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25/02/2020 Raquel Rolnik: "A captura da | Uma visão popular do Brasil e do mundo

INÍCIO  GERAL

ENTREVISTA

Raquel Rolnik: "A captura da política


habitacional pela lógica nanceira é perversa"
Arquiteta explicou ao Brasil de Fato a relação entre imóveis vazios, capital nanceiro
e especulação imobiliária

Rute Pina
Brasil de Fato | São Paulo (SP) | 28 de Maio de 2018 às 05:39

Ouça o áudio:

Rolnik recebeu a equipe do Brasil de Fato na USP, onde leciona - José Eduardo Bernardes

O Brasil não tem uma política habitacional que centralize todas as complexidades  e
desa os do tema da moradia. Em vez disso,  desde a década de 1960, o Estado
promove  apenas o nanciamento habitacional. Quem faz a  avaliação é a arquiteta e
urbanista Raquel Rolnik.

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O resultado dessa visão, segundo Rolnik, é que o país não consegue atingir a camada
da população que tem mais necessidade e urgência de moradia. "O governo se
nanceiriza. Todos os cálculos são feitos em cima das expectativas de rentabilidade",
aponta a arquiteta. 

Rolnik recebeu a equipe do Brasil de Fato na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo


(FAU) da Universidade de São Paulo, onde leciona e coordena o projeto do LabCidade.
Ela foi  relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o Direito à
Moradia e  diretora de Planejamento da Cidade de São Paulo entre 1989 e 1992.

Na conversa, a arquiteta explicou a centralidade dos imóveis vazios para no circuito do


capital nanceiro e sua relação com a especulação imobiliária. "Funciona como
garantia. É um ativo que mesmo não sendo usado, como está ali construído e não vai
desaparecer, é capaz de alavancar empréstimo. Isso signi ca que, uma parte
importante do espaço construído hoje, está servindo só para ser garantia e não para ser
usado."

Abaixo, con ra a entrevista da arquiteta na íntegra, em que ela fala também do


conceito de dé cit habitacional e da segregação social, econômica e racial das cidades.

Brasil de Fato: O desabamento do edifício que abrigava uma ocupação no centro de


São Paulo evidencia dé cit habitacional na cidade. Você poderia explicar o que
signi ca este conceito?

Raquel Rolnik: Antes mesmo de discutir essa metodologia, está a seguinte pergunta:
quantas casas e apartamentos precisam ser construídos para que as pessoas que hoje
não têm casa própria possam ter? Essa é a questão que está historicamente por trás da
política habitacional utilizada no país, desde do período do BNH [Banco Nacional da
Habitação, em 1964], ou mesmo antes, no período getulista. 

E, desde que o momento que temos uma política habitacional, ela é a construção
de  casas acessadas via crédito nanceiro hipotecário.

A nossa crítica em relação a esse conceito é o pressuposto dele. Quem disse que as
necessidades habitacionais dos brasileiros e brasileiras se resumem ao acesso a casa
própria individual nova, construída por uma construtora ou por uma agência público-
privada? Fazer isso nos impede de pensar outras alternativas de acesso à moradia.

E mais do que isso: muitas das pessoas hoje moram muito mal. Não exatamente em
função das condições especí cas da casa, mas dos bairros onde elas vivem. Uma parte
importante das necessidades habitacionais dos brasileiros, brasileiras e dos imigrantes
estrangeiros é urbanizar ou melhorar as condições de infraestrutura dos bairros
existentes. 

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Esse cálculo me parece que está na raiz de um problema muito mais sério que é uma
política de modelo e pensamento únicos. E que, pela natureza de crédito bancário à
casa própria, nunca chega em quem precisa — que são as famílias, os indivíduos, as
pessoas mais pobres, sem renda ou com renda totalmente informal, e que também
acumulam muitas outras vulnerabilidades. Seguramente, um crédito nanceiro e
hipotecário, mesmo que subsidiado, não é a melhor solução.

No seu livro Guerra dos Lugares você fala de como a gente não conseguiu  romper,
desde a criação do BNH, essa relação entre desenvolvimento urbano e a
nanceirização e os bancos — independente do governo que esteja do poder.   Por
quê?

