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E-BOOK BP ARTE, ORDEM E SÍMBOLO


CURSO “ARTE, ORDEM E SÍMBOLO”
COM PROFESSOR DIOGO CRUXEN #2
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AULA 02 - SINOPSE

Sabendo que a Arte tem capacidade de sustentar o conhecimento

intelectivo, a segunda parte tem como objetivo abordar dois aspec-

tos: Arte como propulsora da harmonia, regulando nossas emoções

e, por outro lado (em escala mais alta), como veículo de símbolos,

garante a evocação dos princípios fundamentais e metafísicos.

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

Ao final desta aula, espera-se que você saiba: o que é harmonia

e como o artista a gera nas obras; o que é o símbolo e qual sua

relação com o simbolizado; o que é arithmoi archai; o que é a

década sagrada (tetractys); o que é representado pelos números

um, dois, três e quatro e o dez; a relação entre a teoria dos quatro

discursos e a simbologia dos números; como e o que a arte pode

nos ensinar.

BONS ESTUDOS!
INTRODUÇÃO

Vamos dar início à segunda aula do nosso curso. Na aula anterior, fiz

uma pequena digressão na produção de São Tomás de Aquino, baseado

em Aristóteles, para que vocês entendessem como se dá a apreensão do

conhecimento através da observação da natureza a partir da via aristotélica,

ou seja, aposteriorística.

Além disso, compreendemos a arte como um discurso poético e

vimos que este é a base do conhecimento e um alicerce estrutural, princi-

palmente pela luz do Olavo de Carvalho em cima das obras de Aristóteles, a

teoria dos quatro discursos.

Na primeira parte desta aula, vou tratar de um aspecto

mais prático, muito mais centrado na arte para, na

segunda parte, abordar o símbolo, porque o nome

do curso é “Ordem e Símbolo”. A ordem começa

quando percebemos que a arte está alinhada com

o conhecimento, então ela ordena. E o símbolo será

o grande trunfo para entendermos o poder da lin-

Pitágoras, Filósofo e Matemático guagem artística.


(570 a.C. - 495 a.C.)

Isso será apresentado de uma forma melhor

para vocês, mas, de antemão, já digo o seguinte:

o símbolo pautado em Pitágoras e Platão é uma

via apriorística, do qual vou tratar nesse segundo

encontro, tentando fazer o caminho de volta. Nós

subimos do conhecimento sensível ao conheci-

mento intelectual através de Aristóteles, na via

aposteriorística. Desta vez, o símbolo faz esse

papel apriorístico, conforme veremos. Platão, Filósofo (427 a.C. - 495 a.C.)

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O Astrônomo (1668), Johannes Vermeer

Esta obra é do artista holandês Vermeer. Na verdade, não foi prop-

osital, mas, na primeira aula, eu usei muitos artistas do começo do Rena-

scimento - chamado proto-Renascimento - e do Alto Renascimento. Nesta

aula, selecionei muito mais artistas a partir do Barroco e do Romantismo.

Assim, acabou ficando predominantemente cronológico. Predominante-

mente porque há, é claro, algumas exceções. Isso é um detalhe até que

interessante e que aconteceu por coincidência, não foi nada pensado.

Em primeiro lugar, vamos tratar de aspectos formais. Ou seja, na

própria obra conseguimos reconhecer a ordem e o conhecimento que

está por trás disso. A obra nos revela muita coisa. O Vermeer é um artista

fabuloso. Começaremos e terminaremos essa aula com ele.

Aqui, é apenas uma ilustração do homem que busca o conhecimento.

Esse é o quadro do astrônomo. Vermeer usou essa mesma personagem

para pintar um quadro de um geógrafo, em que o homem está com um

compasso na mão. É uma busca. E é interessante como Vermeer trabalha

sempre o interior. Ele é um artista do interior. Independentemente da

localidade, é básico e muito comum no Barroco trabalhar o interior e a luz

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refratada, que vem de fora recortando os objetos e as personagens. É uma

luz teatral, cenográfica.

Essa luz tem um grande significado, principalmente em Vermeer.

Essa luz também tem significado em Rembrandt, que também veremos.

Essa é uma luz que ilumina aquilo que interessa. Portanto, trata-se de uma

luz hierarquizante, uma luz que concentra no assunto fundamental, ou seja,

o globo, o livro e o homem. O homem faz um movimento interessante de

intermédio, porque toca a Terra, o globo, e toca um plano, representado pela

mesa. Então, o homem toca dois planos. A Terra faz parte da matéria, mas

é um plano diferente, porque se trata - numa análise totalmente particular

minha - de algo pautado no conhecimento sensível, aristotélica, começando

pela terra, começando pela grama, começando das coisas mais materiais.

2. A HARMONIA
Abaixo, é o teto da Galeria de Apolo, presente no Museu do Louvre. Há

vários pintores que trabalharam nessa galeria, mas nesta imagem está em

ênfase uma pintura de Delacroix, um grande pintor do Romantismo, “rival”

do Degas, que era Neoclássico. Parece que havia uma rivalidade entre eles.

Galerie d’Apollon, Museu do Louvre, Paris, França.

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Lógico que “romantismo” e “neoclássico” não passam de um rótulo

que damos. Esses rótulos surgiram a partir do Iluminismo. Por isso, nessa

época, o movimento artístico já estava estipulado. Não foi posterior como

no caso do Renascimento, em que o homem ainda estava discutindo, não

estava necessariamente querendo colocar um nome para aquilo tudo. O

próprio Barroco foi uma nomenclatura posterior de alguns historiadores da

Arte, mas, nessa época, já estava muito claro que cada artista tinha uma

tendência e que estavam seguindo tendências distintas. Às vezes, essas

tendências eram antagônicas ou rivais em algum sentido. Isso é apenas

uma curiosidade.

2.1. O CONCEITO DE HARMONIA

Eu vou começar falando sobre a harmonia, harmonia pautada em um livro

do Mário Ferreira dos Santos pouco conhecido, publicado só pela editora

Logos. Infelizmente, ninguém fez ainda uma republicação dele. É um

grande livro e que vale muito a pena. Ele é dividido em dois volumes: “Con-

vite à Estética”, escrito por ele, Mário Ferreira, e “Convite à Dança”, de Nádia

Nunes, se não me engano, uma aluna dele, que já trata de questões mais
específicas da dança.

Para explorar justamente aquilo que ele falou sobre

estética de um modo geral. Esse livro, por mais curto

que seja, é extremamente importante. É um livro

arrebatador porque Mário Ferreira - como é sua car-

acterística - vai definindo todas as questões, neste

caso, sobre a arte. Ele afirma que a arte, a estética,

é a produção da beleza pelo homem. É até o que

estávamos conversando aqui ontem: Deus produz

beleza através da natureza e o homem produz


Mário Ferreira dos Santos e Nádia
Nunes Galvão (1961)

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a beleza através da arte. É uma beleza secundária, de segunda mão,

mas tudo que o homem faz é de segunda mão. Com o conhecimento,

seja apriorístico, seja aposteriorístico, estamos tentando galgar algo e

entender a essência de Deus, do universo.

Eu fiz questão de anotar uma frase para lê-la exatamente como foi

escrita por Mário Ferreira dos Santos:

“Há harmonia entre dois seres quando eles se ajustam.”

O que é a harmonia então? Se a harmonia indica a beleza, ou seja,

é belo aquilo que é harmônico, que raios é a harmonia? Mário Ferreira

fala que é um ajuste entre dois seres. Se é um ajuste entre dois seres,

temos que levar em consideração que cada ser é diferente um do outro.

Não há um igual ao outro. Sejam indivíduos, sejam objetos, não importa.

Esse ajuste não é um ajuste simétrico. Se vocês repararem na arte do Rena-

scimento, ela busca uma simetria aparente. Nunca temos os personagens

da metade esquerda exatamente espelhados para a metade direita, para

apreciarmos e falarmos “Nossa, é uma pintura de ordem, ordenada!”. Isso

não é necessário. Há um contraposto.

Nesse contraposto, ao mesmo tempo em que quer demonstrar fig-

uras diferentes, o artista também trabalha com cores diferentes. Essas cores

trabalham juntas, opondo-se na escala cromática. As cores complemen-

tares estão diametralmente opostas para gerar harmonia. É tudo muito

bem elaborado. O artista tem isso em sua mente quando faz a distribuição

desses corpos.

Por que mencionei o Renascimento? Porque é muito mais óbvio.

