografia, comporta uma
promessa espectral-tecnológica: a promessa de descobrir um
meio que permita o sujeito masculino transcender a presença
como aquilo que deve sempre estar presente. A conjuração do
neologismo “orchesographie 
ficante e permite ” libera
acesso direto a força espectral
a presenças ausentes.no signi-
A socia-
lização com aqueles que não estão exatamente lá é alcançada
sempre que um livro de dança é lido num aposento isolado.
Fazer um par com o espectral requer uma forma peculiar de
solipsismo masculino.
 ARBEAU: Em relação às danças antigas tudo que eu pos-
so dizer-te é que a passagem do tempo, a indolência do
homem ou a diculdade de descrevê-las roubou-nos todo
conhecimento sobre elas.
CAPRIOL: Presumo então que a posteridade permane-
cerá ignorante a respeito de todas as danças novas sobre
as quais me contaste, pelas mesmas razões que estamos
impedidos de conhecer as danças de nossos ancestrais.
 ARBEAU: Provavelmente, sim.
CAPRIOL: Não deixa que isto aconteça, Monsieur Arbe-
au, tens o poder de evitá-lo. Deita estas coisas na escrita
e capacita-me a aprender esta arte, pois ao fazer isto, tu
de alguma forma estarás reunindo-te às companhias da tua
 juventude , e ainda exercitarás o corpo e a mente, pois que

64
 

será difícil refrear pernas e braços na hora de demonstrar


os movimentos corretos. Em verdade, teu método de es-
crita é tal que um pupilo, ao seguir tua teoria e preceitos,
mesmo em tua ausência , poderá ensinar a si mesmo na re-
clusão do próprio aposento (Arbeau, 1966: 14, grifos meus).

Graças ao livro coreográfico, um estudante pode dançar


com o fantasma de seu mestre na reclusão do seu (antes vazio)
aposento. Graças ao coreográfico, um advogado poderá ofe-
recer seu corpo genuína e sinceramente a um devir-espectral.
Mais importante ainda: através deste devir, Capriol pode ca-
nalizar o afeto melancólico de seu mestre – para tanto, precisa
apenas conceder ao mestre mais uma dança, enquanto torna-
-se, por efeito da solitária dança-leitura, um daqueles idos
companheiros de juventude de seu mestre. Enquanto a dança  
é uma técnica de socialização, enquanto a dança é em si mes-
ma uma socialização, a coreografia , ao que tudo indica, é uma
tecnologia solipsista para socializar com o espectral, presen-
tificando a força do ausente no campo de desejo masculino.
O efeito coreográfico pode ser melhor definido agora como o
efeito espectral da escritura no campo de desejo masculino.31
Em Orchesographie , a escrita se torna uma tecnologia de
transporte, mais precisamente de teletransporte. O advogado
dançante e o padre dançante anteciparam Derrida em sua des-
crição do tipo de efeito telecomunicacional que a escrita pro-
duz. Em “Assinatura Evento Contexto”, Derrida identificou
um “tipo
“tipo de máquina” operando no coração da escrita, a qual

31. Refiro-me a um desejo que é expressado como primário na produção da “coreografia”


“coreografia”
como neologismo e tecnologia da escrita do movimento – uma produção que resulta do
encontro pedagógico entre dois homens. Isto não significa quequ e muitas das danças no livro
de Arbeau excluem mulheres. A rigor,
r igor, um dos objetivos sociais principais da dança do Re-
nascimento é ocasionar a socialização e o acasalamento heterossexual. Entretanto, exceto
como parceiras para a dança, as mulheres não exercem qualquer papel que seja no dueto
textual entre o padre e o advogado dançantes. O nascimento deste poderoso termo para
a modernidade – orchesographie  –
 – é resultado de um encontro homossocial e do desejo de
prender o objeto amado: o mestre.

65
 

ele associou à tecnologia da telecomunicação. Para Derrida, a


função telecomunicacional da escrita perturba profundamen-
te a noção de presença:
Qualquer escrita deve [...] para ser o que é, poder funcionar
na ausência radical de qualquer destinatário empiricamente
determinado em geral. E essa ausência não é uma modi-
cação contínua da presença, é uma ruptura de presença, a
“morte” ou a possibilidade da “morte” do destinatário ins-
crita na estrutura da marca (Derrida, 1991: 356).

Derrida conclui: “O que vale para o destinatário vale também,


pelas mesmas razões, para o emissor ou para o produtor” (1991:
357). É porque as mortes do produtor e do interlocutor são cons-
titutivas da dança que o apelo coreográfico pode ser enunciado.
“Deita estas coisas na escrita e me capacita a aprender esta arte,
pois ao fazer isto, tu de alguma forma estarás reunindo-te às com-
 panhia
 pan hiass da tua juventude ”,
juventude ”, pede Capriol, aparentemente identi-
ficando na escrita a possibilidade do devir-espectral. O advoga-
do percebe na coreografia uma performance da melancolia, um
mecanismo que impede o objeto amado de partir para sempre,
identificando assim uma essência mórbida no dançar em si. A
certeza da morte futura do coreógrafo, do mestre, do padre-escri-
tor dançante, torna-se central na criação do projeto coreográfico:
ler as danças permite a Capriol reunir-se mais uma vez com seu
mestre quando ele não estiver mais entre os vivos. A coreografia
vira aquilo que permite um advogado citar, transcrever, repetir
os gestos fundamentais, a presença ausente e a cadência da força
originária de uma dança. Retornamos assim à profunda conexão
entre coreografia e ato de fala performativo – ambos conseguem
impor ou forçar a si mesmos, mas apenas sob a condição de sua
citacionalidade (Butler, 1993: 12-16).32

32. Uma citacionalidade que Butler conecta, além do mais, à questão


questão da lei:
 A formação, a manufatura, o suporte, a circulação, a significação daquele corpo sexua-
do — tudo isso não será um conjunto de ações executadas em obediência à lei; pelo

66
 

Portanto, fundir dança e escrita não é simplesmente criar


um novo signo linguístico. Pois
Pois esta criação já é uma mobiliza-
ção particular da marca escrita rumo à sua capacidade teleco-
municacional de convocar
na primeira edição o espectral., Não
de Orchesographie  logo éacima
de admirar que
do brasão
do editor, lemos como epígrafe do livro um reconhecimento
explícito que o novo significante a fundir dança e escrita só
se sustenta por completo quando relacionado diretamente à
essência melancólica do coreográfico. A epígrafe diz: tempus
 plangendi, & tempus saltandi  –
 – tempo de lamentar, & tempo
de dançar (Eclesiastes, 3:4). O lamento de Capriol nas pri-
meiras páginas de Orchesographie   sugerem que a função do
conjuntivo “&”, na epígrafe de um livro cujo título já é con-
 juntivo, é plugar diretamente o tempo do lamento ao tempo
dos homens que dançam a presença ausente uns dos outros.
EstaNo
dança ocorre,
espaço não esqueçamos,
assombrado numcoreográfico,
do aposento aposento vazio.
o que a
escrita põe em marcha e faz funcionar mesmo após o desapare-
cimento de seu autor e de seu
s eu destinatário,33 é uma cadência e
uma produtividade no significante que pode simultaneamen-
te reiterar mas também reescrever o que já está escrito. Esse
contínuo reescrever gera a temporalidade da assombração,
dos fantasmas, dos espectros, da qual a coreografia participa.
Meu uso do termo “assombração” [haunting ] tem um duplo
sentido: o primeiro é a ênfase na função dos fantasmas no
“tempo de lamentar &/como tempo de dançar” coreográfico,
uma ênfase nessa capacidade que a coreografia tem de invo-
car presenças ausentes;
consideração o segundoparticularmente
da temporalidade sentido é o de propor uma
circulatória
iniciada pela habilidade da coreografia de obsidiar/assombrar

contrário, será um conjunto de ações mobilizadas


mobilizada s pela lei, será a acumulação citacional e a
dissimulação da lei produzindo efeitos materiais, será a necessidade vivida daqueles efeitos
e a contestação vivida daquela necessidade. (Butler, 2000: 166)
33. “Uma escrita que não seja estruturalmente legível – iterável
iterável – para além da morte do
destinatário não seria uma escrita” (Derrida, 1991: 356).

67
 

a história, como sugerido por Laurence Louppe na epígrafe a


este capítulo. Pois a assombração [haunting ] “é histórica, cer-
tamente, mas não é datada, nunca se deixa fixar docilmente
com umainstituída
a ordem data na sucessão de presentes,
pelo calendário” dia após
(Derrida dia, 4).
1994: segundo
34  Em

outros termos: a assombração [haunting ] bagunça o tempo e


causa aparições quando menos as esperamos – por exemplo,
a aparição do coreográfico numa série de filmes de um jovem
escultor em seu ateliê vazio na Califórnia.
Qual a função do ateliê nisso tudo? Com o dançarino re-
movido do campo social e confinado na privacidade (mal ou
bem, porém sempre) assombrada de sua estudiosa leitura, o
aposento solitário opera como um acumulador de subjetivida-
s ubjetivida-
de. Ao analisar a formação da subjetividade moderna, Francis
Barker aponta que por volta do século XVII, “a cena da escri-
tura e da 1995:
(Barker, leitura 2).
er a,Aassim
era, como o túmulo,
consolidação um lugar
deste novo lugarprivado”
privado
para leitura e escrita está em vias de acontecer quando Arbeau
escreve Orchesographie  nos  nos últimos anos do século XVI. Ba-
rker retrata o quarto que encasula o sujeito moderno como
um tipo de câmara espectral de ressonância onde, literalmen-
te, e por via daquela força telecomunicacional do livro, “mur-
múrios fantasmáticos podem ser ouvidos, zunindo por entre
os subterfúgios e evasões do emaranhado discurso do texto”
(Barker,, 1995: 2). A descrição de Barker ilustra perfeitamente
(Barker
como a coreografia, esta tecnologia da subjetividade moder-
na, necessita do espaço privado do aposento para as operações
espectrais
mado ateliêda(jámodernidade.
nessa época, Neste novo aposento
na Europa, um lugar privado cha-
perturbado-
ramente evocativo daquele onde repousam os mortos)35 não
achamos apenas a filosofia moderna – tal como na proposição
34. Para um esboço
esboço de uma sociologia e uma epistemologia da assombração
assombração [haunting ] ou
do espectral/fantasmático, ver Gordon (1997).
35. Para uma história da sepultura como espaço privado no Ocidente, ver Philippe Ariès
(1974, 1977, 1982) e Alain Corbin (1986).

68
 

de Descartes de uma origem metafísica da subjetividade cuja


verdade é constatada em solilóquio. Com Arbeau, a coreogra-
fia como escritura e como máquina de subjetividade a mediar
ausência e presença
no repouso encontra
da estudiosa suas condições de possibilidade
privacidade.
É assim que retornamos a Nauman em seu ateliê e obser-
vamos que, embora aparentemente vazio, o espaço de Walking
in an Exaggerated Manner around the Perimeter of a Square   é
completamente habitado por elementos coreográficos: o es-
pelho na parede, o esquadro de dança no chão e até o ban-
quinho do mestre. É por isso que eu devo discordar de van
Bruggen quando ela defende que nesta peça, bem como em
Dance or Exercise on the Perimeter of a Square  (1967-8),
 (1967-8), “o uso
do quadrado no chão é de certa forma arbitrário – poderia ter
sido um círculo ou um triângulo” (Bruggen In: Morgan 2002:
48).
“sirvaAinda que van Bruggen
para direcionar reconheçae que
os movimentos a formaosnoexercí-
formalizar chão
cios, dotando-os de mais importância como dança do que eles
teriam tido se Nauman tivesse simplesmente vagueado sem
direção” (2002: 48), minha visão é que a formalização em si
marca uma transição da dança em geral para o coreográfico
em particular. O esquadro é um índice fundamental da pre-
sença assombrada/persecutória do coreográfico – não só do
aposento de Capriol, mas da representação da pista de dança
de Raoul-Auger Feuillet em seu manual Choréographie  (1700)
 (1700)
como um quadrado vazio sobre fundo branco.36 Assim como
na descrição de Barker sobre os zunidos espectrais que assom-
bram [haunt ] o gabinete do filósofo, o ateliê de Nauman tam-
bém ressoa com os murmúrios do fantasma da coreografia, na
desordenada temporalidade da assombração.
Logo, retornamos a Nauman uma questão previamente
posta a Arbeau: qual seria a função do ateliê/aposento nos ex-
perimentos coreográficos de Nauman? Van Van Bruggen relata um

36. Eu discuto o quadrado de Feuillet no Capítulo 4.

69
 

incidente interessante que aparentemente precedeu os movi-


mentos confinados de Nauman em seu ateliê. Segundo van
Bruggen, certa vez Nauman contou a 
um amigo lósofo que ele imaginava-o [o amigo] pas -
sando a maior parte do seu tempo numa escrivaninha, a
escrever. Mas, na verdade, seu amigo exercitava o pensa-
mento enquanto fazia longas caminhadas ao longo do dia.
Isto fez Nauman perceber que ele próprio passava
passav a a maior
parte do seu tempo caminhando em seu ateliê, tomando
café. E então ele decidiu lmar isto – apenas o caminhar
(Bruggen In: Morgan, 2002: 47).

Nós já constatamos que há mais do que uma mera e ale-


atória caminhada nos filmes de ateliê de Nauman, que o ar-
tista formaliza a caminhada e que esta formalização é crucial
para o impacto de seus filmes não como danças, mas como
exercícios coreográficos. Mas há uma ironia na anedota acima
que van Bruggen deixa passar. Nauman imagina o ambiente
adequado da filosofia como um gabinete isolado e a cinética
da filosofia como uma postura pensativa. Ele imagina o filóso-
fo como um solitário escritor-pensador, um sujeito removido
do mundo, sentado silenciosamente em sua escrivaninha. Mas
eis que o filósofo é na verdade um andarilho (como Sócra-
tes, como Rousseau, como Nietzsche, como Débord, como
Deleuze e como Guattari). E não apenas o pensamento do
filósofo acontece graças à sua caminhada, mas o espaço de seu
caminhar-filosofar é ao ar livre, fora dos aposentos, na cidade
ou no campo. O irônico é que depois de ouvir tudo isso de seu
amigo filósofo, numa equivocada operação, Nauman trans-
forma a deriva filosófica ao ar livre em uma privada, reclusa, e
frequentemente37 metódica pisada coreografada em seu solitá-
37. Eu escrevo “frequentemente” porque alguns dos filmes de ateliê de Nauman
Nauman mostram o
artista caminhando de modo menos
meno s coreografado. É o caso particular de Playing a Note on
the Violin While I Walk Around the Studio (1967-8) e Violin uned D E A D  (1969).
 (1969). Entre-
tanto, considero significativo que nestes dois filmes a força perlocucionária do título não

70
 

rio ateliê. Ao invés de se lançar ao mundo, Nauman tranca-se


em seu ateliê vazio e realiza uma série de autocontidas, en-
clausuradas, solipsistas e coreográficas investigações – usando
a filosofia
Qual ocomo
papeldesculpa.
da filosofia no solipsismo coreográfico de
Nauman em seus filmes de ateliê? Ao escolher para seus expe-
rimentos um espaço confinado para a coreografia, o qual ele
avaliava equivalente ao espaço da filosofia, Nauman reconfigu-
ra seu ateliê como espaço cranial. Robert Morgan diz:
No caso dos primeiros vídeos em preto e branco, como
Revolving Upside Down (1969), a pura sicalidade do cor-
po, movendo-se no espaço ilimitável do ateliê do artis-
ta com suas propriedades tão escassamente atenuadas, é
transferida para um ato mental, o que Duchamp entendia
como cervelle , o “fato cerebral” (Morgan, 2002: 13).

Nauman explicitamente equaciona seus “atos mentais”


com o aposento privado numa extraordinária
e xtraordinária instalação, con-
temporânea de seus filmes de estúdio. Em 1968, ele criou uma
instalação de som com dois autofalantes num quarto vazio.
oda vez que alguém entrasse no quarto, os autofalantes gri-
tariam o título da obra: Get Out of My Mind, Get Out of Tis
Room [Saia da minha mente, saia deste quarto]. Então, para
Nauman, a mente é o quarto, assim como o quarto é a men-
te: ambos intimamente atados à linguagem por meio de um
ato de fala autoritário, mobilizador. Eis o espaço-pensamento
solipsista que Nauman constrói quando ele começa não só a
“caminhar em seu ateliê”, mas a executar cuidadosamente ca-
minhadas extremamente precisas: ao redor do perímetro de
quadrados, pulando sobre um pé, dançando padrões geomé-
se dirige ao movimento em si, mas sim à execução de uma outra tarefa (tocar o violino). O
outro único filme de ateliê que é significativamente acoreográfico
ac oreográfico (lidando explicitamente
com o acaso, o acidente e a improbabilidade do movimento) é Bouncing wo wo Balls between
the Floor and the Ceiling with Changing Rhythms  (1967-8).
  (1967-8). Mas esta última exceção tem
outra conotação bastante forte, a qual eu detalharei em seguida.

71
 

tricos. O coreográfico acontece em um espaço explicitamente


definido como solipsista, coreográfico e filosófico: o espaço do
pensamento em movimento.
de Se o quarto é ele
subjetividade umacumula?
acumulador
Em de subjetividade,
Bouncing quebetwe-
wo Balls tipo
en the Floor and the Ceiling with Changing Rhythms  [Quicar
  [Quicar
Duas Bolas entre o Chão e o eto com Ritmos Alternados]
(1967-8)38 vemos Nauman dentro do mesmo quadrado onde
ele dançou e caminhou de um modo exagerado – o esqua-
dro coreográfico abrigado pelo ateliê-acumulador
ateliê-acumulador.. Nesta peça,
Nauman engaja-se num experimento newtoniano altamente
energético: ele tenta manter duas bolas quicando sem parar
entre o piso e o teto do ateliê. Aqui, a precisão coreográfica
é quebrada devido à inabilidade do artista em obedecer ao
comando do título. As trajetórias e velocidades das duas bolas
escapam ao seu domínio.
surda, frustrante. As bolasAquicam
cena toda
pelotorna-se aleatória,traje-
ateliê seguindo ab-
tórias imprevistas, apesar do que prometem as leis da inércia
de Newton e a suposta previsibilidade da balística. Mais uma
vez encontramos Nauman envolvido em solipsismo, confina-
do a um espaço de não-relação, encenando um ato mental
em cima do esquadro coreográfico marcado no chão, todos
esses elementos ordenados de modo a unir física e esporte – o
campo de jogo da masculinidade normativa. Não é possível
afirmar que esse experimento submete-se à sujeição coreográ-
fica própria à cadência do comando. Aqui, não há cadência. O
mundo da física não é dócil, não se rende facilmente à força
perlocucionária
ao comando do do ato de fala, ao desejo do artista de obedecer
título.
BRUCE NAUMAN: De repente eu tinha duas bolas ao
mesmo tempo e corria para todo lado sem parar, tentan-
do pegá-las. Às vezes elas batiam em algo no chão ou no

38. Filme, 16 mm, preto e branco, som,


som, aproximadamente 10 minutos.

72
 

teto e desviavam para o canto e esbarravam uma na outra.


Finalmente eu perdi o controle das duas. Eu peguei uma
das bolas e simplesmente a joguei contra a parede. Eu es-
tava furioso.
 WILLOUGHBY SHARP: Por que?
BRUCE NAUMAN: Porque eu estava perdendo o con-
trole do jogo. Eu tentava manter o ritmo certo, com as
duas bolas quicando uma vez no chão e outra vez no teto,
e daí pegá-las, ou duas vezes no chão e uma vez no teto.
Tinha um ritmo rolando e, quando eu perdi o ritmo, na -
lizei o lme ([1971] in Kraynak, 2003: 147).

