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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATOLICA DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS - DEPARTAMENTO DE DIREITO


JUR 1941 - Turma 2HA – G1 CONFLITOS E DIREITO INTERNACIONAL
2021.2
Prof. Conor Gerald Foley
Aluna: Ana Clara Benevenuto Mattos de Andrade
Matrícula nº 1621055

A lei dos conflitos armados é aplicável à "guerra ao terror"? Como você classificaria a
operação no Afeganistão entre várias forças lideradas pelos Estados Unidos e as forças do
Talibã e da Al Qaeda? Foi um conflito armado? Em caso afirmativo, foi um conflito ar-
mado internacional ou não internacional?

Nos últimos anos, o Afeganistão foi afetado por conflitos armados não internacionais
múltiplos e sobrepostos. O ex-governo do Afeganistão, liderado por Ashraf Ghani, era parte em
um conflito armado não internacional (NIAC) contra o Talibã, que era um grupo armado orga-
nizado na época. No entanto, em agosto de 2021, o Talibã assumiu o controle da maior parte
do país, inclusive Cabul, e se tornou de fato o novo governo do Afeganistão, apesar de ainda
não ter sido reconhecido por outros Estados.
Desde 2015, os combatentes no Afeganistão proclamaram o estabelecimento de um
ramo da província de Khorasan do grupo do Estado Islâmico (IS-KP) e começaram a realizar
ataques, envolvendo-se em um conflito armado não internacional com o antigo governo afegão.
Além disso, havia um Conflito Armado de Caráter Não-Internacional (NIAC) paralelo entre o
Talibã e a província do Estado Islâmico-Khorasan (IS-KP). Uma vez que o Talibã se qualifica
como o novo governo efetivo do Afeganistão, atualmente existe um NIAC entre as forças go-
vernamentais e o IS-KP também.
É importante entender que 2 critérios precisam ser avaliados para responder à pergunta
se uma situação de violência armada equivale a um conflito armado não internacional: (1) o
nível de violência armada deve atingir um certo grau de intensidade que vai além dos distúrbios
e tensões internas e (2) em todo conflito armado não internacional, pelo menos um lado do
conflito deve ser um grupo armado não estatal que deve exibir um certo nível de organização
para se qualificar como parte de um conflito armado não internacional. Presume-se que as for-
ças governamentais satisfaçam os critérios de organização (DOSWALD-BECK, L. JEAN-MA-
RIE, 2005). Avalia-se, assim, estes pontos para o caso da “Guerra ao Terror” contextualizando
com o momento de 2021.
No campo da intensidade, vários fatores indicativos são usados para avaliar se uma de-
terminada situação atingiu o limite de intensidade exigido, como o número, a duração e a in-
tensidade dos confrontos individuais; os tipos de armas e equipamentos militares usados; o
número de pessoas e tipos de forças que participam da luta; o número de vítimas; a extensão da
destruição material; o número de civis em fuga; e o envolvimento do Conselho de Segurança
das Nações Unidas (VARELLA, 2014). Já no horizonte dos grupos de conflito, é necessário,
como observado, a qualificação de um grupo organizacional sem nenhum caráter de nível esta-
tal (VARELLA, 2014). Em face disto, avalia-se a visão do Afeganistão.
Na análise aqui desenhada, parte-se, fundamentalmente, das interações dos EUA com o
Afeganistão para retirada das tropas, pois culmina com as definições aqui apontadas. Assim
sendo, cabe entender que o Talibã chegou ao poder em 1996, após um conflito armado não
internacional que ocorreu entre o ator não estatal e o governo afegão liderado por Ahmad Shah
Massoud. Em 2001, em resposta aos ataques de 11 de setembro, em outubro de 2001 o presi-
dente dos Estados Unidos Bush lançou uma intervenção militar no Afeganistão. A intervenção
causou a queda do governo afegão. Consequentemente, este começou a lutar contra as forças
armadas afegãs e americanas (SNJ, 2018).
Em 28 de fevereiro de 2018, o presidente afegão Ghani afirmou que estava pronto para