É lógico que há harmonia, mas e no Barroco, que é justamente um forte

dinamismo acontecendo, uma movimentação? Muitas vezes, se você pegar

uma obra de uma confusão de pessoas ou que remete a uma confusão de

pessoas, aparentemente, o que olhamos? Nos sentimentos incomodados

como nos sentiríamos na Bienal? Não acontece isso. É uma movimentação,

é sim uma aglomeração, mas é tudo muito bem pensado pelo artista.

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Percebam, então, que a harmonia tende a preservar uma estrutura. O

artista consegue posicionar dois seres diferentes a ponto de criar uma

tensão, uma tensão necessária, razoável, que nos coloca em uma sen-

sação de equilíbrio, e nunca numa sensação de desconforto. Por isso,

essa nova estrutura que é formada é formada através de uma tensão. For-

mando o quê? Formando um todo coerente. Nisso, estou desenrolando o

que o Mário Ferreira explica a respeito da harmonia.

2.2. HARMONIA EM VAN GOGH

Essa obra é do Vincent van Gogh.

É até óbvio falar porque, por mais que

não tenha visto essa figura específica,

você vai lembrar de “Girassóis”, de “A

Noite Estrelada”. Van Gogh pulsa na

tela. Ele é um artista do pós-Impression-

ismo que flertou com o Impressionismo

e, ao mesmo tempo, bebeu também

do Pontilhismo, de Paul Seurat, de pes- Oliveiras com Céu Amarelo e Sol (1889),
Vincent van Gogh
soas próximas dele, e desenvolveu sua

técnica, maravilhosa.

É muito interessante que a arte não se demonstra harmônica

apenas através das obras, mas através dessa relação do artista com a

obra e com o espectador. Se vocês pegarem o livro “Cartas a Théo”, que

contém uma coleção de Cartas que van Gogh escreveu para seu irmão,

perceberão que van Gogh é um indivíduo sempre extremamente lúcido ao

escrever e, com certeza - é só ver a obra dele -, ao pintar. Que ele tinha prob-

lemas psicológicos e que era, talvez, um sujeito meio neurótico, ansioso, é

óbvio, até pela biografia que temos dele. Mas, ao mesmo tempo, van Gogh

trouxe na sua proposta de uma obra uma força, uma potência de alma, que

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fez dele um artista extremamente perspicaz e ousado. Ousadia é a palavra

certa para ele.

Por quê? Vejam, na tela acima, “Oliveiras com Céu Amarelo e Sol”,

van Gogh demonstra o calor do sol trabalhando com cores opacas. Não

temos cores vivas como no Renascimento ou algum trecho vermelho ou

azul escuro, como também acontecia no Barroco. Mesmo com o amarelado

das luzes, aqui é um trabalho diferente. É mesmo muito ousado pensar que

daria certo trabalhar com tons opacos e contrastantes, porque Van Gogh

trabalha com a frieza e com o calor. O calor predomina. O assunto é o sol,

o assunto é um dia. E outra, nós temos o amarelo tanto em cima quanto

embaixo. O ocre faz o papel de aquecer também a obra. Mas, vejam com

que ele intercala esses azuis tão brilhantemente. Azuis também opacos,

que eram chamados de cores sujas. Percebam como as cores sujas, opacas,

brilham, vibram, queimam como o fogo.

René Huyghe1 , que é um crítico de arte

francês do qual retirei várias obras e

no qual me inspirei para preparar essa

segunda aula, diz que van Gogh era


o artista do fogo e que demonstrava,

através da sua pincelada flamejante,

como ardia o fogo da sua personalidade.

Ao mesmo tempo, temos sempre uma


Semeador ao Sol Brilhante (1886),
Vincent van Gogh composição alegre.

Percebam que o quadro acima é uma situação um pouco diferente

e ainda mais arriscada do que a pintura anterior. No chão, na plantação,

temos azul e amarelo intercalados. Todos opacos, sujos, mas brilham, movi-

mentam-se. Reparem que o aspecto harmônico está na composição, na

1  Escritor (1906 - 1997).

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questão formal, cromática, compositiva, no posicionamento das figuras.

Percebam como a casinha posicionada ao fundo, na esquerda, pretende

fazer um contrabalanço à figura do homem caminhando. As figuras não são

do mesmo tamanho, não são simétricas. O sol, por sua vez, está bem cen-

tralizado na parte superior, dividindo o quadro em dois, se assim podemos

pensar. Então, as figuras estão se contrabalanceando em uma questão

assimétrica e temos harmonia. Temos harmonia mesmo que predomine

toda essa região, como se fosse um fotógrafo que caiu para tirar a foto. Ele

desceu, tirou e apertou o flash. Mas ali tem harmonia também. Então vejam

que os diferentes se ajustam para gerar uma nova tensão. Essa é uma

definição da harmonia. E vemos isso em van Gogh.

2.3. HARMONIA EM PETER PAUL RUBENS

Vemos isso também em Rubens.

A Batalha das Amazonas (1618), Peter Paul Rubens

Na aula anterior, eu mostrei a vocês uma outra pintura dele, “São

Jorge e o Dragão”. Na obra acima, vocês conseguem identificar onde está a

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harmonia nesta batalha, nesta confusão?

Aluno: Tem um balanço de composição, pelo que eu vejo.

Existe um balanço. Eu diria que esse balanço, aqui, está salvaguar-

dado através deste redemoinho que Rubens promoveu. Percebam que o

elemento mediador é a ponte, mas essas personagens trabalham circun-

dando-na. Há cavalos que caem na direita e cavalos que sobem à esquerda.

Além disso, notem que o vermelho está presente na figura que está caindo

do cavalo na parte superior direta e também na figura que está em cima do

cavalo na parte inferior esquerda. Portanto, há uma compensação diagonal

dos vermelhos, sem contar todo o resto que também poderia comentar:

os azuis, esse ocre. O ocre do chão faz uma ressonância com o ocre do

céu. Rubens usa o mesmo tipo. É, assim, uma desordem controlada. E é

uma desordem temática também, não é um tema bonito, não é um tema

belo. Mas, como Mário Ferreira dos Santos diz é o feio, é uma situação a-es-

tética, só que pintada belamente. Belamente representada. A expressão da

guerra pode ser bela, não a guerra em si. Não há problema nenhum de o

assunto ser conturbador, só que deve existir a superação do artista em cima

da situação. E ele tem que trazer aquilo para nós de forma bela, de forma

harmônica. Rubens conseguiu muito bem aí. Ele é encantador. É fantástico

como sentimos uma tranquilidade, uma superação numa situação terrível,

numa situação de catástrofe.

Aluno: as cores são opostas também né? No céu e nos cavalos na terra.

Aluno: luzes e sombras também.

Isso. Nós temos o quente e o frio trabalhando lado a lado. Os tons terra

ficam como intermédio para contrabalancear. Eles são até predominantes.

Se vocês repararem, há até cavalos azuis aí, brilhando. O cavalo branco brilha

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e reflete o azul do céu.

Aluno: tem o equilíbrio do branco e do cavalo preto do lado.

Isso, o branco e o preto. Aí também há uma oposição, em que, em vez de

pesar, de uma certa forma, ele é salvo pela figura mais clara embaixo. Se esta

não existisse, haveria um breu ali nesse canto e, assim sim, a composição

não iria se equilibrar, ela ficaria pendendo.

2.4. APOLO CONTRA A SERPENTE

Eu vou contar uma historinha para vocês. Pode ser que muitos já há

conheçam, mas… É o mito do Apolo contra a serpente. Essa história é muito

interessante e vocês vão descobrir por quê.

Para ilustrar essa história, eu trouxe a escultura abaixo do artista amer-

icano William Henry Rinehart. Parece que ele foi um dos últimos artistas,

escultores, neoclássico, de um clássico tardio, que tratou desse tema. Ele

não é tão desconhecido assim, porque tem grandes peças, belíssimas. Ele

trabalhou com ótimas passagens da mitologia.

Leto, Apolo e Diana (1874), William Henry Rinehart

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Nesta figura, vocês veem Leto, mãe de Apolo

e Ártemis, as duas crianças presentes na escultura.

O mito começa da seguinte forma. Hera é uma

deusa que representa a vida e o casamento.

Ela é esposa de Zeus, Deus Supremo dos

Céus. Na mitologia, em um certo aspecto, Zeus seria

a unidade. Por mais que não tenha vindo primeira-

mente e que haja outras figuras que o antecederam,

ele seria praticamente o pai de todos os deuses ou,

pelo menos, aquele que ordena a Terra e a vida


Hera, Deusa Protetora do
Casamento humana.

Hera descobre que Leto, que é uma ninfa, está grávida de Zeus.