 A falta de ritmo, de cadência e de controle no movimento


em Bouncing wo Balls  é  é surpreendente quando comparados
ao caminhar cronométrico, calmo e controlado de Nauman
ao redor do mesmo quadrado, marcado por um metrônomo
em seu Em
1968). Dance or Exercise
Bouncing
Bounci ng wo on ls 
wo Balls 
Bal the Perimeterirrita-se.
, Nauman of a Square    (1967-
 (1967-
Percebemos
isso claramente no vídeo. Não admira portanto que meses de-
pois ele retorne ao problema do controle sobre duas bolas em
movimento. Só que desta vez ele as consegue dominar – por
via de um afastamento ainda maior do mundo e de um ater-
ramento mais profundo no domínio masculino do solipsismo
coreográfico, uma entrada mais definitiva na relação hiperbó-
lica com o eu-mesmo, num nível tal de hiper-homo-relacio-
nalidade que chega a beirar o narcisismo. Em Bouncing Balls  
[Quicar Bolas] (1969)39 Nauman resgata o título da peça que
tanto o irritara e usa uma câmera de alta velocidade para fil-
mar um close-up
no espaço de seus
de solidão testículos,
masculina, os quais elecoreográfico
o solipsismo golpeia. Aqui,
es-
correga para o masturbatório. Mas há outro detalhe no que
diz respeito à temporalidade: a ação propriamente de Nauman
golpeando seus testículos [“his balls ”,
”, em inglês] levou apenas
alguns segundos, mas por ter filmado em alta velocidade e

39. Filme, 16 mm, preto e branco, silencioso, 9 minutos.

73
 

depois conferido uma velocidade normal ao filme, o resultado


é uma imagem em câmera lenta extrema: uma ação original
de 6 a 10 segundos vira um filme de 10 minutos. Com este
efeito, Nauman alcança
dade” (Bruggen, umacontrariando
2002: 57), “suspensão do temponewtoniano.
o puxo e da gravi-
Fazendo pular suas “bolas”, Nauman
Nauman oferece uma imagem flu-
tuante da autossuficiência do desejo masculino como controle
solipsista do movimento.
Rosalind Krauss observou que, nos anos 1960, a questão
para Nauman era exercer pressão crítica e material sobre o pro-
 jeto moderno da escultura. Ao introduzir
introduzir,, não necessariamen-
te a dança, mas o coreográfico no campo expandido do escul-
tórico, Nauman “põe pressão sobre a noção que o espectador
tem de si mesmo como ‘axiomaticamente coordenado’
coordenado’ – como
estável e fixo em si e para si mesmo” (Krauss, 1981: 240). Em
outros
mente, termos, quando
ela perturba a escultura
o mito é produzida
axiomático coreografica-
da subjetividade au-
toestabelecida: subjetividade como masculinidade monádica,
como ser-para-o-movimento, como o imutável e localizável
“self”. Os experimentos coreográficos de Nauman não são
apenas estéticos: seu solipsismo e sua maníaca obediência à
lei satura a subjetividade masculina ao ponto do absurdo. Em
1969, isso culmina com o masturbatório Bouncing Balls  e  e com
o pueril Revolving Upside Down (1969). Neste último, o puxo
antigravitacional ensaiado em Bouncing Balls  por
 por meio da câ-
mera lenta agora é representado por uma inversão no eixo da
câmera, a qual cria a ilusão de que Nauman está na verdade
suspenso de ponta
pé e alterna a pernacabeça nodá
que lhe teto. Enquanto
base, Naumaneledemonstra
gira sobre um
um
padrão coreográfico que une perfeitamente dificuldade técnica
(intensa demanda de equilíbrio e força nas coxas e na lombar)
a uma diminuta performance de pura tontura. Nas coreogra-
fias solipsistas de Nauman, particularmente nestas duas peças
de 1969 em que o masturbatório e o espaço da tontura apare-
cem de modo tão literal, o masculino ser-para-o-movimento

74
 

como subjetividade solipsista alcança um ponto crítico de to-


tal saturação. Este ponto é carregado de energia crítica, ciné-
tica e potencial para mutações coreopolíticas de grande rele-
vância. Para seguir
de me voltar as pistas destasmais
para experimentos mutações, eu em
recentes gostaria então
solipsismo
coreográfico masculino, em que o ontohistórico coreográfico
é pressionado ao limite.
Nós vimos como a dança teatral ocidental encontra sua
energia (melancólica) primária e crescente (moderna) autono-
mia graças a uma figura em particular que ocupa um lugar
particular: um advogado a ler um livro na “privacidade de seu
aposento”, de modo a dançar com o fantasma de seu mestre,
morto e ausente. Eu defendo que o coreográfico é ontohisto-
ricamente conectado ao que Derrida chamou de efeito tele-
comunicacional da escrita. O dançarino-leitor pode até estar
sozinho em seupronto
estará sempre quarto, mas,
para graçase ao
invocar livro com
dançar coreográfico, ele
aqueles que
não estão mais lá, com os que já partiram para outra. Há qual-
quer coisa nas imbricações entre dança, escrita, melancolia,
solipsismo, espectralidade, masculinidade e o ser-para-o-mo-
vimento moderno, cinético, autossuficiente e auto-impulsio-
nado que só pode ser qualificado como idiótico, no sentido
especificamente etimológico encontrado por Paola Mieli no
termo “idiota”: do grego idiotes , “uma pessoa reservada, indi-
vidual, ‘alguém numa estação privada’ – de ideios , referente ao
que é só seu, separado, removido da responsabilidade social”
(Mieli et al., 1999: 181). Neste sentido particular, o idiota
não é necessariamente
lidade umo estúpido
débil. Na verdade ou umindivíduo
idiota é aquele sujeito de menta-e
 isolado
autocentrado que fantasia a subjetividade como ser autôno-
mo e auto-móvel. A coreografia, essa expressão e tecnologia
do moderno ser-para-o-movimento, participa integralmente
do projeto exaustivo, psicológico, afetivo e energético da sub-
 jetivação moderna como a criação de um idiota socialmente
apartado, energeticamente autocontido e emocionalmente

75
 

automotivado, cuja resposta à aparição do outro é uma cri-


se insuportável que desencadeia o sintoma. A dinâmica desta
idiotice e sua arraigada relação com a coreografia é explorada
pelo
Good coreógrafo
Spies Are Myespanhol Juan Dominguez
Age (AGSAMA)  (2003). em sua peça  All
 Ao contrário dos filmes de ateliê de Nauman, em  AGSA-
 MA, Dominguez põe-se inquestionavelmente diante de um
público. Assim, nesta performance, o solipsismo coreográfico
masculino emerge como representação de uma condição. A
coreografia como escritura é exageradamente disposta: prati-
camente tudo que a plateia e o coreógrafo fazem ao longo dos
70 minutos de duração da peça é ler uma obscura, convoluta
e autocentrada narrativa, cujo andamento é inteiramente de-
terminado pela vontade do coreógrafo. De seu lugar sentado
dentro de um cômodo,40 Dominguez manipula uma série de
pequenas fichassoltas,
mente palavras impressas
cujascom frases,eleparágrafos
imagens projeta aoevivo
ocasional-
numa
tela branca a seu lado, com ajuda de uma pequena câmera de
vídeo apoiada na mesa a sua frente. É como se Dominguez só
pudesse encarar seu público, só pudesse estar diante do outro,
porque coreografou sua aparição como algo completamente
mediado pela escrita e pelos “murmúrios” fantasmáticos das
presenças ausentes que a escrita conjura.
Uma série de assombrações ontohistóricas [ontohistorical
hauntings ] emergindo em AGSAMA podem ser identificadas.
Intrusão do coreográfico ontohistórico número 1:

Sobre seu status como ferramenta de comunicação a lon-


ga distância, podemos citar, entre outros testemunhos,
o procedimento detalhado em um texto dos arquivos de

40. Eu assisti AGSAMA em Berlim, durante sua estreia mundial no festival anz in August ,
em 2003. A peça não foi apresentada em um teatro convencional ou em um auditório,
mas em uma grande sala branca e retangular, com janelas verticais em uma de suas pare-
des. Na parede oposta, duas portas de tamanho padrão permitiam a entrada e saída do pú-
blico e do performer. O fato da plateia sentar em arquibancadas não diminuiu o impacto
visual e espacial do fato de estarmos todos numa sala e não em um teatro.

76
 

Hardouin-Médor, em Caen: os mestres de dança da ci-


dade são trancaados numa sala com papel, escrivaninha,
“estojo matemático, etc.”, como se estivessem numa pro-
 va escrita; eles compõem coreograas para bailes e balés,
as quais são enviadas a Paris para serem julgadas e classi-
cadas pela Academia; só depois vem o teste prático, ou a
“execução” (Laurenti, 1994: 86).

É assim que o historiador da dança Jean-Noël Laurenti


descreve os procedimentos da coreografia no século XVII na
França. rês séculos depois,  AGSAMA os reencena: um ma-
cho/coreógrafo senta na escrivaninha – a qual, aliás, é suspei-
tosamente similar a uma carteira escolar – sozinho numa sala
para criar uma dança que existe apenas como texto a ser lido à
distância pelo público. Só no resta descobrir que tipo de teste
posterior, ou “execução”, AGSAMA propõe.
O cenário é mínimo: uma pequena escrivaninha com
uma miúda câmera de vídeo, lentes viradas para a mesa; uma
tela branca usual sobre um tripé ao lado da mesa; um proje-
tor de vídeo colocado em frente à tela; e uma lâmpada verti-
cal junto à mesa. udo sugere que a peça poderia ser fruída
como um show de slides semiprivado ou como uma palestra
numa grande sala de aula. Intrusão do coreográfico ontohistó-
rico número 2 : a escrivaninha em AGSAMA é incomum – há
um primeiro assento acoplado a ela, que é onde Dominguez
senta, e há outro assento acoplado, idêntico ao
a o primeiro, mas
do outro lado da mesa, mais
mai s próximo ao público. Este segun-
do assento permanece vazio ao longo de toda a peça. Como
em Walking in an Exaggerated Manner around the Perime-
ter of a Square  de
  de Nauman, o assento vazio no quarto onde
um homem dança sozinho levanta a questão: para quem é
este lugar vazio? O fantasma de Arbeau? Intrusão do coreo-
 gráfico ontohi
ontohistóri co número 3: o banco acoplado à escriva-
stórico
ninha, sua escala, sua forma, tudo sugere uma escrivaninha
escolar. Assim como em Orchesographie , o espaço do coreo-

77
 

gráfico confunde-se com o espaço do pedagógico, e ambos


são habitados por fortes presenças ausentes.
aus entes. Mesmo antes de
 AGSAMA começar propriamente, a performance já propõe
oencenado
coreográfico comoda
no espaço sempre
escrita,endereçado ao ausente,
s empre concebido
sempre sempre
a partir da
marca pedagógica e sempre entrelaçando estes aspectos todos
a uma certa solidão masculina que permanece, entretanto,
afinada às invisibilidades. odos os elementos do efeito on-
tohistórico coreográfico já estão em seus devidos lugares em
 AGSAMA. Mas como eles são mobilizados por Dominguez,
como são executados e o que eles executam – ou seja, o que
eles destroem no instante de suas (ontohistóricas, isto é, on-
tofantasmáticas41 [hauntological ])
]) reiterações?
Quando a plateia acomoda-se, Dominguez entra na sala
vestido com um terno branco. Ele liga o projetor de vídeo.
O cabo ao
vertical de energia da vai
lado, que câmera. A comprida
iluminar lâmpada
a sala atrás halógena
dele com uma
clara luz branca. Então, casualmente, Dominguez senta-se e
organiza as pilhas de fichas de papel que já estavam sobre a
mesa. Ele escolhe uma das pilhas de papel e a coloca cuida-
dosamente sob a lente da câmera. Uma imagem projetada da
ficha de papel preenche a tela. Lemos em negrito, impresso em
inglês: “IM = Te aste Is Mine”42 [OGEM = O Gosto É
Meu]. rês
rês segundos depois, aproximadamente, outro papel é
colocado em cima deste primeiro e lemos:

41. Criamos aqui o neologismo “ontofantasmática” para traduzir “hauntological ”,”, o qual


é, por sua vez, um neologismo criado por Jacques Derrida para dar conta da fusão entre
ontologia e espectralidade ( haunting ) em sua crítica do ser, da presença e da história.
Nossa tradução aqui procura ressaltar precisamente a dinâmica fantasmática da presença
em Derrida, sobre a qual Lepecki constrói sua crítica do coreográfico como disjunção-
-contração de temporalidades e de regimes de presença/ausência, com efeitos políticos
relevantes para uma análise crítica
c rítica da modernidade a partir do movimento. Ver a primeira
nota a este capítulo para uma maior elaboração do conceito de “ hauntology ” e da perfor-
matividade dos espectros em Derrida. (N..)
42. ítulo da peça anterior de Dominguez, criada em 2000.

78
 

 AGSAMA = All Good Spies


Spies Are My Age [OBEMI:
[OBEMI: odos
Os Bons Espiões êm Minha Idade]
IM = Te aste Is Mine [OGEM: O Gosto É Meu]
SL = Swan Lake [LDC: Lago dos Cisnes]
Daí, consecutivamente e quase rápido demais para acom-
panhar, três outras fichas, uma em cima da outra. “Do a show
with ten people” [Faça
[Faça um espetáculo com dez pessoas], depois
“Obsession with age” [Obsessão com a idade] e “Exhibition in
a Museum in Paris Teme: Memory” [Exposição em um museu
de Paris ema: Memória]. Então uma breve pausa e outra ficha:
“How much time do you buy with an entrance ticket?” [Quan-
do tempo você compra com um ingresso de entrada?].
E segue, ficha após ficha, palavra após palavra, tecendo
uma complicada teia de narrativas, linhas de fuga, referências
obscuras, referências
giros de enredo, perdaexplícitas,
de enredo,retornos, girossentido,
cenas sem de linguagem,
sonhos
masturbatórios... por 70 minutos. O título da peça, conforme
o programa, é AGSAMA. Mas logo no começo uma ficha com
a palavra solta “itle” [ítulo] aparece na tela – sendo em se-
guida coberta por outra ficha na qual se lê:
Num quarto de hotel no Porto: Minha namorada dor-
mindo numa cama virada para a direita. Em frente a ela o
guarda-roupas com portas de espelho. Eu estou acordado
na mesma cama atrás dela, também virado para a direita.
Eu observo seu corpo. Eu levando a cabeça um pouco e
 vejo tudo no espelho. Eu me escondo atrás dela.
del a.

Poderia este ser um outro título de  AGSAMA? Um títu-


lo não-relacional, no espaço de um aposento onde o eu/olho
masculino esconde-se do espelho que reflete demasiado do
mundo e do outro feminino que por acaso nem está inteira-
mente presente. Mais além, nesta dança que encena a si mes-
ma como literalmente coreográfica, a tipografia emoldura a

79
 

significação e a semântica por via de uma referência jocosa


ao impacto performativo da escrita. As palavras impressas nas
fichas são todas em letras garrafais multicoloridas (azul claro,
vermelho, amarelo,
Impact. Intrusão preto, verdeontohistórico
do coreográfico claro) numanúmero
fonte 4 
chamada
: o efei-
to coreográfico como impacto tipográfico do significante no
espaço da leitura solitária.
 A próxima sucessão de fichas contam ao público sobre mu-
lheres, mulheres lindas, mulheres excessivas, mulheres demais,
mulheres desejáveis demais – a existência coletiva delas cria
um distinto contraste com a figura do homem sozinho em
sua escrivaninha. Mais tarde, lemos que, no lugar de se re-
lacionar com estas lindas mulheres que tanto o excitam (se-
gundo as fichas), o narrador tranca-se num banheiro público
e se masturba. Mais uma performance do desejo masculino
aroportas fechadas.
5 : o filme Intrusão
Bouncing do  (1969)
Balls  coreográfico ontohistórico
de Nauman, em núme-
que o
solipsismo masculino encontra desejo, cadência e vontade de
controle sobre o movimento. É pelo meticuloso acúmulo de
todas essas intrusões do coreográfico ontohistórico que  AG-
SAMA encena e imperiosamente reintroduz a figura inaugural
do macho dançarino solitário na economia masturbatória da
modernidade – a modernidade da energia exaurida, da melan-
cólica relação com o tempo e da subjetividade idiótica.
Como lidar com as proposições de  AGS AMA em relação à
 AGSAMA
temporalidade da escrita, a cadência da leitura e o impactante
efeito da masculinidade solitária sobre o campo ontohistóri-
co do coreográfico?
proposições Maisuma
desta peça especificamente,
vez entendidascomo
comolidar com as
coreográfi-
cas? Dada sua total participação na formação da máquina de
subjetividade cinética da modernidade, o coreográfico é infor-
mado pelas próprias incoerências estruturais da modernidade:
ao enfatizar a presença, a coreografia descobre a ausência; ao
enfatizar a dança, ela descobre o lamento; ao desejar a socializa-
ção, ela abstrai-se entre quatro paredes. Sobrevindo do próprio

80
 

do campo do efeito coreográfico, estas incoerências são aquilo


que AGS AMA tão sistematicamente identifica e desmantela ao
 AGSAMA
revelar enfaticamente seus mecanismos e cadências.
Dominguez
ritmo dispõe as fichas
próprio, arrumando-as escritas sobre a sob
caprichosamente mesa em um
a lente da
pequena câmera de vídeo. A leitura é exaustiva. O público é
convidado a entrar numa cadência de leitura que é imposta
pelo outro. Na iminência de desistirmos desse ritmo, dessa
leitura, desse homem, passados talvez já três quartos da peça,
o inexorável fluxo de palavras é substituído por um alivia-
dor fluxo de imagens. Dominguez interrompe a procissão de
fichas e palavras e passa a mostrar (sempre através do olho
da câmera) uma série de retratos fotográficos de si mesmo.
Da infância à vida adulta, o homem vai deitando foto sobre
fotos de si mesmo. Essa mudança é apenas momentânea. A
acumulação de imagensa autoprodução
das fichas, reforçando uma sobre a outra repete o ritmo
de subjetividade so-
lipsista assegurada pelo mecanismo reiterativo da aparição.
Súbito, uma desordem na acumulação de imagens do eu-
-mesmo: uma das fotos mostra uma segunda pessoa. A erup-
ção inesperada de um outro é como um choque. Mas antes
de começarmos a identificar os primeiros contornos deste
outro, Dominguez imediatamente cobre o rosto dele ou dela
com mais uma ficha escrita. O homem sentado, manuseando
escrita e imagens como dança, permanece o único e absoluto
centro de atenção: nossa e dele. Esta erupção reprimida do
outro é o núcleo dramatúrgico da peça. A intrusão inespera-
da
É odo outro é gesto
excessivo o trauma de AGSAMA
de retirada , e também
do outro seudança
da sala de sintoma.
que
nos permite ler a peça coreograficamente.
Mas como ler esta peça em relação à filosofia? Filosofi-
camente, o solipsismo é comumente associado ao projeto
cartesiano de produção automotivada e autoreferencial da
verdade que dispõe o sujeito solitário do discurso no centro
e no limite desta verdade. Não admira portanto que o solip-

81
 

sismo tenha sido objeto de sérias objeções levantadas contra


o projeto cartesiano. Na virada do século XX, o projeto de
Edmund Husserl de estabelecer a fenomenologia como filo-
sofia da consciência
potencial estava representava.
que o solipsismo totalmente a Martin
par dosHeidegger
perigos eme
Maurice Merleau-Ponty empenharam-se consideravelmente
na tarefa de manter essa objeção
o bjeção ao largo: Heidegger, através
da formulação de seu conceito de Da-sein como modo de
ser-no-mundo (Heidegger, 1996: 213-40, 279-84, e parti-
cularmente 317-20), e Merleau-Ponty com sua “elementar”
noção de carne como entrelace de self   e mundo (Merleau-
-Ponty, 1968: 130-55).
Mas são as proposições de Wittgenstein sobre o solipsismo
que podem nos ajudar a considerar como os usos do solip-
sismo coreográfico em Nauman e Dominguez podem propor
uma
muitosaída
brevesdodeidiótico ser-para-o-movimento.
Wittgenstein As ractatus
sobre solipsismo no reflexões
Logico-Philosophicus  começam
 começam na proposição 5.6: “Os limites
de minha linguagem denotam os limites de meu mundo”; e
terminam na proposição 5.621: “O mundo e a vida são um
só”” (Wittgenstein, 1968: 111). Estes dois enunciados já come-

çam a esclarecer tanto a relação de Nauman com seus títulos
(e com seu particular entendimento da linguagem em geral,
sobre o qual ele explicitamente atribuiu influência de Witt-
genstein [Kraynak, 2003: 5-10]), quanto a autoclausura de
Dominguez entre as paredes de texto em AGSAMA. Se o limi-
te da “minha linguagem” denota o limite “do meu mundo”, e
se a constituição
sobre do coreográfico (que eu expus na discussão
Orchesographie ) significa o vir-a-ser de um corpo cuja
presença e cinética já é informada, pré-formada e performada
graças ao seu entrelaçamento ontocinético com a escrita, en-
tão habitar e explorar realmente a linguagem, devir por meio
da linguagem e ampliar sua lógica ao limite possível é também
 jogar a si mesmo bem no meio do mundo.mundo. Mas,
Mas, para isso, faz-
-se necessário uma reconfiguração do entendimento comum

82
 

de solipsismo. É preciso transformá-lo de um modo de sub-


 jetivação que privilegia a reclusão, a mônada idiótica, a mor-
te do mundo, o fim da relacionalidade, para um “solipsismo
metodológico
metodológico” ” (Natansom,
é reforçá-lo para a criação de1974: 242), eme sistemáticas
meticulosas que o importante
imporexpe-
tante
rimentações.
Na proposição 5.62, Wittgenstein trata sobre “até onde o
solipsismo é uma verdade”, precisamente nesse sentido de en-
xergar nele uma possibilidade metodológica para uma abertu-
ra radical do pensamento e do ser:
O que o solipsismo nomeadamente acha  é  é inteiramente
correto, mas isto se mostra em vez de deixar-se dizer .
Que o mundo é o meu mundo, isto se mostra porque
os limites da  linguagem
  linguagem (da linguagem que somente eu
compreendo) denotam os limites do meu mundo (1968:
111, grifos no original).

 Jakko Hintikka defende que a “interpretação peculiar de


solipsismo” de Wittgenstein “só pode ser compreendida no
contexto de outras doutrinas do ractatus ” e conclui: “Se eu
posso afirmar que algo é meu, segue imediatamente que este
algo possivelmente pode ser seu também” (Hintikka, 1958:
88, 89). Este é o momento em que a linguagem “que somen-
te eu compreendo” se confunde com o “meu mundo” – para
afirmar que esse “eu” e sua linguagem-mundo é totalmente
inclusiva. Em Wittgenstein, tanto o “eu” linguístico quando o
mundo (onto)logicamente participam do outro. Assim, o que
o solipsismo denota  (sem
 (sem dizê-lo, mas de certo mostrando-o) é
que o continuum eu-linguagem-mundo necessariamente  con-  con-
tém, é, e é contido por, o eu-linguagem-mundo do outro. O.
H. Mounce associa a noção de solipsismo de Wittgenstein à
de Schopenhauer,
Schopenhauer, enfatizando que para este último,
o erro [do solipsista] é que ele pensa poder [...] eliminar
o mundo para que só ele exista. Ele falhou em perce-

83
 

ber que sujeito e objeto são correlativos. Um precisa do


outro. Se ele elimina o mundo, ele elimina a si mesmo.
(Mounce, 1997: 10)

Mounce afirma que Wittgenstein seguiu Schopenhauer em


sua formulação no ractatus  de  de que “o que é verdade no so-
lipsismo não pode ser expressado sem reconhecer a verdade
no realismo” (1997: 11). Dado que o “meu mundo” solipsista
necessariamente  inclui
 inclui e é incluído pelo outro, então “por aqui
se vê que o solipsismo, levado às últimas consequências, coin-
cide com o realismo puro. O eu do solipsismo reduz-se a um
ponto sem extensão, a realidade permanecendo coordenada a
ele” (Wittgenstein 1968: 112). Hintikka conclui:
Podemos dizer que a razão pela qual Wittgenstein defen-
deu que o solipsismo é essencialmente correto é diametri-
camente oposta à razão usualmente dada ao solipsismo.
O que em geral é tomado como asserção do solipsismo é
a impossibilidade de ir “além das fronteiras de mim mes-
mo”. O solipsismo de Wittgenstein é baseado na asserção
exatamente oposta de que toda fronteira ordinária de mim
mesmo é inteiramente contingente e portanto irrelevante
“para o que está no alto” (Hintikka, 1958: 91).

