Você está na página 1de 26

TALBOTT, Strobe e CHANDA, Nayan (org.).

A era do terror, o mundo depois de 11 de


Setembro. Rio de Janeiro: Campus, 2002.

Capítulo 2
O PODER PELA VIOLÊNCIA:'
A REINVENÇÃO DO
EXTREMISMO ISLÂMICO

Abbas Amanat
M ASPECTO AINDA surpreendente dos atentados de 11 de
setembro é que nenhum indivíduo ou grupo tenha assu-
mido explicitamente sua autoria.* Os perpetradores, tanto
suicidas quanto sobreviventes, não chegaram ao ponto de con-
fessar seu crime ou receber o crédito pelo golpe heróico que
acreditavam ter desfechado contra os símbolos do poderio fi-
nanceiro e militar da América. E como se preferissem que o
terror e a carnificina falassem por si. Quando uma entrevista
gravada de Osama Bin Laden foi ao ar na televisão no dia 7 de
outubro, dia do início dos ataques aéreos das forças america-
nas e britânicas contra alvos afegãos, o líder da Al-Qaeda limi-
tou-se a louvar os mártires por terem atingido os Estados Uni-
dos com a "espada do islã", como punição pela ocupação das
terras santas muçulmanas por americanos e israelitas.
Para este autor, um historiador do Oriente Médio que cres-
ceu naquela parte do mundo, a mensagem de violência de Bin
Laden chega como um grave lembrete do que se tornou a re-
gião — e não só porque uma atrocidade de magnitude sem
precedentes foi cometida por alguns de seus habitantes contra

* Em 1 3 de dezembro de 2001, o envolvimento de Osama Bin Laden no planejamento


e execução dos ataques terroristas contra o World Trade Center e o Pentágono foi
considerado comprovado. Os Estados Unidos divulgaram uma fita de vídeo em que o
líder da Al-Qaeda disse que ele e "nossos irmãos" ficaram muito felizes com a notícia
de que os ataques haviam sido executados e confirmou sua participação nos atenta-
dos, discutindo alguns detalhes de sua preparação e execução: "Nós calculamos antes
o número de pessoas que seriam mortas com base na posição da torre." N o entanto, a
opinião pública, principalmente no Oriente Médio, ficou dividida; ainda havia quem
acreditasse que a gravação fora forjada. [Fonte: www.estadao.com.br] (N.T.)
42 A ERA IX) TERROR

os Estados Unidos, que é tanto demonizado nâTegião quanto


sedutor para muitos que lá vivem. Nem porque tal ato confir-
mou os piores estereótipos de violência e fanatismo há muito
associados ao islã e ao Oriente Médio; mas também porque
tamanha barbaridade revelou muito sobre o inegável e alar-
mante crescimento do extremismo religioso no mundo mu-
çulmano, tendência intimamente relacionada à torturada ex-
periência histórica da transição para a modernidade.
Há um esforço admirável nos t s t a d o s Unidos e em outras
sociedades ocidentais no sentido de distinguir o extremismo
da corrente oficial de crenças e práticas islâmicas. A presença
de muitas comunidades muçulmanas no Ocidente exerce, por
si só, um efeito educativo e salutar^Todos nós, imagino (quais-
quer que sejam nossa situação e perspectivas), gostariam de
crer que Bin Laden, junto com a rede de sua Al-Qaeda, não
passa de uma anomalia grotesca. Se pudéssemos acreditar nis-
so, nos sentiríamos mais seguros, além de ser um bom augúrio
para o diálogo — e coexistência — das culturas e sociedades
muçulmanas e não-muçulmanas. Contudo, essa última mani-
festação de extremismo islâmico não pode ser isolada de pro-
blemas mais amplos e profundos tanto do próprio Oriente
Médio quanto da essência da política ocidental — e americana
— com relação à regiãoj
Na busca de um contexto histórico para o atual surto de
agressividade, podemos apelar não só para a tradição de obser-
vação racional tão apreciada no Ocidente como para os repeti-
dos apelos do Corão à razão. A outrora florescente tradição de
humanismo e receptividade a outras culturas no mundo
islâmico também poderia servir como ponto de partida Ironi-
camente, a terra que hoje é o Afeganistão, atualmente um dos
mais sofridos e brutalizados países do mundo, já foi testemu-
nha de um brilhante e enriquecedor intercâmbio entre civili-
zações. Foi lá que as culturas persa e budista convergiram, dando
O PODER PELA VIOLÊNCIA f> ?

origem a uma tradição humanista de coexistência. Mais tarde,


Herat, que constava com destaque da lista de alvos dos bom-
bardeiros americanos no último trimestre do ano, foi, no sécu-
lo XV, o centro de \jmà explosão de criatividade nas artes,
literatura, arquitetura e ciência — comparável, em sua abran-
gência e na qualidade de suas realizações, à Renascença que se
encontrava em curso no sul da Europa mais ou menos no mes-
mo período. Em contraste simbólico, no primeiro semestre do
ano o Talibã, em uma evidente demonstração de fanatismo e
ignorância, destruíra as magníficas efígies do Buda na antiga
cidade de Bamiam, na parte central do país.,
Ao procurar compreender esse contraste, não podemos
deixar de ver o fenômeno do Talibã como o resultado final de
uma falha arraigada na própria estrutura do país. As potências
coloniais européias do século X I X , junto com as superpotên-
cias do século X X , têm muito pelo que responder. As. regras
do Grande Jogo, como foi denominada a rivalidade entre In-
glaterra e Rússia, determinaram que o Afeganistão ressurgisse
como um amortecedor. Para tanto, porém, era preciso criar
,um novo país, que se encontrava fragmentado pelo idioma,
etnicidade, vassalagens tribais, credo religioso, geografia e ex-
periências culturais e históricas. O resultado nunca chegou a
submeter-se por completo aos desejos das potências colo-
niais, nem jamais integrou-se totalmente como um Estado-
nação moderno. Quando, no final do século X X , essas falhas
estruturais cederam ao peso de ideologias antagônicas e vi-
ram-se expostas aos caprichos das rivalidades entre as super-
potências, o rígido e raivoso islã do Talibã emergiu como a
única força capaz de manter o Afeganistão coeso. Sob esse
aspecto, o país refletiu a dolorosa história de grande parte do
mundo muçulmano pós-colonial, exibindo os extremos da
militância religiosa que assoma no horizonte de tantas socie-
dades islâmicas
44 A ERA IX) TERROR