É Íris, uma mensageira, quem lhe traz essa

notícia. Hera fica enfurecida e faz um trato com

Gaia, a Deusa da Terra, para que proibisse Leto

de parir seus filhos em terra firme. Como Leto

estava sofrendo sozinha, grávida das duas cri-

anças, Poseidon se compadece dela e lhe cede

uma ilha flutuante que não fazia parte da Terra,

em que, portanto, Gaia não podia interferir. Nessa

ilha, Leto consegue dar à luz aos seus dois filhos.

A filha mais velha, Ártemis, é uma mulher branca


Leto, Deusa do Anoitecer
de cabelos negros. Ela representa a noite, a escu-

ridão. Apolo, o segundo filho, no sentido oposto, representa o sol. Loiro, é o

Deus do Sol.

Ao descobrir que o plano de Poseidon deu certo e que os filhos de Leto

nasceram, Hera fica enfurecida e manda a serpente Píton para aniquilar

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os três. No entanto, Zeus fica sabendo dos nascimentos, alegra-se com as

crianças e presenteia-as com vários objetos. Dentre estes, está um arco para

cada um deles. Esse arco, feito por Hefesto, é muito forte. No momento em

que recebe esse arco, Ártemis acaba sendo predestinada a ser a Deusa da

Caça, uma caçadora noturna. Apolo, por outro lado, só pensa em vingar a

sua mãe e matar a serpente.

O que acontece então? Eles saem dessa ilha e chegam ao monte Par-

naso, uma montanha em cuja base está instalada a serpente. É uma mon-

tanha muito linda, alta. A serpente, portanto, está próxima, nas redondezas.

No momento em que descobre que os três estão habitando a montanha, a

serpente parte furiosa atrás deles, mas Apolo aparece no meio do caminho

para detê-la. Trata-se de uma serpente extremamente maligna que, onde

fica, tudo estraga, tudo apodrece, tudo morre. Então, estava instalada em

um covil, num lugar podre. Quando a serpente se depara com Apolo, este

já é treinado no arco e, muito espero, consegue disparar três flechas antes

dela o atacar. Uma acerta o olho esquerdo, outra, o peito e a terceira, a boca.

A serpente não resiste e morre. Apolo, no alto da montanha, proclama que

ali, no túmulo da serpente, será dada origem ao Templo de Delfos. Apolo

teria construído esse Templo em que, posteriormente, o homem vai se con-

sultar. Esse é o final da história de Apolo contra serpente.

Aqui é o enquadramento da

pintura de Delacroix, presente na Gal-

erie d’Apollon, que havia mostrado para

vocês no início da aula.

Galerie d’Apollon, Delacroix, Paris, França

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Nessa reprodução

maior, é possível mostrar

a cena em que Apolo, com

o arco, acerta as flechas

na serpente. Ártemis está

junto a ele na carruagem,

apoiando-o.

O covil da serpente também está presente, cheio de almas mortas, malignas.

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Íris, que vem de arco-íris, seria a Deusa mensageira do Céu. Aqui,

nesse momento, com seu pano, ela consegue limpar esse céu poluído pelo

mal da serpente.

As figuras de Afrodite e

Minerva também estão pre-

sentes, lado a lado. Afrodite seria

a Deusa da Beleza e Minerva,

da Sabedoria, da Inteligência

Prática. Por isso, esta última foi

muito conhecida como a Deusa

da Inteligência Comercial,

Prática, do Cotidiano.

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Afrodite e Minerva ajudam a aniquilar os outros seres que fazem con-

junto com a serpente.

É uma bela obra, muito interessante e bonita.

Abaixo, ao lado da pintura, há um esboço do Delacroix.

Percebam como Delacroix era sofisticado. Costumamos pensar que

esses artistas beberam no clássico, então são extremamente rigorosos. Cos-

tumamos pensar que o impressionismo surgiu ali, o expressionismo, que

seria mais ou menos parecido com esse esboço. Mas veja, tudo que acon-

tece nos movimentos posteriores e mais todos os movimentos do século XX

têm ressonância com muitas coisas que foram criadas pelos artistas mais

antigos. Às vezes, porque não é muito conhecido ou porque também faz

parte do processo ainda e não da obra final.

Quando analisamos os desenhos de um artista, começamos a per-

ceber como ele pensava. Começamos a entender o pensamento porque,

como diria o Degas, pelo livro do Paul Valéry, “Degas Dança Desenho”, o

desenho foi a forma mais primitiva do homem se expressar. Junto com a

dança, com o mexer o corpo, o homem traçou, descobriu a linha na parede,


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na caverna. E, através da linha, descobriu que podia transformar alguma

coisa, que podia começar a se expressar de alguma forma.

3. OS SÍMBOLOS

Disputa (1510), Rafael Sanzio

Na aula anterior, mostrei para vocês a sala da Stanza della Segnatura,


que contém as pinturas do Rafael Sanzio. Vocês viram também um recorte

da “Escola de Atenas” e eu cheguei a mencionar esse quadro que mostro

agora para vocês, que é a “Disputa do Sacramento”.

3.1. O CONCEITO DE SÍMBOLO

Eu vou dar início a discussão sobre o símbolo. Nós já entendemos

que a harmonia garante a beleza por meio da ordem, por meio da esta-

bilidade, da tensão, causando então uma nova estrutura dos seres ali

arranjados, escolhidos pelo artista. Neste sentido, visto por este lado, é

uma operação de ordem, uma operação intelectual.

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O símbolo sempre esteve com o homem. O símbolo é a substituição de

um dado pelo outro. Quando você mostra um símbolo, você está reme-

tendo ao simbolizado. O simbolizado não está presente e você está apenas

mostrando uma parte dele. Ou seja, entre símbolo e simbolizado há um

aspecto de participação, em que o símbolo, que é o presente, aquele que

se apresenta, refere-se àquele ausente, de maneira parcial.

Mário Ferreira dos Santos tem um livro maravilhoso, “Tratado de Sim-

bólica” (1956), em que aborda muito bem esse tema. O Mário Ferreira foi

craque na questão do símbolo. Ele reconheceu demais a importância do

símbolo, porque o símbolo está presente em uma questão muito subjetiva

do nosso inconsciente.

O símbolo age a todo tempo e ordena, de certa forma, sem que

percebamos, a cultura. Há um livro do René Guénon, “A Grande Tríade”

(1946), no qual René Guénon reconhece a tríade em todas as filosofias. Ou

seja, reconhece um aspecto ternário, um aspecto de relação entre três ele-

mentos, no qual todas as filosofias e doutrinas religiosas se pautam. Vamos

ver um pouco mais a respeito.

Uma coisa interessante: existe um outro livro do Mário Ferreira

dos Santos, “Pitágoras e o tema do Número” (2000), em que trata muito

mais sobre o que falaremos daqui a pouco, que é o aspecto qualitativo do

número. O número, pela matemática, trata do quantitativo. No entanto,

apresenta um aspecto qualitativo do qual não se fala, do qual não fazemos

ideia. O homem antigo tinha essa noção, tinha esse conhecimento. Os

artistas faziam e trabalhavam dessa maneira ordenada, em que muitas

vezes há uma relação do número quatro, do número dois, do número três,

sempre com um propósito claro, mas nós não percebemos isso. Nós só con-

cordamos. É uma questão de acharmos agradável e harmônico, mas não

fazemos ideia do que significa tudo isso. E é isso que eu venho apresentar a

vocês.

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A pintura abaixo é também do Peter Paul Rubens, esse artista do Barroco.

Triunfo da Verdade (1625), Peter Paul Rubens

Nesta obra, temos uma questão particular, pois esta faz parte de uma

série de pinturas chamada “A Vida de Maria de Médici”. A reprodução acima

é apenas um trecho, é apenas uma das pinturas que o pintor fez para Maria

de Médici, que a retrata se reconciliando com seu filho.

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Houve ali uma desavença e esse é o sinal da concórdia. Vejam que

interessante. A figura do Senhor com uma asa, que levanta a outra figura

feminina, representa o tempo. E o tempo ergue quem? O tempo ergue a

verdade.

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Então a verdade vem com o tempo. E o tempo arrastou-a, como se

fosse um cachorrinho, pela pele, e a levou até os dois - Maria de Médici e seu

filho - para que se reconciliassem. Por isso disse que era uma situação em

particular. Esse tipo de coisa poderia acontecer com qualquer biografia.