Começamos a perceber agora por que Nauman e Domin-


guez devem lançar mão do solipsismo coreográfico. O solip-
sismo coreográfico é um modo de desmantelar por dentro a
subjetivação da modernidade como esse modo idiótico, au-
tossuficiente e autônomocrítica
uma contrametodologia de solidão. O solipsismo
e coreográfica, torna-se
um modo de
intensificar, crítica e fisicamente, as condições hegemônicas
da subjetivação e explodi-las em direções imprevisíveis. Nes-
te sentido, o homem solitário transforma seus aposentos: de
 jaula para aquele espaço crítico chamado por Phillip Zarrilli de
“o ateliê metafísico, [...] um lugar de hipóteses, portanto de
possibilidades, [...] onde algo pode surgir do nada” (Zarrilli,

84
 

2002: 160). É por isso que ao final de AGSAMA, o que havia


se iniciado como uma exaustiva exibição de masculinidade,
solidão, escrita, cadência e autorreferencialidade, aos poucos
dissolve-se numa estranha
também experienciais. teia deque
Inclusões inclusões – narrativas,
mostram mas
como o core-
ográfico (precisamente por ser uma tecnologia de subjetiva-
ção que funde movimento com escrita com corpo com au-
sência com presença) também pode oferecer rotas de fuga de
seu dúbio projeto de mobilização sem sentido. Inclusões que
mostram, portanto, como o solipsismo, uma vez entendido
como metodologia filosófica que implica a força poética da
linguagem no próprio coração do mundo, pode tornar-se um
meio de transcender o autocontido, o socialmente apartado e
o autossuficiente ser-para-o-movimento moderno.
É aqui, quando Wittgenstein em seu ractatus  abandona
  abandona
a– noção de sujeito,
produzido sob as que um incrível
condições solo de
dessa ideia Xavier Le
expandida de Roy
um
solipsismo metodológico que perturba a noção de isolamento
absoluto – deve ser invocado. Em Self Unfinished  (1999),
  (1999), Le
Roy também renuncia à noção de sujeito, e com ela os o s modos
de prender o ser em categorias fixas: masculino e feminino,
humano e animal, objeto e sujeito, passivo e ativo, mecânico
e orgânico, ausente e presente, todas essas oposições que têm
psicofilosoficamente emoldurado a subjetividade moderna
dentro de opções binárias fixas. Le Roy substitui estas catego-
rias por uma série de puros devires, no sentido estrito dado a
eles por Deleuze e Guattari:
Um devir não é uma correspondência de relações. Mas
tampouco é ele uma semelhança, uma imitação e, em últi-
ma instância, uma identicação. [...] O devir não produz
outra coisa senão ele próprio. [...] Devir é um verbo tendo
toda sua consistência; ele não se reduz, ele
e le não nos conduz
a “parecer”, nem “ser”, nem “equivaler”, nem “produzir”
(Deleuze e Guattari 2007: 18-19).

85
 

O que um devir produz ao produzir a si mesmo? Uma for-


ça, um plano de consistência ou composição de desejo, um
Corpo Sem Órgãos (Deleuze e Guattari 2007: 60). O que
éumproduzido
plano depor um devir
imanência donunca
desejo,é ouma representação,
qual, mas
através da ativa-
ção daqueles “experimentos” próprios ao devir, inaugura uma
política de micropercepções que dá margem a agrupamentos
de agência e posições minoritárias: esquizos, crianças, negros,
mulheres, animais... (Deleuze e Guattari, 2007: 87-90). Esta é
precisamente a força biopolítica de qualquer devir: “todo devir
é um devir-minoritário” (Deleuze e Guattari, 2007: 87). Sig-
nificativamente, invenções de cada posição minoritária apare-
cem e desaparecem continuamente em Self-Unfinished .
 A palav
palavra
ra chave é “experi
experimenta
mentação
ção”” – como condição
condição fun-
damental para alcançar “outras possibilidades contemporâne-
as” que revelem revelando
da enunciação”, o corpo como “organismo,
ao mesmo históriamodos
tempo aqueles e sujeito
de
sujeição hegemônica que “nos roubam” o corpo “para fabricar
organismos oponíveis” (homem ou mulher, menino ou meni-
na, dançarino ou advogado, padre ou escultor, coreógrafo ou
teórico) (Deleuze e Guattari, 2007: 69). Em outros termos:
experimentação contínua, ontologicamente interminável. O
solo de Le Roy nunca cai nestas oposições, restituindo assim ao
corpo o poder de constantemente reinventar-se. Neste Neste exemplo
de solipsismo coreográfico metodológico, encontramos o idiota
abandonando seu plano de autocontenção e tornando-se gene-
rativa e inteligentemente bobo em seu progressivo devir maquí-
nico e  orgânico,
homem   orgânico,
  mulher,humano
e  mulher, animal e  objetual,
e   objetual, subjetivo e  interminável,
  interminável,
  escultural, negro e  branco,
 escultural,   branco, ativo e  
passivo, alegre e   triste, solitário e   múltiplo – constantemente
desorganizando e reorganizando aquela pergunta fundamental
que liga a filosofia à dança: o que pode um corpo?
 Ao entrarmos no espaço da performance, encontramos Le
Roy sentado numa escrivaninha, vestido em camisa e calças
pretas, a receber o público, a observar
obser var nossa chegada. Durante

86
 

uma hora, ele executa três séries de ações: primeiro, totalmen-


te vestido em suas calças e camisa pretas, ele move-se como
uma imitação bem humorada de um ser robótico, vocalizando
sons
rola amaquínicos. Depois,como
camisa revelando-a ele tiraum
os sapatos e as
longo tuboa s calças
que seeestende
desen-
até os pés, feito um vestido. Este devir mulher é rapidamente
dissolvido quando ele flexiona o corpo na forma de um V in-
vertido e passa a mover pela cena como um quadrúpede sem
cabeça. De quatro, Le Roy vai até a parede ao fundo e se eleva
sobre as mãos durante um tempo. Então, apoiado pelos om-
bros, virado para a parede, ele prossegue tirando toda a roupa.
Nu, e sempre apoiado pelos ombros, seus braços são tomados
como franzinos órgãos de equilíbrio e localização espacial –
seu corpo se torna uma figura não reconhecível (ao meu lado
no Te Kitchen, em Nova York, em 2003, alguém murmura
que
Le Royele demora-se
“parece, tipo
umassim,
tempoumanestagalinha
forma: processada
nu, apoiadocrua”).
sobre
os ombros no chão, com a cabeça escondida entre as pernas,
nádegas para cima, movendo de forma pateticamente inefi-
ciente, tornando-se informe. De todos os trabalhos analisados
até aqui, esta é a primeira vez que a representação total, radical
e consistentemente subverte o isomorfismo hegemônico entre
presença, masculinidade, verticalidade, figura, nome próprio,
frontalidade, facialidade e motilidade eficiente.
 Ainda assim, o coreográfico ontohistórico emerge para as-
sombrar [haunt ] e forçar sua presença, ainda que agora apenas
em seus elementos mais mínimos: a escrivaninha do coreó-
grafo-escritor-filósofo
espaço branco, vazio, está lá com
abstrato estáseu
lá; inescapável
assim comoassento;
tambémo
está lá, sobre o chão, um aparelho de som portátil, de modo
que a telecomunicação com a voz do outro ausente perma-
nece possível. (No final da performance, Le Roy sai de cena
completamente vestido outra vez, deixando o público com o
aparelho de som tocando Diana Ross: “Upside Down / now
’re turning me / inside out / round and round...” [“De ponta
 you’re
 you

87
 

cabeça / agora você me vira / ao avesso / a girar...”].


girar...”]. Mas a pre-
sença de entradas ontofantasmáticas [hauntological inclusions ]
em Self Unfinished  já
 já indica a morte delas: na metade da peça,
nu,
massade informe
ponta cabeça, sobre osimpossível,
de descrição ombros, cabeça escondida,muta-
já em contínua uma
ção a cada instante, Le Roy desliza para baixo da escrivaninha
e a destrói aos chutes. E embora aperte o play no som portátil
várias vezes ao longo da peça, ele nunca o faz funcionar, atra-
sando assim a chegada da voz do outro. ambém
ambém o corpo mas-
culino como presença privilegiada no espaço solitário da core-
ografia desaparece rapidamente graças ao uso trans-gênero que
Le Roy faz de sua roupa e ao devir animal sugerido pelas in-
voluções e contorções de seu corpo nu, cujos olhos nunca nos
olha. Le Roy oferece uma percepção inteiramente diferente do
que é um corpo: não um estável
e stável hospedeiro de carne para um
sujeito,
to prontomaspara
umaalcançar
força dinâmica, um experimento
imprevisíveis ininterrup-e
planos de imanência
consistência. Em seu uso radical do solipsismo coreográfico,
Le Roy exaure o ser-para-o-movimento. Pois o que interessa
em Self Unfinished  nunca
 nunca é o espetáculo do movimento, mas
sim o pacote de afectos e perceptos desprendidos das muitas
paragens, repetições, reiterações, imagens divertidas e formas
inomináveis que Le Roy nos apresenta.
 Já não estamos mais diante da noção do self   como casa pró-
pria do sujeito individuado, como pressuposta condição para
o corpo disciplinado ser habitado pelo coreográfico. O self   
de Le Roy é unfinished  [inacabado]
  [inacabado] não porque ainda não se
completou,
completude mas porquedajamais
não deriva trágicapoderá completar-se.
interrupção Essa in-
de um processo
teleológico, mas da afirmação de Le Roy de uma ontologia da
incompletude radical, um processo que ele chama “relação”
(Le Roy,
Roy, 2002: 46). Ao explicar sua noção de relação, Le Roy
invoca o conceito de “corpo-imag
“corpo-imagem em”” de Paul Schilder (1964)
e o faz funcionar junto às noções de devir e Corpo sem se m Órgãos

88
 

de Deleuze e Guattari.43 Numa “Auto-Entrevista” de novem-


bro de 2000, Le Roy escreve:

 X5: Não
nossos sei. Mas
corpos frequentemente
deveriam terminar namepele
pergunto por que
ou no máximo
incluir outros seres, organismos ou objetos encapsulados
pela pele?
 Y5: Eu não sei também, mas você pode falar sobre o fato
de que a imagem do corpo é extremamente uida e di -
nâmica. Que suas bordas, fronteiras ou contornos são
“osmóticas” e que elas têm o poder extraordinário de in-
corporar e expelir o dentro e o fora numa troca contínua?
 X6: Sim. Como você diz, as imagens do corpo são capazes
de acomodar e incorporar uma gama extremamente am-
pla de objetos e discursos. Qualquer coisa que entre em
contato com as superfícies do corpo e permaneça ali tem-
po o suciente será incorporada à imagem do corpo [...]
 Y6: Então, em outras palavras, você está dizendo que a
imagem do corpo é uma função tanto da psicologia e con-
texto sócio-histórico do sujeito quando de sua anatomia.
E que há várias inuências não humanas
h umanas tecidas em nós.
 X7: Exatamente. Então deve haver outra alternativa para
a imagem do corpo que a anatômica.
 X8: Por exemplo: Eu penso que o corpo poderia ser per-
cebido como espaço e tempo para a troca, o tráco e o
intercâmbio...
 X9:... seguindo essa ideia, isso signicaria que cada indi -
 víduo seria percebido como uma innidade de partes ex-
tensivas. Em outros termos, só existiriam indivíduos com-
postos. Um indivíduo seria uma noção completamente
desprovida de sentido. (Le Roy, 2002: 45-6)

Self Unfinished  de
 de Le Roy propõe um entendimento do cor-
po que desafia o confinamento do corpo trazido pela moder-
nidade. O corpo individual, o corpo monádico, não tem mais
vez. Se, como nos relembra Harvie Ferguson, “o
“o traço distintivo
43. Eu discuto a noção de “corpo-imagem
“corpo-imagem”” de Paul Schilder no próximo capítulo.

89
 

da corporeidade moderna repousa no processo de individuação,


na identificação do corpo com a pessoa como indivíduo exclu-
sivo e, portanto, como portador de valores e direitos legalmente
sancionáveis” (Ferguson,
distinta dimensão 2000:
do gesto de Le38), então
Roy podemos
dentro perceber
da sanção onto-a
coreográfica do modo de autoreprodução da modernidade. O
deslocamento da noção de indivíduo em Le Roy é a suprema
exaustão do modo de coreografar a dança da subjetividade na
modernidade. Sem individuação, não pode haver possibilidade
de se designar uma subjetividade dentro das economias da lei,
na nomeação e da significação. Através do tipo particular de
solipsismo tão intensamente informe performado por Le Roy,
o desmantelamento do corpo idiótico da modernidade e sua
substituição por um corpo relacional renova a coreografia como
prática de potencialidade política.

90
 

II
UMA “ONTOLOGIA MAIS LENTA”
DA COREOGRAFIA A CRÍTI CA DA
REPRESENTAÇÃO EM JÉRÔME BEL

Esta representação, cuja estrutura se imprime não


apenas na arte mas em toda a cultura ocidental
(as suas religiões, as suas flosofas, a sua política),
designa portanto mais do que um tipo particular
de construção teatral. (Derrida, 2002: 153)

 Antes de escre
 Antes escrever
ver sobre o traba
trabalho
lho do core
coreógrafo
ógrafo franc
francês
ês
 Jérôme
 Jérôme Bel, é import
importante
ante cont
contextua
extualizar
lizar breve
brevement
mentee o movi
movi--
mento particular na recente dança europeia do qual ele emerge.
Penso aqui nas propostas criadas a partir de meados da década
90 por coreógrafos como La Ribot, Jonathan Burrows, Boris
Charmatz, Xavier Le Roy, Mårten Spångberg, Vera Mantero,
Tomas Lehmen, Meg Stuart, Juan Dominguez, para nomear
apenas alguns dos mais reconhecidos.44 Este movimento ganha
forma, força e visibilidade a partir da metade da década de 90,
mas não é sob qualquer45 aspecto um movimento organizado
ou com nome próprio.  Apesar das múltiplas diferenças nos
44. Para uma discussão do trabalho de La Ribot, ver Capítulo 4; sobre o trabalho de Juan
Dominguez, ver Capítulo 2; sobre o trabalho de Vera Mantero, ver Capítulo 6. Mais sobre
esse movimento recente na dança europeia, ver Lepecki (2000, 2004), Ploebst (2001),
Burt (2004) e Siegmund (2004).
45. Críticos de dança costumam referir-se a este movimento como “dança conceitual”.
Muitos coreógrafos envolvidos não aceitam essa definição. Ver,
Ver, por exemplo, a declaração
 

modos de trabalhar, das divergentes escolhas dramatúrgicas e,


por vezes, até de antagonismos declarados entre os modos como
cada coreógrafo lida com a forma, o discurso e o conteúdo, é
possível identificar
Um interesse convergências
predominante bastante expressivas
é o questionamento da entre eles.
ontologia
política da coreografia, o qual é particularmente significativo
para a questão que eu pretendo explorar neste capítulo: a dança
que inicia uma crítica da representação ao insistir no parado, na
lentidão e naquela forma particular de repetição conhecida na
retórica como “paronomásia”. Se tal questionamento está pre-
sente em muitos dos trabalhos dos coreógrafos listados acima,
nenhum foi tão implacável e consistente em levá-lo ao seu limi-
de Xavier Le Roy: “Eu não me considero um artista conceitual e não conheço qualquer
coreógrafo que trabalhe com dança sem um conceito” (Le Roy et al .,., 2004: 10). Em 2001,
um grupo formado por muitos coreógrafos e críticos alinhados a esta cena experimental
experimental
(incluindo La Ribot, Xavier Le Roy e Christopher Wavelet) reuniram-se em Viena para
redigir um documento a ser submetido à União Europeia com sugestões de diretrizes
políticas para a dança e performance europeia. Neste documento, havia uma resoluta
resistência a nomear as práticas coreográficas atuais sob um único termo:

Nossas práticas podem ser chamadas de: “arte de performance”,


“live art”, “happenings”, “eventos”, “body art”, “dança/teatro
contemporâneos”, “dança experimental”, “nova dança”, “perfor-
mance multimídia”, “site specific”, “instalação corporal”, “teatro
físico”, “laboratório”, “dança conceitual”, “independência”,
“ independência”, “dan-
ça/performance pós-colonial”, “dança de rua”, “dança urbana”,
dança-teatro”, “dança-performance” – para citar só alguns... (Ma-
nifesto for a European Performance Policy,
Policy, 2001).

Eu considero, entretanto, que o termo “dança conceitual” pelo menos situa historicamente

este movimento
visuais no séculodaXX,
dança europeia dentro
ao referenciar a artedeconceitual
uma genealogia
do finaldadaperformance e das eartes
década de 1960 co-
meço dos 1970, a qual partilha de uma série de características análogas, como a crítica
da representação, a insistência na política, a fusão do visual com o linguístico, a pulsão
pela dissolução dos gêneros artísticos, a crítica da autoria, a dispersão da obra de arte, o
privilégio do evento, a crítica das instituições e a ênfase estética no minimalismo – todos
traços recorrentes em muitos dos trabalhos coreográficos realizados na Europa dos quais
 Jérôme Bel é um
u m dos iniciadores. O termo “dança conceitual” no mínimo m ínimo previne uma
pretensão de originalidade histórica absoluta ao movimento, o que acredito ser desejável
aos participantes, já que todos mantém um diálogo franco e aberto com a história da arte
de performance e da dança pós-moderna.

92
 

te quanto Jérôme Bel, desde sua primeira peça de noite inteira


Nom Donné par l’Auteur  [Nome
 [Nome Dado pelo Autor] (1994).
O enfrentamento de Bel da ontologia política da dança
toma a forma
reografia de umamais
no projeto sistemática
amplo crítica à participação
da representação da co-
ocidental.
 A crítica da representação é uma das principais característi-
cas da performance, do teatro e da dança experimentais do
começo do século XX – desde, pelo menos, a “urgência” de
Brecht em “compreender a mimesis  [...]
 [...] como historicamente
mediada” (Diamond, 1997: viii), e os famosos manifestos de
 Antonin Artaud por um teatro da crueldade no começo da
década de 1930, os quais, como observa Derrida, não apenas
anunciam o “limite da representação” mas propõem também
um “sistema de críticas abalando o todo da história do Oci-
dente” (Derrida, 2002: 153, grifo no original).46 Em termos
teóricos, a crítica da representação
regime epistemológico anuncia
da modernidade, um“uma fratura
regime no
que re-
pousava numa crença no efeito de realidade” da representação
na medida em que este assegurava a estabilidade do discurso
(Gordon, 1997: 10). A teoria crítica (particularmente após a
Dialética do Esclarecimento (1985) de Adorno e Horkheimer)
e a desconstrução (toda a obra de Derrida) precipitaram e par-
ticiparam desta fratura epistemológica do efeito de realidade
da representação de modo a revelar como ela reproduz, discur-
siva e performativamente, formas de dominação. Na dança, a
crítica da representação foi um dos impulsos determinantes
por trás da dança pós-moderna norte-americana da década de
1960,
projetoum impulso
político que de
da arte a tornou particularmente
performance próxima
e da estética do
do mini-
malismo – como articula
ar ticula Yvonne
Yvonne Rainer em seu famoso “NO
Manifesto” (“Manifesto NÃO”): “NÃO ao espetáculo não à
46. Para uma discussão
discussão de toda uma tradição de crítica representacional na performance
contemporânea desde o teatro épico de Bertold Brecht, ver Elin Diamond, Unmaking
 Mimesis  (1997).
  (1997). Para uma crítica da representação na arte de performance, ver Amelia
 Jones, Body Art/Performing the Subject  (1998).
 (1998).