Nosso modelo histórico, na verdade, não é uma política habitacional, mas de


nanciamento habitacional. Ou seja, desde o começo, desde a criação do BNH, e
principalmente no momento em BNH assume a gestão do Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço (FGTS) de todos os trabalhadores, a política habitacional é uma
discussão de que condições vão ser utilizadas e como esse fundo vai ser utilizado para
emprestar para construtoras ou indivíduos e famílias poderem comprar sua casa
própria.    

Portanto, não se discute quais as formas de atendimento — quais as necessidades, que


tipo de política se faz —, mas se trabalha no sentido do desenho do nanciamento.
Isso é uma captura total da política habitacional por uma lógica nanceira e de um
jeito muito perverso, a meu ver. 

Se usa o fundo de garantia da aposentadoria dos próprios trabalhadores para nanciar


habitação no país. Com o seguinte pressuposto: como este fundo paga muito menos
juros do que os bancos, então ca muito mais barato. Ou seja, a gente duplamente
onera os trabalhadores.

Se a gente for olhar as necessidades habitacionais, quem mais precisa de política


pública são faixas de renda que não se encaixam no conceito do nanciamento e que só
serão atendidas com políticas a fundo perdido — que, a meu ver, não deveriam ser
políticas de casa própria. 

Essa história atravessou governos petistas, tucanos, governos de todos os tipos. Esse
modelo é o que estrutura a política habitacional e de desenvolvimento urbano. Há
várias versões disso até chegar no Minha Casa Minha Vida, que é a novíssima versão
desse mesmo modelo.

O MCMV conseguiu destravar esse nanciamento. Ou seja, mandou os bancos


colocarem todos os créditos que eles, em tese e por lei, deveriam usar para empréstimo
habitacional. Colocando subsídios públicos do orçamento, junto com o crédito,

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conseguiu-se fazer com que renda um pouco mais baixa pudesse acessar também esse
produto casa própria, ofertado pelo mercado e pelas construtoras privadas.

O problema é que isso signi cou uma superabundância de crédito habitacional,


inclusive, subsidiado em muito pouco tempo. Mais de R$132 bilhões foram
disponibilizados em créditos habitacionais. 

E como a nanceirização se relaciona com a especulação imobiliária?

O efeito disso sobre a cidade e sobre o preço da terra foi tremendo porque, claro, na
hora que você tem tanto crédito solto na praça a competição entre os terrenos para ver
quem é que vai receber os empreendimentos vai car enorme. Então, essa procura das
incorporações, das entidades, das pessoas por terra e por imóvel fez subir o preço das
terras e dos imóveis tremendamente, muito acima do aumento do preços dos salários
que  aconteceu também no Brasil, principalmente, entre 2005 e 2013.

Tem mais um elemento que nos ajuda a entender e articula a ideia da especulação
imobiliária com a discussão da nanceirização. Nesta era de hegemonia do capital
nanceiro sobre o capital produtivo, o governo se nanceiriza. Todos os cálculos são
feitos em cima das expectativas de rentabilidade. 

Neste circuito de hegemonia do capital nanceiro, o espaço construído, seja o imóvel


ou a terra, tem um papel fundamental no circuito nanceiro porque funciona como
garantia. É um ativo que mesmo não sendo usado, como está ali construído e não vai
desaparecer,é capaz de alavancar empréstimo. 

Isso signi ca que, uma parte importante do espaço construído hoje, está servindo só
para ser garantia e não para ser usado. Ou seja, sua função e seu uso é muito mais de
funcionar dentro do circuito nanceiro do que propriamente abrigar usos e pessoas.
Com um pequeno detalhe: esses espaços estão ocupando pedaços da cidade e
impedindo que quem precisa do espaço para morar, trabalhar, instalar uma empresa.

Isso tem tido um efeito muito desastroso nas cidade e ajuda a gente entender essa
coisa absurda de tanto imóvel vazio e tanta gente precisando ter onde morar.

Essa nanceirização da política habitacional teve um efeito de segregação econômica


e racial? 