Houve uma pergunta ontem neste sentido e eu aproveito para dizer que

isso tem muita relação com o nosso convívio com a obra de arte. À primeira

impressão, é difícil reconhecermos o símbolo de cada figura. A partir do

momento que começa a fazer esse exercício de buscar e de entender do

que trata cada figura, passa a ser muito mais natural que você mesmo

acabe subentendendo. Não precisaria necessariamente alguém falar. Mas

isso deriva de um hábito, temos que trabalhar, que exercitar o músculo da

crítica e da observação da obra de arte. É lógico que, nas primeiras, teremos

que ser noticiados do que cada figura representa.

3.2. UMA ANÁLISE INICIAL DOS NÚMEROS

Para poder abordar a questão do número, vou, em primeiro lugar,

aproveitar a lenda do Apolo que contei, só que vou introduzir um aspecto

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numérico das personagens. Na extrema esquerda, temos um recorte de

uma representação de Zeus feita por Ingres2 , um artista neoclássico con-

temporâneo a Delacroix.

Antes de prosseguir, quero fazer a observação de que isso é uma leitura

minha, que estou compartilhando que vocês. Zeus representa o número

um. Se fôssemos tentar entender a questão dos números, eu diria que o um,

a unidade, representa a origem. O dois, que seria Hera, a vida, representa o

ente existencial. Ou seja, a alma, o espírito enquanto ente, enquanto exis-

tente. O número dois seria um desdobramento do número um. Em terceiro

lugar, Leto é uma manifestação natural. A ninfa tem como característica

representar o poder da natureza, é a manifestação da natureza.

Nessas três primeiras figuras, fazendo uma leitura da esquerda para o

meio, temos uma tríade geracional, onde o três seria a existência ocorrendo

de maneira equilibrada.

2  Jean-Auguste Dominique Ingres, celebrado pintor e desenhista francês (1780 - 1867).

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A quarta figura é Ártemis, a quinta é Apolo e a sexta é a serpente.

A ilustração de Apolo aí presente é um recorte do “Parnassus” do

Rafael Sanzio, que está na Stanza della Segnatura. Ártemis nasceu primeiro

e somente depois nasceu Apolo. Há uma sequência nos gêmeos, eles não

nascem simultaneamente. Então, a primeira, que seria mais velha por uma

questão de minutos, de segundos talvez, é Ártemis, que é a escuridão. E

Apolo é a luz, veio depois. Numa segunda tríade, podemos dizer que Ártemis

é o número um, Apolo o número dois e, em terceiro lugar, está Píton, que

é o mal desenfreado. No caso de Ártemis, é uma escuridão positiva, uma

escuridão necessária, em contraposição à luz de Apolo. Eles são irmãos e

trabalham juntos. Existem várias histórias dos dois. Ártemis e Apolo sempre

vingam e resolvem as questões da justiça do homem e outras situações

juntos. Eles se ajudam entre si. O que eles devem realmente vencer é a

Píton, é o mal desenfreado. Fiquemos com essa comparação.

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3.3. O SIMBOLISMO DOS NÚMEROS

Agora, quero abordar um pouco mais detalhadamente a questão do

número conforme tratada por Mário Ferreira dos Santos, para que vocês

entendam isso de fato, para que não fique muito distante. Eu apliquei ao

mito para que isso ficasse um pouco mais ilustrado para vocês.

Eu vou falar a respeito de cada um desses números, para que vocês com-

preendam a utilidade qualitativa deles. Mário Ferreira dos Santos afirma que,

em Pitágoras, havia um conhecimento, havia um estudo muito importante

dos números. Pitágoras tratava dos arithmoi archai, ou seja, os números

arquetípicos. Era isso que significava basicamente. Pitágoras chamava

a isso de década sagrada, que seriam os dez números sagrados. Essa

década sagrada era chamada de tetractys.

Eu vou demonstrar isso para vocês a partir do número um. Começa-se

com o número um, que é o número do ser. O número um sempre remete

ao início e ressalta a permanência. Na nossa existência aqui, todos os

seres compreendem as coisas através da unidade. Conhecemos uma

pessoa, outra pessoa e vamos distinguindo as unidades. E só assim conse-

guimos. Se fosse tudo mesclado, não entenderíamos nada. Então o um é

um número fundamental e dele derivam três forças, as quais Pitágoras

chama de ad intra, que seria uma primeira movimentação, uma primeira

manifestação do número, em três partes. O primeiro um seria o ato puro.

A segunda possibilidade desse um é o um dinâmico. Ou seja, temos o um

que não se move, que nada afeta, só que ele já prevê, dentro dele mesmo,

um segundo número um, um número um dinâmico, aquele que gera um

ativo. E há um terceiro um, que seria o um relacionado ao elo e à conexão

entre esses dois primeiros uns, que é o um do amor. Na verdade, o um do

amor é entendido dessa maneira não por Pitágoras, mas sim pela tradição

cristã. Ou seja, a Santíssima Trindade.

25
E-BOOK BP ARTE, ORDEM E SÍMBOLO
O Pai, o Filho e o Espírito Santo seriam justa-

mente uma atualização dessa tríade sagrada, a tríade

superior, tal como a chamava Pitágoras.

Eu escolhi um mosaico feito na cúpula de uma igreja no estilo bizantino.

Igreja Martorana, Palermo, Itália

Percebam que, nesta obra, conseguiu-se manter a harmonia através

do círculo. Mais para frente, eu mostrarei para vocês que o círculo está para

o número um. Vocês podem começar a prestar atenção que o número um

não está representado como um elemento, está, às vezes, na verdade, sim-

bolizado pelo círculo. Eu estou tentando abrir o horizonte de vocês para que

façam uma leitura muito diferente nas próximas oportunidades em que se

depararem com uma obra de arte.

Abaixo, temos uma foto da igreja.

26
E-BOOK BP ARTE, ORDEM E SÍMBOLO
Percebam que, na estru-

tura arquitetônica dessa igreja,

nós temos esses arcos que são

semicírculos, que quebram a

monotonia das pilastras e trazem

uma unidade para o conjunto

delas. Essa é a Igreja de Santa

Maria dell’Ammiraglio, localizada

Galerie d’Apollon, Delacroix, Paris, França em Palermo, na Sicília. Esse seria o

exemplo artístico do número um.

Iremos para o número dois, através dessa pintura do Michael Pacher cujo

nome é “São Wolfgang e o Diabo”.

São Wolfgang é bispo

de Ratisbona e o Diabo

está apresentando o livro

dos vícios a ele. Há uma

controvérsia, pois algumas

pessoas usam essa imagem

para dizer que, na realidade,

o homem representado

seria o Santo Agostinho.

No entanto, pela origem

do artista, que é austríaco,

provavelmente esse é o São

Wolfgang mesmo, um dos

santos mais importantes da


São Wolfgang e o Diabo (1475), Michael Pacher
Alemanha. Se não me falha

a memória, acho que é isso.

27
E-BOOK BP ARTE, ORDEM E SÍMBOLO
O dois, que seria a Dyada Pitagórica, representa a emanação, o

aspecto Ad Extra. No um, pela unidade, vimos o aspecto Ad Intra. Ad Extra

seria a exteriorização do um. O dois seria então uma hipóstase.

Há muito tempo, um dos primeiros livros sérios com que me deparei

foi as Enéadas de Plotino. Plotino aborda a beleza, esses aspectos morais e a

hipóstase. Foi a primeira vez que tive notícia sobre esse termo. A hipóstase

é a geração do mundo material. O mundo existencial é, na verdade, um

desdobramento de Deus, dessa partícula primeira, se assim podemos

chamar para fazer uma pequena brincadeira com a teoria do Big Bang. Mas

é a unidade. É a unidade espiritual e não material. Não preciso dizer mais

nada né?

O dois sempre representa dualidade. Exatamente por isso, eu trouxe

aqui o Diabo e o Santo. São aspectos opositivos da realidade. Não necessar-

iamente que o Diabo seja em todos os casos uma refração da matéria em

oposição ao espírito. Não seria uma interpretação maniqueísta que quero

trazer para vocês. Mas há sim oposição na existência. No momento da

existência, há a oposição, a qual não existe na unidade. A partir do momento

em que há a criação, há, portanto, a oposição. São várias as oposições.

Ativo e passivo. Homem e mulher. Apolo e Ártemis. Não são necessaria-

mente aspectos ruins e bons. Eles são, inclusive - e é aí que partimos para

o número três -, complementares e necessários entre si.

Vocês vão perceber que o três não é um número de alguma coisa, tal

como o um é, resumidamente, o número de Deus e o dois é o número da

existência. Podemos dizer que o três é o número da mediação. Três é o

convívio entre essas duas oposições do número dois da existência.