93
 

virtuosidade não às transformações e à mágica e ao fazer de


conta” (In: Banes, 1987: 43).
Bel é totalmente consciente destas experimentações esté-
ticas,
co de teóricas
criticar oe políticas. O que distingue
representacional seu modo
é sua insistência em específi-
desvelar
como a coreografia participa de modo particular da “submis-
são da subjetividade” efetuada pela representação dentro das
estruturas modernas do poder e como dela se faz cúmplice
(Foucault, 1997: 332).47 O trabalho de Bel articula a seguin-
te proposição: para pensar a relação entre coreografia, repre-
sentação e subjetividade, é preciso entender a representação
não só como algo específico ao mimético (isto é, ao que é
propriamente teatral no teatro), mas considerá-la como uma
força ontohistórica, uma força que no Ocidente aprisiona a
subjetividade dentro de uma série de equivalências isomórfi-
cas.
comoParticularmente relevante aos estudos
Bel revela as equivalências, da dança
impressas é o modo
“não apenas na
arte, mas em toda a cultura ocidental (as suas
s uas religiões, as suas
filosofias, a sua política)” (Derrida, 2002: 153), que a repre-
sentação estabelece entre visibilidade e presença, presença e
unidade da forma, unidade da forma e identidade. O uso que
Bel faz da parado, da lentidão e da reiteração paronomástica
ilustra como a coreografia reforça e reifica estas séries de equi-
valências, exibindo espetacularmente o confinamento da sub-
47. Foucault escreve,
escreve, de modo retrospecto, em 1982, “não
“não é o poder,
poder, mas o sujeito que
constitui o tema geral de minha pesquisa” (Foucault, 2010: 232). Ele esclarece:

Há dois significados para a palavra sujeito: sujeito a alguém pelo con-


trole e dependência, e [sujeito] preso a sua própria identidade por
uma consciência ou autoconhecimento. Ambos sugerem uma forma
de poder que subjuga e torna sujeito a. (Foucault, 2010: 235)

 Assim, como explica Deleuze, Foucault não reinsere uma noção transcendental
tran scendental “do sujeito”
de volta em sua teoria, mas
m as entende o “sujeito” como função do poder: “É idiota
idiot a dizer que
Foucault descobre ou reintroduz um sujeito oculto depois de o ter negado. Não há sujeito,
mas uma produção de subjetividade: a subjetividade deve ser produzida, quando chega o
momento, justamente porque não há sujeito” (Deleuze, 1992: 141).

94
 

 jetividade dentro da
da nervosa cinética moderna do “ser-para-o-
-movimento”” (Sloterdijk, 2002: 33).48 
-movimento
Refletindo assim sobre a ontologia política da coreografia
em
Bel relação
propõe àasrepresentação e à subjetividade,
seguintes questões: de que modoso trabalho de
a coreogra-
fia ocidental faz parte de uma economia geral da mimesis 49 
que molda e aprisiona a subjetividade? Como, ao explorar as
condições que possibilitam a coreografia, podemos revelar sua
participação na produção da subjetividade no espaço da repre-
sentação? Que mecanismos permitem ao dançarino tornar-se
um representante do coreógrafo? Que força estranha é essa
no cerne do coreográfico que subjuga o dançarino a seguir
rigorosamente uma série de passos predeterminados, mesmo
na ausência do coreógrafo? Como o pacto da coreografia com
o imperativo do movimento abastece, reproduz e captura a
subjetividade
Em termosna economia geral
dramatúrgicos, do representacional?
composicionais e coreográficos,
Bel responde a estas questões destilando drasticamente a core-
ografia aos seus elementos mais básicos. Historicamente, estes
elementos da coreografia (e eu gostaria de insistir nas parti-
cularidades invocadas por esta palavra) têm sido: um espaço
fechado com um piso plano e liso; pelo menos um corpo, ade-
quadamente disciplinado; um voluntarismo deste corpo em
submeter-se ao comando para mover-se; um tornar-se visível
sob as condições do que é teatral (perspectiva, distância, ilu-
são); e a crença numa unidade estável entre a visibilidade do
corpo, sua presença e sua subjetividade. Bel trata de cada um
destes elementos em destruindo-os,
-os, subvertendo-os, seus trabalhos: complicando-os.
expondo-os, exagerando-

48. Para uma discussão detalhada deste conceito, ver Introdução e Capítulo 2.
49. Derrida chamou a fusão da economia geral e da economia restrita com a lógica do
mimético (da representação) “economimesis ” – um termo que enfatiza como a lei ( nomos )
da representação é o abrigo ( oikos ) onde repousam a metafísica e a estética ocidentais
(Derrida, 1981).

95
 

Na peça Te Last Performance   [A Última Performance]


(1998), as relações entre presença, visibilidade, representação
e subjetividade são trazidas para o primeiro plano e então exa-
minadas, esquadrinhadas,
tos deste trabalho, exauridas. (Antonio
quatro dançarinos Ao longo Carallo,
dos 60 minu-
Claire
Haenni, Frédéric Seguette, Jérôme Bel) trocam continuamen-
te de nome, personagem, subjetividade: um corpo que não é
de Jérôme Bel abre o espetáculo anunciando para o público,
inexpressivamente, sozinho em cena, em frente a um microfo-
ne: “ Je suis Jérôme
Jérôme Bel ” [Eu sou Jérôme Bel]. Depois de esperar
parado durante um minuto (contado em seu relógio), Frédé-
ric Seguette-Jérôme Bel sai de cena e um corpo que carrega
legalmente o nome Jérôme Bel, vestido de branco como um
 jogador de tênis, entra e nos anuncia
anuncia em inglês, no mesmo mi-
crofone, inexpressivamente, sozinho no centro do palco: “I am
 Andre
bolas de ” [Eu
Agassi 
tênis sou aAndre
contra paredeAgassi]. Depois
ao fundo de bater
do palco, algumas
Bel-Agassi
sai de cena e o dançarino Antonio Carallo entra, espera cerca
de um minuto em silêncio, parado em frente ao microfone, e
nos diz, inexpressivamente: “I am Hamlet ” [Eu sou Hamlet].
 A anunciação
anunciação de de Carallo esclarece a questão central
central desta peça,
isto é, a questão da ontologia em seu enredamento com a his-
tória da representação (teatral). Pois, imediatamente após nos
anunciar quem ele representa, Carallo-Hamlet pronuncia as
famosas linhas da Cena 1 do erceiro Ato. Primeiro, as pala-
vras “to be ” [ser] são ditas em cena, no microfone, e depois ele
caminha calmamente para a coxia e de lá grita “or not to be ”
[ou não ser], retornando
cia dramatúrgica da peça:calmamente para apresentar
“that is the question a essên-
” [eis a questão].
 A questão de Hamlet é, evidentemente, a questão do ser, ser, aqui-
lo que Heidegger em Introdução à Metafísica  chamou chamou “a ques-
tão fundamental” (Heidegger,
(Heidegger, 1987: 1-51). O que Bel faz em
Te Last Performance  é   é mostrar como esta questão, uma vez
enunciada sob o signo da coreografia naquele espaço represen-
tacional particularmente hiperbólico, que é o palco de teatro,

96
 

tem o potencial de revelar uma série de associações reificadas


entre presença e visibilidade, ausência e invisibilidade.
Eu retornarei a Te Last Performance  no
 no final deste capítulo.
PLast
or ora, gravemos, apenas
Performance  sua operação
um conjunto restritosintagmática – emcons-
de nomes são Te
tantemente trocados e reatribuídos, complicando assim qual-
quer atribuição “própria”
“própria” ou estável da subjetividade
s ubjetividade dentro da
questão fundamental do ser (ou não ser) no campo expandido
do representacional. Ao intercambiar nomes num jogo per-
mutativo de ontológicos, Te Last Performance  explicita
 explicita que a
questão fundamental trazida a tona por Heidegger e Hamlet –
a questão da ontologia – persegue/assombra [haunts ] qualquer
reflexão crítica sobre a performance – como já indicado na
famosa noção de Richard Schechner sobre “comportamento
duas vezes experienciado” (twice-behaved behavior), a qual
depende
“não-eu edenão
uma ontologia
não-eu” paradoxal,
(Schechner, sempre
1985: oscilando
127), entre
ou conforme
articulado por Peggy Phelan quando ela propõe que a ontolo-
gia da performance é também uma “ontologia da subjetivida-
de” (Phelan, 1993: 146).50 
Te Last Performance  exemplifica
  exemplifica muito claramente como
corpos e subjetividades são capturados dentro de espaços de
representação linguísticos e culturais, mas também físicos e
materiais. odo o trabalho de Bel mostra como supostos ele-
mentos “externos”
“externos” à coreografia (particularmente a linguagem
e o próprio espaço do teatro) são na verdade cúmplices numa
sujeição coletiva à representação. Mas o trabalho revela tam-
bém que o fim
um projeto da representação
e uma permanece
impossibilidade. ao mesmo
Bel concordaria comtempo
Der-
rida quando este escreve que “porque ela sempre já começou, a
representação não tem portanto fim” (Derrida, 2002: 176). O
 jogo de Bel com os nomes, com personagens históricos, com
50. Ver também Phelan (1993: 27, 148). Phelan expande mais explicitamente sua pesqui-
sa ontológica sobre a performance como pesquisa ontológica sobre a subjetividade em
 Mourning Sex  (1997).
 (1997).

97
 

a linguagem, indica que seu trabalho é informado pelo fato


de que a “presença, para ser presença e presença a si, come-
çou já sempre a representar-se, já sempre a ser iniciada [pela
representação]”
quela ambiguidade(Derrida, 2002: 174).que
da subjetividade SeuDeleuze
trabalhoe Guattari
toca na-
identificam, quando estes afirmam ser “uma falsa alternati-
va que nos faz dizer: ou imitamos ou somos” (Deleuze and
Guattari, 2007: 18). Mas se o fim da representação permanece
um projeto político e estético sem fim, a exploração dos seus
meios  permanece
  permanece uma necessidade – dado o enredamento da
representação com as formas hegemônicas da sujeição/subje-
tivação. Bel insiste nesta exploração dos meios da representa-
ção ao postular que o fim da representação é o limite de sua
capacidade de transformar a presença em subjetividade fixa,
reconhecível. Para a realização plena desse projeto, é crucial
uma interpelação
lógicos e espaciais simultânea dos contextos
da coreografia. Daí, dois históricos,
elementos onto-
cons-
tantes no trabalho de Bel: seu uso de corpos isolados (mesmo
em suas peças de grupo, corpos aparecem como envoltos em
solipsismo), e sua interrogação da arquitetura do teatro em si
como representante espacial da isolada e isolante interioridade
da representação. De fato, as peças de Bel sugerem constante-
mente que tanto performers quanto espectadores estão coex-
tensivamente capturados por estas máquinas representacionais
particularmente carregadas: a linguagem e o teatro.
Na peça Jérôme Bel  (1995),
 (1995), quatro dançarinos entram nus
em cena carregando nada além de uma lâmpada acesa e giz
branco.51 Esta lâmpada acesa será a única fonte de luz da peça
que dura cerca de uma hora (sua literalidade minimalista in-
voca o “não à ilusão” de Yvonne Rainer). O giz branco é usa-
do pelos dançarinos Claire Haenni e Frédéric Seguette para
escreverem seus nomes próprios na parede dos fundos, bem

51. Os performers são, em geral:


geral: Claire Haenni, Éric
Éric Lamoureux, Yseult
Yseult Roch,
Roch, Frédéric
Frédéric
Seguette, Gisèle remey
remey.. Ocasionalmente, Patrick Harlay substitui Yseult Roch.

98
 

em cima de suas cabeças (ressaltando a sobredeterminação da


presença que a força legal do nome próprio encena), junto
com suas idades, seus saldos bancários, seus números de te-
lefone, peso Eles
seus corpos. e altura,
ficamlistados
paradosum emabaixo
pé pordoumoutro
tempoao sob
ladoseus
de
nomes, ao lado de suas informações numéricas, como se seus
corpos fossem as legendas daquilo que lemos na parede. Os
outros dois dançarinos fazem a mesma ação e também ficam
parados em pé, mas sob nomes que não são os seus, nomes que
eles representam, nomes que serão representados pelas ações
dos dançarinos. Assim, a mulher mais velha (Gisèle remey),
que segura a lâmpada acesa, escreve e põe-se abaixo de “To-
mas Edison”.
Edison”. A mulher mais jovem (Yseult
( Yseult Roch), que cantará
 A Sagra
Sagração
ção da Primaver
Primavera a  na
  na íntegra ao longo da maior parte
de Jérôme Bel , escreve e põe-se abaixo de “Stravinsky
“Stravinsky,, Igor”. A
primeira
sentação;salienta a fotologia
a segunda acentua que repousa
a força na essência
espectral da repre-
[haunting force ]
da dança escorrendo através do tempo. A luz bem localizada,
o vazio do palco, a nudez dos dançarinos, todos os nomes
sobredeterminando a presença (incluindo o nome do coreó-
grafo, que é o título da peça e que, portanto, paira sobre todas
as cenas), tudo mostra como a representação opera como uma
força isolante e centrípeta que define constantemente seu es-
paço como pura interioridade. O  Jérôme Bel   de Jérôme Bel
nos lembra que, se a representação facilita uma experiência do
“fora”, é apenas como uma relação subordinada ao “dentro”
que a representação assegura, preserva e reproduz. E o que a
representação reproduz
sentação reproduz infinitamente
seu poder é elaperpetuamente
de espelhar própria – a repre-
sua
auto-sustentação. 52

52. É assim que Jean-Luc


Jean-Luc Nancy
Nancy descreve
descreve o funcionamento da representação
representação em seu en-
saio “Te Birth to Presence”. Para Nancy, “representação é o que determina a si mesma
por seu limite” (Nancy, 1993: 1). Assim, a expansão temporal e geográfica do Ocidente
corresponde a uma reiteração infinita, centrípeta, de sua confinação em seu próprio “fe-
chamento... chamado representação” (1993: 1).

99
 

Bel explora e desestabiliza o circuito fechado da representa-


ção ao bagunçar os isomorfismos reificados que a representa-
ção estabelece entre presença, visibilidade, personagem, nome,
corpo, subjetividade
equivalentes e ser – todos econceitos
para a representação funcionalmente
que sustentam a fantasia
da unidade do sujeito. Se uma peça se chama Jérôme Bel , mas o
corpo representado pelo nome que o título evoca não aparece,
não está visualmente ali, como podemos identificar a presença
com aparição? Como podemos conferir uma presença total a
um corpo singular?53 De fato, talvez Bel esteja propondo uma
revisão de nossas concepções de presença, corpo e do estar lá.
Num texto publicado em 1999, Bel articula sua recusa em
aceitar a noção do sujeito como entidade fechada e auto-re-
presentacional, limitada por suas fronteiras corporais visíveis e
localizáveis: “não há algo como um sujeito individual ou um
foco central
merando (umos‘tu’
todos e umque‘eu’)”
corpos (1999:
ele foi  36). Ele de
 no momento
 no segue enu-
escrever
aquele texto – 33 nomes individuais e coletivos, desde Gilles
Deleuze a Myriam van Imschoot, de Samuel Beckett a “indi-
víduos desconhecidos na megalópole onde resido”, de Peggy
Phelan a “Claude Ramey (um nome inventado, talvez real)”,
de Hegel a Xavier Le Roy, a Madame Bovary, a Diana Ross, ao
Ballet de Frankfurt, a “você mesmo”
mesmo” (Bel, 1999: 36). E ele nos
faz lembrar que cada um destes nomes também são matilhas
53. A ruptura da noção de presença
presença da percepção de um ser totalmente visível foi pro-
pro-
posta por algumas filosofias do começo do século XX. Partindo da fenomenologia de

Husserl, e a complicando,
Sallis chamou de “decisivoMartin Heidegger foi
[...] deslocamento daum dos que Sallis
presença”. executaram
explicouo que
queJohn
para
Heideggerr “não há presença pura; pois seja lá o que se apresente, já existe aí em jogo a
Heidegge
operação da significação” (Sallis, 1984: 598). Para mais discussão sobre o deslocamento
da presença efetuado por Heidegger e suas implicações para os estudos da performance
e da dança, ver Capítulo 4. Outra importante contribuição para este deslocamento,
embora advinda de outra tradição filosófica e direcionada a outros objetivos e preo-
cupações, vem de Henri Bergson, cuja teoria da memória (particularmente conforme
articulada em Matéria e Memória ) o permitiu mostrar como a metafísica ocidental havia
sempre “confundido Ser com estar-presente” (Deleuze, 1988: 55). Eu discuto a teoria
da memória e da temporalidade de Bergson na Conclusão.

100
 

de outros corpos e outras coletividades. A subjetividade e o


corpo que Bel oferece claramente não são mônadas ou singu-
laridades auto-reflexivas, mas matilhas, coletividades abertas,
54
processos
Como ele contínuos
próprio nos dediz,
multiplicidades
seu interesse em
é emdesdobramento.
subjetividades e 
corpos análogos ao “Corpo sem Órgãos” teorizado por Gilles
Deleuze e Félix Guattari: um corpo rizomático, um projeto
artaudiano, um experimento em curso.
Deleuze e Guattari propuseram que “há um modo de in-
dividuação muito diferente daquele de uma pessoa, um su-
 jeito, uma coisa ou uma substância
substância”,
”, que eles chamaram de
“matilha”55 (Deleuze e Guattari, 2007: 47). Esta subjetividade
s ubjetividade
aberta, que não é circunscrita pelo cerco legal imposto pelo
nome, pela personagem ou pela reificação do isomorfismo en-
tre corpo visível e presença plena. Ela faz ecoar teoricamente o
conceito de “corpo-imagem”
contemporâneo de Paul Schilder
ao segundo manifesto do teatro– da
umcrueldade
conceito
de Artaud (1935) e precedendo em uma década o clamor de
 Artaud por um corpo sem órgãos. Para o psicanalista austría-
a ustría-
co, o corpo-imagem de alguém não coincide com a presença
visível de seu corpo. Na realidade, o corpo-imagem estende-se
es tende-se
para qualquer lugar no qual qualquer partícula do corpo de
alguém chegou através do tempo e do espaço. Em qualquer
lugar onde deixamos uma partícula do nosso corpo (fezes, san-
gue, menstruação, urina, suor, lágrimas, sêmen) encontramos
os limites do nosso corpo-imagem. Em qualquer lugar onde

54. “Uma multiplicidade se define, não pelos elementos que a compõem em extensão,
nem pelas características que a compõem em compreensão, mas pelas linhas e dimensões
que ela comporta em ‘intensão’” (Deleuze e Guattari, 2007: 27). A “intensão” do autor
ou autora (e não sua “intenção”) é a ativação de seu afeto por “linhas e dimensões” que
“constituem a matilha em tal momento” (idem).
55. Em inglês, “ pack ”,”, traduzido do francês “meute ”:
”: bando de lobos. Em português o
termo correto seria, portanto, “alcateia”. Mas na edição de  Mil Platôs  consultada
 consultada por nós
(São Paulo: Editora 34, 2007), o termo utilizado é “matilha”, bando de cachorros. Para
não confundir o leitor brasileiro, mantivemos, com esta ressalva, o levemente inexato
termo “matilha” ao longo deste livro. (N..)

101
 

deixamos uma impressão do nosso corpo (incluindo impres-


sões linguísticas, afetivas, sensórias) encontramos os limites
do nosso corpo-imagem. A noção de Schilder do corpo como
corpo-imagem já é rizomática,
mar um corpo sempre esquizo,
para além de suasnofronteiras
sentido de procla-
particula-
res, para além das noções metafísicas tradicionais de presença:
um corpo que está sempre atrasado para sua chegada e sempre
adiantado para sua partida, um corpo nunca inteiramente ali
no contexto de sua aparição (Schilder,
(Schilder, 1964).
Essa abertura do corpo e da subjetividade para além
alé m de um
circuito fechado proposta por Jérôme Bel estabelece alguns
desafios metodológicos e epistemológicos para os estudos da
dança. Se o sujeito dançante já não é mais uma unidade e se o
corpo visível em cena já não revela inteiramente sua presença,
como podem agora os estudos da dança tratarem daquilo que,
como disciplina,de
em movimento é pressuposto ser o seuespaço
corpos no restrito domínio: a presença
do palco? Se o
corpo é uma matilha, um rizoma, um corpo-imagem, se ele
é semântico tanto quanto somático, espraiando-se através do
tempo e do espaço, então de que modos a linguagem crítica
pode avaliar trabalhos coreográficos construídos a partir deste
modelo expandido do corpo e da subjetividade? Uma possível
resposta para a disciplina dos estudos da dança seria convidá-
-la a considerar o questionamento radical da pressuposta es-
tabilidade (assegurada pela representação) entre a aparição de
um corpo em movimento no palco (sua presença) e o espetá-
culo de sua subjetividade (que a representação sempre compu-
ta como espetáculo
Se aderirmos a de
estauma identidade).
operação crítica, logo perceberemos
que não é apenas o status do corpo dançante em cena que de-
manda uma revisão crítica. A suposta singularidade do autor-
-coreógrafo também deve ser revista.56 Não é de surpreender

56. A crítica à singularidade do autor atinge seu auge no final da década de 1960, particular-
mente com o ensaio “A Morte do Autor” (1968) de Barthes, o ensaio “La différance” (1968)

102
 

que uma reavaliação da singularidade do autor é um dos ele-


mentos que Jérôme Bel está particularmente interessado em
investigar na sua crítica da coreografia. De fato, suas duas pri-
meiras
e  Jérômepeças
Bel , de noitetratam
1995) inteiraexplicitamente
(Nom Donné par l’Auteur ,da1994
da questão au-
toria, da figura do autor e do poder teológico-econômico do
autor como transcendental nome-que-nomeia – aquele poder
que Foucault chamou de “função autor”:
 A função autor está ligada ao sistema jurídico e institu-
cional que contém, determina, articula o universo dos
discursos; ela não se exerce uniformemente e da mesma
maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e
em todas as formas de civilização; ela não é denida pela
atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor,
mas por uma série de operações especícas e complexas;
ela não remete pura e simplesmente
simplesmente a um indivíduo real,
ela pode dar lugar simultaneamente a vários egos, a várias
posições-sujeitos que classes diferentes de indivíduos po-
dem vir a ocupar. (Foucault, 2009: 279-80)

Em Nom Donné par l’Auteur  (1994),


  (1994), são precisamente os
mecanismos da função autor que são revelados, desmonta-
dos e recombinados por meio de uma série de procedimentos
precisos e complexos. Durante toda a peça, dois performers
(em geral, mas nem sempre, Frédéric Seguette e Jérôme Bel)57 
calmamente exploram a relação entre um objeto e seu nome.
Rodeados de objetos muito familiares (pertences cotidianos

de Derrida e “O que é um autor?” (1969) de Foucault. Para uma consideração mais recente
do impacto dessa problemática na teoria da performance, ver Schneider (2005).
57. Às vezes Claire Haenni substitui Jérôme Bel e Jean orrent substitui Frédéric
Frédéric Seguette.
Numa troca de e-mails com Jérôme Bel durante a escrita deste capítulo, ele contou-me
que embora Claire Haenni o havia substituído algumas vezes, não é o que ele próprio pre-
fere, pois isto cria a possibilidade de uma leitura rasa da obra como peça sobre as relações
heterossexuais de casal, o que não seria “nem um pouco interessante”, em sua opinião.
Portanto Claire Haenni é solicitada a atuar em Nom Donné par l”Auteur  apenas
  apenas quando
 Jérôme Bel está, por alguma razão, indisponível.