A desigualdade socioterritorial nas nossas cidades historicamente tem cor. Sempre a


moradia dos mais pobres foi auto-produzida pelos próprios trabalhadores nas
periferias, favelas, quebradas e ocupações deste país. A gente tem uma matriz da
desigualdade socioterritorial, que já foi chamada de exclusão territorial e de espoliação
urbana, que sempre foi carregada por uma marca racial.

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O que o processo de nanceirização hoje ou de hegemonia do capital nanceiro sobre o


capital produtivo acrescenta? Oque é agravado neste processo da nanceirização é
justamente o fato de que a vacância, ou seja, o edifício, o espaço construído  existir  sem
ser usado, pode ter um uso tão funcional para as nanças que isso vai cando cada vez
maior e mais intenso até para dentro do estado.

O governo do Estado, por exemplo, tem um parceiro privado na construção do metrô


da linha amarela. Este parceiro espera ser remunerado com juros de seus investimentos
com a entrada do dinheiro da tarifa do metrô. Mas tem um risco: E se não entrar toda
essa tarifa no período do cálculo dessa rentabilidade? O setor privado não tem risco
nenhum porque o estado criou um fundo garantidor, que são imóveis públicos vazios
que estão funcionando ali para garantir o investimento privado em uma eventualidade
do dinheiro das tarifas não entrarem. Ou seja, o próprio Estado também passa agir de
forma nanceirizada.

Tivemos alguns avanços em legislações, como o IPTU progressivo, em São Paulo, e o


Estatuto das Cidades, no âmbito nacional. Por que, elas não têm o resultado esperado?

A luta social em torno do direito à cidade construiu uma pauta importante desde a
constituição de 1988 e muito marcada pela existência de uma constituinte, de uma
nova ordem legal e urbanística — que era uma pauta institucional, legal, regulatória. A
ideia era que, aumentando as possibilidades de regulação do processo de
desenvolvimento urbano, isso naturalmente poderia se transformar em um processo
redistributivo e mais inclusivo

O problema é que essa regulação se confronta todo dia com um processo e um modelo
de produção da cidade que não é feito para ser redistributivo. Cada implementação se
transforma em um enorme embate e di culdade de conseguir implementar isso na
prática, por mais que exista um marco regulatório. 

No fundo, os mesmos bloqueios que impediram historicamente o acesso à terra e à


moradia para quem mais precisa operam, na cidade, para impedir que instrumentos
que ampliem o acesso à terra e à moradia também sejam implementados. 

É absolutamente necessário não apenas implementar esse instrumento mas lutar com
todas as forças políticas no sentido de constituir mais força política para uma pauta
inclusiva. O que estamos vendo na prática é o contrário. Cada vez mais, nesta
destruição de um imaginário social redistributivo como um todo que vivemos no país,
essa ideia de que a questão da igualdade, da justiça territorial, da redistribuição não
são mais valores que têm que orientar a cidade. O que tem que orientar a cidade é a
competição, produção de mais valor, empreendedorismo — valores que estão, na
verdade, enfraquecendo cada vez mais essa pauta regulatória, que vai sendo
exibilizada.

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Uma das conquistas importantes no campo regulatório, por exemplo, foi ter Zonas
Especiais de Interesse Social [ZEIS] demarcadas no território, reconhecendo a
existência de territórios populares e declarando que estes têm que fazer parte das
cidades.

Ora, o que aconteceu com a pauta das Zonas Especiais de Interesse Social? O próprio
governo não respeita e retira e remove pessoas que moram em uma ZEIS para fazer
outra coisa lá, sem levar em consideração o próprio marco regulatório. Vou dar dois
exemplos: o Templo de Salomão foi construído em um lugar que estava destinado  à
moradia popular. Outro exemplo é a parceria público-privada do Hospital Pérola
Byington, na região dos Campos Elíseos. Quando isso foi contestado, a Procuradoria do
Estado disse que isso era uma interpretação da lei. 

Estamos falando de um processo grave de constituição e não reconhecimento desta


própria regulação que só vai ganhar força se essa regulação tiver legitimidade. Se
tivermos por trás dela uma quantidade su ciente de cidadãos e cidadãs que a
compreendam e a defendam.

Edição: Katarine Flor

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