Você está na página 1de 193

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTE


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

LUCAS DO NASCIMENTO SANTOS

NOITES NO LA LUNA: MOVIMENTOS E


EXPERIMENTAÇÕES EM UMA PRAÇA POR LGBTQI+

NATAL
2023
LUCAS DO NASCIMENTO SANTOS

NOITES NO LA LUNA: MOVIMENTOS E


EXPERIMENTAÇÕES EM UMA PRAÇA POR LGBTQI+ EM
NATAL-RN

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em


Antropologia Social, da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre
em Antropologia Social.

Orientador: Prof. Dr. Paulo Victor Leite Lopes

NATAL
2023
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Santos, Lucas do Nascimento.


Noites no La Luna: movimentos e experimentações em uma praça
por LGBTQI[sinal de mais] / Lucas do Nascimento Santos. - 2023.
192f.: il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do


Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de
Pós-graduação em Antropologia Social, Natal, RN, 2023.
Orientação: Prof. Dr. Paulo Victor Leite Lopes.

1. Praça. 2. Corpo. 3. Pandemia. 4. LGBTQI+. 5. Etnografia.


I. Lopes, Paulo Victor Leite. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 316.837

Elaborado por Ana Luísa Lincka de Sousa - CRB-15/748


LUCAS DO NASCIMENTO SANTOS

NOITES NO LA LUNA: MOVIMENTOS E


EXPERIMENTAÇÕES EM UMA PRAÇA POR LGBTQI+ EM
NATAL-RN

Dissertação aprovada em: ___/___/___

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________________
Profº Drº Paulo Victor Leite Lopes (Orientador) – UFRN

______________________________________________________________
Profª Drª Eliane Tânia Martins de Freitas (Examinadora Interna) – UFRN

_____________________________________________________________
Profª Drª Silvana de Souza Nascimento (Examinadora Externa) – USP

____________________________________________________________
Profª Drª Angela Mercedes Facundo Navia (Examinadora Interna - Suplente) – UFRN
AGRADECIMENTOS

Gostaria de começar agradecendo a todas, todos e todes que construíram os caminhos


que tornaram possível que pessoas como eu almejassem e alcançassem o título de mestre. Esta
pesquisa é um resultado coletivo, feita por tantos corpos e cabeças que não consigo numerar.
Em especial, agradeço ao movimento LGBTQI+, às pessoas que lutaram para ter sua existência
reconhecida e garantida.

Quero agradecer ao meu avô, Seu Zé Eugênio, que sempre foi minha referência de
intelectualidade e era mestre em diversas áreas, apesar de não ter os títulos da Academia.
Obrigado por ter sido um exemplo de integridade e força, vejo muito do senhor em mim.
Agradecer à minha avó, Dona Maurina, por ser meu exemplo concreto de como não perder a
ternura ainda que a vida não seja fácil. Que eu possa contar sempre com sua benção e sua
proteção.

Agradeço à minha mãe, Maria Eugênia, e ao meu pai, José Humberto, por todo apoio.
Mesmo sem entender completamente o que estou fazendo e com todas as dificuldades, sempre
apostaram na minha educação enquanto ferramenta emancipatória. Às minhas irmãs, Luana e
Layane, pelo carinho, por sempre estarem disponíveis e comemorarem minhas pequenas
vitórias.

Aos meus amigos, Rolfran e Roberto Carlos (RC), por compartilhar tantos
atravessamentos e pelo fortalecimento durante esse caminho. Sabemos que, entre pequenos e
grandes problemas, ser LGBTQI+, racializados e das camadas populares implicam uma série
de barreiras, mas estar ao lado de vocês me fez perceber também nossas potências. Rolfran,
sempre desbocado e com poucos filtros, me mostra sempre outras perspectivas sobre os
acontecimentos. RC, sempre disposto a conversar, é meu oposto em muitos aspectos e isso tem
me ajudado a ampliar meu campo de visão. Agradeço pela companhia em um período que me
vi solitário pelo CCHLA, pelas longas conversas me atualizando sobre sua vida e por sempre
ter um tempo para me escutar. Com eles, desenhamos estratégias que nos permitem sonhar com
dias melhores, elaborando respostas coletivas, apostando em nossa força conjunta. Obrigado
pelo apoio, pelas risadas e histórias absurdas.

Às minhas amigas, Mariana, Ana Beatriz, Suzanne e Guilherme, por sempre estarem ao
meu lado e por acreditarem no que estou fazendo. Mari, que me acompanha desde o conjunto,
tem sido uma voz tão presente que parece me conhecer em momento que nem eu me reconheço.
Bia é, sem dúvidas, uma mulher que admiro e me mostra como ser leal aos meus amigos. Suze,
além de amiga é parceira na vida acadêmica, devo muito das reflexões levantadas aqui por
nossas trocas. Guilherme, pela leveza dos nossos encontros e por sempre trazer alegria. Gostaria
de agradecer também à Janaina e Ioanna.

Ao meu orientador, Paulo Victor Leite Lopes, gostaria de agradecer de forma especial
por todo suporte e cuidado que teve desde antes do mestrado. O processo de orientação
ultrapassou o desenvolvimento dessa pesquisa. Agradeço pelas conversas, sempre com risos e
mais trabalho para fazer, pelos questionamentos desafiadores e por todo respeito. Por ter
acreditado e enxergado potência quando eu duvidava, pela confiança no meu trabalho que foi
fundamental para que eu projetasse horizontes mais amplos do que minha realidade permitia.
Fica aqui toda minha admiração pela pessoa e profissional que você é, espero poder continuar
com nossas trocas.

Agradeço aos/às colegas do Núcleo Tirésias e aos/às orientandos/as de Paulo, nossas


leituras e discussões coletivas me ajudaram na construção teórica desta pesquisa. Agradeço
também pela leitura e as contribuições feitas ainda nos momentos iniciais desse texto. Às/aos
docentes e discentes do Grupo de Pesquisa Gênero, Corpo e Saúde - GCS - ligado ao
PPGA/UFRN, e os/as colegas do PPGAS, pelos debates dentro e fora das salas de aula e as
trocas sobre pesquisa.

Às professoras Eliane Tânia Freitas e Silvana do Nascimento pelas contribuições para o


desenvolvimento desta pesquisa na minha qualificação, pela leitura e por terem aceitado
participar da banca de defesa. Agradeço à professora Tânia por ter me recebido como estagiário
docente, por toda atenção e pelas trocas durantes as aulas, foi uma experiência incrível que
acrescentou bastante na minha formação.

Agradeço ao La Luna e sua equipe na pessoa de Vanessa. A abertura e disponibilidade


para conversar ou responder meus questionamentos, mesmo durante suas jornadas de trabalho,
foram essenciais para construção dessa pesquisa. Agradeço também pelas oportunidades
criadas pelo estabelecimento para tantas pessoas LGBTQI+ em situação de vulnerabilidade e
pela ousadia de ocupar o espaço público e ser um lugar onde me sinto confortável e seguro
enquanto pesquisador e como ser humano.

Por fim, agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, ao


Departamento de Antropologia e à UFRN pelo apoio institucional e o investimento em minha
pesquisa. Ser um jovem das camadas populares que se atreve a estar na pós-graduação é
desafiador em muitos aspectos. Durante o primeiro ano do mestrado não acessava a bolsa da
CAPES e, por vezes, me vi preste a abandonar o mestrado. Reforço aqui a importância de
medidas que buscam garantir o acesso e a permanência de estudantes que, como eu, estão em
situação de vulnerabilidade social. Assim, agradeço o apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 - sem o
qual dificilmente teria finalizado essa pesquisa.
Resumo

Esta etnografia busca compreender as dinâmicas, usos e apropriações do espaço público a partir
da experiência do La Luna Bar e Petiscaria, localizado na Praça da Guerreira, na Zona Sul de
Natal, Rio Grande do Norte. Desta forma, é levada em consideração as perspectivas e narrativas
criadas sobre e com o bar pelo seu público, constituído majoritariamente por LGBTQI+. Este
campo é atravessado por questões que envolvem a cidade, o corpo, gênero, sexualidade e o
consumo, construindo um complexo cenário que serve de palco para múltiplos conflitos, lazeres
e formas de fazer política. Também é abordado como a pandemia do coronavírus influencia
essa investigação, o fazer antropológico e o espaço urbano. Este lugar não se limita a dimensão
física, ganhando projeções no digital, demandando o esforço analítico que consiga dar conta
das nuances desta trama.

Palavras-Chave: Praça; Corpo; Pandemia; LGBTQI; Etnografia.