103
 

de Bel, como um aspirador de pó, uma bola de futebol, um


tapete, uma caixa de sal, um dicionário, um secador de cabelo,
uma lanterna, um par de patins de gelo, uma nota de dinhei-
ro), os dois performers
em silêncio, colocam
e colocam seus umem
corpos objeto perante
relação com oosoutro,
obje-
tos, numa série de arranjos e rearranjos de correspondências e
permutações que criam um jogo visual surpreendente e muito
aberto, sêmico e sintagmático. Bel explica, conforme cita o
crítico de dança Helmut Ploebst: “[Eu estava tentando] criar
significados em cena, ainda que fosse muito difícil e maçante
para o público – sem dança, sem música, sem figurino, sem
dançarinos” (In: Ploebst, 2001: 200). A questão portanto é:
sem dança, música e dançarinos, poderia ainda haver algo de
coreográfico nesta peça?
Para identificar como Nom Donné par l’Auteur  faz  faz uso da
coreografia
execução e éaopreciso
silêncioatentar-se ao ritmoNesta
dos performers. padronizado
peça, odasilên-
sua
cio não deve ser definido negativamente como falta de som,
mas positivamente, como um ativador, uma força, uma ope-
ração crítica. O silêncio opera na peça como intensificador
da atenção, dando densidade aos objetos. O silêncio também
posiciona os performers no mesmo nível dos objetos que eles
manipulam, ressaltando a mudez do dançarino no processo
ontohistórico de transformação da coreografia ocidental em
forma artística autônoma. Não esqueçamos que a dança oci-
dental alcançou sua autonomia representacional (e portanto
sua reinvindicação a uma ontologia) tornando-se literalmente
muda. O silenciamento
comprometimento com do corpo pela
a produção decoreografia realça seu
um puro ser-para-o-
-movimento, um esplêndido mudo-móvel.
Nom Donné par l’Auteur  nos
 nos faz lembrar que um título é só
um nome dado por um autor ou autora à sua obra. Iniciando
sua carreira coreográfica com uma peça que explora explicita-
mente a questão da nomeação no espaço do mutismo, Bel foi
até o fundamento do coreográfico para ressaltar seu cerne pa-

104
 

radoxal. A coreografia não é só uma curiosa e hipermimética


forma artística produzida pelo início da modernidade. Como
discuti no capítulo anterior,
anterior, coreografia é o nome próprio dado
por
tos” um
parapadre-juíz
que não jesuíta à tecnologia
esqueçamos deles.58de “escrever
  Não movimen-
devemos tomar
como trivial o fato do nascimento da coreografia – como nome
e como disciplina – ter sido gerado na escrita de um padre. É
aqui que a história da coreografia revela seu mais que metafórico
enredamento com o que Derrida chamou, em seu ensaio sobre
 Artaud,, de “palco teoló
 Artaud teológico
gico”” da repr
represent
esentação
ação.. A descri
descrição
ção com-
pleta deste palco por Derrida merece ser citada aqui:
O palco é teológico enquanto a sua estrutura comportar,
segundo toda a tradição, os seguintes elementos: um au-
tor-criador que, ausente e distante, armado de um texto,
 vigia, reúne e comanda o tempo ou o sentido da represen-
tação, deixando esta representá-lo no que se
s e chama o con-
teúdo dos seus pensamentos, das suas intenções, das suas
ideias. Representar por representantes, diretores ou atores,
intérpretes subjugados que representam personagens que,
em primeiro lugar pelo que dizem, representam mais ou
menos diretamente o pensamento do “criador”. Escravos
interpretando, executando elmente os desígnios provi-
denciais do “senhor”. (Derrida, 2002: 154)

No palco teológico, ainda que um ator fale, será na condi-


ção de um mutismo prévio e necessário – pois a boca do ator
não deve passar de uma câmara de ressonância para a voz do
mestre. E se oemudecer
que precisou palco teológico acolhe
o corpo para atornar-se
coreografia, uma arte
autônoma,59 

58. Foi o padre jesuíta e mestre de dança Toinot Arbeau (codinome de Jehan Jehan abourot)
quem mesclou em um só nome, pela primeira vez, o cinético e o linguístico, criando
em 1589 o primeiro significante do ser-para-o-movimento da modernidade: “orcheso-
 graphie ” (o  graphie , escrita, da orchesis , dança). Para mais detalhes sobre esta discussão,
ver Capítulos 1 e 2.
59. Não foi por acaso que uma das maiores libertadoras da voz do dançarino, Pina Bausch,
precisou romper com a tradição da composição coreográfica e da subjetividade. Bausch

105
 

então é a expressividade do corpo que dança que deve ser si-


lenciada, tornando-se nada além do que a fiel execução dos
desígnios da força da vontade do mestre – ausente, distante,
60
talvez
 Ao morto, masprimeira
criar sua presentecoreografia
como assombração
em mudez[haunting 
objetal,].
]. Bel
aponta para a força teológica do autor-coreógrafo na fundação
da coreografia. Como mostrei, esta estratégia é tornada explí-
cita em Jérôme Bel , onde a homonímia entre o título da peça e
o nome do autor acentua a ausência controladora do coreógra-
fo, ressaltando como no palco teológico o coreógrafo se deixa
“representar por representantes” (Derrida, 2002: 154). (É por
isso que Jérôme Bel não deve jamais atuar em Jérôme Bel 
Bel ).
).
Em Nom Donné par l’Auteur , a estratégia de Bel para pon-
tuar a natureza teológica do palco coreográfico é levemente di-
ferente, ainda que siga vinculada à função do nome do autor.
 Aqui, Belpara
de poder organ
organiza
o iza as condições
espectador. paraafirma
Derrida um outro
que tipo
tipo de funcio-
o bom relação
namento do palco teológico depende não apenas de uma sub-
declarou famosamente que seu interesse não era em como
com o as pessoas se movem, mas sim o
que  move
 move as pessoas. Seu anztheater emerge de um profundo diálogo com outras forças
antirepresentacionais das artes visuais e da performance do começo dos 1970 (a escultura
social de Joseph Beuys, Fluxus). De fato, o método criado por Bausch para romper com
a subjetividade muda dos dançarinos consistia em bombardeá-los com perguntas. Res-
ponder a essas perguntas era tanto um modo de habitar a boca dos dançarinos com suas
próprias vozes, quanto de dar nova forma a esses corpos, dando a ele ou ela uma nova cor-
poreidade. Ainda hoje, esse método encontra grande resistência entre muitos dançarinos
e coreógrafos. Para uma excelente narrativa situada deste processo, ver Hoghe (1987). Ver
também Fernandes (2002).

60. escrita
Aqui,
ema1810,
famosadelineia
parábola de Heinrich
claramente von Kleist,
que tipo “Sobre o 
de subjetividade oeatro de Marionetes”,
dançarino ideal deve
ter no palco teológico. O dançarino ideal é uma marionete, esvaziado de afetação e vida
psicológica interior, mudo, com um corpo flexível, juntas soltas e receptividade infinita
para os movimentos do mestre, os quais são direta e misteriosamente transmitidos do cen-
tro de gravidade do mestre para o centro de gravidade do boneco. O fato desta parábola
invocar o “livro de Moisés”
Moisés” e a queda bíblica como motivo principal dos humanos serem
menos perfeitos como dançarinos do que as marionetes não deve ser tomado como mera
coincidência. Kleist (ironicamente) identifica o palco teológico operando a todo vapor na
dança teatral. Para uma discussão mais aprofundada da relação da coreografia com uma
força ausente, porém autoritária, ver Capítulo 2.

106
 

 jetividade passiva por parte do performer


performer,, mas também de um
público passivo: o palco teológico comporta “um público pas-
sivo, sentado, um público de espectadores, de consumidores,
de ‘usufruidores’
‘usufruidores’
ro volume [...] assistindoexposto,
nem profundidade, a um espetáculo
oferecidosem
ao verdadei-
se u olhar
seu
de curiosos” (Derrida, 2002: 154). E é ativando o público
para fora de seu voyeurismo consumista que Nom Donné par
l”Auteur  expõe
  expõe sua força antirepresentacional e antiteológica.
Pois, ainda que a peça mantenha a divisão espacial entre palco
e plateia, a reiteração persistente e silenciosa
si lenciosa de formas e obje-
tos, a familiaridade destes e ao mesmo tempo sua desfamiliari-
zação na disposição de pares improváveis, tudo gradualmente
leva a uma dissolução da passividade do público. Simplesmen-
te assistir esta peça é perdê-la. É crucial estar preparado para
aceitar o convite de engajar-se com ela e sua brincadeira, pas-
sar da polissêmica
sorial, curiosidade eóptico-passiva
ativa. Só assimà receptividade
percebemos que multissen-
não há
nada de silencioso no mutismo dessa peça. Descobrimos que
“o silêncio como repouso sonoro marca igualmente o estado
absoluto do movimento” (Deleuze e Guattari, 2007: 56). De
fato, não há nada imóvel na aparente estabilidade e aparente
não-dança dos objetos e performers. O que Nom Donné par
l’Auteur  alcança
 alcança é uma leve alegria no mutismo dos objetos e
dos dançarinos. A peça revela não o silêncio das coisas, mas o
soar do significante ecoando na borda de cada objeto, o mur-
múrio da linguagem correndo na superfície de cada corpo,
como sal salpicado nas páginas de um dicionário francês.
O rumor
conceito dos objetos,
de uma sua voz teóricas
das influências não-linguística, evoca
declaradas um
de Bel:
Roland Barthes. Barthes escreve que “o rumor é o próprio
ruído do gozo plural” deduzindo “uma comunidade de cor-
pos” mas na qual “nenhuma voz se eleva [...] nenhuma voz se
constitui” (Barthes, 2004: 95). Por seu ritmo calmo e por seu
silêncio, Nom Donné par l’Auteur  revela
  revela o rumor da lingua-
gem a operar em cada um daqueles objetos e, por extensão,

107
 

em todo e qualquer objeto. Ao ativar a comunidade de cor-


pos (objetos, performers, plateia) necessária para que o rumor
opere seu “gozo plural”, a peça introduz ainda um outro giro
crítico de Barthes:
autor-mestre. a destruição
Isto acontece por do
via mito
de umdadeslocamento
figura unitáriae do
de
uma multiplicação da voz autoral: cada pessoa que assiste ati-
vamente Nom Donné par l’Auteur  torna-se
 torna-se um autor
autor..
Bel inicia portanto sua carreira coreográfica rachando a
questão da intencionalidade autoral, bem como da unidade
do autor,
autor, dentro do campo da representação: nomes são dados
pelo autor, anuncia o título da peça. Mas quem dá o quê a
quem? É possível identificar um autor em sua singularidade
intencional? A resposta de Bel é um claro não: o autor torna-
-se uma função-autor, uma multiplicidade alastrando-se para
além de uma quarta parede, graças ao rumor coletivo da no-
meação silenciosa.
 A insistência de Bel no poder da nomeação, no alastrado ru-
mor da linguagem e nos jogos sintagmáticos é particularmente
significativo para os estudos da dança, pois ela proclama para
o corpo dançante uma inegável materialidade linguística, tão
constitutiva de seu ser quanto seus aspectos anatômicos, afe-
tivos, energéticos, viscerais e cinéticos. Em Shirtologie  (1997),
 (1997),
corpo e linguagem fundem-se na demonstração de modos
de subjetivação. Um dançarino permanece em pé durante a
maior parte da peça, enquanto se despe de várias camadas de
camisetas e moletons estampados com palavras e marcas.61 
Neste solo, o corpo do dançarino surge, por metonímia, como
uma superfície estratificada de inscrição, fazendo recordar de
certa forma a descrição do corpo por Foucault como “superfí-
“superfí-
cie de inscrição dos acontecimentos (enquanto que a lingua-

61. Uma primeira versão de Shirtologie  foi


  foi criada em 1997 para o dançarino português
Miguel Pereira, comissionada pelo Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Em 1998, Bel
recriou e adaptou a peça para o dançarino Frédéric Seguette, que a executa ainda hoje
na maior parte das vezes. Em uma ocasião, eu tive a oportunidade de vê-la dançada pelo
próprio Jérôme Bel.

108
 

gem os marca e as ideias os dissolvem), lugar de dissociação do


Eu (que supõe a quimera de uma unidade substancial), volu-
me em perpétua pulverização” (Foucault, 2011: 22). Bel nos
mostra como o linguístico
representacional enreda
que captura o corpo numa
a subjetividade. estratificação
O dançarino em
Shirtologie  (geralmente
  (geralmente Frédéric Seguette) permanece em pé
no centro do palco, neutro, cabeça baixa, quase alheio. 62 Ele
entra em cena três vezes ao longo da peça e, a cada aparição,
traz no corpo dúzias de camisetas uma sobre a outra, camada
sobre camada, as quais ele muito simplesmente, em silêncio
e com o olhar baixo, remove até a última. A dramaturgia é
muito clara desde o início: a cada primeira camiseta exibida,
ou temos uma indicação sobre o que será aquela seção da peça
(a primeira seção por exemplo é uma simples contagem re-
gressiva seguindo os números estampados nas camisas, desde
uma
1998”,com “Lille 2004”1992”,
“Euro-Disney até chegar na “Copa
“ Michigan do Four 
Final FMundo França
França
our ” [Quartas
de Finais Michigan] e “One -Shirt for the Life ” [Uma Cami-
seta Para a Vida]), ou então o dançarino encena o que dita
a inscrição, desenho ou logo estampado: uma camiseta por
exemplo tem um fragmento de Eine kleine Nachmusik  de  de Mo-
zart, o qual Seguette canta. A próxima mostra uma mulher
numa pose agressiva, a qual Seguette imita. Neste sentido, as
seções de Shirtologie  desvelam
 desvelam aquela peculiar aliança da core-
ografia com a força perlocucionária do ato de fala performa-
tivo – aquela função da fala na qual “por dizer tal coisa eu o
convenço” (Austin, 1990: 96). O primeiro momento na peça
em quepor
dança o dançarino
um minutosaié da imobilidade
quando e reconhecidamente
a camiseta revelada mostra
um desenho de Keith Harring com as palavras “Dance or Die ”
[Dance ou Morra]. Convencido pelo forte enunciado, o dan-

62. Em correspondência
correspondência pessoal, Bel me disse que apreciava
apreciava a capacidade de Seguette
de “ficar parado” e quase “desapar
“desaparecer”
ecer” de sua própria presença em cena enquanto per-
forma esta peça.

109
 

çarino opta pela vida e dança enquanto canta a melodia de


Mozart outra vez.
odas as camisetas foram compradas por Jérôme Bel em
lojas
bustodearquivo
varejo,linguístico
portanto Shirtologie 
e imagético traz
 traz
queà nos
tonaespreita
todo um ro-
cons-
tantemente, um arquivo de comandos quase-invisíveis que
todos nós vestimos e exibimos (“ Just Do It ” [slogan da Nike,
“Simplesmente Faça”] e “Dance ou Morra”), um arquivo que
faz parte de nossa subjetividade e corpo-imagem na socieda-
de do espetáculo. Shirtologie  revela
  revela o modo como a cultura
da representação, uma vez associada à subjetividade do ca-
pitalismo tardio, floresce na reprodução incessante de uma
poética da mercadoria, do logotipo, da marca registrada –
tudo permeando nossos corpos, nossa linguagem, nossa per-
cepção, formando subjetividades e conformando identida-
des.
outroShirtologie  encena como
 encena
modo totalitário a representação encontra
de autofechamento: aquele
o capitalismo.
Mas como Jérôme Bel afirmou, a peça também revela como a
performance possibilita uma liberação dessa incansável rotu-
lação da identidade pelo capital sob o signo da marca regis-
trada. Em 1997, Bel criou uma versão coletiva de Shirtologie  
para um grupo de jovens não-dançarinos, e com esta versão
um permissivo bom humor achou seu lugar na dramaturgia.
Uma jovem vestindo uma camiseta com o rosto da cantora
pop Madonna interpreta a canção “Like a Prayer ”; ”; um outro
rapaz vestindo uma camiseta com as palavras “No ime to
Lose ” [Sem empo a Perder] rapidamente corre fugindo do
palco.
gia do Bel explica que,
capitalismo paranesta
nospeça, “estávamos
expressar” usando a2001:
(In: Ploebst, ener-
204). Portanto,
Portanto, existe a possibilidade
possi bilidade concreta de reenergizar
a linguagem, reenergizando as forças do capital alinhadas ao
representacional, e recodificar o ato de fala.
 Já vimos como em Nom Donné Par l’Auteur  a   a poética do
silêncio abre a possibilidade para a escuta de sutis, embora
emudecidas, modulações do significado, através de uma con-

110
 

frontação direta com objetos. Mas o que acontece quando so-


mos confrontados diretamente com a linguagem? Estaremos
todos inevitavelmente submetidos ao seu comando, à sua for-
ça
Nailocucionária e perlocucionária,
peça  Jérôme Bel    encontramos umae mesmo à sua
resposta violência?
direta a esta
pergunta. Eu já expus como a linguagem paira sobre esta peça,
criando suas condições de visibilidade e sobredeterminando a
presença dos dançarinos. Mas algo de extraordinário ocorre na
intersecção entre corpo e linguagem nesta bela peça, algo flui-
do que suspende a prisão domiciliar do corpo pela linguagem
e pelas leis da significação e da assinatura. A fluidez surge atra-
vés da ação daquilo que Georges Bataille chamou de “excesso
inassimilável” que o corpo constantemente produz. Em deter-
minado momento da peça, Frédéric Seguette e Claire Haenni
urinam no chão. Em silêncio, o corpo visceral age, trazendo
àra tona
e nemuma interioridade
controla que a representação
completamente. Muitos enxergamnão conside-
este ato
como indecente, a despeito da sua suave e tranquila execução.
Ele certamente causou um embaraço de Jérôme Bel  com  com as leis
de atentado ao pudor das cortes europeias.  Mas o ato de uri-
63

nar não puxa atenção só para os funcionamentos internos do


corpo visceral – ele também tem uma função. Ele será usado
para indicar como o corpo é o agente primário de transfor-
mação da linguagem. Quando os dois dançarinos terminam
de urinar, eles pegam o líquido com as mãos e o utilizam para
apagar as letras e números escritos na parede. Os nomes desa-
parecem, mas algumas letras são deixadas de modo a formar
uma frase queanteriores:
nos rabiscos afinal revela um potencial linguístico
“Eric escondido
chante Sting ” [Eric canta Sting].
odos os performers saem de cena e um homem, totalmente
vestido, entra, põe-se de pé na penumbra e canta a canção “ An
Englishman in New York ” de Sting. Se a linguagem, o nome, a

63. Sobre a ação judicial e acusação de obscenidade contra o International


International Dance Festival
na Irlanda por ter exibido Jérôme Bel  em
 em 2002, ver Capítulo 1.

111
 

história, a propriedade e os títulos podem ser apagados, rear-


ranjados, transformados em brincadeira, e se nesta brincadeira
o que é reescrito pode conjurar uma nova performance, um
novo corpo, um
nova canção, tudonovo
issoperformativo, uma novo
acontece graças começo,
um apagar e auma
um
reescrever ativado pelo que o corpo visceral dos dançarinos
produz. Apagar,
Apagar, reescrever, renomear,
renomear, revocar – todas elas ope-
rações possibilitadas quando a força do nome que estruturou
toda a peça é desfeita por aquele excesso inassimilável que o
corpo produz. Este reescrever evoca os termos de Judith Bu-
tler quando ela recupera a noção de sujeição em Althusser em
relação do ato de fala de Austin: “Nós fazemos coisas com a
linguagem, produzimos efeitos com a linguagem, mas a lin-
guagem é também a coisa que nós fazemos. Linguagem é o
nome do nosso fazer” (Butler,
(Butler, 1997b: 8). Bel propõe uma no-
ção muito específica
e dinâmica de linguagem,
quanto o próprio corpo. tão maleável,propõe
Ele também brincalhona
como
o corpo, em sua ativação mais visceral, não é uma mera super-
fície de inscrição dos discursos, como identificou Foucault,
mas um instrumento de escrita, um agente inassimilável que
constantemente reescreve a história de volta.
 Até aqui, eu venho discutindo os elementos básicos da crí-
tica da representação de Jérôme Bel ao enfatizar a importância
dos elementos não-cinéticos em seu trabalho: a crítica ao po-
der autoral, a questão da indeterminação da presença no cam-
po do nome, a crítica do palco teológico, a ativação da plateia.
 Agora, me interessa tratar por que a crítica da participação da
coreografia na máquina
ção, deve envolver uma de criar sujeitos,
cinética do lento,que
do éimóvel,
a representa-
isto é,
uma deflação particular do movimento.
 Assim como Bel mobiliza a singularidade para propor
como a subjetividade é sempre uma multiplicidade, eu diria
que ele mobiliza o parado e a lentidão para propor como o
movimento não é só uma questão de cinética, mas também
de intensidades, de criação de um campo intensivo de micro-

112
 

percepções.64 Entender o movimento como intensidade abre


espaço para uma crítica da participação da representação no
continuum  ontopolítico entre representação e subjetividade
que nos leva
paragem. diretamente
Assim à questão
como o silêncio nãodo parar,por
é usado doBel
parado,
comoene-
da
gação do sonoro, também o parado não é usado como negação
do movimento. A crítica da ontologia política da coreografia
em Bel deriva das fortes ativações políticas e epistemológicas
contidas no ato-parado, o qual delimita para a dança aquilo
que não parece ser próprio de sua ontologia.
 A antropóloga grega Nadia Seremetakis propôs o concei-
to de “ato-parado” para descrever uma política dos sentidos
que enseje “a capacidade perceptiva para uma criação histórica
elementar” (Seremetakis, 1994: 13).65 Na crítica da represen-
tação articulada por Bel, a capacidade perceptiva ativada para
gerar uma política
ontologia “criaçãodahistórica elementar”
coreografia é a que evidencie
como tecnologia essenciala
de subjetivação. Se aceitarmos a premissa de Peter Sloterdijk,
discutida no primeiro capítulo, de que a ontologia da moder-
nidade é um puro “ser-para-o-movimento”, e se lembrarmos
do fato histórico de que o poder (o poder teológico, o poder
régio, o poder de estado) ocupa o centro do ser coreográfico,
emblematizado pelo emparelhamento da igreja com a lei atra-
vés de Arbeau e Capriol, bem como pela criação da primeira
 Academia de Dança em 1649 por Luís XIV XIV,, bem como por
sua dança como manifestação do poder totalitário do corpo
autônomo em movimento (Franko, 2002: 36), então procede
que a intrusão do parado na coreografia (o ato-parado) dá iní-

64. Para uma fenomenologia do microperceptível


microperceptível do parado na dança do séculoséculo XX, ver
meu ensaio “Still: On the Vibratile Microscopy of Dance ” (Brandstetter et al., 2000).
65. Para uma discussão sobre a noção de “ato-parado” (“still-act”) em Seremetakis,
Seremetakis, ver
Capítulo 1.

