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Conflitos Intra-estatais, Intervenções e o Cenário de Segurança

Internacional no Pós-Guerra Fria*

Nizar Messari **

1. A Mudança e a Evolução dos Conflitos desde o Fim da Guerra Fria

O debate sobre segurança internacional não pode ser desvinculado dos eventos do fim da
década de 1980, isto é, o fim da Guerra Fria. Os desafios que se impuseram à subárea de
Segurança Internacional tinham duas origens distintas. Por um lado, a incapacidade dos
estudiosos de Segurança Internacional de prever o fim da União Soviética e da Guerra Fria
colocou em xeque os pressupostos acadêmicos nos quais seus estudos eram baseados. Por
outro lado, o crescimento de uma nova modalidade de conflito no cenário internacional
impôs um desafio político e conceitual para esta mesma subárea. Para lidar com este duplo
desafio, a subárea de Segurança Internacional teve que ser reinventada de maneira a
continuar a lidar com os assuntos tradicionais, como as guerras interestatais, o embate
nuclear entre as grandes potências militares, ou ainda a indústria bélica e as relações entre
civis e militares, mas estudando também, e de maneira simultânea, estes chamados novos
desafios. Desta forma, expandiu-se o escopo do que era considerado assunto de segurança
internacional – distinguindo-se eventualmente entre segurança política, econômica, social e
ambiental – e ampliou-se a subárea para abarcar assuntos como conflitos intra-estatais de
cunho nacionalista, étnico ou tribal.

Na presente análise, lido com este último desafio na subárea de Segurança Internacional: os
conflitos intra-estatais, de natureza política, oriundos da identidade dos grupos em conflito.
Kalevi J. Holsti afirma que estas guerras, que ele opta por chamar de guerras do terceiro
tipo, já existiam no cenário internacional desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e que

*
Artigo produzido em julho de 2006.
**
Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio).
sua importância tem crescido desde então. De acordo com ele, desde meados da década de
1940, as curvas representando conflitos interestatais e conflitos intra-estatais – seja em
quantidade, seja em termo de número de vítimas – têm evoluído em sentidos inversos até
eventualmente se cruzarem. Em outros termos, a maioria dos conflitos passou a ser de
natureza intra-estatal, e o maior número de vítimas da guerra passou a resultar destes
mesmos conflitos. Holsti afirma que este fenômeno de crescimento em importância dos
conflitos intra-estatais tem coincidido com o surgimento de novos Estados na política
internacional, recém-independentes, frágeis internamente e com instituições pouco
enraizadas nos costumes destes mesmos países. Portanto, Holsti afirma que a tendência à
predominância dos conflitos intra-estatais em detrimento dos conflitos interestatais
antecede o fim da Guerra Fria. De qualquer modo, o fato é que, hoje, a maioria dos
conflitos no cenário internacional é de natureza intra-estatal. E isto representa um desafio
para a disciplina de Relações Internacionais. Para dar uma medida deste desafio, basta
mencionar que, nos EUA, um dos projetos mais importantes da disciplina desde a Segunda
Guerra Mundial, fruto da revolução behaviorista nas ciências sociais, o chamado Correlates
of War Project, define como seu objeto de inquérito única e exclusivamente as guerras
interestatais.

Portanto, uma das novidades do pós-Guerra Fria foi o aumento do número de intervenções
internacionais nestes conflitos, e não o fato de os conflitos intra-estatais representarem a
maioria dos conflitos no cenário internacional contemporâneo. De fato, a maioria das
intervenções patrocinadas por terceiros e, em particular, por organizações internacionais,
principalmente a Organização das Nações Unidas (ONU), que ocorriam durante a Guerra
Fria, eram em conflitos interestatais e requeriam – entre outras coisas – permissões das
partes envolvidas. Exemplos destas intervenções são a força internacional de paz no Líbano
e na Península da Coréia. Algumas intervenções ocorreram em territórios recém-
independentes, ou que saíam de longos conflitos, e que requeriam a ajuda internacional
para se estabilizarem. Exemplos destas intervenções eram a Namíbia, o Camboja e o Saara
Ocidental.
2. A Nova Dinâmica das Intervenções e sua Aceleração no Pós -Guerra Fria