O surgimento do construto que chamamos de extremismo


f

islâmico, com seu pendor para provocação, ressentimento e


violência, tem origem na história da sensação de declínio dos
muçulmanos e seu encontro infeliz com a dominação ociden-
tal / É interessante lembrar a freqüência com que o Oriente
Médio, como parte do mundo muçulmano, tem sido varrido
por ondas de violência em sua história recente. Desde o fim da
Segunda Guerra Mundial, a área que se estende do Egito e da
Turquia, no oeste, ao Afeganistão, no noroeste, e o Iêmen, no
sul, sofreu pelo menos dez guerras mais vultosas — isso, sem
contar com as atividades americanas em solo afegão após 11
de setembro. As baixas chegaram à casa dos milhões. Popula-
ções inteiras foram dizimadas, sociedades extirpadas, estrutu-
ras políticas demolidas — tudo em escala maciça. Três das
guerras da região foram contra potências ocidentais (os ata-
ques franco-britânicos ao Egito durante a crise de Suez, em
1956; o longo e derrotado esforço da União Soviética para
subjugar o Afeganistão, na década de 1980; e a campanha, li-
derada pelos Estados Unidos para libertar o Kuwait do Iraque,
em 1990-91); Israel e seus vizinhos árabes travaram cinco guer-
ras (1948, 1956, 1967, 1973 e 1982); Iêmen e Líbano sofre-
ram guerras civis prolongadas; e o Iraque e o Irã digladiaram-
se durante oito anos. Os efeitos transformadores dessas crises
vêm assombrando as últimas gerações no Oriente Médio. Em
toda a região, as pessoas ficaram ainda mais decepcionadas com
as ditaduras profundamente arraigadas em seus próprios paí-
ses, o colapso das instituições democráticas, uma retórica na-
cionalista oca e a falência de suas economias^
Ivluitos atribuem a culpa, direta e indireta, às potências
ocidentais. Seja com base na realidade histórica ou em uma
percepção distorcida, responsabilizá-las faz sentido sobretudo
no contexto de um Ocidente poderoso e um Oriente Médio
O PODER PELA VIOLÊNCIA f> ?

subjugado. Desde o tempo das potências coloniais européias,


no século X I X , até as intervenções mais recentes das superpo-
tências, verifica-se um padrão de presença diplomática, mili-
tar e econômica vinculando ao Ocidente o destino do Oriente
Médio e seus recursos. Fossem motivadas pelo petróleo, por
alguma estratégia mais ampla ou pelo apoio a Israel, as potên-
cias ocidentais ou estiveram envolvidas ou se percebia que es-
tavam por trás da maioria crises políticas da região,
Por conseguinte, aos olhos das novas gerações da região, a
imagem do Ocidente (e sobretudo dos Estados Unidos) so-
freu uma mudança radical para pior. Há muito se perdeu a
idéia de ianques benfazejos, que instituíam escolas, universi-
dades e hospitais, distribuíam alimento e apoiavam empre-
endimentos de cunho nacionalista. Em seu lugar surgiu o fascí-
nio pelo esplendor da cultura popular dos Estados Unidos, que
só fez intensificar-se graças a Hollywood e à tecnologia de ponta
do país — computadores, videogames e antenas parabólicas. En-
tretanto, em uma reviravolta paradoxal, à medida que cresciam
as filas diante dos consulados americanos em busca de vistos de
entrada, uma nuvem de desconfiança e ressentimento contra os
Estados Unidos também se instalou sobre a região. O povo do
Oriente Médio começou a ver a sociedade americana pelas len-
tes das comédias televisivas e programas de computador. Para
muitos olhos desacostumados, os Estados Unidos pareciam ser
o centro de um mundo ganancioso, materialista e egoísta, obce-
cado pela violência e promiscuidade. O irrestrito apoio ameri-
cano a Israel, seu endosso de regimes impopulares e seus jatos
de combate sobrevoando o Oriente Médio só fizeram contri-
buir para a intensificação dos sentimentos antiamericanistas.

2.
A desconfiança com relação ao Ocidente recrudesceu em de-
corrência da maneira problemática como o Oriente Médio
46 A ERA IX) TERROR

improvisou sua própria versão da modernidade-"Desde o prin-


cípio do século X X , a ocidentalização vem transformando es-
tilos de vida e expectativas. Entretanto, apesar de uma inegá-
vel dose de crescimento e avanço material, o Oriente Médio
de hoje, pela maioria dos indicadores econômicos, ainda é uma
das regiões menos desenvolvidas do mundo. Enfrenta uma
batalha interminável contra um falho planejamento centrali-
zado, altos índices de natalidade, uma distribuição de riqueza
assimétrica, altas taxas de desemprego, corrupção desenfrea-
da, burocracias ineficientes e problemas ambientais e de saú-
de. A frustração, endêmica entre as classes urbanas jovens (ge-
ralmente filhos de imigrantes rurais que vieram para as cida-
des em busca de uma vida melhor e uma renda mais alta), é
uma resposta para tais enigmas..
fcara a população do Oriente Médio, cada vez mais jovem
em virtude dos elevados índices de natalidade, desarraigada
de seu contexto tradicional e privada dos privilégios utópicos
que vê ao seu redor e nas telas dos televisores mas não pode
ter, o espaço familiar e reconfortante do islã constitui uma
alternativa acolhedora. Orações diárias, sermões às sextas-fei-
ras, grupos de estudo do Corão, caridade islâmica — todos
esses elementos fazem parte desse espaço. Todavia, aí tam-
bém se incluem as manifestações de rua e os panfletos clan-
destinos, com sua mensagem contrária ao sistema estabeleci-
do, anti-secular e anti-sionista.
A.o lidar com essas multidões turbulentas, os governos do
Oriente Médio e as elites dominantes a eles associadas pouco
têm a oferecer. Eles mesmos são parte do problema, na medi-
da em que contribuem para a sensação pública de impotência.
No período que se seguiu imediatamente à Segunda Guerra
Mundial, as ideologias nacionalistas foram muito eficazes na
mobilização do povo contra a presença colonial européia. Com
o passar do tempo, porém, acabaram tolhendo o crescimento
O PODER PELA VIOLÊNCIA f> ?