113
 

cio a uma crítica ontopolítica da perene interpelação cinética  


do sujeito pela modernidade.66 
Sloterdijk observou que a modernidade gera seu ser cinéti-
co a partira de
preceder uma “acumulação
acumulação primáriade
dosubjetividade”, a qual
capital defendida peladeve
te-
oria marxista como fundamental para a expansão da moder-
nidade capitalista. Se concordamos com Sloterdijk quando ele
diz que a forma da subjetividade moderna é um puro “ser-pa-
ra-o-movimento”,
ra-o-movimento ”, e que a modernidade interpela seus sujeitos
de modo a transformá-los em “auto-móveis”, então o que a
subjetividade precisou acumular primariamente até tornar-se
este ser-para-o-movimento foi energia em potencial, a qual a
modernidade libera na forma de energia cinética. Mas, uma
vez que não há qualquer sistema vivo energeticamente autô-
nomo, a própria ideia de uma subjetividade autonomamente
cinética, isto é, a ideia
automobilizadora, de como
emerge uma subjetividade
a manifestaçãoautocontida
de uma pro-e
funda cegueira ideológica. eresa
eresa Brennan afirma:
O sujeito não é palpavelmente a fonte de toda agência,
agência , uma
 vez que é energeticamente
energeticamente conectado ao (e portanto afeta-afeta-
do pelo) seu contexto. De tão insolente, o sujeito moderno
considera este fato intragável; o sujeito aferra-se à noção de
que os seres humanos são energeticamente separados, que
nascem desta forma, dentro de uma espécie de cápsula que
os protege e os separa do mundo. A rigor, esta cápsula foi
adquirida, ela se chama ego (Brennan, 2000: 10).

Brennan sugere que a subjetividade moderna depende de


um projeto energético particularmente predatório e exaustivo.
Este projeto exige, por um lado, uma exibição contínua do
imperativo ontológico de se pôr em permanente estado de agi-
tação, e, por outro lado, requer também a pilhagem de todo e

66. Para uma explicação do meu uso de “subjetividade


“subjetividade”” e “subjetivação
“subjetivação”” em relação à noção
de interpelação em Althusser
Alt husser,, ver Capítulo 1.

114
 

qualquer recurso que esteja à mão para sustentar o espetácu-


lo da mobilidade. Ao representar a si mesma constantemente
como espetáculo cinético e negar sua falta de autonomia ener-
gética, a subjetividade
lista com toda sorte demoderna
fontes deestabelece sua relação
energia, sejam estas colonia-
naturais
e fisiológicas ou afetivas: desejos, afetos, devires.  O tipo de
67

performance que estrutura o autofechamento da subjetividade


dentro da representação, como uma clausura na mobilidade
espetacular compulsiva, é aquela que o começo da modernida-
de inventou e nomeou: a coreografia. A coreografia é uma tec-
nologia necessária para uma subjetividade errática e agitada,
que só consegue achar sua fundamentação ontológica como
eterno ser-para-o-movimento.68 
 Ao descrever as principais características do trabalho do
coreógrafo alemão Tomas Lehmen, o teórico da dança Ge-
rald
usariaSiegmund levanta algumas
para caracterizar a críticapeculiaridades
de Jérôme Belque eu também
à participação
da dança neste projeto de perpétua agitação. Siegmund ob-
serva que é importante “evitarmos representar o corpo como
signo a ser consumido pelo público como representação da
flexibilidade, mobilidade, juventude, atletismo, força e poder
econômico” (Siegmund, 2003: 84). Não é de surpreender,
portanto, que a dança precise ser desacelerada – como modo
de desacelerar o ímpeto cego e totalitário da máquina cinéti-
co-representacional.

67. Ver Exhausting Modernity  de


  de eresa Brennan para uma proposição original e extrema-
mente lúcida de como a modernidade e a economia psicológica do capitalismo devem ser
tratadas como “estudo das conexões energéticas e afetivas” (Brennan, 2000: 10). A esse res-
peito, é intrigante que a análise de Brennan negligencie a crítica marxista da psicanálise e da
subjetividade levada a cabo por Wilhelm Reich no começo dos anos 1930, a qual inaugurou
uma teoria da energética em relação às patologias individuais e sociais e que está por trás
de muito do que articulam Deleuze e Guattari acerca do capitalismo e sua Edipização da
representação em Anti- Édipo. Ver Reich (1972, 1973) e Deleuze e Guattari (2010),  passim.
 Anti-Édipo
68. Para uma maior discussão sobre a emergência da coreografia como neologismo e tec-
nologia da subjetivação moderna, ver Capítulo 2.

115
 

Bel tem um modo muito particular de desacelerar


desaceler ar a dança.
 Aqui, gostaria de retornar a Te Last Performance  [A
  [A Última
Performance] e propor uma leitura de seu uso particular da-
quela intrigante que
na paronomásia figura retórica,localizar
podemos a paronomásia.
a propostaAcredito ser
de Bel para
uma ontologia política mais lenta da coreografia.
Eu já mencionei no começo do capítulo como Te Last
Performance   desdobra-se a partir de uma desestabilização
constante das relações de propriedade entre corpo, self, iden-
tidade, corpo-imagem e o nome. Eu gostaria de voltar àquele
momento da peça em que o dançarino Antonio Carallo olha
fixamente para a plateia e anuncia: “Eu sou Hamlet”, fazen-
do então uma pausa e dizendo “Ser...”, retirando-se do palco,
pausando mais uma vez, e gritando das coxias “ou não ser...”,
retornando finalmente à cena e, posicionado centralmente em
frente ao microfone,
Seguindo-se a umfinaliza sussurrando,
corpo que alegava ser“eisJérôme
a questão”.
Bel e ou-
tro que se declarava Andre Agassi, um Hamlet entra em cena.
E eu gostaria de enfatizar o artigo indefinido que precede o
nome próprio; ou melhor, o emparelhamento entre artigo in-
definido e nome próprio. Deleuze propôs que o artigo inde-
finido é “a potência [ puissance 
 puissance ] de um impessoal que não é
uma generalidade, mas uma singularidade no mais alto grau”
(Deleuze, 2008: 77-78). Com Guattari, Deleuze também ob-
servou como “o nome próprio não indica um sujeito [...]. O
nome próprio designa antes algo que é da ordem do aconteci-
mento”” (Deleuze e Guattari, 2007: 51). Desta forma, um Ha-
mento
mlet que entra em
acontecimento cena em
singular
Te Last Performance  significa
 significa esta
do mais alto grau. Que potência um
singularidade traz consigo? Qual acontecimento esta entrada
anuncia? A potência é aquela da questão fundamental, a força
do ontológico. O acontecimento é o de prefaciar a primeira
erupção da dança coreografada em toda a obra de Bel. Depois
de quatro anos e três peças, finalmente, a dança!

116
 

Por que o acontecimento da dança coreografada no traba-


lho de Bel precisa ser precedida pela questão fundamental de
um Hamlet? Francis Barker elucidou que o Hamlet de Shakes-
peare articulou,
“sistema primeiramente
de presença” no qual “a emortal
presença” de forma muito clara,
subjetividade um
do mo-
derno já começa a emergir” (Barker, 1995: 21). Para Barker,
os conflitos de Hamlet são aqueles que designam a emergên-
cia da subjetividade moderna como um sistema de presença
subjugado à visibilidade, à melancolia e à disciplina. Hamlet
anuncia a invenção do sujeito monádico moderno, um sujei-
to centralizado num eu, contido pelos limites do corpo, iso-
mórfico àquele corpo entendido como propriedade privada,
portador de uma biografia, alojando segredos privativos e fan-
tasmas exclusivos, responsável perante o estado, estritamente
binomial em termos de gênero, domesticado no investimento
de seu desejo
sistema (Barker,
de presença, 1995: 10-37).
ao emaranhar Vale ressaltar
o espetáculo que este
da visibilidade
v isibilidade
no cerne da subjetividade, é também um sistema de represen-
tação. E este sistema de representação “designa mais do que
um tipo particular de construção teatral”, estendendo-se para
toda a lógica cultural do Ocidente (para evocar as palavras de
Derrida na epígrafe a este capítulo).
Portanto, a entrada de um acontecimento-Hamlet em Te
Last Performance  cria
  cria ressonâncias ontohistóricas e políticas:
um Hamlet entra permitindo assim que o advento de uma
dança coreografada seja possível. É como se Jérôme Bel propu-
sesse que sem este sujeito monádico, sem a questão melancó-
lica acerca do ser como uma
visibilidade/interioridade decisão binomial entre presença/
ou ausência/invisibilidade/exteriori-
dade, isto é, sem um Hamlet, não teria havido coreografia .69 
Logo, quando Bel leva Carallo-Hamlet a entrar em cena em
Te Last Pe rformance , seu proferimento e sua presença não tra-
Performance 

69. Para uma exploração desta ideia e da relação entre o advento da coreografia e a pulsão
melancólica por trás de sua percepção da ausência, ver Capítulos 2 e 7.

117
 

tam apenas da história do teatro: eles são enunciados extrema-


mente provocativos direcionados à ontologia política da dança
cênica ocidental.70 
ão logo
de cena, Carallo-Hamlet
a dança lança apor
entra corporificada questão
Claire ontológica
Haenni, quee sai
irá
dançar um fragmento de Wandlung  (1978),
 (1978), de Susanne Linke,
ao som de  A Morte e A Donzela  de de Franz Schubert.71 A dan-
çarina entra em cena vestida de branco e usando uma peruca
loura, aproxima-se do microfone e anuncia, em tom neutro:
“Ich bin Susanne Linke ” [Eu sou Susanne Linke]. Então, ela se
posiciona ao fundo do palco e dança a pequena coreografia de
Linke. Quando, em agosto de 1999, eu assisti Te Last Per-
 formance  no
  no Teatre am Hallescher Uffer, em Berlim, houve
uma imensa diminuição da tensão neste momento. O público
 já estava à beira de um motim,
motim, quando
quando afinal
afinal apareceu
apareceu o movi-
mento. 72
 Finalmente,doalguém
delos reconhecíveis acompanhava
que é “dança”. Fluxo,a música
música nos mo-
clássica,
corpo, presença, mulher, feminilidade, movimento contínuo,
vestido branco gracioso – era possível finalmente entrar na
zona de reconhecimento e relaxar com o cinético familiar. Mas

70. Como sugeri


sugeri anteriormente,
anteriormente, a questão da ontologia é central para os estudos da per-
formance. É curioso ver como um Hamlet também surge na identificação de Richard
Schechner de uma profunda instabilidade própria à performance, como se Hamlet fosse
um evento inevitável na relação da performance com o ser: “oda
“oda performance efetiva-
mente partilha dessa qualidade ‘não / não-não’: Olivier não é Hamlet, mas ele também
não não é Hamlet: a sua performance está entre uma negação de ser o outro (=Eu sou
eu) e a negação de não ser o outro (=Eu sou Hamlet)” (Schechner, 1985: 123). Pode-

ríamos  eargumentar
insight  e que em sua totalidade, Te Last Performance  gira
dessa ambiguidade.   gira em torno desse
71. A coreógrafa Susanne Linke, assim como Pina Bausch, é uma das mais importantes
inventoras do anztheater  alemão.
 alemão.
72. Em sua palestra sobre Te Last Performance  no  no anzquartier
anzquartier Wien, em março de 2004,
20 04,
Bel narra como na estreia da peça em Bruxelas alguns espectadores entraram no palco
proferindo insultos ao coreógrafo e aos dançarinos, desencadeando
desencadea ndo assim confrontos entre
o próprio público. Em Berlim, em 1999, eu testemunhei algumas vaias e exigências para
que houvesse “Dança!”. É como se o trabalho de Bel fosse capaz de ativar, com sua quieta
atmosfera, aquele papel histórico que os espectadores burgueses de dança tomaram
tomara m para si
desde Sacré du printemps  de
 de Nijinsky: o papel do desordeiro.

118
 

o segmento de Linke é curto, não passa de quatro minutos, e


começa com a dançarina deitada no chão próxima e paralela
à parede dos fundos, e ali permanecendo quase o tempo todo.
Quando Haenni-Linke
bate a cara. sai deLinke
Eis que Susanne cena, torna
a familiaridade logo
a entrar no nos
palco,
desta vez num corpo chamado Jérôme Bel. Bel-Linke anuncia:
“Ich bin Susanne Linke ”.
”. A música recomeça e também a dan-
ça, no exato lugar previamente ocupado por Haenni-Linke, as
mesmas notas, os mesmos movimentos executados na mesma
delicada precisão. A dança termina, Bel-Linke deixa o palco e
Carallo-Linke entra usando o mesmo vestido branco e anun-
ciando “Ich bin Susanne Linke ”.”. Ele dança a mesma sequência
e é seguido por Seguette-Linke que recomeça toda a ação mais
uma vez. O que está sendo declarado no ato de fala proferido
por cada dançarino que prefacia cada nova dança, “Ich bin
Susanne Linke ”?
em sua contínua ”? repetição,
O que estácomo
em jogo nesta dança
a reconfigurar empacada
o movimento
teleológico linear do tempo?
Numa fala pública sobre Te Last Performance  apresentada
 apresentada
algumas vezes pela Europa, Bel menciona como concebeu esta
cena de dança em torno de duas questões principais: a questão
formal sobre como citar uma peça de dança, tipo um rapper
que samplea uma canção de outro músico, e a questão per-
ceptiva sobre como a repetição gera séries de diferenças. Bel
diz ter achado inspiração em Diferença e Repetição de Deleuze
durante a composição da peça. Neste livro, Deleuze pergunta:

O paradoxo da repetição não está no fato de que não se


pode falar em repetição a não ser pela diferença ou mu-
dança que ela introduz no espírito que a contempla? A
não ser por uma diferença que o espírito transvasa à repe-
tição? (Deleuze, 2006: 75)

119
 

Portanto, cada reiteração de passos, música, vestido e pro-


ferimento do nome do autor inevitavelmente põe à vista a di-
ferença na essência da repetição.
tem A de
repetição
imóvel.cria
E uma formaparticular
a forma de ficar parado em pé que
de repetição nada
utilizada
nesta cena de dança em Te Last Performance  é   é reminiscente
da paronomásia, um termo composto do grego  para , simul-
taneamente “ao lado de” e “para além de”, e onomos , “nome”,
indicando portanto pequenas variações de sentido, caracterís-
tica própria do trocadilho. E como se performa esse tipo de
movimento paronomástico? Linguisticamente, pela reiteração
cuidadosa de uma ideia através do encadeamento de diferen-
tes palavras que partilham a mesma raiz. Esta repetição-com-
-uma-diferença dá corpo a um espaçamento reiterativo da
ideia, propiciando um tipo específico de giro lento que “dá
variação a ‘objetosGraças
tos e aparências. intelectuais’ e portanto
à paronomásia, muda seuséaspec-
a linguagem capaz
de fazer um objeto girar e girar” (Rapaport, 1991: 108). Mas
como se dança um movimento paronomástico? Dançando
Wandlung  repetidas
 repetidas vezes, percebemos que aqueles corpos di-
ferentes estão menos interessados em sustentarem ser Susanne
Linke do que em experimentar o que acontece quando se deci-
de mover ao lado de um nome  –  – isto é, engajar-se literalmente
em paronomásia. Além de trazer humor à cena, esta forma
particular de repetição em movimento revela como dançar ao
lado e para além de um nome é também permanecer com ele,
revelar suas facetas escondidas, desdobrá-lo, liberar suas linhas
de
mentefuga,deve
romper com para
assegurar a ilusão
seu de fixidez que o nome suposta-
referente.
O que se cria neste momento intrigante em que a repetição
confunde a percepção, graças à paronomásia? O que se propõe
através dessa exibição contundente da máquina coreográfica?
Didi-Huberman escreve sobre como qualquer “acte immobi-
le ”,
”, devido à sua natureza paradoxal, é um “discreto porém
perturbador acontecimento da memória” (Didi-Huberman,

120
 

1998: 66, grifo no original). De modo similar, a paronomá-


sia cria condições perceptivas e críticas que revelam como a
coreografia pode escapar do “sistema de presença”, reificado e
cristalizado
famosos versoscomo umB.verdadeiro
de W. Yeats em truísmo
seu poemada “Entre
dança Crianças
naqueles
de Escola” [ Among
 Among School Children]: “Oh corpo animado pela
música, Oh visão iluminada, / Como distinguir a dançarina
da dança?” [O body swayed to music, O brightening glance, /
How can we know the dancer from the dance? ]. ].
Peggy Phelan acertadamente identificou, nesse poema de
 Yeats,
 Yeats, um intra
intratável
tável desejo escópi
escópico
co vincu
vinculado
lado a essa capt
captura
ura
espetacular do corpo dançante em sua pura e fugaz visibilidade:
O fato da dançarina sempre   servir de índice da dança
moderna ocidental é mais do que uma evidência lógica

da intratabilidade
bretudo um sintomada do
persistente
desejo dequestão de Yeats;
ver o corpo é so-
do outro
como espelho e  como
 como tela para o próprio corpo daquele
que olha. (Phelan, 1995: 206)

 A cada vez que Wandlung  é é dançada em Te Last Performan-


ce , a cada vez que a paronomásia faz a dança surgir diferente-
mente em sua similaridade, a cada vez que um corpo diferente
traz para o mesmo fragmento de dança variações inconscien-
tes de ênfase e micromarcas incontroláveis de individualida-
de, nós testemunhamos uma subversão daquela “intratável”
identificação entre dançarino e dança. A paronomásia revela a
dança como independente do dançarino. Revela a coreografia
como uma máquina fantasmática, um sequestrador de corpos.
Revela o efeito telepático no coreográfico, a manifestação da
força inquientante e espectral [haunting ] da coreografia. Na
manifestação paronomástica da coreografia, a dança emerge
como força desencarnada pronta a ser ocupada por qualquer
corpo. Ao descolar a dança do dançarino, o dançarino pode
ser habitado por outros passos não pré-formatados; e a coreo-

121
 

grafia desvela a si mesma como sempre esgarçada pelos tremo-


res, atos involuntários, morfologias, desequilíbrios e técnicas
de cada corpo. Imune à fugacidade do olhar, mas denuncian-
do a natureza
modo da coreografia
paronomástico do “sercomo
visto”,cúmplice inevitável
o dançarino de um
pode reivin-
dicar outros modos de lidar com o visível.
oda repetição é um tipo de queda; a queda numa ar-
madilha chamada temporalidade. A queda no tempo que o
ato-parado desencadeia é também ativação da proposição de
uma ética do ser que será sempre um embaraço com o tem-
po. Sloterdijk explica que Heidegger deliberadamente escolhe
uma palavra para caracterizar esta queda na temporalidade
de modo a distanciar qualquer noção metafísica ou cristã da
Queda: Verfallen. Em Ser e empo, Heidegger escreve: “Assim,
“Assim,
a de-cadência [Verfallen] da presença também não pode ser
apreendida como ‘queda’2005:
e superior” (Heidegger, de um ‘estado
237). 73 Na original’, maispara
sua tradução puroo
inglês de Ser e empo, Joan Stambaugh observa que “Verfallen 
é, por assim dizer, um tipo de ‘movimento’ que não leva a
lugar algum” (In Heidegger, 1996: 403).74 Este tipo de mobi-
lidade que permanece a postos, este movimento que não leva
a lugar algum, mas vai para todos os lados porque permane-
73. Na tradução para o inglês
inglês utilizada por André Lepecki: “Tus, neither must the entan-
glement (Verfallen) of Da-sein be interpreted
int erpreted as a ‘fall’ from a purer and
an d higher ‘primordial
condition’” (Heidegger, 1996: 164). Portanto, “entanglement ( Verfallen) of Da-sein” é
traduzido como “de-cadência da presença” por Marcia Sá Cavalcante Schuback na edição
brasileira. Mantenho a versão brasileira aqui com ressalvas, considerando que o termo

“de-cadência”
alemã Verfallenretém
 evoca.um desejável
Mas duplonotar
é necessário sentido
quede queda e“ entanglement 
a palavra degradação que
” – aequivalente
expressão
a “embaraço” em português – que Joan Stambaugh escolheu para traduzir Verfallen neste
parágrafo, expressa melhor o sentido de “movimento que não sai do lugar” que Lepecki
procura ressaltar aqui.
a qui. (N..)
(N..)
74. O autor faz referência
referência a uma nota da tradutora norte-americana que não não consta na
versão brasileira, portanto deixei a referência original no corpo do texto. “ Entanglement ”
ou “ falling pray ”,
”, duas expressões utilizadas por Stambaugh na tradução de Verfallen 
podem ser traduzidas como “embaraço
“embaraço”” ou “queda na rede” (e.g. numa armadilha) em
português, portanto um movimento que não leva a lugar algum (“ movement that does
not get anywhere ”).
”). (N..)

