Você está na página 1de 6

Universidade Federal do ABC

Bacharelado em Relações Internacionais

Flávia Gabriela Garcia Dias


RA: 11202020634

A INTERVENÇÃO DA OTAN NA LÍBIA EM 2011: UMA ANÁLISE SOB A


PERSPECTIVA DA TEORIA DA SOCIEDADE INTERNACIONAL

São Bernardo do Campo - SP


2022
O presente trabalho tem como objetivo analisar a intervenção da OTAN na Líbia,
ocorrida em 2011, sob a perspectiva da abordagem da escola da sociedade internacional.
Primeiro, será apresentado o contexto político e social em que a Líbia se encontrava no ano de
2011, sua posição no sistema internacional, o que levou a OTAN a intervir no país e como se
deu esse processo; depois, discutir-se-á a respeito dessa intervenção com base nos conceitos
da sociedade internacional, principalmente no que se refere às definições de responsabilidade,
do estudioso Martin Wight; por fim, serão apresentadas as consequências que o país teve e
ainda tem que suportar e como ele se encontra hoje devido a essa intervenção, seguidas das
considerações finais a respeito do tema e do que fora debatido.
No ano de 2011, a Líbia ainda era governada por Muammar Kadafi, um coronel
autoritário cujo regime de governo era severo, brutal e repressivo (NOGUEIRA, 2019).
Internacionalmente, o país era um dos maiores produtores de petróleo na África, sendo
membro da OPEP. Por volta do final de 2010 e início de 2011, uma série de revoltas
eclodiram em países do Oriente Médio e do norte da África, compondo o fenômeno que ficou
conhecido como Primavera Árabe. Dentre eles, estava a Líbia, onde populações saíram às
ruas para protestar contra as condições socioeconômicas em que se encontravam e contra o
governo autoritário de Kadafi. Como resposta, o regime de Kadafi agiu com repressão e
violência, enviando tropas às ruas para reprimir os protestos (BBC, 2021).
Como consequência dessas ações, o Conselho de Segurança da ONU suspendeu a
Líbia do Conselho de Direitos Humanos, marcando o primeiro país da história a ser suspenso
do mesmo desde sua criação (THE GUARDIAN, 2011), além de aprovar uma zona de
exclusão aérea no país, impedindo que o governo local usasse aviões para bombardear
Benghazi, onde os protestos começaram e se concentraram em maior intensidade (BBC,
2021). Posteriormente, o Conselho da ONU aprovou a Resolução 1973, que autorizava a
invasão na Líbia pelas forças aéreas da OTAN e de alguns de seus membros - França, Estados
Unidos e Grã-Bretanha (JACKSON, SORENSEN, 2018).
Primeiramente, há alguns destaques a se fazer quanto à aprovação da Resolução 1973
em relação a três definições que a ONU promove e defende: direitos humanos, paz e
segurança internacionais. Em seu livro, Jackson e Sorensen destacam que A Carta das Nações
Unidas justifica o emprego da força como apenas um meio de manter a paz e a segurança
internacionais e como um direito de legítima defesa - não há menção quanto ao uso da força
para a proteção dos direitos humanos (2018, p. 212). Contudo, o Conselho da ONU tem
aprovado de forma recorrente resoluções como a Resolução 1973 para lidar com crises
humanitárias fazendo uso da força militar - como em casos no Iraque e Haiti. “Essas
resoluções vinculam os direitos humanos à paz e à segurança internacionais e, ao fazê-lo,
podem ser interpretadas como estabelecedoras de uma norma solidarista da sociedade
internacional de intervenção e guerra humanitárias.” (JACKSON, SORENSEN, 2018, p. 213).
De acordo com a teoria da sociedade internacional, o conflito entre o direito da não
intervenção e os direitos humanos são dois valores associados à ordem e à justiça e que
possuem duas respostas principais: a pluralista e a solidarista. A pluralista dá destaque à
soberania do Estado, os indivíduos só têm os direitos que recebem de seus governos. Já a
abordagem solidarista, que Jackson e Sorensen identificaram nas aprovações das resoluções
pela ONU, defende que indivíduos têm mais importância do que a soberania estatal, isto é, os
direitos humanos precedem os direitos de Estados soberanos, o que abre espaço para que
Estados possam intervir em casos de sofrimento humano dentro de outros países. Essa última
abordagem vai de encontro a uma das dimensões da responsabilidade teorizada por Martin
Wight, que é a responsabilidade humanitária. Essa concepção enfatiza padrões de conduta que
cidadãos e políticos devem reivindicar: há uma obrigação humana de respeito aos direitos
humanos para com os cidadãos de países diferentes.
Assim, defensores do uso legítimo e legal da força militar para resolver crises
humanitárias levam em conta que o fato da Carta da ONU não autorizar tal ato de forma
explícita é algo que precisa ser corrigido (JACKSON, SORENSEN, 2018, p. 213). Então,
acabam por defender a doutrina da Responsabilidade de Proteger, que defende o uso militar
como um meio não só de autodefesa e paz e segurança internacionais, mas também para fins
de proteção humanitária. É justamente essa postura de responsabilidade humanitária que o
Conselho tomou em relação à Líbia em 2011. Era preciso conter a ameaça que as forças