No pós-Guerra Fria, além da continuação de alguns conflitos que antecederam o fim da


Guerra Fria (o longo conflito interno na Colômbia, o conflito no Oriente Médio, em
particular entre Israel e os palestinos, e a questão do Saara Ocidental, por exemplo), o que
tem sido observado é a multiplicação dos conflitos de terceiro tipo e das intervenções de
terceiros nestes conflitos para permitir ou ajudar a resolvê-los. Passou também a se falar em
intervenções humanitárias, cujo objetivo seria salvar vidas humanas dentro de territórios em
conflito, ainda que isto signifique a violação do princípio da soberania, princípio este que
figura como a pedra angular do sistema internacional desde o tratado de Westfália de 1648.

A nova fase das intervenções nos conflitos internos no pós-Guerra Fria tem três
características principais: a centralidade das questões de identidade nos conflitos, a própria
multiplicação de intervenções e o papel das organizações internacionais nestas
intervenções. O que caracteriza os conflitos do pós-Guerra Fria não é o fato de serem intra-
estatais. Como já vimos, Holsti deixa claro que os conflitos intra-estatais têm crescido em
importância desde o fim da Segunda Guerra Mundial. No entanto, o fato de serem, em
muitos casos, relacionados a questões de identidade nacional, étnica ou tribal representava
uma novidade em termos. Falar em conflitos de natureza identitária não significa que tais
conflitos não sejam políticos também. Mas o fato de a coesão dos grupos em conflito ser
determinada pela identidade dos seus membros ditou uma dinâmica particular tanto aos
conflitos propriamente ditos, quanto às intervenções que procuraram resolvê-los. Uma
segunda característica desta nova fase reside nas intervenções, que se tornaram mais
comuns e internacionais. As guerras intra-estatais deixaram de ser consideradas questões
internas, e as intervenções deixaram de ser consideradas apenas como eventuais
intromissões nos assuntos de um Estado soberano. Com isso, deixou-se de se esperar por
autorizações prévias ou pedidos oficiais para intervir, já que, em alguns casos, não havia
sequer uma autoridade legal e legítima para autorizar ou formular um pedido de
intervenção, como foi o caso da Somália. Em outros termos, se é possível falar de uma
nova fase, isto é possível porque as intervenções se tornaram mais comuns e possíveis.
Uma terceira característica desta nova fase reside no papel cada vez mais afirmativo e
presente desempenhado pelas organizações internacionais, sejam elas globais ou regionais.
Assim, a ONU passou a estar mais presente e afirmativa enquanto a Organização da
Unidade Africana, assim como sua herdeira, a União Africana – no caso do Darfur –, e a
União Européia – no caso da Bósnia e do Kosovo – assumiram mais responsabilidades
nestas crises e nas intervenções conseqüentes. Por fim, organizações como a Organização
do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) – no caso da Bósnia e do Kosovo – e a
Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (ECOWAS) e seu braço militar, a
ECOMOG – nos casos da Libéria e da Serra Leoa –, também desempenharam um papel
importante nos conflitos do pós-Guerra Fria.

Com isso, as intervenções patrocinadas pelas Nações Unidas tiveram que passar por
grandes transformações para se adaptarem ao novo cenário internacional. Assim, a ONU
teve que rever seu conceito de peacekeeping, inclusive em virtude do desafio que
representava mandar uma missão de manutenção da paz quando não havia paz. Vários
estudos foram feitos, e resultaram em relatórios como a Agenda for Peace e o Relatório
Brahimi, ambos sobre o desafio da nova fase e as adaptações necessárias para lidar
efetivamente com estes desafios. Mudanças burocráticas ocorreram no seio da organização
de maneira a permitir à ONU levar em consideração as recomendações dos relatórios e,
pela mesma oportunidade, a nova realidade no campo.