iniciar as negociações de paz, mantendo aberta a possibilidade de reconhecer o Talibã como
partido político legítimo e de conceder anistia aos combatentes. Em março, o presidente reiterou
sua proposta durante uma conferência no Uzbequistão. No entanto, o Talibã não deu nenhuma
resposta oficial. Em vez disso, a mídia do Talibã rejeitou a oferta e pediu para falar diretamente
com os EUA (SNJ, 2018).
Já em 2019, em face da ordem de paz, os EUA e o Talibã iniciaram negociações bilate-
rais em Doha, que determinaram a retirada das tropas dos EUA e da OTAN, medidas antiterro-
rismo e um cessar-fogo. Apesar das negociações, o nível de violência permaneceu alto. Por
exemplo, de 4 a 5 de fevereiro, o Talibã atacou postos governamentais avançados. Nesse ínte-
rim, as negociações continuaram, mas com ressalvas (RIVKIN, 2021).
Em 14 de abril de 2021, o recém-eleito presidente Biden anunciou que pretendia retirar
todas as tropas americanas do Afeganistão até 11 de setembro de 2021. Foi relatado que a de-
cisão foi adotada unilateralmente e, supostamente, não foi negociada com o Talibã. De acordo
com o acordo assinado em fevereiro de 2020, todas as tropas americanas deveriam ter deixado
o país em 1º de maio. Embora esse prazo não tenha sido cumprido, a retirada teve início em 1º
de maio e está a completar o seu fim para os EUA e também para os demais países da Europa
(RIVKIN, 2021).
Já em 7 de setembro de 2021, o Talibã anunciou a formação de um governo provisório
no Afeganistão, liderado por Mohammad Hasan Akhund. Como o Talibã controla a maior parte
do território, incluindo a capital, vale a pena entender uma questão importante, ou seja, se eles
se qualificam como o novo governo do Afeganistão. Caso o Talibã seja considerado o novo
governo, isso teria consequências cruciais na classificação do conflito (RIVKIN, 2021). A partir
destas observações, avalia-se sobre a perspectiva do Direito Internacional Humanitário (DIH),
caracterizando sob o ponto de visa de Conflito Armado.
No DIH, a visão majoritária postula que o governo precisa exercer um controle efetivo
para representar o estado. Esta posição foi afirmada pelo Comitê Internacional da Cruz Verme-
lha (CICV) em seu comentário às convenções de Genebra: “a condição-chave para a existência
de um governo é sua eficácia, isto é, sua capacidade de exercer funções normalmente atribuídas
a um governo dentro dos limites de um Estado território, incluindo a manutenção da lei e da
ordem (GENEBRA, 1949). Deve-se notar que o reconhecimento do governo por outros estados
e as questões relativas à sua legitimidade não são relevantes para os fins do DIH. Na verdade,
este corpo de lei adota uma abordagem pragmática e se concentra na situação real no terreno.
À luz das informações de que se tem, atualmente o Talibã exerce controle efetivo sobre
a esmagador majoridade do país. Além disso, parecem exercer funções normalmente atribuídas
a um governo, bem como a manutenção da lei e da ordem. Por exemplo, foi relatado que os
direitos aduaneiros sobre as mercadorias que entram no país através de passagens que controlam
são agora cobrados pelo Talibã (RIVKIN, 2021). De referir ainda que o fato de o Talibã não
controlar a totalidade do território e de ainda existirem áreas contestadas não impede que se
conclua que é suficientemente eficaz para ser reconhecido como o novo governo.
Visto, assim, que o Talibã está exercendo controle efetivo sobre o território e sobre a
população e, portanto, é o governo efetivo do ponto de vista do DIH, como pode ser classificado
o conflito atual?
Para fins de classificação, a principal questão é se há um NIAC entre a Frente de Resis-
tência Nacional e o Talibã, que agora é o governo efetivo. Notavelmente, a principal questão é
se o antigo NIAC (Conflito Internacional Não Armado) entre o grupo rebelde Talibã e o ex-
governo afegão continua agora como um NIAC entre a Frente de Resistência Nacional (leal ao