122
 

ce parado, é o da paronomásia. Herman Rapaport o descreve


como “um ir além, mesmo quando se permanece no mesmo
lugar” (1991: 14), e ressalta que a paronomásia influencia pro-
fundamente
além enquanto a filosofia de Heidegger
se permanece a postos? eEde Derrida.
o que se podeComo ir
ganhar
com este movimento? Eu diria que o movimento paronomás-
tico desarma a imposição que o ser-para-o-movimento da
modernidade impõe sobre a subjetividade para que este esteja
sempre na  hora . A paronomásia oferece à subjetividade modos
alternativos de estar no  tempo. A paronomásia insiste na rei-
teração daquilo que nunca é exatamente o mesmo e, em sua
lenta, incerta, bamba pirueta, possibilida a extração de uma
seiva de temporalidade que concede ao corpo figurar em um
outro regime de atenção e fincar os pés em outro – menos fir-
me – chão (ontológico). Neste, o movimento pertence mais às
intensidades do que
entendido menos à cinética;
como forma esólida
o corpo
do em
queaparição
como um deve ser
desli-
zamento por linhas de intensidade.
 A operação paronomástica, queque é uma operação coreográfi-
ca, transforma qualitativamente a questão ontológica da dan-
ça. Ela consegue isso através da manipulação de velocidades,
através de uma atenção que cuidadosamente revela zonas e flu-
xos de intensidade de outro modo insuspeitados. Esse entalhe
e expansão temporal performam-se neste que é o ato mais mal
interpretado na dança: o permanecer parado. Esta intensifica-
ção do parado em paronomásia, além de pedir um novo regi-
me de atenção, um novo cuidado em relação aos mecanismos
que viabilizam a aparição
a cronometragem do corpo
da ontologia, dançante,
dando espaçodesafia
a umatambém
tempo-
ralidade radical contra a queixa melancólica da dança: uma
temporalidade que excede os limites formais da presença e
que não é amarrada na apresentação da presença. É assim que
eu compreendo a noção de “ontologia mais lenta”
lenta” em Gaston
Bachelard, uma ontologia das multiplicações e intensificações
dos micromovimentos e da fluidez energética, uma ontologia

123
 

das vibrações e dos atrasos, uma ontologia atrasada, ou seja,


“mais segura que aquela que se baseia nas imagens geométri-
cas” (1978: 337).
Euparado
ca do gostariaparonomástico
de finalizar ressaltando
demandaque
umaa morada coreográfi-
reconfiguração dos
termos que nos ajudam a refletir teoricamente, bem como a agir
coreograficamente, em cima da ontologia política da dança. Na
coleção de gestos, atos de fala, personagens, roteiros e fantasias
que tem historicamente servido de alicerce para a dança cênica
ocidental, a dança foi abduzida por um exaustivo programa de
subjetividade, uma idiótica economia das energias, um impos-
sível corpo e um melancólico lamento sobre uma noção muito
limitada de tempo e temporalidade. A paronomásia coreográfi-
ca na forma do ato-parado propõe um programa para o corpo,
para a subjetividade, para a temporalidade e para a política, o
qual liquefaz
da dança, mase também
desaceleraasnão só os pressupostos
infelicidades e idioticesdaincrustadas
ontologia
na reprodução pela dança do projeto cinético da modernidade,
na sua infinita aceleração e agitação. Uma desaceleração onto-
lógica desta ordem inaugura um projeto energético diferente,
um novo regime de atenção, pois relança a figura do dançarino
e de sua subjetividade por novas linhas de potencialidade para a
ontologia política do coreográfico justo no momento de maior
exaustão do movimento.

124
 

III
DESABAR A DANÇA
 A C O N S T R U Ç Ã O D O E S PA
PAÇÇO
EM TRISHA BROWN E LA RIBOT

Um sentimento corrente entre os pintores e que


os leva a criar um espaço no qual qualquer coi-
sa pode acontecer é um sentimento que também
acomete os dançarinos. (Cunningham, 1997: 66)
Meados de março, 2003. Por dois dias consecutivos, a
coreógrafa norte-americana risha Brown performou It’s a
Draw / Live Feed  [É [É um desenho / Projeção ao Vivo] no Fa-
bric Workshop
Workshop and Museum (FWM) da Filadélfia, um even-
to em colaboração com o Departamento de Arte Moderna
e Contemporânea do Philadelphia Museum of Art. A per-
formance de Brown era incomum: sozinha, numa das gale-
rias cubo-branco do museu, ela daria forma ao que o release
do FWM chamou de “desenhos monumentais em contexto
público”. Essa performance de Brown, difícil de categorizar
–foium híbrido“ao
assistida devivo”
dançapor
improvisada e desenho
um público automático
acomodado em outro–
espaço do museu, através de uma projeção simultânea em
vídeo da dança-desenho.
Meados de março, 2003. Por dois dias consecutivos, a
coreógrafa espanhola Maria La Ribot performou Panoramix  
no ate
ate Modern de Londres, um evento
e vento em colaboração com
a Live Art Development Agency.
Agency. A performance
per formance de La Ribot
 

era incomum: em uma das galerias cubo-branco do museu,


ela criaria o que o release do evento chamou de “performance
de longa duração”, agrupando em contexto público os últi-
mos
Drawdez anosFeed 
/ Live de ,seu trabalho cênico.
o Panoramix  Ao contrário
  de La Ribot
 de de It’s a
foi apresentado
para um público que dividiu o mesmo espaço da galeria com
a própria dançarina.
Estes dois eventos temporalmente coincidentes – nos quais
a dança aconteceu no espaço das (e em diálogo com) as ar-
tes visuais – foram concebidos por duas coreógrafas separadas
pela nacionalidade, estilo, geografia e geração. Apesar de extre-
mamente distintos, os dois eventos foram aproximados criti-
camente por uma insistência singular na relação da dança com
as artes visuais. No caso de Brown, tratava-se da relação da
dança com o desenho. No caso de La Ribot, da dança com a
escultura e a instalação.
te articularam um gestoMais além,deas reavaliar
explícito duas peças similarmen-a
criticamente
complexa relação da dança e das artes visuais com a horizonta-
lidade. Em outras palavras: ambas as coreógrafas ocuparam-se,
de diferentes maneiras, em tratar de um plano que manteve
uma relação particularmente problemática com a política de
gênero nas artes visuais do século XX: o plano horizontal.
O uso da horizontalidade nas artes visuais do período pós-
-segunda guerra mundial é usualmente traçado de volta a Ja-
ckson Pollock
Pollock e sua derrubada
derr ubada da tela do plano vertical para o
horizontal, em 1947. Eu seu ensaio “Horizontality”,
“Horizontality”, Rosalind
Krauss (Bois e Krauss, 1997) argumenta que o rebaixamento
da tela (da
apenas verticalopara
permitiu a horizontal)
surgimento de suaefetuado
técnicapor
de Pollock não
gotejamen-
to ( dripping ),), mas também, mais fundamentalmente, abriu a
possibilidade para futuras subversões (nunca exploradas pelo
próprio Pollock) daquela “eretilidade fálica” que Henri Lefe-
bvre dizia “conferir um status especial ao perpendicular, pro-
clamando a falocracia como orientação do espaço” (Lefebvre,
1991: 287). Krauss apoia sua leitura sobre horizontalidade

126
 

em um antigo fragmento de Walter Benjamin no qual o fi-


lósofo alemão propõe uma distinção entre os planos vertical
e horizontal baseada na relação que cada plano mantém com
adafiguração e arepresentação,
pintura, da escrita. Para Benjamin,
daquilo queo “contém
plano vertical éo
objetos”,
enquanto o horizontal é o plano da marca gráfica, da escri-
ta – que “contém signos” (Benjamin, 1996: 82).75 Seguindo
esta ideia, Krauss defende que a derrubada da tela por Pollo-
ck subverte o favorecimento da verticalidade como plano de
representação da pintura (Bois e Krauss, 1997). Eu comple-
mentaria a observação de Krauss dizendo que essa derrubada
permitiu também a Pollock literalmente transformar a tela em
chão, em terreno, território limpo sobre o qual o artista pode
pisar de acordo com sua vontade e imprimir os traços de seus
movimentos. Neste sentido, as ações de Pollock sobre a tela
derrubada
da aqui comoeram
atoequivalentes
de captura de a uma territorialização,
um ambiente entendi-
e transformação
deste numa propriedade por meio de uma marca (Deleuze e
Guattari, 2007: 123). Dado o “patrionismo de pai fundador”
[ founding
 founding father patrionics ] (Schneider,
(Schneider, 2005: 26) informando
os discursos críticos sobre a action painting   de Pollock, sua
caminhada sobre a tela branca derrubada imbui-se da aura mí-
tica da proclamação de um território virgem, da colonização
do horizontal como aquela “terra vazia ou deserta
deser ta cuja história
tem de ser começada
começada”” (Bhabha, 2003: 339).
alvez por suas ações na tela horizontal terem sido de fato
sobre a criação de um território virgem, Pollock nunca com-
prometeu-se
teiras que suacompletamente
derrubada do plano com representacional
o atravessamentopreconiza-
de fron-
va. Ele jamais conseguiu re-localizar a pintura fora do espaço
próprio da tela, deixar que a pintura seguisse o jorro de tinta
75. “Poderíamos falar de dois cortes atravessando
atravessando a substância do mundo: o corte longi-
tudinal da pintura e o corte transversal de certas produções gráficas. O corte longitudinal
parece ser o da representação, ele contém, de certo modo, as coisas; o corte transversal é
simbólico, ele contém signos” (Benjamin, 1996: 82).

127
 

que escapava ao domínio territorializado por ele estabelecido.


Como apontado por Krauss, a derrubada da tela em Pollock
não passou de um momento transitório na produção de suas
pinturas; não um fim,privilegiada
volta a verticalidade mas um meio paraimperativos
pelos que a tela achasse de
represen-
tacionais da economia visual do consumo da arte. Mas suas
ações sobre a tela derrubada, sua pisada e seu derramamento
de tinta sobre ela, indicavam claramente que havia um po-
tencial de atravessamento do qual aqueles mais dispostos a
sair do enquadramento pictórico poderiam lançar mão. Em
1958, como é sabido, Allan Kaprow anunciou como as ações
de Pollock
Pollock sobre a tela derrubada o inspiraram a criar suas
próprias ações e happenings . Kaprow viu nas ações de Pollock
um potencial de liberação não apenas da pintura, mas do fazer
artístico como um todo: o artista deveria atravessar
atravess ar a fronteira
da telanae entrar
entrar “vida” na esfera &
(Kaprow social, ou,2003:
Kelley, nas palavras
1-9). de Kaprow,
 Apesar desse potencial de liberação da derrubada da tela
em Pollock, que Kaprow e outros identificaram e exploraram
(especialmente aqueles artistas agrupados em torno do movi-
mento Fluxus), é claro que as ações de Pollock foram informa-
das por uma política de gênero extremamente problemática.76 
Rosalind Krauss nos lembra que Andy Warhol, já no começo
da década de 1960, havia claramente percebido no “gesto que
um homem em pé executa ao derramar líquido sobre um chão
horizontal” o inegável “machismo que rondava a action pain-
ting ” (Bois & Krauss, 1997: 99). Uma crítica parecida pode
ser identificada na arte de performance feminista do começo
dos anos 60, como em Vagina Paintin g  [Pintura
ainting   [Pintura com Vagina]
(1965) de Shigeko Kubota, no Perpetual Fluxfest na cidade
de Nova York,
York, peça na qual a artista
a rtista japonesa, agachada
a gachada sobre
um papel branco, pinta-o com um pincel saído de sua vagina,

76. Para uma crítica aprofundada do projeto de Pollock em relação a seu enquadramento
enquadramento
filosófico, inovação estética e política de gênero, ver Amelia Jones (1998).

128
 

criando “um processo de pintura gestual deliberadamente ‘fe-


minino’, fluindo do centro criativo do corpo da mulher, em
contraste à ‘ejaculação’ da tinta jogada, derramada e espalha-
77
da” em Pollock
um ensaio (Reckitt, 2001:
extraordinário 65).“Solo
intitulado  Rebecca
Solo Schneider, em
Solo”, concor-
Solo”,
da com o diagnóstico dado por Warhol e Kubota, e também
identifica um impasse epistemológico que emerge do machis-
mo de Pollock – um impasse derivado do que ela considera
uma reverência obstinada da história da arte de performance à
figura de Pollock como herói patriarcal:
 Vez por
por outra
outra (num eco reverberan
reverberante
te de Allan Kaprow) nos
é dito que o artista americano de action painting   Jackson
Pollock foi o responsável pelo ato supremamente masculi-
no de liberar a arte da tela e desencadear toda a arte calcada
na performance da segunda metade do século XX. Todas as
outras possibilidades são, por assim dizer, relegadas à uma
nota de pé de página (Schneider, 2005: 36).

Estando consciente do comentário certeiro de Schneider,


por que então eu invoco Pollock no começo deste capítulo so-
bre risha Brown e La Ribot? Por que trazer à tona a figura
do pai morto? Não poderíamos deixar Brown e La Ribot em
paz, experimentando sozinhas? Em seu ensaio, Schneider ofe-
rece uma resposta a estas objeções. Sua crítica da noção mo-
dernista de singularidade e de originalidade no “artista solo”
propõe uma escrita crítica que se põe contra “o desejo de ‘eleger’
um artista unitário em oposição à consideração dos contextos
mais abrangentes de polinização, colaboração dialógica e am-
pla influência diaspórica cruzando vetores nacionais, étnicos e
temporais” (2005: 35). Assim, eu invoco Pollock precisamente
para indicar como as distintas operações que risha Brown e
La Ribot executam no plano horizontal – quando suas danças
encontram as artes visuais no contexto institucional do museu
77. Ver também Schneider (1997: 38).

129
 

e no contexto discursivo da historiografia da arte – já estão em


diálogo trans-temporal com (e numa crítica trans-nacional das)
práticas artísticas e discursos oficiais que as precederam. Ambas
inevitavelmente
de Papa Pollock,precisam
bem comonegociar com a intrusão
com narrativas oficiaisdo espectro
particular-
mente poderosas da história da arte (de performance) que pri-
vilegiam mitos de origem e linhagem patrilinear masculina. É
com o legado das linhagens patriarcais na história da arte, do
machismo da história da arte, o legado da “originalidade histó-
rica”” que depende de um heróico gênio masculino descobrindo
rica
por si e para si os prazeres de adentrar temporariamente num
território virgem (a horizontalidade branca da tela), que Brown
e La Ribot inevitavelmente se deparam em suas performances e
na recepção de suas performances. É disso que elas também pre-
cisam escapar a qualquer custo em seus distintos e particulares
usos do horizontal
derrubada – umemerge
pollockiana plano como
cuja associação
uma praga.imediata com a
Eu argumen-
taria que It’s a Draw / Live Feed  de
  de Brown e Panoramix  de
  de La
Ribot propõem modos de relação com o horizontal que deixam
surgir espacialidades não-falogocêntricas (para usar o termo de
Derrida) e territorializações não-colonialistas. Neste sentido, ao
contrário de Pollock, estas duas performances de fato fazem de-
sabar o plano de representação.78 Insistindo na relação da dança
com as artes visuais, Brown e La Ribot atualizam e emprestam
um gênero (feminino) à observação de Merce Cunningham
Cunningham em
1952, quando ele sugeriu que os dançarinos retiram da pintura
não necessariamente seus aspectos formais, mas o desejo utópi-
co de criar um espaço de pura potencialidade. O que significa
para mulheres coreógrafas criarem para si um espaço de pura
potencialidade ao trabalhar a horizontalidade em seus diálogos
com as artes visuais? Eu gostaria de começar a responder esta
pergunta tratando primeiramente das ações de risha Brown
em It’s a Draw / Live Feed .

78. Sobre a relação entre colonialismo, o território vazio e a representação, ver Carter (1996).

130
 

HORIZONTALIDADE SEM PERSPECTIVA:


DANÇAR DESENHAR CAIR 

Norisha Brown
catálogo tem tido
de uma uma longa
exposição sobrerelação com carreira
a prolífica o desenho.
de
risha Brown ( Art
 Art and Dialogue 1961-2001), a teórica france-
sa da dança Laurence Louppe escreve a respeito da resiliente,
embora de certa forma secreta (pelo menos na primeira década
de seu trabalho), “artista visual em Brown” (In: eicher, 2002:
66). Algumas das peças coreográficas de Brown do começo da
década de 1970 parecem encontrar versões diretas nos seus de-
senhos do mesmo período (por exemplo, sua série de desenhos
Quadrigrams   e sua coreografia Locus , 1975).79 Ao longo das
décadas de 1980 e 1990, os desenhos de Brown foram adqui-
rindo maior autonomia na exibição pública de sua arte. Nos
últimos
museus aoanos, seusdodesenhos
redor mundo,vêm sendo exibidos
incluindo o Musée em galerias e
de Marseille
(1998), o Drawing Center e o New Museum em Nova York
(2004). A questão se torna, portanto, descobrir o que justifica
o release de imprensa do FWM ter classificado como “inco-
mum”” a performance de It’s a Draw / Live Feed . Certamente, a
mum
escala monumental dos desenhos – embora não seja novidade
na pintura – é incomum. ambém o fato de Brown desenhar
em um contexto público subverte a natureza de certa forma
mais intimista do desenho – muito embora, como já notamos
acima, a presença do público é retardada devido à projeção do
vídeo ao vivo (a única plateia em frente a Brown enquanto ela
dança e desenha é a equipe de vídeo). 80 O que eu acredito ter
79. Laurence Louppe propõe uma analogia dos quadrigrams  de   de Brown com as caixas de
Donald Judd. Embora de fato haja semelhança na forma, a intrusão do linguístico e do
matemático na formulação do cubo como dispositivo composicional em Brown a coloca
mais próxima da questão ontológica da criação de espaço pela coreografia como uma ne-
gociação contínua entre linguagem, corpo e espaço. Ver Louppe (1994: 147).
80. Em uma ocasião, durante o Festival de Dança de Montpellier,
Montpellier, risha Brown
Brown apresen-
tou It’s a Draw / Live Feed  em
 em um palco teatral diante de uma plateia. Até a escrita deste
capítulo, esta foi a única
ún ica ocasião em que Brown teve o público diante de si neste trabalho.

131
 

tornado este evento algo bastante incomum não foi nenhum


dos elementos acima, mas sim a forma como Brown coreogra-
fou um modo de aparição no espaço institucional e discursivo
das artes visuais,
ravelmente fundindo
ligando ambos àdança e desenho, eatravés
horizontalidade depoisdeinexo-
uma
aproximação à linha que exemplifica o que Georges Bataille
chamou de “informe”.
 Yve-Al
 Y ve-Alain
ain Bois discu
discute
te o info
informe
rme em Georg
Georges
es Bata
Bataille
ille em
termos de uma operação antirepresentacional: “metáfora, figu-
ra, tema, morfologia, significado – tudo que faz lembrar alguma
coisa, tudo que se agrupa na unidade de um conceito – isto é o
que a operação do informe destrói” (Bois and Krauss, 1997: 79).
Em It’s a Draw / Live Feed , é precisamente a relação do corpo
dançante com a figuração, tema e significado, e com seu modo
de aparecer dentro do espaço representacional, que é questiona-
da.
seu O uso que Brownperturba
dançar-desenhar faz de linhas e movimentos
o significado e seusinformes em
imperativos
de figuras e temas claramente delineados. Seu dançar-desenhar
simultâneo destrói todos aqueles conceitos que Bois descreve
como asseguradores da suave reprodução ideológica da econo-
mia do representacional. Se o informe destrói significado e figu-
ra, ele também destrói a possibilidade de fixar a representação
dentro de uma legibilidade visual ou gramatical. Vejamos
Vejamos como
Brown realiza formalmente esta virada crítica e o que ela pode
ter realizado politicamente através deles.
Em It’s a Draw / Live Feed , o público vê Brown entran-
do numa sala branca aparentemente vazia: o cubo branco
abstrato
abstrato”do museu moderno.
a produção Lefebvre enxergou
simultaneamente material eno “espaço
ideológica
de “uma anaforização [...] que transforma o corpo ao trans-
portá-lo para fora de si e para dentro do domínio visual-
-ideal” (1991: 309). Este transporte do corpo para dentro
É importante ressaltar aqui que minha análise restringe-se exclusivamente à performance
apresentada na Filadélfia, devido às implicações críticas acarretadas pelo modo como esta
peça foi mediada pela câmera.