Abstract

This ethnography seeks to understand the dynamics, uses and appropriations of public space
based on the experience at La Luna Bar e Petiscaria, located in the Guerreira Square, in southern
Natal, Rio Grande do Norte. Therefore, it is taken into consideration the perspectives and
narratives created about and with the bar by its frequenters/clients, mostly composed of
LGBTQI+ people. This field is crossed by issues that involve the city, the body, the gender, the
sexuality, and the consumption, building a complex scenario that serves as a stage for multiple
conflicts, leisures, and ways of doing politics. It is also addressed how the Coronavirus
pandemic has influenced this investigation, the anthropological work, and the urban space. This
place is not limited to the physical dimension, gaining projection within the digital space,
demanding the analytical effort that manages to account for the nuances of this plot.

Keywords: Square; Body; Pandemic; LGBTQI; Ethnography.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 10

1.1 Traçando rotas: caminhos éticos e metodológicos pela pandemia ........................... 14

2 CIDADE, ESPAÇO PÚBLICO E BAR......................................................................... 23

2.1 Cidade e espaço público .............................................................................................. 23

2.2 “Vamos Lalunar?”: Primeira investigação e algumas conclusões sobre o La Luna. .... 33

2.3 Retornando ao La Luna: Pedaladas, continuidades e transformações. ...................... 43

2.4 Recomeçando as noites: A volta do La Luna ............................................................... 56

2.5 Quem vai? Reflexões sobre o público do bar .............................................................. 65

2.6 Acordos, motivações e gestão de riscos na ida ao bar. .............................................. 75

2.7 “ A gente se encontra lá”: Coletividade como forma de estar no espaço .................. 79

2.8 Fronteiras e sonoridades: O espaço e suas disputas .................................................. 85

3 DINÂMICAS, NEGOCIAÇÕES, FRONTEIRAS E CONSUMO: AMPLIANDO


SENTIDOS .............................................................................................................................. 98

3.1 Consumo, sociabilidade e política ............................................................................... 98

3.2 Estratégias de consumo, atuação política e engajamento do público...................... 120

3.3 Encerrando a noite: entre mudanças, retornos e um “novo normal”. ..................... 125

4 IMERSÃO NO DIGITAL: OUTRAS PERSPECTIVAS SOBRE O CAMPO ....... 141

4.1 Instagram: uma vitrine virtual ................................................................................... 149

4.1.1 Rifa, delivery e a narrativa de ajuda ............................................................................ 154


4.2 Twitter: “todo mundo tem o que falar” .................................................................... 160

4.2.1 Perambulações, casos e plataformização ................................................................... 168


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 181

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 187

.
10

1 INTRODUÇÃO

A proposta inicial da presente investigação é fruto de reflexões e questionamentos que


surgiram a partir do desenvolvimento do meu trabalho de conclusão de curso para obtenção do
grau de bacharel em Gestão de Políticas Públicas1. No trabalho citado, pesquisei o La Luna Bar
e Petiscaria, que está localizado na Praça da Guerreira, no bairro Neópolis, em Natal - Rio
Grande do Norte. Busquei compreender como se dava o uso e apropriação desse espaço público,
a praça, por lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais - LGBT, tendo em vista que o bar
se autodeclara “LGBTQI+”2 e define esse grupo como público alvo.
Durante este processo, percebo que alguns desdobramentos, como os diferentes usos da
praça, as perspectivas do público e da vizinhança, os conflitos que o bar está envolvido, suas
conexões com outros locais da cidade poderiam ser aprofundadas. Desta forma, a proposta deste
trabalho etnográfico é, por meio do La Luna Bar e Petiscaria e de seus usuários, compreender
as dinâmicas, usos e apropriações da Praça da Guerreira, bem como as percepções e narrativas
criadas sobre/com o bar pelo seu público. De forma mais ampla, também é de seu interesse
compreender as formas de utilização do espaço público em Natal por LGBTQI+, através da
experiência do La Luna3.
Por meio desta primeira pesquisa (SANTOS, 2019), pude perceber como diversos
significados são construídos e atribuídos ao bar pelos atores presentes naquele contexto. Longe
de ser encarado de forma homogênea, para parte do público, pensando o sentimento de
pertencimento e de vínculo com o local, ele pode ser entendido como um “pedaço”
(MAGNANI, 1993) e/ou, de forma mais ampla, conformar uma região moral (PARK, 1967),
onde impera um código moral divergente. Além disso, através de seus frequentadores e de
algumas associações com festas e outras ações que não ocorrem em seu espaço, conecta-se a
outros lugares da cidade, compondo um circuito voltado ao lazer e sociabilidade deste grupo.
Atentando-se que o estabelecimento se enquadra na lógica do mercado segmentado e foca suas
atividades para um nicho específico, no caso o público LGBTQI+, bem como a frequência

1
Com o título “"Vamos lalunar?": experimentações do espaço público em Natal-RN”, disponível em:
https://monografias.ufrn.br/jspui/handle/123456789/9420
2
“Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Queer, Interssexuais+” neste trabalho adoto o uso do
“LGBTQI+” para referenciar a todas expressões de gênero e sexualidade não hegemônicas e me aproximar da
definição utilizada pelo La Luna, mas compreendo a complexidade e multiplicidade de identidades e categorias
que estão englobadas nessa sigla.
3
Opto por essa forma de referenciar o bar seguindo meus interlocutores e a própria gestão. Outros nomes foram
surgindo ao longo da pesquisa, como “lalu”, mas sua maioria utilizava La Luna como identificação do
estabelecimento.
11

majoritária de jovens, tratar-se-ia de um equipamento parte de um possível “circuito LGBTQI+


jovem” em Natal e sua Região Metropolitana.
Em resumo, essa foi a proposta que submeti ao programa em meu ingresso. Baseado no
meu cronograma, voltaria para o “campo” já no segundo semestre de 2020, mas fomos
surpreendidos pela pandemia causada pelo Covid-19. O isolamento social e outras medidas de
enfrentamento da situação fez com que muitas pesquisas precisassem ser repensadas, até
mesmo substituídas. Muitos/as pesquisadores/as precisaram mudar completamente seus
objetivos e problemas de pesquisa.
Dito isto, apresento alguns desafios metodológicos para execução da pesquisa. Com o
retorno das atividades do La Luna realizei algumas idas ao bar, com intuito exploratório e de
recomeço da pesquisa de campo. Esses episódios me trouxeram um misto de emoções que
precisam ser levadas em conta. A excitação de estar fora de casa, colocando em ação os
planejamentos do início do mestrado se chocaram com o medo e o estranhamento das novas
cenas que, possivelmente, vão perdurar até o fim da pandemia ou da campanha de vacinação.
Se os nossos corpos enquanto pesquisadores/as não passam despercebidos durante
nossas observações e interações com as/os interlocutores, obviamente isso também é válido
para os riscos que enfrentamos. Ir ao campo, significava em certa medida romper o isolamento
social e colocar meu corpo em risco, dada as formas de contágio e transmissão do coronavírus,
consequentemente, isso também significava colocar outras pessoas em risco. Misturado ao
conjunto de jovens sentados na praça, mantendo certo distanciamento e utilizando máscara/
álcool em gel, me perguntava se em certa medida estava contrariando recomendações dos
órgãos de saúde e fortalecendo discursos que não acredito, como o fim do isolamento ainda que
a conjuntura não fosse favorável.
Se estar em campo já conformava uma problemática, outra ainda mais delicada é como
desenvolver a observação. Até que ponto poderia estabelecer contato com possíveis
interlocutores/as? Como desenvolver trocas? Como estabelecer comunicações? Como estar
atento e firme na coleta e construção de dados? Como minimizar as possibilidades de
contaminação e transmissão do vírus? Eram perguntas que ecoavam em minha cabeça enquanto
me preparava para minhas idas ao campo.
Riscos e exposição são aspectos que ganham maior importância dentro da antropologia
urbana a partir dos esforços de refletir sobre as dimensões do corpo e das corporalidades e seus
atravessamos nas pesquisas. Torna-se relevante pensar a materialidade dos/das sujeitos/as,
entendendo que essas experiências são corporificadas, sendo dialogicamente produzidas com o
espaço urbano. Esses elementos se constituem enquanto possibilidades que não se limitam a
12

aspectos negativos, como os mencionados acima e que ganham outras dimensões por meio do
contexto pandêmico. Se pensamos os perigos, podemos conjecturar também os acessos, as
permissões, as facilidades e as potências que precisam ser observadas e compreendidas,
posicionadas e contextualizadas, formulando cenários onde esses corpos se articulam com a
cidade e produzem novas experimentações, dando novos sentidos e criando outras narrativas,
como aponta Silvana Nascimento (2016):
A etnografia urbana, por sua vez, se constrói na interação entre a experiência
vivida e os modelos teóricos na tentativa de compreender as dinâmicas sociais
a partir das lógicas produzidas pelas pessoas que fazem a cidade para além
dos projetos urbanísticos, dos discursos midiáticos e das políticas
institucionais. (NASCIMENTO, 2016, p.2)