das instituições democráticas e a emergência de uma socieda-


de civil duradoura. Os oficiais que tomaram o poder no Egito,
Síria, Iraque e outros países mediante golpes militares e pro-
longaram sua liderança por meios repressivos investiram maci-
çamente na retórica antiocidental. Conquanto confrontassem
a erosão de sua própria legitimidade, aprenderam a aprovei-
tar-se dos sentimentos islâmicos em expansão em suas socie-
dades, utilizando-os para intermediar o contato entre a elite e
as massas e suprimir as liberdades individuais.
As vítimas previsíveis de tal apaziguamento foram as
modernizantes classes médias urbanas do Oriente Médio. Ainda
que pequenas e vulneráveis, as classes médias eram canais
cruciais para a modernização, ao mesmo tempo em que pre-
servavam um senso de cultura nacional. Egito, Iraque, Síria,
Turquia e Irã, em sua pressa de gerar um falso crescimento
econômico e uma ilusão de maior eqüidade, solaparam delibe-
radamente as bases econômicas de suas respectivas classes mé-
dias. Para tanto, valeram-se de um planejamento estatal opres-
sivo e de programas de nacionalização imprudentes. As classes
médias do Oriente Médio de hoje, sitiadas e intimidadas, não
têm disposição ou não são mais capazes de defender a causa
das reformas democráticas. Em vez disso, deram origem à crosta
deteriorada da classe politicamente silenciada e submissa cuja
voz de protesto faz-se ouvir, cada vez mais, por meio de causas
extremistas,,
Foi desse meio que veio Mohamed Atta, filho fracassado
de um próspero advogado egípcio. Outro exemplo é o princi-
pal lugar-tenente de Bin Laden, Ayman al-Zawahiri, um médi-
co de uma célebre família egípcia.
Essa perturbadora reorientação no sentido do islamismo
radical tem de ser compreendida à luz de uma crise de identi-
dade mais profunda do mundo árabe Wo período pós-coloni-
al, a maioria dos Estados-nação da região teve de improvisar
48 A ERA IX) TERROR

suas próprias ideologias de nacionalismo territorial, a fim de


manter a coesão do que em geral não passavam de identidades
locais e étnicas desconexas. Ao mesmo tempo, precisavam
manter-se fiéis à ideologia do paivaràbismo (o conceito, ou
sonho, de que todos os povos árabes constituíssem uma só
supernação), projeto que estava destinado a um triste fracas-
s o . ^ Egito saiu da experiência colonial munido do que talvez
constituísse a base de seu próprio nacionalismo, mas, sob Gamai
Abdel Nasser, trocou-o pela liderança da causa pan-árabe. En-
tretanto, as experiências do pan-arabismo secular, seja a da era
Nasser, nos anos 50 e 60, ou a dos regimes Ba'thist do Iraque
e da Síria nos anos 60 e 70, revelaram-se enganosas para a
maioria dos intelectuais que o defendiam. Ele foi ainda mais
nocivo para as massas árabes, que, por décadas, permanece-
ram expostas às máquinas estatais de propaganda e à política
de rua, geralmente demagógica. A dura realidade dos regimes
militares e paramilitares do mundo árabe extinguiu o entusias-
mo até dos mais ardentes defensores do nacionalismo árabe,
fcoi nesse ambiente de desespero que as impotentes mas-
sas árabes vieram a compartilhar a causa comum do combate
ao sionismo. A resistência à fundação da pátria judaica, a par-
tir do fim da Primeira Guerra Mundial e com a criação do
Estado de Israel, em 1947, ofereceu ao mundo árabe um pon-
to de convergência de grande poder simbólico. As experiên-
cias posteriores de derrotas seguidas nas guerras contra Israel
trouxeram à tona, na mente árabe, lembranças da prolongada
dominação colonial. Do ponto de vista nacionalista árabe, o
sionismo não era apenas mais uma forma de nacionalismo ori-
ginada no século X I X , mas um projeto elaborado pelo Oci-
dente com o objetivo de perpetuar sua presença imperial e
proteger seus interesses velados na região — a mais recente
manifestação de séculos de hostilidade em relação aos povos
muçtilmanos. Para muitos do mundo árabe, era reconfortante
O PODER PELA VIOLÊNCIA f> ?

acreditar que centenas de milhões de árabes eram incapazes de


derrotar Israel em virtude da proteção das potências ocidentais
de que este supostamente gozava. E não era difícil encontrar
evidências que os convencessem da validade de suas queixas.

3.
Não é de admirar que as sensações de desespero com relação
aos regimes repressivos que vigoravam no âmbito interno e de
desamparo no tocante à consolidação do Estado sionista vizi-
nho tenham engendrado um novo espírito de solidariedade
islâmica — radical na política, monolítico na abordagem e re-
belde em relação ao Ocidente.
A transformação decisiva não foi deflagrada dentro do
mundo árabe, mas pela revolução iraniana de 1979. A funda-
ção de uma república islâmica, sob a intransigente liderança
do Aiatolá Khomeini, evocou, em todo o mundo muçulmano,
o há muito acalentado desejo de criar um regime genuinamen-
te islâmico. Conquanto fosse pregado por um clero Shi'a radi-
cal, que cometeu enormes atrocidades contra seu próprio povo,
o modelo iraniano de islã revolucionário foi visto como um
indicador do caminho para um islã "autêntico" e universalista.
Valendo-se de fitas cassete e passeatas, os revolucionários ira-
nianos conseguiram derrubar o Xá e o poderoso regime Pahlevi,
a despeito de seu vasto arsenal militar, programa de seculari-
zação e sustentação ocidental. A retórica antiimperialista da
revolução foi uma fonte de poder ainda maior..
Depois que seus seguidores sitiaram a embaixada america-
na e fizeram seus funcionários reféns, em 1980-81, Khomeini
rotulou os Estados Unidos de Grande Satã por seu apoio aos
poderes "faraônicos" — uma referência ao xá e governantes
conservadores dos demais países da região — e por reprimi-
rem os "deserdados" da TerraH
50 A ERA IX) TERROR