132
 

do domínio visual-ideal é a brutalidade necessária no cerne


da desincorporação que assegura hegemonias espaciais e es-
cópicas. Em It’s a Draw / Live Feed , podemos dizer que o
transporte anafórico
iniciado pela força dodoespaço
corpodopara o domínio
museu visual-ideal
em si, força esta rei-é
terada pelo cubo branco onde
o nde Brown dança-desenha e refor-
çada pelo achatamento de sua imagem via câmera de vídeo.
O ponto de vista do público visitante é predeterminado por
um longo plano fixo e sem edição produzido ao vivo pela
câmera e projetado em monitores verticais e bidimensionais.
Se ao colocar-se diretamente no espaço abstrato do museu
Brown já ativa um devir-visual-ideal, então a câmera multi-
plica este devir ao colocar a imagem de Brown dentro de uma
composição altamente perspectivista. Na imagem em projeção
ao vivo [live feed ],
], é como se as muitas superfícies e planos
brancos (piso, teto,
chão) refletissem paredes, grande
e refratassem umaspedaço de papel
às outras, sobre
criando umao
especularidade minimalista; uma espécie de tensão visual que
subsistisse ao longo de toda a performance entre a ortogonali-
dade de múltiplas superfícies bidimensionais (a folha de papel,
as telas dos monitores, as paredes) e o efeito obtuso de um
corpo movendo-se em um espaço tridimensional.81 Na versão
da Filadélfia de It’s a Draw / Live Feed , a câmera permanece
parada. A imagem em vídeo funciona como uma janela, crian-
do uma ilusão de perspectiva, pois organiza o ponto de fuga
da imagem próximo ao ponto de vista ideal de um espectador
que encara a tela.82 
Múltiplas camadas de espaço abstrato, portanto, e Brown
sequer começou a dançar-desenhar. A primeira camada deriva
da participação da sala de exibição na economia visual-ideo-

81. Sobre a função do obtuso como aquilo que numa imagem permanece para além do
significado e da própria visibilidade, ver “Te
“ Te Tird Image” de Roland Barthes (1985).
82. “Estaremos falando de uma visão visão totalmente ‘perspe
‘perspectiva’
ctiva’ do espaço
espaço [...] apenas quan-
do a tela inteira haver sido transformada [...] numa ‘janela’, e quando se espera de nós
acreditarmos que olhamos para
par a o espaço através
atra vés dessa janela” (Panofsky,
(Panofsky, 1997: 27).
27) .

133
 

lógica do museu de arte. A segunda camada deriva do fato da


performance de Brown ser televisionada, posicionando assim
sua dança-desenho ainda mais no virtual. erceira camada: o
enquadramento em perspectiva
ção da visão. Quarta e sua inevitável desincorpora-
camada, particularmente relevante aos
estudos da dança e provocado pela especificidade do espaço
branco: o espaço abstrato no qual Brown entra cria ressonân-
cias históricas com uma abstração originária em particular,
a qual iniciou a própria coreografia moderna. A sala branca
para a dança-desenho de Brown é perfeitamente similar ao
quadrado proposto pelo mestre de dança Raoul-Auger Feuillet
(o criador do neologismo “coreografia”), em 1700, como o
espaço ideal para a dança – um quadrado vazio branco cuja
presença precede àquela do corpo e cuja superfície aplainada,
homogênea e branca, é irrevogavelmente apartada do esbu-
racado e sujo terreno
Foster associou o espaçosocial. A historiadora
abstrato da dança
da dança criado Susan
por Feuillet
com a página branca: “Raoul-Auger Feuillet simulou o piso
retangular da área de dança com o layout retangular da página
impressa”” (Foster,
impressa (Foster, 1996: 24). Uma sobreposição muito similar
da página com o palco é proposta em It’s a Draw / Live Feed .
al sobreposição confunde o alicerce do desenho e o alicerce
da dança. Os efeitos positivos desta confusão no nível da per-
cepção, significação e motilidade formam os impulsos críticos
e estéticos que sustentam a dança-desenho de Brown em It’s a
Draw / Live Feed .
Se o espaço no qual Brown desenha e dança é de alguma
forma reminiscente
movimentos naqueledoespaço
quadrado de Feuillet,
perturbam então os seus
profundamente essa
ligação histórica. Há uma diferença profunda entre os movi-
mentos improvisados de Brown e o aparato histórico da core-
ografia como um conjunto de passos pré-determinados. Mais
além, o sistema de Feuillet só era capaz de mapear o traçado
dos pés na pista-página de dança (seu sistema foi intensamen-
te criticado por seus contemporâneos por ser incapaz de dar

134
 

conta dos movimentos dos braços, cabeça e mãos). 83  Neste


sentido, a confusão de Feuillet entre a página do livro e o piso
de dança revela a função gráfico-significante que Walter Ben-
 jamin
Ematribuiu
oposiçãoaoà plano horizontal.
assimilação da página branca ao espaço ho-
rizontal da significação gráfica, em Feuillet como em Benja-
min, o que Brown faz no instante mesmo em que começa a
desenhar-dançar sobre o “corte transversal” do simbólico ben-
 jaminiano tem muito pouco a ver com assinatura
a ssinatura ou mesmo
com a escrita. Se ela desenha no plano horizontal, ela parece
muito pouco preocupada em circunscrever uma marca signifi-
cante ou um sentido simbólico na transversal. Além disso, ela
frequentemente dança deitada ao longo do plano horizontal,
rejeitando a associação de figura e verticalidade que Benjamin
identifica com a função representacional do vertical. Reti-
rando-se
com suas da estrita divisãosemióticas,
funcionalidades de planos benjaminiana
Brown tambémdeescapa
acordoà
axiomática convencional de significação e representação. Por
fora da escrita, por fora do corte transversal do simbólico, por
fora da representação longitudinal, o que ela faz, então?
Brown entra no cubo branco vazio de aproximadamente
seis metros quadrados e caminha pelo palco-página histori-
camente ressoante. De maneira calma e concentrada, quase
hesitante, ela distribui pedaços de carvão e de lápis pastel ao
redor das bordas da grande folha de papel (aproximadamen-
te 3 metros quadrados). Segurando o carvão, Brown começa
a caminhar, mantendo-se próxima à periferia do papel, sem
pisar dentro dele
da superfície por enquanto.
de desenho, Aproximando-se
ela imediatamente mais ainda
suspende qual-
quer possibilidade de associarmos sua dança-desenho com
um mero traçado de passos ou uma execução de padrões de
movimento. O que Brown faz tão logo ela se aproxima do pa-

83. Para um resumo destas críticas, ver o ensaio de Jean-Noël Laurenti, “Feuillet’
“Feuillet’ss
Tinking” (In: Louppe, 1994: 86-8).

135
 

pel é: primeiro, ponderar – tomar seu tempo pensativamente,


concentrar-se, não mover – e, então, cair.
De forma comedida, Brown cai para fora dos limites do
papel, comoatravessamento,
ações. Um a afrontar os limites
desde oimpostos pordesterritoria-
início: ela este às suas
liza o horizontal ao executar um primeiro movimento de sua
dança-desenho fora dos limites próprios do papel. Ela recolhe
de suas juntas e músculos a quantidade exata de tensão para
que seu corpo quebre suavemente o alinhamento vertical da
postura do caminhante e ceda à gravidade. Brown destila-se ao
chão, renuncia seu peso numa espécie de rotação controlada
e sustentada pela singular “ondulação” de seu corpo: aquela
qualidade que Hubert Goddard identificou como específica a
Brown, uma “motilidade,
“motilidade, um modo de autorizar o movimen-
to sem restrição” (citado por Louppe In: eicher, 2002: 69).
Esta queda
renúncia ao mesmo
voluntária tempo controlada
e temporária e desprendida,
à verticalidade da figuraesta
éo
que irrestritamente autoriza Brown a abraçar a horizontalida-
de como uma crítica da perspectiva e do vertical no jogo as-
simbólico e antirepresentacional que é It’s a Draw / Live Feed .
 Já existe uma política no cuidadoso colapso de Brown para
fora dos limites da página: um gesto sinalizando que sua dan-
ça sempre excederá o imperativo da marca como único modo
da artista relacionar-se com o espaço. Em oposição à postura
masculinista de Pollock sobre a tela derrubada, em oposição
à sua recusa de sair de dentro das fronteiras apropriadas da
representação, Brown não caminha de modo a dominar a su-
perfície plana
papel. Ela outornará
não se a confinar seusem
a figura movimentos aos limites
pé sobre o terreno do
virgem
da página branca. Ao renunciar à sua própria verticalidade,
ela recusa a “erectilidade fálica” que organiza a abstrata e he-
gemônica “orientação do espaço” (Lefebvre, 1991: 287). Ela
forja uma aproximação ao horizontal deitando-se sobre ele,
estando junto com ele, deslizando-se e esfregando-se nele. O

136
 

cair de Brown é mais como um esguichar: o jorro informe que


impossibilita a figuração.
No chão, risha Brown não vira grafema, nem signo, nem
símbolo,
salpicada.nem figura,
Seu cair masdevir-informe.
é um sim algo tão Em
informe
jorro,quanto tinta
a dança-de-
senho de Brown escapa às economias perspectivistas do olhar
e à significação simbólica. Mas diferente da tinta, particular-
mente da tinta pingada por Pollock, o jorro de Brown agrega
uma outra camada do informe, uma outra possibilidade de
resistência a reivindicar posse sobre um território, pois trata-
-se de um jorro que não se deixa prender, que não seca e não
se fixa. No chão, ela mantém-se em movimento, ela não se
permite ficar imóvel. E assim como seu cair-jorrar é um devir-
-informe, seu rabiscar com carvão não sucumbirá à figuração,
nem à significação, nem à representação. Ao deitar no plano
transversal que Benjamin associou
gráfico, o dançar-desenhar à escrita
de Brown e ao simbolismo
permanece decidida-
mente fora da representação – nada está sendo escrito, nada
está sendo simbolizado. Seu corpo, carvão e giz pastel movem-
-se entre o intencional e o acidental, entre a premeditação e
a espontaneidade, entre o marcar e o apagar, entre o quase
desenhar e o quase escrever, mas nenhum deles exatamente.
anto o corpo de Brown quanto seu desenho não se referem
a nada além deles próprios. Esta é a auto-referencialidade do
 jorro, inexoravelmente atada
a tada ao que cai. Ao desenhar-dançar,
Brown não cria nada que propõe um tema, que encabeça uma
figura central, que avança uma metáfora criativa, que inicia
um
mãossignificado.
e pelos pésAs
delinhas
Browndedeitada
carvãosobre
e giz opastel
chãotraçadas pelas
vaporizam-se
na poeira, contorcem-se em hesitação, racham sob seu ataque,
desencadeiam fluxos, refletem precisão e incorrem no erro.
Ocasionalmente, a vemos traçar um membro do corpo (braço,
pé, joelho). Quando posteriormente observamos os desenhos,
o máximo que conseguimos perceber são possibilidades para
reconhecermos que um corpo esteve sobre aquela tela, que ela

137
 

pode ter optado desenhá-lo; entretanto, o resultado final re-


siste à representação de corpos completos ou morfologias pro-
priamente formadas, assim como não se registram passos que
possam ser decodificados,
tas danças-desenhos ensaiados e não
definitivamente dançados outra vez. Es-
são representações.
Elas são operações, performances.
E no entanto... algo se inscreve no papel. Se quisermos en-
tender a performatividade das inscrições executadas por uma
coreógrafa caindo, movendo, rolando, pulando, esfregando,
deslizando mãos, pés, pernas, costas, seios, cabeça, rosto, bun-
da e barriga sobre um improvável e pequeno palco de papel
(ou sobre uma improvável e imensa página em branco dei-
tada ao chão), é preciso levar em conta a especificidade dos
movimentos de Brown em relação à sua economia, isto é, em
relação ao eventual destino dos seus movimentos como traços.
Laurence Louppe,
tre coreografia ao escrever
e desenho, notasobre
que “oa história
papel dedamodo
relação en-
algum
salva um registro da dança, ele salva um traço que em si não
poderia ser destinado a qualquer outro lugar” (Louppe, 1994:
22). Esse resíduo que não é um registro da dança é exatamen-
te o que testemunhamos na dança-desenho de Brown. Pois o
fascinante em It’s a Draw / Live Feed  não
 não é exatamente o fato
de que uma coreógrafa está a desenhar, ou que a coreógrafa
improvisa danças enquanto desenha, ou mesmo que esta core-
ógrafa exponha tão abertamente, tão generosamente, seu ato
íntimo de criação a um público anônimo, presente, ausente.
O fascinante é perceber como a dança-desenho de Brown não
está
obra de
finalmodo algumAorestrito
em papel. e direcionado
contrário, Brown geraa uma
produzir uma
quantida-
de imoderada de movimentos, gestos, pequenos passos e mi-
crodanças que não são de forma alguma direcionadas  ao  ao papel,
e que não deixarão absolutamente qualquer marca ou impres-
são no papel. Nos gestos e na motilidade cuidadosa, alegre,
discreta e atentamente concentrada de Brown existe um ex-
cedente de ações, passos e traçados que não serão capturados

138
 

pelo, ou amarrados ao, horizontal; uma pletora de ações que


não deixam marcas, que não têm nada a ver com marcar nem
com reivindicar posse sobre um território – nada a ver com
territorializar.
inscrições, como Umquando
ou outro movimento
mãos de Brown resulta
ou pés esfregam-se em
no papel
e deixam marcas. Outros permanecerão não-marcados, como
quando ela dança sem um foco no horizontal, ou quando o
papel escapa ao carvão e a pressão do giz pastel é leve demais
para deixar qualquer marca.
Escapar à marca: um dispêndio sem rastros que já é uma
desterritorialização da arte. O modo particular
par ticular de Brown criar
o espaço sem marcar território traz consigo algumas implica-
ções micropolíticas. Gilles Deleuze e Félix Guattari associaram
o que eles denominaram “fator territorializante” com o devir
da arte, quando eles inequivocamente postularam o território
“ta,
como efeitohomem
primeiro da arte”que
(2007:
erige123).
um Suas
marcopalavras
ou faz são:
são
uma: “o artis-
marca”
(Deleuze e Guattari, 2007: 123). E pode mesmo ser o caso.
Pelo menos este parece ser o caso ao nos voltarmos para o
modo masculinista de ocupar a tela derrubada
derr ubada que Andy Wa-Wa-
rhol identificou no “machismo” de Pollock, no qual o “gesto
que um homem em pé executa ao derramar líquido sobre um
chão horizontal é simplesmente decodificado como ato de uri-
nar” (Bois e Krauss, 1997: 102). Se o caráter “urinário”
“urinário” da ac-
tion painting  está
 está de acordo com a noção da arte como marca-
ção de um território em Deleuze e Guattari, a dança-desenho
de Brown nos possibilita discordar deles momentaneamente.
Ou
arte,pelo
ou menos nos permite
de pensarmos umaconsiderar outros
relação entre artemodos de fazer
e espaço que
recuse as implicações coloniais da marcação de território com
a bandeira do artista. O dançar-desenhar de Brown – no qual
grande parte da dança e grande parte do desenho não procu-
ram deixar marcas – oferece então uma crítica da associação
feita por Deleuze e Guattari entre a(o) marca(o), a territoria-
lização, a reivindicação de propriedade e o ato artístico. Neste

139
 

sentido, como desenho, a ação de Brown já interpela a história


das artes visuais, ensaiando uma crítica profunda do uso do
horizontal em Pollock.
nasVoltemos à experiência
telas planas de assistir
e verticais dos It’s a Enquanto
monitores. Draw / Live Feed  
Brown
dança-desenha, a atenção do público é levada a passar por uma
série de rupturas. Será que devemos mirar o papel e seguir a
materialização do desenho? Ou mirar o corpo de Brown e se-
guir a materialização da dança? Devemos olhar para as linhas
ou para os gestos? Para poder perceber as duas coisas é preciso
olhar para cima, para baixo e para os lados simultaneamente.
Nesta dança do olhar e da atenção, que se produz por dentro
de um espaço excessivamente enquadrado – um quadro den-
tro de um quadro dentro de um quadro: o quadro fixo do mo-
nitor de V, o quadro fixo da lente da câmera, o quadro fixo
das paredes
público se vêdaobrigado
galeria, oa quadro fixosimultaneamente
dar conta do papel sobre odo
chão –o
plano
vertical da representação do movimento e do plano horizontal
da inscrição das marcas. Brown opera nos dois planos simulta-
neamente, gerando conglomerados de pontos de fuga no espa-
ço bidimensional que se projeta ao vivo para o público, como
numa hipérbole de perspectivas. E assim ela cria uma disper-
são contínua na qual nenhum ato (dança, desenho) ou gênero
artístico (dança, desenho) é privilegiado em relação a outro.
 Ao contrário, cria-se uma simultaneidade entontecedora de
gêneros e atos. Esta tontura já indica um desmantelamento da
ordem estriada da perspectiva.
 A perspectiva
cífica pde
erspectiva é um superfície
linhas numa efeito criado por uma organização
por
representacional espe-
(geralmente
vertical) que assegura uma figuração geometricamente coeren-
te da profundidade espacial. O efeito perspectivo depende de
um “ponto de fuga central”, aquele ponto matemático onde
todas as ortogonais se encontram e “que é determinado pela
perpendicular que vai do olho até a superfície do plano” (Pa-
nofsky, 1997: 28). Erwin Panofsky mostrou que embora seja

140
 

possível obter uma representação perspectiva com mais de um


ponto de fuga na mesma imagem, a relação privilegiada da
perspectiva com ideologias e práticas hegemônicas de repre-
sentação
tensão desóverdade
se constituiu quando organizada
numa imagem a pintura alicerçou
em tornosua
depre-
um
único ponto de fuga. O ponto de fuga unitário é essencial para
unificar e harmonizar o olhar do espectador com forças repre-
sentacionais, teológicas e discursivas (Panofsky
(Panofsky,, 1997: 141-2).
Panofsky nos faz lembrar ainda que “a ’perspectiva central’
cria duas suposições tácitas, mas essenciais: primeiro, que nós
enxergamos com um olho imóvel e unitário; e segundo, que a
secção transversal plana da pirâmide visual pode passar como
uma reprodução adequada de nossa imagem ótica” (Panofsky,
1997: 29). Portanto, a perspectiva sempre opera por redução. E
o que é reduzido na perspectiva não é apenas a tridimensiona-
lidade do espaço, mascorpóreo
que o embasamento a naturezadacorporalizada
sensação cededaseupercepção, já
lugar para
algoritmos de visibilidade. O que se perde assim é a corporifica-
ção da visão, por meio de uma operação que subtrai à percepção
os nossos olhos continuamente moventes, descentralizados, es-
tereoscópicos, substituindo-os por um ponto de vistav ista monoma-
niacamente fixo e artificialmente monocular.
monocular.  É por isso que a
84

“construção perspectiva é uma abstração sistemática da estrutu-


ra de espaço psicofisiológico” (Panofsky, 1997: 31). Relevante à
nossa discussão da criação de espaço por Brown em It’s a Draw /
Live Feed  é
 é o fato da operação de abstração que é a perspectiva,
sua redução perceptual em nome da consistência monocular,
“também vale, é claro, para a operação inteiramente análoga da
câmera” (Panofsky, 1997: 31).
 Acontece que em It’s a Draw / Live Feed  os os olhos do espec-
tador jamais são autorizados a permanecer imóveis. Mesmo se
a peça é hiperbolicamente imobilizada pela sobreposição de
múltiplos enquadramentos (câmera, monitor
monitor,, paredes, papel),

84. Para uma crítica da perspectiva em relação à mobilidad


mobilidadee e a corporeida
corporeidade,
de, ver Weiss (1995).

141
 

os movimentos e ações de Brown criam um problema cinéti-


co-visual acarretado por sua constante criação, redistribuição
e mobilização de multiplicáveis pontos de fuga. O que Bro-
wn
raçãoefetua em seu
redutiva da dançar-desenhar é a transformação
câmera como máquina da ope-
de perspectiva em
uma operação multiplicadora da visão. Distribuindo, criando
e destruindo uma multiplicidade de pontos de fuga, Brown
fabrica um espaço dentro uma sala fechada que não a confina-
rá sob a economia da perspectiva, aquele modo de olhar que
historicamente consignou mulheres às suas prisões domicilia-
res.85 Recusando-se a permanecer em prisão domiciliar, Bro-
wn altera o espaço: de nome para verbo. Seu dançar-desenhar,
dançar-desenhar,
antes de mais nada, acrescenta uma dinâmica insuspeitada aos
planos de inscrição e de representação verticais e horizontais,
fazendo-os converterem-se de dimensões planas em zonas de
intensidade,
uma cadente graças às operações
e corporalizada informes e não-fixáveis de
agência.
 Ao fim de It
It’s’s a Draw / Live Feed , Brown terá criado quatro
diferentes desenhos. Ao completar cada um deles, um proces-
so que dura entre 10 e 12 minutos, Brown retira-se da sala
branca e dois funcionários do museu entram empurrando um
andaime. Cuidadosamente, eles recolhem o papel desenhado
do chão e o penduram em uma das paredes. Ao levantarem a
folha de papel marcada, uma outra folha em branco aparece
logo abaixo, pronta para receber novos movimentos e impres-
sões de Brown. Ao completarem a tarefa de erguer o desenho
de seu plano horizontal-coreográfico do chão e prendê-lo em
seu novo plano vertical86, os dois assistentes deixam o espaço
e logo a coreógrafa retorna e recomeça o processo outra vez.
Mas é no levantamento final da folha de papel – um levan-
tamento que de súbito revela um ímpeto teleológico ao redor
de todo o evento – do plano horizontal para o plano vertical

85. Sobre a questão da mulher,


mulher, dança e prisão
prisão domiciliar,
domiciliar, ver
ver Derrida (1995).
86. O topo do desenho é o lado paralelo mais próximo da parede na qual ele será pendurado.

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