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Campos Elíseos Vivo

foto: Vitor Nisida

Parceria de fomento

PLANEJAMENTO
ALTERNATIVO
ALTERNATIVO
Realização

propostas e reflexões coletivas


organização:
Danielle Klintowitz, Felipe Moreira e Vitor Nisida
PLANEJAMENTO
ALTERNATIVO
ALTERNATIVO
propostas e reflexões coletivas

ORGANIZAÇÃO:
Danielle Klintowitz,
Felipe Moreira
e Vitor Nisida

São Paulo, 2019


PÓLIS – INSTITUTO DE ESTUDOS, FORMAÇÃO E ASSESSORIA EM POLÍTICAS SOCIAIS EQUIPE INSTITUTO PÓLIS EQUIPE DE APOIO ÀS OFICINAS
Centro de Documentação e Informação (CDI)
• Danielle Cavalcanti Klintowitz: Arquiteta Urbanista • Mosaico - Escritório Modelo da Faculdade de
(Coordenadora Geral) Arquitetura e Urbanismo/Mackenzie
Planejamento alternativo: propostas e reflexões coletivas / Instituto Pólis [et al.], organização Danielle • Margareth Matiko Uemura: Arquiteta Urbanista • ONG É de lei
Klintowitz, Felipe de Freitas Moreira e Vitor Coelho Nisida. – São Paulo : Instituto Pólis, 2019. (Coordenadora Executiva)
• LEVV - Laboratório de Estudos da Violência e
• Natasha Mincoff Menegon: Arquiteta Urbanista Vulnerabilidade Social/Mackenzie

229 p. • Vitor Coelho Nisida: Arquiteto Urbanista • Colaboradores do Fórum Aberto Mundaréu da Luz
ISBN 978-85-7561-091-6 (Publicação Digitalizada) • Felipe de Freitas Moreira: Arquiteto Urbanista Talita Gonsales
Renato Abramowicz
• Francesca Palaferri: Arquiteta Urbanista Natalina Ribeiro

1. Planejamento alternativo. 2. Planejamento conflitual. 3. Planejamento insurgente. 4. Planejamento PALESTRANTES


contra-hegemônico). 5. Lutas urbanas. 6. Direito à cidade. 7. Direito à moradia. I. Título. II. Instituto PROJETO GRÁFICO
• Raquel Rolnik - FAU USP
Pólis. III. Klintowitz, Danielle. IV. Moreira, Felipe de Freitas. V. Nisida, Vitor Coelho. VI. Tanaka, Giselle.
• Giselle Tanaka - UFRJ • Vitor Coelho Nisida
VII. Teixeira, Sandra Maria de Souza. VIII. Pequeno, Renato. IX. Pinheiro, Valéria. X. Fernandes, Pedro. XI.
• Felipe de Freitas Moreira
Lustosa, Geruza. XII. Linhares, Juliana. XIII. Nascimento, Denise. XIV. Graças, Maria das. XV. Silva, Cassia • Sandra Maria Teixeira - moradora da Vila Autódromo,
Rio de Janeiro, RJ • Francesca Palaferri
Aparecida da. XVI. Rubano, Lizete. XVII. Santo Amore, Caio. XVIII. Comaru, Francisco. XIX. Rolnik, Raquel.
• Valéria Pinheiro - Lehab UFC
CDD 307.76 REVISÃO DOS TEXTOS
• Pedro Fernandes - morador do Serviluz, Fortaleza, CE
CDU 316.7
• Geruza Lustosa - Praxis UFMG
• Bianca Tavolari
• Maria das Graças (Morena) - Vila Acaba Mundo, Belo
Horizonte, MG
Esta publicação é fruto de uma reflexão coletiva promovida pelo Seminário Nacional de Planejamento TRANSCRIÇÃO
• Danielle Klintowitz - Pólis
Alternativo, realizado em fevereiro de 2019 pelo Instituto Pólis e com parceria de fomento do CAU/SP. • Eunice Remondini
• Lizete Rubano - FAU Mack
• Cássia Aparecida da Silva - Campos Elíseos
• Caio Santo Amore - FAU USP
• Renato Pequeno - UFC
• Francisco Comaru - UFABC
A MISSÃO DA ARQUITETURA
APRESENTAÇÃO CAU
E URBANISMO DO SÉCULO XXI
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Consolidar
ante fringillaoeget.
processo
Nuncdemocrático
blandit quamnoinBrasil é garantir
justo egestas “o direito Nam
scelerisque. à cidade”
nunc Muitas comunidades pobres, como é vastamente demonstrado neste livro,
a todos os cidadãos. Para o Conselho de Arquitetura e Urbanismo de
lectus, vehicula a pulvinar sit amet, lacinia sit amet tortor. Morbi consectetur São também estão localizadas em áreas isoladas e mal atendidas pelo transporte
Paulo
magna– non
CAU/SP – autarquia
dignissim rutrum.criada
Duis eupela lei federal
risus sodales,12.378/10, também
luctus mauris deve-
vel, egestas público, o que dificulta o acesso a empregos, saúde e educação.
se somar
ante. o “direito
Curabitur ao projeto”
at feugiat orci, velpara constituirmi.
elementum uma sociedade democrática
digna deste nome. Para enfrentar esses desafios, diversos profissionais arquitetos e urbanistas
optaram pelo envolvimento com essas comunidades, assistindo tecnicamente
A obra “Planejamento Alternativo” foi produzida pelo Instituto Pólis com não somente em obras ou reformas de residências, mas também nos processos
Mauris
o apoiovelitdo risus,
CAU/SP tempus
por vitae
meiointerdum eu, pulvinar
de parceria congue
de fomento. dui.uma
Traz Suspendisse
série de para legitimar a posse de áreas ocupadas informalmente por décadas às
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estudos de caso que revelam os sucessos e percalços de arquitetos engajadoslobortis id est a vezes.
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em ouvir Proin nec à
e atender justo libero. Phasellus
população dictum viverra lorem nec semper.
de baixa renda.
Curabitur gravida, neque eu tempus commodo, turpis augue semper leo, Na medida de suas possibilidades, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo
Mas o livro mostra,
vel porttitor principalmente,
lacus velit os esforços
at sapien. Nulla de comunidades
ac efficitur marginalizadas
sem, id porttitor nisl. Nulla tem apoiado estas iniciativas, através do suporte a livros, cursos e seminários e,
por moradia e inserção urbana convenientes.
imperdiet nisi nec lorem auctor bibendum. Phasellus sollicitudin erat orci, a recentemente, destinando parcela de seu orçamento para suportar propostas
lacinia amisatisfação
egestas nec. Aeneanestaenim odio, tempus na área de assistência técnica para habitação de interesse social.
Temos de apoiar iniciativa porqueeget efficitur et,que
entendemos egestas sed
faz parte
dolor.
de Duis
nossa ut tincidunt
missão odio. Maecenas
institucional fomentar oconsequat eleifend aliquam.
acesso à Arquitetura Vivamus
e Urbanismo a Esperamos que esta obra, e outras iniciativas, possam contribuir para o avanço
pellentesque posuere
todos os cidadãos. lectus, ac feugiat est egestas vel. destas práticas de atendimento à população de baixa renda, na verdade, o
principal público a ser alcançado pela Arquitetura e Urbanismo do século XXI.
Uma moradia bem projetada e construída, situada num bairro servido de
equipamentos
Donec blandit urbanos e conectado
felis at risus de ultricies.
ullamcorper forma eficiente
Praesentà amalha viária,
placerat não
mauris.
deveria ser,nulla
Nulla eget comosemper,
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encomendada consequat
CAU/
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BR, indicou que 85% das obras de construção ou reforma no país são feitas Maecenas José Roberto Geraldine Júnior
ac
semultrices augue. de
a assistência Sedumrhoncus lectus convallis eleifend dapibus. Donec cursus
arquiteto. Presidente do CAU/SP
lobortis neque id tempus. Sed efficitur sed dui nec volutpat. Aenean non risus
vitae felis interdum facilisis.
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO
1.1 Introdução.........................................................................................................10 2.4 CAMPOS ELÍSEOS EM SÃO PAULO (SP)
2.41 Campos Elíseos: um território em disputa (Danielle Klintowitz, Vitor
2. EXPERIÊNCIAS PRÁTICAS Coelho Nisida, Felipe Moreira. Instituto Pólis)...........................................134

2.1 VILA AUTÓDROMO NO RIO DE JANEIRO (RJ) 2.42 Campos Elíseos: pela perspectiva de uma liderança (Cassia Aparecida)..........164

2.11 Planejamento conflitual: o Plano Popular da Vila Autódromo 2.5 Reflexões finais de práticas alternativas
(Giselle Tanaka, UFRJ)............................................................................18
2.51 Um balanço das práticas alternativas de planejamento nas grandes
2.12 Vila Autódromo: mais do que luta, um símbolo de memória! cidades brasileiras (Renato Pequeno, UFC)..............................................180
(Sandra Maria, moradora da Vila Autódromo)..........................................54
3. OFICINAS TEMÁTICAS
2.2 SERVILUZ EM FORTALEZA (CE)
2.21 Práticas de pesquisa-ação do LEHAB em Fortaleza: desafios na luta pelo 3.1 Práticas de Assistência Técnica e projeto arquitetônico compartilhado..................190
direito à cidade (Renato Pequeno e Valéria Pinheiro, UFC)........................68
3.2 Estratégias de mobilização e participação...........................................................206
2.22 Serviluz, sinônimo de luta e resistência (Pedro Fernandes, morador)...........92
3.3 Interfaces do planejamento alternativo e políticas públicas habitacionais e
2.3 VILA ACABA MUNDO EM BELO HORIZONTE (MG) urbanas: avanços, limites e desafios Estratégias de mobilização e participação....222
2.31 Práticas em assessoria técnica: a experiência do PRAXIS-EA/UFMG na Vila
Acaba Mundo
(Geruza Lustosa, Juliana Linhares, Denise Nascimento, UFMG)...............106
2.32 Vila Acaba Mundo e os desafios da representação
Maria das Graças (Morena, moradora).................................................126

8 9
INTRODUÇÃO

No cenário de crise econômica e de recrudescimento das ações do Estado, Esta publicação é fruto dos debates, das análises e trocas que ocorreram
tem se agravado a situação de vulnerabilidade das famílias de baixa renda durante o evento organizado pelo Pólis em fevereiro de 2019 com parceria
no Brasil. Não à toa, há um crescimento do número de pessoas vivendo de fomento do CAUSP1. O seminário foi estruturado a partir de experiências
em territórios vulneráveis, sejam eles favelas, cortiços ou ocupações. Esse locais de planos alternativos e/ou projetos coletivos que foram ou estão sendo
crescimento é ainda mais significativo nas grandes cidades, mas também desenvolvidos em quatro cidades brasileiras: Belo Horizonte, Fortaleza, Rio
está presente em municípios médios de todo país. Assim, intervir em territórios de Janeiro e São Paulo. Essas experiências trazem para a cena da arquitetura
com esta natureza de modo articulado, inclusivo e participativo é um desafio e do urbanismo ferramentas importantes para a formulação de políticas
central para a atuação do profissional de arquitetura e do urbanismo em públicas e de projetos que enfrentam de forma interdisciplinar e politicamente
âmbito nacional. engajada, o desafio posto.

Remoções forçadas e projetos públicos que ignoram a existência de populações Foram convidadas lideranças locais para representarem suas respectivas
locais e suas demandas têm provocado processos de resistência, que buscam comunidades e apresentarem as práticas alternativas de planejamento e
repensar o território e propor formas alternativas de intervenções, as quais de projeto junto a técnicos e acadêmicos que acompanharam os processos
sejam pensadas pelos próprios moradores com apoio de técnicos ligados a em cada cidade. Além de promover uma reflexão crítica e de capacitar os
vários perfis e disciplinas profissionais e acadêmicas. Esses processos têm sido estudantes e profissionais de diversas áreas, o evento abriu a possibilidade
denominados por estudiosos de Planejamento Alternativo ou Planejamento de debater o tema e criar uma rede multidisciplinar de instituições ligadas
Contra Hegemônico. a este novo modo - o Planejamento Alternativo - para reflexões contínuas e
profícuas sobre as ações desenvolvidas em diferentes contextos do país.
Por reconhecer e valorizar a importância de tais processos de resistência para
o planejamento urbano brasileiro e para as lutas relacionadas ao direito à Como esforço de síntese e organização de todo o conteúdo discutido durante
cidade, o Instituto Pólis propôs construir uma ampla reflexão sobre o tema os três dias de evento, esta publicação é composta por duas partes. A primeira
através do seminário “Planejamento Alternativo: alternativas participativas, reúne avaliações críticas a respeito das quatro experiências de planejamento
inclusivas e insurgentes” e também de sua publicação resultante, o livro digital alternativo ou contra-hegemônico:
“Planejamento Alternativo: propostas e reflexões coletivas”.

1 - A realização do Seminário de Planejamento Alternativo foi a atividade principal da proposta


pactuada Termo de Fomento Nº003/2018-CAU/SP

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• Campos Elíseos Vivo (São Paulo): construção de um plano com A segunda parte da publicação reúne a sistematização das três oficinas
moradores do bairro Campos Elíseos a partir da iniciativa do Fórum temáticas que ocorreram no dia de encerramento do mesmo evento. Elas
Aberto Mundaréu da Luz, uma articulação de dezenas de entidades que tinham como objetivo avançar em pontos estratégicos para a construção de
propuseram um processo de resistência às remoções no centro de São políticas públicas mais ancoradas aos desejos e necessidades da população
Paulo a partir da formulação de uma contraproposta aos projetos oficiais; que vive em áreas de grande vulnerabilidade socioterritorial, quais sejam:

• Plano Popular da Vila Autódromo (Rio de Janeiro): experiência • Oficina 1- Práticas de assistência técnica e projeto arquitetônico
premiada internacionalmente que construiu um plano alternativo à compartilhado;
remoção da comunidade, ameaçada pelo projeto do parque olímpico do
Rio de Janeiro e de tantas outras grandes intervenções públicas; • Oficina 2 - Estratégias de mobilização e participação e

• Comunidade Serviluz (Fortaleza): experiência de resistência de • Oficina 3 - Interfaces do planejamento alternativo e políticas públicas
uma comunidade litorânea em uma zona de fronteira da especulação habitacionais e urbanas: avanços, limites e desafios.
imobiliária de Fortaleza, Ceará. e que tem sido assistida pelo Laboratório
As oficinas participativas foram mediadas pelo Instituto Polis e pelo Mosaico,
de Estudos da Habitação (LEHAB);
escritório modelo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie,
• Vila Acaba Mundo (Belo Horizonte): traz reflexões sobre a experiência com participação de parceiras e parceiros do Fórum Aberto Mundaréu da Luz.
de projeto compartilhado que vem sendo desenvolvida pelo grupo de
pesquisa da UFMG Praxis, em uma vila da cidade Belo Horizonte.

Cada palestrante acadêmico escreveu um texto que trouxesse as principais


questões da experiência local, apresentando seus desafios, as conquistas e
as limitações observadas. Às moradoras e aos moradores, foi requisitado um
relato sobre o plano ou projeto, a partir de sua visão, de suas experiências,
suas vivências e de seu envolvimento no processo.

O Instituto Polis ofereceu total liberdade para as autoras e autores quanto


à abordagem e formato do texto, podendo ou não optar pela linguagem
acadêmica. Assim, todo conteúdo dos textos (incluindo as reflexões, dados e
imagens) são de responsabilidade de suas respectivas autoras e autores.

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PLANEJAMENTO
ALTERNATIVO
ALTERNATIVO

EXPERIÊNCIAS
PRÁTICAS
RIO DE JANEIRO - RJ
VILA AUTÓDROMO
PLANEJAMENTO CONFLITUAL:
O PLANO POPULAR DA VILA AUTÓDROMO
Giselle Tanaka

INTRODUÇÃO e ser urbanizada ao mesmo tempo, mesmo Figura 1. Foto aérea com a localização da Vila Autódromo.
com as obras das Olimpíadas previstas para
No contexto da realização das Olimpíadas o terreno adjacente às moradias. O Plano
no Rio de Janeiro, a luta dos moradores também responderia a uma provocação do
da Vila Autódromo contra a remoção, se prefeito da cidade, que disse que os moradores
tornou emblemática no país e também estariam apenas “sendo do contra”, sem
atingiu ampla repercussão internacional. propor qualquer alternativa. Para as defensoras
Esse alcance se deve a vários fatores. Dentre públicas do Núcleo de Terras e Habitação
eles, a elaboração do “Plano Popular da Vila (NUTH/Defensoria Pública do Estado do Rio
Autódromo: plano de desenvolvimento urbano, de Janeiro), o plano seria uma peça importante
social e cultural” ganha destaque. É um plano para a defesa jurídica das famílias contra a
de desenvolvimento urbano, social e cultural, remoção. O NUTH já havia elaborado um
desenvolvido pelos moradores com a assessoria documento com apoio de assessores técnicos,
técnica de universidades, ganha destaque. O entregue ao Comitê Olímpico Internacional,
Plano Popular se tornou um instrumento de luta que demonstrava não haver argumento
política. consistente para a remoção da Vila no contexto
O objetivo inicial do Plano Popular da Vila das Olimpíadas1.
Autódromo, tal como demandado pelas Para a universidade, além de assessorar as
lideranças da comunidade, foi mostrar que famílias na defesa de seus direitos, seria
a comunidade poderia permanecer no local uma forma de demonstrar a possibilidade Fonte: Foto Agência Brasil/Fotos Públicas

1 - “Notificação ao COI sobre a proposta de remoção da Comunidade Vila Autódromo para definição de um perímetro de
segurança para os Jogos Olímpicos de 2016”, NUTH/Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e Grupo de Apoio
Técnico, 2011.

18 19
de uma construção democrática da cidade, A ELABORAÇÃO DO PLANO comunidade já contabilizava sete argumentos moradores. Na semana seguinte começaram
dispondo ao coletivo popular instrumentos de diferentes, desde o governo César Maia, os trabalhos de organização documental,
planejamento urbano. Através da linguagem POPULAR utilizados pela prefeitura para tentar remover a realização de levantamentos de campo,
técnica do planejamento, uma população Em setembro de 2011, em uma reunião do as cerca de 450 famílias que lá habitavam. Os o cadastro das famílias, e uma agenda de
ameaçada, em condição subalterna, teria Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas moradores vinham resistindo e mobilizando reuniões e oficinas teve início. A associação
condições de enfrentar o poder público aliado do Rio de Janeiro (Comitê Popular Rio), uma amplos apoios. Para além do NUTH, que realizava a mobilização interna, com um grupo
a forças políticas e econômicas poderosas. liderança da Vila Autódromo, Inalva Mendes realizava a assessoria jurídica dos moradores de moradores que estava sempre disposto a
Brito, manifestou que a comunidade precisava contra a remoção desde o início dos anos participar dos trabalhos e facilitar a relação
O Plano Popular respondeu a esses objetivos e entre assessoria e comunidade. As lideranças
de apoio para a elaboração de um plano 1990, os moradores estavam articulados
atingiu um alcance muito maior e inesperado em da associação – neste momento, principalmente
alternativo. O coordenador do ETTERN/IPPUR/ com outros movimentos de luta por moradia,
várias dimensões. Vamos desdobrar algumas Inalva, o presidente Altair Guimarães e
UFRJ2, Carlos Vainer, estava presente e se parlamentares de esquerda e ONGs. Buscavam
delas aqui: mobilização interna da comunidade Jane Nascimento, já bastante envolvidos na
comprometeu a montar uma equipe técnica, no estar presentes em espaços de luta pela moradia
em torno de um objetivo comum, formando um luta pela regularização fundiária e contra
Núcleo Experimental de Planejamento Conflitual na cidade e também em espaços institucionais.
coletivo popular organizado, com um horizonte a remoção há anos – ajudavam a dispor os
– NEPLAC, para elaborar o plano. Em poucos
de futuro compartilhado; conformação de um O coletivo técnico, que passou a ser chamado documentos jurídicos, plantas e dados das
dias foi mobilizado um coletivo técnico, ao
discurso unificado envolvendo movimentos pelos moradores de “equipe do plano famílias, organizando todos os documentos na
qual se integrou o Núcleo de Estudos e Projetos
sociais, entidades apoiadoras da luta contra as popular”, mobilizou professores, pesquisadores associação. Além das lideranças, moradores
Habitacionais e Urbanos – NEPHU, coordenado
remoções, lideranças políticas e universidades; e profissionais multidisciplinares, estudantes e mais antigos traziam seus relatos do histórico
por Regina Bienenstein, e iniciaram-se os
elaboração de um Plano que veio a se tornar ativistas, e definiu, junto com os moradores, de lutas e da relação com os diversos órgãos
trabalhos para a elaboração do plano.
referência para outras lutas urbanas. Além disso, em assembleia, uma metodologia e um públicos – alguns a favor da regularização
o processo de construção conjunta do Plano A primeira visita da equipe de assessoria cronograma que previa que a primeira proposta fundiária, como o NUTH e o ITERJ3, e aqueles
Popular revelou as principais características do à Vila Autódromo aconteceu no início de do plano seria apresentada até dezembro. Na que vinham tentando realizar a remoção, como
projeto dominante para a cidade e demonstrou outubro, quando os moradores manifestaram mesma assembleia foram definidos grupos de o prefeito e os órgãos diretamente ligados à
que havia uma alternativa. que precisavam do plano “para ontem”. A trabalho compostos por assessores técnicos e promoção dos jogos olímpicos.

2 - Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Univer- 3 - Instituto de Terras do Estado do Rio de Janeiro.
sidade Federal do Rio de Janeiro.

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Junto com os levantamentos, as reuniões e As soluções de moradia para realocação, foi anexada ao processo, incluindo dados e do Rio Pavuninha, como realocar as famílias
oficinas de diagnóstico apontaram problemas, tanto destas famílias quanto das famílias em que mostravam que não havia justificativa que moravam em áreas insalubres e aquelas
demandas e possíveis soluções, além de área ambientalmente frágil, foram propostas técnica para tal. O Comitê Popular da Copa atingidas pela via de acesso ao Parque
questões mais polêmicas a serem enfrentadas ao também em mais de um cenário alternativo, e das Olimpíadas divulgou um release para a Olímpico. Estas questões continuaram a ser
longo do desenvolvimento do plano. A primeira para aprofundamento do debate nos meses imprensa, também publicado em suas redes debatidas, com o objetivo de alcançar uma
proposta do Plano Popular foi apresentada seguintes. Essas propostas foram apresentadas sociais, em que a Vila Autódromo apresentava solução coletiva.
em assembleia no dia 18 de dezembro, à assembleia cheia, ocupando o campinho uma alternativa: a remoção não era necessária
Em junho de 2012, uma nova versão do
demonstrando que seria possível a urbanização de futebol da associação de moradores. Em para a realização dos Jogos Olímpicos no Rio
Plano Popular foi apresentada em assembleia,
da Vila Autódromo. O Plano previa mais de uma dezembro de 2011, a Vila Autódromo tinha de Janeiro.
considerada pronta para ser divulgada
alternativa, considerando diferentes cenários. seu plano alternativo, o Plano Popular da Vila
Nos meses seguintes, as atividades de amplamente e para ser entregue à prefeitura.
Alguns moradores defendiam que a Vila Autódromo: plano de desenvolvimento urbano,
elaboração do plano continuaram detalhando A associação de moradores protocolou o
Autódromo deveria ser urbanizada mantendo a social e cultural.
as alternativas e aprofundando as propostas. pedido de uma audiência com o prefeito
área total ocupada até aquele momento, sem
Em outubro, enquanto o plano estava sendo Foram definidos representantes de ruas para para apresentar o plano. O prefeito Eduardo
considerar as obras previstas pelas Olimpíadas
elaborado, o jornal O Globo publicou uma integrar um Conselho do Plano Popular. Paes aceitou receber os moradores no dia
ou o projeto do Parque Olímpico que deveria
matéria anunciando a abertura da licitação, Também foram apresentadas algumas 16 de agosto. O Comitê Popular da Copa e
ser adaptado (havia terreno de sobra para
pela prefeitura, para a concessão pública das propostas preliminares, como demandas por Olimpíadas preparou um release de imprensa,
a readequação do Parque Olímpico sem
obras de implantação do Parque Olímpico. serviços e equipamentos públicos, propostas incluindo um comparativo entre a proposta da
incidir sobre a área da comunidade). Outros
A matéria informava que o edital de licitação para áreas de cultura e lazer. As ações de prefeitura – que pretendia remover aas famílias
moradores defendiam que esta seria uma
previa a remoção da Vila Autódromo, a ser mobilização continuaram a ser desenvolvidas. para um conjunto habitacional do programa
batalha muito grande a ser enfrentada. Diante
realizada até 2013. Imediatamente, o NUTH Havia questões polêmicas internamente, tais Minha Casa, Minha Vida, o Parque Carioca –
disto, o desenho deveria considerar uma via
ajuizou uma ação civil pública para contestar como: onde e em que condições realocar e a proposta do Plano Popular.
prevista no projeto do Parque Olímpico4 que
a vinculação da remoção às obras do Parque as famílias situadas na Área de Proteção
cortava a comunidade, realocando as famílias
Olímpico. A primeira versão do Plano Popular Permanente da beira da Lagoa de Jacarepaguá
atingidas dentro do perímetro remanescente.

4 - Até aquele momento o projeto divulgado publicamente era o vencedor do concurso internacional promovido pela prefei-
tura em conjunto com o IAB/RJ, elaborado pelo escritório de arquitetura inglês AECOM.

22 23
Figura 2. Quadro comparativo entre o Parque Carioca e o Plano Popular. O PLANO POPULAR NA Moradia – MNLM e a Central de Movimentos
Populares – CMP, a Pastoral de Favelas e
MOBILIZAÇÃO PELA VILA organizações pela reforma urbana na cidade.
AUTÓDROMO As lideranças participaram de movimentos
como o Movimento União Popular – MUP,
A Associação de Moradores, Pescadores e que, nos anos 2000, lutava contra ameaças
Amigos da Vila Autódromo (AMPAVA5) foi de remoções na Zona Oeste. Participaram
criada em 1987 para buscar melhorias para o ainda da criação do Conselho Popular, que,
bairro e, desde o início, colocou-se à frente de com apoio da Pastoral de Favelas, reunia
uma luta por direitos. Lideranças da AMPAVA lideranças populares e buscava mobilizar
tinham um histórico de participação na luta apoio técnico e jurídico para regularização
pela redemocratização do país e participaram fundiária de comunidades, e, em 2005,
ativamente da constituição de espaços também participaram ativamente da criação
institucionais de defesa do direito à moradia, do Comitê Social do Pan contra as remoções
como o Núcleo de Terras da Defensoria Pública associadas à preparação da cidade para os
do Estado do Rio de Janeiro (NUTH). Como Jogos Panamericanos. A experiência do Comitê
resultado deste primeiro momento de lutas, a Social do Pan impulsionou a formação, em
Vila Autódromo conquistou a regularização 2009, do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas
fundiária junto ao Governo do Estado, por meio do Rio de Janeiro. Comitês se definiam como
de títulos de concessão de posse6. Diante das espaço de articulação política, compostos por
ameaças crescentes de remoção, lideranças da uma rede de entidades, movimentos e ativistas
Vila passaram a atuar com movimentos de luta reunidos por uma pauta comum relacionada
pela moradia, buscando apoio de movimentos aos impactos dos jogos, principalmente contra
*Fonte: “Rio para R$19,9mi por área de doador de Paes”, O Estado de São Paulo, 6 de outubro de 2011.
como o Movimento Nacional de Luta por a violação de direitos humanos.
Fonte: NEPLAC, 2012.

5 - A associação foi criada com esse nome, gestão posterior retirou o amigos do nome, passando a se identificar como AMPVA.

6 - A área da Vila Autódromo pertencia ao Governo do Estado do Rio de Janeiro.

24 25
A associação mobilizava os moradores e do tráfico de drogas ou milícia, e que lutava Figura 3. Logo Viva a Vila Autódromo – Rio Sem Remoções e Entrega do Plano Popular na
conseguia apoios para a realização de por seu reconhecimento na cidade. Prefeitura do Rio de Janeiro.
pequenas obras de infraestrutura, de esgoto e
A elaboração do Plano Popular foi um mote
drenagem, de melhorias nas ruas e nas áreas
para ampliação da mobilização interna.
de lazer, como o parquinho para as crianças
A cada atividade do plano, formavam-se
e o campinho de futebol. Os moradores
grupos de moradores para passar de casa em
também se organizavam por ruas para realizar
casa, convidando as famílias e informando
pequenas melhorias, como a ponte de acesso
o que estava acontecendo. A assessoria
ao ponto de ônibus, para diminuir o problema
técnica ajudava na preparação de folhetos
dos mosquitos, realizar campanhas de limpeza
de divulgação e informativos. Muitos falavam
e melhorias ambientais. Os moradores da área
no “plano de saneamento” ou “plano para
da Beira da Lagoa buscavam conscientizar
regularização”, relacionando a luta contra
novos moradores sobre a importância de se
a remoção com as principais demandas das
deixar uma faixa de 15m de proteção ambiental
famílias. Muitos também diziam que era um
nos quintais e valorizar a relação com as águas,
plano para mostrar que um outro projeto de
que estavam na origem da comunidade, com
futuro para a comunidade era possível. Nas
os primeiros pescadores que ocupavam a
assembleias, sempre era reservado um tempo Fonte: Entrega do Plano Popular ao prefeito Eduardo Paes, em 16 de agosto de 2012, foto de Renato Cosentino.
região, alguns deles ainda remanescentes.
para que as defensoras públicas do NUTH
A comunidade havia crescido muito nas apresentassem a situação jurídica e tirassem
últimas décadas e muitas das novas famílias dúvidas. As lutas contra as remoções na Junto com o lançamento do Plano Popular, o estava se desenhando no Comitê, um coletivo
tinham pouca relação com este histórico. cidade, nas quais as lideranças da Vila eram Comitê Popular Rio propôs o lançamento da político de design gráfico realizou uma
Tanto a associação de moradores quanto parte constituinte, estavam cada vez mais campanha “Rio Sem Remoções”. A campanha oficina com os moradores. O logo7 adotado
os moradores mais antigos realizavam este presentes também nos espaços internos da teria a luta da Vila Autódromo como emblema, amplamente e as peças gráficas associadas aos
trabalho de valorizar sua história, chamando comunidade. Em muitas assembleias, vinham mas sempre fazendo a relação com todas as valores que os moradores defendiam foram os
as famílias para a organização coletiva. Os lideranças de outras comunidades, de outros comunidades ameaçadas no contexto dos resultados imediatos desta oficina.
moradores afirmavam com orgulho que a Vila movimentos, para dar seus depoimentos, megaeventos esportivos. Enquanto a campanha
era uma comunidade “pacífica e ordeira”, um prestar solidariedade e acompanhar o processo
lugar privilegiado para se viver, sem o controle de elaboração do plano. 7 - Elaborado por Barbara Szaniecki resultado da oficina com moradores.

26 27
A campanha foi lançada junto com o manifesto não se associava a um único movimento ou a A entrega do Plano Popular ao prefeito Eduardo de reeleição, em curso naquele ano), e por
“Viva a Vila Autódromo: Rio Sem Remoções”, algum grupo político específico, mas agregava Paes, em agosto de 2016, teve cobertura da interesses acadêmicos com pouca conexão
para coleta de assinaturas de apoio. O cada vez mais apoios diversos, em distintas imprensa internacional e da mídia alternativa, com a realidade. O prefeito usou o contexto
manifesto foi lançado em marcha realizada frentes. principalmente. Os jornais do Rio de Janeiro de campanha eleitoral como argumento
pela Cúpula dos Povos, organização popular não estiveram presentes. Neste momento, a para não dar uma resposta aos moradores.
Por sua vez, o Comitê Popular Rio se apresentava
paralela à Conferência Rio+20, Conferência prefeitura afirmava que a remoção não seria Comprometeu-se a, passadas as eleições,
como um espaço aberto de articulação
das Nações Unidas sobre Desenvolvimento necessária para os jogos olímpicos, mas sim fazer uma análise técnica do plano. A equipe
política, de denúncia de violações de direitos
Sustentável, que mobilizou movimentos sociais para a implantação das vias previstas no projeto do Plano Popular pediu que fosse constituída
e dos impactos negativos da preparação da
de todo o mundo no Rio de Janeiro. A marcha de mobilidade urbana, apresentado como um uma comissão técnica para avaliar do
cidade para a realização dos megaeventos
da Cúpula dos Povos se concentrou na Vila legado para a cidade. Este foi o argumento plano, composta por entidades profissionais
esportivos. Suas ações se inscreviam em um
Autódromo e, partindo de lá, andou em oficial que constou como resposta à ação civil representativas, definidas em comum acordo.
campo político claro, de esquerda, mas aberto
direção ao Rio Centro, espaço de convenções pública movida pelo NUTH contra a prefeitura O pedido foi negado9.
à múltiplas iniciativas, organizações e pessoas
onde estava acontecendo a conferência oficial e que retirou a remoção da Vila Autódromo do
que quisessem contribuir. Sua composição A equipe do Plano Popular e a AMPVA decidiram
da ONU. edital de licitação do Parque Olímpico.
incluía movimentos de luta por moradia, por constituir a comissão por si mesmas. Foi
A relação entre a violação de direitos dos militantes históricos da luta pela reforma Ao receber os moradores, a equipe do plano denominada “Grupo de Trabalho Acadêmico,
moradores da Vila Autódromo e as Olimpíadas urbana, ONGs com tradição histórica na popular e as defensoras públicas do NUTH, o Profissional, Multidisciplinar – GTAPM” e
começou a ganhar cada vez mais destaque defesa por direitos humanos no Brasil, como prefeito Eduardo Paes tentou desqualificar o composta pelas seguintes entidades: Associação
na imprensa internacional. O Plano Popular a FASE, e outras com atuação mais recente, plano apresentado, reprovando as intenções Brasileira de Antropologia – ABA, Associação
e as ações do Comitê Popular Rio tiveram um novos ativistas, grupos universitários e pessoas da equipe de assessoria. Afirmou que os dos Geógrafos Brasileiros – AGB, Associação
importante papel para esta visibilidade. Ativistas, diversas em busca de uma atuação política. assessores estariam motivados por interesses Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em
estudantes, pesquisadores, representantes de Em suas práticas, construídas pelo coletivo políticos eleitorais (contra sua campanha Ciências Sociais – ANPOCS, Associação
ONGs começaram a procurar pelo Comitê que se reunia de forma assídua nas reuniões
Popular Rio, para se somar às suas ações. semanais abertas, o Comitê foi ganhando uma
Importante ressaltar que a Vila Autódromo identidade, marcadamente na luta contra as
sempre foi bastante aberta às propostas mais remoções e contra a privatização de espaços e 8 - Sobre as campanhas “Rio Sem Remoções: Viva a Vila Autódromo” e “O Maraca é Nosso! Por um Maraca Público e Popu-
diversas de ação política que se somassem à sua equipamentos públicos. Uma de suas principais lar!”, ver Tanaka e Cosentino (2014).
causa, assim como à recepção de jornalistas e bandeiras foi a defesa do caráter de espaço 9 - Sobre a “negociação” travada entre a Vila Autódromo e a prefeitura em torno do plano urbanístico para a comunidade,
pesquisadores. Assim, a luta da Vila Autódromo público e popular do Complexo do Maracanã8. ver Oliveira et al, 2016.

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Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Articulação Nacional dos Comitês Populares da presentes também os movimentos e coletivos passou a se reunir com organizações políticas
Planejamento Urbano e Regional – ANPUR, Copa e Olimpíadas – ANCOP, com objetivo de que já vinham se organizando politicamente e coletivos que “representavam” pautas que
Conselho Regional de Assistência Social – denunciar as violações de direitos relacionadas e que tinham a manifestação de rua como se destacaram nas ruas10. Neste contexto, o
CRESS/RJ, Instituto dos Arquitetos do Brasil – aos megaeventos esportivos no Brasil. Na prática de ação. Assim como tantos outros, os prefeito anunciou o fim das remoções, convidou
IAB, Sindicato dos Arquitetos do Estado do Rio ausência de dados oficiais das remoções ou Comitês Populares da Copa e Olimpíadas e as o Comitê Popular Rio11 para iniciar uma
de Janeiro – SARJ e Sindicato dos Engenheiros mesmo de informações a respeito dos impactos comunidades atingidas levaram suas bandeiras negociação e passou a visitar comunidades
do Estado do Rio de Janeiro – SENGE/RJ. O dos megaeventos esportivos em suas múltiplas para as ruas. Nas cidades-sede da Copa e organizadas contra as remoções.
GTAPM realizou a análise das duas propostas dimensões, as informações reunidas pelas das Olimpíadas, as críticas às obras em curso
A Vila Autódromo foi novamente chamada
para a Vila Autódromo, uma dos moradores e organizações populares em dossiês nacionais foram crescendo. O grito “Não vai ter copa”
para uma audiência, em que, pela primeira
outra da prefeitura, e apresentou um parecer “Megaeventos e Violações de Direitos Humanos se disseminou rapidamente, mostrando o
vez, o prefeito afirmou estar disposto a rever
amplamente favorável ao Plano Popular. no Brasil” – e em sua versão para o Rio de descontentamento popular na priorização de
os planos de remoção. Embora fosse claro que
Janeiro – ganharam cobertura da mídia. Os investimentos públicos para grandes obras,
No ano de 2013, o prefeito passou a afirmar que o prefeito Eduardo Paes estivesse buscando
representantes do governo local, da prefeitura tocadas por grandes empreiteiras, enquanto
a Vila Autódromo seria a única comunidade a contornar a crise política que se instaurava (e
do Rio de Janeiro, do Governo Federal e dos prioridades sociais, como saúde e educação,
ser removida para a realização das Olimpíadas, que levaria à queda do governador do Estado),
órgãos ligados às Olimpíadas passaram a ser estavam sendo deixadas de lado.
mas que a prefeitura atenderia os moradores, sem de fato pretender fazer grandes alterações
questionados pela imprensa, tanto em matérias
oferecendo melhores condições de moradia No Rio de Janeiro, as manifestações voltaram- em sua agenda política, principalmente ligada
publicadas, quanto em coletivas de imprensa,
(no conjunto habitacional Parque Carioca) ou se principalmente contra o governador do ao projeto olímpico, o reconhecimento das
a respeito da real necessidade das remoções e
indenizações justas. O prefeito passou a afirmar Estado, Sérgio Cabral, amplificando denúncias pautas dos coletivos políticos representou uma
sobre o projeto para a Vila Autódromo.
que nenhum morador seria forçado a sair e de corrupção. Buscando “dar uma resposta às vitória das ações e campanhas mobilizadas
que seus direitos estariam garantidos. Estas O ano de 2013 foi também o ano das “Jornadas ruas”, o prefeito da cidade do Rio de Janeiro pelo Comitê Popular Rio e pela organização
afirmações respondiam à campanha do Comitê de Junho”, as manifestações de rua que
Popular Rio, que vinha ganhando destaque na rapidamente se espalharam por todo o Brasil.
mídia internacional e que não poderia mais ser Inicialmente, questionaram o aumento das tarifas
10 - Não se pode dizer que haviam organizações mobilizando as pessoas para levar as pautas para a rua, as manifestações de
ignorada pelos órgãos locais, diante da enorme de ônibus para logo em seguida abrigarem junho de 2013 foram marcadas pelo caráter espontâneo das mobilizações (MARICATO et al, 2013), mas pautas que vinham
dimensão das remoções que estavam em curso múltiplas manifestações de descontentamento sendo construídas em espaços políticos prévios também ocuparam as ruas e, no momento de se buscar dar uma resposta,
na cidade. Junto com outros comitês similares dirigidas aos governos (MARICATO et al, a Prefeitura do Rio de Janeiro buscou identificar grupos e lideranças que atuavam em pautas que ganharam visibilidade nas
ruas para negociação.
criados nas cidades-sede da Copa de 2014, o 2013). Na diversidade de pessoas, movimentos
Comitê Popular Rio formou, ainda em 2012, a e organizações que tomaram as ruas, estavam 11 - Foram chamadas também outras organizações que atuavam contra as remoções, como a Pastoral de Favelas.

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dos atingidos. A visibilidade conquistada pela casas que seriam demolidas com o “SMH” Figura 4. Proposta da Prefeitura após o processo de “negociação”, em somente o “miolo” da
Vila Autódromo alterou a correlação de forças e uma numeração sequencial, sem nenhum comunidade seria mantido.
a ponto de levar a prefeitura a anunciar que iria consentimento das famílias. Reconheceu
rever os projetos até então apresentados, em também a falta de diálogo a respeito das
que a remoção se mostrava como imprescindível alternativas propostas. Nesta audiência,
para a realização das obras olímpicas. informou também que estaria disposto a rever o
projeto de remoção e que abriria uma rodada
A REMOÇÃO E A LUTA SIMBÓLICA de negociações, entre técnicos da prefeitura,
moradores e sua assessoria técnica, para
Ao mesmo tempo em que se constitui como chegar a uma proposta comum.
uma luta pela cidade, em defesa dos bairros
populares, a luta da Vila Autódromo teve como A decisão de participar das negociações foi
base a organização dos moradores na defesa difícil. Havia uma grande desconfiança em
de sua moradia, de seu bairro e modo de relação às intenções do prefeito, mas a maioria
vida. A Vila Autódromo denunciava um projeto dos moradores entendeu que deveria participar
perverso de cidade, onde não havia lugar para do processo. Lideranças de movimentos de
os pobres. Apontava à ausência de justificativa luta por moradia foram contra a decisão por
real para a remoção e reivindicava um já terem acompanhado diversas negociações
tratamento democrático: o direito à informação com o prefeito Eduardo Paes, que carrega um
e a participar da definição do projeto para o seu histórico de mentiras e artimanhas. Negociações
bairro. similares levaram à remoção de comunidades
inteiras (como a Via Parque, também na Zona
Em setembro de 2013, o prefeito Eduardo Oeste, por exemplo). Lideranças de outros
Paes reconheceu que o tratamento dado à movimentos também entendiam que a ameaça
Vila Autódromo não foi correto, reconheceu a da Vila Autódromo não deveria ser tratada
violência da marcação das casas pela Secretaria isoladamente, mas sim na luta conjunta de
Municipal de Habitação, que marcava as todas as comunidades ameaçadas na cidade. Fonte: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2013. Apresentado à equipe do Plano Popular nas reuniões de
“negociação”.