militares do governo de Kadafi representavam para o povo líbio.
Sob a ótica da sociedade internacional, a invasão da OTAN na Líbia é uma postura de
proteção da ordem internacional por parte das grande potências, as quais possuem não só a
responsabilidade nacional, mas também, como Wight observou, a responsabilidade
internacional e humanitária. Seria, então, um dever das grandes nações ajudar nas crises
humanitárias em nações que não possuem estabilidade nacional, pois as relações
internacionais dizem respeito a uma sociedade de Estados que se reconhecem mutuamente,
não estando apenas em competição e conflito entre si como a teoria do realismo defende
(JACKSON, SORENSEN, 2018, p. 192). Dessa forma, por mais que as consequências, tanto
boas quanto ruins, sejam inevitáveis, essa postura política de intervenção reforça a
identificação das populações estrangeiras como humanas e necessitadas de direitos, não
importando se pertencem à mesma nação ou não, mas importando sua humanidade. Invadir a
Líbia acarretaria em inúmeros desastres - perdas de vidas civis, famílias perdendo suas casas,
abalos na economia e política - mas o que se esperava era que fosse um mal necessário para
libertar os povos das mãos opressoras do governo e restaurar a ordem, a justiça, a paz, a
segurança, a vida social, os direitos humanos. Se essas eram as intenções e se elas foram
alcançadas é uma pergunta com respostas controversas.
O bombardeio realizado pelos membros da OTAN foi um sucesso para impedir as
tropas locais, mas deixou destruição por toda a cidade e o país se viu nos próximos anos
dentro de uma onda de iniciativas de paz fracassadas e uma condição social que só piorou,
entrando numa posição de Estado fracassado. As esperanças de paz duradoura com a
intervenção foram frustradas com a divisão do país em duas zonas de rivalidade. Mesmo após
dez anos da invasão e do fim do conflito, a Líbia ainda vive em guerra e é dominada pela
violência (UOL, 2021). O país, além disso, se tornou um dos principais no tráfico de
migrantes do norte da África, de onde saem centenas de pessoas que arriscam suas vidas pelo
Mar Mediterrâneo para chegar à Europa em busca de uma vida melhor.
Esse cenário caótico recai sobre as controvérsias da guerra justificável da norma
solidarista. Jackson e Sorensen destacam que:
“para a ONU, muitos de seus Estados-membros importantes e
organizações internacionais proeminentes como a OTAN e a UE, o
humanitarismo e os direitos humanos se tornaram justificativas importantes
para a intervenção armada e a guerra.” (2018, p. 216).
É de se questionar se, tendo em vista o que a Líbia passou depois da intervenção,
realmente compensava a intervenção, se abrir mão da diplomacia para gerar uma guerra era
uma solução inteligente. A responsabilidade de nações mais potentes, como os Estados
Unidos, para com nações em crise não termina quando a guerra cessa. O ideal é que haja um
apoio no pós-guerra, um apoio para com as famílias, para com as eleições locais, para com a
restauração da economia, da política, da vida social. Assim, a responsabilidade humanitária se
faz presente: intervindo, mas não deixando o governo local às custas das ações externas.
Portanto, os eventos de 2011 na Líbia refletem as dificuldades nas escolhas morais que
políticos devem tomar em relação à política externa. Como a teoria da sociedade internacional
defende, os Estados devem respeitar a soberania uns dos outros, mas também possuem
obrigações entre si, pois se vinculam através de uma sociedade de Estados arranjada em
organizações internacionais e instituições comuns, possuindo responsabilidades que se
dividem entre nacional, internacional e humanitária. A intervenção na Líbia é um reflexo do
estudo da responsabilidade humanitária e ilustra como uma organização internacional
formada entre países é influente no próprio sistema internacional, mas que, por meio de
decisões sobre a política externa, pode deixar marcas e consequências que serão difíceis para
um país em crise superar se não houver apoio internacional.
REFERÊNCIAS

JACKSON, Robert; SORENSEN, Georg. Introdução às Relações Internacionais. Rio de


Janeiro: Zahar, 2018, 3a edição revisada.

LÍBIA vive o caos 10 anos depois da Primavera Árabe. UOL, 2021. Disponível em:
<https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2021/02/10/libia-vive-o-caos-10-anos-depois
-da-primavera-arabe.htm#>. Acesso em: 12 maio 2022.

NOGUEIRA, André. Muammar Kadhafi, o tirano que dizimou o próprio povo. Aventuras na
História, 2019. Disponível em:
<https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/historia-muammar-gaddafi-o-tira
no-que-dizimou-o-proprio-povo.phtml>. Acesso em: 12 maio 2022.

SIMÕES, Rogério. O que foi e como terminou a Primavera Árabe? BBC, 2021. Disponível
em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-55379502>. Acesso em: 13 maio 2022.

UN suspends Libya from human rights council over violence against protesters. The
Guardian, 2011. Disponível em:
<https://www.theguardian.com/world/2011/mar/02/un-suspends-libya-human-rights-council>.
Acesso em: 13 maio 2022.

Você também pode gostar