28
E-BOOK BP ARTE, ORDEM E SÍMBOLO
Aqui está o três. O três é rep-

resentado pelo triângulo. Onde ele

está na pintura? Alguém poderia

me dizer? Vocês veem um triângulo

nessa composição?

Aluno: há três pessoas.

Sim, há três pessoas, mas não

é só isso. Trata-se de um triângulo

mesmo, propriamente dito. Se você

fizer um traçado...

Virgem com o Menino e Sant’Anna (1503),


Leonardo da Vinci

Ingres já dizia que o desenhista desenha ao

olhar. Ele olha e já está desenhando. Por quê? Porque

já está imaginando e projetando, na realidade, o traço,

a linha para definir os objetos. Se você perceber, há um

triângulo ausente, oculto, que está presente através

do amontoado das figuras. A Virgem é a figura que

se debruça para alcançar a criança e Sant’Anna a está

ajudando.

O número três é um elemento de equilíbrio, porque é mediador.

Então, faz uma ponte entre o dois e o quatro. Não é necessariamente entre

o um e o dois. Pode ser entre o dois e o quatro. Por quê? No dois, há a

oposição. Quando você tem oposição, você tem o ativo e o passivo, o pos-

itivo e o opositivo, você tem um desdobramento, em várias situações, da

dualidade. A existência, a realidade é pautada na dualidade. O três faz o

29
E-BOOK BP ARTE, ORDEM E SÍMBOLO
intermédio e atinge o número quatro, que é o número da manifestação.

O número dois é o desdobramento do

número um, que seria os aspectos morais, dig-

amos assim, ou pelo menos duais da existência.

No multiplicar dois vezes dois, você tem o quatro,

que é o número da manifestação. O quatro é

um número do ser vivente. Poderíamos dizer

então que o dois seria o número do Cosmo e aí sim o quatro é o número do

homem ou o número da manifestação.

O quatro está aqui representado

por uma pintura de Jean Daret, um

francês que fez várias pinturas num,

parece, hotel, Palácio de Chateaurenard.

Percebam que, nesta pintura,

há uma tentativa de ilusão através de

uma técnica muito conhecida chamada

trompe l’oeil, que significa ilusão de

ótica. Na parte superior, trata-se de

uma falsa janela e uma pintura de uma

pessoa empurrando a cortina. Quem

desce a escada, que está imediatamente

à frente, tem a impressão de estar sendo

observado por uma figura real. Em um

curto espaço de tempo, foi utilizado esse


Hotel Chateaurenard (1654), Jean Daret recurso. Hoje temos aquelas pinturas no

chão, 3D, e achamos que é a coisa mais

nova do mundo, mas não necessariamente.

Por que eu escolhi essa figura para o número quatro? O quatro é um

quadrado, é um retângulo, são os quatro lados. Na tela, a figura humana

30
E-BOOK BP ARTE, ORDEM E SÍMBOLO
está posicionada assimetricamente no canto esquerdo inferior para tentar

combater, contrapor o vermelho, porque este último também é um ele-

mento compositivo pesado. É interessante como o artista conseguiu, dentro

de um retângulo muito estreito, salvaguardar a harmonia, algo que é muito

difícil.

O mundo está representado em quatro extremos. Eu vou mostrar

uma planilha, um tabelinha disso e vocês vão entender o que estou quer-

endo dizer sobre os números. Antes, só vou demonstrar a pintura do Paolo

Veronese, “Banquete na Casa de Levi”.

Banquete na Casa de Levi (1573), Paolo Veronese

Nesta composição, conseguimos reconhecer várias formas

geométricas. Temos quadrados, semicírculos, retângulos, mas pensem

tentando projetar os possíveis quadrados e as outras formas geométricas,

mesmo quando não estão explícitos. Por exemplo, existe um triângulo

enorme nessa figura, só que é um pouco menos evidente. Onde ele está?

Aluno: nas escadas?

A escada está ali tentando apontar a um triângulo equilátero muito

aberto, que vai coincidir pontos. Se fôssemos fazer uma projeção, estaria

31
E-BOOK BP ARTE, ORDEM E SÍMBOLO
mais ou menos acima da cabeça de Cristo, que está no centro da com-

posição. Interessante, né? Há pessoas subindo, há uma movimentação. Per-

cebam também que existe uma compensação das figuras. Há um criança

sendo puxada por um adulto. Há outro para cá… Como sempre, o artista

pensa muito inteligentemente na hora de distribuir essas figuras.

A soma dos números um, dois, três, quatro equivale a dez, que é

chamada a década sagrada.

Por que eu falei tetractys? Por que tetractys é a década sagrada?

Tetra vem de quatro, porque é a soma dos quatro primeiros números que se

desdobra no dez. Por ser uma soma dos quatro números fundamentais,

qualitativamente falando, o dez seria o número da perfeição do Cosmo.

Eu não sei vocês já leram “Divina Comédia”. Essa obra é inteira pau-

tada em números. Dante Alighieri era muito conhecedor de tudo isso e

sempre se pautava nisso. Eu mencionei os cantos. Não é à toa que Dante

dividiu em 33 cantos. Dante Alighieri trabalhava justinho para cumprir com

essa agenda numérica, essa agenda simbólico-pitagórica.

Abaixo, temos uma tabela muito mais elucidativa do número, para

vocês compreenderem o que quero dizer aqui.

32
E-BOOK BP ARTE, ORDEM E SÍMBOLO
O número um é representado pelo ponto. O indivíduo, o ser, a estab-

ilidade, a permanência e o todo. Por exemplo, se pegarmos a figura do ser

humano. O ser humano é uma unidade, é um indivíduo e é um todo de

várias partes. Então a unidade nos revela o todo e organiza isso para nós.

O número um ou o ponto ou o que quer que seja são símbolos desse

aspecto permanente, estabilizante.

O número dois pode ser representado pela linha, pois esta é o des-

dobramento do ponto. Na verdade, a linha é o encontro de dois pontos.

Existem várias oposições. Mário Ferreira chamava-as de antinomias, porque

não são oposições que se anulam na presença uma da outra, mas se com-

pletam. A luz e a sombra. O Sol e a Lua. O material e o imaterial. A afirmação

e a negação. O ativo e o passivo. O alto e o baixo. Esquerda e Direita. Essência

e existência. Temos uma série de princípios duais na nossa existência.

Se vocês pegarem dois pares destes, você terá o quatro, que é o

número da manifestação. Só que, para isso, precisamos ter o três. O três

é o elemento intermediador e pode ser representado tanto pelo triângulo

quanto pelo quadrado. Neste caso, está sendo representado pelo quadrado

porque, nesta comparação que fazemos, o quarto elemento já seria o cubo.

Por quê? Porque o três representa o plano. Então, o três é o número do

plano. Nesta tabela, há três tríades. Há a tríade inferior: Corpo/Alma/Espírito.

Há uma elevação dessa primeira tríade: Espécie/Forma/Arquétipos. Da

espécie reconhecemos a forma e da forma reconhecemos os arquétipos.

A leitura é da direita para esquerda. Na tríade superior, a última, fazemos

a leitura da direita para esquerda: Espírito Santo/Filho/Pai, que seria a uni-

dade, seria o aspecto maior, mais elevado da tríade. Portanto, o três seria o

número do plano.

Sobre o três, temos uma frase do Krishna no Bhagavad Gita, uma lei-

tura indiana hinduísta. Nesta obra, Krishna chega a Arjuna e diz: “Eleve-se

acima dos pares de contrários”. O que seria se elevar acima dos pares de

33
E-BOOK BP ARTE, ORDEM E SÍMBOLO
contrários? Seria alcançar o número três, porque o homem colocado na

existência dual não pode se entregar nem só a um lado nem só ao outro. Se

tivéssemos somente a luz do sol, não enxergaríamos nada. Se não tivermos

luz nenhuma, temos o breu, a escuridão. Apenas com esse exemplo, já não

temos a visão. O que precisamos? Precisamos da oposição, precisamos da

presença dos dois, da escuridão e da luz, contrabalanceados. O três é o

número do homem, porque o homem faz parte dessa existência dual

que é refratada no número quatro, manifestada nos quatro cantos do

mundo.

O cubo está aqui representando o número quatro e temos alguns

exemplos. As estações do ano, por exemplo, são quatro características da

existência, pelo menos dos nossos ciclos. Temos o verão, a primavera, o

outono e o inverno. Há os pontos cardeais. Há os reinos: mineral, vegetal,

animal e humano. Ou, então, os elementos: Terra, Água, Fogo e Ar. Em todo

canto, temos essas representações quaternárias.