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Figura 5. Folheto comparando o projeto da prefeitura e a proposta do Plano Popular, As reuniões envolveram os moradores, a sendo inviável toda a realocação. A equipe do
apresentado nas reuniões de negociação. assessoria da “equipe do Plano Popular” e Plano Popular apresentou sua proposta, com
do NUTH, que defendiam a permanência das o desenho completo da comunidade, incluindo
famílias e as propostas do Plano Popular. Do as vias de acesso demandadas pela prefeitura,
outro lado estavam os secretários municipais do mostrando, mais uma vez, que a permanência
meio ambiente, habitação, urbanismo, além de de todas as famílias era possível. Ao longo das
outros quadros do alto escalão da prefeitura. reuniões, a equipe da prefeitura não cedeu
Foram reuniões semanais, realizadas ao longo às demandas e seguiu com uma equipe de
de dois meses, antes e depois das quais eram assistentes sociais que pressionava as famílias
realizadas assembleias na Vila Autódromo para a negociar sua saída da comunidade, com a
definir o que seria levado à reunião, apresentar informação de que a remoção seria inevitável12.
e debater o que acontecera na reunião na As lideranças populares exigiram a interrupção
prefeitura e também para definir estratégias dessas ações, mas o pedido não foi respeitado.
para divulgar o que estava acontecendo.
As reuniões foram interrompidas abruptamente
A prefeitura apresentou um desenho pela prefeitura. Houve uma reunião com o
esquemático para a área da Vila Autódromo, prefeito Eduardo Paes em que a equipe do
sem detalhes técnicos, mostrando um conjunto Plano Popular apresentou um novo desenho,
de vias, uma passarela e obras de infraestrutura mais uma vez demonstrando que seria possível
que incidiam sobre a maior parte das moradias. conciliar todas as demandas do Parque
O primeiro projeto apresentado ainda continha Olímpico e a permanência das famílias, mas
uma proposta de drenagem, que implicava a proposta não foi considerada. Sem mostrar
em realocar todas as famílias para subir o sua proposta final, o prefeito convocou uma
greide das vias, com um aterro em toda a reunião com as famílias que seriam atingidas
área, para onde as famílias poderiam voltar pelas obras, sem convidar as lideranças da
depois, em novas unidades construídas. No comunidade e muito menos seus assessores
Fonte: NEPLAC, 2013. entanto, a área seria extremamente reduzida, técnicos. No dia, as famílias excluídas e uma

12 - Ver mais sobre o processo de “negociação” no artigo “A batalha da Vila Autódromo” (OLIVEIRA et al, 2016).

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representante da assessoria técnica conseguiram para negociar, iriam perder os apartamentos de Figura 6. Mapa da Resistência
forçar a entrada. O prefeito apresentou três três quartos, que eram poucos. Além disso, a
alternativas aos moradores: (i) a mudança para prefeitura atuou para fragilizar o apoio jurídico
o apartamento do MCMV, (ii) indenização com da comunidade, trazendo o Defensor Público
valor de mercado, considerando o valor da Geral para intervir em favor da proposta da
terra, e (iii) permanência com urbanização na prefeitura, contra as defensoras públicas do
área remanescente da comunidade. NUTH, que representavam as famílias. A cada
dia, as notícias de mais famílias negociando
Os moradores saíram muito divididos. Muitos
chegavam à associação de moradores.
consideravam se tratar de uma vitória. A
prefeitura já vinha atuando internamente A remoção começou em março de 2014,
na divisão das famílias, com profissionais iniciando pelas duzentas famílias que aceitaram
diariamente em contato com os moradores. o apartamento no Parque Carioca. Até este
Representantes das famílias que aceitaram o momento, a prefeitura não havia apresentado
acordo começaram a passar de casa em casa, o projeto de urbanização para a área
em um processo de tentativa de convencimento remanescente, conforme havia sido prometido.
para a negociação individual. Depois dessa Em campo, continuava afirmando que ninguém
reunião, um micro-ônibus com assistentes sociais permaneceria na Vila Autódromo. A prefeitura
passou a chegar diariamente na comunidade. conseguiu ainda derrubar a liminar que impedia
Acompanhadas da guarda municipal, as demolições na comunidade. O NUTH havia
assistentes pressionavam as famílias a realizar conseguido a liminar e as famílias resistentes
as negociações. Segundo depoimentos consideravam que as casas desocupadas em áreas
diversos, os profissionais a serviço da prefeitura não atingidas pelas obras poderiam ser utilizadas
informavam que o apartamento no Parque em realocações. Com apoio do Defensor Público
Carioca era a única opção, que a remoção era Geral e das famílias que aceitaram negociar13,
inevitável e que, se os moradores demorassem as demolições começaram. Fonte: NEPLAC, maio de 2014.

13 - Sobre o “golpe” do Defensor Público Geral do Estado contra os Defensores Públicos do Núcleo de Terras e Habitação,
ver MENDES, 2018.

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As primeiras demolições abalaram aqueles A prefeitura passou a encontrar resistência Figura 7. Cartaz de divulgação online do primeiro festival #OcupaVilaAutódromo.
que lutavam para ficar, que passaram a buscar para convencer novas famílias a mudar para o
novas estratégias de resistência. O prefeito Parque Carioca. Diante do obstáculo, começou
passou a afirmar à imprensa que até havia a negociar indenizações individualmente. A
aceitado manter parte da Vila Autódromo, mas falta de informações oficiais mantinha o clima
que ninguém mais queria ficar lá. O desafio de medo sobre o que aconteceria com os que
da resistência era mostrar que continuava não negociassem. Os valores das indenizações
existindo, fortalecendo a luta simbólica. não eram divulgados. Pedia-se sigilo às famílias,
mas muitas informações chegavam: famílias
Novas lideranças, principalmente mulheres,
que receberam valores milionários, cheques
começaram a atuar em novas frentes:
recebidos diretamente das empreiteiras somados
passaram a realizar reuniões semanais para
aos apartamentos e ameaças de que “o dinheiro
trocar informações, para desmentir boatos
das empreiteiras está acabando”, “se não aceitar
e apoiar-se mutuamente; passavam de casa
esse valor, vai para a desapropriação judicial e
em casa para conversar com quem ainda não
vai ser bem menos”.
havia negociado; acompanhavam as remoções
para denunciar violações de direitos. A equipe Com o aumento das demolições, aumentou
do Plano Popular também acompanhava as o caos na comunidade e a degradação das
remoções, mapeando as demolições, que só condições de vida dos que ficavam. As primeiras
estavam autorizadas a acontecer nas áreas demolições aconteceram com todo cuidado,
de incidência do projeto das vias. Isto não foi respeitando o que era exigido por lei. Mas logo
respeitado. Neste momento, a elaboração e a prefeitura começou a deixar entulhos no local,
divulgação do Mapa da Resistência foi uma a comprometer o abastecimento de água, a
ação importante, já que mostrava que muitas circulação interna, a rede elétrica. Os serviços
famílias ainda lutavam pela permanência: públicos também começaram a ser cortados,
Fonte: Divulgação, Vila Autódromo, 2015.

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Figura 9. Projeto “Remoções têm rosto” por Guilherme Imbassahy, realizado no segundo
#OcupaVilaAutódromo.

Figura 8. Segundo festival #OcupaVilaAutódromo.

Fonte: Foto de novembro de 2015, Rio on Watch.

Fonte: Guilherme Imbassahy.

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diminuindo a coleta de lixo e a manutenção Eram organizados mutirões informativos nas redes sociais e grande repercussão pública A partir de seus moradores, tendo à frente
da iluminação pública. Essas condições foram passando de casa em casa, cafés da manhã mobilizando muitas pessoas. lideranças como Penha, Sandra Maria, Jane,
denunciadas à justiça, acompanhadas de um solidários, aulas abertas de extensão universitária, Sandra Regina, Luiz Claudio e Nathalia,
visitas de jornalistas e pesquisadores. Nestes A proposta do Museu das Remoções também através de fotos, depoimentos, relatos,
parecer técnico, mas não houve resultado. A
prefeitura também aumentou a presença da encontros, tendo os “ocupas” e as insurgências nasceu nos Ocupas. Inicialmente envolvendo objetos, além de reunir material elaborado
Guarda Municipal na comunidade, que instalou que vinham se multiplicando pelo mundo como estudantes universitários e ativistas, foram criadas sobre a Vila Autódromo (por pesquisadores
um posto permanente. O efetivo na área era inspirações de ação política, surgiu a ideia do esculturas a partir das demolições das casas, e jornalistas), disponibilizados para aqueles
aumentado nos momentos de demolições. “Ocupa Vila Autódromo”. Os Ocupas eram associadas às histórias das pessoas removidas. que procuram a Vila para conhecer sua
festivais culturais que reuniram artistas, músicos, As esculturas foram colocadas no lugar de sua história. Passou a ser também um espaço
Em março de 2015, a prefeitura publicou os coletivos culturais, em ações programadas antiga moradia. O Museu foi crescendo para para conectar a luta da Vila Autódromo com
decretos n° 39.851, 39.852 e 39.853 definindo junto com os moradores. registrar o processo de remoção e resistência. outras lutas pelo Brasil e pelo mundo.
como de utilidade pública para desapropriação
48 casas, forçando a negociação sob risco A partir desses encontros nos Ocupas, surgiam
de desapropriação judicial. A publicação outras propostas e novas ações, como um
dos decretos forçou novas negociações e a mutirão para a reforma do parquinho, que Figura 10. Barricada na entrada da Vila Autódromo; Vigília da Associação de Moradores,
realização de remoções forçadas, inclusive era um espaço em disputa. Os moradores pouco antes de sua demolição.
com violência policial. conseguiram impedir sua demolição mais de
uma vez. Na frente do parquinho já começava
Desde o início das demolições, os moradores a construção de um hotel do Parque Olímpico.
procuraram mobilizar a presença constante Aconteceram novos Ocupas com lançamentos
de apoiadores para fortalecer a resistência e de livros, com mutirão para demarcar um
impedir ações violentas e violações de direitos. terreno para a creche, com comemoração
O clima estava sempre bem tenso e as violências de aniversários dos moradores, entre outras
eram múltiplas e frequentes: desde as ameaças atividades. Em uma delas, surgiu a proposta de
psicológicas, passando pelo trânsito de caminhões uma campanha #UrbanizaJá. Era um desafio
e maquinário pesado que destruía a infraestrutura de internet, em que personalidades e lideranças
das moradias (redes de água e esgoto, energia, cobravam do prefeito o projeto de urbanização
iluminação pública), até a violência direta da prometido e desafiariam outras três pessoas a
Guarda Municipal contra as famílias. fazer o mesmo. O desafio teve grande adesão Fonte: Foto divulgação do Facebook da Vila Autódromo; Glaucia Marinho

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Figura 11. Plano Popular da Vila Autódromo, 2016.

caminhões, a volta da iluminação pública, foram negadas pela prefeitura, a casa da


entre outras reivindicações. As barricadas Dona Penha foi cercada para demolição.
eram constantemente desmontadas pela Apoiadores faziam vigília na casa há dias,
Guarda Municipal e reconstruídas pelos depois da vigília da Associação de Moradores,
moradores na madrugada. e aguardavam a notícia da demolição a
qualquer momento. Dona Penha e sua família
Os moradores também organizaram vigílias
recusaram todas as ofertas da prefeitura.
para tentar evitar a demolição da Associação de
Sabendo que não havia justificativa real para
Moradores e a casa de famílias que resistiam,
sua remoção, não abriram mão de seu direito
enquanto o NUTH atuava judicialmente para
de permanência. Foi recusada também uma
impedir as demolições.
proposta individual de permanência, feita na
No início de 2016, apenas cinquenta famílias véspera e pouco clara quanto a seus termos.
permaneciam na Vila Autódromo, resistindo Isso porque a família, à frente da resistência,
há praticamente dois anos a violações diárias. só aceitaria uma proposta coletiva para todas
Decidiu-se pela elaboração de uma nova que ainda lutavam.
versão do Plano Popular da Vila Autódromo,
Nesse mesmo dia, Dona Penha seria
para mostrar que ainda havia a possibilidade
homenageada na Assembleia Legislativa pelo
da urbanização com qualidade. A atualização
Dia da Mulher. Enquanto a casa já estava
do Plano considerava a nova realidade, com
sendo posta abaixo, o prefeito convocou
menos famílias e com as vias de acesso ao
Fonte: NEPLAC, ETTERN/IPPUR/UFRJ e NEPHU/UFF, 2016. uma coletiva de imprensa para divulgar o
Parque Olímpico já em construção14.
projeto de urbanização da Vila Autódromo.
No dia 8 de março de 2016, praticamente a três Detalhe: os moradores não foram convidados
Os ocupas também ajudaram a mobilizar maquinário da obra do Parque Olímpico. O meses do início das Olimpíadas, depois que para conhecê-lo. Os moradores chamaram,
militantes para momentos de tensão na fechamento dessa entrada foi uma forma efetiva diversas tentativas de negociação individual para algumas horas antes, uma coletiva de
comunidade. Os moradores passaram a de protesto para exigir a retirada de entulhos,
organizar uma barricada para controlar o a reforma do ponto de ônibus (destruído nas
acesso à via principal da comunidade, por obras), a volta da coleta de lixo, a recuperação
onde passavam diariamente caminhões e das vias comprometidas pela passagem dos 14 - Sobre as várias versões do plano, veja reportagem da Rio on Watch: http://rioonwatch.org.br/?p=16827

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imprensa para mais uma vez afirmar o Plano DESDOBRAMENTOS DO PLANO estabelecer a conexão entre as lideranças, continuou a ser apresentado como forma de
Popular e relatar a forma como a prefeitura mas não são centrais. Exemplos destes gerar desenvolvimento urbano na cidade. No
vinha agindo na comunidade. A coletiva dos POPULAR espaços são as reuniões periódicas do NUTH contexto de crise econômica e política pós-
moradores teve grande adesão da imprensa. A resistência da Vila Autódromo e os espaços com comunidades assistidas ameaçadas de 2015, esse modelo tem sido apresentado
remoção e o Conselho Popular, ligado à como forma de captar recursos privados
O prefeito anunciou que iria construir novas de articulação política que se constituíram em Pastoral de Favelas da Igreja Católica, que se na ausência de recursos públicos. Junto
casas no local da Vila Autódromo para todas torno de sua luta se tornaram referência no Rio reúne mensalmente e troca informações sobre com novas propostas de PPPs, vieram novas
as famílias que não negociaram. As obras de Janeiro e no Brasil, alcançando repercussão a situação de cada lugar, incluindo ações de ameaças de remoção e novas frentes de
começariam imediatamente e as famílias que internacional. Esta inserção política modificou solidariedade à famílias e encontros festivos. resistência no Rio de Janeiro.
permaneciam na área da construção das novas as relações internas na comunidade, fez surgir
casas iriam para contêineres, instalados no novas lideranças e vem influenciando as lutas A história da Vila Autódromo, através do A Articulação Plano Popular das Vargens (APP)
local, até a conclusão das novas casas. Estas de outras áreas ameaçadas de remoção. Novas depoimento das lideranças e da equipe do foi constituída por moradores e lideranças da
novas condições fizeram com que algumas lideranças da Vila Autódromo, como Maria Plano Popular, tem sido referência nas reuniões Região das Vargens, zona oeste do Rio de
famílias aceitassem a remoção. Havia o medo da Penha Macena, Sandra Maria de Souza, e debates sobre moradia e sobre remoções. A Janeiro, em resposta à ameaças geradas pela
de ver sua casa demolida, em troca de um Luiz Claudio Silva, Sandra Regina Damião ,
15
Vila Autódromo é citada em todos os debates, nova legislação urbanística apresentada pela
contêiner que poderia vir a ser permanente. além das outras já citadas, passaram a estar onde se abrem espaços para avaliações sobre prefeitura: a Operação Urbana Consorciada
presentes em reuniões, eventos, debates sobre os resultados, sobre os processos e o que pode (OUC) e o Projeto de Estruturação Urbana
Algumas famílias, ao ver o projeto, não remoções e direito à moradia e a apoiar ações ser replicado desta experiência. As lideranças (PEU) das Vargens (Projeto de Lei Complementar
aceitaram trocar sua casa por uma habitação locais em outras comunidades. têm estado presentes em reuniões de apoio e n. 140/2015). A prefeitura já vinha tentando
popular de dimensões mínimas. Ao final, atos públicos. Comunidades organizadas têm modificar a legislação incidente sobre esse
apenas vinte famílias aceitaram essas Nos últimos anos, vem se formando no buscado a assessoria do NUTH e os apoiadores território, visando atender interesses fundiários
condições. As casas foram entregues pela Rio de Janeiro uma rede de articulação de da Vila Autódromo para sua luta. Também e imobiliários, principalmente através do
prefeitura uma semana antes do início dos lideranças populares que se reúne entre si, pedem apoio para elaborar seus próprios aumento do potencial construtivo e do limite
Jogos Olímpicos. Era algo que parecia sem necessariamente passar por espaços planos alternativos. Vale relatar brevemente a
políticos institucionalizados. Alguns espaços de verticalização permitidos. No entanto, as
impossível e, apesar de tudo, foi festejado. proposta do Plano Popular das Vargens, um
institucionais têm sido importantes para modificações propostas anteriormente foram
desdobramento da luta da Vila Autódromo. parcialmente barradas por ações de proteção
Passado o ciclo de megaeventos esportivos, ambiental. A região já tinha um histórico de
15 - Moradoras que já estavam presentes na luta da Vila Autódromo em momentos anteriores, com participação ativa, mas o modelo de grandes intervenções urbanas organização popular em defesa da moradia,
ganham destaque, voz e passam a assumir a frente de mobilizações ao longo da luta contra a remoção. através de Parcerias Público-Privadas (PPPs) com o Movimento União Popular – MUP, do

46 47
qual lideranças da Vila Autódromo participaram na escala da cidade, lutas contra as remoções, uma metodologia que envolvesse essa rede (“morar e plantar”). Os dois eixos combinam
no início dos anos 2000. Esta mobilização grandes projetos urbanos e defesa da de entidades e lideranças e que garantisse as relações urbanas com tradições rurais,
conquistou a demarcação de vinte e nove agroecologia. Moradoras da Vila Autódromo o protagonismo popular, principalmente da refletindo trajetórias e heranças da população
Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS) nas foram convidadas para esta reunião e foi juventude e de mulheres. Por outro lado, a APP que ali habita. Um dos principais desafios foi
edições anteriores dos PEUs das Vargens16. anunciada a intenção de elaboração de um enfrentava um histórico de repressão e ameaças pensar coletivamente como o planejamento
Proposta em 2015, a nova legislação voltou Plano Popular, inspirado em sua experiência. no território, que inclusive envolvia a atuação urbano poderia ser um instrumento de garantia
a ameaçar essas comunidades de remoção e Na fundação do coletivo foram apresentadas das milícias. A elaboração de um plano popular e de valorização desses modos de ocupação
também ameaçava outros territórios, somando cinco denúncias, que depois viriam a constituir foi proposta para mobilizar e unificar pautas identificados no território.
cerca de quarenta bairros populares. os princípios para o Plano Popular: (1) ameaça diversas, como forma de defesa contra as
de remoções e defesa de produtores locais ameaças motivadas pelos interesses de grandes
A APP começou reunindo lideranças locais,
principalmente mulheres, que já haviam
de alimentos (defesa do morar e plantar); (2) proprietários, incorporadoras imobiliárias e PLANEJAMENTO CONFLITUAL
riscos que a privatização do território, através empreiteiras associadas ao poder público. Como
protagonizado lutas anteriores. A articulação A elaboração do Plano Popular da Vila
de parcerias público-privadas, trazia para a no caso da Vila Autódromo, o coletivo popular
reuniu ativistas que participaram do movimento Autódromo se assemelha muito a processos
população; (3) ameaça aos campos molhados pretendia mostrar que havia outra possibilidade
Ocupa Golfe, que denunciou ilegalidades de planejamento participativo, bastante
e várzeas que constituem grande parte do concreta de futuro para a região, que havia uma
relacionadas à construção do campo de golfe disseminados no Brasil pelos movimentos de luta
território; (4) ameaça à conservação ambiental alternativa que respeitava sua população e os
para as Olimpíadas de 2016, representantes por moradia e pelo Movimento Nacional por
de encostas e montanhas; (5) proposição de uma modos de vida locais.
quilombolas que vinham lutando por Reforma Urbana. Os profissionais da assessoria
ocupação intensiva do território incompatível
reconhecimento, organizações agroecológicas, Lançado em 2017, o plano teve como eixos técnica da “equipe do plano popular” traziam
com a infraestrutura, principalmente de água e
coletivos feministas e movimentos de moradia. importantes o reconhecimento de formas um repertório de ação em processos anteriores
de mobilidade urbana.
A primeira reunião, de lançamento do coletivo, tradicionais de ocupação do território de organização popular contra a remoções17, de
foi também um momento político de trazer para O processo de elaboração do Plano Popular (quilombolas e agricultura familiar em área atuação em processos regularização fundiária,
a luta local movimentos sociais, lideranças, das Vargens foi construído pela APP com a de reserva ambiental) e a defesa de novos de planejamento participativo institucionais
políticos e profissionais que vinham apoiando, assessoria técnica do NEPLAC, pensando em modos de vida presentes nas áreas urbanas (como na elaboração de Planos Diretores

16 - Inicialmente eram 30 áreas, mas a Vila Autódromo foi retirada do projeto de lei original e foi objeto de legislação espe- 17 - Principalmente o NEPHU/UFF, que desde os anos 1980 assessora comunidades contra remoções, mas também outros
cífica, que modificada o uso e ocupação da área à época destinada às instalações para os Jogos Panamericanos. integrantes da equipe que passaram por assessorias técnicas, escritórios de arquitetura e órgãos de governo.

48 49
Participativos e Planos de Habitação), conselhos oficiais de transformação daquela parte da sociais conflituosas (VAINER et al, 2016). Os futuro desejado. No caso da Vila Autódromo,
e conferências das cidades, entre outros, tanto cidade a partir de um grande projeto urbano, ritmos e produtos são determinados em função o planejamento foi dirigido para demonstrar
em suas próprias trajetórias pessoais, como a da Operação Urbana do Parque Olímpico, do conflito social, das ameaças e oportunidades a possibilidade de permanência. Outras
partir de referências disseminadas e aplicadas respondendo aos interesses do capital que se apresentam pela ação antagonista. Os questões, como a produção e uso de espaços
nesse campo no Brasil. imobiliário, de proprietários de terras e grupos resultados são também pautados por uma ação comuns, por exemplo, foram colocadas em
políticos da região. estratégica, relacionada à ação política. segundo plano, dada a urgência da primeira.
O processo de elaboração do plano da
Vila Autódromo envolveu a realização de O processo de elaboração do Plano Popular A escala do plano, por sua vez, extrapola A luta da Vila Autódromo ultrapassou a
assembleias, reuniões, levantamentos de possibilitou a elaboração de um espaço a escala local ao se apresentar como uma dimensão local não apenas por confrontar
campo, levantamento documental, oficinas, de construção coletiva da cidade, fundada contestação ao planejamento urbano da um modelo de cidade hegemônico, mas
diversos métodos de discussão e proposição na defesa de direitos. O plano representou cidade. Neste aspecto, a dimensão da terra também por sua inserção nas lutas contra as
de alternativas e tomada de decisões coletivas, também a defesa de um bairro popular, do urbana é central. Contesta-se uma lógica de remoções na prática, no cruzar a cidade para
na escala local. Tiveram como referência um modo de vida que vinha sendo construído pelos produção do espaço urbano determinada por atuar em outros espaços periféricos igualmente
repertório trazido pela assessoria técnica, moradores, em muitos aspectos reproduzindo grandes agentes imobiliários e fundiários, para ameaçados, nas articulações concretas das
considerando também as práticas e dinâmicas relações típicas de assentamentos populares reivindicar a voz das pessoas que habitam e lideranças, na ocupação e criação de espaços
já praticadas pela comunidade local. periféricos, com casas próprias unifamiliares produzem a cidade em seu cotidiano. Ao públicos na cidade e pelo Brasil. No entanto,
em lotes delimitados, mas, em muitos outros, reivindicar seu lugar de moradia e não aceitar no âmbito do planejamento urbano, esta
O que se destaca na história da Vila Autódromo,
diferenciando-se pelas características de o deslocamento forçado para dar lugar ao superação da escala local ainda se limita ao
e remete para a proposição de uma nova
organização coletiva dos moradores – como os grande capital imobiliário, reivindica-se uma campo da contestação.
denominação que permita diferenciar essa
espaços de lazer promovidos pela associação cidade diversa e democrática. O plano, assim,
experiência, é a dimensão do conflito social São diversos os desafios para pensar a
de moradores, a horta comunitária, a Rua extrapola o desenho local para interferir na
como fonte geradora de práticas coletivas, produção da cidade a partir do local e em meio
Beira Rio como um espaço de encontros e cidade dos grandes projetos urbanos.
de ação política e de um sujeito social que ao conflito social em que o agente antagonista
lazer, entre outros.
se coloca em condições de contestar o Justamente em razão disto, o Plano apresenta é o Estado. A luta pela moradia e pela cidade
planejamento urbano da cidade. No contexto A elaboração do Plano da Vila Autódromo limitações. Na dimensão do conflito, mobiliza dirige-se ao Estado, como agente regulador,
da ameaça de remoção, os moradores da Vila diferencia-se de um processo de elaboração de agentes específicos com o objetivo de dar responsável pela gestão e investimentos do
Autódromo se colocaram enquanto sujeitos projeto local ou plano de bairro por estar inserido uma resposta imediata a uma situação de espaço urbano. A questão do papel do Estado
capazes de propor um futuro alternativo para no contexto do conflito. Em primeiro lugar, a ameaça. O tempo limita as possibilidades de é bastante complexa e é pouco explorada nesse
sua comunidade, contrapondo-se aos planos dimensão temporal é pautada pelas relações construção coletiva, de criação e projeção de caso, embora estejam presentes elementos

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bastante ricos para essa reflexão. Em suas Como procuramos apresentar ao longo dessa Referências bibliográficas OLIVEIRA, Fabrício Leal de et al. A Batalha da
múltiplas dimensões, a Vila Autódromo vinha narrativa, o embate entre Vila Autódromo Vila Autódromo: “negociação” e resistência
acionando o Estado e ocupando espaços e Prefeitura do Rio de Janeiro se deu em à remoção. In: OLIVEIRA et al (orgs.).
institucionais. As lideranças e seus apoiadores múltiplas dimensões e continua presente nas GTAPM. Parecer Vila Autódromo: Plano Popular Planejamento e Conflitos Urbanos: experiências
tinham clareza da importância da luta política, lutas contra as remoções que seguem. O da Associação de Moradores, Pescadores e de luta. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2016.
da mobilização da sociedade e da visibilidade debate e as análises sobre o processo, sobre Amigos da Vila Autódromo (AMPAVA), Plano TANAKA, Giselle, COSENTINO, Renato.
pública do conflito. seus alcances e limites, não se esgotam, da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Rio Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do
principalmente porque estamos diante de lutas de Janeiro: GTAPM, 2013.
A Vila Autódromo conseguiu forçar a abertura Rio de Janeiro: movimentos sociais urbanos
sociais em curso. Ao compartilhar e refletir
de um espaço de negociação política, sabendo MARICATO, Ermínia et. al. Cidades Rebeldes: e novas articulações políticas. In: SANCHÉZ
sobre esta experiência, sob o ponto de vista
de suas várias limitações. E ocupou esse Passe livre e as Manifestações que Tomaram et al (orgs.). A Copa do Mundo e as Cidades.
da assessoria da equipe do Plano Popular,
espaço sabendo da importância de conquistar as Ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo: Carta Niterói: Editora da UFF, 2014.
esperamos contribuir para a abertura de novos
força política fora dele para enfrentar uma espaços de criação e contestação, no sentido Maior, 2013. TANAKA, Giselle et al. Viva a Vila Autódromo:
correlação de forças tão adversa. de cidades mais justas e democráticas. o Plano Popular e a luta contra a remoção. Rio
MENDES, Alexandre. A nova luta da Vila
Autódromo e dos moradores que resistem à de Janeiro: Letra Capital, 2018.
remoção: reconstruir a Defensoria Pública TANAKA, Giselle, OLIVEIRA, Fabrício Leal de,
e sua autonomia. In: TANAKA, Giselle et al. SANTOS, Fernanda dos, COLI, Luis Régis. Da
Viva a Vila Autódromo: o Plano Popular e a Vila Autódromo às Vargens: Planos Populares
luta contra a remoção. Rio de Janeiro: Letra na luta contra-hegemônica na cidade. Belo
Capital, 2018. Horizonte: Anais do Seminário Internacional
NUTH/Defensoria Pública do Estado do Rio de Urbanismo Biopolítico, 2018.
Janeiro e Grupo de Apoio Técnico. Notificação VAINER, Carlos et al. O Plano Popular da Vila
ao COI sobre a proposta de remoção da Autódromo: uma experiência de planejamento
Comunidade Vila Autódromo para definição conflitual. In: OLIVEIRA, Fabrício Leal et al
de um perímetro de segurança para os Jogos (orgs.). Planejamento e Conflitos Urbanos:
Olímpicos de 2016. Parecer Técnico. Rio de experiências de luta. Rio de Janeiro: Letra
Janeiro: NUTH/Defensoria Pública do Estado Capital, 2016.
do Rio de Janeiro, 2011.
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VILA AUTÓDROMO:
MAIS DO QUE LUTA, UM SÍMBOLO DE MEMÓRIA!
Sandra Maria Teixeira

A Vila Autódromo é uma comunidade situada em da Tijuca foi se desenvolvendo, surgem os Em 2010, o Censo registrava 1252 apenas de captação de verba para que fosse
Jacarepaguá, na zona oeste do Rio de Janeiro, grandes shoppings, as grandes vias e, com habitantes entre o espaço limitado pelos implementado em toda a comunidade. Porém,
elas, os condomínios de luxo. (TEIXEIRA, muros do Autódromo Nelson Piquet, pela
às margens da Lagoa de Jacarepaguá, em uma 2017, p.151). Lagoa de Jacarepaguá e pela Avenida durante o período de remoção, a Prefeitura
área conhecida como Baixada de Jacarepaguá. Embaixador Abelardo Bueno, corredor destruiu mais este projeto.
A construção do Autódromo de Jacarepaguá viário que serve à região. Em 2013, a
Tem sua origem na década de 1960 como comunidade abrigava cerca de 450 famílias A comunidade seguiu se autoconstruindo
ao lado da comunidade faz com que passem em ocupação consolidada.” (MUNCH,
uma colônia de pescadores, que, às margens a se referir a ela como a “vila ao lado do por meio de mutirões, que organizaram suas
apud, 2017 p.22)
da Lagoa, viviam da pesca e ali moravam. autódromo”. Com o passar do tempo, o ruas, construíram redes de abastecimento
Segundo o relato de alguns pescadores mais nome foi encurtado para Vila Autódromo. Apesar de a comunidade ter sido utilizada de água, redes de fornecimento de energia
antigos, nesta época, o espaço da colônia Com o desenvolvimento da Barra da Tijuca, como local para reassentamento pelo governo elétrica, sumidouros, a sede da associação
era chamado de Ilha dos Pescadores. Na um processo de valorização e especulação do Estado, ela também foi constantemente de moradores, o parquinho das crianças, a
década de 1970, com a construção do imobiliária tem início na região. E o que ameaçada de remoção neste período de quadra onde ocorriam festas comunitárias e
Autódromo de Jacarepaguá e do Rio Centro, ocorre é a remoção de várias comunidades expansão da Barra da Tijuca. No final da campeonatos de futebol masculino e feminino,
a comunidade acelera seu crescimento, já que década de 1980, é fundada a AMPAVA – e onde ficava a mesa de pingue-pongue, onde
que já habitavam há muito tempo nesta área
muitos operários vinham de outros estados ou Associação de Moradores Pescadores e Amigos a garotada se reunia e também competiam
e nas proximidades deste território. E a Vila
de áreas distantes da cidade para trabalhar da Vila Autódromo. Por meio da associação, em campeonatos locais.
Autódromo, acolhe muitas famílias removidas
nestas construções. Nesta época, a região não os moradores se organizaram para obter
de comunidades do entorno após o despejo
possuía infraestrutura de transporte público e a regularização dos lotes e a instalação Quando finalmente a comunidade consegue
forçado de suas casas, de forma covarde e
era bem difícil chegar ali: de redes de esgoto e água. Procurando a que o atendimento à reivindicação por
violenta. A comunidade do Via Parque é um dos
Naquela época, essa região era coberta por exemplos de famílias removidas que receberam CEDAE e a prefeitura diversas vezes. .porém uma linha de ônibus que atendesse a Vila
taboa, vegetação própria de charcos. Aqui acolhida na Vila Autódromo. o saneamento tão sonhado e pedido nunca Autódromo, o ponto de ônibus também é
era um grande charco, coberto por taboas, autoconstruído, uma vez que o poder público
cercado por pequenas florestas, haviam aconteceu. A rede de fornecimento de água
No final da década de 1980, a comunidade
jacarés, garças, capivaras, pássaros, tatus... acolhe mais famílias removidas da foi feita pelos próprios moradores e o sistema ignora totalmente as necessidades desta
Enfim, várias espécies de animais e, é claro, Comunidade Cardoso Fontes e, em de esgoto implementado foi o de sumidouro população. Todas essas transformações do
de peixes. Não havia grandes vias, nem 1994, outras 60 famílias. Porém, estes espaço urbano ocorreram por meio dos
condomínios de luxo ou shopping centers. nos quintais das casas. Anos mais tarde, a
assentamentos são feitos pelo próprio mutirões em que as pessoas se reuniam para
Era um lugar, que apesar de belo, poucos Governo do Estado do Rio de Janeiro. Fiocruz desenvolveria o projeto experimental
queriam para morar, devido à falta de (MUNCH, apud 2017, p.22) de fossa verde, no qual a água saía tratada da melhorar suas condições de vida.
infraestrutura. Aos poucos, porém, a Barra fossa. Esse projeto foi aprovado, necessitando
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Embora a autoconstrução das casas e do se pudessem ser colocadas em um canto para reconhecidos pelo ITERJ (Instituto de Terras contemporâneas pelo direito à moradia
próprio bairro sejam práticas impulsionadas depois ser jogadas em outro e depois outro, até e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro), e à cidade, expondo o caráter perverso
por uma inércia/negligência estatal, é um concedido pelo Governo do Estado e violento de um tipo de planejamento e
justamente essa condição, ou seja, o fato que toda cidade tenha sido construída sem que e o outro pela Secretaria de Habitação e de cidade que assume de forma clara e
de terem se constituído às margens do haja espaço para as pessoas morarem. Assuntos Fundiários do Rio de Janeiro, que contundente seu viés seletivo e excludente.”
Estado e de suas normas, que confere a nos garante o direito de morar nesta terra (VAINER, BIENENSTEIN, TANAKA, OLIVEIRA,
essas experiências um potencial para o Desde o início da história da construção e do por 99 anos, prorrogáveis por mais 99 LOBINO, SÁNCHES,BIENENSTEIN, 2018,
que James Holston chama de “cidadania desenvolvimento urbana da cidade do Rio de anos. Em 12/01/2005, conseguimos que p.104)
insurgente”. (MÜNCH, 2017, p.26) a Câmara Municipal do Município do Rio
Janeiro, uma vez que uma determinada área de Janeiro, através da Lei Complementar Os processos judiciais foram vários e os
Enquanto a comunidade se autoconstruía e se da cidade é construída, recebe infraestrutura n. 74/2005, decretasse uma grande parte argumentos, os mais absurdos. Em um destes
e passa a se valorizar, a população pobre é da comunidade como uma AEIS (Área
organizava, não obteve qualquer apoio do poder de Especial Interesse Social), portanto processos, a comunidade é acusada de cometer
público. Ao invés de preparar a cidade para a removida. Não seria diferente com a expansão destinada à moradia popular. (TEIXEIRA, “dano estético”, ou seja, de não combinar com
população que nela habita, o poder público e a valorização da Barra da Tijuca. Na medida 2017, p.158). a nova imagem nobre que se formava ao redor.
constrói e implementa seus projetos urbanísticos, em que a Barra da Tijuca se desenvolvia, a Felizmente, a Justiça negou estes pedidos.
privatizando e transferindo terras públicas população pobre ia sendo retirada. Utilizavam Apesar dos assentamentos feitos pelo poder
público na Vila Autódromo na década de 1990, Em 1996, após um período de intensas
para o capital privado. Na Vila Autódromo, os mesmos velhos argumentos que sempre chuvas no Rio de Janeiro, a Vila Autódromo
além de não ajudarem no desenvolvimento estão na base das remoções. Argumentavam ela sofre com várias ameaças de remoção que foi mais uma vez ameaçada, agora sob o
e na urbanização, os representantes do que as pessoas estavam em área de risco, que objetivavam forçar a saída da comunidade. Mas argumento de que se tratava de ‘área de
Estado traziam famílias removidas para serem era uma questão de preservação ambiental. a comunidade se organizou e lutou, resistindo risco’. Em 2002, com a confirmação do Rio
às ameaças e pressões, construindo o que, ao de Janeiro como sede dos XV Jogos Pan-
assentadas, o que parece ser uma ação Porém, após retirarem a população pobre, ela Americanos, o argumento que passou a
extremamente contraditória. A contradição está era rapidamente substituída por condomínios longo dos anos, viria a se tornar uma resistência justificar a remoção foi a construção da Vila
no fato de quew, se o poder público promove o de luxo, grandes shoppings, casas de show e histórica e emblemática no processo de disputa Olímpica. (MÜNCH, 2017, p.40-41)
assentamento de cerca de cem famílias em uma grandes vias, o que mostra a fragilidade das territorial e na luta pelo direito à cidade.
A especulação imobiliária aumentava a cada
comunidade, é, simultaneamente, afirmado seu justificativas e do argumento. Apesar dos diversos reveses enfrentados,
a Vila Autódromo protagonizou uma luta dia na região. E, para justificar a retirada da
direito de permanecer neste território. É quase A Vila Autódromo conseguiu resistir a população pobre, eram utilizados os mais variados
heroica e pode-se mesmo dizer que se
inacreditável que este mesmo poder público, todas essas pressões por trinta anos. transformou em símbolo da resistência a um motivos, pretextos que na verdade representam o
algum tempo depois, afirme que estas pessoas Foram muitas as pressões e ameaças, projeto olímpico segregador, que promoveu
vários processos judiciais, porém tivemos desrespeito com o qual a população é tratada.
não têm o direito de morar no próprio local a limpeza sócio-étnica de extensas áreas da
também muitas conquistas ao longo cidade. Teimosa, a Vila Autódromo e seus Expulsa de um lado a outro da cidade, as famílias
onde haviam sido reassentadas, como se a desses anos. Conquistamos dois títulos de moradores constituíram, pelo simples ato de não têm sua origem, história ou vida respeitadas.
vida das pessoas não significasse nada, como Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) recusa, um exemplo emblemático das lutas