A autora tem buscado articular o debate mencionado acima, interligando questões de


corpo e cidade, propondo uma produção etnográfica à luz das inspirações da “corpografia”,
conceito elaborado por Paola Jacques e Fabiana Brito e incorporado às reflexões antropológicas
por ela. Em suas palavras: “a corpografia se traduz num modo diferenciado de sentir a cidade
por meio de intervenções e performances estéticas e artísticas que provocam, rechaçam,
questionam a espetacularização das metrópoles contemporâneas” (NASCIMENTO, 2016, p.2).
É no “sentir”, “questionar” e “intervir” que identifico a capacidade dos/das sujeitos/as e grupos
de desenhar e constituir outras “cidades” no plural, dentro do mesmo espaço urbano.
Outro ângulo dessas reflexões se volta justamente para aqueles/as que as propõem, isto
é, fazer o exercício de direcionar nossos olhares para nós mesmos. Assim, pensar nossos corpos
enquanto antropólogos/as em campo, construindo nossas pesquisas, é reconhecer nossa
materialidade e visibilidade durante as observações. É se atentar as nossas experiências, nossas
relações com interlocutores/as e espaços, como nos inserimos dentro das próprias dinâmicas
que nos propomos pesquisar.
Novamente, Nascimento (2019) nos ajuda a pensar a centralidade do corpo dos/as
antropólogos/as nas pesquisas de campo, bem como esse elemento reverbera na própria escrita
etnográfica:
Nessa posição, não posso abandonar meu próprio corpo e minha subjetividade
como mulher parda e afrodescendente, de classe média, entre outros muitos
marcadores. E, por meio do meu próprio corpo, permito-me torná-lo visível e
questionado no momento em que mergulho no processo da experiência de
campo. Esta visibilidade não necessariamente comunica minha própria
trajetória subjetiva e pode ser lida segundo outras perspectivas.
(NASCIMENTO, 2019, p.463)

Essa passagem proporciona o gancho para outro aspecto central nas reflexões sobre
corpo e corporalidades, sobre a heterogeneidade e os diversos marcadores que atravessam e
13

posicionam os/as sujeitos/as. Contrariando os padrões hegemônicos que tentam produzir corpos
homogêneos, legítimos, a diversidade possível de constituir um é vasta. Tentando seguir o
exposto acima, para além das formas, aqui nos interessa o prisma que permita compreender a
produção de marcadores sociais da diferença (BRAH, 2006) e os desdobramentos que esses
forjam nas experiências dos/das sujeitos/as, refletindo sobre como essas experiências
posicionadas se articulam na produção, uso e vivência do espaço urbano.
Experienciar e apreender também são postos em análise. Seguindo este caminho, o
“sentir” ganha amplitude que não deve ser limitado, privilegiando um dos sentidos sobre os
outros. Em resposta aos diversos estímulos visuais que compõe as paisagens urbanas, se faz
necessário que a observação esteja para além do enxergar, traçando formas de identificar e
reconhecer o que está presente campo “fazer antropologia com um corpo amplia os seus
sentidos para além do domínio do olhar e o permite se embriagar pelas vozes, falas, gritos,
rangidos, gestos, silêncios, mobilidades. ” (NASCIMENTO, 2019).
Neste trabalho, o “ouvir” ganha destaque pelos estímulos que se apresentam e passam a
compor a observação. Thiago Fernandes Alves (2015) traz reflexões sobre sonoridades e
cidade, buscando expor aspectos sociológicos e métodos para essa incorporação “sensorial”.
Nas palavras do autor, “os agentes e grupos sociais produzem espaços e campos sonoros uma
vez que, para além da mera visualização das performances individuais, o agir no mundo produz
também sonoridades condizentes com as práticas humanas em sociedade” (ALVES, 2015).
Permitir sentir o campo, vai conformando esse corpo do pesquisador em ferramenta de
pesquisa, que passa a ser treinada para estar atenta, de forma parecida, mas ampliada, ao que
Roberto Cardoso de Oliveira (1998) coloca como “um olhar devidamente sensibilizado pela
teoria disponível”.
A etnografia pode auxiliar nas pesquisas enquanto meio para compreender o fenômeno
urbano, pensando as cidades para além do caos, da individualização, dos afastamentos e
perspectivas que criam uma falsa noção de totalidade, de imagens que elaboram a cidade apenas
pelo prisma das grandes estruturas, ressaltando as desigualdades como suas consequências. Ela,
portanto, é também uma forma de produzir cidade. Estabelecendo uma postura crítica a essas
elaborações, Magnani (2002) vai sugerir um olhar “de perto e de dentro” que consiga situar o
foco da pesquisa nem tão perto, numa perspectiva particularista, nem tão longe, em um recorte
abrangente, mas desprovido de sentido. É nessa aproximação, seguindo os/as sujeitos/as, que
conseguimos as pistas para compreensão de dinâmicas culturais e formas de sociabilidade que
são constantemente traçadas e remanejadas dentro do espaço urbano pelos/as variados/as
atores/as sociais.
14

Nesse caminho, enxergamos os/as moradores/as de forma ativa no processo de


constituição da cidade, encontrando saídas dos lugares passivos frente as “grandes forças”,
como o capital imobiliário e a gestão pública, observando-os com suas múltiplas redes e formas
de sociabilidade, conflitos, deslocamentos e estilos de vida, dentro da arena de disputa do
espaço urbano:
É justamente essa dimensão que a etnografia ajuda a resgatar. A incorporação
desses atores e suas práticas permitiria introduzir outros pontos de vista sobre
a dinâmica da cidade, para além do olhar “competente” que decide o que é
certo e o que é errado e para além da perspectiva e interesse do poder, que
decide o que é conveniente e lucrativo. (MAGNANI, 2002, p.15)

Podemos pensar vários exemplos de equipamentos e espaços que ganham outros


significados e usos diferentes daqueles projetados pelo conhecimento técnico e burocrático do
planejamento urbano. Ruas que se transformam em espaços de festa e permanência, de
comercio, que são ocupadas por diferentes sujeitos/as em diferentes temporalidades, praças que
se transformam em pista de obstáculos para diversos esportes, lugares pensados para
sociabilidade que viram vazios urbanos. Neste horizonte, se faz possível captar as
movimentações e os caminhos que levam o público do La Luna a ocupar aquela praça durante
determinadas noites da semana.
Se entendemos assim a mutabilidade e fluidez que conformam os espaços físicos,
podemos encontrar outras narrativas sobre a cidade e suas possibilidades, desestabilizando até
noções de centralidade-periferias, desenhadas através de múltiplos referenciais. Por esta
perspectiva se estabelece o enfoque em sujeitos/as ou grupos, guiados por um fio condutor que
traça ligações entre esses/as com práticas sociais, localidades, subjetividades e viabiliza
entender dinâmicas especificas. Entretanto, essas também podem se interligar e projetar
análises em esferas maiores, por exemplo, sobre a cidade.

1.1 Traçando rotas: caminhos éticos e metodológicos pela pandemia

Com o advento da pandemia precisei refletir se deveria direcionar a pesquisa para outros
aspectos, tendo em vista que meu problema de pesquisa circula entre sociabilidade, lazer e uso
do espaço público. Entretanto, decidi esperar e torcer pela melhora da conjuntura. No geral, a
conjuntura nacional não melhorou, aspectos macroeconômicos, políticos e sociais não se
desenvolveram da melhor maneira possível. A gestão da pandemia em solo nacional foi, e tem
sido, alvo de diversas críticas. O fim do auxílio emergencial, a retomada do comércio e a
flexibilização do isolamento e distanciamento social parecem ir contra a realidade de aumento
15

do número de infectados e mortos em decorrência do coronavírus que se agravou nos primeiros