A Guerra Irã-Iraque de 1980-88 estabelecéfo com firmeza


ainda maior o apelo do paradigma do martírio, há muito pro-
fundamente arraigado no islã Shi'a. O conflito foi apresentado
como um jíhad apocalíptico entre as forças da verdade e as da
falsidade. Além de defender seu próprio país, os iranianos acre-
ditavam que estavam exportando sua revolução. Como decla-
ravam os slogans estampados nas faixas dos manifestantes e
confirmavam os gritos de guerra dos muitos voluntários ado-
lescentes, o caminho da libertação islâmica estendia-se pelos
campos de batalha, chegavam às cidades santas dos Shi'a —
Karbala' e Najaf, no Iraque — e iam até Jerusalém.
Ainda que a revolução iraniana não tenha conseguido fir-
mar raízes alhures, sua celebração do martírio encontrou am-
pla repercussão. Os xiitas revolucionários do grupo libanês
Hezbollah e, mais tarde, os jovens palestinos que se ofereciam
avidamente para bombardeios suicidas em nome do Hamas e
do Jihad Islâmico viam o martírio como um meio de conquis-
tar poder. Não é difícil identificar os mesmos traços entre os
seqüestradores de 11 de setembro,
O ritmo acelerado do radicalismo islâmico no início da
década de 1980, fosse inspirado pela revolução iraniana ou em
reação a ela, ajudou a modelar a perspectiva de uma geração
inteira, de onde se originou o extremismo do próprio Osama
Bin Laden. Na casa de seus vinte anos, este era um estudante
devoto mas desinteressante da Universidade de Jidda, na Arábia
Saudita. Vinha de uma família extremamente rica, que tinha
laços estreitos com a realeza saudita. Em novembro de 1979,
deve ter testemunhado o cerco da Grande Mesquita de Meca
e a revolta liderada por uma figura messiânica, que afirmava
ter recebido, diretamente das mãos do Profeta, a autoridade
para fazer justiça A rápida supressão da revolta pelos gover-
nantes sauditas ocorreu apenas um mês depois da assinatura
do acordo de paz entre Israel e Egito, em Camp David. O tra-
O PODER PELA VIOLÊNCIA f> ?

tado foi recebido por ativistas islâmicos de todo o mundo ára-


be como um ato de traição às causas árabes e muçulmanas.
Apenas um ano mais tarde, em outubro de 1980, o presidente
egípcio, Anwar al-Sadat, foi assassinado por um grupo dissi-
dente dos Irmãos Muçulmanos — aos quais Ayman al-Zawahiri,
futuro lugar-tenente de Bin Laden, pertencia.
O levante em Meca e o assassinato de Sadat foram ambos
inspirados por uma tradição de radicalismo religioso que re-
montava à Sociedade dos Irmãos Muçulmanos, nos anos 20 e
30, e, antes disso, ao movimento wahabita, iniciado em fins do
século XVIII. A doutrina central do wahabismo era um retor-
no ao caminho dos "ancestrais virtuosos" — uma interpreta-
ção extremamente retrógrada e monolítica do islã, conhecida
como salafiya, tendência doutrinária que durante séculos esti-
mulara a adesão estrita a princípios puritanos.
No começo do século X X , a salafiya desempenhou um papel
fundamental na estruturação da Arábia Saudita como um Es-
tado islâmico. Foi também a doutrina em que se basearam os
Irmãos Muçulmanos em sua meta de reconstrução moral e
política. Sob a inspiração das idéias de Sayid Qutb, líder do
movimento (executado em 1966 pelo regime Nasser), a ideo-
logia ganhou vida nova. O verdadeiro crente deveria "renun-
ciar" ao obscuro sacrilégio de seu ambiente secular. Os alvos
primários eram os regimes do mundo árabe, cujo secularismo
foi considerado um retorno ao "paganismo" dos tempos pré-
islâmicosi Q u t b instou os Irmãos Muçulmanos a que adotas-
sem o modelo do Profeta e buscassem refúgio na segurança de
um espaço isolado. Sua exortação era um convite a que os fiéis
revivessem a Hijra (imigração), na qual o Profeta deixou a
Meca dos pagãos e viajou para Medina. Foi o momento que
marcou o princípio do calendário e da história muçulmanos.
A doutrina da salafiya e sua articulação por Sayid Q u t b
conquistaram uma esmagadora aceitação entre os radicais
52 A ERA IX) TERROR

islâmicos no início dos anos 80. Entretanto, os etrnos que lhes


serviriam de refúgio não podiam ser reproduzidos na Arábia
Saudita de Bin Laden, tão rica em petróleo, nem no Egito de
al-Zawahiri, infestado de turistas. Em compensação, o Afe-
ganistão acenava. Seu florescente movimento de resistência
contra as forças de ocupação soviéticas era extremamente atraen-
— e não só para os sentimentos radicais, mas também para
os moderados. O país estava em condição de unir ativistas de
todas as facções muçulmanas em torno da cau£a comum do
combate à difusão do ímpio c o m u n i s m o ^ d e m a i s , a defesa da
causa dos mujahidin afegãos contra os soviéticos ajudou a ele-
var o prestígio do regime saudita aos olhos tanto dos muçul-
manos quanto dos americanos, determinados a impedir os avan-
ços de Moscou na direção do Golfo Pérsico.
Na década que se seguiu à invasão do Afeganistão pelos
soviéticos, no final de 1979, fundos sauditas públicos e priva-
dos, junto com o treinamento e apoio militar secretos dos Es-
tados Unidos, patrocinaram a guerra dos mujahidin. Contri-
buindo para o esforço, o exército paquistanês providenciou o
apoio logístico, e as escolas religiosas de orientação wahabita
localizadas em Peshawar — cidade na fronteira paquistanesa,
aos pés do Passo de Khyber — garantiram um fluxo contínuo
de fervorosos missionários islâmicos e combatentes ferozes e
devotos para a batalha em curso contra os ocupantes do "Im-
pério do Mal" no Afeganistão. Para intensificar ainda mais o
caráter islâmico da belicosa resistência afegã, a CIA também
buscou, no reino saudita, a presença simbólica de um dos pios
membros da família real

4.
C )sama Bin Laden, o ardente e carismático voluntário, foi mais
convincente e eficaz que qualquer envelhecido e relutante prín-
O PODER PELA VIOLÊNCIA f> ?