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Com o anúncio, em 2009, da realização Este período é marcado por uma série de Entretanto, a Prefeitura seguia firme em seu Janeiro, Inalva Mendes Brito, uma moradora
das Olimpíadas 2016 no Rio de Janeiro, reuniões entre a comunidade e a Prefeitura. O propósito de remoção da comunidade. Também da Vila Autódromo, propôs a elaboração de
o novo prefeito Eduardo Paes (2009-2016)
afirmou a necessidade de remoção de mais poder público tenta convencer os moradores continuava com suas ações coercitivas, com um plano alternativo de urbanização para a
de 3.500 famílias em seis assentamentos de que não era possível urbanizar a área sem ameaças e pressões psicológicas. Além do comunidade. Isto porque, em uma das muitas
populares das Zonas Oeste e Norte da remover as pessoas. E a Prefeitura ainda insistia “motivo” alegado, o poder público municipal reuniões com a prefeitura e com a Secretaria
cidade, entre eles a Vila Autódromo. O
argumento, contido no “Plano de Legado que, a remoção era uma exigência do Comitê também passou a contar com um investimento de Habitação, o prefeito havia provocado a
Urbano e Ambiental” para os jogos, Olímpico Internacional. de capital privado. comunidade a apresentar um projeto alternativo
era a destinação da área da Vila para a que mostrasse que a urbanização era compatível
ampliação das Avenidas Abelardo Bueno O Núcleo de Terras e Habitação (NUTH), Para a construção da infraestrutura e parte
da Defensoria Pública, em conjunto das instalações, a prefeitura realizou uma com a permanência das famílias.
e Salvador Allende. (TANAKA, OLIVEIRA,
BIENENSTEIN, SÁNCHEZ, VAINER, com os moradores, elaborou então o concessão administrativa na modalidade
documento “Notificação ao COI sobre a Parceria Público-Privada, com prazo de Na reunião estava presente o Prof. Carlos
LOBINO, BIENENSTEIN, 2018, p.51) Vainer, coordenador do Laboratório Estado,
proposta de remoção da Comunidade Vila vigência de 15 anos. A única proposta
Autódromo para definição de um perímetro apresentada, portanto, vencedora, foi a Trabalho, Território e Natureza – ETTERN-
O argumento utilizado pelo governo para de segurança para os Jogos Olímpicos do Consórcio Rio Mais, composto pelas IPPUR/UFRJ, integrante do Comitê, que
remover a Vila Autódromo passa a ser a de 2016”, endereçado ao presidente do construtoras Norberto Odebrecht, Andrade se comprometeu a constituir uma equipe
Comitê Olímpico Internacional Sr. Jacques Gutierrez e Carvalho Hosken. A Carvalho técnica para dar apoio à comunidade na
necessidade de construir o Parque Olímpico. elaboração de seu plano. A primeira visita
Rogge, com cópia para a Comissão de Hosken é também a principal proprietária de
Em fevereiro de 2010, após uma mobilização Ética da entidade. (TANAKA, OLIVEIRA, terras do entorno do Parque Olímpico (com da “equipe do Plano Popular” – como viria
dos moradores em frente à prefeitura, o prefeito BIENENSTEIN, SÁNCHEZ, VAINER, histórico de grilagem), portanto, principal a ser designada pelos moradores depois
afirma que a remoção da comunidade Vila LOBINO, BIENENSTEIN, 2018, p. 53-54) beneficiária da valorização imobiliária gerada – à Vila Autódromo para dar início aos
pelas obras. O consórcio é responsável por trabalhos aconteceu em 5 de novembro de
Autódromo estava sendo exigida pelo COI – 2011.” (TANAKA, OLIVEIRA, BIENENSTEIN,
Em agosto de 2011, o resultado do Concurso implantar toda a infraestrutura do Parque
Comitê Olímpico Internacional. Internacional Parque Olímpico Rio 2016, Olímpico e manter a área por 15 anos; além SÁNCHEZ, VAINER, LOBINO,BIENENSTEIN
promovido pela Empresa Olímpica Municipal de construir os três pavilhões que farão parte 2018, p.59)
Logo após essa reunião – e para dar
resposta à provocação do prefeito –, os e organizado pelo Instituto de Arquitetos do futuro Centro Olímpico de Treinamento
do Brasil – IAB, dava direção contrária às (COT), o Centro Internacional de Transmissão Em 18 de dezembro de 2011, foi aprovada
moradores buscaram a Defensoria Pública
e um coletivo técnico de apoiadores com iniciativas da Prefeitura. A proposta vencedora (IBC), o Centro de Mídia Imprensa (MPC), em assembleia dos moradores a primeira
intenção de produzir um projeto que para o Plano Geral Urbanístico para o Parque um hotel e a infraestrutura da Vila dos Atletas versão do Plano Popular de Urbanização
demonstrasse que a permanência da Vila Olímpico, elaborada pelo escritório londrino (que também está sendo erguida na Barra da
Aecom, mantinha a maior parte da Vila Tijuca). (Dossiê do Comitê Popular da Copa da Vila Autódromo, que mostrava que a
Autódromo poderia ser compatível com as
instalações olímpicas. (TANAKA, OLIVEIRA, Autódromo, mostrando a compatibilidade e Olimpíada do Rio de Janeiro, 2015, p.73) permanência dos moradores era compatível
BIENENSTEIN, SÁNCHEZ, VAINER, possível com o Parque Olímpico. (TANAKA, com a urbanização da Vila sem interferir na
LOBINO, BIENENSTEIN, 2018, p.53) OLIVEIRA, BIENENSTEIN, SÁNCHEZ, VAINER, Em outubro de 2011, na reunião do Comitê
LOBINO, BIENENSTEIN, 2018, p. 57) construção do Parque Olímpico.
Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de

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O Plano Popular da Vila Autódromo (PPVA), o prêmio de urbanismo do Deutsche Bank, o conseguiram resistir a este cenário de horror e apartamentos do programa Minha Casa Minha
por sua vez, é o resultado e a expressão da Urban Age Award, após concorrer com outros permanecer no território da Vila Autódromo. A Vida. Também houve, por um lado, casos de
resistência e da defesa dos moradores em
sua luta pela permanência na área. Contém 170 projetos. E, mesmo com essa vitória, o resistência destas famílias preservou parte da idosos que faleceram pouco tempo após saírem
ações voltadas para o desenvolvimento plano foi ignorado pela prefeitura. área de interesse social e afirmou o direito de da comunidade e, por outro, casos de jovens
social, cultural, econômico e urbano habitar em uma área considerada nobre, que que se envolveram com o tráfico ou que foram
abrangendo melhorias urbanísticas A prefeitura atuou de maneira estratégica contra foi construída pelos trabalhadores. Além de ser assassinados por passarem a viver em áreas
dos espaços públicos e do saneamento os moradores, valendo-se da conivência e da
ambiental, todas elas pensadas, discutidas uma grande vitória, a permanência é um marco controladas por milícias. Em todos estes casos,
e decididas pelo conjunto dos moradores omissão da justiça. Serviços básicos como coleta histórico. Estas famílias conseguiram o que até as pessoas reassentadas não se adaptaram à
com o apoio técnico das universidades de lixo, fornecimento de luz, água e entrega de então parecia impossível: morar ao lado de nova moradia e ao rompimento dos vínculos
públicas. Reafirma o direito da população correspondência foram suspensos. A pressão onde estava sendo construída a infraestrutura sociais e culturais que mantinham antes.
à área atualmente ocupada, reunindo psicológica não parou por aí. A prefeitura
propostas técnicas que comprovam tal para as Olimpíadas.
possibilidade como também a da melhoria passou a promover choques de ordem em A moradia adequada está intimamente
que os comércios foram fechados. A atuação As Olimpíadas, entre todos os megaeventos, relacionada com a organização da vida das
das condições habitacionais e ambientais é o mais cruel. Investimentos privados são
lá existentes. Nele, todas as ações surgiram da prefeitura também foi se transformando, feitos no país que a sedia. Promove-se pessoas. Além da distância entre a casa, o
a partir das demandas manifestadas pelos com ações cada vez mais violentas: casas uma ideia de construção da cidade que trabalho e a escola, da dificuldade de mobilidade
moradores e de sua visão sobre seu local sedia o evento, porém estas construções
de moradia. (VAINER, BIENENSTEIN, foram derrubadas com tudo dentro, moradores urbana e da questão cultural, temos ainda as
são feitas com o propósito de atender aos
TANAKA, OLIVEIRA, LOBINO, SÁNCHES, foram espancados pela Guarda Municipal, interesses da especulação imobiliária. E relações sociais de apoio estabelecidas dentro
BIENENSTEIN, 2018, p.112) as casas isoladas dentro do Parque Olímpico a população pobre é removida do local. de uma comunidade. Quando as pessoas são
ainda em construção, separadas do restante Conseguir permanecer neste território com removidas e sua cultura não é respeitada, o que
O Plano Popular da Vila Autódromo se diferencia as reformas urbanas de valorização ao lado
da comunidade. A prefeitura começou a retirar temos é um choque cultural e muitos problemas
por sua metodologia fundamentada no saber da Olimpíada é uma vitória emblemática
todos os serviços públicos do entorno, deixando de resistência em nossa história. Afinal, sociais impactando as famílias.
popular. A comunidade participou ativamente de
para trás um cenário de devastação, com em todos os países por onde a Olímpiada
sua concepção, junto aos técnicos, professores, passa, pessoas são removidas. (TEIXEIRA, No curto prazo, alguns pescadores se
casas esburacadas, escombros abandonados.
pesquisadores e estudantes universitários. O 2017, p.152-153) tornaram alcoólatras, outros morreram de
Parecia um cenário de pós-guerra. Violência,
planejamento urbano coletivo e democrático infarto ou entraram em um estado de profunda
ameaças, covardia, omissões, impunidade, Assim como todas as remoções de nossa história,
se transformou em poderoso instrumento depressão. Algumas mulheres que confiavam
mentiras, corrupção: tudo isto, associado a remoção da população da Vila Autódromo
de luta contra a remoção, seguindo o lema em seus antigos vizinhos para deixar seus
a práticas de suborno e a um investimento também não considera ou respeita os aspectos
“lutar para planejar e planejar para lutar”. filhos, acabaram sem ter como trabalhar,
absurdo do capital privado, levou à remoção culturais da população desalojada. Após a
O Plano Popular foi reconhecido e premiado com muitas dificuldades financeiras. Crianças
de centenas de famílias. Apenas vinte famílias remoção, pescadores foram reassentados em
internacionalmente quando, em 2013, ganhou

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que passaram a se atrasar para as aulas na e física, conivências e cansaço. Tentarão comunidade, trabalhadores de profissões monumentos, lembro de um filme a que assisti
escola ou mesmo que pararam de estudar em subornar com propostas aparentemente variadas – por meio desta resistência pela certa vez: “Uma história de amor e fúria”, de
sedutoras e só tendo uma determinação moradia, compreendemos melhor questões
razão da mudança de endereço, famílias que e convicção do que se compreende como como formação urbana, direito à cidade, Luiz Bolognesi, lançado no ano de 2013. Uma
se desfizeram em razão das divergências de valor real, direito e respeito será possível identidade, pertencimento, patrimônio, frase deste filme ficou gravada em mim: “Meus
posicionamento diante do conflito, ou ainda dizer não ao capital. É necessário que memória esquecimento e história. (TEIXEIRA, heróis morreram lutando contra aqueles que
responda pra si mesmo: Quanto custa a BARROS, VENÂNCIO, 2018, p.108) viraram estátua”.
famílias que negociaram suas casas e, por não história de um povo? Quanto custa a sua
conseguirem administrar bem a indenização, história? Porque, ao negociar sua casa, São nestes processos de resistência e luta (....) em meio à remoção e à resistência
acabaram, em pouco tempo, sem casa, sem estará negociando a sua história, a história da Vila Autódromo, surge o Museu das
de seu povo, que com o passar do tempo por direitos que nossa consciência vai sendo
dinheiro e sem amparo. Remoções. Trata-se de um museu a céu
sofrerá com o apagamento da memória, ampliada, vai sendo forjada na luta. Vamos aberto e compreende-se que todo o
que muitas vezes, não resiste ao tempo, à tendo acesso a conhecimentos que, na maioria território da Vila Autódromo faz parte dele.
No longo prazo, provavelmente teremos o falta de registros e ao interesse da história Afinal, sua proposta é justamente impedir
crescimento desordenado de outras áreas das vezes, não aprendemos nas escolas, nos
oficial que nos é contada. (TEIXEIRA, 2017, o apagamento desta memória. Para que as
abandonadas da cidade. Novas favelas devem p.153) museus ou com os monumentos históricos pessoas que aqui viveram e construíram este
surgir, ao abandono do poder público, sem espalhados por nossa cidade. Nas escolas, lugar não sejam simplesmente esquecidas,
A resistência amplia a consciência. Apenas com episódios históricos de invasões, massacres e para que as transformações da cidade
infraestrutura, onde, aos poucos, as pessoas e do local não sejam capazes de apagá-
vão resolvendo seus problemas mais imediatos, consciência somos capazes de compreender escravidão são ensinados como descobrimento,
las, como tantas outras vidas apagadas
auto-construindo seu entorno e a si próprias, o valor da memória e da história. Quando desenvolvimento, civilização e progresso. Nos ao longo de nossa história. O Museu das
sobrevivendo nesta sociedade desigual. E, após compreendemos nossa história, percebemos que museus somos ensinados a valorizar a cultura Remoções surge como uma esperança e
nossos direitos foram muitas vezes silenciados, daqueles que subjugaram e destruíram a mais uma ferramenta de luta, ele nasce em
construírem suas novas casas, terão que lutar um momento dos mais difíceis de nossa
pelo direito de permanecer nelas. Além disso, nossas memórias foram apagadas e, com o memória, história e cultura de nossos ancestrais. história, um momento em que, a cada dia,
a população de rua aumenta todos os dias e passar do tempo, elas vão sendo esquecidas. Já os monumentos são certamente os piores a prefeitura conseguia levar mais famílias
Aliado à ignorância, o esquecimento fragiliza e maiores instrumentos de silenciamento e embora. (TEIXEIRA, 2017, p.162)
o Estado finge não perceber, reforçando ainda
um povo. Ficamos reféns de um sistema apagamento de memória. São construídos com
mais o quadro de desigualdade. E o legado Em um cenário semelhante a um pós-guerra,
desigual, que nos nega direitos já conquistados. o claro propósito de valorizar os feitos daqueles
dos megaeventos? Vidas destruídas. ruas com escombros, casas esburacadas, ruas
Na medida em que os direitos são esquecidos, que dominaram e escravizaram nossa gente.
Aprendemos com essa luta que, para vencer também deixam de ser cumpridos. Com o passar do tempo, vão transformando sem iluminação pública, caminhões e tratores
o capital, é preciso ter consciência do real
em heróis aqueles que foram fundamentais passando a todo instante, fazendo casas tremer
valor da vida. Porque no fim de tudo, aqueles A resistência da Vila Autódromo foi certamente e rachando paredes. Todos os dias, casas eram
que não conseguirem remover através de um grande aprendizado para todos que no processo de consolidação desta sociedade
pressões psicológicas, ameaças, decretos, participaram: os próprios moradores desta desigual na qual vivemos. Quando penso em demolidas, sem cumprir nenhuma norma de
tratamento sub-humano, violência psíquica segurança. Deixando canos de água quebrados
62 63
e fios elétricos arrebentados, pendurados, É nesse cenário e momento que surge o
Museu das Remoções. Como uma luz,
Referências bibliográficas TEIXEIRA, Sandra Maria de Souza. Resistência,
energizados. E a poeira que se espalhava pelo pelo direito, história e memória. In: CALABRE,
uma esperança de que esta memória não MÜNCH, Marcela. Direitos Humanos e a Lia, CABRAL, Eula Dantas Taveira, SIQUEIRA,
ar, deixando tudo esbranquiçado, como se desaparecesse, não fosse removida e
tivesse havido um bombardeio. colonização do urbano: Vila Autódromo na Maurício, FONSECA, Vivian (orgs.). Memória das
esquecida. Mais do que isso, o Museu das
Remoções nasce como uma ferramenta disputa. Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2017. olimpíadas no Brasil: diálogos e olhares. Rio de
Neste ambiente de destruição e perdas, onde de luta, um instrumento no qual, através Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2017.
TANAKA, Gisele, OLIVEIRA, Fabrício Leal
até as árvores estavam sendo todas cortadas, da história, deste resgate de memórias,
pudéssemos mais do que preservá-las, de, BIENENSTEIN, Regina, SÁNCHES, VAINER, Carlos, BIENENSTEIN, Regina, TANAKA,
o desconforto, a insegurança e os medos Fernanda, VAINER, Carlo,; LOBINO, Camilla,
vão transformando a vida em algo difícil e
utilizá-las para reafirmar nossos direitos e Gisele, OLIVEIRA, Fabrício Leal de, LOBINO,
não permitir que estes fossem esquecidos BIENENSTEIN, Glauco. Uma História de Luta Camilla, SÁNCHES, Fernanda, BIENENSTEIN,
preocupante. A resistência inicia uma série de ou ignorados. (TEIXEIRA, 2017, p.162) e Resistência. In: TANAKA, Gisele, OLIVEIRA, Glauco. A Permanência é Possível: A Elaboração
ações de revitalização de espaços e humores, Fabrício Leal de, SÁNCHES, Fernanda,
O Museu das Remoções defende o lema do Plano Popular. In: TANAKA, Gisele, OLIVEIRA,
que vão desde o embelezamento de áreas de BIENENSTEIN, Regina, BIENENSTEIN, Glauco, Fabrício Leal de, SÁNCHES, Fernanda,
convivência, como o parquinho das crianças e “memória não se remove”. Para nós, é como VAINER, Carlos, CONSENTINO, Renato, BIENENSTEIN, Regina, BIENENSTEIN, Glauco,
os canteiros de plantas, à realização de festivais um grito desesperado ecoando em nossos MEDEIROS, Mariana, MONTEIRO, Poliana VAINER, Carlos, CONSENTINO, Renato,
culturais, com música, teatro, poesia, rodas de corações. É quase um grito de guerra para (orgs.). Viva a Vila Autódromo: O Plano Popular MEDEIROS, Mariana, MONTEIRO, Poliana
capoeira, cinema, lançamento de livros... um que não esqueçamos que a memória de um e a luta contra a remoção. Rio de Janeiro: Letra (orgs.) Viva a Vila Autódromo: O Plano Popular
verdadeiro movimento de restauração da beleza povo deve ser respeitada e preservada. e Capital, 2018. e a luta contra a remoção. Rio de Janeiro: Letra
e da vida daquele lugar, que insistiam em destruir. e Capital, 2018.
TEIXEIRA, Sandra Maria de Souza, BARROS,
Joyce Mendes Gomes, VENANCIO, Alex Dossiê do Comitê Popular da Copa e
Rodrigues. O museu brasileiro, seus quereres Olimpíadas do Rio de Janeiro. Publicado pelo
e poderes, para uma improvável definição – e Comitê Popular das Copas e das Olimpíadas
o caso do Museu das Remoções. In: SOARES, do Rio de Janeiro, 2015, p73. Disponível em:
Bruno Brulon, BROWN, Karen, NAZOR, https://br.boell.org/pt-br/2015/12/10/dossie-
Olga (orgs.). Definir os museus do século XXI: rio-olimpiadas-2016-os-jogos-da-exclusao.
experiências plurais. Rio de Janeiro: ICOFOM –
Internacional Comitê de Museus, 2018.

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FORTALEZA - CE
S E R V I L U Z
PRÁTICAS DE PESQUISA-AÇÃO
DO LEHAB EM FORTALEZA:
DESAFIOS NA LUTA PELO DIREITO À CIDADE
Renato Pequeno - Valéria Pinheiro

INTRODUÇÃO habitacional; (ii) as pesquisas associadas ao de debate passam a ser utilizadas, onde da Copa, e outros que tornaram-se alvo de
Grupo de pesquisa Globalização, Agricultura alguns grupos e mesmo certos atores isolados ameaças de remoção, vinculados às demais
Neste artigo pretende-se resgatar, de maneira e Urbanização, onde a questão da moradia é passam a intervir visando o enfrentamento das situações de violação de direito à cidade e à
breve, algumas das práticas de pesquisa-ação tratada como variável que melhor explicita o disparidades e a redução da exclusão territorial. moradia digna.
conduzidas pelo Laboratório de Estudos da quadro de desigualdades que assola as cidades Neste sentido, a universidade, por meio de seus
Habitação da Universidade Federal do Ceará grupos de pesquisa e extensão, passou a ganhar Neste mesmo período, surgiu a oportunidade
do agronegócio, sejam elas cidades médias ou
(LEHAB-UFC) ao longo dos últimos anos. maior importância, especialmente num contexto de seus componentes ocuparem posições de
centros regionais.
Trata-se de um período de extrema riqueza em que as organizações não governamentais representação da Universidade Federal junto a
e de aprendizado mútuo, seja para aqueles De antemão, vale mencionar que, em Fortaleza, vêm perdendo espaço e poder de articulação. comissões e conselhos municipais diretamente
que compõem o grupo de pesquisadores e o crescimento urbano desordenado, o Ao mesmo tempo, as instituições privadas associados às questões urbana e habitacional.
pesquisadoras do laboratório, seja para as desenvolvimento desigual, a limitada produção passaram a avançar mais na proposição de Desta forma, para além da obtenção de
comunidades, entidades e coletivos junto aos habitacional e as condições precárias de normas a seu favor e na supressão de outras que informação, o acesso direto e presencial aos
quais atuamos. moradia vem sendo temas de discussões desde contrariem seus interesses. Some-se a isso o fato debates, inclusive com a possibilidade de voto
as décadas passadas, revelando uma série de que parte dos antigos movimentos sociais, e pronunciamento, permitiu que o LEHAB-
Criado em 2012, o LEHAB passou a ser um espaço de conflitos entre os diferentes agentes da UFC se posicionasse de maneira crítica frente
entidades e articuladores se institucionalizaram,
de discussão sobre as questões habitacionais do produção social do espaço, perceptíveis em aos desmandos e aos conluios presenciados
seja participando de conselhos, seja atuando
estado do Ceará, especialmente de Fortaleza, suas diferentes escalas. Via de regra, constata- nestas instâncias de participação vinculadas às
diretamente na administração, o que tem levado
dando prosseguimento às atividades que vinham se a aproximação de alguns destes atores em politicas públicas de desenvolvimento urbano e
a um posicionamento menos crítico por parte de
sendo realizadas por seus pesquisadores. seus interesses, notadamente o setor imobiliário, de moradia.
alguns de seus representantes, ampliando ainda
Como universo de investigações que seus a indústria da construção civil e o Estado, este mais os desequilíbrios nos processos decisórios.
componentes vinham realizando desde os anos Para além da atuação nestas arenas, buscou-
último em suas diferentes esferas de governo.
2000, vale destacar: (i) os trabalhos vinculados Frente a esta situação, o LEHAB passou a cumprir se disseminar e informar os conteúdos das
à Rede Observatório das Metrópoles, que Diante dos processos de planejamento um papel especial na conjuntura local, passando discussões em torno de tais processos, visando
tratam da região metropolitana de Fortaleza participativo e da formulação de políticas públicas a compor a Frente de Luta por Moradia, que repercutir junto à sociedade civil as temáticas e
e abordam os processos de planejamento de desenvolvimento urbano e habitacional reúne entidades, comunidades, movimentos propostas em voga, bem como alardear sobre
urbano, seus impactos e as formas de produção conduzidos desde os anos 2000, novas arenas e coletivos remanescentes do Comitê Popular os seus possíveis impactos.

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Vale aqui mencionar o encadeamento e a a pesquisa “Estratégias e instrumentos de se ainda o desenvolvimento de um processo de análise crítica da distribuição espacial dos
complementariedade das pesquisas realizadas planejamento e regulação urbanística voltados à desregulamentação regulamentada, em que o casos de despejos forçados.
desde 2012. Inicialmente, nossos estudos implementação do direito à moradia e à cidade setor privado, por meio de suas entidades de
Atualmente, todos estes estudos convergem
investigativos se voltaram para a avaliação de no Brasil – avanços e bloqueios” deu início às classe e seus consultores, passou a influenciar
para a pesquisa denominada “Regimes
políticas públicas junto à rede Observatório das práticas de pesquisa-ação do Lehab. mais diretamente no conteúdo das normativas
Urbanos”, inserida no Observatório das
Metrópoles, verificando o papel do Programa urbanísticas. Gradativamente percebeu-se a
Tendo como eixos temáticos (i) a dissociação Metrópoles, que procura compreender a
Minha Casa Minha Vida frente às diferentes disseminação das PPPs e a diversificação de
das políticas urbana e habitacional, (ii) o atuação de novas coalizões urbanas no atual
formas de produção habitacional vigentes. No suas formas, requerendo inclusive a ampliação
incremento da segregação espacial mediante contexto de neoliberalismo, na forma como se
caso, especial atenção foi dada para seus arranjos do conceito, conforme sugeriram Morado e
a produção de grandes conjuntos periféricos e dá o empresariamento das cidades.
institucionais, às condições de inserção urbana Freitas (2017). Para além das concessões de
dos empreendimentos, à qualidade dos projetos, (iii) o reconhecimento das transformações nos serviços públicos e de equipamentos, sejam
assim como ao impacto do programa na vida dos movimentos sociais urbanos de moradia, esta elas patrocinadas ou administrativas, aumenta
beneficiários. Mais ainda, por conta da amplitude investigação se deteve no acompanhamento dos o número de operações urbanas consorciadas, DE QUE CIDADE ESTAMOS
do programa, atendendo a diferentes faixas processos de planejamento urbano. Contudo, projetos especiais, outorgas onerosas do FALANDO?
de renda, foi possível melhor compreender as num período em que o contingenciamento direito de alterar o uso do solo, e mesmo o uso
de recursos federais passou a comprometer Para melhor compreender as ações realizadas
condições de estruturação urbana da metrópole de zoneamento especial favorecendo o setor
o andamento dos grandes projetos, restou pelo LEHAB, é fundamental conhecer como tem
cearense, graças à sua distribuição espacial imobiliário por meio de maiores ganhos em
como opção atuar junto à regulamentação se dado o processo de estruturação urbana de
dispersa, periférica, fragmentada e segmentada. termos de potencial construtivo.
das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), Fortaleza, município que está inserido em uma
Posteriormente, para além da avaliação de na revisão da Lei de Uso e Ocupação do Paralelamente, diante dos impactos visualizados das maiores regiões metropolitanas brasileiras
políticas públicas, as práticas assumiram novo Solo (LUOS) e na contestação de uma série em decorrência destas práticas, o número nas últimas décadas. Como ponto de partida,
caráter, voltando-se para incidir na própria de projetos especiais submetidos à comissão de remoções forçadas e violentas aumenta a análise da distribuição espacial das atividades
formulação do programa. Tendo como objetivo permanente do plano diretor. progressivamente. As remoções também se econômicas, na forma como se associa à
analisar como os processos e mecanismos de tornam tema de pesquisa-ação. Neste sentido, restruturação produtiva, aponta para algumas
inclusão socioespacial de assentamentos urbanos Pouco a pouco, foi possível verificar como as com o apoio do Escritório de Direitos Humanos dinâmicas que caracterizam os espaços da
precários e de produção habitacional de interesse diferentes formas de parcerias público-privadas Frei Tito de Alencar (EFTA) e da Defensoria produção na Região Metropolitana de Fortaleza
social vinham sendo utilizados pelo poder local (PPPs) passaram a ganhar espaço e peso no Pública do Estado do Ceará, partiu-se para (RMF) em suas transformações e nos seus
em suas políticas e em seus programas e projetos, financiamento do desenvolvimento urbano e na a criação do Observatório de Remoções de deslocamentos.
no contexto de implementação de infraestruturas, implementação de políticas públicas. Verificou- Fortaleza, que começou a desenvolver uma

70 71
Com relação ao setor secundário, para além incorporação imobiliária, dado que os mesmos novos investidores. Para citar alguns dos mais sudoeste. Posteriormente, ao longo dos anos
da supressão de antigas plantas industriais, passam a abrigar edifícios empresariais, centros recentes, mas sem a intenção de esgotar o amplo 1990, quando se iniciou a municipalização
verifica-se, desde os anos 1970, a saída de médicos, universidades privadas e complexos leque: a Arena Castelão, o Centro de Eventos, o das políticas de moradia de interesse social,
muitas indústrias de Fortaleza para municípios de múltiplos usos. Neste sentido, ganha Terminal Portuário de Passageiros, a ampliação os empreendimentos diminuíram no tamanho
periféricos da RMF. Também se constata a importância o eixo ao sudeste que estrutura do aeroporto, o Aquário, grandes obras viárias e passaram a ser construídos em pequenos
chegada de empresas provenientes da região o deslocamento em direção aos condomínios e redes de abastecimento de água destinadas fragmentos de tecido urbano. Some-se a isso
concentrada, as quais passaram a compor novas horizontais e loteamentos fechados. para setores estritamente turísticos, dentre outros, o início das obras de urbanização de favelas
áreas, como os distritos industriais municipais sendo que estes equipamentos já se encontram que contribuem com a maior dispersão das
Constata-se ainda o espraiamento da atividade
de diferentes portes, os corredores ao longo em processo de concessão. intervenções, ainda que as escolhas tenham
turística ao longo do litoral desde a capital, nas
das vias regionais e os complexos industriais direções leste e oeste, trazendo fortes impactos As condições de moradia correspondem às sido concentradas nas áreas mais valorizadas.
portuários. Tudo isso permite a apropriação de sobre comunidades tradicionais. Via de regra, os variáveis que melhor explicitam as desigualdades Mais recentemente, desde meados dos anos 2000,
investimentos públicos feitos em infraestrutura e empreendimentos turísticos têm se apropriado que assolam Fortaleza. Só na capital cearense, com a recuperação das políticas públicas voltadas
logística pelo setor privado produtivo. de maneira indevida dos elementos naturais, 856 assentamentos urbanos informais são para a produção habitacional através do Programa
Quanto ao setor terciário, observa-se, no privatizando seu acesso e reforçando padrões reconhecidos pela prefeitura, totalizando quase Minha Casa Minha Vida, retoma-se a produção
mesmo período em tela, um amplo crescimento de segregação. Realce para as obras de 1,1 milhão de pessoas. Ainda que as favelas em larga escala nas mesmas localizações dos anos
ao longo de eixos viários convergentes para o infraestrutura e aos equipamentos construídos predominem, outras formas de precariedade 1960, reforçando o processo de conurbação entre
centro tradicional, marcados pela progressiva pelo Estado, atuando como indutores desta têm se expandido, como áreas de risco, cortiços, Fortaleza, Caucaia e Maracanaú, evidenciando-
implantação de shopping centers. Estes, atividade, via de regra com recursos obtidos junto loteamentos clandestinos e até mesmo conjuntos se a oposição entre o eixo de segregação
juntamente a edifícios institucionais, revelam aos organismos internacionais. Neste quadro, a habitacionais produzidos pelo município, seja voluntária ao sudeste e o outro de segregação
um processo histórico de movimentação das presença de resorts e de novos empreendimentos pela situação fundiária irregular, seja pelas involuntária ao sudoeste. Além disso, municípios,
atividades do centro tradicional, inicialmente imobiliários demonstram o atrelamento do péssimas condições de habitabilidade no que diz como Pacajus e Horizonte, também passaram a
para os bairros ao leste e, posteriormente, para o turismo aos grandes incorporadores e aos respeito à construção e à infraestrutura disponível. contar com novos conjuntos do PMCMV, o que
empresários da construção civil.
eixo sudeste. Vale apontar que estas grandes vias Em resposta ao problema da moradia, vale trouxe graves problemas de inserção urbana. Da
se diferenciam segundo os padrões de consumo Para tanto, a realização de obras de infraestrutura mencionar que, desde os anos 1960, ocorreu a mesma maneira, cabe apontar o impacto das
da população situada no entorno, bem como em e equipamentos construídos pelos governos implantação de grandes conjuntos habitacionais obras de urbanização de assentamentos precários
relação aos respectivos polos que orientam cada estadual e municipal, com recursos obtidos representativos do período do Banco Nacional pelo Programa de Aceleração do Crescimento,
um dos eixos na direção periférica. Destaque para mediante empréstimos junto a organismos de Habitação (BNH), o que promoveu a beneficiando, ainda que parcialmente, cerca de
os vínculos entre os eixos de comércio e serviços à internacionais, deixa claras as intenções de atrair expansão da metrópole na direção sul e 111 comunidades só em Fortaleza.

72 73
Entretanto, com o crescente déficit habitacional, PRÁTICAS DE PESQUISA-AÇÃO funcionando como instância de consulta e (i) concessão de licenciamento prévio para
implantação de usina de asfalto móvel
com a inadequação domiciliar aviltante e frente assessoramento da gestão em questões relativas
às tendências de retração dos investimentos DO LEHAB à política de desenvolvimento urbano, apesar das
nas oficinas do Urubu, desconsiderando
impactos à saúde da população vivendo
públicos no setor, o cenário passa a ser dos Diante deste cenário, o Laboratório de Estudos da graves denúncias que existem a respeito de sua naquelas proximidades, assim como o fato
mais pessimistas. Por um lado, expande- Habitação adaptou suas estratégias de pesquisa atuação. Neste espaço, cujos membros nunca de que este terreno corresponde a uma Zona
Especial de Interesse Social do tipo 3 (ZEIS
se o processo de favelização nas periferias, de modo a conciliar o acompanhamento, a foram eleitos, mas sempre foram indicados, e 3), devendo ser destinado à implantação de
avançando nos municípios vizinhos à capital; por interferência em espaços de planejamento cuja composição não é atualizada com agentes habitação de interesse social;
outro, as áreas de ocupação melhor localizadas institucional, a construção e o exercício cotidiano contemporâneos do debate e disputa da cidade,
(ii) aprovação de edificações multifamiliares
enfrentam diversos problemas, dentre os quais: de práticas de planejamento alternativo. A são votados projetos do interesse do capital que extrapolam os limites de altura e os
adensamento excessivo via autoverticalização partir das pesquisas realizadas pelo LEHAB, imobiliário, colocados em pauta pela Secretaria índices de aproveitamento do solo fixados
e ocupação de todo o terreno; crescimento de Urbanismo e Meio Ambiente (SEUMA). pelo Plano Diretor, além de ocuparem faixas
atividades de cunho mais extensionista foram se de preservação permanente;
do mercado informal, inclusive de locação, tornando cotidianas e integralmente associadas Estes projetos ditos especiais, que ultrapassam
decorrendo no encortiçamento e na substituição às análises de dados e reflexões empreendidas parâmetros previstos no Plano Diretor, são (iii) aprovação de empreendimento hoteleiro
de famílias com menor poder aquisitivo por aprovados quase que por unanimidade na CPPD, sobreposto ao Edifício São Pedro, em
pelos/as pesquisadores/as. Sobre isto, citamos desacordo com as diretrizes da instrução de
outras com maior capacidade de pagamento. como exemplos cinco experiências interligadas: sendo o voto do LEHAB/UFC sempre vencido, tombamento;
apesar da apresentação de pareceres externos
Chama atenção que todas estas dinâmicas (iv) aprovação de operações urbanas
(como, por exemplo, os pareceres técnicos do consorciadas que privilegiam tão somente
ocorreram sem que houvesse qualquer processo
ATUAÇÃO EM CONSELHOS MUNICIPAIS Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico – IBDU), o setor privado, sem levar em consideração
de planejamento territorial promovido pelo as comunidades vivendo em assentamentos
DE POLÍTICA URBANA: LEGITIMAÇÃO DO de argumentação técnica quanto ao impacto de
governo estadual, muito menos sob a égide precários no seu entorno; (trecho da Nota
QUE JÁ ESTÁ PREVIAMENTE DECIDIDO mudanças determinadas e da falta de justificativas de Esclarecimento entregue em 09 de maio
de uma agência governamental comandada
OU APOSTA AINDA VÁLIDA NA GESTÃO da prefeitura a respeito de cada iniciativa. de 2017 ao reitor da UFC, pelos professores
pelos municípios. Tampouco ocorreu a busca Romeu Duarte, Clarissa Freitas e Renato
pela compatibilização entre os diversos DEMOCRÁTICA? Trata-se de projetos que comprometem e Pequeno, solicitando posicionamento do
planos municipais de desenvolvimento, Representando a Universidade Federal do Ceará, ameaçam a preservação de nosso sofrido mesmo quanto à esta comissão)
realizados segundo a lógica empresarial e o LEHAB compôs a Comissão Permanente de patrimônio arquitetônico e natural. Além disso,
tecnocrática do planejamento estratégico. Ao as iniciativas desconsideram os efeitos que Nesta comissão, estão presentes representantes
Avaliação do Plano Diretor (CPPD) e o Conselho
invés de colaborarem umas com as outras, o podem vir a causar sobre os moradores das do Sindicato das Indústrias da Construção Civil,
Municipal de Habitação Popular (COMHAP).
que prevaleceu foi a máxima do incentivo à proximidades, dentre os quais destacamos: CREA, Associação dos Geógrafos do Brasil, e,
Vinte e quatro anos após a sua criação pela Lei
competição entre as cidades. por parte do movimento popular, há apenas a
Municipal n. 7.813 de 1995, a CPPD segue
74 75
Federação de Bairros e Favelas de Fortaleza que cidade. De lá para cá, as reuniões estão cada vez
tem sempre se posicionado a favor dos projetos mais esvaziadas e há pouco debate substancial
apresentados pela Prefeitura e pelo mercado sobre a política habitacional. No momento,
imobiliário. Há uma demanda de setores estamos avaliando se é estratégico continuarmos
Figura 12. I Encontro de Comunidades.
organizados da sociedade civil e do Ministério investindo energia neste espaço, já que uma nova
Público para que a Prefeitura cumpra a lei do Plano Conferência de Habitação se aproxima.
Diretor, destitua a CPPD e convoque eleições do
Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano,
pleito este não atendido apesar de estar, há 10 ENCONTROS DE COMUNIDADES –
anos, previsto na legislação, no seu artigo 305, CARTOGRAFIA SOCIAL DA QUESTÃO
inciso VIII. Diante disso, após anos investidos DA MORADIA ABRINDO POSSIBILIDADES
participando da CPPD, apesar de reconhecermos PARA A INSTALAÇÃO DE ASSEMBLEIAS
que a Comissão é um espaço privilegiado para POPULARES
obtenção de informações que a gestão municipal
trata como privadas, o LEHAB decidiu por sua No contexto da realização da pesquisa de
retirada, entregando sua representação. advocacy “Estratégias e instrumentos de
planejamento e regulação urbanística voltados
Já a concepção do COMHAP se aproxima do que à implementação do direito à moradia e à
acreditamos ser um dos melhores formatos para cidade no Brasil – avanços e bloqueios”, com o
uma gestão democrática. Formado por membros apoio da Fundação Ford e do CNPq, realizada
eleitos na Conferência Municipal de Habitação, os em rede com equipes da UFRJ (Observatório
integrantes são representantes de seis segmentos das Metrópoles) e da USP (Labcidade), o LEHAB
diferentes e têm a responsabilidade de deliberar passa a ter uma atuação continuada junto a
sobre a política habitacional de Fortaleza. Talvez movimentos populares. Fonte: LEHAB, 2015.
por isso o espaço nunca tenha funcionado a
contento, tendo sido desprestigiado pela gestão. Avaliando a fragmentação dos movimentos
O único avanço do primeiro ano do Conselho foi sociais, o aumento das denúncias de despejo e
a aprovação do seu regimento interno, mesmo o recrudescimento das ações do poder público
diante do enorme problema de moradia na para efetivar o projeto de cidade pensado

76 77
pelo mercado imobiliário, decidiu-se pela O primeiro Encontro de Comunidades pelo Figura 13. Mapeamento sobre moradia digna construído no I Encontro de Comunidades.
realização de um Encontro de Comunidades, Direito à Moradia contou com a participação
na perspectiva da disseminação de informações de cerca de 150 pessoas, oriundas de 39 dos
e da articulação entre as diversas lutas. 118 bairros da cidade. Entre os participantes,
havia estudantes, técnicos e comunidades,
Esta atividade foi inspirada na experiência da
com a representação de oito instituições de
Escola de Planejamento Urbano e Pesquisa Popular
ensino superior e mais de trinta entidades,
da ONG CEARAH Periferia, que não existe mais.
entre movimentos sociais urbanos, associações
A iniciativa foi construída com a colaboração
de moradores, movimentos ambientalistas e
de diversos parceiros envolvidos com ensino,
ONGs de defesa dos direitos humanos.
pesquisa e extensão sobre questões urbanas.
Após este Encontro, o LEHAB organizou mais
Pensada coletivamente, a metodologia
um. O terceiro e o quarto Encontros já foram
objetivava: promover a elaboração de uma
realizados sob a condução de comunidades e
cartografia de Fortaleza a partir do ponto de vista
entidades da Frente de Luta por Moradia. O
das comunidades, sempre primando pelo diálogo
principal desdobramento destes encontros foi
entre os saberes populares e técnicos; promover
as Assembleias Populares pelo Direito à Cidade
a integração entre diferentes movimentos sociais
(posteriormente o nome foi encurtado para
urbanos e seus apoiadores, que atuam em
Assembleia Popular da Cidade).
processos de planejamento insurgentes; pensar
em estratégias coletivas para agir contra o modelo As Assembleias são espaços autogestionários,
de cidade imposto pelas autoridades locais; e realizados com uma periodicidade mensal e são
principalmente capacitar e  dividir informações a também itinerantes. Servem ao fortalecimento
respeito dos processos de planejamento urbano de demandas locais, ao intercâmbio de
local e sobre as intervenções governamentais, experiências e à socialização de informações.
considerando ainda que se aproximava a data No total, foram realizadas 10 assembleias e, no
para a Conferência Municipal de Habitação, momento, este espaço de articulação encontra-
quando seria eleito o Conselho Municipal de se em reorganização. Fonte: LEHAB, 2015.
Habitação Popular.

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Figura 14. Material de divulgação da Assembléia Popular.