meses de 20214.
No Rio Grande do Norte, as flexibilizações foram adotadas no final de julho de 2020,
cerca de quatro meses após o início das medidas de isolamento. Mesmo com a possibilidade de
retorno, as atividades do La Luna só voltaram no início de novembro, com bastante divulgação
sobre a reabertura do bar e da nova forma de funcionamento, buscando se encaixar nas
recomendações dos órgãos de saúde, questões que abordarei ao longo do texto. Partindo deste
cenário, precisei estabelecer algumas escolhas sobre minhas atividades em campo, dentre elas
a principal seria retomar ou não com o modelo presencial, voltando a frequentar o bar. Dentro
dos dilemas, que abordarei abaixo, optei por aproveitar o retorno das atividades, entendendo o
“privilégio” de prosseguimento da pesquisa que vai de encontro aos possíveis riscos, tendo em
vista o contexto pandêmico.
Estes questionamentos e reorientações não me são exclusivos, como tratado na
coletânea Etnografando na Pandemia, organizada por Paride Bollettin, Guillermo Vega
Sanabria e Fátima Tavares (2020), que reúne um conjunto de trabalhos sobre os impactos da
pandemia na execução e desenvolvimento de pesquisas antropológicas no atual cenário. No
mesmo sentido, também acompanhei, de forma mais próxima, as pesquisas de colegas do
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte e os desdobramentos frente a conjuntura.
Com temáticas e abordagens diversas, o que se destaca nesta situação é a força criativa
e o empenho para desenhar estratégias que possibilitem o seguimento de seus trabalhos. Não se
trata apenas de mudanças dos métodos ou ferramentas de pesquisa que seriam adaptadas, mas
o esforço de refletir sobre a realidade social que inevitavelmente atinge, de formas diferentes,
nossos campos.
Não fazia sentido a frase “o mundo parou” uma vez que esta realidade mantinha seu
curso, as tramas para lidar com a pandemia estavam continuamente sendo traçadas, como tantas
outras, para além do coronavírus. Já que nossos atores em campo estavam se movimentando,
coube a nós enquanto pesquisadores/as, que também estamos inseridos nesse contexto,
desenvolver táticas para acompanhá-los/las e conseguir analisar aquilo que era observado.
Como é exposto na introdução da coletânea acima citada:
O que todas essas mudanças têm em comum é o fato de que os autores logo
perceberam que elas iam muito além do problema “metodológico” mais

4
Um dos fatos marcantes deste período foi o colapso do sistema de saúde que ocorreu em Manaus, as altas taxas
de ocupação dos leitos de UTI somados com a falta de oxigênio resultou no trágico aumento no número de mortos
em decorrência da covid-19.
16

evidente, relacionado ao “trabalho de campo”, para rapidamente ganhar outro


fôlego como problema “teórico-metodologia”, isto é, como um problema que
reverberava em toda a concepção da pesquisa. (BOLLETTIN; SANABRIA;
TAVARES, 2020, p. 15)

Outra questão que ganha novos contornos é sobre a ética da pesquisa. Muito já foi
debatido sobre essa temática, gerando inclusive um código de ética do antropólogo e da
antropóloga pela Associação Brasileira de Antropologia – ABA. Contudo, com o advento da
pandemia o fazer pesquisa, o contato e as interações que envolvem nossos/as interlocutores/as
passam por uma nova complexificação, agora envolvem riscos de transmissão/contágio do
coronavírus. Não só as narrativas que são construídas e compartilhadas durante as investigações
e o que fazemos com elas, bem como as consequências de nossas produções e os impactos que
podem gerar em nossos campos, a presença do vírus faz imergir dúvidas acerca da viabilidade
de manter uma pesquisa in loco, como esta que proponho.
Conto com as contribuições de Claudia Fonseca (2018) que reflete sobre a ética da
pesquisa e os desafios enquanto pesquisadora a partir das suas investigações. Explorando como
seu campo e os Comitês de Ética em Pesquisa - CEP tem se desenvolvido nacionalmente com
um viés voltado às ciências biomédicas, a autora aponta como entendimentos engessados não
conseguem dar conta dos cenários de pesquisas nas ciências humanas, sobretudo na
antropologia onde as relações com os/as interlocutores/as estão em constante negociação do
que é permitido ou não. Como exemplo, a autora questiona o uso do Termo de Livre
Consentimento Esclarecido – TCLE e como o documento pode garantir algum respaldo
jurídico, mas não garante os acessos e permissões que só a relação com os/as sujeitos/as parece
estabelecer na pesquisa antropológica.
Assim, a autora discute a noção de “risco zero”, um ideal de pesquisas que garantiriam
a paz da rotina na universidade, relacionando com o imaginário onde “A ideia de que, na área
das humanas, nossas pesquisas têm consequências “meramente” simbólicas e, portanto, podem
ser classificadas como de “risco mínimo” é enganosa. ” (FONSECA, 2018). O risco, para
autora, é entendido enquanto categoria de acusação negociada em um campo de força. Logo,
os parâmetros do que é ou não tolerável variam conforme lugar e época.
É mister recordar que demandas que envolvem risco e ética não passam a existir no
contexto pandêmico. No fazer antropológico, nossas produções implicam, em boa parte dos
casos, algum risco. Seguindo o pensamento de Fonseca (2018), nem sempre esse elemento pode
ser evitado e algumas vezes é desejável. O que se faz necessário é debater os desafios éticos
que surgem, atentando as nossas responsabilidades enquanto pesquisadores/as e as negociações
17

que fazemos durante nossas buscas. Dessa forma, traçamos limites e evitamos maiores
problemáticas, como usos indevidos de informações.
Cabe aqui se deter, mesmo que de forma breve, nas ações/respostas do estado e do
município. A força normativa dos decretos e decisões de enfrentamento da pandemia, bem
como a definição das possibilidades de funcionamento dos diversos tipos de estabelecimentos
inferem diretamente nas dinâmicas sociais e urbanas, restringindo ou flexibilizando os fluxos e
deslocamentos da população. Aqui tenho como referência a Zona Sul de Natal, nos bairros de
Neópolis, Capim Macio e Ponta Negra, e em Nova Parnamirim, na Região Metropolitana, por
onde cotidianamente estabeleço trajetos e observações, mas que acredito se expandir, em
diferentes níveis, por outras zonas da capital e da Região Metropolitana, visto o alcance previsto
nas normas.
O descumprimento das medidas restritivas prevê sanções individuais e para os
estabelecimentos, passando por multas, dispersão de aglomerações, chegando a prisões
preventivas5. Entretanto, a adesão das determinações não se dá de forma universal, podemos
constatar isso observando os níveis de isolamento e distanciamento social como indicadores 6,
que permaneceram variando no decorrer da pandemia, sendo afetado por, dentre outros
aspectos, estas ações. De outro ângulo, podemos pensar como as respostas repressivas do
Estado se materializam de formas diferenciadas, alguns casos do tratamento desigual nos pontos
da cidade apareceram nas mídias, como respostas as aglomerações na praia de Ponta Negra, de
forma branda, e a detenção de um grupo de jovens na Zona Norte da cidade7.
O aumento ou diminuição dos casos de contaminação e de mortes em decorrência do
coronavírus, a pressão social e a articulação de entidades representativas, como dos
comerciantes, sindicatos e outros fatores parecem conformar uma delicada arena de disputas na
qual é estabelecida a gestão da pandemia. Esse cenário ganha materialidade também no
estabelecimento dos decretos, na flexibilização e no enrijecimento das medidas, com isso,
aqueles que não conseguem o status de “atividades essenciais”, como supermercados,

5
Importante ressaltar que tais sanções também passaram por modificações ao longo do período observado nesta
pesquisa, o que busco explorar são as diferentes medidas de ação do Estado e como elas podem se manifestar.
6
Algumas pesquisas e acompanhamentos sobre as taxas de isolamento e distanciamento social têm sido realizadas
por diferentes instituições, dentre elas o departamento de Demografia da UFRN. Segue uma dessas pesquisas
realizadas sobre a primeira reabertura dos comércios: https://demografiaufrn.net/2020/07/09/reabertura-
interioriza/
7
Este caso aconteceu no dia 24/03/2021, durante a vigência das medidas mais restritivas, e ganhou repercussão
pois entre os 26 jovens autuados estavam alguns blogueiros/influencers como Flávia Bigbig, que aproveitaram a
situação para gravar e divulgar através de suas contas no instagram, gerando vídeos e “memes”. O vídeo mais
famoso é com a influencer subindo uma escada e suas amigas gritando “soltaram big”. Confira a notícia em:
https://nominuto.com/noticias/policia/operacao-do-pacto-pela-vida-encerra-festa-na-zona-norte-natal/214832/
18

farmácias, assistência à saúde, postos de combustíveis, segurança privada, entre outros,


ficamram vulneráveis as restrições de suas atividades.
A própria noção de “atividades ou serviços essenciais” é alvo de disputas e sofre
variações. Em suma, abrange aquilo que seria crucial para a sobrevivência humana, como
fornecimento de produtos (como alimentação e medicamentos) e de serviços ligados à
infraestrutura básica (como saneamento, energia elétrica e gás). Entretanto, o estabelecimento
destas prioridades passa por alterações nas localidades e temporalidades. No Brasil, elas podem
ser definidas nos três níveis de governo, isso resulta em entendimentos divergentes do que
realmente seria classificado como essencial8.
Inicialmente, dentro das atividades não essenciais, os espaços de lazer e sociabilidade,
como bares, boates e restaurantes, se conformam como um dos grupos mais afetados,
principalmente pela natureza de suas atividades que é permeada pelo contato e interação entre
pessoas. Logo, este setor passou por alterações em seus regimes de funcionamento, onde foram
suspensos, tiveram horários reduzidos e/ou limitados a serviços de entrega e retirada no local.
A possibilidade de mudança do status “não essencial” para “essencial” gerou
mobilizações em diferentes frentes. Como exemplo, temos a bancada evangélica, representada
por diversos estados, tensionando para liberação das atividades religiosas e que conseguiu
alterar Lei nº 13.979/20, que dispõe sobre o enfrentamento ao COVID-19, através do presidente
Jair Bolsonaro, e incluir este tipo de atividade como serviço essencial em toda nação.
Trazendo esta discussão para o nível local, uma carta conjunta foi apresentada ao
governo do estado pelas Federações e Entidades empresariais, representantes de
empreendedores potiguares9, com sugestões para o funcionamento dos diversos setores
econômicos e foi levada em consideração já na implementação das medidas em abril de 2021,
possibilitando certo nível de flexibilização. Ainda nesta arena que envolve o setor de comércio,
turismo e lazer, em Natal, no dia 26 de maio de 2021, foi sancionada lei que passa a reconhecer
bares e restaurantes como essenciais, baseados no discurso econômico de garantia de empregos
e da arrecadação, uma vez que esses setores representam boa parte da economia do município.