Uma das adaptações que se tornaram necessárias foi aparelhar a própria ONU para lidar
com esta nova realidade. Tradicionalmente, e como já foi dito aqui, chamavam-se as
intervenções da ONU de operações de manutenção da paz, ou peacekeeping em inglês. No
entanto, duas situações repetiram-se nos diferentes conflitos do pós-Guerra Fria. Por um
lado, passou a existir a necessidade de intervir em conflitos intra-estatais nos quais não
havia nenhuma paz para manter, mas sim uma paz para estabelecer. Em outras palavras, era
necessário levar as partes em conflito a esta paz, que não existia ainda. Por outro lado, em
certos casos, passou a existir a necessidade de fortalecer a paz, criando condições
adequadas para que as partes em conflito não voltem a usar armas para resolverem suas
diferenças. Nestes casos, os beligerantes eram incapazes de (ou não queriam) evoluir para
uma situação de paz duradoura naturalmente, e a ONU precisava estabelecer condições
concretas para uma paz duradoura antes de se retirar do conflito. Assim, passou a se
distinguir entre três diferentes estágios destas operações de paz, de acordo com o estágio de
evolução do conflito no qual se pretendia intervir: peacemaking, peacekeeping e
peacebuilding.

As operações de peacemaking visam forçar as partes em conflito a entrarem em acordos de


maneira a resolver o conflito armado. Trata-se de convencer as partes em conflito de que a
via de negociação pode trazer mais benefícios que a via armada, e que sentar à mesa de
negociações para chegar a um acordo é uma opção melhor que a guerra. Neste estágio, faz-
se necessário transformar os instrumentos do conflito, assim como a percepção que os
atores têm deste conflito. O papel de quem intervém é precisamente este. Um exemplo
comum a este respeito é aquele dos dois vizinhos que brigam por uma mesma árvore,
dizendo-se seus donos. No entanto, enquanto um precisa da sombra da árvore para guardar
seu carro, o outro gosta das frutas que a árvore produz. O papel do mediador/interventor é
precisamente entender as motivações e as necessidades de cada um para tentar criar
condições de diálogo e de compromisso político entre as partes, sem recorrer às armas.

No estágio de peacekeeping, trata-se de manter a separação entre as partes em conflito,


garantir seu desarmamento assim como a desmobilização de seus combatentes, e começar a
estabelecer as condições para uma convivência pacífica entre as partes, como iniciar a volta
dos refugiados e estabelecer garantias de que crimes de guerra não ficarão impunes. Este
segundo estágio é o que alguns chamam de paz negativa, referindo-se aos escritos do
pesquisador para a paz norueguês Johan Galtung. De fato, Galtung chama de paz negativa a
simples ausência de conflito armado, isto é, quando se logra interromper a luta armada
entre as partes. Outros afirmam que, nesta fase de peacekeeping, trata-se de Clausewitz ao
avesso: a política visa substituir a guerra e permitir às partes resolverem seus conflitos sem
recorrer às armas.
Finalmente, no estágio de peacebuilding, faz-se necessário criar estruturas políticas,
jurídicas e de segurança que sejam viáveis e com credibilidade para todas as partes, garantir
o retorno dos refugiados para suas áreas originais e, de preferência, para suas casas e
retomar os afazeres do dia-a-dia de uma comunidade normal, desde o funcionamento de
escolas e hospitais até o de mercados e das demais trocas entre a população. Referindo-se
ainda a Galtung, alguns chamam este estágio de paz positiva, isto é, um estágio em que se
estabelecem as condições positivas de convivência entre os grupos para evitar a volta dos
conflitos.