OBSERVATORIO DE REMOÇÕES – mais esta missão só foi possível em razão da


ESPACIALIZAÇÃO, SISTEMATIZAÇÃO parceria que desenvolvemos cotidianamente
E PUBLICIZAÇÃO DAS DENÚNCIAS com o Escritório de Direitos Humanos e
ENCAMINHADAS AOS ESCRITÓRIOS DE Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar
(EFTA). Posteriormente, somaram-se a esta
DIREITOS HUMANOS
iniciativa o Núcleo de Moradia da Defensoria
Durante a realização dos Encontros de Pública do Estado (NUHAM DPE) e o Escritório
Comunidades, sobressaiu-se a temática de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica
das remoções. Foi um tema reiteradamente Popular Dom Aluisio Lorscheider (EDHAL).
colocado pelas comunidades e assessorias ali
A partir dos dados de todas as denúncias
presentes como algo cotidiano, repetido, que
de remoção apresentadas a estes orgãos a
vinha aumentando progressivamente e, muitas
partir do ano de 2009 – dados que foram
vezes com muita violência. Em uma das reuniões,
prontamente cedidos, é importante dizer, foi
alguns moradores trouxeram cartuchos de
possível sistematizar e cartografar estes eventos,
bala resultantes de uma desocupação violenta
distribuídos em mapas temáticos, de acordo com
ocorrida na noite anterior.
variáveis discutidas em coletivo. Os casos foram
Este também era um tema recorrente nas reuniões sistematizados em uma planilha eletrônica, que
da Frente de Luta por Moradia. Apesar da baixa contém os seguintes campos: (i) remoção ou
presença de ocupações nesta articulação, as ameaça; (ii) nome do atingido/comunidade;
demandas por apoio surgiam principalmente (iii) se pertence a algum movimento social; (iv)
a partir dos escritórios de assessoria jurídica data da coleta da informação; (v) localização
popular e da Defensoria Pública. na cidade ou no bairro; (vi) número de famílias
atingidas; (vii) ano de início da ocupação; (viii)
Após apresentação, feita pelo LEHAB, sobre a se houve ordem judicial e/ou administrativa; (ix)
conjuntura da política de remoções violentas se houve violência psicológica e/ou física; (x)
de Fortaleza no IV World Planning School propriedade do terreno; (xi) quem reivindicou
Congress, realizado em 2016 no Rio de Janeiro, a remoção; (xii) quem realizou a remoção; (xiii)
recebemos um convite para organizar um estágio da remoção e (xiv) fonte.
Fonte: LEHAB, 2017. Observatório de Remoções na cidade. Assumir
80 81
Figura 15. Mapeamento produto do Observatório de Remoções. Estas informações são atualizadas de movimentos sociais e seis integrantes de
periodicamente com os novos casos que assessorias populares. O curso foi concretizado
chegam. São também sobrepostas a outros graças ao apoio de vários parceiros e a uma
mapeamentos reveladores das dinâmicas campanha de financiamento coletivo na internet,
socioespaciais vinculadas aos diferentes que contou com a contribuição de 118 pessoas,
agentes da produção social do espaço, de de diversas cidades do país, atingindo 138% da
modo a estabelecer conexões com outras meta estabelecida.
análises realizadas pelo LEHAB.
A metodologia dos encontros buscou aliar
A produção dessas informações sistematizadas o repasse de informações, aulas em campo,
pelo Observatório de Remoções/LEHAB o debate horizontal, a redação de reflexões
mostrou-se de grande importância para tornar dos/as participantes, a leitura de textos, a
o problema visível, para visualizar suas variáveis utilização de mapas. No contexto do curso, os
e para estabelecer correlações com processos mapas foram muito importantes, pois foram
em curso na cidade. É fonte para academia, apresentados como estratégias de luta, como
imprensa, para órgãos do sistema de justiça e narrativas autoconstruídas, ao invés de meras
para movimentos sociais que estão planejando sínteses produzidas pelo Estado.
suas intervenções na cidade real.
Os/as participantes necessariamente teriam de
fazer parte de movimentos sociais. Este critério
CURSO “A PRODUÇÃO CAPITALISTA surge da necessidade de aumentar o alcance
DA CIDADE: PODERES, CONFLITOS E do conhecimento sobre as dinâmicas urbanas,
seus agentes, estratégias e possibilidades de
RESISTÊNCIAS”
disputa. Assim, viu-se a oportunidade de ter o
Na perspectiva de disseminar os temas conteúdo compartilhado por meio de militantes
pesquisados pelo LEHAB e contribuir com o de coletivos LGBTs, movimentos culturais,
fortalecimento da organização das comunidades, coletivos de juventudes periféricas, pessoas
Fonte: LEHAB, 2018. realizamos um curso para trinta pessoas diretamente atingidas por grandes projetos

82 83
Figura 16. Participantes do curso. urbanos, entidades ligadas à igreja, grupos ATUAÇÃO NA FRENTE DE LUTA POR
organizados da região metropolitana, além dos MORADIA E A REGULAMENTAÇÃO DAS
movimentos de moradia com os quais o LEHAB ZEIS: DO RELATÓRIO E DA COMISSÃO
já tem um contato mais rotineiro. Isto permite DAS ZEIS À IMPLEMENTAÇÃO DOS
que a universidade contribua para projetar a CONSELHOS E ELABORAÇÃO DOS PIRFS
fala de quem, historicamente, teve sua fala
desprestigiada. Os outros participantes do Fortaleza está extremamente atrasada no
curso, com representantes oriundos das classes que diz respeito à implementação das ZEIS.
populares ou com elas comprometidos, tendem Foi apenas no último Plano Diretor (Lei n.
a reforçar esta estratégia, com a repercussão 62/2009) que a cidade teve suas primeiras
dos conteúdos nos seus outros espaços de ZEIS definidas legalmente, sendo estas de três
atuação. tipos: de ocupação, de conjuntos habitacionais
“Não precisamos de coisas mirabolantes.
e de vazios.
Fazer poesia marginal e falar no busão pros Em seu artigo 123, o Plano Diretor determina que
‘meus’ já é muita coisa. Agora vamos falar
com as pessoas sobre plano diretor, sobre As Zonas Especiais de Interesse Social
especulação imobiliária!”1 (ZEIS) são porções do território, de
propriedade pública ou privada,
A contribuição do curso especificamente destinadas prioritariamente à promoção
na promoção do pensamento de caminhos da regularização urbanística e fundiária
alternativos de planejamento urbano já dos assentamentos habitacionais de
baixa renda existentes e consolidados
encontra reverberação em comentários de e ao desenvolvimento de programas
membros do Ministério Público e da Defensoria habitacionais de interesse social e de
Pública, que afirmam ter notado uma diferença mercado popular nas áreas não edificadas,
não utilizadas ou subutilizadas, estando
nos discursos dos movimentos comunitários em sujeitas a critérios especiais de edificação,
eventos públicos, com falas mais aprofundadas, parcelamento, uso e ocupação do solo.
consistentes e conectadas.

Fonte: LEHAB. 1 - Fala de um dos participantes do curso.

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Apesar da prioridade explicitamente reconhecida A Comissão de Proposição e Acompanhamento plano de intervenção previsto no Plano Diretor; Jardim e Pici, segundo informações recebidas
na lei, por muitos anos, nada do que diz da Regulamentação e Implantação das Zonas (v) Minutas de alteração de artigos do PD e LUOS até este momento, a prefeitura não faz qualquer
respeito às ZEIS avançou. A sociedade civil Especiais de Interesse Social, instituída pelo que ameaçam as ZEIS. investimento, a Secretaria das Cidades aporta
pressionou por meio de diversas ações, como Decreto n. 13.827, de 14 de junho de 2016, dois milhões de reais e não conseguimos obter a
Apenas os três primeiros tiveram algum avanço,
atos, audiências, acampamentos, reuniões, que foi renovado pelo Decreto n. 13.954 de 11 informação sobre o valor a ser empenhado pela
mesmo com alterações graves e unilaterais
notas na imprensa etc, sob a organização da de janeiro de 2017, tinha na sua composição: UFC. Além disso, foi exigido que as universidades
feitas pela prefeitura, desrespeitando o que
Frente de Luta por Moradia. representantes do poder público, da sociedade prestassem os serviços no prazo de quatro
foi construído e acordado por eles mesmos.
civil e de moradores das 9 ZEIS prioritárias, sob meses. Na proposta construída coletivamente na
Foi apenas no primeiro semestre de 2015 O Decreto n.14.211, de maio de 2018, que
a coordenação do IPLANFOR. O LEHAB foi um Comissão das ZEIS, este processo duraria pelo
que a gestão cedeu à pressão e convidou trata sobre a eleição dos conselhos, sofreu
dos representantes das entidades da sociedade menos dezoito meses. A diminuição significativa
representantes de nove comunidades moradoras com a retirada da vaga das universidades nos
civil. Por meio da Comissão, conseguiu-se ainda do prazo traz preocupação em relação à
de ZEIS, entidades da sociedade civil e poder conselhos e com a entrada da representação
a incorporação da Vila Vicentina como décima superficialidade destes produtos e das condições
público, para constituir o Comitê Técnico dos vereadores. Além disso, o Fórum das ZEIS
ZEIS prioritária, aprovada unanimemente. de efetivo controle social.
Intersetorial e Comunitário das Zonas Especiais foi transformado em espaço apenas consultivo.
de Interesse Social, instituído através do Decreto Ao fim de muitos meses de trabalho, cinco Os outros produtos da Comissão,
O termo de referência para contratação
Municipal n. 13.241, de 21 de outubro de documentos foram elaborados e aprovados importantíssimos para assegurar que o
dos Programas Integrados de Regularização
2013, a fim de avançar na regulamentação pela Comissão – que, repetimos, também era instrumento não vá ser desmontado na revisão
Fundiária (PIRFs) passou a ser objeto de
deste instrumento. Seu relatório final, entregue constituída pela administração municipal. Os do Plano Diretor que se avizinha, ainda não
negociação com quatro universidades, para
ao prefeito em outubro de 2015, traz um documentos foram entregues ao prefeito no dia 23 foram encaminhados pela Prefeitura.
que elas fiquem responsáveis pelos planos
diagnóstico situacional e as questões sobre de fevereiro de 2018. Foram estes: (i) Proposta de
específicos. Neste modelo, a prefeitura investe Em todo este processo, a Frente de Luta por
cada uma das áreas demarcadas como ZEIS decreto de funcionamento dos conselhos gestores
pouquíssimo recurso, deixando nítida a falta de Moradia tem sido o principal contraponto às
no Plano Diretor Participativo de Fortaleza (e na das ZEIS 1 e 2 e criação do Fórum Permanente
priorização deste instrumento. Por exemplo, no tentativas da prefeitura de impedir a consolidação
Lei Complementar n. 76/2010, que instituiu a das ZEIS; (ii) Proposta de termo de referência
convênio com a Unifor para elaboração dos das ZEIS. A Frente é constituída por comunidades
ZEIS do Lagamar). Vale registrar que o LEHAB para capacitação dos conselhos gestores das
PIRFs das ZEIS do Serviluz, Mucuripe e Praia atingidas pelo veículo leve sobre trilhos (VLT),
não foi convidado a compor este comitê, mas ZEIS; (iii) Proposta de termo de referência para
do Futuro, a Prefeitura investe 245 mil reais e a remanescentes da articulação contra os impactos
participou ativamente desde a primeira reunião contratação de Plano Integrado de Regularização
Unifor tem que dar uma contrapartida de 100 da Copa, por comunidades que habitam em
e acabou sendo incorporado oficialmente em Fundiária – PIRF; (iv) Proposta de lei de Habitação
mil reais. No acordo com a UFC, responsável ZEIS, por movimentos de moradia e assessorias
seguida, na Comissão das ZEIS. de Interesse Social em ZEIS 3, em substituição ao
pelos PIRFs das ZEIS do Poço da Draga, Bom técnicas, dentre elas, o LEHAB. Das dez ZEIS

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Figura 17. Parte dos/as integrantes da Frente de Luta por Moradia

prioritárias, oito estão representadas e articuladas Neste meio tempo em que os Conselhos
na Frente, o que nos dá legitimidade e maior foram eleitos e foi dado início ao processo de
capacidade de exercer pressão. elaboração de alguns PIRFS – em algumas ZEIS
as universidades ainda não foram contratadas,
A Frente tem desenvolvido processos de
a prefeitura de Fortaleza não alterou em nada
capacitação paralelos ao promovido pela
seu modus operandi baseado em ameaças
prefeitura. Além disso, tem feito reuniões para
de remoção por conta da implementação de
antecipar pautas, esclarecer os prós e contras
grandes projetos urbanos. Estes avançam,
de cada novo passo. Decisões coletivas tem
inclusive, por cima das ZEIS.
sido tomadas, respeitando a autonomia de
cada comunidade. Obtivemos grande sucesso Recentemente, tivemos notícias de ameaças de
no processo eleitoral do conselho, uma vez despejos na ZEIS Cais do Porto, na ZEIS Verdes
que a grande maioria dos conselheiros e Mares e de uma comunidade dentro da ZEIS
conselheiras eleitas são do nosso campo. O do Lagamar, sendo que esta última é uma das
LEHAB foi eleito como entidade pela ZEIS do dez prioritárias. A primeira ameaça por conta
Serviluz. A candidatura do LEHAB representa a do projeto Aldeia da Praia, a segunda, para
Frente de Luta por Moradia, estratégia que foi construção de uma obra de mobilidade urbana,
articulada em acordo com todo os integrantes e a terceira, por ameaça de um particular.
da Frente. Assim, a presença da universidade
Todos estes três casos têm recebido atenção da
fica garantida em um dos conselhos, apesar de
Frente de Luta por Moradia, seja na articulação
a prefeitura ter tentado impedir isto.
dos moradores, no repasse de informações, em
A articulação com a promotoria de Conflitos visitas e, no caso da Verdes Mares, até uma das
Fundiários do Ministério Público Estadual tem assessorias da Frente de Luta por Moradia – o
se mostrado bastante importante, dada a Taramela - já apresentou um projeto alternativo em
sensibilidade e a preocupação deste órgão em audiência pública, que demonstra a possibilidade
respeitar o Plano Diretor. de não-remoção para construção da obra.
Fonte: LEHAB, 2018

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Figura 18. Reunião com moradores das ZEIS Cais do Porto e ZEIS Serviluz

A ameaça de remoção de centenas de famílias CONSIDERAÇÕES FINAIS


na ZEIS Cais do Porto tem recebido mais atenção
do LEHAB por ser imediatamente vizinha à O percurso descrito aqui tem sido um processo
ZEIS do Serviluz, para a qual fomos eleitos riquíssimo de aprendizado para o LEHAB e
conselheiros. Além disso, é uma comunidade que se alimenta e repercute em cada uma
que pesquisamos e acompanhamos há alguns das atividades de pesquisa-ação analisadas
anos. Recentemente, os moradores formaram neste texto. Por exemplo: representantes de
uma comissão. Estamos participando de sete das dez ZEIS prioritárias fizeram o curso
reuniões para explicar o significado das ZEIS, do LEHAB, exercem conosco mandato no
para articular meios de defesa contra as COMHAP, utilizam os dados do Observatório
investidas da prefeitura, etc. de Remoções e muitos se aproximaram mais
após os encontros de comunidades. Tudo
Não temos ilusões nem inocências quanto às ZEIS. está interligado e é assim que pretendemos
Não é um instrumento capaz de resolver todos os continuar avançando neste duro processo de
problemas enfrentados pelas comunidades. Temos regulamentação das ZEIS.
ciência das dificuldades encontradas na aplicação
prática do instrumento em outras cidades. Temos Nossas previsões iniciais foram se modificando
sentido de perto todas as ciladas possíveis que a partir desta interlocução com o real. Para Fonte: LEHAB.
aparecem no caminho. Mas é exatamente disto além do estudo de legislações, projetos, atas de
que se trata. A ZEIS nos aparece como um reuniões e audiências, a atuação direta, crítica e
propositiva nos espaços de diálogo em que os pelos processos em curso na cidade como movimentos sociais está bastante fragmentada.
caminho, como algo que faz com que passemos a
conflitos urbanos se exacerbam nos permite maior protagonistas na construção de um outro
nos movimentar, organizar, estudar, complexificar A agudização conservadora que domina a
apreensão da realidade, na mesma medida em modelo de planejamento urbano.
as análises e obter alguns ganhos para as sociedade brasileira, somada ao acirramento dos
que nos move em direção de sua transformação.
comunidades. Tem sido a principal bandeira Em 2019, o plano diretor da cidade será revisto. conflitos urbanos advindos da implementação
levantada. As ZEIS nos dão um horizonte de luta Os seus desdobramentos também vão neste As perspectivas para sua revisão são as piores de um projeto cada vez mais excludente e
interessante. Mas não é nada fácil, principalmente sentido. Enquanto ambiente de pesquisa- possíveis, dada a completa desconsideração violento de cidade, desafia as resistências
diante da atual conjuntura nacional. ação, o laboratório exercita cotidianamente das instâncias de controle social por parte da organizadas a se capacitarem e incidirem de
a leitura da cidade a partir de um olhar mais gestão atual e dado seu comprometimento com maneira mais estratégica na busca pelo direito
global, que considera os diretamente atingidos o capital imobiliário. Além disso, a atuação dos à cidade como um bem comum.

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SERVILUZ, SINÔNIMO DE LUTA
E RESISTÊNCIA Pedro Fernandes

SERVILUZ, SINÔNIMO DE LUTA E na região com este mesmo nome, nos anos Figura 19. Contexto Urbano do Cais do Porto – Serviluz.
de 1950. O bairro passa a ser adensado a
RESISTÊNCIA partir da construção do Porto do Mucuripe e do
Bem antes dos colonizadores chegarem nestas parque industrial que começou a se instalar na
terras do Mucuripe, região leste da cidade de região na década de 1960, consolidando-se
Fortaleza, uma das áreas mais cobiçadas do ao longo das décadas de 1970 e 1980. Sua
litoral cearense por parte dos especuladores população é formada por migrantes de várias
imobiliários e onde está localizada a Favela regiões do Ceará, principalmente do litoral do
do Serviluz, habitavam povos de costumes e estado e de outras regiões de Fortaleza. São
hábitos bem diferentes dos invasores europeus. pessoas que foram expulsas de seus locais de
Em nossa história recente, a chegada dos moradia, afastando-se de seus modos de vida
colonizadores representou o início do originários. Na década de 1960, começaram
extermínio de vidas e culturas diferentes dos as primeiras ocupações do Serviluz. As pessoas
estrangeiros, em especial dos povos originários que aqui chegaram, que passaram a formar este
que habitavam o litoral brasileiro. Até hoje, grande contingente populacional, já vinham
estes povos – descendentes de índios e negros, de um processo de remoção. Elas haviam sido
pescadores, marisqueiras, surfistas, pessoas desalojadas de uma antiga região de meretrício
nativas que tiram seu sustento, força e alegria que ficava localizada a aproximadamente cinco
para viverem da relação com a natureza quilômetros de distância do Serviluz. O local de
local – são expulsos de suas terras. É nesse onde as famílias foram retiradas se tornou um
contexto que se forma uma aldeia urbana, dos bairros com o metro quadrado mais caro
chamada Serviluz. Até hoje, a população luta de Fortaleza, o Meireles.
para conseguir permanecer, com dignidade e
O deslocamento forçado das pessoas do
respeito, em seu lugar de origem.
antigo bairro para o Serviluz foi carregado de
O Serviluz, que consta na cartografia oficial da estigmas, que recaíram especialmente sobre
cidade como Cais do Porto e Vicente Pinzon, alguns personagens sociais: as “raparigas do
tem origem em uma usina elétrica instalada Farol Velho” sofreram com os mais pesados Fonte: Plano Diretor Participativo de Fortaleza, 2009; Plano Local de Habitação de Interesse Social 2012;
Laboratório de Estudos da Habitação (LEHAB-UFC) 2016
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fardos da vigilância moral e dos abusos da Nesta região, devido ao movimento das dunas descaso do poder público dentro da Regional O Serviluz é formado por três avenidas. A
violência policial. Na dinâmica do espaço ocasionado pelos fortes ventos em certos II (uma das seis regiões administrativas que principal delas, onde circulam as linhas de
urbano, as prostitutas foram obrigadas a períodos do ano, não era incomum que as dividem a cidade de Fortaleza). Os moradores ônibus, possui uma infraestrutura péssima.
criar diversas estratégias de sobrevivência. Ao casas ficassem soterradas, prejudicando os consideram que o bairro do Serviluz possui Motos, carros, ônibus e caminhões passam
serem transferidas para a região próxima ao moradores. Diante desta primeira remoção algo em torno de 25 mil habitantes, que quase atropelando os pedestres por falta
Farol, estas mulheres receberam pequenas levada adiante pelo poder público, da situação nasceram e estão vivendo em meio a uma de calçadas. O mesmo acontece na maior
indenizações, quantias insuficientes para de precariedade e do medo pela possibilidade infraestrutura urbana precária. No Serviluz parte das ruas do bairro. É possível ver a
melhorar sua precárias condições de vida. O de sofrer outras remoções, as pessoas passaram falta o básico para se morar dignamente. Não desigualdade de muito perto, já que menos
novo local era bastante privilegiado do ponto a se organizar em torno da pautas por moradia há saneamento ou áreas de lazer. O bairro de dois quilômetros separam o Serviluz dos
de vista geográfico mas as condições de no Serviluz. Deste processo surgem associações possui um posto de saúde que não funciona bairros privilegiados e que concentram a maior
infraestrutura encontradas no deslocamento com suas lideranças, que passam a representar com capacidade adequada para atender bem parte da obras feitas pela prefeitura na nossa
inicial, em 1961 não foram as melhores. a população do local junto ao poder público à população. Também tem três escolas de cidade. Nosso bairro fica entre a Beira Mar e
em busca de condições para morar bem. Com ensino fundamental e uma de ensino médio. a Praia do Futuro, ou seja, entre lugares com
Na implantação do chamado “desenvolvimento
o passar do tempo, uma parte do Serviluz tem Quando terminam o ensino fundamental, melhor estrutura e onde o poder público se faz
urbano”, processo em que as crises e a
uma tímida melhoria: saneamento básico, muitos dos alunos deixam os estudos por mais presente. Segundo o Censo Demográfico
miséria geram enormes filas de necessitados
ruas asfaltadas e a construção de alguns falta de dinheiro para pagar a passagem de de 2010, o Serviluz possui renda média de
e escravizados para a construção das cidades,
equipamentos públicos. Ao mesmo tempo, ônibus, já que a única escola de ensino médio R$393,02, inferior ao salário mínimo atual.
modos de vida são exterminados e outros são
a outra parte do bairro ficou completamente do território não consegue atender à demanda Seu IDH-Educação é 0,386, e está entre os 10
impulsionados em nome do “progresso”. Nos
abandonada. É importante destacar que local e, há bem pouco tempo atrás, não existia piores da cidade, conforme consta no site da
anos 1970, o Serviluz sofreu sua primeira
algumas lideranças foram cooptadas pelos ônibus escolar. O bairro ossui ainda um Centro Prefeitura de Fortaleza.
remoção. Mais de cem famílias foram
governos, tornando-se os famosos “cabos de Referência e Assistência Social – CRAS, um
removidas da Praia Mansa, lugar dentro do Uma das consequências deste abandono
eleitorais” e atrapalhando o processo de Centro Comunitário e um Centro Vocacional
bairro onde atualmente está instalado parte planejado pelo Estado é a violência no Serviluz,
desenvolvimento local na luta por moradia Tecnológico – CVT, todos com funcionamento
do Porto do Mucuripe e uma usina de energia manifestada em várias fases em que aumentam
digna com autonomia. pontual, sem capacidade de atender bem à
eólica. As pessoas removidas foram realocadas os números de violência letal, ganhando
população e dar conta da demanda.
dentro do próprio bairro, para casas feitas em Morar na comunidade do Serviluz é viver em
regime de mutirão numa região de dunas. O duas cidades diferentes dentro de Fortaleza.
local foi cedido pelo poder público estadual Com mais de 60 anos de existência, o Serviluz
da época e é conhecido hoje como Titanzinho. é um dos locais que sofre com o maior 2 - https://www.fortaleza.ce.gov.br/noticias/prefeitura-apresenta-estudo-sobre-desenvolvimento-humano-por-bairro.

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destaque na mídia policialesca da cidade. A do Vizinho. Um paraíso sem igual que deixa os grupos que lutaram contra a implementação usufruem da praia e do mar nas suas atividades
população que mora no Serviluz sofre com o visitantes encantados. Um paraíso natural que do estaleiro, podemos citar: Movimento dos cotidianas. Jogar bola, surfar, tomar banho
preconceito e a discriminação quando procura também é banhado por um “mar de sangue” Conselhos Populares – MCP, Serviluz Sem no paredão ou nas pedrinhas, contemplar e
por emprego ou pelo simples fato de mencionar e de lágrimas em razão do alto índice de Fronteiras, Associação de Moradores do pescar – tudo seria diretamente afetado pelo
o endereço. Até hoje carregamos este estigma violência letal, mas também de esperança. A Titanzinho, Escola Beneficente de Surf do aterro. O afeto pelo local tornou-se um elo de
de um local violento. O estigma é tão forte a esperança está, por exemplo, no esporte como Titanzinho, Titanzinho Surf Club – TSC. Junto ligação consistente para que a gente pudesse
ponto de pessoas da cidade terem medo de construção de cidadania e de “salvação” dos com outros agentes locais e da cidade, estes alcançar nossos objetivos. O envolvimento das
visitar o bairro. É uma cidade muito desigual, jovens (SÁ, 2010, p.5). grupos se mobilizaram, trocaram experiências pessoas que possuem maritimidade com o
onde leis são descumpridas pelos criminosos para formular uma pauta que iam muito além local foi de uma energia tão contagiante, que
Em 2010, tentaram construir o Estaleiro Promar
de colarinho branco e o povo das favelas é da não-remoção. Ia na direção da construção fez com que mais pessoas de Fortaleza e do
Ceará no Serviluz. O projeto do estaleiro
quem paga por isso, vivendo na precariedade de oportunidades, de outras possibilidades Brasil se envolvessem na preservação do lugar.
pretendia remover boa parte da comunidade
que gera morte. Apesar de toda a sabotagem para as pessoas nativas. As pautas foram A atuação das escolas locais de surf foi de
que mora em torno do Farol Velho e de um
que sofremos, somos povos agraciados pelo fundamentais para a formação de pessoas suma importância. O audiovisual, a fotografia,
trecho da Rua Titan, entre as Avenidas Vicente
mar. Quem nos visita fica encantado com as interessadas na luta por melhorias. Nesse a música, o teatro também são ferramentas
de Castro e Leite Bardosa. A iniciativa partia
belas praias e com uma população alegre, período, assembleias populares e audiências importantes no processo de sensibilização, pois
do governo do Estado em parceria com uma
acolhedora e guerreira. eram realizadas frequentemente. Identificamos conseguem despertar o afeto e a empatia. Poder
empresa privada. Depois da remoção realizada
pessoas estratégicas para este momento, vivenciar tudo isto dentro de uma programação
A “favela” do Serviluz tem uma praia que é a na década de 1970, esta foi uma das maiores
como produtores de vídeos, ambientalistas, regular, na luta contra a construção do estaleiro
sua própria festa. Dela se tira o sustento pela ameaças pelas quais a população do Serviluz
artistas de rua entre outros, que passaram a no Titanzinho, foi um processo de formação
pesca, “tira onda” para surfar e se divertir. Os já passou. Os moradores precisaram se
ser protagonistas dessa história em conjunto. empírica verdadeiramente transformador.
moradores organizam campeonatos locais de organizar para não sofrer mais uma remoção.
surf, na praia do Titanzinho se bate um racha Essa organização se deve muito a novos É importante mencionar que o projeto Diante de uma remoção e das várias ameaças
de futebol e, no mar, banha-se o corpo que já perfis de pessoas, associações e coletivos do estaleiro previa um grande aterro no sofridas , o Movimento dos Conselhos Populares
é salgado desde os tempos de infância, pois independentes que se articularam com outros mar, acabando com a praia do Farol ao – MCP se formou e, durante toda sua história,
muitos são nascidos e criados ali mesmo. A movimentos da cidade na luta por moradia Titanzinho, um dos principais pontos de lazer nos anos de 2007 e 2008, atuou no bairro,
contemplação do mar na ponta do espigão, digna. Muitas delas já vinham de outras lutas, da comunidade. As pessoas envolvidas nessa sendo um dos protagonistas na mobilização
prática recorrente de crianças, adultos e idosos, como a da implementação do Plano Diretor luta contra a implementação do estaleiro da população para participar do debate de
onde as sociabilidades se constroem no “fluxo da Cidade, quando Serviluz se tornou Zona sentiam muita emoção em defender seu local formulação do Plano Diretor de Fortaleza.
das ondas” entre a praia do Titanzinho e a praia Especial de Interesse Social (ZEIS). Entre os de moradia, principalmente as pessoas que Aprovado em 2009 na Câmara dos Vereadores,

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Figura 20. ZEIS no Território Serviluz. esta lei caracteriza o Serviluz como ZEIS, atividades. Uma dela é realização das Mostras
juntamente com mais outras 44 comunidades. Audiovisuais do Titanzinho, coordenada
O Plano Diretor de 2009 estabeleceu duas pelo Coletivo Audiovisual do Titanzinho.
ZEIS dentro do Bairro Cais do Porto, onde fica Durante sete edições, foram exibidos vários
a comunidade do Serviluz: a ZEIS Serviluz e a vídeos que retratam o cotidiano do Serviluz
ZEIS Cais do Porto, uma do lado da outra. Este com alegria e diversidade. A realização das
foi um acontecimento de grande importância Mostras conta com apresentações de artistas
para a preservação da comunidade em seu locais da música, teatro, dança e capoeira.
local diante das ameaças de outros projetos Alguns deles são colaboradores que atuam
que viriam e não demorariam a chegar. na Associação. Eles conseguem entender que
existe um direito de morar dignamente no
Somos o que vivemos dentro das possibilidades
local onde os laços afetivos são construídos
que nos oferecem. Diante de muitas coisas
entre as pessoas e que as paisagens que fazem
que a vida nos oferece no Serviluz, temos
parte da memória da existência do ser devem
debates em assembleias populares, práticas
ser preservadas porque são essenciais para o
ambientais, cinema, fotografia, teatro, música,
desenvolvimento humano.
esporte, arte e cultura. Entre os grupos que
estão protagonistas nesse período após a luta A remoção dos moradores do bairro do Serviluz
do estaleiro, podemos mencionar: o Conselho sempre esteve na pauta dos governos. Logo
Popular do Serviluz e a Associação de Moradores depois que a comunidade não aceitou a vinda
do Titanzinho. A Associação consegue reunir do estaleiro, a prefeitura de Fortaleza lançou
vários coletivos: Coletivo Audiovisual do o projeto Aldeia da Praia para o Serviluz. Mais
Titanzinho, Coletivo Servilost, Grupo de Teatro uma vez, o projeto previa a remoção de boa
Dito e Feito, Núcleo de Base do Serviluz parte da comunidade. Depois de debates na
e Projeto de vida, que, juntos, continuam gestão passada, o projeto não avançou. Na
trazendo o debate sobre moradia nas ruas e atual gestão municipal, após muita pressão dos
Fonte: Plano Diretor Participativo de Fortaleza, 2009; Secretaria de Urbanismo e Meio Ambiente 2012; Laboratório envolvendo a cultura local por meio de várias movimentos de moradia, a prefeitura consegue
de Estudos da Habitação (LEHAB-UFC) 2018

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dar início ao processo de regulamentação de indicam quais são as reais intenções do Estado Figura 21. Plano específico da Praia do Futuro e Zona do Porto do Mucuripe.
dez ZEIS consideradas prioritárias, deixando para a comunidade. Em 2017, o Farol Novo,
de lado outras 35.. A ZEIS do Serviluz que edificação que serve como orientação para
fica ao lado da ZEIS do Cais do Porto, a mais as navegações e também de gabarito para as
ameaçada de remoção no momento, é uma construções de prédios, é aumentado quase
das que está sendo regulamentada. Na visão três vezes a mais o seu tamanho anterior para
de quem vivencia o local em seu cotidiano que assim a especulação imobiliária consiga
como morador, ambas as ZEIS ficam dentro explorar a região com seus edifícios arranha-
de uma mesma comunidade de nome Serviluz, céus. Isso leva a população a sofrer o mesmo
formada por vários outros pequenos territórios drama de uma história não tão distante, onde
como: Titanzinho, Farol, Estiva, Pracinha o colonizador expulsa os povos originários de
entre outros. suas terras, fato que continua se repetindo até
O fato é que, não respeitando a lei do Plano hoje com a mesma população descendente
Diretor que foi votado em 2009 e fez do desses povos.
Serviluz uma ZEIS, a prefeitura executa o Como podemos observar, na previsão do
projeto Aldeia da Praia/Serviluz de forma Fortaleza 2040, um dos planos estratégicos
criminosa, passando por cima da lei da da prefeitura para nossa comunidade, vão
ZEIS e da transparência, omitindo várias ser construídos prédios que não servem às
informações sobre os projetos para área. necessidades da população local e sim para a
Conforme algumas poucas informações que remoção de centenas de famílias que moram
conseguimos obter, o projeto prevê a remoção ali há décadas, em nome de um projeto para
mais de 500 familías para apartamentos no as camadas ricas da cidade.
Conjunto Habitacional Alto da Paz, longe da
maritimidade de quem mora há mais de 60 É encorajador passar por esse desafio de
anos vizinho ao mar. Apesar dos projetos para lutar por nosso lugar de existência no mundo
a região onde Serviluz está localizado estarem com consciência, afeto e emoção. Queremos
sendo ocultados pela prefeitura, podemos ver o ampliar o número de vivências com princípios
poder público municipal realizando obras que de autonomia e autogestão na construção do Fonte: Plano Fortaleza 2040. Volume 3.1: “Cidade conectada, acessível e justa”. 2016. Pg. 100

100 101
mundo em que acreditamos. Pensamos que local. Juntos com o Conselho Gestor da ZEIS, Referências bibliográficas Links
está na hora da construção do mundo que nós trabalhando na formulação e implantação do
acreditamos, que, para nós do Serviluz, surge Plano Integrado de Regularização Fundiária NOGUEIRA, André Aguiar. Fogo, vento, terra https://www.facebook.com/associacaotitanzinho/
da vontade e da necessidade de lutarmos pela – PIRF, mobilizando a comunidade para e mar: migrações, natureza e cultura popular http://titanzinhodasinvencoes.tumblr.com/
nossa moradia, que vai para além do teto, construirmos juntos um plano alternativo que no bairro Serviluz em Fortaleza (1960-2006).
pois entendemos que abrange uma totalidade chamamos de Serviluz que nós queremos, que Dissertação de mestrado em História Social https://www.facebook.com/serviluzdasartes/
composta por subjetividades e especificidades consiga expressar os desejos da população apresentada à Pontifícia Universidade Católica https://cineclubeserverluz.wordpress.com/
individuais e coletivas. local e não do mercado imobiliário. Seguiremos de São Paulo, 2006.
trabalhando em redes com outros grupos, com https://www.facebook.com/cineclubeserverluz/
O Conselho Popular do Serviluz, ocupado NOGUEIRA, André Aguiar. Memória Serviluz.
autonomia e sustentabilidade, na construção In: GORCZEVSKI, Deisimer, RABELO, Gerardo, https://www.facebook.com/servilost/
por diversos moradores da comunidade, é
dessa possível realidade que faz parte dos GOMES, Maria Fabiola, FERNANDES, Pedro,
estratégico para o nosso plano e é a forma https://www.facebook.com/Banda-Éter-Na-
nossos sonhos e pela qual trabalhamos. ARAÚJO, Sabrina (orgs.). Nossas Ruas Com
que a população local consegue se organizar e Mente-93466…
Sabemos da importância de viver num país Cinema. Fortaleza: Imprensa Universitária,
debater, nas assembleias populares, as pautas
onde as diversidades sejam respeitadas e os 2017. https://www.facebook.com/
que são consideradas essenciais para o bairro, grupodeteatroditoefeito/
modos de vidas preservados. O Serviluz é a
como a luta por moradia digna sem remoções. SÁ, Leonardo Damasceno de. Guerra, Mundão
morada de nossas memórias, o cenário da https://www.facebook.com/
Assim também procuramos evitar a interferência e Consideração. Uma etnografia das relações
nossa existência. Só nos resta estarmos juntos e projetodevidatitanzinho/
de lideranças pelegas, que muitas das vezes sociais dos jovens do Serviluz. Tese de doutorado
envoltos daquilo que nos move.
são cooptadas pelos diferentes poderes e em Sociologia apresentada à Universidade http://pesquisaintervencoes.blogspot.com.br/
acabam fragilizando o processo de autonomia Avante! Federal do Ceará, 2010. https://www.facebook.com/
NucleodeBasedoServiluz/
https://www.facebook.com/
bandacidadaoinstigado/
https://www.facebook.com/aguadequartinha/
https://www.facebook.com/
direitoacidadefortaleza/
h t t p s : / / w w w. f a c e b o o k . c o m / l a m u r u f c /
102 103
BELO HORIZONTE - MG
VILA ACABA MUNDO
PRÁTICAS EM ASSESSORIA TÉCNICA:
A EXPERIÊNCIA DO PRAXIS-EA/UFMG NA
VILA ACABA MUNDO
Geruza Lustosa de Andrade Tibo - Juliana de Faria Linhares - Denise Morado Nascimento

INTRODUÇÃO Figura 22. Reforma e/ou construção sem ar- forma coesa de construir (TIBO, LINHARES, informação entre arquitetos/pesquisadores
quitetos e/ou engenheiros no Brasil. MORADO NASCIMENTO, 2018). Neste e moradores. Propõe ainda compartilhar
A prática da autoconstrução por parte da artigo, pretendemos não só propor um outro processos de tomada de decisão com os
população de baixa renda caracteriza-se olhar sobre o conceito da autoconstrução, moradores, objetivando agregar informações
como uma das únicas respostas possíveis mas também relatar as experiências de técnicas ao processo de produção da moradia,
desta classe social diante das políticas assessorias técnicas realizadas pelo grupo linguagens, metodologias e ferramentas,
urbanas de provisão de moradia estabelecida. de pesquisa PRAXIS-EA/UFMG, na Vila capazes de estabelecer um diálogo desejado,
Muitas vezes, a autoconstrução é fruto da Acaba Mundo, em Belo Horizonte, em Minas
recíproco e relevante para todos os envolvidos.
urgência de sobreviver e da necessidade de Gerais. As práticas estão inseridas no projeto
Defendemos que a prática compartilhada
abrigo (MORADO NASCIMENTO, 2016). de extensão Diálogos e nas pesquisas de
Fonte: autoras, baseada em CAU/BR e DATAFOLHA, entre técnico e morador potencializa a prática
Porém, é necessário ressaltar que nem todos 2015. mestrado e doutorado das autoras1. O projeto
os autoconstrutores são de baixa renda. O dos autoconstrutores e, da mesma forma,
Diálogos propõe investigar a produção da
número estatístico da autoconstrução, isto é, moradia autoconstruída pela população amplia os saberes construtivos para o campo
da produção de moradias sem a presença de prática configurada por distintos repertórios de baixa renda, por meio da mediação da da arquitetura.
arquitetos e/ou engenheiros, é estimado em e motivações. Desta forma, o conceito
85% das reformas ou das obras realizadas pela abrange aspectos para além daqueles visíveis,
população brasileira (CAU/BR, DATAFOLHA, 1 - PRAXIS-EA/UFMG é um grupo de pesquisa do CNPq, coordenado pela Profa. Dra. Denise Morado Nascimento,
imagéticos ou simbólicos – ou seja, aqueles sediado pelo Departamento de Projetos (PRJ) e pelo Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo
2015). Visto que apenas 15% da provisão socialmente construídos pelos discursos acerca (NPGAU/UFMG) da Escola de Arquitetura da UFMG. O projeto “Diálogos: Vila Acaba Mundo” contou com os
seguintes pesquisadores: Profa. Denise Morado Nascimento, Geruza Lustosa de Andrade Tibo, Juliana de Faria
habitacional está associada aos profissionais da sua significação. Linhares, Gabriel da Cruz Nascimento, Letícia Campos Araújo Pádua, Lucas Dias Franco Afonso e Rafael Gomes
da arquitetura e da engenharia, inferimos que Duarte. Parceiros: Associação dos Moradores da Vila Acaba Mundo e moradores. Mais informações: http://praxis.
Portanto, é necessário abandonar o conceito arq.ufmg.br. A dissertação de mestrado da autora Juliana de Faria Linhares, intitulada “Atuação do arquiteto na
a autoconstrução é a prática prevalecente produção do espaço urbano autoconstruído pela população de baixa renda”, sob a orientação da Prof. Dra.
em quase toda a cidade. Sendo assim, nosso genérico e estanque de autoconstrução, Denise Morado Nascimento, foi apresentada ao NPGAU/UFMG em outubro de 2018. O doutorado de Geruza
visto que se entende que não há uma única Lustosa de Andrade Tibo (NPGAU/UFMG) está em andamento, também sob a orientação da Prof. Dra. Denise
argumento é de que a autoconstrução é uma Morado Nascimento.