8
Essas divergências são aspectos que evidenciaram diferentes formas de gerir a pandemia. Se em 2020, o governo
federal direcionou suas ações para medidas que não tinham respaldo médico/cientifico, como questionar o uso das
máscaras, a eficácia do isolamento social e a propagação do uso de medicamentos como cloroquina e ivermectina,
ações que o prefeito de Natal corrobora, o governo do estado seguiu em direção oposta, por meio de suas
propagandas procuravam incentivar as medidas recomendadas pela OMS, mesmo que algumas de suas decisões
como a reabertura comercial pareçam contraditórias, e buscava adquirir junto com outros estados da Região
Nordeste vacinas que estavam sendo produzidas em diferentes países.
9
Informações retiradas do decreto Nº 30.516, de 22 de Abril de 2021, disponível no Diário Oficial do Estado do
Rio Grande do Norte.
19

Captar este panorama é necessário para entender, ao menos inicialmente, como estão
sendo concebidas as dinâmicas em campo. A instabilidade das medidas persistiu durante boa
parte da pesquisa e, consequentemente, o “abre/fecha” dos bares e estabelecimentos afins foi
uma marca do período no qual realizei o campo. Diante desse cenário, se fez necessário o
esforço de (re)traçar teórica e metodologicamente meios de avanço da pesquisa. Já no final de
fevereiro de 2021, foram estabelecidas restrições que culminaram no fechamento dos bares e
no estabelecimento de toque de recolher10. Em março, outros dois decretos do governo do
estado foram lançados mantendo restrições de funcionamento, seja referente aos dias da semana
ou do intervalo de tempo possível, com fechamento/encerramento das atividades variando entre
22:00 e 00:00. Em maio do mesmo ano, o governo do estado liberou a venda de bebida alcoólica
e de consumo nos bares, restaurantes e locais públicos. Uso esses exemplos para ilustrar o que
venho expondo, da fluidez e rapidez que este cenário vai sendo composto e de seus
desdobramentos.
Inspirado nas reflexões propostas por Letícia Carvalho de Mesquita Ferreira (2011)
acerca dos documentos, parto destes documentos oficiais para pensar processos de formação de
Estado e da constituição de sujeitos. Experimento traçar encadeamentos entre os decretos e
medidas publicadas pelas esferas de governo, estadual e municipal, e as dinâmicas urbanas.
Seguindo a autora, podemos pensar formas como os decretos são produtos dessas arenas de
disputas e dos processos entre os diversos atores sociais, que apresentam suas demandas ao
Estado. Este último, precisa elaborar respostas as múltiplas reivindicações dentro do contexto
pandêmico, quase sempre contornando cenários com maiores tensões.
Guiando a discussão para o tema desta pesquisa, o que me chama atenção é, para além
destes processos que resultam nos decretos, observar suas manifestações nas dinâmicas
urbanas, de maneira mais ampla, mas, de forma mais centrada no espaço público onde construo
esta pesquisa. Assim, as restrições de circulação de pessoas, de usos destes locais, de frequência
nos estabelecimentos e outras ações que direcionam para uma dinâmica específica, justificada
pelos níveis críticos do sistema de saúde e o aumento no número de casos e mortes em
decorrência da covid-19, por vezes não conseguem cobrir a complexidade de outras dinâmicas
e fluxos que são traçados cotidianamente por meio das experiências dos atores que constroem
a cidade de modos plurais e complexos. Retomarei este ponto no decorrer do texto, trazendo
minha experiência enquanto ciclista experimentando outras formas de circular pelo espaço
urbano.

10
DECRETO Nº 30.383, DE 26 DE FEVEREIRO DE 2021 do Governo do estado do Rio Grande do Norte.
20

Se faz pertinente explorar um pouco o que está sendo tratado como pandemia. A
Organização Mundial de Saúde – OMS declarou em 11 de março de 2020 o status de pandemia,
levando em consideração a gravidade, mas, principalmente, a rápida disseminação geográfica
do coronavírus e consequentemente da covid-19, atingindo naquele momento mais de 200
países. A declaração serve de reforço para adoção e manutenção das medidas implementadas
pelas nações visando a contenção da circulação do vírus, uma vez que neste momento inicial
medidas preventivas eram a única forma de lidar com ele.
A declaração vinda de um órgão internacional de grande relevância como a OMS, pode
ser vista por uma perspectiva universalizante de disseminação e atuação do vírus, como também
das possibilidades de respostas para gerir o cenário pandêmico. Entretanto, o enquadramento
em escala global não traduz este fenômeno enquanto universal ou homogêneo. Como nos
mostra Segata (2020), não se trata de a pandemia, no singular, e sim de pandemias, no plural,
por entender que suas progressões se constituem para além da abordagem “vírus centrado”,
assim:
Uma pandemia é, então, um evento múltiplo. Os surtos que o constituem
nunca são iguais. Cada um deles pode ter intensidades, qualidades, formas de
agravo, prevalência e de contenção que são muito particulares. Há distinções
socioeconômicas, culturais, políticas, ambientais, coletivas ou mesmo
individuais que tencionam a homogeneidade do risco, da doença e do cuidado.
(SEGATA, 2020, p. 9)

O autor chama atenção sobre a negação de conhecimentos culturalmente localizados e


como modelos globais, amparados pelas narrativas das ciências biomédicas, prevalecem frente
as práticas locais no gerenciamento destas situações. Seguindo este raciocínio, Segata et al
(2021) no texto que serve de apresentação ao volume 27 da revista Horizontes Antropológicos
abordam como “a pandemia” é um abstrato, que precisa ser compreendida por meio de
descrições do sensível, tratar os dados e indicadores em escalas macro de trajetórias, biografias
e experiências, que nos permitam dar conta das memórias e múltiplos sentidos deste evento.
Pensando as contribuições que a antropologia pode oferecer sobre a pandemia, Sônia
Weidner Maluf (2020), atentando para a dimensão social deste evento, vai separar as produções
deste contexto em duas, sendo elas a “antropologia na pandemia” e a “antropologia da
pandemia”. A primeira, abarca o como fazer pesquisa etnográfica neste momento, tendo em
vista que o contato direto com nossos sujeitos de pesquisa é fundamental e esbarra nas medidas
de distanciamento e isolamento social. Aqui, independe se o tema da pesquisa é em si a
pandemia ou não, pois, vai perpassar inevitavelmente as produções realizadas durante este
período. A segunda dimensão, a “antropologia da pandemia”, se divide em dois momentos: A)
21