cipe saudita. Bin Laden desfrutava do apoio financeiro e polí-


tico de muitos dos conservadores que patrocinavam o movi-
mento. Figura imponente de dois metros de altura, que na
época costumava vestir ternos Savile Row, ele chegou a
Peshawar em meados da década de oitenta. Ali, logo entrou
em desacordo com os mujahidin, faccionais ao extremo, que
nem ao menos falavam árabe, mas pashtun e dari (um dialeto
persa). Menos ainda deles compartilhavam da devoção de Bin
Laden ao wahabismo militante. Com o passar do tempo, po-
rém, ele se refugiou em uma roda de voluntários de idéias
similares, que logo ficaram conhecidos como árabes afegãos.
O que mantinha a coesão dessa brigada internacional crescen-
te, que talvez montasse a cinco mil, era um senso de camara-
dagem árabe na solidão de uma terra estranha. Eram renega-
dos e auto-exilados de todo o mundo árabe, de Marrocos ao
Iêmen, muitos com um passado de militância religiosa em suas
terras natais,
/"No abrigo de seu quartel-general, Bin Laden e suas tropas
desenvolveram seu plano de lançar as bases de um Estado
islâmico universalista, se necessário recorrendo ao uso da vio-
lência. Seu programa para um Estado islâmico, tal como arti-
culado ao longo dos anos seguintes, envolvia um domínio feu-
dal teocrático do mundo árabe e muçulmano, retomando a
concepção islâmica clássica de califado.
Em Peshawar figuravam, entre os mentores de Bin Laden,
Abdullah Azzam, um palestino jordaniano radical morto em
um carro-bomba em 1989, e Abdul Rasul Sayaf, um pregador
wahabita militante enviado pelas autoridades sauditas para atuar
como procônsul ideológico junto aos mujahidin afegãos. A
inglória derrota das forças soviéticas incrementou o prestígio
de Bin Laden no Afeganistão e dentro do mundo islâmico de
modo geral, muito embora a contribuição dos árabes afegãos
para os combates tenha sido marginal e chegado tarde. Foi
54 A ERA IX) TERROR

durante a retirada soviética que Bin Laden funddu a Al-Qaeda


(literalmente, "a base"), uma série de acampamentos de cu-
nho ideológico-militar. Seu objetivo primordial era disseminar
o wahabismo entre os afegãos, mas não teve grande êxito. A
Al-Qaeda logo constituiria um refúgio para os remanescentes
dos árabes afegãos e suas famílias e, bem de acordo com seu
nome, uma base para operações alhures.
No princípio dos anos 90, Bin Laden tornou-se uma espé-
cie de nômade. A caótica disputa que se seguiu ao colapso do
regime pró-soviético e acabou por conduzir os altercadores
mujahidin afegãos a Cabul em 1992 o decepcionou, já que a
facção de Hekmatyar — o mais radical dos mujahidin, que ele
apoiava — não chegou ao poder. Após um breve retorno à
Arábia Saudita, ele se mudou para o Sudão, onde um regime
islâmico militante ascendera ao poder
A grande reviravolta de sua vida, porém, ocorreu com a
Guerra do Golfo. Por ocasião da ocupação do Kuwait por Saddam
Hussein, Bin Laden defendeu o lançamento de um jihad con-
tra o Iraque, mas foi desencorajado pelas autoridades sauditas,
que o consideraram incômodo e constrangedor. Não viu com
bons olhos a intervenção americana, e sua desaprovação con-
verteu-se em franca hostilidade com a instalação de um gran-
de contingente de tropas americanas em solo saudita. Ele en-
tendia que uma presença militar não-muçulmana na península
arábica contrariava os rígidos ensinamentos do islã wahabita. E
provável que seu rancor também se devesse, ao abandono dos
mujahidin afegãos após a retirada soviética,
Qualquer que seja a origem da aversão pessoal e antipatia
doutrinária de Bin Laden contra os Estados Unidos, ele tinha
ao seu dispor uma fonte crescente de extremismo antiameri-
canista à qual recorrer para estruturar suas redes. O desfecho
da Guerra do Golfo Pérsico foi a confirmação, para muitos, de
um funesto paradoxo na condução da política externa norte-
O PODER PELA VIOLÊNCIA f> ?

americana. Acreditava-se que os Estados Unidos estavam en-


gendrando uma grande coalizão contra o Iraque motivados por
seus próprios interesses nacionais, sobretudo a segurança e
continuidade do fornecimento de petróleo. O discurso da pro-
teção da integridade territorial do Kuwait, portanto, parecia
descaradamente hipócrita para quem o comparava com a deli-
berada negligência americana quanto à prolongada ocupação
dos territórios palestinos por Israel. Aos olhos dos críticos, a
decisão "dos americanos de não levar a guerra para além do
Kuwait foi considerada mais uma prova da estreiteza e egoís-
mo de sua política. Eles permitiram que Saddam Hussein es-
magasse as revoltas que se ergueram contra ele dentro do
Iraque, ao mesmo tempo em que impuseram sanções debili-
tadoras ao povo iraquiano — praticamente fragmentando o
país, mas mantendo sua tirania intactai
A odisséia pessoal de Bin Laden veio reforçar seus propósi-
tos antiamericanistas. Em 1994, sob pressão americana, as au-
toridades sauditas revogaram seu passaporte e congelaram seus
bens. Dois anos depois, Washington logrou pressionar o Sudão
no sentido de negar-lhe o porto seguro de que ele ali desfruta-
ra até então. Como ultimo recurso, Bin Laden buscou refúgio
junto ao Talibã — que havia assumido o controle de Cabul em
1996 —, em troca de apoio financeiro e logístico.
'O Talibã era o outro lado da moeda da Al-Qaeda. A cam-
panha de propaganda wahabita, que sucedera sob os auspícios
sauditas por pelo menos duas décadas, foi o principal fator por
trás da emergência desse movimento militante estudantil que
assumiu o controle do Afeganistão. Nas décadas de 1980 e
1990, graças ao patrocínio e ao trabalho missionário, ao finan-
ciamento da construção de novas mesquitas comunais da
Indonésia e Filipinas à África subsaariana e Ásia Central, ao
treinamento de jovens estudantes de muitas nacionalidades
em seminários pró-wahabitas subsidiados, à dkponibilização
56 A ERA IX) TERROR