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REDEFININDO A Em primeiro lugar, a observação destas Figura 23. Diagrama da estrutura de análise da autoconstrução.
distintas práticas no contexto da experiência de
AUTOCONSTRUÇÃO assessoria técnica na Vila Acaba Mundo nos
A gente que mora nestes lugares faz as coisas levou a decompor o conceito de autoconstrução
sem saber das técnicas. em camadas, a partir de sete linhas de
Fazemos com o que a gente sabe. análise: (i) renda e recursos financeiros, (ii)
território, (iii) tempo, (iv) agentes, (v) práticas
Dona Efigênia construtivas, (vi) autonomia e (vii) cultura (TIBO,
A fala da Dona Efigênia, moradora da Vila LINHARES, MORADO NASCIMENTO, 2018).
As linhas de análise desenham as camadas
Acaba Mundo, revela que os aspectos que
das práticas autoconstrutoras. Assim, quando
compõem o repertório de cada autoconstrutor
diferentes características presentes em cada
não podem ser analisados de forma única,
camada são associadas, uma prática singular
genérica ou coesa. Ainda que os moradores
da autoconstrução emerge, reivindicando
estejam inseridos em estruturas sociais, ferramentas comunicacionais específicas e
culturais, econômicas e políticas similares, práticas distintas de assessoria técnica.
existem aspectos singulares que tornam a
autoconstrução distinta em suas práticas e que, Para a determinação da prática autoconstrutora,
por isso, demandam metodologias específicas as linhas de análise devem ser vistas de forma
e ferramentas comunicacionais. conjunta, não como atributos isolados. As
características de cada linha influenciam de
Os moradores autoconstrutores não são iguais e forma estruturante umas às outras. Brevemente, Fonte: TIBO, LINHARES, MORADO NASCIMENTO, 2018.
nem são movidos pelos mesmos interesses. São as linhas de análise tratam do seguinte:
várias as motivações que embasam a decisão de
1. Renda e Recursos Financeiros:
produzir suas casas autonomamente. Se usado
componente estruturante de todas as
genericamente, o conceito de autoconstrução camadas e interferência direta nas
anula diferenças entre as práticas e os diversos linhas de análise.
autoconstrutores, resultando em análises
2. Tempo: componente estruturante
descoladas da realidade. do tempo da construção, material
empregado e agentes envolvidos.
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3. Território: referente à segurança da 7. Cultura: a cultura da casa própria de projeto, acompanhamento e execução da moradia, especialmente quando tratamos
posse do terreno, que desencadeia é um dos elementos que fomenta obra a cargo dos profissionais das áreas de da população de baixa renda. A prática
tipos de autoconstrução, menos ou a prática da autoconstrução, arquitetura, urbanismo e engenharia. O termo tradicional da profissão, desde sua formação
mais estáveis no que diz respeito aos reconhecida como ascensão social e
planos social, político, econômico “assistência”, utilizado em sua nominação, educacional, dota o arquiteto de símbolos e
pertencimento à cidade.
e construtivo, assim desvelado por determina também a maneira como este poderes e direciona sua atuação para suprir
pesquisas desenvolvidas anteriormente O diagrama propõe que as linhas de análise se serviço é prestado. Remete ao assistencialismo as demandas do capital e prestar serviços
(MORADO NASCIMENTO, 2016). relacionem em função de atributos conformados e à noção de que os moradores são assistidos, para a elite (STEVENS, 2003). A proposta de
A inserção sócio-espacial e política pela prática discursiva. A prática discursiva é o ou seja, que não têm protagonismo garantido. compartilhamento se diferencia, portanto,
determina características das formas da prática convencional, já que possibilita
caminho que perpassa todas as linhas de análise,
de ocupação do território, de acesso Diferente da assistência, a assessoria técnica
à cidade e à informação. agregando atributos para a composição de um qualificar e legitimar a experiência construtiva
pressupõe o compartilhamento do processo
determinado tipo de autoconstrução. Assim, há do morador, na medida em que seu arcabouço
4. Agentes: presença ou ausência de de tomada de decisão entre o profissional
uma liga necessária, mas fluida – composta de possibilidades passa a ser enriquecido com
atores no processo de construção; e o morador. O arquiteto ou o engenheiro
técnicos, mão de obra contratada pelas práticas discursivas –, que agrega, em informações técnicas compartilhadas.
fornece a informação técnica ao morador,
ou de familiares, agentes públicos, maior ou menor presença e distinção, cada
mas não decide por ele, preservando o poder Para isto, é necessário que também sejam
depósitos de materiais de construção atributo dentro da linha de análise. A depender
dentre outros. de decisão do morador. A proposição de repensados o desenho, a linguagem e os
do modo em que certos atributos se agregam
compartilhamento se baseia métodos de compartilhamento da informação.
5. Práticas construtivas: disponibilidade em uma determinada linha de análise, um tipo
na mediação entre os saberes dos Para Tibo (2017, p.9), esta outra lógica de
de informação e contratação de mão distinto de autoconstrução é definido (TIBO,
construtores, que visa aproximar à atuação do arquiteto urbanista “deve estar
de obra, renda e disponibilidade LINHARES, MORADO NASCIMENTO, 2018). realidade construtiva dos autoconstrutores
de horas de trabalho dos próprios livre de todos os símbolos e códigos que
a ferramentas projetuais e soluções técnicas
moradores, determinando o tempo Em segundo lugar, vimos ser necessário que propiciem a qualificação na tomada da estão vinculados à formalização do projeto
da construção. Técnicas e materiais definir o que chamamos assessoria técnica. decisão projetual, ou seja, que possibilite arquitetônico”, demandando a criação de
construtivos variam em razão da A Lei Federal de Assistência Técnica, Lei nº uma tomada de decisão consciente de seu outros instrumentos para registrar o projeto
renda e do acesso ao crédito e à potencial e suas fragilidades (TIBO, 2017, e formalizá-lo. A informação compartilhada
11.888/2008, assegura o serviço público e p.4).
informação sobre eles.
gratuito de arquitetura, urbanismo e engenharia por meio da linguagem deve permitir o efetivo
6. Autonomia: o autoconstrutor possui a grupos familiares com renda de até três Construir um processo compartilhado é diálogo, numa comunicação que faça sentido
uma autonomia dependente, salários mínimos. Neste sentido, a prerrogativa diferente de prestar um serviço. Importante para todos os envolvidos no processo.
carregada de significações vinculadas colocada é de assistir e fornecer, de forma também retomar a discussão acerca do
à reprodução social.
gratuita, às famílias de baixa renda, trabalhos distanciamento do arquiteto da produção da

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Figura 24. Vila Acaba Mundo

Constrói-se, portanto, um lugar de encontro Vila Acaba Mundo2, doze assessorias técnicas,
entre a técnica e a prática, onde os resultadosguiadas pelos resultados da pesquisa “TOC
não são controlados pelo arquiteto (técnica) TOC Territórios de Ocupação Coletiva”3. Esta
e nem pelo autoconstrutor (prática): o que pesquisa foi realizada durante o processo de
guia e transforma a atuação é o processo regularização fundiária de parte do território
compartilhado. Esta outra lógica da prática da vila. A partir da inserção de questionário
confere poder de decisão ao morador, relacionado à assessoria técnica, com
transformando seu lugar como ator social que perguntas relativas ao desejo de auxílio técnico
participa da produção do espaço urbano. construtivo para os moradores, constatou-se
grande interesse da população por reformas
nas edificações (57,5%) e pela presença
A VILA ACABA MUNDO de profissionais da área de arquitetura e
Localizada na região Centro-Sul de Belo urbanismo em suas próximas obras (62,78%).
Horizonte, a Vila Acaba Mundo se formou a Desta forma, os pesquisadores do Práxis-EA/
partir da implantação da Mineradora Lagoa UFMG responderam à essa demanda.
Seca em meados de 1940. Hoje, seiscentas A assessoria técnica foi desejada e solicitada
famílias, e quinhentas moradias, ocupam a pelos moradores. Nossa aproximação iniciou-
área reconhecida pela Prefeitura Municipal de se com a divulgação da atuação do grupo de
Belo Horizonte como Zona Especial de Interesse pesquisa junto ao presidente da Associação
Social-1(ZEIS-1) (TIBO, 2017). dos Moradores da Vila Acaba Mundo, Laerte, e
Até o momento, o grupo Práxis-EA/UFMG por meio da distribuição de panfletos.
realizou no âmbito do projeto Diálogos na

2 - Os processos na Vila Acaba Mundo (relatos de visitas, imagens e descrições mais específicas), foram
cotidianamente registrados em blog, disponível em: https://dialogosacabamundo.wordpress.com. Todos os
moradores assessorados autorizaram a divulgação dos processos.
3 - A pesquisa Territórios de Ocupação Coletivo (TOC TOC), realizada em 2015 e em 2016, é resultado de
parceria entre o programa Pólos de Cidadania da Escola de Direito da UFMG e do projeto de extensão Coletivo
Construtores, vinculado ao Curso de Arquitetura do Centro Universitário UNA. Fonte: PRAXIS-EA/UFMG, 2018.

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Figura 25. Panfletos distribuídos na Vila Acaba Mundo. Disse que a assessoria “facilitou o jeito de eu Para tanto, importante pontuar que foram
ver como que ia ficar, como ia ficar o tamanho, vários os métodos e as linguagens empregados.
como que eu posso pedir ao pedreiro para Flexíveis, consistiam, em si, no processo de
fazer o tamanho de cada cômodo”4. Durante o experimentação e desenvolvimento de cada
processo de assessoria técnica, as ferramentas assessoria técnica. Por exemplo, instrumentos
e a forma de representação convencional do distintos foram utilizados em diferentes
projeto foram refeitas metodologicamente assessorias: kit de mobiliário, maquete física,
como lugar de comunicação de ideias e maquete digital e desenhos técnicos. O kit
propostas. Uma vez que os “desenhos bonitos” de mobiliário possibilitou que o morador
eram compreendidos pelo morador – para experimentasse diferentes disposições de móveis
além do fetiche ligado ao saber técnico –, a e paredes na escala do desenho. A maquete
representação passou a cumprir seu objetivo física, contando também com a representação
principal: possibilitar o diálogo. do terreno, possibilitou a conversa sobre

Figura 26. Dinâmicas desenvolvidas com Janaína.


Fonte: PRAXIS-EA/UFMG, 2017.

Os pressupostos e as metodologias de
AS PRÁTICAS COMPARTILHADAS trabalho foram explicados antecipadamente
aos autoconstrutores. Os moradores se
“Se vocês não tivessem ajudado a gente, a interessaram pela assessoria técnica por
escada teria ficado errada. diversas razões, baseadas em motivações
A porta também e não teria esse cobogó e objetivos distintos. Janaína considera “os Fonte: PRAXIS-EA/UFMG, 2017.
aqui.” desenhos [projeto entregue a outros moradores]
Beatriz muito bonitos” e, ao fim do processo, relatou
ter adquirido outro olhar sobre sua moradia. 4 - Janaína, moradora da Vila Acaba Mundo. Fala registrada pelas autoras em novembro de 2017.

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questões técnicas referentes à topografia, à Como o que move a autoconstrução é a tentativa real possibilita a potencialização do processo do pai e do marido. Elas também não têm
drenagem da água e à segurança estrutural e o erro, a demolição e a construção, a lógica construtivo e também gera economias – de as mesmas culturas construtivas e o tempo
da construção. A maquete digital colaborou utilizada para a adaptação dos usos e solução tempo, de recursos financeiros, de mão de destinado à construção é distinto. Morena mora
com o entendimento do espaço tridimensional das patologias gera danos construtivos à moradia obra e de materiais. Geraldo, morador da em um lugar e constrói em outro, permitindo
e a melhor visualização das possibilidades de e prejuízos financeiros para as famílias. Da Vila Acaba Mundo, confirma que as dinâmicas que sua obra se realize ao longo do tempo,
construção. No entanto, ressaltamos que o mesma forma, as transformações nas moradias de compartilhamento de projeto agregam enquanto Sheila demanda que a construção
computador surge como instrumento indutor são motivadas pelas patologias recorrentemente benefícios ao processo construtivo dos seja feita com certa urgência por morar em
de convencimento por ser um dispositivo observadas e relatadas. Diante da urgência ou moradores, justificando que “mudar de ideia uma casa temporária de madeira.
tecnológico que reafirma hierarquias de saber, devido à falta de informações suficientes sobre na maquete é melhor do que na obra”7.
Com Morena, a assessoria técnica foi organizada
na medida em que muitos autoconstrutores não outras possibilidades de soluções construtivas ou Considerando as distintas linguagens e a partir de uma demanda de arranjo espacial
dominam os softwares empregados. Ainda que mesmo diante da indisponibilidade de recursos metodologias utilizadas adaptadas às da moradora: “eu estava sem ideia, entendeu?
reafirmassem a distância entre o saber técnico financeiros, as famílias edificam e transformam especificidades de cada experiência, é Não sabia por onde começar, estava totalmente
e o saber prático, os desenhos técnicos se sua própria moradia incessantemente, a partir importante reafirmar que os autoconstrutores perdida”8. O processo contou então com duas
mostraram necessários para auxiliar no processo da experimentação das possibilidades em escala não compartilham, entre si, as mesmas práticas dinâmicas (kit mobiliário e maquete digital) e
de execução do projeto, principalmente no que real. Gasta-se muito e as questões que foram construtivas, não compõem um grupo coeso e uma entrega parcial, com desenhos técnicos e
diz respeito às questões políticas. Laerte explicou mal resolvidas acabam requerendo investimentos demandam atuações específicas e individuais. também através do modelo tridimensional. Só
isto da seguinte maneira: “tudo [negociação constantes para as suas correções. Como confirma Morena e Sheila, por exemplo, habitam o depois dos desenhos e do modelo foi entregue
com parceiros] depende de um papel, ainda Laerte: “a gente faz três casas para sair uma”6. mesmo território, a Vila Acaba Mundo, mas a representação das soluções acordadas com a
que o projeto mude depois”5. não compartilham da mesma disponibilidade família e com os pedreiros. Também utilizamos
Ressaltamos que a linguagem utilizada, seja
A cidade autoconstruída vive em constante através de desenhos técnicos, tridimensionais de recursos financeiros. Da mesma forma, as as duas formas de representação. Importante
transformação, com recorrente mutação de usos e/ou ilustrativos, deve cumprir seu papel de moradoras não compartilham dos mesmos notar que o entendimento da família em
e de geração de novas demandas no espaço comunicar e de transmitir informações que agentes no processo de autoconstrução, visto relação ao projeto foi um processo que se deu
do morar. As famílias crescem, transformam-se façam sentido ao morador. A experimentação que Morena dispõe de um pedreiro do ramo ao longo do tempo. Segundo Morena, ela só
e precisam de adaptações em suas edificações. de arranjos e soluções em uma escala não- da construção civil e Sheila conta com o auxílio começou a entendê-lo “a partir do momento

5 - Laerte, morador e presidente da associação de moradores da Vila Acaba Mundo. Fala registrada pelas autoras 7 - Geraldo, morador da Vila Acaba Mundo. Fala registrada em setembro de 2017 pelos alunos da disciplina
em junho de 2017. “Práticas em Assessoria Técnica” e concedida ao Práxis-EA/UFMG.
6 - Laerte, morador e presidente da associação de moradores da Vila Acaba Mundo. Fala registrada pelas autoras 8 - Morena, moradora da Vila Acaba Mundo. Fala registrada pelas autoras em março de 2018.
em novembro de 2016.

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que vocês começaram a colocar os móveis; A demanda por soluções construtivas e arranjos Figura 27. Moradia de Sheila e Morena e interação da família com o
é, porque no começo estava um bagunça, espaciais era premente. Por isso, os moradores processo.
né gente? Sinceramente, eu não tinha ideia construiriam com ou sem o auxílio técnico,
do que vocês estavam me falando. Eu estava dada a urgência do morar. A família de Sheila
concordando, mas sem entender. A verdade foi não requisitava o aval técnico do arquiteto
essa. Hoje eu entendo”9. para a construção da sua casa. Porém, a partir
A experiência com Morena ilustrou o necessário do momento em que iniciamos a assessoria,
exercício de aproximação da fala do arquiteto assumimos compromissos com as decisões
à fala do morador. Configurando uma prática tomadas pela moradora. Uma das premissas
de assessoria técnica singular, reafirmamos da mediação é a de que o compartilhamento se
que não há método ou modelo único que estende também à partilha de responsabilidades.
seja replicável às diversas demandas dos Era nosso dever, portanto, transmitir as
moradores e que responda a todas as diferentes informações técnicas necessárias ao processo
necessidades habitacionais. construtivo ao morador, garantir que elas fossem
recebidas pelo autoconstrutor e também que
Uma outra prática se revelou na assessoria técnica fossem suficientemente claras para subsidiar sua
com Sheila, que vive com a família em uma casa tomada de decisão. A execução das propostas
temporária de madeira, onde a urgência do não é um critério vinculante, obrigatório ou
morar direcionava a ocupação do terreno. As imposto ao morador nos processos de assessoria
patologias da edificação e sua vulnerabilidade técnica. Mas é importante ponderar que as
estrutural eram fruto do curto período de responsabilidades são compartilhadas em casos
tempo previsto para a construção e, além disto, de dúvidas estruturais e geológicas.
da complexidade do terreno. Para além das
dinâmicas de arranjo espacial, o processo de Outro exercício de aproximação entre os agentes
assessoria técnica demandou conversas com os envolvidos neste processo diz respeito à lógica
moradores sobre a estrutura preexistente e uma do morar do autoconstrutor. Observamos que,
análise das condições geológicas do terreno. nas transformações efetivadas pelos moradores,

9 - Idem. Fonte: PRAXIS-EA/UFMG, 2017.

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Figura 28. Morena e o projeto-guia na parede arquitetura para uma escada confortável e Figura 29. Corte transversal esquemático do terreno de Sheila e, ao lado, sua fotografia.
da obra. acessível não se adaptavam ao contexto
das vilas, favelas e ocupações urbanas. A
escada ideal é aquela que, minimizadas as
condições de desconforto e insegurança, é
possível para o contexto do morador. No
âmbito da autoconstrução, as decisões
projetuais e construtivas estão baseadas
na melhor solução possível sob o ponto de
vista de quem mora, para, assim, condizer
com as necessidades, desejos e realidades
de cada morador.

Fonte: PRAXIS-EA/UFMG, 2017. O compartilhamento de informações e Fonte: PRAXIS-EA/UFMG, 2017.


de processos, pressuposto da assessoria
o dimensionamento físico do espaço pode técnica, é colocado à prova na medida prontos, que seriam desenvolvidos e E, no começo, a comunidade logo assustou,
ter mais valor do que outros aspectos em que, por mais que a atuação técnica entregues apenas pelos arquitetos. Segundo não tinha conhecimento. A questão da
tenha sido solicitada, isto não significa, Laerte, o compartilhamento das decisões arquitetura mesmo que chegou... As pessoas
considerados importantes pelos arquitetos, aqui da Acaba Mundo, o quê que acontece:
como, por exemplo, as condições de automaticamente, que haverá uma prática é de interesse da população: “a gente é distante na nossa realidade você ter um
conforto térmico e ergonômico. As escadas, compartilhada. A assessoria ao Beco da dar opinião onde a gente mora é bom, atendimento de pessoas, de arquitetos. A
Mina, espaço comum da Vila Acaba Mundo, né!?” 10. Porém, Laerte também afirma que gente, na verdade, nem sabia o que era
normalmente realizadas ao fim da obra, são um arquiteto. Um arquiteto estava longe
construídas com degraus altos, desiguais e foi solicitada pelo presidente da associação os moradores não sabem como participar. da nossa realidade, de chegar no nosso
com piso reduzido; em alguns casos, são de moradores. Objetivávamos estabelecer Sua fala a respeito do envolvimento da barraco, na nossa casa, de entrar e dar
um projeto de intervenção urbana como fruto população no processo do projeto do Beco uma opinião. Até mesmo por causa disso,
encontradas também escadas pré-moldadas, a gente via nossa casa, assim, muito, muito
em formato caracol, que ocupam menor de uma construção coletiva e, por mais que da Mina, fomenta esta discussão: assim, sem jeito, sem maneiras de melhorar.
espaço em áreas comuns dos territórios. No a equipe deixasse isto claro, notávamos que
caso de Beatriz, a experiência evidenciou que Laerte e os próprios moradores esperavam
que o projeto e o desenho fossem produtos 10 - Laerte, morador da Vila Acaba Mundo e presidente da Associação de Moradores da Vila Acaba Mundo. Fala
as regras e medidas definidas pelo universo da registrada pelas autoras em março de 2018.

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Figura 30. Escada da casa da Beatriz. algo que não se dissolve tão facilmente. Porém, FINALIZANDO...
o processo de envolvimento com a população
permite a dissolução destas hierarquias ao Defendemos que, enquanto cidadãos, devemos
longo do tempo, como confirmado na fala ser agentes ativos das transformações sócio-
de Laerte. O estranhamento parece ter se espaciais da cidade. Os autoconstrutores
acentuado na relação com os autoconstrutores conhecem sua própria realidade, seus
do sexo masculino; Isto também foi observado problemas e necessidades. Porém, baseado
em assessorias individuais, nas quais notamos em Morado Nascimento (2016), entendemos
resistência à adoção das informações que os moradores devem ter poder de decidir.
transmitidas pela equipe do Práxis-EA/UFMG, Esta decisão deve ser livre da dominação
majoritariamente composta por mulheres. tecnológica e científica, bem como da ordem
política. Sendo assim, os próprios indivíduos são
Afirmamos que a transformação do morador capazes de agir e reagir em sua transformação
se dá pela prática e que o objetivo das social e possibilitar a construção de outra
Fonte: PRAXIS-EA/UFMG, 2017.
assessorias técnicas não se restringiu a cidade, socialmente mais justa.
propor a transformação do espaço per se,
mas também se concentrou em instigar os Defendemos, portanto, que não basta prover
Mesmo sonhando com melhorias, a gente mundo vai falar que isso é coisa nossa
não via expectativa, não tinha visão para moradores a protagonizarem este processo o serviço técnica e afirmar, simplesmente,
mesmo”12. Assim, ele defende o valor do
nada disso. Então, aí veio o pessoal da de transformação. Sendo assim, é importante que o projeto do arquiteto irá garantir a
compartilhamento também para os moradores.
arquitetura introduzindo aos poucos11. ressaltar que, ainda que as sugestões e/ou qualidade de vida almejada pelo morador.
Até ser motivada e provocar os moradores a
Laerte explicita que a materialização resultante soluções propostas não se materializassem no Propõe-se processos de assessoria técnica
respeito de sua potencialidade, a possibilidade
de um processo compartilhado “tem um tempo presente, defendemos que o processo, que promovam transformação das condições
de assessoria técnica é desconhecida e de vida dos autoconstrutores, baseados em
pedacinho de todo mundo. E quando ele em si, transforma e abre o horizonte de
causa estranhamento. Há, também, o capital suas práticas e em suas visões de mundo. A
estiver pronto, não vai ter o que falar. Todo possibilidades à prática do autoconstrutor.
simbólico associado à imagem do arquiteto, determinação das necessidades do morador é
Defendemos que a troca de informações
um processo aberto, de construção, estando
incrementa o arcabouço de possibilidades
imbricada em sonhos e desejos imersos em
construtivas do morador, visando que a prática estruturas culturais e históricas. Da mesma
11 - Idem. autoconstrutora possa ser potencializada. forma, a atuação do arquiteto é engendrada
12 - Idem. por relações de poder, símbolos e saberes
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incorporados. O que se propõe é a abertura No sentido das experiências de assessoria Referências bibliográficas
ao diálogo entre arquiteto e autoconstrutor, técnica na Vila Acaba Mundo, o
bem como a desconstrução do lugar simbólico compartilhamento do processo de projeto CAU/BR, DATAFOLHA. O maior diagnóstico
TIBO, Gerusa Lustosa de Andrade, LINHARES,
que o arquiteto ocupa na reprodução do e de (auto)construção, pôde prover ao sobre arquitetura e urbanismo já feito no Brasil,
Juliana; MORADO NASCIMENTO, Denise.
espaço urbano. construtor benefícios como: (i) a proposição 2015. Disponível em: http://www.caubr.gov.br/
Análise da autoconstrução a partir de suas
de outras possibilidades construtivas externas pesquisa2015. Acesso em: 09.09.2017.
práticas. In: Anais do III UrbFavelas. Salvador:
Retomando a autoconstrução como prática ao arcabouço recorrente da autoconstrução;
configurada por distintos repertórios e MORADO NASCIMENTO, Denise (org.) UCSAL, 2018. Disponível em: <http://
(ii) a possibilidade de experimentação de Saberes [auto]construídos. Belo Horizonte: Ed. www.sisgeenco.com.br/sistema/urbfavelas/
motivações, a assessoria técnica exige a arranjos espaciais; e (iii) a antecipação AIC, 2016. anais2018a>. Acesso em: 16.02.2019.
adoção de distintas metodologias de atuação. da conformação final para contrapô-la às
A partir do conceito incorporado por este expectativas e desejos iniciais dos moradores. TIBO, Gerusa Lustosa de Andrade. Reflexões da STEVENS, Garry. O círculo privilegiado:
trabalho sobre os aspectos que compõem a Vale lembrar da importância dos custos prática da assessoria técnica: uma abordagem fundamentos sociais da distinção arquitetônica.
autoconstrução (TIBO, LINHARES, MORADO das decisões arquitetônicas no processo de a partir da experiência na Vila Acaba Mundo. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
NASCIMENTO, 2018), pressupõe-se que tomada de decisão dos autoconstrutores In: Anais do XVII ENANPUR. São Paulo: Anpur, 2003.
um só método de leitura e atuação não é e assumir a possibilidade, ainda não 2017.
capaz de responder às distintas demandas e empiricamente comprovada, de economias
necessidades habitacionais dos moradores. financeiras em razão da assessoria técnica.

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VILA ACABA MUNDO E OS DESAFIOS
DA REPRESENTAÇÃO
Morena (Maria das Gracas Pereira da Silva)

Meu nome é Maria, mais conhecida como começar. Não tínhamos dinheiro para contratar Figura 31. Laje construída na casa em obras. Figura 32. Casa da Morena em obras.
Morena. Sou moradora da Vila Acaba Mundo. um arquiteto, não tínhamos nem o suficiente
A Vila Acaba Mundo é uma comunidade para pagar o pedreiro. Meu marido trabalhava
situada no bairro Sion, na região c-sSul de junto com o pedreiro aos finais de semana.
Belo Horizonte, em Minas Gerais. O início
da ocupação da Vila Acaba Mundo ocorreu Primeiro, foi feita uma laje para que a demolição
na década de 1940, com as atividades da pudesse continuar, já que estava na época de
mineradora Lagoa Seca. A vila recebeu este chuvas. A princípio, eu queria manter pelo
nome porque, naquela época, representava um menos uma das paredes para economzar no
lugar muito afastado e também por ser cortada material. Mas esta ideia foi abandonada com
por um córrego de mesmo nome, com nascente a elaboração do projeto. Para a construção
no alto do morro, próximo à mineração. da laje, fizemos um empréstimo de R$10.000,
sendo que seis mil reais foram para a laje e
Eu moro na Vila desde meus sete anos de quatro mil, para o material.
idade. Com muito sacrifício, minha mãe me Fonte: Foto Praxis, 2018 Fonte: Foto Praxis, 2018
criou junto com meus oito irmãos. Sempre Os pilares e as vigas da laje foram construídos
morei na Vila. Lá eu cresci, fiz minhas amizades, pelo pedreiro contratado e também pelo meu
estudei e me tornei uma profissional na área marido, Ricardo. Conversando com minha começar o projeto e marcaram uma reunião. No princípio, queria quea entrada da casa fosse
da beleza. Com o passar do tempo, me casei sobrinha, ela me falou do projeto Praxis-EA/ Foi aí que conversamos. Eles me perguntaram o em outro lugar. Eu queria uma varanda e meu
e construí minha família. Tive dois filhos e, UFMG, coordenado pela Geruza Lustosa. Ela que eu tinha em mente e o que eu gostaria de marido queria quartos. Chegou até a construir
junto com o meu marido, conseguimos criá- disse que o projeto era formado por uma equipe fazer na minha casa. Expliquei como eu gostaria uma parede com janelas no andar de cima. Eu
los como cidadãos de bem. Nós morávamos de estudantes que ajudavam os moradores da que minha casa ficasse. Foi aí que entramos em queria uma cozinha gourmet, uma cliente havia
em uma casa de seis cômodos e recebemos Vila, orientando nas reformas das casas. acordo e já começamos a trabalhar na planta. comentado comigo que tem uma. Eu também
uma proposta de troca por uma outra casa, queria um espaço para o salão. Enfim, foram
Entrei em contato com a Geruza e ela me
onde moro atualmente na Vila. Esta outra casa A equipe desenhou o projeto e me explicou por várias mudanças que foram acontecendo
respondeu imediatamente. Expliquei a ela que
era muito velha e seria necessário derrubá-la várias vezes até que eu entendesse. Confesso ao longo da construção e da elaboração do
estava iniciando uma obra e precisava da ajuda
no chão e começarmos do zero. Contratamos que não foi muito fácil de entender. Eles eram projeto. As mudanças foram acontecendo
de um profissional que entendesse do assunto.
um pedreiro, mas queríamos fazer algo mais sempre muito atenciosos e, faça chuva ou faça todas ao mesmo tempo, conforme o projeto ia
Eles mostraram prontamente interesse em
elaborado. Estávamos sem saber por onde sol, estavam lá me explicando tudo. avançando.

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Figura 33. A a equipe do Práxis e Morena elaborando o projeto; a casa em obras; o Um dia, a Letícia do grupo Práxis-EA/UFMG primeiro andar, ganhando mais espaço para
projeto de referência pregado na parede; ou, para mim, letras em japonês; Ricardo, teve a ideia de colocar os móveis nos desenhos acomodar melhor minha família e receber
Bruno (o filho) e Morena) incluindo os móveis na planta. de projeto. Na cozinha, ela colocou um melhor nossos amigos.
desenho da pia, do fogão e da geladeira. Na
sala, colocou do sofá. Na varanda, colocou Foi a realização de um sonho.
as plantas e uma rede. Foi aí que comecei a Obrigada, Geruza. Também agradeço a toda
entender e perceber que a minha casa ficaria sua equipe.
linda. Até esse momento, eu ficava olhando
para a planta e fingia estar entendendo. Acho Figura 34. quarto e banheiro de Moena
que o Ricardo também. Foi só neste momento
que comecei a entender. A equipe Práxis-EA/
UFMG acompanhou todo o processo de perto,
da planta até o final.

No projeto, combinamos que a sala teria duas


janelas. Mas teve um dia que cheguei na obra
e as duas janelas estavam fechadas. Entrei
em completo desespero. Desesperei porque
me senti abafada, dentro de uma cadeia. Aí
o Ricardo e o pedreiro tiveram que quebrar,
conforme estava combinado no projeto.

Hoje, graças a Deus e ao Práxis-EA/UFMG,


estamos muito felizes na nossa casa que ficou
linda. Ficou como sempre sonhei. Atualmente,
estamos morando nos cinco cômodos que
foram finalizados. Ainda estamos trabalhando
para continuar a reforma no segundo
Fonte: Foto Praxis, 2018 pavimento e para rebaixar o teto com gesso no Fonte: Foto Morena, 2019

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Figura 35. Sala da casa de Moena atualmente. Figura 36. Cozinha da casa de Moena atualmente.

Fonte: Foto Morena, 2019 Fonte: Foto Morena, 2019

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SÃO PAULO - SP
CAMPOS ELÍSEOS
CAMPOS ELÍSEOS: Figura 37. Notícia sobre a demolição de imóveis na região da Luz, Campos Elíseos.

UM TERRITÓRIO EM DISPUTA
Danielle Cavalcanti Klintowitz - Vitor Coelho Nisida - Felipe de Freitas Moreira

INTRODUÇÃO entanto, as propostas violam direitos em vez


de garanti-los. Os direitos ameaçados são,
O projeto Campos Elíseos Vivo é uma proposta sobretudo, das populações mais vulneráveis que
elaborada entre as entidades integrantes do vivem no bairro. Trata-se da mais recente versão
Fórum Aberto Mundaréu da Luz e os moradores das propostas de “revitalização” que o poder
do bairro Campos Elíseos, mais especificamente público tenta implementar na região central há
aqueles que vivem nas quadras 36, 37 e 38, em mais de duas décadas. Estas iniciativas revelam a
torno do Largo Coração de Jesus. A área, que força de grupos políticos e setores econômicos na
faz parte de uma Zona Especial de Interesse proposição de projetos que promovem a exclusão
Social (ZEIS), virou objeto de disputas mais e a gentrificação em territórios populares.
intensas a partir de maio de 2017, quando
a gestão Dória iniciou um violento processo
de remoção e de demolição de imóveis em UM TERRITÓRIO EM DISPUTA
nome do fim da “Cracolândia”. Por trás de tais
ações e de uma intervenção exageradamente Nos vinte anos de intervenções do poder público
midiática, estava um projeto encabeçado pela na região da Luz e Campos Elíseos, todas as
Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB), propostas têm se constituído a partir da narrativa
que, em convênio com o Governo Estadual, visa da “revitalização”, tratando a região como se
produzir conjuntos habitacionais via parceria fosse esvaziada de vida e esvaziada de gente,
público-privada (PPP). Além da proposta da PPP como um depósito de “drogados” e marginais
Habitacional, a Secretaria Estadual de Saúde que vivem no “fluxo”, em uma cena aberta de
ainda propôs construir uma nova unidade do uso problemático de drogas. O discurso da
Hospital Pérola Byington em uma das quadras. revitalização tem utilizado o mote do combate
à degradação urbana e à “Cracolândia” para
À primeira vista, os projetos do executivo justificar a necessidade da intervenção pública na
apresentam uma agenda propositiva que região, mas se perde em algumas contradições
envolve a produção de moradia e um imponente que evidenciam as reais disputas que estão em
equipamento de saúde na região central. No jogo neste território. Fonte: O Estadão de São Paulo, 23 de maio de 2017.

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Embora o discurso oficial construa, 2017, o então prefeito João Doria anuncia Figura 38. Linha do tempo da disputa da região Luz
recorrentemente, a imagem de que a região o “fim da Cracolândia” e coordena uma
está esvaziada porque não possui moradores, a ação extremamente violenta sobre o fluxo, ao
maioria dos projetos propostos está associada mesmo tempo em que promove demolições
a processos de remoção. Em outras palavras: sem ordem judicial e com pessoas ainda
há mais pessoas vivendo ali do que a própria dentro dos imóveis. Mais uma vez, o combate
narrativa dominante gostaria de reconhecer, à “Cracolândia” é mobilizado para justificar
quando tenta afirmar seu argumento sobre as remoções, com a narrativa de que aqueles
o esvaziamento do centro. Neste sentido, o imóveis do entorno do fluxo eram ocupados por
combate ao crime e o fim da “Cracolândia” traficantes. A ação foi extremamente truculenta,
ganham um peso muito importante, na absolutamente irregular e, desde então, com
medida em que favorecem ações arbitrárias e a justificativa do controle do fluxo, a polícia
violentas, dando legitimidade ao uso das forças tem ocupado a região fazendo abordagens
policiais contra a população local, esteja ela abusivas e agredindo moradores e pessoas
associada ao tráfico ou não. Assim, os perigos do fluxo, muitas vezes com uso de bombas de
do “fluxo” da “Cracolândia” têm sido usados efeito moral.
como justificativa para mobilizar a narrativa
Este episódio motivou a articulação de uma
da degradação do centro e da necessidade de
série de organizações que trabalham na região
intervenção do Estado.
ou que mantêm alguma atuação em setores
A primeira ação policial executada na relacionados com as intervenções no território,
“Cracolândia” foi em 1998, mas só em em temas como moradia, patrimônio, cultura e Fonte: Apresentação do Instituto Pólis no Seminário Nacional de Planejamento Alternativo, 2019
2005 aconteceram as primeiras demolições saúde pública. O objetivo era pensar ações que
de imóveis com a remoção de famílias poderiam organizar a resistência da população
moradoras. A partir de então, as operações moradora da região contra as ações repressivas O fato de as várias entidades participantes maneira mais holística sobre a área, abordando
na “Cracolândia” passam a ser associadas da Prefeitura e do Governo do Estado. Tal trabalharem com temas diferentes propiciou um seus problemas, conflitos e potencialidades
a intervenções físicas que removem famílias articulação deu origem ao Fórum Aberto caldo muito rico, a partir do qual foi possível através de diversas dimensões.
residentes. Este padrão de ação do Estado Mundaréu da Luz, que, meses mais tarde, construir uma articulação multitemática e
ganha novos contornos quando, em maio de lançaria o Projeto Campos Elíseos Vivo. multissetorial, com o objetivo de refletir de

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COMO CHEGAMOS tipologias características dos imóveis da região, Figura 39. Projeto de Parceria Público-Privada de Habitação de Interesse Social
trazendo a atenção de moradores e transeuntes - Casa Paulista
Desde sua criação, o Mundaréu da Luz propôs para aspectos locais que, cotidianamente,
fazer uma profunda reflexão sobre como se passam despercebidos.
aproximar e como atuar na região. Além do
conflito deflagrado pela ação do próprio poder Nessas atividades, os moradores foram
público e da consequente ameaça de remoção, questionados sobre a visão que tinham acerca
as condições de vulnerabilidade da população do próprio bairro, sobre o que era interessante
local e a presença constante do fluxo são fatores manter e sobre o que era essencial transformar.
essenciais para entender este tecido social pouco Tais perguntas tinham a intenção de despertar
coeso e de difícil penetração. Não havia um a percepção das pessoas para a região em que
senso de comunidade constituído nos Campos vivem. Dentre as respostas, o conflito com a
Elíseos. Tampouco havia uma Associação polícia foi um ponto que surgiu repetidamente.
de Moradores constituída ou outra forma As intervenções do Estado, que não eram
de organização com lideranças legitimadas. explicadas de maneira apropriada, e a
Quando o Mundaréu começou sua atuação, existência de uma vida cotidiana muito intensa
era difícil encontrar um sentido mínimo de na rua e nas pensões também foram retratadas
vizinhança ou algo que desse alguma unidade com alguma recorrência. De um modo geral, a
ao conjunto de moradores locais. Isto dificultou percepção da população indicava o imaginário
enormemente a aproximação por parte das de um território que, apesar de seus conflitos,
organizações que compunham a articulação. era definido pela vivacidade e pelo dinamismo
cotidianos, o que divergia da narrativa oficial que
A opção mais viável foi iniciar o trabalho a buscava – e ainda tenta – caracterizar a região
partir do espaço público. O Mundaréu passou pelas ausências e pelos vazios, como forma de
a promover eventos de rua, como o Mutirão de justificar a necessidade de “revitalização”.
Desenhos, que tinha o objetivo de criar uma
leitura da região e de projetar desejos para o A partir do momento em que algumas relações
bairro através do desenho. A atividade também de confiança já haviam se estabelecido com a
visava resgatar o aspecto cultural do bairro e as população, o Mundaréu propôs oficinas junto
Fonte: http://www.habitacao.sp.gov.br/icone/detalhe.aspx?Id=13

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aos moradores para elaborar um projeto o caso dos Campos Elíseos, assumam o Fórum Aberto Mundaréu da Luz se propôs a que demonstrassem ser possível outro padrão
popular como alternativa à proposta oficial financiamento para aquisição de um imóvel. construir, junto com a população da região, de intervenção que não demolisse as casas
da Prefeitura. [notícia + figura da proposta Como se não bastasse, o Governo Estadual um plano alternativo que se contrapusesse ao ou removesse as pessoas do bairro. Para
da PPP] No âmbito da PPP Habitacional, o já vinha lavrando as desapropriações e projeto imposto pelo poder público. O projeto tanto, era preciso reconhecer a realidade
Governo Municipal anunciara a provisão de remoções da quadra 36 para a construção da Prefeitura era autocrático e refletia uma visão daquele território e propor alternativas para
unidades habitacionais em dois quarteirões do hospital, também via PPP e também sem higienista e excludente, impressa nas propostas as famílias que ali viviam, considerando a as
do bairro (as quadras 37 e 38). O projeto, qualquer envolvimento da população atingida oficiais desde a década de 1990, quando características e dinâmicas das ruas e praças,
resultado de um convênio com o Governo nas decisões que as afetariam. o discurso de que ali não havia vida já era buscando a morfologia e as diversas tipologias
Estadual, previa a desapropriação e a utilizado para justificar a revitalização da área habitacionais, sempre enfatizando o fato de que
Além das incongruências do modelo da PPP há pessoas vivendo e desejando permanecer
demolição de vários imóveis para a construção por meio da atração novas pessoas. O objetivo
Habitacional, o processo apresentava uma série naquela área.
das novas moradias. A intervenção implicaria era construir um projeto que se contrapusesse
de ilegalidades, já que as três quadras (36, 37
o despejo de dezenas de famílias que viviam à narrativa oficial, um instrumento político e O processo de construção do plano alternativo
e 38) estão demarcadas como ZEIS no Plano
em pensões, cortiços, apartamentos e até em contra-hegemônico com soluções técnicas levou cerca de um ano. Foi feito por meio de
Diretor Estratégico do município, de 2014.
ocupações, sem que as pessoas atingidas
Essa definição garante que qualquer processo
fossem chamadas a participar da elaboração
de intervenção a ser feito na área precise ser Figura 40. Discussão das propostas pela comunidade local
e das decisões do projeto que as removeria.
discutido e aprovado na forma de um Plano
Enquanto isso, a PPP Habitacional estava Urbanístico por um Conselho Gestor, de
prestes a inaugurar, ao lado da quadra 37, formação paritária, para garantir a participação
torres residenciais cujas unidades haviam sido dos moradores. No entanto, as ações de maio
produzidas pelo Governo Estadual em uma de 2017 foram executadas antes da instalação
etapa anterior da mesma PPP. Embora fossem dessa instância participativa, tornando as
suficientes para atender cada pessoa a ser intervenções da Prefeitura irregulares.
removida das quadras 36, 37 e 38, as novas
Diante da falta de transparência e de
unidades não seriam destinadas a nenhuma
participação e em resposta ao projeto
família da região, por conta das regras de
autoritário que ignorava as necessidades da
atendimento da própria parceria público-
população local, propondo sua remoção sem
privada, cujo modelo de acesso não permite
qualquer solução habitacional adequada, o
que famílias de baixíssima renda, como é Fonte: Foto do Instituto Pólis - Fórum Aberto Mundaréu da Luz.

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Figura 41. Colagem de eventos, levantamentos, reuniões e oficinas com moradores, Figura 42. Fichas com desejos dos moradores e reuniões realizadas com Danielle Klintowitz
iniciativa do Fórum Aberto Mundaréu da Luz. e Raquel Rolnik e os moradores da região Luz.

Fonte: Publicação “Campos Elíseos Vivo”, 2018. Fonte: Fotos do Instituto Pólis - Fórum Aberto Mundaréu da Luz, 2017.

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levantamentos e debates em oficinas com O QUE ENCONTRAMOS Figura 43. Síntese dos dados habitacionais, mais qualificados que os da Prefeitura,
os moradores. A articulação tentou entender levantados pelo Mundaréu da Luz.
não apenas quantas pessoas viviam naquelas O processo de aproximação, a realização de
quadras, mas também como eram os modos oficinas e de pesquisas de campo permitiu
de vida e seus diferentes modos de morar. A sistematizar uma leitura sobre as quadras
construção desse entendimento foi fundamental 36, 37 e 38 que apresentou a realidade e
para explorar, coletivamente, possibilidades de a diversidade dos modos de morar e das
melhoria das condições de vida, qualificando atividades econômicas locais.
o bairro e preservando o que era importante Foram identificados vários tipos de arranjos
para a população local. Aos poucos, a entrada familiares, como núcleos de 7 pessoas, núcleos
nas pensões e residências se tornou possível, o monoparentais (em sua maioria, constituídos
que viabilizou a consolidação de uma leitura por uma mãe com um ou mais filhos) e também
socioterritorial que, mais tarde, durante o uma grande quantidade de pessoas morando
desenvolvimento da proposta coletiva, viria a sozinhas. Nestes casos, foi comum observar
servir de subsídio para as discussões com os o aluguel de camas (e não de cômodos),
próprios moradores. pago semanal ou diariamente (em vez de
Os levantamentos buscaram compreender mensalmente).
as histórias e os modos de vida das famílias A região também é um lugar tradicional de
residentes, assim como as potencialidades de moradia cigana. Apesar do nomadismo, há
transformação daquele território, sem que as famílias que moram sazonalmente na mesma
construções precisassem ser demolidas para pensão há 25 anos: sempre que voltam a viver
ser requalificadas. Neste processo, a percepção na cidade de São Paulo, escolhem o mesmo
dos moradores, que a todo momento eram imóvel da rua Helvétia para morar.
provocados e instigados a participar e construir
uma leitura conjunta, foi fundamental para que Quanto a renda das famílias, foi observado um Fonte: Publicação “Campos Elíseos Vivo”, 2018.
o diagnóstico da área fosse o mais próximo das baixo padrão econômico, com rendimentos que
necessidades que estavam colocadas em sua dificilmente chegam aos três salários mínimos
realidade cotidiana. mensais. Apesar da baixa renda, foi observado

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um alto grau de comprometimento com Deveria ser desnecessário defender premissas Figura 44. Síntese dos dados do comércio local levantados pelo Fórum Mundaréu
os custos da moradia, sendo que muitas tão óbvias, mas é evidente que o desenho de da Luz.
famílias – quase metade – destinam mais políticas públicas deveria partir das necessidades
de dois terços dos seus rendimentos para reais da população a ser beneficiada pela
o pagamento do aluguel, configurando ação do Estado, de modo que os programas
um quadro evidente de necessidades públicos fossem adequados aos grupos que
habitacionais a serem contempladas por visam atender e não o contrário. Neste caso da
políticas públicas adequadas. PPP Habitacional do centro, pode-se supor que
o modelo de política habitacional construído
Hipoteticamente, se os edifícios produzidos para esta região não pretendia realmente
pela PPP Habitacional fossem oferecidos solucionar os problemas das famílias que ali
para as famílias das quadras 36, 37 e 38 – o vivem e sim trazer novas pessoas para ocupar
que não era a proposta inicial do Governo esta região pretensamente desabitada.
do Estado e da Prefeitura –, seu padrão de
renda seria um impeditivo ao financiamento O diagnóstico também foi bastante eloquente
imobiliário exigido pelo programa em relação ao comércio da região. A maioria
habitacional. Não apenas o modelo de dos comerciantes são locatários do imóvel
financiamento da parceria público-privada que ocupam e suas lojas estão abertas há
seria inadequado ao padrão de renda cerca de dez anos. Esses comerciantes e os
desses moradores, mas também as tipologias demais empregados que trabalham em seus
seriam absolutamente inapropriadas para a estabelecimentos também são moradores
diversidade de arranjos familiares existente. daquelas quadras ou de quadras vizinhas nos
De saída, além de pressupor a remoção das Campos Elíseos. Não raramente, o comércio
famílias que já vivem nesta região do centro, ou serviço ocupa o térreo do mesmo imóvel em
o programa proposto pelo poder público que moram.
não dialoga com o perfil social e econômico Há, portanto, uma relação muito forte entre a Fonte: Publicação “Campos Elíseos Vivo”, 2018.
desses grupos, que, seguramente, deveriam moradia e o comércio do bairro, ou, entre a
ser assistidos por políticas de toda sorte, casa e a atividade econômica responsável pela
inclusive habitacional.