3.4. OS NÚMEROS E A TEORIA DOS QUATRO DISCURSOS


Da mesma forma que fui ousado em ter feito a conexão entre as dis-
ciplinas constantes na pintura do teto da Stanza della Segnatura e a teoria

dos quatro discursos do Olavo de Carvalho, eu coloquei os discursos do

Olavo ali embaixo também. Por quê? Os discursos que Olavo reconheceu

em Aristóteles começam com qual? O poético. O poético já seria a mani-

festação, então é a parte mais baixa dessa elevação. O retórico já estaria

mais para o número dois, porque o retórico salienta as oposições. Assim

como o retórico poderia estar para a Justiça, que é sempre uma sentença,

ou seja, uma busca por uma posição, por um posicionamento. Essa busca só

se dá através da filosofia, da dialética se for seriamente confrontada, seria-

mente ordenada. Caso contrário, ficamos na doxa, na dualidade, não saímos

da oposição direita/esquerda. No entanto, temos que resolver tudo isso, e

34
E-BOOK BP ARTE, ORDEM E SÍMBOLO
resolvemos isso dialeticamente. E dialeticamente é o quê? É a mediação

e quem traz isso é o raciocínio da filosofia, a confrontação de opostos.

Quando falei que a harmonia era o confronto e a participação de

dois serem diferentes e não iguais, primeiramente, acabamos com aquele

dogma da Revolução Francesa, de igualdade. Acabamos com isso porque

não há harmonia se só tem iguais. Na verdade, só temos desarmonia.

Hoje, percebemos - ou pelo menos estamos tentando sair desse lodo - que

todas as vezes em que foram propostas as igualdades, caímos em totali-

tarismos. Veja, não há harmonia se não houver uma contraposição de

opostos, de luz e sombra, de afirmação e negação, enfim, de toda essa lista

que coloquei aqui para vocês.

Percebam que a arte também acontece nesse princípio, porque

a arte está manifestada através do harmônico, do aspecto harmônico,

que traz a beleza e a apreciação para nós.

E, finalmente, o lógico está para o número um. O lógico é a busca

e todo esse trajeto em que conseguimos encontrar um ponto final nas

discussões, porque reconhecemos a existência de Deus. Isso é um con-

hecimento apriorístico. Vocês concordam que se tivermos esse esquema

simbólico na cabeça, pelo menos da simbologia dos números…. porque o

símbolo é muito vasto, é muito ressonante. Como eu havia dito, o símbolo

é recorrente em várias doutrinas filosóficas e religiosas, não apenas através

dos números, mas também de outros tipos de símbolos. A própria cruz é

um símbolo evidente da unidade e da dualidade, do aspecto vertical e do

horizontal, acerca do qual comentei na aula anterior.

Quero terminar com esta figura do Vermeer. Como havia prometido

para vocês, eu comecei e vou terminar com ele, um artista holandês,

barroco, muito individual. Vermeer nunca foi ligado aos artistas contem-

porâneos seus, sempre tendo uma carreira solitária, bem distanciada, só

respondendo encomendas de mecenas.

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E-BOOK BP ARTE, ORDEM E SÍMBOLO
Mulher Segurando uma Balança (1665), Johannes Vermeer

O nome dessa imagem é “Mulher Segurando uma Balança”. O que

ela pesa ali são pérolas. Conseguimos descobrir isso pelas pérolas jogadas

na caixa. Percebam, novamente, o interior escuro, a luz que vem da janela.

Quando o artista põe uma luz que entra pela janela, podemos dizer que

está em jogo o microcosmo do ambiente interior e o macrocosmo, que está

entrando, está participando e dando luz ali. Ah, na verdade, eu vou acabar

com Rembrandt, agora que eu lembrei.

Na reprodução seguinte, eu fiz uma brincadeira.

36
E-BOOK BP ARTE, ORDEM E SÍMBOLO
Se vocês repararem, nós

temos a pintura do Juízo

Final ao fundo.

Há a figura de Deus e das

almas a serem julgadas.

Provavelmente, isto é uma

alusão ao quadro de El Greco,

porque é muito parecida.

Parece que Vermeer pintou

rapidamente uma pintura

famosa do Juízo Final de El

Greco, porque são figuras

longas, esguias.

É muito engraçado como

El Greco lembra o expression-

ismo, que só vai acontecer

muito mais tardiamente. Mas

isso é só uma nota de rodapé,

voltemos à pintura de Vermeer.

O que fiz nela? A primeira

tríade é o Juízo Final, é a tríade

da unidade, da Santíssima Trin-

dade, a unidade das três pes-

soas da Santíssima Trindade, o

equilíbrio divino. Se vocês repa-

rarem, há a tetra-manifestação

a partir dessa figura. O Sepultamento de Conde Orgaz (1588), El Greco

37
E-BOOK BP ARTE, ORDEM E SÍMBOLO
Primeiro, o indivíduo, número um. Segundo, a oposição. O que é a

oposição? Justamente os elementos na balança. O homem é o indivíduo,

porém, com a sua mão intermediadora, número três, equilibra as duas

pérolas, cada uma de um lado. Então ele confronta essas oposições. Além

disso, podemos colocar que a linha que promove essa mesa é um elemento

que o pintor usou para reforçar a horizontalidade, o número quatro.

Eu posso estar viajando um pouco na maionese de ter colocado tudo

isso, mas, por que não? Por que Vermeer colocaria então o Juízo Final em

uma pintura em que existe uma figura na frente que está tentando manter

um equilíbrio? No Juízo Final, o que vai acontecer? Entre virtudes e vícios,

Deus vai julgar e colocar cada um do seu lado. A pérola tem um significado

interessante de pureza e de perfeição, de raridade, porque nasce da concha

de um animal. Portanto, tem um significado profundo. E, nesse interior,

nesse quarto em que a figura está, a pérola brilha. É um pontinho de luz

dentro desse quarto escuro. Ad Intra e Ad Extra estão representadas e até o

próprio quaternário que havíamos comentado.

Há uma frase do São João da Cruz que eu quis trazer:

“Para encontrar a claridade, é preciso passar pela noite,

pela noite da inteligência primeiro,

mas até pela noite do coração e pela da alma.”

4. O QUE A ARTE PODE NOS ENSINAR?

Finalizamos aqui essa aula, porque comecei a aula anterior me refer-

indo ao livro do Olavo de Carvalho “Aristóteles em Nova Perspectiva” (1996) e

estou finalizando aqui com o símbolo. E existe um livro do Olavo de Carvalho,

chamado “A Dialética Simbólica” (2007), no qual afirma que o elemento

simbólico é um elemento dialético, é um elemento que intermedeia, dig-

38
E-BOOK BP ARTE, ORDEM E SÍMBOLO
amos assim, o conhecimento do homem. Como vimos, o homem olha para

a existência, para os elementos sensíveis, para os objetos sensíveis, e tenta

compreender tudo aquilo. Quando faz isso, age pela abstração. A abstração

é um assunto que estava em São Tomás de Aquino. Com isso, quando o

homem compreende a existência a partir desses números, a partir dessas

formas, começa a compreender os ciclos naturais da existência, começa

a perceber o valor da unidade. Então, quando o homem começa a abstrair

e a gerar conhecimento, ou seja, a tentar compreender o equilíbrio desse

Cosmo, está, na verdade, fazendo um caminho de amarração entre esses

conteúdos, desde o poético, o retórico, passando pelo dialético e chegando

ao lógico.

Através do que a arte pode nos ensinar? Além da arte demonstrar a

harmonia através da ordem, além de demonstrar esses aspectos duais

resolvidos, a arte pode, na verdade, trazer o símbolo para nós, porque o

símbolo nos cativa e nos faz entender as coisas de modo muito mais efe-

tivo. Por isso, o homem antigo é muito superior, em questão intelectual, a

nós, porque o homem antigo tinha esse itinerário dos números, o itinerário

simbólico na sua cabeça. E isso era muito mais transformador e clarificador

para que compreendesse a existência. Todas as situações em que temos

oposições, resolvemos com o número três, resolvemos com a estabilidade,

com a mediação do número três.

Olavo de Carvalho não aprofunda tanto neste aspecto, apenas dá uma

dica para nós de que sim, o símbolo tem um papel dialético. E a dialética é

o número três? Sim. E o número três é o número do quê? É o número do

homem. O homem é o mediador da existência, do mundo e Deus. René

Guénon disse isso no livro “A Grande Tríade”.