para o público de literatura wahabita, ao estabelecimento de


instituições de caridade e bolsas de estudo para os pobres, à
facilitação do deslocamento dos hadjis e ao apoio aos elemen-
tos clericais
a
conservadores com tendências wahabitas,' o
establishment saudita ergueu uma forte rede em expansão que
está, neste momento, mudando a face do islã nas cidades e
aldeias de todo o mundo muçulmano. Inadvertidamente, essa
rede revelou-se um solo fértil para granjear apoio para Bin Laden
do Paquistão e sul do Afeganistão à Ásia Central, África e Su-
deste Asiático^
O movimento talibã criou raízes entre os deslocados e ca-
rentes filhos dos refugiados afegãos, que foram treinados nas
escolas religiosas do Paquistão — financiadas com recursos
privados sauditas. Armados com o fervor wahabita para o jihad
— e não muito mais que isso — e patrocinados pela inteligên-
cia do exército paquistanês, os seminaristas foram organizados
em uma força de combate. A lacuna política decorrente da
devastadora guerra civil afegã abriu caminho para o gradual
avanço talibã e sua vitória final. O regime por eles estabeleci-
do, encarnando todo o zelo neowahabita pregado nas escolas
de Peshawar, reviveu e impôs uma rígida ordem patriarcal,
extremamente hostil às mulheres e à sua educação e presença
pública. Permitia o espancamento e até o assassinato de mu-
lheres por seus parentes homens, determinou o uso do véu
facial e fechou a maioria das escolas para meninas; demons-
trou uma inacreditável intolerância em relação aos xiitas e ou-
tras minorias, obliterou mesmo os mais primitivos símbolos
de uma cultura moderna e aboliu todos os direitos humanos e
individuais. Em nome do expurgo do sectarismo no Afeganistão
e do fim da guerra civil, o Talibã converteu o país em uma
fortaleza miserável, cujo povo sofria de inanição e isolamento
No ano em que Bin Laden chegou ao Afeganistão, lançou
uma fatwa, uma norma religiosa, que determinava que todos
O PODER PELA VIOLÊNCIA f> ?

os muçulmanos matassem americanos como dever religioso. A


explosão de bombas nas embaixadas americanas em Nairóbi e
Dar es Salaam, em 1998, foi, até onde se sabe, sua primeira
tentativa de colocar sua própria lei em prática — ocorrida na
mesma época da fusão da Al-Qaeda com o Jihad Islâmico egíp-
cio (liderado por Ayman al-Zawahiri, que coordenara, havia
pouco, o assassinato de 58 turistas em Luxor, no Egito) e ou-
tras organizações terroristas aumentaram drasticamente a ca-
pacidade de Bin Laden de promover devastação. Os Estados
Unidos tentaram puni-lo pelo bombardeamento das embaixa-
das disparando mísseis contra seus acampamentos. O fato de
ele ter escapado ileso aumentou sua autoconfiança e contri-
buiu para sua reputação de invencibilidade aos olhos de seus
seguidores. Bin Laden e seus companheiros da Al-Qaeda acre-
ditavam que a guerra terrorista contra os Estados Unidos era
uma batalha enraizada no nobre passado do islã e cuja vitória
estava garantida por Deus. Nesse contexto, o ataque a estrutu-
ras gigantescas que representavam o poderio militar e econômi-
co americano seria um ato em grande parte simbólico, capaz,
esperavam eles, de subjugar o inimigo de modo milagroso, as-
sim como os infiéis do islã acabaram por sucumbir aos ataques
do Profeta às suas caravanas. Essa teoria do terror, violenta e
indiscriminada, embora completamente contrária à interpre-
tação oficial do islã, atraiu um grupo pequeno mas dedicado
de devotos, que também viam o auto-sacrifício como uma via
aceitável para a concretização simbólica de suas metasj
Sob vários aspectos, porém, a visão apocalíptica de Bin
Laden baseava-se na realidade e relacionava-se ao possível. Ele
e seus companheiros eram homens de recursos mundanos,
capazes de valer-se de modelos da administração de empresas
para gerar receita, investir capital no mercado, criar uma lide-
rança disciplinada, recrutar voluntários, incorporar outros gru-
pos extremistas, organizar e manter novas células, emitir or-
58 A ERA IX) TERROR

dens e comunicar-se através de uma rede franqueada de uni-


dades semi-autônomas em escala global. Essa mistura do
messiânico com o pragmático permitiu que a Al-Qaeda ade-
quasse sua retórica aos ressentimentos de seu crescente públi-
co e levasse o recrutamento e a doutrinação a cabo em escala
mais amplia.
A grande maioria dos muçulmanos não aprova o terroris-
mo de Bin Laden, nem compartilha sua ambição de erguer
uma comunidade monolítica sobre a base de uma ordem pan-
islâmica. Não obstante, existe uma inegável simpatia pelo modo
como ele vem manipulando rancores e símbolos. As imagens
contrastantes entre a América "pagã" e o islã "autêntico" en-
contram aceitação em setores amplos e diversos. U m exemplo
é o dos garotos afegãos e paquistaneses refugiados, submeti-
dos a uma lavagem cerebral nos seminários wahabitas finan-
ciados com recursos sauditas, de cujas fileiras emergiu o Talibã
(termo que significa "estudantes"). Outro é a nova geração de
classes médias árabes educadas no Ocidente, recrutadas para
as células suicidas da Al-Qaeda na Europa.
No testamento de Mohamed Atta, o egípcio que encabe-
çou os ataques de 11 de setembro, podemos ler o típico entu-
siasmo obsessivo de um muçulmano que renasceu. Em troca
de sua utilização do terror e destruição em massa, Atta busca a
promessá da recompensa celestial, reservada especialmente aos
mártires, de que fala o Corão.
Sua leitura literal do texto sagrado está imbuída de refe-
rências sexuais. "Saibam", promete ele a seus cúmplices, "que
os jardins do paraíso esperam por vocês em toda a sua beleza.
E as virgens do paraíso estão à sua espera, chamando: 'venham
para cá, amigos de Deus'. Estão vestidas com suas roupas mais
belas." Sua descrição adquire um tom ainda mais vulgar, além
de perversamente patético, quando contrastada com os últi-
mos encontros de Atta, em um clube destrip-tease na Flórida.
O PODER PELA VIOLÊNCIA f> ?