Vale a pena relembrar que vários estudos indicam que conflitos intra-estatais concluídos
por acordos de paz têm muito mais probabilidade de serem retomados violentamente dentro
dos cinco anos que seguem o acordo do que conflitos interestatais concluídos da mesma
forma. Além disso, conflitos intra-estatais concluídos por acordos de paz têm uma
probabilidade muito maior de serem retomados violentamente do que conflitos intra-
estatais concluídos mediante a vitória militar de um dos lados. Enquanto as explicações de
tais fatos são diversas, a mais comum entre elas é que os acordos de paz significam apenas
a segunda melhor opção para as partes em conflito, já que envolvem concessões e
compromissos dolorosos para as partes envolvidas. Isto realça a necessidade de tomar todos
os cuidados necessários no decorrer do processo de intervenção para evitar que o conflito
armado seja retomado violentamente após curto perío do de tempo. Uma das dificuldades
que se colocam nestes processos de paz é que são os mesmos atores que estavam
envolvidos na fase armada que têm que se converter em agentes da nova fase, a fase
pacífica. Isto pressupõe não apenas que estes atores têm que se transformar de agentes
armados em agentes políticos, mas também, e talvez principalmente, que estes agentes
podem não ter grande interesse em estabelecer a paz, e podem ou não atrapalhar, ou até
trabalhar contra o processo de paz. Este é o caso, por exemplo, dos vários Senhores de
Guerra que se beneficiam com a guerra, e que, prejudicados com a paz, se não forem
retirados ou convencidos – de alguma forma – da necessidade da paz, só podem se tornar
entraves para a implementação do processo de paz.
Estas três etapas não são nitidamente separadas e, em muitos casos, sobrepõem-se umas às
outras. No campo, em muitas oportunidades, atividades próprias ao estágio de
peacebuilding têm que começar a ser implementadas enquanto formalmente a operação está
ainda no estágio de peacemaking, por exemplo. Além do mais, para garantir seu sucesso,
estas operações não podem ser exclusivas da ONU: Estados que possuem relações
privilegiadas e certa influência perante uma das partes do conflito têm que se empenhar nos
diferentes estágios, e organizações não-governamentais que fornecem ajuda humanitária de
vários tipos ou que se empenham politicamente nos processos de reconciliação também têm
que ser envolvidas nestas operações. Por fim, indivíduos com respaldo e influência
internacionais e que tenham contribuições específicas a dar em certos conflitos podem – e
devem – também ser envolvidos. No entanto, o envolvimento destas diferentes partes
pressupõe a existência de uma coordenação das diversas iniciativas e atos, de maneira a
assegurar que todas as iniciativas estejam indo na mesma direção, e ajudar realmente as
populações mais afetadas pelo conflito armado. De fato, a multiplicação e a diversidade
daqueles que são capazes de intervir podem ter resultados negativos, na medida em que
diferentes interventores podem almejar objetivos opostos ou contraditórios. Assim, para
cessar as hostilidades, uma das partes que intervêm no conflito pode estar tentada a fazer
concessões exageradas às partes beligerantes, concessões estas que podem contradizer
algum dos estágios posteriores. Para ser mais específico, para cessar as hostilidades e salvar
vidas humanas, um interventor pode ter a tentação de oferecer a uma das partes garantias de
que ela não será julgada, o que contradiz completamente as necessidades de reconstrução
da paz próprias ao último estágio de peacebuilding. É para evitar estas contradições que se
faz necessário coordenar as ações das diferentes partes que intervêm no conflito. Para
aumentar as possibilidades de sucesso destas operações, é preciso também diversificar os
interlocutores das intervenções. Assim, além dos tomadores de decisão, há que se dirigir
aos formadores de opinião, como os jornalistas, os líderes políticos nacionais e regionais,
os professores e, dependendo das sociedades, os líderes religiosos ou tribais que possuem
um grau de legitimidade entre a população. Por fim, os líderes locais, em termos de
sociedade, política e segurança, deveriam também ser interlocutores importantes nas
intervenções, já que eles têm um alto grau de influência perante a população. A diversidade
daqueles que intervêm no conflito e daqueles perante os quais se intervém reforça a
necessidade de não considerar os três estágios como sendo nitidamente separados e
sucessivos. O objetivo das operações é criar condições para uma paz auto-sustentável, isto
é, uma paz que seja durável após a saída das forças da intervenção, e que seja estável no
tempo.

Dadas todas estas dificuldades de implementação da paz, falou-se muito na década passada
sobre o conceito de prevenção de conflito, tema que continua sendo muito presente. De
fato, se resolver conflitos já é muito complexo, e representa um desafio importante para os
interventores, resolver conflitos armados, com seus rastros de destruição humana e material
e suas marcas profundas nos indivíduos, torna-se muito mais complexo e difícil. O conceito
de prevenção acabou se impondo em meados da década passada para tentar evitar que os
conflitos cheguem à fase do conflito armado, e pressupõe uma vigilância permanente dos
processos políticos em áreas de potencial conflito de maneira a antecipar o acirramento das
tensões e estabelecer estratégias preventivas. Trata-se de uma estratégia difícil de
acontecer, embora seja plausível, como tem sido o caso da operação preventiva na
Macedônia.