Eu vou finalizar com Rembrandt, um artista fascinante, holandês também,

do Barroco. Rembrandt tem uma série de trabalhos que não são tão con-

hecidos. Conhecemos mais aquela “A Lição de Anatomia do Dr. Tulp”, se

não me engano. Às vezes, um autorretrato dele, um tema no qual era muito

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E-BOOK BP ARTE, ORDEM E SÍMBOLO
recorrente. Durante toda vida, Rembrandt fez pinturas suas tanto menino

quanto mais velho. Essa obra à direita, de Aristóteles com o busto de Homero,

e, na realidade, um pouco mais conhecida.

Pinturas de Rembrandt Harmenszoon

As outras duas figuras, talvez vocês já conheçam, mas não existem

apenas estas retratando o filósofo meditando. Rembrandt tratou sobre o

filósofo meditando inúmeras vezes, em várias posições diferentes, por gra-

vuras - porque era um ótimo gravurista também - e pelas pinturas a óleo.

Aqui, eu extrai uma reflexão muito bacana do René Huyghe com

relação ao Rembrandt, sobre esses trabalhos do filósofo meditando.

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E-BOOK BP ARTE, ORDEM E SÍMBOLO
Perceba que o sábio está med-

itando. Quem medita, medita

de olhos fechados. O livro está

aberto na mesa dele, mas ele

passou para uma meditação de

olhos fechados. Só que ele está de

frente com a luz da janela. Mesmo

assim, ele fecha os olhos. Por quê?

Há um momento em que temos

que fechar os olhos para os objetos

sensíveis da realidade, pois eles

nos confundem. Muitas vezes, é a

partir do conhecimento sensível

que conseguimos os conheci-


Filósofo em Meditação (1632), Rembrandt Harmenszoon
mentos intelectuais.

No entanto, o excesso disso,

da via aposteriorística, não é

viável. Por isso Mário Ferreira

ressalta que são duas vias e

são duas vias possíveis que

não se auto-anulam. Ora pre-

cisamos percorrer por uma

via aposteriorística, ora será

muito mais pertinente a via

apriorística platônica. Nesta

pintura, o sábio se recolhe ao

seu interior, ao escuro do seu

interior.

Filósofo Com um Livro Aberto (1627), Rembrandt

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E-BOOK BP ARTE, ORDEM E SÍMBOLO
É interessante saber por que Rembrandt reforça essa escada, não

apenas nessa figura, mas também na outra. Há essa escada encaracolada,

a subir em um movimento espiralado.

Na verdade, Rembrandt está querendo passar para nós que esse

interior é a mente desse sábio, desse filósofo. E ele faz esse trajeto de subir

essa escada. É um trajeto árduo, que vai espiralando, que você vai subindo

dando voltas, mas você sobe, principalmente quando fecha os olhos e deixa

que o íntimo da escuridão... e por isso aquela frase do São João da Cruz,

que reforça que há um momento em que devemos largar os aspectos mais

prováveis e nos recolhermos ao nosso interior, à meditação, porque ali, no

interior, no escuro, é que se encontra Deus. É fora da clareza do provável,

muitas vezes.

O homem é mediador porque precisa trabalhar com essa dualidade,

precisa trabalhar com essa oposição da realidade.

Aqui temos um Aristóteles.

42
Aristóteles Ecom
- B OoOBusto
K B P de Homero
ARTE, O(1653),
RDEM Rembrandt
E S Í M B OHarmenszoon
LO
Há algo que é até novo para mim. Dizem que Homero, que foi o

grande poeta da Antiguidade e é até hoje, que escreveu “Ilíada” e “Odis-

seia”, era, na verdade, cego. René Huyghe levanta a possibilidade dele nem

existir. Assim como falam de Pitágoras, que poderia ser um conjunto de

pessoas e não um só homem. Isso, na verdade, é porque subestimamos

o ser humano. Quando vemos o Mário Ferreira dos Santos, que escreveu

uma enciclopédia, vemos que é possível, que o homem consegue. Mas,

trocando em miúdos, não vou entrar nesse mérito, Homero era um poeta

cego. E olha só a ironia aí. Aristóteles, que é o filósofo eminentemente visual,

porque tratou da existência, de subir para os conhecimentos a partir dos

sentidos, repousa e olha para Homero. Para mim, nada me tira que, sim,

Aristóteles sabe a importância da poesia para o conhecimento intelectual.

Tanto ele sabe que, lógico, escreveu a “Poética”. No entanto, aqui é uma

reflexão do Rembrandt em que Aristóteles sabe que, uma hora ou outra,

tem que largar o osso e ver que não necessariamente é a razão que vai nos

colocar diante das verdades, mas, às vezes, até a via mais intuitiva, a via da

poética. Aquela via mais escura, mais obscura.

Por que digo tudo isso e ressaltei esses elementos? Ora, a poética

é o início, é a base do nosso conhecimento. Só que, através da simbólica,

através dos símbolos, não há nada mais representativo do símbolo que não

seja a arte. E se o símbolo é esse elemento dialético que faz a reunião

entre esses quatro discursos, a Arte é o principal veículo da verdade para

nós. Eu diria que é uma tese que tento defender, de que a arte é um con-

hecimento, é fundamental e nunca vai morrer, contrapondo o que alguns

já falaram, tal como Hegel. Hegel disse que uma hora a arte iria morrer,

depois, a religião, pois não seria preciso mais nada disso.

A Arte é fundamental para o ser humano e não se limita apenas a

representar passagens históricas, não se limita a apenas demonstrar a per-

sonalidade dos artistas, como fiz a reflexão sobre van Gogh, não se limita

também a falar sobre tensões política-sociais, como no caso do neoclás-

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E-BOOK BP ARTE, ORDEM E SÍMBOLO
sico, no qual o Delacroix, que pintou “A Liberdade Guiando o Povo”, enfim…

por mais que o artista se lance a aspectos horizontais, da História, da

Política, da sociedade, o verdadeiro artista comunica universalmente na

linha vertical. A Arte precisa estar na linha vertical.

E é por isso que houve aquela discussão porque Platão, na “República”,

expulsa o artista, dizendo que este está ligado ao efêmero, ao sensível. E

Platão faz uma reprodução da reprodução, porque imita a natureza de

Deus, que é a primeira Criação. Então, sim, Platão tinha toda razão. O pintor,

o artista, o escritor não pode ficar no sensível, tem que fazer esse caminho

ascendente, ascensional. Ele faz quando pinta, mas, quando pensa no

símbolo, faz o caminho de cima para baixo, então o artista está sim

operando aprioristicamente e aposterioristicamente.

Como disse na primeira aula, este curso é uma apresentação de

quanto fiquei entusiasmado e empolgado com o valor que tem a arte.

Porque eu sempre gostei de filosofia, sempre desenhei, sempre gostei de

desenhar, tive facilidade para isso, e é engraçado que fui almejando isso e,

enquanto lia filosofia, simultaneamente, a arte confirmava o que eu lia e

me mostrava coisas em que não havia pensado.

Começamos lendo Nietzsche, começamos negando tudo e achando

muito legal ver aquele cara que mete o pau, ou, até, começamos por outros

piores. O Nietzsche ainda está muito bom, porque, por mais que fosse prob-

lematizador, como diz Mário Ferreira, que foi um tradutor de Nietzsche: há

positividades em Nietzsche. Só que, é lógico, é muito sedutor, porque é

aquele homem que mete o pau em tudo. O jovem quer isso. Eu comecei

dessa forma. Só que a arte foi me envolvendo e foi me envolvendo de uma

tal forma que me trouxe respostas filosóficas teológicas. Não à toa, após o

meu curso de arte, fiz a minha pós em Teologia.

Eu estou dando esse resuminho porque, na verdade, isso me encanta

muito e é isso que gostaria de ter preparado para vocês. Eu espero que

eu tenha conseguido cumprir com esse encantamento intelectual, esse

encantamento filosófico que a arte promove.


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E-BOOK BP ARTE, ORDEM E SÍMBOLO
5. PERGUNTAS

1) O símbolo é uma ideia absoluta ou pré-existente ao ser humano? Ou é

algo criado pelo homem, ao qual este acaba atribuindo este significado

dos símbolo nas coisas?

Pela recorrência do número, do símbolo, por exemplo, falo do número

porque foi o símbolo que utilizei, a simbólica que utilizei… por esse trajeto,

de uma certa forma, o símbolo é ciência, porque é a maneira como enten-

demos o simbolizado. Quem é o simbolizado? É Deus. Deus, portanto,

poderia ser um simbolizado e nós, os símbolos dele, porque nós fazemos

menção a uma coisa ausente. E nós participamos de uma coisa maior, que

é o simbolizado. Ué, é o resumo de Deus e sua existência. Não é verdade? Os

teólogos diziam muito: estamos em Deus por participação. Imperfeita, mas

estamos. Então agimos e existimos como símbolos.