antigo governo) e o Talibã, agora representando o Afeganistão, ou se o antigo O NIAC acabou
e é necessário prosseguir com um novo exercício de classificação. A questão está aberta para
debate e nenhuma resposta clara é fornecida pelo DIH. Assim sendo, aqui se considera que os
combates (se houver) entre a Frente de Resistência Nacional e o governo Talibã devem ser
considerados como uma continuação do antigo NIAC.
No entanto, permanece uma questão, nomeadamente se a Frente de Resistência Nacio-
nal está suficientemente organizada. Infelizmente, atualmente não se tem informações sufici-
entes para fazer esta avaliação. À luz do exposto, parece prematuro desclassificar a situação de
violência e, portanto, conclui-se que, por enquanto, o governo do Talibã está se engajando em
um NIAC contra a Frente de Resistência Nacional. Portanto, as forças do Talibã e da Al Qaeda
contra Afeganistão são um NIAC.
Já em relação aos Estados Unidos da América (EUA), nos últimos 20 anos, os Estados
Unidos fizeram parte de um NIAC contra o Talibã. Desde que as tropas americanas deixaram
o país, o conflito acabou. Deve-se observar que, caso os EUA conduzam operações militares
contra o Talibã no futuro, os confrontos armados desencadeariam um IAC porque o Talibã
atingiu o grau de eficácia necessário para ser o novo governo do Afeganistão sob o ponto de
vista do Direito Internacional Humanitário.
Ao lado das tropas contribuíram para a missão de Apoio Resoluto da OTAN, os Estados
Unidos da América mantiveram separadamente forças no Afeganistão até agosto de 2021. Ao
contrário da missão da OTAN, essas forças não estavam presentes apenas para aconselhar e
ajudar, mas também para conduzir operações contra o Talibã e o EI -KP.
Os EUA não descreveram essas operações como envolvimento no conflito armado, mas
como envolvimento em ataques antiterrorismo com o objetivo específico de proteger os EUA
de ataques terroristas. No entanto, a qualificação feita por um estado não é determinante para
sua participação em um conflito armado. Em vez disso, as circunstâncias fatuais contam. As
tropas dos EUA realizaram cada vez mais ataques aéreos, que causaram um número importante
de baixas, incluindo membros de alto escalão de grupos armados. Consequentemente, a violên-
cia entre os EUA e os grupos armados atingiu o nível de intensidade necessário, portanto, os
EUA eram parte dos NIACs que afetavam o país.
Alternativamente, sob a "abordagem baseada no apoio" proposta pelo Comitê Interna-
cional da Cruz Vermelha, os EUA também podem ter sido qualificados como parte do conflito.
Uma vez que a intervenção ocorreu com o consentimento do governo afegão, não alterou a
classificação do conflito, que manteve o caráter não internacional. Como as tropas americanas
deixaram o país em agosto de 2021, o conflito acabou. Deve-se notar que, caso os EUA condu-
zam operações militares contra o Talibã no futuro, os confrontos armados desencadeariam um
IAC porque o Talibã atingiu o grau de eficácia necessário para ser o novo governo do Afega-
nistão sob o DIH. Por fim, deve-se lembrar que, mesmo que o Talibã esteja agora no poder, as
obrigações existentes com o DIH no Afeganistão ainda se aplicam em virtude do princípio da
continuidade do Estado, estabelecido pelo Direito Internacional Humanitário.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DOSWALD-BECK, L. JEAN-MARIE, H. Customary International Humanitarian Law.


Cambridge: Cambridge University Press, 2005

VARELLA, M. D. Direito Internacional Público. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. SNJ. Secretaria Nacional da Justiça.


NOTA TÉCNICA Nº 3/2020/CONARE_em_prod/CONARE/DEMIG/SENAJUS/MJ.

RIVKIN, A. Cronologia do envolvimento dos EUA e Otan no Afeganistão, 2020. Disponí-


vel em: < https://www.dw.com/pt-br/cronologia-do-envolvimento-dos-eua-e-otan-no-afega-
nistão/a-58880303>. Acesso em 24 set. 2021.

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