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renda familiar; algo que, tradicionalmente, sociedade civil nos Conselhos Gestores de ZEIS, estratégia foi de atestar as irregularidades nas Contudo, esta estratégia de judicialização e
as políticas habitacionais não conseguem criados após muita pressão. Os Conselhos se demolições promovidas pela gestão Dória, de atuação com a Defensoria e o Ministério
contemplar em suas diretrizes e linhas de ação. tornaram um espaço institucional importante de já que, segundo o Plano Diretor Estratégico Público apresentou suas limitações, já que este
Não foi diferente no caso do projeto original da embate, resistência e questionamento. Neles, municipal, qualquer intervenção em área de campo de disputa se revelou tendenciosamente
Prefeitura de São Paulo, via PPP Habitacional: passaram a atuar algumas das entidades que ZEIS precisa ser aprovada por seu Conselho mais favorável às decisões do Estado e da
as famílias com comércio no bairro seriam integram o Fórum Aberto Mundaréu da Luz, Gestor (CG) e a população local deve ter Prefeitura. Apesar de as quadras 37 e 38 ainda
removidas e, além de ficarem sem as casas, como o Instituto Pólis. espaço e direito à voto. resistirem, a Justiça de São Paulo determinou
não receberiam nenhum tipo de compensação a remoção das famílias da quadra 36 e a
A primeira vitória no âmbito destas ações
pela perda de sua fonte de renda. demolição dos imóveis para a construção do
de resistência foi a instituição dos Conselhos
A proximidade entre casa e trabalho – ou entre a
ESTRATÉGIAS DE AÇÃO Gestores de ZEIS. A decisão judicial favorável à
Hospital Pérola Byington, cujo projeto só foi
aprovado no Conselho Gestor meses após as
casa e as principais oportunidades de emprego ação do MP obrigou o poder público municipal
demolições e somente porque o poder público
e renda – é um fator essencial para a escolha DISPUTAS NA JUSTIÇA a cumprir a lei e instalar um Conselho para
articulou manobras e submeteu a proposta à
da moradia e, sobretudo, para o desejo de ali as quadras da região. Inicialmente foi criado o
Paralelamente à elaboração do projeto votação, irregularmente, sem discussão prévia
permanecer, mesmo no caso daquelas famílias CG para as quadras 37 e 38, onde o Município
Campos Elíseos Vivo, o Mundaréu da Luz e os e sem espaço para questionamentos.
que não têm um negócio na região ou que propôs a PPP Habitacional, e, posteriormente,
não trabalham em algum comércio ou serviço moradores do Campos Elíseos articularam uma outro Conselho para a quadra 36, onde
naquelas quadras do Campos Elíseos. série de estratégias em diferentes campos para o Estado propôs a construção do hospital. DISPUTAS DE NARRATIVAS
garantir amplitude ao processo de resistência Apesar da divisão em duas instâncias, em vez
Apesar de as pesquisas de campo realizadas contra às ameaças de remoção. Uma delas foi de um único CG para toda a ZEIS, os espaços A disputa de narrativas na mídia foi outra linha
no âmbito do Fórum Mundaréu não terem a estratégia jurídica, baseada na articulação foram constituídos de maneira paritária, com de ação estratégica adotada pelo Mundaréu.
recenseado todo o conjunto de moradores das do Fórum com a Defensoria e com o Ministério a presença de representantes dos moradores Ela implica um trabalho contínuo e cheio de
três quadras, o processo de aproximação, a Público (MP) do Estado de São Paulo, que, e também de instituições e organizações do obstáculos, pois as mídias tradicionais têm
permanência e o contato cotidiano, através das em momentos-chave, foram essenciais para Mundaréu da Luz. incorporado o discurso da necessidade da
oficinas com a população, possibilitaram uma mover ações e interpelar em favor dos direitos eliminação da “Cracolândia”. Até mesmo
leitura muito mais profunda e detalhada do dos moradores da região. A argumentação A estratégia jurídica obteve outras pequenas o diálogo com a mídia alternativa, que
que a própria Prefeitura foi capaz de produzir jurídica foi baseada no direito à moradia dos vitórias, retardando remoções e evitando tradicionalmente tem um posicionamento mais
no mesmo período. Além de subsidiar o projeto residentes do bairro e nos marcos regulatórios despejos sumários, que deixariam famílias na rua crítico em relação às remoções forçadas, é
coletivo, essas informações muniram a ação da que gravaram aquelas quadras como ZEIS. A sem qualquer auxílio ou atendimento provisório. truncado e cheio de vícios, dado que o uso

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Figura 45. Remoção das famílias da região da Luz. recorrente de expressões como “Cracolândia” apresentar matérias jornalísticas positivas
reproduz todo o estigma da região na percepção que considerem soluções alternativas. A
da opinião pública e reitera a narrativa de que incidência na imprensa foi muito importante
é fundamental intervir a qualquer custo na para desvelar, ao público em geral, o que
região para “revitalizá-la”. realmente acontecia no Campos Elíseos e que
Mostrar que outros modelos de intervenção era tornado invisível pela narrativa oficial,
são possíveis, revertendo o estigma, é uma estruturada em torno da ideia de que as
forma de questionar publicamente as propostas ações policiais e demolições de edifícios eram
oficiais, dando ênfase aos seus impactos e às medidas imprescindíveis para acabar com a
violações de direitos. Para tanto, é fundamental “Cracolândia” e prender traficantes.

Figura 46. Discussão das propostas pela comunidade local nos Conselhos Gestores de ZEIS

Fonte: Levantamento realizado pelo Fórum Aberto Mundaréu da Luz, mundareudaluz.org Fonte: Fotos do Instituto Pólis - Fórum Aberto Mundaréu da Luz.

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Nossa estratégia não ficou restrita à incidência na No entanto, não há como deixar de reconhecer Figura 47. Infográfico das fases e da produção Habitacional e outros espaços
mídia tradicional. Elaboramos muitos materiais os limites dos Conselhos que, apesar de
gráficos e digitais para disseminação nas redes, serem paritários, possuem um regimento
buscando humanizar as famílias atingidas, interno favorável ao comando e às diretrizes
mostrando suas histórias, seu cotidiano, da Prefeitura Municipal que os coordena, já
seus rostos, tirando-as da invisibilidade e da que cabe à presidência do CG (geralmente
impessoalidade dos números. Por outro lado, ocupada por um representante da SEHAB)
algumas peças tentaram retratar o impacto a decisão final – o voto de minerva – em
das remoções, demonstrando a dispersão da votações empatadas. Assim, em disputas
população despejada irregularmente. mais duras e equilibradas entre governo
e sociedade civil, tendem a prevalecer as
imposições da Prefeitura.
ATUAÇÃO NOS CONSELHOS GESTORES Fora desses espaços institucionais de
Os Conselhos Gestores das ZEIS, já mencionados participação, o poder público adotou
anteriormente, têm sido um espaço fundamental canais privados diretos e não oficiais com
de luta e resistência. A estratégia de ocupar alguns moradores, principalmente, com
essas instâncias oficiais de representação é os proprietários. Desta forma, levou as
essencial para a disputa. Membros do Mundaréu negociações para dentro dos gabinetes,
e moradores comprometidos com a construção visando fortalecer sua agenda e enfraquecer
de soluções alternativas às oferecidas pelo poder os Conselhos. Ainda assim, os Conselhos
público passaram a atuar ativamente nestes Gestores são arenas políticas de discussão e
Conselhos. Os Conselhos Gestores integraram decisão e têm sido importantes espaços de
as reivindicações da sociedade civil, que exigiu a resistência porque garantem, minimamente, a
criação de espaços institucionais para o diálogo oportunidade para contestação, para disputa
direto com o poder público, para solicitar e para a organização da sociedade civil em
informações e explicações, para apresentação torno de propostas alternativas. O próprio
das políticas propostas, para obter respostas às projeto Campos Elíseos Vivo foi apresentado
dúvidas dos moradores e, principalmente, para e discutido no âmbito dos Conselhos de ZEIS
disputar as decisões sobre do território. das quadras 36, 37 e 38, como alternativa à Fonte: Publicação “Campos Elíseos Vivo”, 2018.

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política proposta pelo Estado e pela Prefeitura. este espaço institucional organiza uma força Figura 48. Eixos do projeto
Parte de suas diretrizes teve que ser incorporada de resistência no interior de um processo de
às diretrizes apresentadas posteriormente pelo intervenção. Se o início foi avassalador, em
poder público, o que mostra a efetividade, determinado momento, tomou um novo rumo.
ainda que parcial, das forças de resistência no Um dos motivos para esta guinada é certamente
interior deste âmbito institucional. a atuação dos Conselhos Gestores.
A garantia de que todas as famílias sejam
incluídas na demanda habitacional e a
CAMPOS ELÍSEOS VIVO
aprovação do cadastro para o atendimento
definitivo também são exemplos de O projeto Campos Elíseos Vivo é um plano
competências dos Conselhos que garantem popular alternativo às propostas do poder
o cumprimento de medidas para efetivar os público e apresenta um projeto urbanístico e
direitos das famílias do bairro. Os ritos formais, social para a região dos Campos Elíseos, no
a fiscalização e a cobrança dos conselheiros centro de São Paulo. O plano foi elaborado
têm conseguido impor um outro ritmo ao ao longo de quase um ano junto com os
andamento das intervenções da Prefeitura, moradores e trabalhadores da área, através de
impedindo que ela implante seu projeto de oficinas, reuniões e ações de rua promovidas
forma arbitrária, violando direitos da forma pelo Fórum Aberto Mundaréu da Luz. Apesar
brutal que caracterizou suas ações no primeiro de ser entendido como um processo coletivo,
semestre de 2017. As diretrizes propostas que não tem necessariamente uma forma final
pela Prefeitura puderam ser questionadas no e definitiva, a articulação se propôs a formatar
plano da técnica, ao serem contrapostas às e apresentar publicamente o projeto em abril
alternativas oferecidas pelo Mundaréu por Fonte: Publicação “Campos Elíseos Vivo”, 2018.
de 2018. A data serviu como oportunidade
meio do projeto Campos Elíseos Vivo. para aproveitar o tempo político das mudanças
Assim, apesar dos limites, os Conselhos têm de comando no Estado e no Município, já que
ajudado a tornar o Fórum Mundaréu um se tratava de um ano eleitoral que provocaria
ator político relevante nas disputas em torno mudanças na gestão da Prefeitura.
das políticas previstas para a região. Assim,

154 155
O plano é estruturado em três grandes eixos. O lugar onde moram atualmente. É um modelo residenciais, atendendo também à necessidade necessidade de remoção como única resposta
primeiro eixo trabalha a questão da moradia e de atendimento chave-a-chave: a família dos comerciantes locais hoje ameaçados de possível. A remoção não é uma condicionante
do trabalho, o segundo aborda aspectos dos só deixa sua casa quando receber a chave perder sua fonte de renda. técnica para viabilizar a política habitacional,
espaços e dos equipamentos públicos e um da sua nova moradia, próxima à atual, sem mas um imperativo higienista, de caráter
terceiro eixo trabalha a questão do fluxo com Além de propor uma solução viável, o principal meramente político e ideológico.
gerar necessidade de soluções provisórias e
mais profundidade a partir da abordagem argumento do projeto Campos Elíseos Vivo é
sem sobrecarregar as filas de espera para o
proposta pelas políticas de redução de danos. ausência de razões técnicas que justifiquem a
atendimento habitacional definitivo.
Uma das diretrizes centrais do projeto consiste Considerando apenas as áreas disponíveis dos
na produção de novas unidades habitacionais terrenos vazios e os dois imóveis extremamente
em terrenos vazios existentes na própria região precários que precisam ser substituídos em
(a menos de 1km de distância das quadras), Figura 49. Infográfico das fases e da produção Habitacional e outros espaços
razão de seu estado de degradação, seria
dispensando a demolição de imóveis e possível construir cerca de trezentas novas
comprovando que a remoção de famílias unidades habitacionais nas quadras 37 e 38.
não é condição necessária para a provisão O número poderia ser ainda maior, cerca de
habitacional. Para além da construção de seiscentas unidades, se os terrenos já demolidos
novas moradias, o projeto também propôs a e desocupados da quadra 36 fossem utilizados
requalificação de imóveis nas quadras 36, 37 para provisão habitacional em vez de abrigarem
e 38, já que muitos dos edifícios habitacionais o hospital, cujo projeto segue sem avançar.
existentes poderiam, perfeitamente, continuar Independentemente do cenário, o número de
desempenhando tal função ainda que unidades seria suficiente para atender toda a
precisem de reparos e melhorias – o que demanda da população existente nas quadras,
também evitaria demolições. definida, hoje, pelas famílias ameaçadas de
remoção. Tal provisão evitaria que famílias
ATENDIMENTO CHAVE-A-CHAVE tivessem que se mudar para outra região da
cidade, evitaria remoções, possibilitaria a
O objetivo desta proposta habitacional é construção de novas unidades com diversidade
possibilitar o atendimento às famílias da região tipológica adequada às famílias locais e ainda
sem que elas precisassem ser removidas do destinaria as áreas térreas para usos não- Fonte: Publicação “Campos Elíseos Vivo”, 2018.

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TERRENOS VAZIOS Detalhes operacionais do PEUC à parte, o que Figura 50. Infográfico das fases e da produção Habitacional
importa dizer é que imóveis notificados por este e outros espaços
Fizemos o levantamento de terrenos vazios instrumento são terrenos que, notadamente,
próximos às quadras. Estes terrenos poderiam sernão cumprem sua função social e que
utilizados para a produção de novas unidades deveriam estar no horizonte da política urbana
habitacionais, evitando, assim, remoções e e habitacional por serem lotes subutilizados em
demolições desnecessárias. Para tanto, foram uma região central, servida de infraestrutura
identificados lotes em um raio aproximado e que concentra serviços e empregos. São
de 1km a partir do Largo Coração de Jesus áreas onde a produção habitacional pública
(centro do bairro) que haviam sido notificados deveria priorizar sua ação, sobretudo porque
pela própria Prefeitura com o instrumento de dispensam remoções.
Parcelamento, Edificação e Uso Compulsório
(PEUC) previsto no Plano Diretor. O estudo encontrou 22 imóveis nesta condição,
considerando apenas os lotes notificados e
O instrumento visa efetivar a função social desocupados, com 500 m² ou mais de área.
da terra obrigando proprietários de imóveis Mesmo excluindo os lotes de menor porte,
ociosos e subutilizados a dar um uso mais estimou-se um potencial construtivo de mais
adequado à suas propriedades; daí o nome de 40 mil m², que possibilitaria a construção
do parcelamento, da edificação ou do uso de cerca de 3 mil unidades habitacionais.
compulsórios. Se o dono não atender a Estimando que as quadras ameaçadas de
notificação e não apresentar um projeto que dê remoção provocariam impactos na vida de
nova finalidade ao imóvel, o mesmo passa a ser aproximadamente 400 famílias, este projeto
sobretaxado gradativamente através do IPTU permitiria não apenas realocar as famílias
progressivo no tempo, instrumento também atingidas em um raio de no máximo 1 km,
previsto no Plano Diretor. Ainda assim, se nada partindo do Largo Coração de Jesus, mas
for feito do imóvel no tempo determinado, o também possibilitaria atender mais de 2 mil
Município poderá desapropriar o bem, usando outras famílias de outros bairros da cidade
títulos da dívida pública. de São Paulo.

Fonte: Publicação “Campos Elíseos Vivo”, 2018.

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OUTROS USOS CUSTOS FORMAS DE ACESSO À MORADIA a outros direitos e como o lugar inicial para
reestruturação do indivíduo usuário de drogas.
Para a área térrea dos edifícios, foi programado O projeto Campos Elíseos Vivo foi submetido a O projeto Campos Elíseos Vivo também propõe
A reinserção do usuário e a possibilidade de
o uso comercial, o que seria suficiente para uma avaliação financeira para demonstrar sua uma maior diversidade de formas de acesso
passar pelos programas nos diferentes estágios
atender todos os comércios e serviços atualmente viabilidade prática. Apesar de a proposta prever à moradia, mais adequadas aos diferentes
de tratamento são as tônicas desta proposta.
existentes no bairro e ainda possibilitaria a a construção de um número muito maior de perfis dos moradores, conforme a pesquisa de
chegada de novos estabelecimentos. Além unidades habitacionais do que o previsto pelo campo revelou. A proposta original do poder A solução da casa própria seria apenas mais
de promover um novo dinamismo ao bairro, projeto oficial e de prever espaços comerciais, público foca no atendimento habitacional via uma dentre as modalidades oferecidas e não
a diversidade de usos seria uma maneira de a implantação deste projeto custaria R$ 110 transferência de propriedade privada através a única alternativa. Se for entendida como
atender a demanda dos comerciantes locais e milhões a menos do que a proposta do poder de um modelo de financiamento imobiliário a única solução existente, a propriedade
de associar atividades econômicas à moradia, público. O componente de maior impacto na inacessível à grande maioria das famílias que individual cria obstáculos para famílias cujo
o que demonstrou ser crucial para o padrão de economia final é o custo da terra, que seria vive na região. A impossibilidade do crédito perfil socioeconômico não é compatível
renda da população local mais vulnerável. reduzido drasticamente com o uso do PEUC, já imobiliário apresentado pela PPP Habitacional com o financiamento de pagamento a longo
que o instrumento estimula o uso da terra sem, não se deve apenas ao valor médio de prazo que ela pressupõe.
Além de destinar áreas para usos comerciais e necessariamente, gerar ônus com aquisição ou rendimento das famílias que moram naquelas
serviços, o projeto também propõe o modelo desapropriações litigiosas. quadras, mas ao padrão intermitente e à
de comércio social, uma inovação trazida a ESPAÇOS PÚBLICOS E DE USO COLETIVO
Assim, o projeto Campos Elíseos Vivo informalidade das relações de trabalho a que
partir da reflexão desenvolvida em conjunto
demonstra, tecnicamente, que o projeto do muitos moradores estão submetidos. O projeto alternativo também apresenta
com moradores, que permite o uso desses
espaços não-residenciais através de valores poder público é ineficiente e mais caro que Diante deste quadro, o Campos Elíseos Vivo muitas propostas no âmbito dos espaços e dos
subsidiados como garantia para que o pequeno o necessário. Além disso, não busca atender propõe as modalidades de locação social, equipamentos públicos: banheiros coletivos
comerciante local possa efetivar seu direito de as necessidades habitacionais da cidade, de hotéis sociais para as famílias ou pessoas públicos, incluindo duchas que podem atender
permanecer no bairro. mas atender outros interesses, promovendo a de permanência temporária na região, e a as pessoas que estão no fluxo, até restaurante
substituição da população local por um público moradia terapêutica articulada à política de popular, cozinhas compartilhadas para as
Além do dos estabelecimentos comerciais e de de mais alta renda para região. quituteiras da região, espaços públicos destinados
redução de danos para os casos de extrema
serviços, o projeto também previu espaços de às crianças, espaços para atividades culturais,
vulnerabilidade combinados ao uso de drogas.
uso compartilhado, como oficinas para que os hortas coletivas, entre outros programas.
Esta solução em especial vem sendo muito
moradores que atualmente trabalham em casa
trabalhada em vários lugares do mundo por
possam exercer suas atividades econômicas em
entender a moradia como um ponto de acesso
lugares mais adequados e seguros.

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VITÓRIAS E DERROTAS uma dura derrota na aprovação das diretrizes contempladas pelas políticas públicas, mas muito significativa pela região e adquirindo
de projeto, que foram submetidas ao voto que são sistematicamente excluídas dos o reconhecimento de seus direitos de
O coração do projeto era demonstrar a do plenário sem ter sido apresentadas e planos do Estado. permanência nesse território.
viabilidade técnica e financeira de um discutidas previamente.
plano alternativo à proposta higienizadora e No entanto, é importante demarcar mais duas De modo geral, o Mundaréu da Luz e o projeto
gentrificadora do poder público, que propõe É fato que esta região e seus moradores vêm vitórias significativas, que foram resultado Campos Elíseos Vivo têm demonstrado
remover mais de 600 famílias sem lhes dar acumulando adversidades e derrotas. Nesta deste processo e estão além dos ganhos que intervenções urbanas não derivam,
alternativas adequadas para continuarem mesma quadra 36, vivia uma família que já institucionais dos Conselhos Gestores. exclusivamente, dos projetos concebidos pelo
morando na região central da cidade. havia sido removida no começo da década Uma primeira conquista é a legitimidade e poder público (e por seus parceiros políticos)
de 2000, durante a demolição do quarteirão a representatividade que o próprio Fórum e que é possível desenvolver propostas
Até o momento, o Fórum Mundaréu Aberto vizinho onde ficava a antiga rodoviária e Aberto Mundaréu da Luz passou a ter perante contra-hegemônicas que sejam alternativas
da Luz acumulou algumas vitórias, como onde hoje estão sendo construídas, dez o poder público, que teve que reconhecer a viáveis para efetivação de direitos, para
já citadas: a constituição dos Conselhos anos depois, as torres residenciais da PPP relevância das entidades e, sobretudo, dos qualificação do espaço urbano existente e
Gestores das ZEIS, o adiamento das Habitacional; a mesma PPP que, por regra, moradores enquanto atores políticos nas para construção de cidades mais justas e
desapropriações e das remoções, a inserção não pode atender nenhum morador local. arenas de debate sobre os destinos do centro democráticas.
de algumas diretrizes do Campos Elíseos de São Paulo.
Vivo na política proposta pelo poder público. Por não ter recebido atendimento
habitacional do poder público na época, Uma consequência indireta deste
No entanto, também tivemos reveses essa família foi morar em uma ocupação na fortalecimento político local é a observação
significativos. A remoção integral da quadra quadra 36, que, em 2017, foi inteiramente de que, mesmo dispersa, a população do
36 e demolição de seus imóveis para demolida. Após esta última remoção, esta bairro já está em outro estágio de articulação
a construção do hospital foi a principal mesma família foi morar na ocupação do comunitária, menos distante de um processo
derrota até o momento. As remoções foram emancipatório se comparado ao início da
Edifício Wilton Paes de Almeida, que pegou
extremamente violentas, com aviso prévio de articulação em 2017. As lutas e a resistência
fogo em maio de 2018. Este exemplo é uma
curtíssimo prazo e com atuação muito violenta possibilitaram um ambiente propício à
ilustração bastante dramática da trajetória
da polícia. Nem todas as famílias receberam maior coesão comunitária e ao surgimento
de vida e das violações cotidianas que
o auxílio aluguel, solução provisória de lideranças, as quais têm despontado
afetam as famílias mais vulneráveis da região
adotada pela SEHAB. Mais recentemente, os como figuras políticas importantes neste
central. São estas pessoas que deveriam ser
representantes do Conselho Gestor sofreram processo, e que estão fazendo uma luta

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CAMPOS ELÍSEOS: Transcrição: Eunice Remondini
O texto da Cássia Aparecida, moradora dos Campos Elíseos,

PELA PERSPECTIVA DE UMA LIDERANÇA foi uma transicção com edições pontuais da fala realizada
durante O SEMINÁRIO
Cássia Aparecida da Silva

O texto a seguir foi feito com base na transcrição A gente vai tentando construir raízes em certos minha ignorância toda: “Quanto o governo está Figura 51. Remoção do casarão da quadra 36
de uma das principais lideranças da quadra 36, locais, e é o que eu estou fazendo desde a gastando com esse Bolsa Aluguel?” Com esse em abril de 2018.
Cássia Aparecida da Silva. Ele contem tanto a fala Favela do Moinho, mas, de repente, acontece recurso, ele poderia ter reformado um prédio,
inicial quanto as respostas dadas ao conjunto de a possibilidade da gente sair dali, e qual é essa e poderia ter implantado uma locação social,
perguntas que fsurgiram ao longo do seminário. possibilidade que a gente coloca em nossa alguma coisa, um projeto que complementasse
cabeça? A minha mãe, com 3 filhas mulheres, mais as famílias.
O texto foi mantido praticamente na íntegra,
não queria estar à mercê de uma comunidade O valor de R$ 450,00, que é a quantia que as
editamos apenas os vícios de linguagem que
onde há traficantes, onde há um poder paralelo famílias recebem pelo Bolsa Aluguel, é simbólico,
poderiam atrapalhari a leitura.
muito grande. “São meninas, são minhas filhas, é simplesmente uma compra de interesse, e que
Cabe destacar que após essa edição o texto foi são meus tesouros”. Então a minha mãe tentou não resolve o problema de ninguém. Não estou
enviado à Cássia que autorizou a versão aqui algumas outras ocupações, perseguindo esse aqui falando para vocês que eu quero ganhar
transcrita. sonho de tentar dar o melhor para as filhas. uma pensão do governo para pagar o meu
Então, a gente começou uma peregrinação: aluguel, isso seria muito fácil. Não! Precisamos
passamos pela Ocupação Mauá, passamos de soluções e as soluções não vêm mediante um
APRESENTAÇÃO INICIAL pelo prédio de vidro , isso já foi há um tempo. Eu Bolsa Aluguel, então é muito complicada essa
passei pelo prédio de vidro primeiro com a minha situação quando se fala em Bolsa Aluguel. Eu
Bom dia! Vou tentar passar para vocês, de tudo mãe, depois eu passei pelo prédio de vidro com não estou de pleno acordo, estou, agora, no
isso que já foi falado, um pouco sobre todos esses os meus filhos. Eu tenho 4 filhos atualmente, eu programa de Bolsa Aluguel , mas não estou de
momentos. Eu vou tentar transferir a vocês um sou aquela família enorme, fora os agregados pleno acordo com isso. Eu acredito que o dinheiro
pouco sobre a minha vida, minha história, lá de que a gente vai conquistando, vai obtendo, e as que eles gastam, o tempo que eles gastam com
dentro. Eu sou de São Paulo, eu morava na favela pessoas vão gostando, e é assim. as pessoas que estão no Bolsa Aluguel, eles
da Zacki Narchi que ficava no Carandiru. Depois
Nesse contexto todo, a minha mãe era moradora poderiam fazer um projeto bem maior, bem
que o meu pai morreu, eu vim para a Favela
da Favela do Moinho, e está há 10 anos no mais amplo, e eles têm dinheiro para isso, tem
do Moinho e fiquei morando lá por durante 20
Bolsa Aluguel , há 10 anos! Não é só a Dona pessoas que podem ajudar com esses projetos,
anos. Estou há 27 anos no centro da cidade de
Francisca que está no Bolsa Aluguel. São mais ou como o pessoal do Fórum Mundaréu da Luz
São Paulo, e o meu território é todo esse, é toda
menos 700 famílias, moradoras do Moinho, que que vêm com alguma solução em que você se
a Luz, e agora eu estou ali, nos Campos Elíseos.
estão no Bolsa Aluguel. Aí eu penso aqui, com a encaixa. Porque quando a gente consegue abrir Fonte: Instituto Pólis, 2018. Foto: Felipe Moreira

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os olhos para fora da comunidade ou para fora moradia, vai estudar, e vamos pra frente, não pelo fato de eu estar num lugar que é invadido, porque era um lugar que acontecia de tudo, você
da ocupação, percebe que há solução, que é dessa maneira. Infelizmente, as pessoas que eles acham que eu não tenho direitos. Então, não sabia se era alguém escondendo alguma
não precisa ficar naquela mesmice de passar estão fora de São Paulo, que pensam que a é perseguição policial. Quando os meus filhos coisa na sua casa, se era um traficante, se era
de uma ocupação para outra, por que não tem cidade é aquele sonho – que é um dos maiores estavam na sexta ou sábado dentro da minha um cara que iria te roubar; enfim, acontecia de
como a gente se encaixar na sociedade, porque sonhos de muita gente –, mas São Paulo, casa, e eu já sabia que ia ter uma operação tudo, então a gente tem o alerta, a gente ia lá
a gente não recebe um salário suficiente, não quando você chega, você se depara com uma policial, eu tirava eles de lá. e saia, como qualquer um sairia pra ver o que
temos poder aquisitivo muito grande para pagar dificuldade imensa. está acontecendo; eu saí e me deparei com dois
Pelo fato de eu estar em um local que é ocupado,
um aluguel alto, seja numa quitinete, seja homens, do tamanho desse prédio aqui, dois
Primeiro, a moradia. O meu motivo para voltar que é ao contrário da Sandra , ao contrário do
num apartamento. homens grandes, os maiores homens do mundo
pro centro da cidade de São Paulo foi uma Pedro , e ao contrário do pessoal que estava
foram aqueles dois que eu vi naquele dia. Eu não
Hoje eu estou morando numa quitinete com separação, eu estava debilitada emocional e aqui falando com vocês, a gente faz ocupações,
sei se era impressão, mas eu vi, eles estavam em
4 crianças. A minha sorte foi essa quitinete. É financeiramente, então o que eu vou fazer? Vou que é o que o governo tem que disponibilizar pra
punho com uma arma muito grande, naquele
uma quite de construção antiga, então ela é colocar os meus filhos na rua? Não! Não posso gente – mas ele não faz isso, eles preferem deixar
momento eles perguntaram pra mim quem
mais ampla, mas são 4 crianças, então fica fazer isso. Então eu fui para uma ocupação; só os prédios fechados do que dar moradia para
estava na minha casa, e eu imediatamente abri
bem complicado. Quando você chega numa que quando eu cheguei naquela ocupação, eu as pessoas, a maioria está nas ruas, vão para
as portas da minha casa, e falei: “Vocês podem
ocupação... bom, primeiro, ninguém chega me deparei com certas coisas, e essas coisas o crack, vão para o tráfico, vão pra qualquer
ficar à vontade”. Perguntei para eles o motivo,
numa ocupação porque quer, dizendo assim: são: primeiro, o poder público cai em cima de outra coisa, mas não é por opção, é porque eles
por que eles estavam lá dentro. Eles disseram
“Eu cansei de morar no apartamento, vou ali você. Eu, por exemplo, tenho um filho de 14 são empurrados para isso, a maioria, quando
que um rapaz de camiseta azul tinha roubado
para a ocupação, passar uns tempos”. Ninguém anos, então quando chegava o final de semana, vê uma oportunidade, abraça, agarra, como se
nas imediações da Porto Seguro e correu ali
vai para a ocupação porque quer, ninguém está eu às vezes tinha a opção de mandar ele para fosse um bloco desse tamanho de ouro, mas não
pra dentro; eu disse que estava com os meus
ali... naquele momento que você está ali muito a casa do pai, não só ele, como a minha filha é, é simplesmente uma oportunidade.
filhos dentro de casa, mas que podiam ficar à
frágil, seja financeiramente, seja por outros de 12 anos, ou então para a casa da avó,
Então, quando eu ficava sabendo que ia ter vontade; a gente tem uma casa pequena, então
motivos, muita gente chega na Ocupação que era na comunidade do Moinho, porque
operação, eu tirava os meus filhos de lá. Mas só a gente faz o quê? Põe uma madeira aqui ou
porque vem da Bahia, vem do Recife, vem de provavelmente eu ia acordar na Ocupação, na
que às vezes a gente não sabia que ia ter operação. senão um guarda-roupa, e a gente divide, a
Salvador, vem de todos os lugares do país para sexta ou no sábado, com uma arma na cabeça.
Teve um dia que meu filho acordou com um fuzil. gente faz quarto e cozinha, enfim, tudo isso.
tentar a vida em São Paulo, e quando chega Aí você me pergunta: “Mas por quê? Ele é
Eu estava lá dentro, percebi essa movimentação Então, os meus filhos estavam no quarto e o
aqui, quando se depara com a cidade de São envolvido com o tráfico?” Não, porque quando
no quintal, que era um corredor, que era o nosso meu filho estava dormindo no chão, o quarto é
Paulo, vê que não é a cidade dos sonhos, que os policiais entravam não queriam saber se ele
quintal, e o que aconteceu? Eu fui ver o que era, pequenininho, tinha um beliche para 4 pessoas,
você vai chegar, vai trabalhar, vai ter a sua tinha 14 anos; quando os policiais entravam,
mas não dava pra dormir todo mundo no beliche,
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então o meu filho estava dormindo no chão. os homens todos no chão e perguntaram quem quando a prefeitura decidiu que o casarão tinha situação, mas com a situação do Sr. Fernando
Naquele momento em que o meu filho estava tinha xingado eles, afrontado eles, enfim, alguma que ser desocupado, que era onde eu morava, ainda mais. Ele tinha a casa dele há 50 anos,
dormindo no chão, o policial olhou para o meu coisa assim. Eu acredito que naquele momento na quadra 36. Primeiro, eu tive um mês para até hoje ele não recebeu a indenização, ele
filho – meu filho é grande – e perguntou: “Quem tinha sido uma criança, eles não queriam saber, procurar um lugar pra ir, e depois desse mês, eles foi arrancado de sua casa com os filhos dele,
está ali?”. Eu falei: “É o meu filho de 14 anos”. eles entraram numa destruição tão grande que me dariam uma suposta ajuda com a mudança. sem uma avaliação, sem nada. “Vai sair
Naquele momento, ali, eu já fiquei muito brava, quem respondesse eles batiam, colocavam de Eu tive 15 minutos para fazer essa mudança. E porque eu quero”. É uma frustração muito
muito nervosa. “Tem certeza que é o seu filho?”, cabeça no chão, virado para o chão, o rosto sabe como foi essa mudança? Entraram umas grande de se viver.
ele disse. “Até que prove o contrário...” eles não para o chão, e as pessoas que estavam saindo 10 pessoas com algumas caixas, e eles falavam
Hoje em dia, eu moro em uma quitinete, mas é
iam fazer um DNA do meu filho, só que o meu para trabalhar não podiam sair, porque eu moro assim para mim: “Senhora, isso aqui a senhora
porque o meu cunhado me ajudou. O contrato
filho dorme com a cabeça coberta, eu nem sei na cracolândia, mas eu não sou a cracolândia, vai levar?” E eu respondia: “Vou”. “E isso aqui,
está no nome dele. Até no trabalho eu tive que
como ele consegue fazer isso, pode ser frio ou eu não sou usuária, eu sou aquele pessoal ali vai levar?” E eles fizeram a mudança para mim.
calor, ele dorme com a cabeça toda coberta. O que eles dizem que tem que revitalizar. Por que Então vocês imaginam aquilo tudo bagunçado,
policial pegou – pra mim aquilo lá era um fuzil – tem que revitalizar a minha vida? Eu não tenho tudo misturado, uma coisa misturada com a Figura 52. Remoção do casarão da quadra 36
e com a ponta do fuzil ele descobriu a cabeça do vida? Vão me ressuscitar? Vão fazer o quê? outra. Se, por acaso, eu falasse: “Esse filho eu em abril de 2018.
meu filho. Quando eu vi, eu falei pra ele: “Não não vou levar”, eles com certeza iriam jogar o
Eu vejo cada matéria, cada coisa que é revoltante:
faça isso porque ele tem mãe, eu vou pedir pros filho pela janela. Então é assim: você vai levar o
“A cracolândia precisa de vida!” Mais vida ainda?
senhores se retirarem da minha casa, porque se quê e o que você não vai levar, e quem organizou
Eu vou fazer mais quantos filhos para povoar
o senhor quiser ver o que tem dentro da minha tudo foram eles, as mudanças todas misturadas
tudo aquilo? São pessoas normais, são pessoas
casa, eu desmonto a minha casa inteirinha, só lá no caminhão. “O fulaninho vai para a zona
comuns, eu saia dali, não só eu como muitos,
que não mexa com os meus filhos”. sul, você também vai”? “Vou”. “Então vamos lá!”
a gente sai às 5 horas da manhã, e volta às 8
“Três mudanças ali, toca lá dentro, vai colocando
Não foi a primeira vez, não foi a segunda, tive horas da noite, vai para o trabalho, vai para a
pra dentro”. Então funciona assim, você não tem
outras situações de estar dentro da ocupação escola, vai para a faculdade, tem gente que está
poder sobre a sua vida, porque para o poder
e entrar um pessoal que xingou os policiais, só lá que não tem a possibilidade de pagar uma
público aquela área é interessante para eles.
que o policial estava sozinho, e de repente vem faculdade, então aperta para conseguir.
a tropa de choque praticamente inteira, pegou A partir do momento em que você está pagando
São várias as situações que a gente passa ali
todo mundo – a gente tinha um espaço que as o seu aluguel, que você tem a sua casa há mais
dentro, porque é uma opressão muito grande.
crianças brincavam –, pegaram todo mundo, de 30 ou 40 anos, como aconteceu com o Sr.
Eu fiz minha mudança em menos de 15 minutos
colocaram no chão, principalmente os homens, Fernando . Eu me indigno muito com a minha Fonte: Instituto Pólis, 2018. Foto: Felipe Moreira

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mudar de área, porque como eu não tenho coisas dele lá de dentro”. “Isso aí você não vai eles faziam? É o fluxo, eles andavam. Hoje em Figura 53. Remoção do casarão da quadra 36
estudo, e eu tive que fazer o quê? Voltei a trabalhar resolver comigo não. Eu tenho aqui uma ordem dia, quem está lá nas PPPs, linda, maravilhosa, em abril de 2018.
como auxiliar de limpeza. de emparedar esse estabelecimento, essa casa, e não consegue ter esse diálogo, essa conversa
eu vou emparedar.” com eles.
Hoje em dia, eu trabalho. Hoje em dia, eu tenho
tudo o que eu poderia ter, só que eu não tenho Aí o sonho aconteceu. O sonho aconteceu, mas infelizmente eu não
a oportunidade que a prefeitura poderia ter me me encaixei nesse sonho, porque para eles eu
Estávamos lá, e a nossa quadra foi removida,
dado para eu estar no meu bairro. Eu vi a Praça não sou gente, eu não sou ser humano, a minha
mas o sonho aconteceu, e construíram um
Princesa Isabel ser construída da maneira como família não se encaixa no programa do governo.
apartamento pra gente . Oba! Não, não foi pra
ela está hoje, eu peguei aquela praça ali numa
gente, porque eu não me encaixo: me tiraram Eu quero agradecer muito pela oportunidade,
época que eu acho que vocês nem a conheciam;
da minha casa, do meu bairro, construíram um eu quero agradecer muito o pessoal do Pólis,
ela já foi emparedada, ela já teve muro, ela já
apartamento na quadra da frente, só que eu não eu quero agradecer muito a Lizete, a Natalina,
teve grade, ela já teve parque, e não foi só um,
me encaixo. Eu não consigo entender, porque a todo o pessoal do Fórum Mundaréu da Luz de
foram vários. Ela já teve quadra, eu já peguei
eu não me encaixo? A minha família é muito estar me dando essa oportunidade de estar aqui
tudo isso, só que eu não tenho o direito de ficar
grande? Por que eu não me encaixo? Eu não para falar para vocês. Eu só estou aqui porque
no meu bairro. Eu peguei a Praça da Luz quando
trabalho? Não, eu trabalho. A minha família é pessoas como vocês conseguem me escutar, e
a Praça da Luz ainda tinha barraquinha de venda,
grande e tudo isso, e o sonho aconteceu, mas quem deveria me escutar, quando eu vou lá fazer
camelô, todas essas coisas, era legal, e eu peguei
não foi pra mim, infelizmente não foi pra mim. aquele negocinho: escolhe dois deputados, dois
tudo isso. Hoje em dia, o que eu vejo na Praça da
E, detalhe, as pessoas que estão lá dentro, e não sei o quê, o prefeito, eles, os políticos, não
Luz? Teve vezes de chegar moradores, me ligar e
que foram sorteadas para morar na PPP, estão me escutam. Então eu não sei o que eu estou
falar: “Cássia, o que eu faço, eu saio de dentro
saindo, estão vendendo porque não aguentam fazendo ali. Aí, quando a gente fala que vai votar
de casa ou eu fico?” Eu falei: “Não! Você fica
o fluxo, não aguentam a cracolândia. Só que em branco ou que não vai votar, porque o meu
na sua casa”. “Mas eles vão emparedar a minha
eu vou falar uma coisa pra vocês: sabe aquele voto não vale nada, aí o povo fala, você tem que
casa”. Eu já tive que chegar e falar para o oficial
pessoal da cracolândia que vocês pensam que exercer a democracia. Qual? Alguém pode me
de justiça, esperar a pessoa tirar pelo menos o
eles não escutam? Eles escutam, porque quando falar qual é?
necessário: “Não, não pode, ele escolhe, ou
a gente fez a ocupação, o casarão era tomado
ele fica dentro, ou ele fica fora”. “Mas se ele Agradeço muito a presença de vocês aqui e o
por usuários sentados ali, e a gente conversando
ficar dentro, o Sr. vai emparedar?” “Vou”. Cadê espaço que vocês me deram.
com eles, “tem família, oi criançada”, sabe o que
o direito de ir e vir? “Mas, ele precisa tirar as Fonte: Instituto Pólis, 2018. Foto: Felipe Moreira