as formas que o conhecimento antropológico acumulado podem ser empregados para


compreender e propor ações na atual conjuntura; B) refere-se as etnografias feitas diretamente
na linha frente, sobre as situações de emergência enfrentadas e que a autora vai colocar como
“urgências etnográficas”.
É neste fluxo que busco amparar minhas escolhas em campo. A tentativa de “dar corpo”
ou preencher esta abstração que é a pandemia, como os autores acima colocam, é um dos
elementos que norteiam esta investigação. Busco através das experiências em campo, da
experiência urbana, atentando para as limitações e posicionalidades que a constituem, traçar
algumas formas de (re)produção da pandemia. Fazer antropologia “na pandemia”, como coloca
Maluf, parece seguir esta linha, mostrando a relevância para as produções que seguem a
continuidade da vida social e podem contribuir por meio de perspectivas que não tratam
diretamente da pandemia, mas inevitavelmente precisam abordá-la.
Em certa medida, esta pesquisa também traz um pouco de uma “antropologia da
pandemia”. Ao longo do texto são postas reflexões que tratam diretamente do impacto da
pandemia nas sociabilidades, nas relações de consumo e no movimento de “fazer cidade” que
é construído através dos sujeitos e de suas práticas sociais. Assim, busco explorar como os
elementos do meu campo estabelecem relações com o contexto social no qual está inserido,
observando a pandemia como um dos grandes influenciadores das experiências tratadas nesta
investigação.
Para concluir, resgato a ideia de risco enquanto noção negociada para desenhar uma
avaliação sobre manter a pesquisa in loco. Aspectos como exposição, vulnerabilidade,
transmissão, são postas na balança junto com potencialidades, certa relativização e
possibilidades que estar na rua, em campo, proporcionam. Também foi levado em consideração
dimensões mais pessoais, como meu contato com número limitado de pessoas, dividir moradia
com duas colegas sem comorbidades, e não possuir nenhuma característica que fosse
enquadrada como agravante, caso contraísse o vírus.
Estes são alguns aspectos que pesaram na minha avaliação de riscos. Entretanto, essa
negociação individual é encarada como um processo, que estava em constante ponderação, a
cada saída de casa, em cada contato feito no campo. Outros pontos específicos, como usar ou
não a máscara, sentar ao lado de alguém, quem poderia abraçar ou ter contato físico, foram
questões que surgiram durante a pesquisa e que nem sempre tiveram as mesmas respostas. A
cada nova interação no espaço da praça tentava estabelecer os meus limites de “segurança” e
“conforto” e dos/das interlocutores/as de pesquisa.
22

Gostaria de ressaltar que passei por diferentes momentos onde não me senti
completamente seguro para realizar as idas a campo. No momento inicial do retorno das
atividades do La Luna, ainda sem vacinação, me encontrei aflito a ponto de não conseguir
permanecer na praça e precisar retornar para casa poucos minutos após chegar no local. Isso se
repetiu quatro ou cinco vezes até conseguir ir me adaptando a interagir novamente com pessoas
desconhecidas, fora do meu ciclo familiar ou de amizades. Apresento essas “falhas” para
ressaltar a tensão e como a pandemia influenciou no desenvolvimento da pesquisa.
Apresentando brevemente os capítulos que seguem, no primeiro capítulo concentro as
reflexões teóricas sobre a cidade, explorando a relação entre corpo e o urbano. Ressalto a
mutabilidade dos espaços por meio de seus usos e apropriações, bem como as diversas
significações que podem emergir dessas conexões. Ainda neste capítulo, apresento minha
primeira pesquisa no La Luna e algumas reflexões daquele momento, bem como o retorno ao
campo com suas continuidades e transformações.
No segundo capítulo, trato das negociações e dinâmicas que são estabelecidas no bar, a
forma coletiva de estar naquele espaço, os acordos e gestões de riscos em decorrência do
coronavírus. Busco ampliar o uso dos sentidos na observação ao analisar as sonoridades que
constituem aquele cenário. Também é abordado como algumas ações vão desenhando
fronteiras, físicas e simbólicas, que demarcam diferenciações e disputas que estão
constantemente ocorrendo na praça. Finalizo o capítulo abordando uma complexa relação entre
consumo, sociabilidade e política que atravessam as atividades do bar.
Concluo com o terceiro capítulo onde exploro narrativas e perspectivas sobre e com o
La Luna, construídas por ele e seu público no digital, nas redes sociais Twitter e Instagram.
Observo que o bar transpassa limites físicos e através dessas plataformas consigo acessar outros
imaginários que recaem sobre aquele lugar e as pessoas que o frequentam.
23

2 CIDADE, ESPAÇO PÚBLICO E BAR

Neste capítulo busco relacionar as temáticas que atravessam esta pesquisa. De início,
introduzo o debate sobre desenvolvimento urbano e algumas perspectivas que me auxiliam a
pensar a cidade. Retomo e apresento minha pesquisa anterior para contextualizar e desenvolver
as observações em campo, entendendo que esta investigação é uma continuidade, tendo em
vista que o objeto de pesquisa continua sendo o La Luna Bar e Petiscaria. Também são
exploradas questões sobre o público do bar e outras formas de experimentação do espaço
urbano, pensando a bicicleta e o pedalar como ferramenta de observação. Por fim, exploro a
relação entre os sujeitos e o local ampliando as observações para outros sentidos, além da visão,
trazendo algumas práticas que desenham fronteiras físicas e simbólicas.

2.1 Cidade e espaço público

Durante o fortalecimento do processo de industrialização que aconteceu em vários


pontos do mundo concomitante com o avanço do capitalismo, as sociedades passaram por
diversas mudanças e novas situações emergiram como campos possíveis de estudo. Nesse
contexto, a Antropologia que esteve focada nas investigações sobre povos
originários/tradicionais também se volta para o estudo dos centros urbanos, ou das cidades, que
cresciam em ritmo acelerado e concentravam uma efervescência de novas oportunidades para
aqueles que tinham seus interesses e curiosidades atiçados.
Temos na Escola de Chicago uma das grandes referências dos estudos urbanos e um dos
embriões daquilo que se entende enquanto antropologia urbana, com suas orientações e formas
de investigação sobre e na cidade. Por meio dela foram realizadas grandes pesquisas sobre
diversos fenômenos que aconteciam em Chicago, no início do século XX. Ulf Hannerz (2015)
no segundo capítulo do seu livro “Explorando a cidade: em busca de uma antropologia urbana”,
faz uma exposição sobre essa escola e sobre o que estava sendo debatido a partir dela, apontando
que:
A partir da Primeira Guerra Mundial e durante toda a década de 1930, os
sociólogos da Universidade de Chicago realizaram uma série de estudos
baseados em investigações de sua própria cidade, que foi geralmente
reconhecida como o início dos estudos urbanos modernos, e como o conjunto
de pesquisas sociais mais importantes sobre qualquer cidade do mundo
contemporâneo. (HANNERZ, 2015, p.26)

A cidade surge como o local que centraliza as demandas sociais, políticas e


organizativas dos seres humanos. Como nos aponta Raquel Rolnik (2017), ela é uma obra
24

coletiva, que se molda através da história para atender as necessidades de cada tempo, partindo
da cidade antiga, que era fechada, vigiada e protegida contra ameaças externas até as
contemporâneas, onde imperam os fluxos e a velocidade.
Assim, esta consegue nos contar mais sobre ela do que imaginamos, pois, “a cidade é
também um registro, uma escrita, materialização de sua própria história” (Rolnik, 2017, p. 9),
visto que para conhecê-la precisamos andar por suas ruas, sentar nos bancos de suas praças,
observar suas estéticas e os fluxos das pessoas que circulam por seus bairros e avenidas.
Entretanto, existem aspectos que atravessam a complexa trama da vida em sociedade
que necessitam um olhar mais atencioso e crítico para serem captados e compreendidos. A
cidade que Rolnik afirma ser antes de mais nada um ímã, ao mesmo tempo que atrai e aglomera
também repele e expulsa, ou melhor afasta de seu “centro” aquilo e aqueles que não se
constituem enquanto interessantes. Tornando-a um instigante palco para observação, como
aponta Park (1967):
A cidade, e especialmente a grande cidade, onde mais do que em qualquer
outro lugar as relações humanas tendem a ser impessoais e racionais, definidas
em termos de interesse e em termos de dinheiro, é num sentido bem real um
laboratório para a investigação do comportamento coletivo. (PARK, 1967, p.
44)

Diferentes perspectivas vão traçar análises sobre o desenvolvimento do espaço urbano


e seus desdobramentos. Seguindo essa concepção histórica levantada por Rolnik, vejo um
diálogo com Richard Sennet (2003) em seu livro “Carne e Pedra: o corpo e a cidade na
civilização ocidental”. Se para a primeira a cidade é seu próprio registro, para o segundo a
história pode ser também contada através da experiência corporal de seu povo, pensando o
corpo como referência para entender o passado.
Em sua obra, Sennet (2003) nos propõe um passeio histórico por algumas civilizações
através de suas experiências urbanas como Atenas, Roma, Paris, Londres e Nova York, em
diferentes temporalidades, fazendo emergir seu argumento de que a forma do espaço urbano
deriva das vivências corporais específicas de cada povo. Assim, durante todo o texto o que se
observa é o diálogo entre o corpo e a cidade, carne e pedra, fundamentando um processo de
construção mútua.
As descrições do autor, são elaboradas de tal forma que somos transportados para outros
locais, podendo visualizar as relações sociais estabelecidas e as formas arquitetônicas que
constituíam os diversos cenários. Tais descrições se fazem fundamentais para entendermos, por
exemplo, a nudez em Atenas e os reflexos do entendimento fisiológico nas formas urbanas, o
“calor corporal” atribuindo status aos homens e as possibilidades de permanência e uso dos
25