Eu acredito que o símbolo, assim como o conhecimento, é um instru-

mento para que reconheçamos esse conhecimento. E o conhecimento

nada mais é do que o reconhecimento da verdade. Não pode ser um con-

hecimento cartesiano. Ele tem que ser um conhecimento do fato concreto.

E sim, o símbolo, querendo ou não, pode ser muito bem, quem sabe, uma

pista que Deus nos deu, porque Deus age, como falam os teólogos, e nos

fala através de coisas e palavras. Palavras e coisas. Ele nos fala quando quer

nos falar. Ele traz um Anjo e o Anjo vem aqui e fala. Ele aparece ao apóstolo

Paulo quando cai do cavalo e fala: “Por que tu me persegues?”. Na hora que

quer falar, ele fala. Ele é o onipotente. E no momento em que quer mostrar

através das coisas e que, na verdade, é o tempo todo, somos nós que não

estamos muitas vezes muito atentos, porque Deus está nos provando da

sua existência, da sua potência, a todo tempo.

Eu diria que o símbolo é mais uma categoria e mais um instrumento

do conhecimento, dessa busca pela sabedoria. Ao mesmo tempo em que

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existe de uma maneira abstratizante, assim como muitas coisas. Os con-

ceitos existem de maneira abstrata, porque são uma extração da nossa

inteligência para que consigamos compreender melhor a existência. Da

mesma maneira, se comporta o símbolo. Ele é. Ele é alguma coisa. Ele nos

aponta alguma coisa.

Aluno: ele provoca também, né? Começou a falar sobre símbolo, nessa

parte mais teológica, eu lembrei daquela ave que não se consome com a

chama.

Foi ótimo você ter mencionado isso, porque eu tinha até esquecido

que ia terminar a aula falando sobre o livro “A Imaginação Educada” do

Northrop Frye, que é um crítico, um professor canadense do século XX, que

escreveu um livro fantástico que, na verdade, é a compilação de uma pal-

estra dele. Frye fala sobre uma coisa fundamental, pilar: que os grandes

temas até hoje são pautados ou no mito, nos mitos nórdicos, gregos, seja lá

o que for, mas um mito, ou nas parábolas do Evangelho. Por quê? Todos eles

estão carregados fortemente de símbolos. O que é o símbolo? É uma coisa

que se apresenta e que quer dizer outra. Por que existe aquela questão

tão marcante da Bíblia em que o próprio Jesus briga contra os fariseus? O

Paulo tem um trabalho danado para falar com esses caras. Porque o far-

iseu é preso à palavra, ao que está escrito e não consegue ler o que está

nas entrelinhas, de jeito nenhum. Então ele age exatamente ao pé da letra.

Naquela época, eram os fariseus. Hoje, temos um monte de fariseus, é só

começarmos a pensar.

Aluno: o positivista, que segue a lei, certinho.

Também. Quando você faz uma leitura como Eric Voegelin fez da

História, aí sim você tem uma leitura simbólica da História, porque a História

é recorrente. Ela acontece ciclicamente. Mário Ferreira também trata

disso, se não me engano, no livro “Filosofia da Crise”. Uma publicação bem

recente. É um livro fantástico em que fala sobre uma crise na História. Existe

um aspecto cíclico da História e só conseguimos sair dessa linha horizontal

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da História, se fizermos uma leitura vertical dela. Não é porque a História

é uma disciplina horizontal, assim como o artista começa pela matéria,

que precisamos ficar subordinados, ficar aquém e só na linha horizontal,

só buscando a historiografia, os fatos exatamente da forma como aconte-

ceram, porque, se não for assim, não teremos como saber de mais nada, não

teremos conclusões para chegar. Em primeiro lugar, o livro de História já é

uma seleção. Assim como o livro de História da Arte é uma seleção dos fatos

mais importantes. Quem selecionou esses fatos mais importantes? Teve

que haver, por trás, uma figura que fizesse uma leitura e fosse apanhando

aquilo. Ele selecionou, hierarquizou, colocou em um ponto mais importante

os movimentos artísticos e os artistas que mais importaram. Por exemplo,

no caso da História da Arte: quando o Gombrich tem que falar sobre um

certo número de pintores do Renascimento, sabe que está deixando outros

de lado, mas estes são menos importantes porque realmente não foram

tão geniais e não conseguiram provocar aquela tensão, não conseguiram

criar uma nova estrutura tensional tão bem sustentada quanto os grandes

artistas o fizeram.

Por que é uma obra de arte? Por que é uma obra-prima? Por que esse

homem é um gênio? Não é necessariamente porque falou a primeira vez

sobre aquilo, mas sim como fez tudo isso. E é como conseguiu sintetizar

tudo isso de maneira espetacular, em que você não mudaria nem uma

palha. Há artistas menores que fazem trabalhos bonitos, bacanas, tem tal-

ento, mas achamos que uma coisa ou outra poderia ser modificada.

Aluno: tipo quando estamos assistindo aos filmes?

Isso. Quando fazemos a crítica de um filme, a não ser uma obra-

prima, que é um grande e espetacular filme no qual não mudaríamos nada,

porque não nos deixou entediados em nenhum momento, respondeu a

todas as perguntas, saciou nosso anseio no fim, porque há muitos filmes

ótimos, mas que, quando chega no fim, defecam.

Aluno: eu tenho a impressão de que o símbolo é superior à linguagem,

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até porque, na secularização, a língua se tornou a novilíngua, então as

pessoas começam a distorcer o significado das palavras e aquela frase do

Dostoiévski que diz que a beleza salvará o mundo, acho que o significado

dela é que, mesmo que o mundo inteiro comece a relativizar as coisas, rel-

ativizar moral e ter um tempo de secularização absoluta, a arte em si, que é

carregada de símbolo, consegue resgatar as verdades absolutas. Eu não sei

se você concorda com isso.

Com certeza, porque a arte é uma via muito mais agradável de ser

percorrida. Quando nos traz e é carregada de símbolos, a arte consegue

comunicar de uma maneira muito mais fácil.

Aluno: ela condensa o conhecimento.

Isso. Ela condensa. E por agradar, pela beleza, nos capta, nos pesca. Ela

nos fisga e, por conta da beleza, consegue reproduzir coisas muito maiores.

Quando Tolstói faz uma crítica em que os gregos confundiam a beleza com

a verdade e com o bem, com o valor moral, eu tenho uma reserva, porque

eles não estão falando da beleza sensível, das aparências. Eles estavam

falando de uma beleza que trabalhava em função da verdade. Aí eu con-

cordo, porque, realmente, a beleza é um ajustamento, é uma coisa que fica

bonita. E quantas vezes não conhecemos uma pessoa bonita, mas ordinária.

Quantas vezes não vemos um discurso político maravilhoso e é na verdade

um escorregão, pois, por trás dele, tem um lobo? Sim, a beleza pode, por um

lado, nos confundir. Por isso, Platão fez a recomendação de que o artista, se

fosse só olhar para essa beleza sensível, estivesse fora de uma “República”

perfeita, que seria uma situação em que você pudesse viver com grande

confiança de que todos os membros estivessem trabalhando pela verdade.

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6. BIBLIOGRAFIA

ARISTÓTELES. Arte Poética. Editora Martin Claret, São Paulo/SP, 2003

CARVALHO, Olavo. Aristóteles em Nova Perspectiva. Vide Editorial, Campinas/


SP, 2013

CARVALHO, Olavo. A dialética simbólica. Vide Editorial, Campinas/SP, 2015

CROCE, Benedetto. Estética como Ciência da Expressão e Linguística Geral.


É Realizações, São Paulo/SP, 2016

BOAVENTURA, São. Itinerário da Mente para Deus. Editora Vozes, Petrópolis/


RJ, 2012

FRYE, Northrop. A Imaginação Educada. Vide Editorial, Campinas/SP, 2017

GILSON, Etienne e BOEHNER, Philotheus. História da Filosofia Cristã. Editora


Vozes, Petrópolis/RJ, 2012

HUYGHE, René. Os poderes da Imagem. Difusão Europeiado Livro, São Paulo/


SP, 1965

SANTOS, Mário Ferreira. Convite à Estética. Editora Logos, São Paulo/SP, 1966

SANTOS, Mário Ferreira. Tratado de Simbólica. É Realizações, São Paulo/SP,


2007

TOLSTÓI, Leon. O que é arte?. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro/RJ, 2016

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