É inevitável imaginar que ele tenha olhado as strippers semi-


nuas de seu mundo antecipando as lindas virgens que aguarda-
vam os bravos e virtuosos no paraíso. Essa era a recompensa
que Atta esperava por seu martírio na "batalha em nome de
Deus", em que se empenhou, como ele mesmo nos lembra,
do mesmo modo como "os pios patriarcas". Esse misto surreal
de pio e profano, recheado de uma litania de versos do Corão,
revela uma desconcertante crosta pseudomoderna por cima
do cerne de extremismo;
Quanto ao próprio Bin Laden, entrou em evidência depois
que o 11 de setembro envolveu-o e à sua causa em uma aura
apocalíptica. Sua declaração, transmitida em 7 de outubro pela
televisão, remeteu, em seu tom e conteúdo, a uma narrativa
seminal do islã. Ele afirmou que, acima de tudo, depositava
sua total confiança em Deus em sua batalha dos verdadeiros
crentes contra os infiéis, seguro da recompensa última do mar-
tírio. Suas referências à iminente queda dos "hipócritas" — os
indivíduos e governos muçulmanos que não apoiavam sua cau-
sa — e à vitória certa dos justos montados a cavalo e armados
com suas espadas — presumivelmente em contraste com o
armamento sofisticado de seus inimigos — encontram eco na
história registrada do princípio do islã. Em um depoimento
veiculado na mesma época, al-Zawahiri, principal lugar-tenen-
te de Bin Laden, referiu-se à catastrófica perda da Espanha
sarracena no fim do século X V — o que também visava a lem-
brar os muçulmanos dos grandes dias do islã antes de sua der-
rota diante do cristianismo, complementando, assim, a visão
de Bin Laden de um passado glorioso.

5.
Q u e a Al-Qaeda é eficaz em comunicar-se com um público
amplo que vai muito além de seu círculo extremista, não resta
60 A ERA IX) TERROR

dúvida. Para tanto, ela tem encontrado umasrabundância de


oportunidades, graças à mídia global e à complacência e igno-
rância dos serviços de inteligência e órgãos garantidores da lei
ocidentais. Os dilemas e a inconsistências da política externa
norte-americana na região também forneceram à Al-Qaeda suas
armas favoritas para apelar para a frustração e raiva da maioria
dos muçulmanos de todo o mundo
N o cerne do ressentimento tão disseminado no mundo ára-
be e islâmico encontra-se Israel e o tratamento por ele dispen-
sado aos palestinos dos territórios ocupados. Centenas de mi-
lhões de árabes, bem como um número crescente de outros
muçulmanos, agora mais do que nunca mantêm-se informa-
dos, através da mídia, dos intermináveis confrontos dos pales-
tinos com as forças de segurança israelenses. As cenas de jo-
vens atirando pedras contra as armas de fogo de Israel, casas
palestinas destruídas, lamentos e cortejos fúnebres, greves e
fechamento de lojas, bloqueios nas estradas e revistas humi-
lhantes, fechamento dos territórios, estrangulamento da eco-
nomia e aumento da pobreza palestina e campos de refugiados
cheios de entulho contrastam com os limpos assentamentos
israelenses, recém-construídos em pomares usurpados aos pa-
lestinos. A audácia dos colonos judeus, a arrogância dos políti-
cos israelitas, os tanques, helicópteros e jatos de caça rugindo
nos céus, os ataques noturnos, as detenções e freqüentes viola-
ções dos direitos humanos — tudo isso provoca sentimentos
intensos de raiva e frustração. Transmitidas pelas redes árabes e,
mais recentemente, pela rede de televisão global Al Jazira, ba-
seada no Catar (o canal de manifestação preferido do próprio
Bin Laden), essas imagens trágicas apresentam-se cada vez mais
mescladas a símbolos da resistência islâmica: as missões suici-
das do Hamas e do Jihad Islâmico contra alvos israelenses, os
irascíveiss/og<ms e sermões antiamericanistas e antiisraelitas nas
congregações às sextas-feiras. A isso se acrescenta o enorme
O PODER PELA VIOLÊNCIA f> ?

volume de panfletagem radical islâmica, de conteúdo antiame-


ricanista e anti-sionista, não raro encontrada nos livros didáticos
árabes, com referências anti-semitas escancaradas;
Os regimes politicamente repressivos em vigor na maioria
dos países árabes permitem as manifestações anti-sionistas (e
até anti-semitas) como uma válvula de segurança — o que con-
tribui para o valor simbólico da causa palestina como uma po-
derosa expressão da unidade árabe com crescente colorido
islâmico^Desde a intifada de 1986 e o Acordo de Paz de Oslo,
em 1993, a arremetida da opinião pública árabe tem sido
direcionada contra o destino dos palestinos nos territórios ocu-
pados, em vez de contra a existência de Israel em si./Não
obstante, os regimes árabes opressivos ainda recorrem à retó-
rica hipócrita da segurança nacional como um impedimento à
difusão da democracia em seus próprios países. Em um am-
biente tão repressivo, a mesquita costuma funcionar como
fórum político. Ali, a distinção entre a postura israelense e a
política externa norte-americana fica toldada. Como a opinião
pública árabe acredita, em geral, que o lobby judaico nos Esta-
dos Unidos é o único determinante da política americana na
região, não diferencia muito a política externa dos Estados
Unidos e o abuso dos palestinos por IsraeL
"Os proponentes da piedade muçulmana também atribuem
às "corruptoras influências" americanas a culpa pela erosão das
tradições supostamente "autênticas" de austeridade e devo-
ção islâmicas. Tais influências são amplamente associadas aos
piores clichês da cultura popular e estilo de vida americanos.
Neste mundo de mal-entendidos, as imagens de promiscuida-
de, ostentação de riqueza, crime organizado, violência aleató-
ria, uso de drogas, glutonaria e desperdício difundidas por todo
o globo entram em agudo contraste com as virtudes islâmicas
idealizadas de rigor moral, auto-sacrifício, valorização do ou-
tro mundo, fraternidade e piedade. Os extremistas são ávidos
62 A ERA IX) TERROR