3. Os Desafios que se Colocam diante destas Intervenções e a Evolução dos Debates


em Relação a Elas

Nesta nova lógica das intervenções internacionais, as intervenções não podem ser apenas de
Estados soberanos ou de organizações internacionais representando grupos ou coalizões de
Estados. Estados e organizações governamentais têm de fato intervindo nestes conflitos
pós-Guerra Fria. Mas tanto os Estados quanto as organizações governamentais não podem
desempenhar apenas um papel político-militar. Organizações não-governamentais, com um
papel tanto político quanto humanitário, passaram a ocupar um lugar central neste contexto.
Em muitos casos, são as organizações humanitárias – e muitas vezes não-governamentais –
as primeiras a chegarem às regiões em conflito, e são elas que identificam e divulgam a
gravidade da situação no campo. Seu caráter aparentemente não-político e sua neutralidade
baseada nos seus objetivos humanitários lhes permitem tal inserção. Desta forma, em
muitos casos, e além de cumprirem seus objetivos humanitários no terreno, as organizações
não-governamentais desempenham o papel de “whistle-blower” no cenário internacional,
chamando a atenção da mídia e relatando para os governos das grandes potências
ocidentais, assim como para as organizações intergovernamentais, o que ocorre no terreno
de operações. É o caso atualmente na crise causada pela seca no Níger, ou na crise do
Darfur no Sudão, de natureza mais político-humanitária. A intervenção de Estados,
principalmente as grandes potências entre eles, ocorre quando meios de pressão e
instrumentos de convicção – sejam eles sanções ou incentivos – tornam-se necessários para
levar as partes a um acordo. A natureza do Estado que intervém pode também variar.
Assim, em algumas situações, Estados neutros e que têm a confiança das partes em conflito
podem construir pontes de maneira a abrir a possibilidade de restabelecer a estabilidade na
região, e podem assim ser mais eficientes nas suas intervenções do que Estados com
grandes recursos de poder. Em outras condições, pode se fazer necessária a intervenção de
Estados com grandes recursos de poder. Isso ocorre principalmente quando há
desequilíbrios entre as partes em conflito, e os mais fracos precisam da presença simbólica
das grandes potências militares para confiarem e se engajarem no processo de paz. As
organizações internacionais intervêm para viabilizar e legitimar estas intervenções. Elas
providenciam o quadro geral dentro do qual as operações se tornam legítimas e aceitas
pelas partes em conflito, assim como para seus aliados. A intervenção destes diferentes
atores não é exclusiva: todos podem e devem agir simultaneamente e de maneira
coordenada. A coordenação da ação das diferentes partes que intervêm é um dos desafios
mais importantes para este tipo de operações, pois, muitas vezes, não há uma voz de
autoridade única e, em algumas ocasiões, em curto prazo, os objetivos podem até ser
contraditórios.

Há também uma diversidade de maneiras de operar as intervenções. As intervenções


tradicionais visavam, em larga medida, a modificação das estruturas políticas e de liderança
nos lugares onde se intervinha. As novas intervenções têm visado uma ampla e
diversificada gama de atores. Assim, três níveis tornam-se presentes: as lideranças
nacionais, as lideranças intermediárias e, em particular, os ativistas; e, por fim, a população
em geral. Atuar perante as lideranças nacionais para convencê-las da necessidade de se
engajarem no jogo político e torná-las parceiras no processo de paz é crucial. Nestas
lideranças nacionais é que se destacam os spoilers; portanto, é neste nível que a ação
preventiva é importante. Assim, faz-se necessário substituir a lógica do conflito pela lógica
da paz; para isso, é importante que as lideranças nacionais entrem neste jogo. Para facilitar
a conversão das lideranças nacionais, é importante também lidar com as lideranças
intermediárias. Vários spoilers situam-se neste nível também, e eles têm que se convencer
de que a paz é a melhor opção possível. Entre os líderes intermediários, podemos citar
líderes políticos regionais e locais, líderes sindicais, jornalistas e comentaristas políticos e
lideranças de destaque nos planos regional e local. Estas lideranças intermediárias têm um
contato muito próximo com a população e a capacidade de influenciar a opinião pública em
várias direções. Por isso, seu engajamento no processo de paz é importante. Por fim, é
necessário agir perante a população em geral, e apresentar os diferentes benefícios e
dividendos da paz. Trata-se do processo de conquista dos corações e das mentes da
população, pois é importante que a população sinta que a paz lhe é benéfica e que serve a
seus interesses. Mudanças reais – que permitam a volta dos refugiados a suas regiões, e a
volta da vida a seu curso normal (em termos de emprego, escolaridade, serviços de saúde) –
podem ter um grande efeito sobre a população. No entanto, a intervenção tem que vincular
tais progressos ao processo de paz, de maneira a estreitar a relação entre paz e normalidade.