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RESPOSTA AO PRIMEIRO BLOCO Com relação ao pessoal do Mundaréu da Luz uma lambança ali com aquelas PPPs que tem lá Figura 54. Remoção do casarão da quadra 36
que está nos apoiando, esse apoio eu queria que na Luz, que não são para nós. Como é que você em abril de 2018.
DE PERGUNTAS viesse dos governantes. Então é assim: quando vai tirar uma pessoa da sua casa e vai construir
Eu vou começar respondendo à pergunta sobre eu estou aqui, quando eu estou com essas uma casa para o vizinho? Então eles deram um
a questão das reintegrações, das remoções. É pessoas, são a essas pessoas que eu agradeço jeito de corromper a maioria, tem muita gente
assim, quando a gente tem um aviso prévio, não todos os dias por terem aparecido na minha vida: que pegou a carta de crédito, tem gente que
é que a gente aceite, mas a gente se programa gente, eu tenho agora um conhecimento que é não pegou, que não se encaixou, tem gente que
melhor. Eu acredito que em um mês ninguém estrondoso, é extremo, eu abri a minha cabeça fez o mesmo o que aconteceu ali com a Sandra
consegue programar uma mudança. Então é de uma tal maneira, para enxergar a vida, as [da vila autódromo]: o marido negociou e a
assim: é muito, mas é muito devastador, não coisas, as possibilidades que nós podemos ter, mulher não. Hoje a mulher está onde? Passando
só no local, mas psicologicamente a gente fica porque quando se fala em reintegração de necessidades, passando dificuldades com as
muito abalada. Até hoje eu não consigo assistir posse, quando se fala de você sair de um local crianças, e ainda tem o marido que também
nenhuma reportagem que fale sobre reintegração que é invadido, primeiramente parece que você pegou o Bolsa Aluguel, e onde ele está? E a
de posse, para mim emociona muito, as imagens não tem direito nenhum, essa é a realidade, mulher continua com os filhos, não estou falando
que passam, eu “volto” ao local onde eu morava, então vem aquela parte que a Sandra falou do só de mulher, estou falando vice-versa também.
não só eu, porque tiveram pessoas com reflexos corrompimento das pessoas, se a prefeitura chega O Bolsa Aluguel é um programa que não é eficaz,
muito grandes, separações, depressões, tiveram lá e te dá um Bolsa Aluguel, você já aceita de essa é a real. Os programas que os governos
pessoas que não aguentaram a mudança, gente imediato, porque, pela ignorância, pela falta de oferecem, as cartas de crédito, o Bolsa Aluguel,
que veio a óbito –foi uma senhora que já não conhecimento, você pensa: “Poxa, eu não tenho eles não funcionam, não tem como funcionar,
estava muito bem; outras migraram para o lado nada, a prefeitura está querendo me ajudar”. e as pessoas vão acabar migrando novamente
da cracolândia e ficaram lá mesmo, na rua, pois E na verdade, não. Ela não está querendo te para onde? Para as outras ocupações, para as
foram empurradas a isso. ajudar, ela está te dando um tempo. favelas. Não tem como, não é uma solução esse
método deles.
Hoje eu passo lá, vejo e falo: “Tiraram a gente Hoje, a gente está em um processo de carta de
de lá pra quê?” Se aquele espaço está vazio... crédito oferecidas pela CDHU , que foi o “cala
há muitos desses espaços vazios nas imediações boca” que a gente recebeu, porque, pra eles, a
mesmo. Eu não estou falando por aí não, eu gente precisava sair daquela região, e a Prefeitura
estou falando que há muitos espaços ali mesmo fez uma lambança, não só a prefeitura, como o
que estão vazios! Governo do Estado também. Enfim, eles fizeram Fonte: Instituto Pólis, 2018. Foto: Felipe Moreira

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RESPOSTA AO SEGUNDO nos ajudando a achar uma solução, é muito time de conselheiros, eu falo em time, porque Figura 55. Edifícios emparedados após a re-
frustrante. Eu vou falar uma coisa para vocês: nós somos um time. moção das famílias da quadra 36.
BLOCO DE PERGUNTAS inúmeras vezes a gente tenta fazer um projeto
Eu quero colocar como é a nossa relação com de moradores e levar para a prefeitura, para a
os governantes. Vou contar a minha experiência Câmara dos Deputados, enfim, se não fossem RESPOSTA AO TERCEIRO BLOCO
as instituições, as faculdades, o pessoal que faz
nua e crua. Se eu for sozinha, eu não entro na
esse estudo com a gente, a gente não teria voz,
DE PERGUNTAS
prefeitura. Só vou entrar se eu for convocada
para uma audiência. Eu fui convocada para a gente não teria oportunidade, então é assim: Então a PPP habitacional era para ser para mim
uma audiência, mas essa audiência que eu a oportunidade que essas pessoas nos dão, não que sou do centro, para as pessoas que são do
fui convocada tinha uma juíza. Na primeira tem preço, é maior do que qualquer coisa que centro, não só para o pessoal que mora em Santo
audiência que eu fui, eu fui sem a minha “tropa”, vocês possam imaginar. Amaro, não para o pessoal que morava na Praia
sem o meu time fantástico – do Fórum Mundaréu Grande. Então as pessoas de fora chegam e não
Eu, hoje em dia, não tenho a minha casa ainda,
da Luz –, a gente ainda não tinha desenvolvido se adaptam. Então aquilo ali foi mal planejado,
mas só de saber que eu consegui conquistar,
o projeto Campos Elíseos Vivo, não estávamos foi mal programado em relação às pessoas que
construir essa relação com essas pessoas que têm
mais agarrados uns ao outros, então fomos vão morar.
uma magnitude enorme para fora, não somente
somente os moradores. E nessa de somente ir para dentro da comunidade com os moradores, Quem vai morar ali? Se eu for morar ali, eu consigo
os moradores, eu me lembro que eu escutei – eu posso chegar para a Lizete e dizer: “Lizete, o lidar bem com o fluxo, com o pessoal, porque
eu não vou falar o nome da pessoa –, mas eu que você acha? Vamos lá na prefeitura?” Junta eu consigo conversar, eu tenho um diálogo com
escutei uma frase que até hoje eu levo comigo, 3, 4 pessoas, 10, 20... “Vamos, agora!” Você eles, eu chego e falo: “Então, pessoal, tem família
o secretário da habitação – eu nem sei o nome chegar para os moradores e dizer: “Vamos lá na aqui, ok?” Aqueles muros em volta dos edifícios
dele –, mas o secretário da habitação falou para prefeitura? Quem vai conseguir entrar?” Então novos são para aquelas pessoas que estão na PPP
o Sr. Marcos Vinícios que é o promotor – essa foi é muito complicado. Essa é a oportunidade que não verem a redondeza, para aquelas pessoas
a primeira audiência –, ele virou e falou assim: eu tenho tido todos os dias com eles, e eles são que estão no fluxo não entrarem.
“Esse bando de pé sujo, não! Esse bando de pés maravilhosos.
descalços não deveria ter nenhum direito, eles Meus agradecimentos eternos para vocês, em
deveriam sair de lá agora, sem nada”. Eu falo sempre para os moradores que o nosso questão de conhecimento e de sabedoria, tudo
time de conselheiros é excelente, é excepcional, o que está sendo passado para mim, a minha
Nem todo dia eu estou de chinelo, mas escutar eu estou muito bem acompanhada com o meu nova etapa. Eu vou falar uma coisa para vocês,
isso de uma pessoa que deveria estar pelo menos Fonte: Instituto Pólis, 2018. Foto: Felipe Moreira

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a revitalização que o poder público quer fazer no
centro de São Paulo, aconteceu no meu interior,
mas pelas pessoas do Mundaréu que eu conheci.
Muito obrigado, eu realmente fui revitalizada
com a cultura, com o conhecimento.
Já que está na moda revitalizar o centro, então
as pessoas do poder público poderiam, elas
mesmas, se revitalizar, se reformar, porque se elas
conseguissem escutar um pouco a população
como vocês escutam, se os nossos governantes,
se tivessem pelo menos um deles aqui sendo
representado neste Seminário, eles conseguiriam
aprender a escutar a população e ver que
essas pessoas que estão aqui estão fazendo um
papel muito importante na nossa vida. Que o
centro sim, tem solução. Pode ser revitalizado?
Não, ele pode ser simplesmente melhorado, e
não é com brutalidade, não é com força, não
é fazendo aquele arrastão que eles fazem nas
quadras, no centro inteiro, é simplesmente
dando oportunidade para as pessoas. É bem
simples, é assim mesmo, é simplesmente dando
oportunidade para as pessoas. Se as pessoas do
centro, dali das quadras, tivessem ali, eu garanto
para vocês que a cracolândia não tinha acabado,
mas eu tenho certeza que ela tinha diminuído, ou
senão o fluxo teria andado.
Muito obrigado. Figura 56. Quadra 36 após a demolição
Fonte: Instituto Pólis, 2018. Foto: Felipe Moreira
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REFLEXÕES FINAIS
PRÁTICAS ALTERNATIVAS
UM BALANÇO DAS PRÁTICAS ALTERNATIVAS
DE PLANEJAMENTO NAS GRANDES CIDADES
BRASILEIRAS Renato Pequeno

INTRODUÇÃO Em um esforço de síntese, buscou-se identificar É claro que não se trata de um receituário. QUATRO EXPERIÊNCIAS DE
os principais pontos de cada experiência a Seria muito pretensioso de nossa parte.
Este artigo traz algumas reflexões partir do que foi apresentado, bem como Ao contrário, corresponde a um conjunto PLANEJAMENTO ALTERNATIVO
apresentadas na mesa redonda do seminário apontar possíveis similaridades ou variáveis de pontos, que poderiam ser interligados. Os casos trazidos como práticas alternativas
sobre Planejamento Alternativo, organizado que pudessem revelar contraposições e Esses pontos poderiam ser utilizados, de planejamento possuem alguns pontos em
pelo Instituto Pólis com o apoio do Conselho complementariedades entre elas. parcialmente ou em sua totalidade, seja comum. Eles correspondem a situações que
de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo, no para pautar uma prática alternativa de têm sido travadas em algumas das maiores
dia 21 de fevereiro de 2019. Não se trata de Contudo, nunca é demais lembrar que planejamento, seja para avaliar um processo cidades brasileiras, cada um deles repleto de
uma transcrição “ipsis litteris” dos conteúdos este seminário se deu em torno de um em curso ou mesmo já finalizado. Também peculiaridades inerentes aos processos em que
apresentados oralmente, uma vez que universo bastante restrito, contendo poucos não tive a intenção de estabelecer uma se inserem.
algumas partes da fala pouco contribuiriam casos situados em algumas das maiores sequência lógica. Este texto corresponde
ou representariam interrupções que poderiam cidades brasileiras, as quais tem sido alvo muito mais a um livre exercício de reflexão Que riqueza nos depoimentos! Especialmente
vir a interferir no sentido das ideias que busco de práticas avassaladoras conduzidas pelo para propor possibilidades de atuação em se consideramos a junção, ao vivo e a cores,
apresentar neste texto. Estado em favor do capital imobiliário e questões similares que perpassam todas as entre o conhecimento técnico e o saber popular.
financeiro. Estas práticas, por sua vez, estão experiências de planejamento discutidas, A ideia de trazer para o debate tanto o olhar da
Vale destacar que a mesa redonda da diretamente associadas tanto à retração das assessoria técnica quanto de um representante
qual fiz parte foi posterior às explanações diante do riquíssimo aprendizado trazido
políticas habitacionais, como à consequente por todos os palestrantes do seminário. do grupo social com quem a prática foi
iniciais voltadas a propor uma tipificação expansão da precariedade que assola os desenvolvida foi das mais felizes. Um enorme
dos processos de planejamento alternativo, O acúmulo de problemas no atual cenário acerto! A proposta estava longe de confrontar
diferentes cantos, dos centros às periferias.
discutir as práticas de assessoria técnica urbano requer ações diretas. As perspectivas estes olhares. Antes de tudo, reuniu análises
vinculadas à autoconstrução e realizar Este texto se organiza em duas partes: uma futuras indicam que estes problemas tendem complementares.
uma análise de conjuntura nas diversas primeira, voltada a destacar os principais a se repetir. É diante deste quadro que estas
escalas. Da mesma forma, é importante aspectos de cada um dos casos e estabelecer análises e recomendações podem servir É a partir destes depoimentos que elenquei
mencionar que esta fala buscou dialogar possíveis interfaces; uma segunda, contendo como contribuição ao debate. alguns elementos de análise, visando iluminar
muito mais com as quatro experiências que uma série de recomendações para debate, a importância e a complementariedade dos
apresentadas pelos grupos convidados pelos ou mesmo para que possam ser adotadas processos locais relatados, bem como abrir
organizadores para o evento. em práticas futuras.
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possibilidades para reflexões posteriores. Não acesso aos equipamentos sociais e aos serviços compreendidas em sua complementariedade as diferentes formas de moradia precária que
se trata, portanto, de um texto fechado. Ao urbanos tornam-se características comuns às para solucionar as demandas derivadas da nele se apresentam.
contrário, se almeja trazer à tona algumas comunidades. Entretanto, vale aqui ressaltar urbanização de assentamentos precários e
que estas condições são relativas, uma vez que A Vila Autódromo, no Rio de Janeiro, foi o
questões para dar prosseguimento ao debate, do déficit habitacional que impacta os mais
o universo de cada uma das quatro cidades terceiro dos casos relatados. Contou com a
que, inicialmente, se dá no plano analítico. pobres. Além disso, o caso da comunidade
apresenta uma heterogeneidade cada vez participação de Giselle Tanaka, do IPPUR-
do Grande Serviluz vem sendo aprofundado,
Estas análises se organizam em três eixos: (i) a maior entre os assentamentos populares. UFRJ, e de Sandra Teixeira, uma das moradoras
considerando a disputa territorial em ela está
dimensão territorial, que envolve a diversidade que até hoje resiste e reside na área. A Vila
No que diz respeito à dimensão territorial, chama inserida, frente à implementação de grandes
escalar e a localização na cidade; (ii) a se coloca na dimensão de um loteamento
atenção a diversidade escalar apresentada por projetos urbanos conduzidos pela prefeitura
dimensão institucional, que identifica práticas relativamente isolado, apesar do grande
este pequeno e seleto agrupamento de práticas municipal de Fortaleza.
e instrumentos; e (iii) por fim, as perspectivas porte da intervenção urbana motivadora da
futuras de atuação. alternativas de planejamento. Do maior para o Em seguida, o caso paulistano do Mundaréu luta travada pela permanência. Foi sendo
menor, do mais amplo para o mais restrito, é da Luz, em São Paulo, foi relatado por Danielle progressivamente reduzido, especialmente
possível apontar a algumas questões. Klintowitz, do Instituto Pólis, pela professora se considerado o porte dos equipamentos
DIMENSÃO TERRITORIAL Lizete Rubano, coordenadora do Mosaico – envolvidos em sua desterritorialização. Em
Inicialmente, a experiência de Fortaleza,
Não resta dúvida quanto ao predomínio da Ceará, apresentada por Valéria Pinheiro, do Escritório Modelo da FAU-Mackenzie, e por poucos anos, o assentamento se reduziu a um
população de baixa renda como público- Laboratório de Estudos da Habitação LEHAB- Cássia Aparecida da Silva, moradora. Este caso pequeno conjunto de unidades ocupadas por
alvo das ações de planejamento alternativo UFC, e por Pedro Fernandes, da Comunidade apresenta uma prática na escala do bairro, ou algumas famílias que conseguiram permanecer.
aqui debatidas. Via de regra, tratam-se de do Titanzinho, situada no Grande Serviluz, mesmo de um setor da cidade, com toda a A comunidade assistiu a seu progressivo
grupos sociais atingidos por práticas do traz a regulamentação das Zonas Especiais de peculiaridade de sua localização central. Ainda desmonte, em que a Vila Autódromo foi
Estado voltadas à remoção, assim como pela Interesse Social (ZEIS), que chegam a abranger que a intervenção projetual possa ser vista como sendo substituída por um complexo esportivo
ausência de políticas públicas associadas à dez setores distintos da cidade, diferenciados pontual, restrita a algumas poucas quadras, vazio de conteúdo.
garantia de direitos. quanto à localização geográfica e ao porte, ela diz respeito a um processo que atinge uma
Por fim, o quarto caso foi a experiência de Belo
e similares quanto às tentativas históricas de parte importante do centro da maior metrópole
Com isso, condições como a informalidade Horizonte, conduzida pelo PRAXIS-UFMG e
remoção. Trata-se, portanto, de um processo da América do Sul. Sua replicabilidade seria
nas relações de trabalho, a baixa renda da apresentada pela pesquisadora Geruza Lustosa
na escala da cidade em que a assessoria imediata, considerando o entorno ampliado.
unidade doméstica, os reduzidos padrões e pela moradora Maria das Graças, também
técnica se voltou para todo o território do
de consumo, a precariedade habitacional, A diversidade em meio a um pequeno recorte conhecida como “Morena”. Aqui, trata-se de
município. A escala maior se confirma, dada
a irregularidade fundiária, a dificuldade de também deve ser mencionada, se consideradas outra escala de intervenção, restrita ao lote
a importância de que as ZEIS de vazios sejam

182 183
e à edificação autoconstruída, ainda que a resistência histórica também perpassa todas As ameaças de remoção sofridas pelas Brasil a fora, conduzidos pelos governos
concepção do projeto se apoie em questões estas comunidades, frente às pressões feitas comunidades melhor localizadas indicam que estaduais e municipais em parceria com o
da vizinhança. Entretanto, se considerado no passado para deslocá-las para grandes a regra seria a posição na cidade como o todo, capital imobiliário e financeiro, frente aos quais
o universo da situação atendida, o caso da conjuntos habitacionais periféricos. Elas considerando a sua estruturação e seu padrão as comunidades atingidas pouco têm reagido.
reforma da residência da Morena, na Vila também se fortaleceram politicamente, o que de segregação. O que pesa é estar no meio do
Acaba Mundo, aponta para uma demanda as coloca em um mesmo grupo. caminho de uma frente de expansão do setor
DIMENSÃO INSTITUCIONAL
inacabável, constituindo-se num problema imobiliário em valorização, constituindo um
Em São Paulo, os relatos evidenciam o poder
historicamente ausente quando da formulação conflito territorial. Não há dúvida de que isto Na dimensão institucional, um aspecto importante
desproporcional do Estado em conjunção com
das políticas públicas habitacionais locais. prepondera à condição central ou periférica. a ser considerado diz respeito ao papel do
o que Raquel Rolnik denomina de complexo
Estado. Afinal a quem competiria desenvolver
Dois casos mostram maior proximidade com financeiro imobiliário, dados os interesses Qual seria a representatividade de cada caso as práticas de planejamento, especialmente
as áreas centrais: Fortaleza e São Paulo. O por esta posição na cidade. A perspectiva de na totalidade da cidade? Se olharmos para aquelas destinadas ao combate do acirramento
primeiro é reconhecidamente mais diversificado valorização imobiliária desterritorializa dos o quanto o problema motivador da prática das desigualdades sócio-espaciais?
se visto na sua totalidade e o caso paulistano mais pobres e induz à adoção de despejos se repete, os processos de planejamento
é amplamente central. Os outros tendem a ser forçados e violentos. alternativo ganham maior impacto. Disto É possível perceber a similaridade recorrente
percebidos como realidades periféricas: um também decorre a necessidade de que eles entre as práticas analisadas: a ausência, senão a
Os estudos de caso trazidos pelas equipes
loteamento popular no Rio de Janeiro e uma sejam mais bem conhecidos e disseminados. negligência, das instituições governamentais na
de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro são
favela em encosta íngreme em Belo Horizonte. realização de suas atribuições, no cumprimento
periféricos. O primeiro, um caso típico de Para além das realidades locais, os casos de seu papel como gestores e promotores do
No caso das ZEIS de Fortaleza, como se trata comunidade de baixa renda situada na periferia, relatados deveriam ser melhor compreendidos estado de bem-estar social. Exceção feita ao
de um grande número de áreas dispersas pela um fim de linha para a urbanização ao sul da por um público amplo, no sentido de fornecer caso de Belo Horizonte, onde o Estado é omisso
cidade, verifica-se que há casos periféricos, cidade, porém apenas a seis quilômetros de diretrizes para muitas outras realidades presentes na realização da assistência técnica pública em
intermediários e pericentrais. São dez distância do centro. O outro, a Vila Autódromo, nas cidades brasileiras. A informalidade se arquitetura e urbanismo, os demais denunciam
zonas que reúnem diferentes comunidades, é um fragmento periférico ocupado como expande cada vez mais. A ela se associam algo mais grave: a exacerbada associação dos
depreendendo-se a heterogeneidade presente loteamento por seus moradores décadas atrás, as condições de moradia, o desenho urbano governos com o setor privado.
quando a faixa litorânea era o motivador desordenado e a irregularidade fundiária,
entre as áreas de ocupação de Fortaleza.
da expansão urbana na direção oeste, bem fazendo das ZEIS um instrumento de inclusão Ao tentarem impedir e desacelerar a
Ressalta-se que seis das dez ZEIS encontram-
antes da expansão imobiliária pautada pelos social fundamental para os territórios populares. regulamentação das ZEIS, dando preferência
se no litoral de Fortaleza, o que as associa
megaeventos. São inúmeros os casos de remoção forçada por concentrar esforços na implementação de
às tentativas de remoção. A condição de
grandes projetos urbanos, as instituições da

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Prefeitura de Fortaleza revelam a opção feita como se os grandes projetos urbanos passam indicam um papel deturpado do Estado indutor que aproxima a cidade legal da cidade real de
pela parceria com o mercado imobiliário. Ao cada vez mais a prevalecer sobre os processos de desenvolvimento urbano e promotor de maneira coerente.
promover remoções violentas no Bairro da Luz, de planejamento. benefícios ao setor privado.
desalojando centenas de pessoas e viabilizando Um olhar para o presente com perspectivas para
Ao desconsiderar, ao longo dos últimos dez A condição das quatro situações debatidas o futuro sugere algumas reflexões sobre os atores
a produção de moradias destinadas a um
anos, a regulamentação das ZEIS caracterizadas como ZEIS complementa a compreensão sociais envolvidos diretamente com as práticas
outro segmento de renda, o Estado favorece
pela presença de favelas, reagindo frente às das práticas equivocadas do poder público de planejamento alternativo, considerando seu
os proprietários de terrenos e os possíveis
pressões dos movimentos e seus apoiadores, vinculadas ao planejamento urbano. Todos alcance enquanto instrumentos que possam
investidores, graças aos mecanismos
a Prefeitura de Fortaleza deixa claro o baixo os casos estudados abrangem setores das não apenas contribuir com a resistência, mas
estabelecidos na política urbana.
nível da intersetorialidade na gestão pública, cidades marcados como ZEIS. Isto não deixa também trazer esperanças para as comunidades
Mais ainda, ao remover a Vila Autódromo, notadamente no âmbito das políticas urbana de corresponder a avanços e vitórias, visto atingidas.
claramente se observa o privilégio dado àqueles e habitacional. Ao não utilizar um só metro que todos eles abrigam comunidades de baixa
que viram, nas obras olímpicas e na Copa do A análise dos casos expostos no seminário
quadrado das ZEIS vazios para construir uma renda e em situação de ameaça de despejo.
Mundo, possibilidades de ampliar seus ganhos, indica a composição de um campo popular nas
unidade residencial sequer para os atingidos O reconhecimento e a inserção das ZEIS nos
como as grandes empreiteiras. Os ganhos não quatro cidades, que se constitui em reação às
por seus projetos urbanos de grande porte, planos diretores e nas leis de zoneamento
são obtidos apenas por meio da construção dos práticas conduzidas por parcerias entre o Estado
revela por qual time estaria torcendo, ou seja, indicaria a necessidade de inverter prioridades,
equipamentos e infraestruturas, mas também e o setor privado, especialmente envolvendo o
revela uma clara opção política. apontando setores críticos da cidade.
pela apropriação das terras beneficiadas, imobiliário e o financeiro. Em cada um deles, é
espoliando seus moradores, na condução de O mesmo pode ser percebido e mencionado Todavia, a incidência das ZEIS abre caminho possível constatar a presença de alguns atores:
empreendimentos imobiliários e até na gestão quanto às demais práticas. Nos casos de para algumas reflexões. Por um lado, olhando as comunidades diretamente envolvidas,
dos bens de uso coletivo, como as arenas, os remoções forçadas vivenciados e denunciados de maneira pessimista, pode-se dizer que não necessariamente acompanhadas de
serviços de mobilidade etc. pelos que tomam parte do Mundaréu da Luz o instrumento é ineficaz, ou seja, que não movimentos sociais; a universidade, por meio
e do Plano Popular da Vila Autódromo, as teria de fato funcionado como mecanismo de seus laboratórios de pesquisa e extensão;
Ainda considerando o papel do Estado à frente intervenções desconsideraram violentamente de resistência e garantidor de direitos. Por assim como coletivos e apoiadores atuantes
dos processos de planejamento, as situações o direito à cidade e à moradia digna. Seja outro, enxergando um outro horizonte, as ZEIS em defesa de direitos humanos.
que foram apresentadas e debatidas podem pelo reassentamento distante e de má ainda correspondem a uma trincheira na luta Dependendo do porte e do alcance da
exemplificar um dos eixos norteadores dos qualidade, pelo baixo valor da bolsa aluguel pelo direito à cidade. São um instrumento de prática alternativa de planejamento, observa-
estudos recentes realizados no LEHAB-UFC, ofertada, pelo despejo sem opção, os inclusão social que permite a flexibilidade de se que o debate se amplia, ganhando maior
onde se busca investigar se ocorre a dissociação desdobramentos das ações governamentais índices urbanísticos e, como costumamos dizer, importância no cenário urbano e dialogando
entre as políticas urbana e habitacional, bem

186 187
com outras ações similares. Pouco a pouco, voz demanda individual, ele revela a intensidade diversos campos de conhecimento e práticas A situação das ZEIS em Fortaleza corresponde
e visibilidade são garantidos àqueles que estão da associação entre os envolvidos com a profissionais concomitante à retração do a mais de dez anos de luta dos movimentos
tendo seus direitos usurpados. No entanto, é prática de assessoria técnica em arquitetura. Estado, cada vez mais reduzido e terceirizado. sociais. Iniciada em 2006, a composição do
possível perceber especificidades em cada campo se reformula ao longo destes anos,
situação. Por sua vez, a Vila Autódromo e seu Plano
reconhecendo-se oportunidades para uma
Popular tiveram o maior protagonismo SOBRE AS PERSPECTIVAS DAS PRÁTICAS atuação coletiva por parte das comunidades
No caso de Fortaleza, destaque para a das universidades como apoiadores da ALTERNATIVAS DE PLANEJAMENTO
composição da Frente de Luta por Moradia, e de seus apoiadores, ampliando com isso as
comunidade. Além disto, as universidades
que adotou as ZEIS como uma questão central. Mais uma vez, o caso mineiro requer possibilidades de enfrentamento.
também foram fundamentais para atrair
Algumas comunidades estão em uníssono outros parceiros. No caso, a localização considerações especiais, tendo m vista o porte Contudo, os avanços ainda são diminutos,
na frente e parceiros relevantes estão sendo da comunidade vinculada ao megaevento e a forma como se realizou a prática alternativa permanecendo a ameaça de desmantelamento
atraídos para a articulação. Isto resultou, por causador dos problemas contribuiu com a de planejamento relacionada a uma assessoria do instrumento por ocasião do futuro processo
exemplo, na convocação de audiências públicas divulgação da situação pelos quatro cantos, técnica individual. O longo ciclo do projeto de revisão do plano diretor. Afinal, passados dez
pela promotoria de conflitos fundiários. evidenciando tanto os problemas sofridos à obra, tendo em vista a progressividade da anos de vigência e desuso, e, diante da firme
com a remoção, como a resistência dos seus intervenção, costuma ser um aspecto a ser junção entre o poder local e a incorporação
Em São Paulo, também se verifica a formação aprofundado por aqueles que pesquisam
moradores e apoiadores frente aos agentes imobiliária, as ZEIS tornaram-se alvos a ser
de uma articulação mais ampla, o Fórum a produção da moradia autoconstruída. O
interessados na desterritorialização da combatidos por se apresentarem como uma
Mundaréu da Luz, que reúne ONGs, escritório mesmo deve ser considerado para os casos
comunidade. trincheira capaz de fazer frente à especulação
modelo, grupos de extensão, laboratórios de de atendimento para reformas e expansões e ao lucro de investidores.
pesquisa, assim como indivíduos interessados Chama atenção a presença das universidades domiciliares.
em contribuir. Outros articuladores passaram a e dos coletivos na realização destas práticas Práticas reativas às ações do Estado, como
atuar, facilitando a inserção do tema na mídia de planejamento alternativo. Isto sugere Para os demais, a dimensão do tempo é de outra o ocorrido no Mundaréu da Luz, revelam as
por meio dos mais importantes veículos. Em alguns pontos para reflexão: a procura por ordem. Tratam-se de situações demoradas em discrepâncias de poder entre as coalizões
um determinado momento, mesmo o Estado setores da universidade pelas comunidades que os atingidos não têm acesso às informações, governamentais e seus parceiros frente
teria se curvado às propostas, demonstrando que são alvo de processos de remoção ou que as intervenções do Estado desconsideram às articulações sociais. Depois do início
interesse em conhecê-las e abrindo portas aos tenham seus direitos à cidade e à moradia os processos de planejamento urbano e os avassalador da intervenção na Cracolândia, as
técnicos. violados, substituindo as ONGs, exceção feita serviços públicos não são prestados. Via de práticas participativas da articulação contrária
ao caso paulistano; e a maior importância regra, o desgaste das populações atingidas é à remoção têm testemunhado o avanço de
Em Belo Horizonte, apesar de o caso se dada às práticas de assessoria técnica em dos mais intensos. violações do direito à cidade e à moradia. Pouco
restringir a uma prática de atendimento a uma

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a pouco, verifica-se a progressiva substituição ao reunirem atores diversos em suas ideias, práticas sociais de resistência e ações de especulação imobiliária?
residencial, mediante a demolição desenfreada formações, capacidades e em seus instrumentos, exigibilidade de direitos. Compreende-se
• Construir bancos de dados com análise e
de moradias e o despejo de famílias que vivem as práticas em si podem ser entendidas como inclusive que elas possam ser adotadas nas
disseminação imediatas. Sempre buscar
em edifícios ocupados. o que David Harvey entende por espaços de diferentes escalas em que se pode perceber a
fazer levantamentos e análises junto com
esperança. São espaços especialmente abertos negação e a violação do direito à cidade e à
Ações de médio e longo prazo conduzidas pelo as comunidades, garantindo, com isso,
a constituir ambientes de pesquisa, formação e moradia digna, seja pela inversão de sentido
Estado e seus parceiros ocultos fragilizam as que a informação se dissemine nas áreas
atuação política. nas políticas públicas, ou pela pura e simples
forças contrárias, reduzindo sua capacidade de envolvidas. Neste sentido, é fundamental
ausência destas políticas.
resistência. Não bastassem as disparidades em Na parte seguinte, buscarei apontar algumas conceber uma estratégia de comunicação
termos financeiros, os conluios englobando as recomendações tendo em vista novas práticas • Na atual conjuntura, com nossos direitos social que fortaleça os grupos envolvidos
instituições governamentais e os interessados por alternativas de planejamento. Não se trata de adquiridos ameaçados como nunca haviam nas práticas alternativas de planejamento.
parte do setor privado, apoiados em instrumentos um receituário, mas apenas de uma tentativa sido antes, é importante ser estratégico e Além disso, colocar em prática a ideia de
legais e em consultorias, têm conseguido superar de trazer, para o debate, alguns pontos que concentrar esforços. Não é possível dar conta que um bom diagnóstico resulta do diálogo
as tentativas populares de enfrentamento. possam vir a fortalecer as práticas alternativas de todos os problemas urbanos. É preciso ter entre o conhecimento técnico e o saber
de planejamento. Afinal, conforme se pode foco, planejar-se, pautar e não ficar apenas popular.
A situação enfrentada pela Vila Autódromo
perceber, são muitas as dificuldades enfrentadas reagindo às movimentações do Estado- • Reconhecer o campo de forças políticas e
é exemplar, se consideradas as pressões
em suas diferentes dimensões. capital. o quadro de agentes envolvidos, conforme
conduzidas pelos governos estadual e
municipal e seus apoiadores, impactando • Partir para atitudes radicais, realmente sugere Roberto Lobato Correa, em seus
continuadamente a resistência da comunidade. transformadoras. Isto significar ir diferentes papéis e interesses, para saber
ALGUMAS RECOMENDAÇÕES diretamente na raiz do problema, na forma com quem dialogar e com quem se pode
Todavia, dada a replicabilidade dos casos, contar. Quem está a frente dos processos,
Os embates e conflitos de interesse analisados como o geógrafo Marcelo Lopes de Souza
é possível reconhecer e manter a esperança. indica. Seria a questão fundiária um tema quem promove ameaças? Que parcerias
Todas as práticas relatadas se repetem no dia até aqui revelam um amplo desequilíbrio nos
a ser aprofundado de modo a incidir frente vêm sendo formadas? Quais as suas
a dia das cidades. Cada vez mais, observam- jogos de poder, em que prevalece o Estado
às remoções e aos deslocamentos para composições?
se similaridades com outras intervenções e seus parceiros, por vezes ocultos, frente
às articulações em defesa de direitos de grandes conjuntos periféricos? Afinal, como • Dar nome aos bois, revelar quem são e
estatais dentro da mesma cidade e também em evidenciar os interesses de proprietários
comunidades atingidas. onde atuam os donos da cidade. Da mesma
outros municípios, onde caberia a realização fundiários, a valorização imobiliária e seus forma, dar endereço à cidade informal, como
de práticas alternativas de planejamento. Diante disso, constata-se a necessidade de impactos nas comunidades atingidas por sugere Arlete Moisés Rodrigues, revelando
Respeitadas as peculiaridades de cada lugar, formular diretrizes alternativas que viabilizem intervenções urbanísticas associadas à
190 191
sua intensidade e representatividade no processos, linha da vida, campo de forças,
todo da cidade. por exemplo.
• Enfrentar e revelar os conluios presentes • Exercitar o olhar clínico para saber onde estão
nas instâncias de controle social, como as brechas. Afinal, quais seriam as fissuras
os conselhos municipais e as comissões abertas para a atuação das resistências?
criadas pelo Estado. As lutas pela É fundamental buscar reconhecer onde se
garantia da transparência e pelo acesso encontram os conflitos e as disputas internas
às informações, disseminando-as para do outro lado.
entidades e apoiadores tendem a combater
as práticas em que prevalecem os interesses • Retomar a história local e valorizar as vitórias.
da cidade-capital e do mercado. Para além das práticas bem-sucedidas,
também é importante compreender as
• Viabilizar a inserção de outros atores sociais condições que levaram a alguns insucessos.
que possam contribuir como profissionais,
assim como de comunidades ou movimentos Por fim, cabe insistir na importância crucial
que estejam sendo alvo de processos em promover oportunidades de trocas e
semelhantes, garantindo a construção de compartilhamento de experiências como a
apoios, e viabilizando o impacto positivo que presenciamos nestes dias de seminário.
das resistências frente às violações do direito É cada vez mais necessário transferir e
à cidade e à moradia. adquirir conhecimento mediante o diálogo
em torno das práticas espaciais, nas quais a
• Iluminar os “pontos opacos”, na definição vivência do grupo alvo representa um insumo
por Milton Santos. Os pontos opacos fundamental para a construção de alternativas
são aqueles que não são apresentados de planejamento e de projetos.
pelos diagnósticos. Para tanto, podem ser
realizadas atividades de cartografia social,
mapeamentos coletivos, espacialização de

192 193
PLANEJAMENTO
ALTERNATIVO
ALTERNATIVO

OFICINAS
TEMÁTICAS
OFICINA 1
PRÁTICAS DE ASSISTÊNCIA TÉCNICA E PROJETO
ARQUITETÔNICO COMPARTILHADO
Mosaico*

A partir da ideia de montar oficina de projeto e de projeto que se coloquem como barreira 1. como possível ação de reparação que instrumento de construção de paisagem para a
arquitetônico compartilhado realizada dentro à reprodução do capital, principalmente age como ponte de diálogo e prática vida e agem como ponte de diálogo e prática
do Seminário Nacional de Planejamento porque sua reprodução instrumentaliza o social, para redefinir o que é cidade social. Esta ligação corrobora para redefinir o
Alternativo em iniciativa do Instituto Pólis espaço. Para tanto, a oficina se apresenta nas dimensões cultural, política e que é cidade - a partir da proposição coletiva
e CAU-SP, cabe perguntar qual o lugar do como ferramenta que busca contribuir com econômica – cultural, enquanto do pensar e fazer como instrumento de
próprio projeto de arquitetura construído com o debate crítico e a formulação de práticas expressão coletiva; política, na busca emancipação social - através da experimentação
comunidades vulneráveis e seu entrelaçamento políticas-projetuais, numa criação de ode ao pela possibilidade do encontro e empírica do processo projetual, considerando
com ideias de acesso ao lugar de habitabilidade, pensamento que dialogue com a ação efetiva da liberdade de (auto)regulação fundamental o entrelaçamento da população
onde problemas como habitação precária – através da criação de instrumentos concretos, social; e econômica, como lugar da moradora na área com profissionais técnicos
no entendimento de habitação como conjunto para discutir o direito ao espaço habitado simultaneidade e do encontro; conscientes de seu papel social.
de serviços e oportunidades articulados de capaz de transformar a cidade em espaço de O objetivo da oficina visava ampliar olhares
2. como processos de pertencimento
infraestruturas, equipamentos, trabalho e lazer, experiência política. A ideia de projeto como propositivos como laboratório de ideias para
a partir da conscientização da
além do abrigo de morar -, trabalho informal, meio efetivado entra não apenas pela procura reverberação através da potência dos relatos
população em relação aos seus
violência policial e dependência química na de um desenho possível, mas como produção de vivência da situação urgente e extrema feitos
direitos como cidadãos;
escala da saúde pública constituem a (sobre) de conhecimento para a sociedade, através do durante o Seminário Nacional de Planejamento
vida cotidiana. balizamento do debate social no entendimento 3. como instrumentos de resistência Alternativo, tendo como finalidade discutir o
do projeto arquitetônico como ferramenta de na hipótese da constituição de um papel do projeto por meio da articulação de
Com o entendimento de que as lógicas reais
discussão, produção e atuação do cidadão na movimento de mudança, de forma propostas gráfico-espaciais, partindo de ações
de tempo e intervenções no espaço, resultantes
busca pela cidadania de todos. experimental, não como somente como insurgência e resistência por meio de
de uma sociedade desigual que beneficiam o
sujeitos, mas a partir de práticas e diálogos abertos e coletivos.
capital como fim, uma vez que sua reprodução A arquitetura aqui é entendida, por meio técnico
experiências em ato, na constituição
se apresenta em oposição ao interesse da do seu campo de conhecimento, como três Para tanto, foi tomada como base a região dos
da possibilidade de uma vida coletiva.
geração de vida, vê-se a constituição de um hipóteses na busca por uma reinvenção política Campos Elíseos, bairro central da cidade de
movimento social urbano, instituído a partir de do projeto, através de práticas e experiências Essas ações, cujos sujeitos são múltiplos, São Paulo, território de constantes incursões de
práticas projetuais que visam a construção de aplicadas no cotidiano do pensar e repensar mas o denominador comum é a experiência grande violência por parte de agentes públicos e
cidadania, iluminar a necessidade de resistência espacial. A saber: (da violência) urbana, se apresentam como do mercado imobiliário e o trabalho desenvolvido
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pelo Fórum Mundaréu da Luz. À disposição um de Estudos da Violência e Vulnerabilidade Social Os participantes (de diversas origens, mas de direito à moradia e com os canais de troca
varal - material gráfico com imagens, relatos - Mackenzie) e Leôncio Nascimento (É de Lei). majoritariamente da área de arquitetura (trabalho junto à população) e participação
de moradores, frases sínteses e partes dos e urbanismo) se dividiram em três grupos institucional (Conselho Gestor de ZEIS)?
Foi proposto o seguinte cronograma em etapas
projetos feitos para a área até então  (tanto pelo temáticos, escolhidos pelos próprios, a partir
sequenciais: Após dadas condições, dois momentos
Fórum Mundaréu da Luz, grupo formado por de interesses e afinidades pessoais: “morada
importantes foram formados: o de
moradores, companhias e coletivos culturais, • Apresentação da oficina: feita e economia”, “soleira para dentro” e “soleira
reconhecimento e o de produção de propostas
organizações que atuam no campo da saúde conjuntamente com todos os para fora” como outra maneira de descobrir
e hipóteses (espaciais, programáticas e de
mental, laboratórios e escritórios modelo participantes e provocadores. situações criadas pela emergência, como
sociabilidade cotidiana). Sabendo do objetivo
de arquitetura e urbanismo, história social construção cultural e/ou pelas relações de
• Anúncio de perguntas e levante de de elaborar um produto, o primeiro momento
e psicologia de universidades, ONGs com solidariedade e cooperação, no exercício do
questões (o que é projeto, o que é apresentava uma dupla situação, onde os
atuação em políticas urbanas e de assistência experimento do fazer arquitetônico através de
participação, o que é urbano, o que é participantes identificavam não somente a sua
social, entre outros quanto pelo projeto da PPP uma metodologia onde presidem os fatos do
cidadania, o que é morar...). relação com a questão/espaço, mas também as
para a área) e mapas com o mapeamento cotidiano alimentando teorias projetuais com
relações de quem vivia na área com as tensões
de terrenos com mais de 500 m² notificados • Aproximação da Luz (Luz enquanto a pressão da urgência e de solidariedades
provenientes de outras matrizes (econômicas,
pelo instrumento urbano PEUC (Parcelamento, espaço e enquanto busca de uma que, apesar de tudo, resistem. Deste modo,
sociais e políticas). A linha tênue de divisão
Edificação e Utilização Compulsórios) em um “luz” possível e de um devir de futuro) colocava-se a necessidade de conceber outras
dada pelo reconhecimento/identificação e pela
raio de 1km a partir do Largo Coração de Jesus. através do varal para um início de formas de produção do espaço, relações
produção de ações propositivas geraram os
escolha de questões. sociais e relações espaciais em contra-formas
A oficina contou com um grupo de seguintes resultados:
que se opõem à mercantilização do espaço e
provocadores formada por Felipe Moreira ( • Desenvolvimento da proposta. da vida como função estratégica, técnica, ética
Instituto Pólis); Antonio Fabiano Jr., Beatriz Transformação do varal: de diagnóstico e estética vinda de grupos múltiplos movidos EQUIPE 1 – “MORADIA E ECONOMIA”
Mayumi Toma, Gustavo Henrique P. Castro, e problematização, dado e problema por ações diversas.
Heloisa Bergamin Retamero, Jennifer Barros à diretrizes de atuação (ato-ação). Em um contexto em que interesses econômicos e/
Xavier, Laura Vasconcelos Antunes, Lizete Considerando essa primeira aproximação, ou particulares sobrepõem-se às circunstâncias
Maria Rubano (Emau Mosaico - Mackenzie), • Produção de projeto por meio de nos interessava seguir em direção a seguinte relativas àquilo que é público - sócio,
Adriana Rodrigues Domingues, Guilherme colagens, desenhos, espacialidades, pergunta: como projetar, se considerarmos que a econômico, histórico e, consequentemente
Silveira Caltabellotta, Tainner Vinícius Pinheiro instalação, textos etc. formulação projetual deva estar comprometida social -, pensou-se na ideia de emancipação
de Almeida, Giovanna de Paula Moura, Rafael • Apresentação de todos os resultados com a realidade dos moradores da área, com econômica como ação primeira na busca em
Moreno de Azevedo Bohne (LEVV - Laboratório das oficinas. as disputas pelo território central como local prol de uma construção comum. O poder do

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Figura 57. Prancha esquemática da equipe 1 - Moradia e economia Figura 58. Pranchas esquemáticas da equipe 2 - soleira para dentro

Fonte: Foto do Instituto Pólis, fevereiro de 2019.

tempo da história está justamente no fato de É proposto o estabelecimento de um sistema


sua representação mental da existência, como capaz de compreender a ideia de troca
resultado de uma consciência diante das intrínseca constituída. Para tanto, propõe-se
transformações das coisas e, consequentemente operação de pontos de troca onde o sistema
como deformação que nos move, manifestação de economia colaborativa se apresenta como
e expressão do tempo relativo em todos nós. Os linha condutora apresentando pontos de
moradores estão lá, por fato histórico, criando coleta de recicláveis atrelados à cooperativas
a própria história do local. Suas relações com de transformação dessas matérias; escolas-
Fonte: Foto do Instituto Pólis, fevereiro de 2019. o território transcendem a ideia de morar. oficinas de capacitação de novas relações de

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transformação social e cozinhas coletivas a área ocupada pelo “fluxo”, os seguranças
Figura 59. Prancha esquemáticas da equipe 2 - soleira para dentro atreladas à hortas comunitárias propostas. da empresa Porto Seguro que ocupam as
esquinas das quadras e as áreas ocupadas pela
Em primeira instância, pensa-se na criação
polícia) receberiam, em um primeiro momento,
de grupos cooperativados de interesses
atividades e eventos coletivos como mutirões
comuns para regimento e reconhecimento
de desenhos na rua e construção de hortas
de pares constituintes.
coletivas, para, em seguida, reverberarem nos
espaços internos das residências das crianças
EQUIPE 2 – “SOLEIRA PARA DENTRO” que ali moram.