e hábeis em vender esse choque às mal informadas massas


muçulmanas — agora, mais do que nunca, baseando-se em
imagens visuais, graças ao poder da mídia eletrônicaJ
rara os espectadores muçulmanos de todo o mundo, esses
contrastes exagerados proporcionam um conforto ilusório, na
medida em que parecem explicar a causa fundamental do mau
funcionamento que percebem em seus próprios governos e
sociedades. São ainda mais sugestivos por se apresentarem
astuciosamente interligados com o histórico de sofrimento do
povo palestino, nas mãos dos israelenses, e dos iraquianos, sob
as sanções mantidas pelos Estados Unidos. Para completar, o
público é constantemente lembrado da "profanação" das ter-
ras santas muçulmanas pela presença de tropas americanas na
Arábia Saudita.<
Bin Laden é um mestre na exploração dessas referências
simbólicas. Os Estados Unidos e seus aliados ocidentais tenta-
ram convencer o mundo, e principalmente o mundo islâmico,
de que a campanha contra Bin Laden e a Al-Qaeda não está
voltada contra o islã, mas contra o terrorismo. No entanto,
essa distinção não fará muita diferença para muitos muçulma-
nos enquanto Bin Laden, "vivo ou morto", dispuser de armas
de propaganda tão poderosas. A questão não é somente o pe-
rigo de que ele, ou pessoas como ele, transformem seu sonho
extremista em uma guerra religiosa entre o islã e o Ocidente.
De igual importância é o fato de que eles provocarão uma es-
calada do conflito entre o islã militante neowahabita e as for-
ças retrógradas e hesitantes vozes da moderação e da tolerân-
cia dentro do mundo muçulmano, Bin Laden representa, para
grande parte de sua platéia, a imagem de um profeta messiânico.
Mesmo que morra em nome de sua causa, terá sofrido, aos
seus olhos, uma morte de mártir.
A operação militar iniciada em 7 de outubro será julgada à
luz da totalidade de suas conseqüências gerais e a longo prazo,
O PODER PELA VIOLÊNCIA f> ?

não de seus êxitos intermediários. Caso atinja civis, desestabilize


a região, alimente o extremismo e polarize a opinião pública
muçulmana, será considerada um imenso fracasso. Os Estados
Unidos já possuem recordações dolorosas o suficiente do bom-
bardeio aéreo e suas conseqüências no Vietnã, Camboja e Iraque
para gerar ceticismo quanto ao êxito desta empreitada. Con-
tudo, se a eliminação de Bin Laden e sua rede for viável, e —
tão importante quanto — caso seja seguida de um esforço sin-
cero no sentido de resolver os agudos problemas da região, só
então consideraremos a ação militar justificável. Isso implica a
necessidade de encontrar uma resposta duradoura e abrangente
para o vácuo político que vai formar-se no Afeganistão e desco-
brir soluções para as misérias que o povo desse país vem supor-
tando, há duas décadas, nas mãos das superpotências e de seus
próprios fanáticos e generais viciosos.
k m escala mais ampla e a longo prazo, os Estados Unidos e
seus aliados ocidentais não podem deixar de rever sua atual
postura em relação ao Oriente Médio e ao mundo muçulmano
como um todo, com todas as suas complexidades culturais.
Seria altamente imprudente, e até negligente, tratar o Oriente
Médio e as sociedades muçulmanas vizinhas, com uma popu-
lação de meio bilhão de indivíduos, simplesmente em termos
de seus recursos disponíveis de energia e valor estratégico.
C o m o única superpotência remanescente — e beneficiária di-
reta desses recursos — os Estados Unidos não podem esqui-
var-se de suas responsabilidades para com o bem-estar dessa
regiãqj As experiências do último meio século mostraram que
L
os profundos problemas trazidos à luz com tanta violência pelo
11 de setembro não podem ser resolvidos pelo mero uso da
força militar, diplomacia fisiologista e sustentação de regimes
opressivos mas pró-ocidentais. Em virtude de sua vulnerabi-
lidade intrínseca de sociedade aberta, os Estados Unidos não
podem se dar ao luxo de apoiar injustamente um dos lados de
64 A fcRA d o TERROR

uma contenda prolongada e emocional em óbvio detrimento


do outro. Ademais, os próprios preceitos democráticos ameri-
canos de liberdade de discurso e representação popular, bem
como suas garantias das liberdades individuais e civis, entram
em aparente contradição com um programa de política exter-
na que perpetua a repressão e o conflito. Tal programa só faz
assegurar mais seguidores para o extremismo islâmico e acar-
retar novos atos de violência.
Por mais que os especialistas em segurança nacional e par-
tidários de uma defesa mais forte exijam a forüticação das
muralhas da segurança, não é realista acreditar na possibilida-
de de enfrentar o problema global do terror e do extremismo
convertendo a América em uma fortaleza. Os Estados Unidos
só teriam a ganhar com o avanço da causa da democracia e da
sociedade aberta no mundo muçulmano, bem como com o
estímulo às vozes da moderação, tolerância religiosa e direitos
humanos, pelo menos nos países sobre os quais ainda exercem
influência. Fomentar de maneira sustentada e prudente as ins-
tituições democráticas, sem pôr em risco a própria estabilida-
de dessas sociedades, e permitir a estruturação de um proces-
so democrático endógeno são os parâmetros sobre os quais os
interesses vitais americanos vão encontrar sustentação. Se, por
outro lado, os Estados Unidos e seus aliados ocidentais insisti-
rem em se dedicar a intervenções militares sem qualquer dose
de compaixão, provavelmente vão pagar caro pelas conseqü-
ências de um Oriente Médio não-democrático, instável e em-
pobrecido, mergulhado nas chamas do extremismo religioso,
o
das disputas territoriais e das demonstrações violentas de frus-
tração.
A situação das sociedades do Oriente Médio não é tão irre-
mediável e infeliz quanto possa parecer. Há vozes de coexis-
tência, tolerância e compreensão. Há quem defenda a aceita-
ção de uma ordem mundial baseada na integração, colabora-
O PODER PF.IA VIOLÊNCIA

ção e amizade. Para encontrar motivos de esperança, basta olhar


para o Irã de hoje — vinte anos depois de uma revolução que
instituiu um regime islâmico repressivo. Apesar das exigências
consistentes de conformidade autocrática e doutrinação reli-
giosa de agora, as experiências democráticas não se extingui-
ram. O clamor por uma sociedade aberta, pela coexistência e
pelo respeito à léi estão mais audíveis do que nunca. E, apesar
do slogan de "Morte à América" promovido pelo regime, o
entusiasmo por um maior conhecimento sobre o Ocidente e
os Estados Unidos está no auge. São perspectivas que não de-
vem ser ignoradas em meio à reação aos atos terroristas e à
caçada aos seus perpetradores.

Você também pode gostar