Estamos em presença, então, de dois triângulos imbricados: a intervenção, por um lado,


pode ser feita por Estados, organizações governamentais e não-governamentais. Por outro,
visa como interlocutor as lideranças nacionais, intermediárias e a população em geral. Não
há nenhum tipo de correspondência direta ou linear entre os dois triângulos, mas a ação
simultânea e concreta por parte dos três tipos de interventores perante os três tipos de
público é crucial para o sucesso da operação de intervenção.

Dois imperativos têm sido constantes nas intervenções em áreas em conflito no pós-Guerra
Fria. De um lado, e como o próprio nome do processo deixa claro, as intervenções têm por
objetivo a construção ou reconstrução de Estados; de outro lado, estes Estados têm que ser
democráticos e adotar a economia de mercado. A intervenção no Kosovo poderia ser
considerada uma exceção a este respeito: quando ocorreu, a OTAN e seus membros, e, em
seguida, a ONU e a União Européia, não admitiam a possibilidade de estabelecimento de
um Estado kosovar, independente da ex-Iugoslávia. Tudo o que se prometia aos albano-
kosovares era um alto grau de autonomia dentro da Federação de Sérvia e Montenegro. No
entanto, em 2005, alguns governos começaram a cogitar a possibilidade de criação de um
Estado kosovar na região, o que não reflete a evolução apenas dos equilíbrios regional e
local, mas também da importância do objetivo de se construir Estados soberanos no final do
processo de intervenção. Seria mais correto falar em premissas destes processos, em vez de
imperativos, pois não se trata de opções que podem – ou não – ser feitas, mas sim de
objetivos finais que figuram já na partida. Isso quer dizer que a construção de um Estado
democrático e com uma economia de mercado poderia ser um dos resultados possíveis da
intervenção, e não o único resultado possível desta. Não se discute aqui a validade de se
constituírem sistemas políticos democráticos, nem uma economia de mercado, mas sim a
rapidez com que estas opções são impostas, além de não serem necessariamente opções e
escolhas feitas pelas populações das regiões em conflito. Ou seja, a construção de um
Estado democrático e com uma economia de mercado deveria ser uma opção da população,
e não uma imposição de quem intervém. No entanto, as intervenções do pós-Guerra Fria
têm sido todas dentro deste quadro: a necessidade – em última instância – de reconstruir
Estados soberanos, democráticos e com economia de mercado. Tais opções refletem as
preferências dos interventores, e não daqueles que sofrem a intervenção, o que revela a
imperfeição dos triângulos acima mencionados: em vez de um diálogo orientado no sentido
de colocar os interventores a serviço da paz entre aqueles que vivem na região em conflito,
o que ocorre de fato são imposições de opções por parte dos interventores. E até se tratando
de opções feitas pelas populações locais, a rapidez com que se implementam estas opções
representam um empecilho para seu sucesso: em muitos casos concretos, o que a opção
democrática e a economia de mercado têm significado em sociedades frágeis e recém
saídas de conflitos violentos é um acirramento das divisões e da competição entre os grupos
– caso da Bósnia e da Croácia –, uma reafirmação das identidades de grupo que levaram ao
momento inicial do conflito – os três casos de intervenção na América Central, Nicarágua,
El Salvador e Guatemala –, quando não o aproveitamento da democracia para estabelecer
regimes não-democráticos – caso de Camboja e Libéria-(Roland Paris). Nestes casos todos,
o problema não é a opção por democracia e economia de mercado, mas a falta de preparo
das sociedades receptoras para tais modelos.

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