espaços. Visão e voz também recebem destaque nesta antiga experiência de ser cidadão,
diferenciando os detentores da palavra, e de uma posicionalidade privilegiada, homens, livres,
maiores de idade, em detrimento de corpos frios, mulheres, escravos, crianças. No entanto, é
interessante saber que já aqui, séculos antes de Cristo, esses “corpos frios” traçavam formas de
reinventar a cidade, dado que através de rituais se construíam temporalidades que
possibilitavam romper a ordem, dando outros usos para o espaço urbano.
Passando pela expansão do império romano e a imposição de um modelo arquitetônico
nos territórios conquistados, que usava certa “geometria corporal” para ordenar as construções
e o urbano, temos a crença que esta forma citadina ajudaria na assimilação dos hábitos romanos.
Ao estabelecer um centro, que equivalia ao umbigo humano, traçaram-se ruas principais e
construções que norteavam as atividades, principalmente os deslocamentos que ganhavam
maior velocidade pela linearidade estabelecida.
O advento e crescimento do cristianismo altera noções acerca do corpo concebido pelo
passado pagão e politeísta. Unido ao crescimento da cidade medieval e da economia emergente,
alteram-se hábitos, formas de se estar nos espaços, hierarquias e dinâmicas sociais. Novas rotas
e deslocamentos são explorados pela crescente necessidade de expansão comercial, o
crescimento urbano sem planejamento resulta em desordem que modifica o próprio tempo da
rua, que agora se amplia da aurora ao cair da tarde na Paris medieval.
A ideia de uma reforma moral da cidade norteava medidas de restrição de grupos
específicos, como judeus e prostitutas, e tentava impor uma nova disciplina corporal contra a
exibição pública da sensualidade. Isto modifica o vestuário e o uso de joias, principalmente das
mulheres, bem como as performances e os espaços que poderiam ser frequentados. É neste
cenário que o autor aponta o surgimento de guetos que representavam o crescimento citadino a
ponto de tornar-se tão diversificado que não conseguiria manter todas as pessoas juntas. A busca
por se distanciar grupos específicos ganha maior materialidade na construção de muros e outros
elementos que afastam fisicamente aqueles que não são desejados, que eram também associados
a transmissão de doenças.
Já no marco do capitalismo moderno, a descoberta de William Harvey sobre a circulação
do sangue possibilitou uma nova metáfora corporal para a concepção do espaço urbano. A
circulação e o movimento ganham status positivo e são almejados para garantia do corpo, da
cidade e também do fluxo de bens e dinheiro. O deslocamento e a velocidade ajudam a
dessensibilizar o corpo, o panorama das cidades se altera para cumprir as exigências do tráfego
e da mobilidade acelerada das pessoas, bem como as noções de assepsia e a preocupação em
diminuir possíveis obstáculos que atrapalhassem os trânsitos.
26

O individualismo, atributo que tem centralidade no capitalismo, se une a velocidade


amortecendo este corpo moderno dificultando que ele se vincule aos espaços, uma vez que a
fluidez se torna um propósito. Equipamentos urbanos passam a ser elaborados pela perspectiva
que estimula o trânsito rápido, como os locais abertos. As ruas são alargadas, automóveis são
privilegiados pela circulação. O transporte de massas se intensifica, conectando partes da cidade
com seus centros para garantir, mesmo que de forma precária, o deslocamento dos/das
trabalhadores/as. Neste ritmo frenético, o relógio, tempo marcado do capitalismo, norteia
grande parte dos fluxos que vão se densificando e dispersando ao longo do dia.
A comodidade e o descanso ganham novas concepções, cada vez mais almejadas após
a exaustão das longas jornadas de trabalho. Assim, o corpo em movimento, mas inerte perante
o deslocamento nos transportes e sua velocidade que o bombardeia de estímulos, aproxima-se
da passividade. O silêncio e o distanciamento de outras pessoas compõem a autossuficiência
que é objetivada no individualismo moderno. Velocidade, fuga e passividade formam esta
complexa equação que se materializa nos centros urbanos, desenhando a cidade e instituindo
configurações corporais, modos de comportamento e reações automatizadas que vão nortear as
vivências citadinas, constituindo o que o autor elenca como “corpo passivo”.
Este rápido panorama do que é proposto por Sennet (2003) nos auxilia na compreensão
da malha urbana, por um prisma corporificado. Se temos uma junção de forças que levam o
corpo à passividade, outras tantas experiências presentes no curso histórico das sociedades
ocidentais se contrapõem e invertem essas lógicas, como mencionado o caso dos “corpos frios”
em Atenas. Assim, esse corpo passivo consegue se reelaborar e reagir, ser ativo, em contextos
que revelam a particularidade de cada espaço, de cada temporalidade.
A ideia levantada pelo autor encontra conexões com a perspectiva abordada por Simmel
(2005), ao tratar como estar nas grandes cidades afeta os sujeitos e suas subjetividades. Este
espaço urbano possibilita um grande fluxo de informações e estímulos aos quais os indivíduos
estão constantemente sendo confrontados, colocando-os frente as coações exteriores. Neste
processo a vida subjetiva vai desenvolvendo formas de se “preservar” enquanto convive com
normas e lógicas que norteiam a “coletividade”, como a imposição de uma temporalidade
“hegemônica”, o tempo do relógio, que organiza a cidade. Ainda nesse contexto, o “dinheiro”
e a lógica monetária ganham destaque como mediadores nas relações, agindo como um
nivelador.
É baseado nesses apontamentos que Simmel (2005) vai abordar o “caráter blasé” como
“A incapacidade, que assim se origina, de reagir aos novos estímulos com uma energia que lhes
seja adequada” (SIMMEL, 2005, p.581). Os habitantes das grandes cidades para lidar com esse
27

grande fluxo de estímulos e contatos com os outros desenvolvem uma “reserva”, uma atitude
de autoconservação, já que seria inviável estabelecer relações interiores com tudo em seu
entorno. Como o autor destaca, “A essência do caráter blasé é o embotamento frente à distinção
das coisas; não no sentido de que elas não sejam percebidas, como no caso dos parvos, mas sim
de tal modo que o significado e o valor da distinção das coisas e com isso das próprias coisas
são sentidos como nulos. ” (SIMMEL, 2005, p.581).
A ideia de corpo passivo encontra consonância no caráter blasé, cabe destacar que
ambas não se colocam enquanto totalidade nas relações que vão sendo estabelecidas pelos
sujeitos. Entendo como, em partes, essas ideias se expressam no trato com a cidade, mas o que
busco abordar nesta pesquisa sinaliza um outro ângulo de observações. É por uma perspectiva
aproximada, “de perto e de dentro” (MAGNANI, 2002), do meu campo que percebo como
outras conexões são estabelecidas com os lugares, as paisagens, as pessoas, entre outros
elementos que vão surgindo. Desta forma, encontramos espalhados pelo espaço urbano corpos
que estão ativamente (re)modelando, afetando e sendo afetados pelos locais, entendo o La Luna
como uma dessas experiências.
Vale ressaltar que Sennet (2003) concentra suas análises em recortes temporais e
geográficos que não conseguem abarcar toda complexidade das experiências urbanas que
fogem do eixo Europa e Estados Unidos. Entretanto, com as devidas ressalvas, serve aqui para
compreender demandas e realidades sobre a construção do diálogo entre corpo e espaço em
Natal, que no contexto brasileiro é uma capital mediana em termos de população.
É interessante situar Natal nesta posição por entender que boa parte das produções sobre
o urbano, ou tendo esse enquadramento como aspecto central, ainda se concentra nos grandes
centros, que compartilham dinâmicas e possibilitam experiências que muitas vezes divergem
da realidade de localidades que possuem outras escalas. Já fazendo aproximações com a
temática aqui proposta, compactuo com Passamani (2015) quando aponta a centralização das
pesquisas sobre expressões de gênero e sexualidade nas grandes capitais do país, sobretudo do
eixo Sudeste, o que acaba por invisibilizar uma gama de experimentações em outros contextos
espaciais.
Diferenças geográficas podem se manifestar na relação entre corpos, que nem sempre
se enquadram dentro das normatividades hegemônicas, e o urbano, como exemplo a ocupação
de espaços, a oferta de serviços do mercado segmentado direcionados a grupos específicos e
outros pontos tratados ao longo desta pesquisa. Deste modo, reforço a importância de pesquisas
que abordem outros cenários, para além dos grandes centros e capitais, que consigam chegar
28