Foi discutido e identificado o sombreamento do


conceito de soleira como linha de separação EQUIPE 3 – “SOLEIRA PARA FORA”
entre espaços privados e públicos, partindo da
A equipe partiu da discussão das diferentes
criança como agente capaz de costurar essas
dinâmicas e conflitos do espaço público e
duas pontas de forma potente e efetiva por
desenvolveu metodologia de leitura e análise
meio da ternura como elo de ligação.
por meio de uma “rede intersetorial de
Tal recorte possibilitou a entrada na discussão potencialidades”. Essas camadas associavam dois
acerca da liberdade nos espaços públicos, pontos de movimento: o fluxo - entendido como
afinal, como seria o viver livre em um espaço os usuários de crack que residem e circulam nas
estigmatizado por sua complexidade e ruas - e o fixo - entendido como os moradores
violência? Quais são os espaços de medo e de que residem e circulam entre as pensões e hotéis,
acolhimento? O que rompe as dinâmicas pré- com o território e as políticas públicas.
estabelecidas?
A partir do embate desses dois polos, viu-se
A estratégia aproximativa partiu da ocupação que as soleiras se apresentam como fronteiras
em pontos estratégicos do território, de forma a fluidas dos conhecidos lados público-privado,
criar laços de resistência em torno do convívio uma vez que a rua abriga usos íntimos de uma
Fonte: Foto do Instituto Pólis, fevereiro de 2019. cotidiano. Seis pontos mapeados (as escolas, o residência e as residências se estruturam a
Largo Coração de Jesus, a Praça Júlio Prestes, partir de áreas comuns de sociabilidade.

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Desta maneira, sugere-se, a partir do Atesta-se o entendimento do trabalho de Figura 60. Prancha esquemáticas da equipe 3 - soleira para fora
entendendo destas dinâmicas do “viver junto”, projeto como ato de resistência, na medida
o desenvolvimento, como ação emergencial, que reconhece, no projeto de arquitetura,
de estruturas permanentes e móveis que parte intrínseca e indissociável da cidade,
atendam a população em situação de rua e um instrumento privilegiado de discussão,
máxima vulnerabilidade, destrinchadas em 3 e se constitui como uma hipótese factível de
categorias: dar forma ao mundo para todo mundo e
um ato de reparação, na medida em que se
1. Proteção a intempéries com abrigos
apresenta como instrumento de construção de
em casos de necessidades físicas de
paisagem para a vida, a partir da proposição e
proteção;
percepção de espaços como lugares de afeto,
2. Acolhimento, com ações de redução através da construção de territórios de falas e
de danos e reinserção na sociedade; de escutas, capazes de propiciar vocações de
lutas coletivas comuns.
3. Necessidades básicas, como
banheiros públicos.

Em sua totalidade, os grupos priorizaram o *Autores:


desenvolvimento de hipóteses metodológicas Antonio Fabiano Jr.
de aproximação com o território, tanto em Beatriz Mayumi Toma
sua escala física quanto em suas relações Gustavo Henrique P. Castro
interpessoais. Os resultados obtidos,
Heloisa Bergamin Retamero
portanto, acabaram por subverter a noção do
Jennifer Barros Xavier
planejamento tradicional, prevendo a possível
interação da população em um processo Laura Vasconcelos Antunes
efetivo de criação de projeto e de luta coletiva, Lizete Maria Rubano
além de contribuírem positivamente com o
detalhamento das diretrizes já identificadas no Fonte: Foto do Instituto Pólis, fevereiro de 2019.
projeto Campos Elíseos Vivo.

204 205
OFICINA 2
ESTRATÉGIAS DE MOBILIZAÇÃO E PARTICIPAÇÃO
Instituto Pólis

PROPOSTA E OBJETIVOS DA um mote à discussão dos participantes, ou, METODOLOGIA organizadas em um quadro conceitual, para
uma chave analítica para tais discussões. estruturar uma reflexão coletiva e, ao mesmo
OFICINA Assim, a oficina poderia se focar mais A oficina propôs discutir os processos de tempo, sistematizar toda a discussão em algo
As oficinas propostas para encerrar o Seminário objetivamente sobre apenas um aspecto mobilização e participação social que as visualmente organizado. Ao apresentar, cada
de Planejamento Alternativo tinham o objetivo das quatro experiências locais, para que quatro experiências locais puderam revelar, dupla explicitava suas impressões, justificava a
de trabalhar recortes temáticos do conteúdo o debate gerasse algum produto, ou, um de modo que cada participante pudesse análise e, naturalmente, propiciava reações e
resultado material das reflexões. se posicionar criticamente em relação novas discussões daqueles que ouviam.
do evento, de modo a dar vazão às discussões
ao tema a partir das seguintes perguntas
e reflexões feitas nos dois dias de seminário Não foi delimitado um formato específico para orientadoras e provocações: Como orientação, foi requerido que as duplas
expositivo, quando foram apresentadas as o produto da oficina, mas sua metodologia foi tentassem sintetizar a resposta em no máximo 4
quatro experiências locais de planos populares planejada para que todas as reflexões pudessem • O que deu certo em relação à mobi- linhas, para que o preenchimento das cartelas
e projetos compartilhados em Fortaleza, Belo ser sistematizadas simultaneamente à discussão lização e participação: considerando não fosse muito sucinto a ponto de não ser claro
Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo. A feita pelos participantes. as experiências apresentadas e tam-
o suficiente em relação a seu conteúdo, nem
escolha pelo formato de oficina deve-se às bém a sua prática, quais os principais
aprendizados positivos? muito extenso com uma redação exagerada e
possibilidades de maior interação entre o público
pouco objetiva.
participante, assim como de organização dos
resultados dessa mesma interação coletiva. PÚBLICO DA OFICINA • O que deu errado em relação à mo-
bilização e participação: consideran- Tanto durante o preenchimento das cartelas
Ao todo, participaram XX pessoas. Todas do as experiências apresentadas e quanto durante a apresentação da dupla, a
Optou-se por reservar menos vagas a
elas eram ou estudantes ou graduados em também a sua prática, quais os prin- equipe de moderação esteve presente para
oficina do que no seminário teórico, para cipais aprendizados negativos?
arquitetura e urbanismo, sendo que algumas orientar os participantes, provocar novas
que grupos menores (de até 10 integrantes)
já demonstravam alguma experiência prática
pudessem se reunir, discutir e, eventualmente, • O que poderia ser diferente? questões e também organizar o quadro de
no desenvolvimento de projetos, como
encaminhar o debate sobre o tema pautado forma clara, para que as ideias se estruturassem
de assessoria técnica, em assentamentos
na direção de aprofundar as avaliações e Cada pergunta deveria ser respondida em de forma articulada e conexa.
ser mais críticas e propositivas. precários como favelas. Embora o público momentos diferentes da dinâmica nesta
inscrito no seminário fosse mais diverso, as mesma ordem em que foi apresentada. Foi Também foram colocadas questões
O tema da mobilização e participação, pessoas interessadas nesta oficina foram solicitado que os participantes, em duplas, complementares, que, apresentadas como
central para as experiências expressas apenas estudantes ou profissionais da área de respondessem suas análises de forma sintética perguntas de fundo, não precisariam ser
durante o seminário, foi colocado como arquitetura e urbanismo. em cartelas para que as mesmas fossem respondidas durante o exercício, embora

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devessem ajudar a construir a reflexão RESULTADOS Figura 61. Painel dos Princípios, Processo e Estratégias da Oficina 2
crítica sobre as perguntas iniciais. Fazendo
referência ao processo de mobilização com as Os resultados serão apresentados conforme
comunidades e/ou grupos, foi colocado: a estrutura da dinâmica da própria oficina,
em que cada pergunta orientadora deu
• Como chegar? que ferramentas, es- origem a uma discussão e a um painel com
tratégias e que linguagens podem ser
as cartelas organizadas.
adotadas para se aproximar de um
grupo, mobilizá-lo e articulá-lo em
torno de alguma causa, projeto ou
plano? O QUE DEU CERTO?

• Como ficar? que forma e metodolo- Apesar da objetividade da pergunta, que


gias podem garantir a permanência visava provocar reflexões a partir das quatro
e a construção contínua e perene de experiências locais apresentadas durante o
um processo de construção coletiva, seminário e também das práticas pessoais, muitas
envolvendo o maior número de pes- das questões apresentadas pelos participantes
soas, garantindo representatividade e já trouxeram uma carga propositiva pela forma
força política ao grupo mobilizado?
como foram elaboradas e defendidas. Algumas
• Como sair? existe um momento certo cartelas foram apresentadas com perguntas
para sair? Como proceder para dei- que questionavam, de certa forma, o próprio
xar a comunidade agir com autono- mote da dinâmica com a indagação “O que é
mia completa? dar certo?”. O fato de a pergunta não ter sido
respondida à risca não é um problema, pelo
Embora tenham sido colocadas como contrário, já que sua função era provocar e
perguntas de fundo, elas representam questões organizar as reflexões dos participantes, o que
chave para as estratégias de mobilização e de fato aconteceu.
participação em processos compartilhados de
Fonte: Foto do Instituto Pólis, fevereiro de 2019.
planos e projetos populares.

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A partir das apresentações de cada dupla, foi Este reconhecimento da dimensão política em ignorar o fato de que o trabalho de traria subsídios e outros elementos, como
possível organizar um painel, que, embora não qualquer ação é fundamental para o processo articulação local deve dialogar dire- estratégia de mobilização sem perder o foco
represente necessariamente os pontos positivos de mobilização, pois dá a linha da articulação tamente com as especificidades de de que o protagonismo desse processo deve
(“que deram certo”) no processo de mobilização e constrói uma luta coletiva por direitos em cada comunidade ou grupo, sejam ser dos próprios moradores e moradoras.
das experiências locais, elenca diretrizes, uma situação patente de conflitos sociais, onde elas econômicas, demográficas, ter- Ele potencializa um processo que deve ser
ritoriais, políticas, etc;
precauções, princípios e até estratégias para o Estado é, via de regra, o agente promotor de construído internamente à comunidade, sem
realizar um processo de articulação local, não violações e o não o efetivador de direitos. • A mobilização leva tempo. Qual- ser imposto de fora para dentro de maneira
impositivo, que identifique as demandas e construa quer processo de mobilização que se artificial e autoritária.
as alternativas em um processo participativo e Neste sentido, também foi colocada a importância apresse e não reconheça as comple-
que seja apropriado pela população para que se de a mobilização ter como meta um processo xidades e o tempo de cada situação Não se trata de um trabalho simples e que,
torne um instrumento de luta . representativo, ao mesmo tempo que multiescalar, e contexto corre riscos de se fragilizar evidentemente, não compete a apenas um
uma vez que a luta política não se dá apenas ou, pior, de produzir um efeito con- perfil profissional ou apenas a uma área do
no âmbito individual de uma família, e deve, trário de desarticulação política de conhecimento. Há entendimento consensual
PREMISSAS E PRINCÍPIOS na medida do possível, dialogar com projetos moradores e moradoras. Reconhecer de que o processo de mobilização prescinde
pontuais assim como planos mais amplos, que que trata-se de um trabalho, contí- de uma rede multidisciplinar e muito bem
Algumas cartelas trouxeram constatações nuo, de muita insistência e
tocam a abrangência de políticas públicas. integrada com ações articuladas entre suas
que podem ser entendidas como premissas
da mobilização local, e que combinam tanto • Ddiálogo e que não se resolve da diversas frentes de atuação, o que pressupõe um
Ainda foram colocadas duas premissas muito noite para o dia, é fundamental para trabalho coordenado entre a população e seus
análises das experiências apresentadas no importantes e que também foram destacadas a mobilização local. representantes, ONGs, coletivos, academia, etc.
seminário quanto experiências próprias da durante os dois dias de seminário:
prática de cada participante. O entendimento Foram discutidos outros princípios quanto ao O trabalho com populações vulneráveis e
de que o projeto - -- ou plano -- popular é, antes • Experiências de projetos coletivos e papel do técnico que chega de fora e procura que estão, de alguma forma, sob ameaça,
de tudo, um instrumento de luta apareceu como de planos populares são construções
se articular a um grupo. De uma maneira geral, precisa de estratégias de aproximação muito
um consenso. Projetos compartilhados e planos únicas, como afirma a cartela “Cada
caso é um caso”. Reconhecer a espe- dewfende-se que ele seja, de fato, um agente cuidadosas e que saibam criar diversos canais
alternativos populares não são meras peças importante, que traz um conhecimento científico de relacionamento com as diversas condições
cificidade de cada situação é primor-
técnicas construídas a partir das necessidades ou especializado para a comunidade, mas (pessoais ou coletivas) que caracterizam tal
dial para evitar ruídos e/ou equívocos
locais, porque funcionam como uma ferramenta durante o processo de mobilização, que tal domínio deve estar sempre à serviço vulnerabilidade. Daí a importância de um projeto
política de resistência, de embate, de contra- o qual deve partir deste pressuposto, desta mesma comunidade, sem estabelecer de mobilização que coordene profissionais,
argumentação e expressão da população. não podendo, em hipótese alguma, uma relação vertical e hierárquica. O técnico pesquisadores e ações multidisciplinares.

210 211
PROCESSO Não raramente, esse processo de mobilização ESTRATÉGIAS • Pensando em formas de reverberar e
não surgirá voluntariamente e demandará fortalecer o processo local, é impor-
Foram feitas algumas colocações no sentido de desses técnicos um papel importante como A consciência de direitos é o norte da mobilização tante construir uma estratégia conjunta
que a mobilização e a participação constituem provocadores, o que requer bastante cuidado e que foram apontadas durante a oficina. Ainda para disputar as narrativas hegemôni-
um processo contínuo, e não um conjunto planejamento. Há nesta função, um limiar muito que não seja uma tarefa simples, os participantes cas sobre o território em disputa. Esse
de atividades pontuais. É um entendimento delicado entre as ações que visam provocar e da oficina apontaram algumas estratégias: tipo de disputa, geralmente, tem efei-
que reconhece a complexidade deste tipo tos mais positivos no campo institucio-
mobilizar, e, algo que possa ser interpretado • Uso de linguagem clara, acessível nal e da opinião pública, o que pode
de planejamento e, vai além, preconiza a como algo invasivo e até oportunista. Valorizar e condizente com o contexto e com ser um elemento de estimular a mobi-
construção coletiva ao longo do tempo mais do o processo e entender que não se trata de os problemas locais. A comunicação lização e o projeto coletivo em si.
que os produtos e resultados da mobilização. uma ação pontual com resultados imediatos é um ponto nevrálgico de qualquer
é, novamente, um pressuposto importante, processo de mobilização e não pode • A escuta, já mencionada anterior-
Assim como foi colocado que a mobilização sobretudo se essa mobilização visa um processo ser negligenciada. A escolha de uma mente, é uma estratégia poderosa e
é um processo interno, engendrado de dentro de caráter emancipatório. linguagem adequada vai muito além que faz parte de todo o processo de
pra fora, foi apontado que o processo de da escolha de termos simples ou mobilização, embora seja apontada
mobilização é, também, um processo de troca. Um processo que estimule a autoorganização e palavras mais populares, porque a como sendo fundamental no início,
Ele não apenas permite que agentes externos a autodeterminação dos sujeitos, que mobilize linguagem no processo de mobili- quando da aproximação dos agentes
(como da academia ou de organizações) tragam na luta por direitos é o que, via de regra, foi zação pressupõe método, que, por externos na comunidade. Ela é enten-
apontado como um processo ideal para a sua vez, demanda outras formas de dida como o momento de construção
contribuições técnicas para as lutas locais, como
mobilização de grupos e comunidades. Instigar comunicação e de interação entre os afetiva, de trocas e de fortalecimento
também permite construir canais de escuta e da luta local.
a noção de que as populações vulneráveis têm técnicos e a população local. A de-
de aprendizado mútuos. Foi problematizada finição de problemas e objetivos co-
como um exercício essencial “Saber ouvir” , direitos e de que a situação de conflito e de
muns depende de um entendimento
muitas vezes negligenciado nos processos, mas ameaça em que se encontram não os anulam,
mútuo, que pode ser construído com O QUE DEU ERRADO?
que deve ser feito continuamente e que alicerça é uma forma de se organizar o processo de um vocabulário mais acessível, mas
o processo de mobilização. Em outras palavra, mobilização; em torno de um processo de também com dinâmicas de partici- Também neste momento da dinâmica, a
mobilizar não implica apenas estratégias ativas resistência. Para isso, esse grupo ou essa pação mais interativas, lúdicas. O pergunta orientadora não foi respondida
de articulação e participação popular, porque população local, precisa se enxergar como uso de canais digitais não está ex- à risca, porque os participantes da oficina
parte de conflitos e de lutas maiores, que têm cluído, mas vale demarcar a impor-
também pressupõe espaços e momentos para a afirmaram não ter como apontar erros,
uma escala de abrangência mais ampla, o que tância da presença física na constru-
população local poder se colocar, se expressar ou aspectos que não tiveram sucesso das
demanda uma prática conjunta, perene e aberta ção de um processo permanente de
e se fazer compreendida. mobilização. experiências locais, simplesmente porque não
para que haja trocas em ambos os sentidos.
212 213
sentiram ter conhecimento de causa para DESAFIOS GERAIS Figura 62. Painel dos Princípios, Processo e Estratégias da Oficina 2
fazer esse tipo de análise. Seria como fazer
afirmações sem propriedade ou avaliações • O controle e a gestão das expectativas
meramente especulativas. Em vez disso, é um grande desafio que está
optaram por enumerar problemas, desafios colocado desde o início de qualquer
e riscos da ação local e que se colocam processo de mobilização. Qualquer
como aspectos a serem considerados em grupo externo a uma comunidade que
qualquer processo de mobilização. chega com a intenção de mobilizá-
la e construir algo em conjunto
Ainda que tenham sido apresentados e discutidos precisa, desde o início, deixar claras
de uma forma mais genérica, sem ancorá-los às as intenções e os objetivos daquela
experiências locais do seminário, os aspectos iniciativa. É imprescindível explicitar,
apresentados colocaram, de fato, problemas, de forma contínua, os limites daquela
desafios e riscos pertinentes à mobilização construção para que moradores e
em projetos e planos compartilhados. Não moradoras não criem a expectativa
raramente, as questões apresentadas eram sobre algo que aquela mobilização
relacionadas com às abordadas anteriormente, nunca terá condições de criar de
bem como uma continuidade do raciocínio e fato. Esse é um tipo de cuidado que
da reflexão coletiva. evita desgastes e ajuda a construir
uma relação transparente durante
Da mesma forma que “O que deu certo?”, todo o processo, deixando claras
esta pergunta orientadora bastou para que as possibilidades de construção e Fonte: Foto do Instituto Pólis, fevereiro de 2019.
muitas colocações já fossem apresentadas em realização coletivas.
tom propositivo, o que permitiu organizar um
quadro paralelo de estratégias. • Novamente, o uso adequado de
uma linguagem clara, inclusive
e aberta para diversas formas de
troca foi colocado como um desafio
que se aplica a várias situações e

214 215
experiências locais. Transformar construção dela no âmbito de um estão submetidas, que se atribui ao • Outro problema colocado foi a
dados e termos técnicos em processo coletivo, em um grupo ou próprio Estado, seja através da ação assimetria entre a força de ação
informações palpáveis é um desafio comunidade, pode ser feita a partir das forças de segurança, seja através do mercado em relação à iniciativa
central para qualquer estratégia de de provocações e contribuições de da falta de serviços básicos, que popular, seja ela qual for. Há uma
mobilização. Propor metodologias agentes externos, mas requer muito nega direitos e também configura percepção que a correlação de
e formas de comunicação mais cuidado e um trabalho permanente. uma forma de violência cotidiana forças é, via de regra, desfavorável
livres e baseadas no intercâmbio e A transparência e a gestão das para populações já vulneráveis. para a elaboração de projetos e
no aprendizado mútuo, favorece a expectativas durante a mobilização, Independentemente das ameaças planos alternativos, o que cria uma
comunicação durante a mobilização, já colocadas anteriormente, podem de remoção, que muitas vezes são “sensação de impotência” na luta
sem torná-la um processo depositário ser importantes nesse processo, que o gatilho para a mobilização e coletiva por direitos.
e de mão única. deve ser contínuo. Construída uma construção de um projeto coletivo,
relação de confiança entre técnicos existe um estado contínuo de violências
• A linguagem utilizada também é e população, o trabalho para sua e violações que fragilizam ainda PROBLEMAS LOCAIS
um ponto central na forma como manutenção e consolidação deve mais a situação de vulnerabilidade,
se estabelecem relações menos ser permanente, dado que, em impondo mais obstáculos ao • Alguns problemas locais foram
hierarquizadas, em que o saber situações de vulnerabilidade e, processo de mobilização. colocados por participantes que
técnico, pretensamente iluminado, sobretudo, de ameaças, qualquer expuseram questões oriundas de
não se impõe aos saberes locais. O descuido pode fragilizar o • A intangibilidade dos direitos no sua prática militante e profissional,
desafio é construir uma relação não relacionamento, cuja reconstrução cotidiano das populações locais a partir de provocações feitas
que não seja vertical e de dominação pode ser ainda mais difícil. sob algum tipo de ameaça também pela moderação da oficina,
através do conhecimento científico foi colocado como um problema o que foi interessante como
mas que estimule, desde o início da conjuntural. A noção de que políticas complementação às leituras que
mobilização, o protagonismo dos PROBLEMAS CONJUNTURAIS públicas e a efetivação de direitos vinham sendo feitas a partir das
moradores locais - independentemente não alcançam aqueles grupos cria experiências locais do seminário.
dos aportes que o saber técnico possa • Um aspecto negativo que apareceu uma certa suspeição sobre qualquer
trazer para contribuir. nos diagnósticos, entendidos como iniciativa que vise construir um • Ausência do senso de pertencimento
problemas gerais para a mobilização, projeto coletivo no sentido contrário, e de coletividade são observações
• A confiança também foi colocada é o permanente estado de violência a da afirmação de direitos. feitas sobre algumas experiências,
como um grande desafio geral. A que muitas comunidades vulneráveis incluindo a do Fórum Aberto

216 217
Mundaréu da Luz. A falta de uma determinadas lideranças pode ser de violência, assédio e cooptação SÍNTESE DAS ESTRATÉGIAS
identidade comunitária entre os um fator complicador para gerar por parte de outros agentes externos,
moradores, ou qualquer sentido a mobilização pretendida. Trata-se cujo interesse é desarticular a • Saber se identificar é crucial para
que dê alguma coesão, ou, unidade de um problema local difícil de se comunidade, e não mobilizá-la em as estratégias de aproximação em
ao conjunto deles, caracteriza um contornar, mas que não pode ser torno de alguma luta. qualquer comunidade. Deixar claro
tecido social mais fragmentado e ignorado. Esse tipo de concentração, que não se trata de uma gente
fragilizado (apesar da proximidade às vezes involuntária por parte da • Foram colocados também os riscos do Estado, o que muitas vezes é
física de vizinhança) que dificulta a própria liderança, impede que o de desgaste emocional e físico que entendido como uma presença
mobilização. Essa leitura coincide movimento desejado tome uma atingem não apenas os moradores hostil, é fundamental para iniciar
com o quadro de certa fragilidade abrangência maior e envolve mais expostos às violações e ameaças, mas a mobilização, mas não basta. É
dos vínculos entre as pessoas e o pessoas da comunidade. Lideranças também daqueles agentes externos importante afirmar de onde os técnicos
território, o que afeta o senso de voluntariamente centralizadoras à comunidade que se propõem a vêm, porque razão estão naquele
pertencimento e, consequentemente, prejudicam a representatividade do trabalhar de forma conjunta com ela. território, qual a finalidade da ação
parte da motivação necessária à processo e são um impedimento para As constantes violações que fragilizam deles naquele local, o que se espera
mobilização local. o processo de mobilização do coletivo, ainda mais famílias já em uma daquele tipo de trabalho, quais as
concentram poder e enfraquecem a situação de vulnerabilidade, a pouca contribuições, possibilidades e limites
• Um ponto pertinente apresentado diz potência da construção compartilhada capacidade de resposta a ações daquela ação etc, são aspectos que
respeito ao alcance de ações muito que se deseja. impositivas e violentas, o desgaste de caracterizam essa identificação
pontuais ou individuais. Este tipo de se construir uma luta conjunta que mais responsável e ajudam no
prática pode prejudicar a mobilização constantemente é afetada por ações processo de mobilização.
e o sentido coletivo da ação política RISCOS do Estado ou de algum outro conjunto
ensejada por planos e projetos de interesses mais poderoso são • Essa aproximação inicial pode ser
populares, sobretudo se tais planos e • Mais do que a ausência de direitos, fatores que progressivamente afetam uma das etapas mais truncadas e
projetos assumem um caráter político a ausência de uma consciência as pessoas e desgastam a mente, o demoradas. Compreender que trata-
de luta e resistência por parte dos moradores sobre emocional e o corpo.Este tipo de risco se de um processo que leva tempo
sua condição enquanto sujeitos de aponta para a necessidade de todo e tem um ritmo próprio é muito
• Alguns participantes da oficina direitos configuram um risco grande processo de mobilização se precaver importante para o bom andamento
apontaram que a centralidade do ao processo de mobilização, porque com estratégias de autocuidado. da mobilização no momento de
diálogo e da representação em aumenta sua exposição a todo tipo chegada em uma comunidade.

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• Mapear os atores locais e entender as envolvimento de todos ou, pelo anulados. Pelo contrário, a força da programas públicos e, portanto, na efetivação
particularidades do lugar em que se menos, de parcelas representativas mobilização e do projeto coletivo de direitos. Considerando que o estado não
chega são medidas estratégicas para do grupo que se deseja mobilizar. está também em saber lidar com é homogêneo, é fundamental entender que
qualquer aproximação. Entender Essa é uma forma de evitar a as situações de conflito, tirando resistir a ações arbitrárias capitaneadas por ele
“quem é quem” é fundamental: concentração de lideranças em potencialidades delas e buscando não significa que todos os espaços e aparelhos
quem são as lideranças, quem são poucas figuras e, consequentemente, reequilibrar a correlação de forças do corpo estatal é refratário a ideias e iniciativas
os diferentes grupos que compõem construir um processo coletivo mais local para construção de processos populares que questionam suas políticas.
aquela comunidade, as correlações representativo e potente. insurgentes, questionadores e
de força, os conflitos internos e os mais democráticos. Neste sentido, Essa questão não foi enunciada como uma
laços, etc. • Neste sentido, as metodologias o acolhimento da dúvida e da estratégia em si, mas foi apresentada como
de participação também devem divergência como forma de construir um aspecto central, não apenas para o
• A articulação em rede, apontada preconizar o envolvimento mais são estratégias muito importantes. processo de mobilização, mas também para
no “O que deu certo?” é uma ativo dos moradores de modo que toda a construção coletiva do projeto ou
estratégia fundamental para estrutura os saberes locais sejam valorizados • O autocuidado, já mencionado plano locais - o que dialoga muito com a
a ação em qualquer comunidade. e incorporados ao projeto coletivo anteriormente, deve constituir uma discussão proposta pela Oficina de (nome
A interdisciplinaridade e a ação que se deseja construir. Assim, “ouvir estratégia em si como uma forma de da oficina 3). Como fazer essas ações, que
integrada e coordenada das várias e respeitar” são máximas que devem proteção dos que se propõe atuar nos tem um caráter insurgente, aderir, de alguma
organizações e profissionais são estar presentes no processo de escuta. territórios em disputa, tanto do ponto forma, às institucionalidades do Estado para
componentes centrais na ação em de vista físico quanto emocional e ganharem alguma concretude (se é que este é
rede para fortalecer a mobilização e • Um dos pontos mais importantes mental. Isso vale para os técnicos, o único meio)? Considerar que o Estado não é
o desenvolvimento de uma proposta colocados como uma premissa mas também para os moradores e monolítico, que tem níveis diversos, nuances,
conjunta, legítima e com força técnica estratégica diz respeito à atuação em para a relação que se cria entre os porosidades e que ele também tem conflitos
e política para disputar as narrativas situações frágeis e conflituosas em atores envolvidos no processo. internos e está em constante disputa. Esta é
e as políticas públicas. geral. É importante que a ação técnica uma visão fundamental para fazer com que o
e política, que visa construir projetos Uma das intervenções questionou quais seriam projeto alternativo também possa apresentar
• É importante pensar em diferentes alternativos e contra-hegemônicos, as entradas no Estado para poder fazer o sua visão técnica, sua defesa política e possa
metodologias de participação e parta do pressuposto de que os processo local (alternativo, comunitário, contra- ser implementado.
adequá-las aos perfis da população conflitos e disputas em um determinado hegemônico) dialogar e incidir sobre os espaços
local, de modo a garantir o território não devam ser ignorados ou decisórios, sobre o desenho de políticas e

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OFICINA 3
INTERFACES DO PLANEJAMENTO ALTERNATIVO E
POLÍTICAS PÚBLICAS HABITACIONAIS E URBANAS:
AVANÇOS, LIMITES E DESAFIOS
Instituto Pólis

PROPOSTA DA OFICINA sociedade civil: “Quais estratégias a sociedade de algum projeto de planejamento alternativo o que são estes processos de planejamento
civil pode utilizar para transformar desejos e surgido eminentemente como forma de alternativo e como eles podem dialogar com
A apresentações e debates suscitados a partir demandas da população em políticas públicas? ” resistência às políticas do Estado. a formulação e implementação de políticas
dos dois dias de seminário trouxe aportes públicas, de maneira a complementar o
importantes sobre quatro experiências de O objetivo geral da oficina era refletir com quadro propositivo e formular uma reflexão
práticas alternativas elaboradas a partir do os participantes possíveis formas de interação METODOLOGIA final coletiva. Neste processo, o papel da
diálogo com os territórios como forma de entre processos de planejamento alternativo e equipe de moderação e de provocação
contestação e/ou resistência às políticas e o Estado, detentor do poder decisório sobre A dinâmica proposta para a oficina dividiu foram fundamentais para contribuir com o
ações propostas e implementadas pelo Estado. os recursos e políticas públicas a serrem os participantes em duplas para estruturarem debate tanto no sentido de instigar e fomentar
As diferentes experiências debatidas durante implementadas, a partir de todo o debate cartelas com estratégias possíveis para avançar reflexões, como o de sistematizar o que estava
o seminário trouxeram relações e ações que ocorrido nos dois dias de seminário. na provocação proposta sobre como a sendo discutido de forma lógica e sucinta.
ajudam a compreender o Estado como um sociedade civil pode orientar a estruturação
campo de disputa de narrativa e de construção de políticas públicas com base em seus desejos
de políticas públicas. PÚBLICO DA OFICINA e demandas. RESULTADOS
O tema da oficina 3 buscou provocar os O público se dividiu entre acadêmicos, Após o tempo determinado de debate entre as Esta reflexão coletiva conformou um grande
interlocutores a aprofundar as reflexões sobre estudantes, professores, e gestores públicos duplas, cada equipe apresentou suas cartelas e painel de estratégias e ações possíveis, que
os limites e desafios de propostas formuladas de diferentes partes do Brasil. Na maior parte apontou estratégias possíveis para transformar foram agrupadas ao redor de alguns temas. A
a partir da resistência do território e que dos casos, as pessoas demonstravam alguma desejos da população em políticas públicas, construção da narrativa pelos participantes, de
se contrapõem as elaboradas nos espaços experiência prática no desenvolvimento de conforme a provocação inicial. forma geral, trouxe elementos não só referentes
institucionais das políticas públicas de Estado. projetos, como de assessoria técnica em à interlocução com o Estado, mas também de
A pergunta inicial da Oficina para nossos assentamentos precários como favelas e, no Os moderadores foram conformando um
compreensão da problemática, de estratégias de
interlocutores buscou suscitar a reflexão sobre caso dos gestores, dentro da administração quadro propositivo, estruturado ao longo
articulação e formulação de plano/ação local,
diferentes formas de realizar processos de pública. Entretanto, ninguém que estava na das falas. A partir do quadro inicial buscou-
de construção de narrativas, dentre outras.
planejamento alternativo surgidos do seio da oficina já havia participado da elaboração se construir coletivamente uma reflexão sobre

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Constatou-se que os participantes sentiram propostas, o papel do conhecimento técnico Figura 63. Painel dos Princípios, Processo e Estratégias da Oficina 2
a necessidade de dar um passo atrás. Como como instrumental importante para esta
nenhum dos presentes já havia participado construção.
de processos de planejamento alternativos
surgidos de territórios em disputa com o Um segundo campo de ideias se estruturou
Estado, para pensarem que estratégias de a partir da identificação de interlocutores
implementação destes planos, precisaram estratégicos, como forma de viabilizar
antes formular as etapas dos próprios articulações em diversas frentes possíveis de
processos de planejamento. Este fato refletiu- atuação, abrangendo três esferas de governo,
se no quadro desenvolvido coletivamente que bem como a sociedade civil de forma geral.
compreendeu reflexões desde a leitura da Dentre os interlocutores apontados destacam-
problemática envolvida no território, questões se: Legislativo, através de vereadores
sobre a mobilização da população, até as e deputados; judiciário no papel das
estratégias de ação e interação com o Estado Defensorias Públicas e Ministério Público,
propriamente ditas. bem como executivo, através de técnicos e
gestores estratégicos dos Governos Estaduais
No primeiro campo, da organização e e Prefeituras. Os Conselhos setoriais também
compreensão da problemática destacaram- foram apontados como possíveis frentes de
se abordagens referentes à identificação de atuação e incidência, bem como a sociedade
problemas e potencialidades, da importância civil de forma geral. Fonte: Foto do Instituto Pólis, fevereiro de 2019.
do mapeamento dos atores e de identificação
e formação de lideranças locais, contribuindo A disputa de narrativa através de estratégias
para uma ampliação e diversificação da de comunicação foram pontos frequentemente
mobilização social no território. Destacou- apontados para viabilizar a construção de
se a importância de trabalhar o campo dos empatia e sensibilização sobre a temática, de
desejos entre os moradores e usuários do forma a trazer a sociedade civil como parceiro
território, aprofundando a compreensão de nas disputas. O desafio se concentra em como
permanência e pertencimento. Ainda dentro trazer a sociedade para olhar e se alinhar na
do campo de organização e formulação de resistência contra hegemônica, na ampliação

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de direitos, maior consciência política e Defensoria Pública e Ministério Público. Este renda local, bem como programas alternativos a potência necessária para modificar a
especialmente no enfrentamento às violações campo de judicialização de políticas públicas de acesso à moradia que não envolvem a estrutura hegemônica de formulação de
de direito, atualmente banalizadas no discurso e a partir de violações básicas de direito ou compra de imóvel também foram apontados políticas públicas.
práticas de intervenção do Estado nos territórios “brechas” tem sido amplamente utilizada e como estratégias possíveis.
objeto de intervenções resistência e conflitos. foram relatadas nos casos apresentados ao Neste contexto, as práticas e processos de
Os principais interlocutores identificados longo do seminário. planejamento alternativo, ou contra hegemônico,
foram a mídia tradicional – que ainda deve ser
A outra frente junto ao Estado busca
REFLEXÕES FINAIS DA OFICINA são fundamentais na disputa pelos territórios
com o Estado. Mas constatou-se que não existe
objeto de disputa das narrativas - as mídias
alternativas, redes sociais, influenciadores efetivamente incidir na formulação ou A reflexão coletiva a cerca de estratégias uma formula ou estratégica única que possa
estratégicos, dentre outros. Outra vez, o alteração de políticas públicas relacionadas ao possíveis entre a elaboração de processos servir de modelo, cada território, a partir de suas
conhecimento técnico foi apontado como direito à cidade. Neste debate foi ressaltada de planejamento alternativo e o Estado especificidades, deverá encontrar suas formas
instrumental importante também nesta frente de a importância de compreender que as práticas demonstrou que ainda existe uma barreira de resistência e de interação com o Estado.
atuação para construção de narrativas contra conhecidas de Planejamento Alternativo ou concreta entre o processo decisório na
hegemônicas que tenham bases sólidas em Insurgentes nasceram exatamente como formulação das políticas públicas pelo
dados de pesquisa e propostas técnicas viáveis. resistência à insuficiência ou incapacidade Estado e as reais necessidades e demandas
das políticas públicas vigentes efetivamente da sociedade, principalmente em territórios
Num campo mais diretamente relacionado incorporarem a demanda existente no território populares.
às estratégias de atuação junto ao Estado e toda a diversidade e complexidade que esta
surgiram duas frentes com táticas e objetivos envolve. Dentre as estratégias e propostas As esferas participativas instituídas, como
diferentes. Uma delas seria a identificação de foram apontados: critérios de enquadramento Conselhos Participativos e Conselhos
“brechas” legais, processuais ou institucionais em programas – ampliar este arcabouço Gestores de ZEIS ainda tem estruturas que
com objetivo tanto de implementação das compreendendo não somente moradia na não permitem que as demandas da sociedade
propostas alternativas, mas também como região e renda, mas conexões de trabalho, tenham supremacia nas decisões sobre as
forma de resistência e enfrentamento à atuação no uso de equipamentos públicos, etc; políticas públicas e, portanto, apesar de
do executivo contra a população local. Os alteração de critérios de enquadramento em serem espaços privilegiados de diálogo da
principais articuladores nesta frente seriam a financiamentos, considerando a demanda e sociedade com o poder público não têm

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PLANEJAMENTO
ALTERNATIVO
ALTERNATIVO
propostas e reflexões coletivas

Parceria de fomento Realização

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