em locais ainda pouco explorados, como as pequenas e médias cidades, nos interiores dos
estados.
Conseguimos visualizar que a heterogeneidade se faz presente não apenas naqueles que
passam a ocupar o espaço urbano, como também nas possibilidades de seu uso. A
experiência/vivência na cidade é atravessada por diferenciações que partem de estruturas e
marcadores sociais como raça, classe, gênero, sexualidade e geração, interferindo diretamente
nas oportunidades e restrições de utilização dos lugares, equipamentos e serviços.
Tais processos acabam por privilegiar alguns grupos em detrimento de outros.
Entretanto, esses não acontecem de forma harmoniosa ou sem resistências por parte dos
preteridos, pois, a cidade é também um espaço de disputa, como é abordado por Harvey (2012)
em suas reflexões sobre o direito à cidade. É partindo dessas diferenciações que me desafio a
refletir sobre pessoas LGBTQI+, focando nos espaços públicos que em teoria são universais e
de livre acesso. Assim, investigar o uso e apropriação, ou o não uso, desses lugares por esse
público se constitui enquanto um interessante meio para refletir sobre a própria sociedade,
entendendo que estas se desenvolvem dentro do complexo contexto geopolítico mundial.
Este movimento de re(modelar) espaços por grupos historicamente vulnerabilizados
tencionam com a ideia de “corpo passivo” apresentada anteriormente. O que podemos perceber
através de diversas experiências nos múltiplos contextos urbanos são corpos que estão agindo
ativamente no fazer cidade, desafiando perspectivas que analisam a cidade de forma macro,
olhando apenas para suas grandes estruturas. Assim, ao longo desta pesquisa busco abordar
uma cidade vista e experienciada de maneira mais próxima, refeltindo como estes personagens
cotidianamente traçam novos desenhos, outras dinâmicas e outros sentidos para as cidades.
Retomo esse debate nos próximos tópicos, explorando como estas práticas surgem em meu
campo.
Para isso, é preciso trazer a discussão acerca das esferas do público e do privado, que
atuam sobre a nossa percepção da ordem social e podem ser expressas na oposição casa-rua,
como proposto por DaMatta (1997):
Se a casa distingue esse espaço de calma, repouso, recuperação e
hospitalidade, enfim, de tudo aquilo que define a nossa ideia de “amor”,
“carinho” e “calor humano”, a rua é um espaço definido precisamente ao
inverso. Terra que pertence ao “governo” ou ao “povo” e que está repleta de
fluidez e movimento. A rua é um local perigoso. (DAMATTA, 1997, p.57).

Desta forma, a rua, e consequentemente a praça/espaço público, se apresenta como esse


espaço hostil, da impessoalidade. Entretanto, podemos enxergá-la de outro ângulo, sendo
também o local de possibilidades. Fugindo dos contatos superficiais, que Hannerz traz como
29

“relacionamentos de tráfico” (HANNERZ, 2015, p.101), ou da atitude blasé pensada por


Simmel (2005), outros contatos e relações podem se desenvolver, e se desenvolvem, no espaço
público. É partindo desses múltiplos olhares que o La Luna se apresenta enquanto uma
instigante experiência de apropriação do espaço público por pessoas LGBTQI+, que
estabelecem relações entre si e com o local.
Através de experiências, como o caso do La Luna e outros, podemos dar visibilidade a
nuances que passam despercebidas em perspectivas dicotômicas e duais. Com isto em mente,
se torna interessante o que podemos encontrar entre a casa e a rua, entre o público e o privado,
já que experiências materiais constantemente fogem de enquadramentos rígidos entre um desses
polos. Magnani (1998), por exemplo, aborda isto ao pensar o conceito de “pedaço”, um espaço
que borra estas fronteiras através das dinâmicas sociais estabelecidas pela vizinhança.
Seguindo este fluxo, Carlos Nelson Ferreira dos Santos e Arno Vogel (1985) no livro
“Quando a rua vira casa: A apropriação de espaços de uso coletivo em um centro de bairro”
traçam análises a partir de uma pesquisa interdisciplinar, comparativa entre dois bairros no Rio
de Janeiro, sobre as formas de apropriação e usos de espaços coletivos. O estudo tem como
plano de fundo a implementação de um modelo urbanístico amparado na ideia de
“desenvolvimento”, construído acima de tudo e de todos, literalmente apagando bairros e
espaços já concebidos. Com pouca consideração a aspectos como laços e relações sociais
firmadas pela população, entre si e com o bairro do Catumbi, a pesquisa vai mostrar os outros
significados que casa, rua e o que existe entre esses elementos podem ganhar dentro do
constante processo de produção da cidade.
Entendendo o urbano enquanto uma experiência processual, os autores desenvolvem
uma descrição que parte de algumas ruas como referências, do contato com interlocutores que
permitem adentrar no cotidiano do bairro e de estabelecimentos que compõem este cenário. A
introdução de elementos gráficos como mapas, desenhos e fotografias ajudam na imersão do
que é explorado. Neste contexto, a rua é mais que uma via, trilha ou caminho, ela se modifica
pelo seu uso podendo ser espaço de trabalho, espaço de lazer, de conflitos, ser qualificada como
um lugar seguro, uma ampliação da casa, ou o espaço do perigo, do desconhecido. Pode
representar as memórias que se perderam pela demolição de edificações, da ocupação por
sujeitos que não são agregados e reconhecidos nas redes de sociabilidade que constituem a
vizinhança.
Vale ressaltar que os usos diferentes do espaço transitam sobre a Praça da Guerreira,
onde está localizado o La Luna, com temporalidades e finalidades que nem sempre são
convergentes. Assim, captar e compreender essas dinâmicas nos auxilia a perceber a
30

mutabilidade e fluidez que os espaços possuem, de acordo com as situações, apropriações e


relações que acontecem nele e com ele, como foi percebido por Lisabete Coradini (1995) em
sua pesquisa sobre a Praça XV em Porto Alegre:
A Praça possibilita, portanto, uma leitura da cidade desde sua fundação.
Diferentes concepções e projetos da cidade vão ao longo do tempo sendo ali
implantados. Ao detectar as diferentes representações da Praça ao longo do
tempo, procuro captar as transformações e o conjunto de significações e
apropriações que foram produzidas ao longo do tempo. A memória e as
diferentes reinvenções da tradição são impressas no cotidiano da cidade.
(CORADINI, 1995, p.18)

É através da observação do La Luna e da Praça da Guerreira que busco refletir sobre os


processos que acontecem no local, os públicos, que relações são estabelecidas, as divergências
e conflitos sobre os diferentes usos, as transformações e seus universos simbólicos, atentando
que “...os “espaços da cidade” não pertencem exclusivamente ao presente. “Pertencem também
ao passado e ao futuro. O espaço, neste sentido, é mutável. Mutável porque é eterno, efêmero,
passageiro, permanente, público e privado.” (CORADINI, 2016). Salientando que o foco
principal é o bar, mas que ele se situa na praça, que não pode ser ignorada.
Seguindo este fluxo, não há, necessariamente, uma total convergência entre as
finalidades pensadas pelos planejadores e os usos concretos estabelecidos cotidianamente
nesses diversos locais. As praças enquanto equipamentos urbanos são projetadas pensando
centralidades, locais de permanência e de encontro. Entretanto, sua constituição e
disponibilidade não garantem sua finalidade. É preciso que sejam estabelecidos os usos e
apropriações para que elas desempenhem as funções acima citadas. Nessas relações entre
sujeitos e espaços são constituídos múltiplos sentidos.
Partindo da Praça do Campo Grande em Salvador e dos usos e frequências estabelecidos
por adolescentes homossexuais, Franco e Andrade (2018) exploram as relações e experiências
estabelecidas no e com aquele lugar. Entendendo o espaço como produto da subjetividade de
grupos ou indivíduos que dele se apropriam, ou seja, um espaço social, os autores abordam
como esta praça é palco para expressões das sexualidades desses adolescentes que se deslocam
de seus bairros nas periferias da cidade buscando por lazer e sociabilidade. O contato entre esses
jovens proporciona uma identificação entre pares, que vai impactar na construção de
identidades, fortalecimento do grupo e na construção de um sentimento de pertencimento, além
de ser um lugar onde é possível ter um primeiro contato, manifestar e experimentar sexualidades
e expressões de gênero dissidentes.
Os adolescentes que participaram da pesquisa encaram estar na praça de forma positiva,
frente a eventuais casos de preconceito e discriminação que podem sofrer em outros locais.
31

Desta forma, a Praça do Campo grande vai sendo modificada pelo uso e apropriação desses
sujeitos, sendo reconhecida enquanto lugar de acolhida para esses jovens, auxiliando em seus
processos de desenvolvimento. Os autores ainda indicam a importância política desses locais
na garantia do trânsito pela cidade, de acesso a lazer e sociabilidade, bem como de visibilidade
para as questões de gênero e sexualidade.
A praça também pode ser perpassada por aspectos religiosos e ganhar novos contornos,
como nos mostra Lucas Bártolo (2020) ao pesquisar as festividades que circulam o dia de
Cosme e Damião, partindo de uma praça no subúrbio da cidade do Rio de Janeiro. O autor
entende esses espaços enquanto estratégicos, desde sua função como local de encontro e
sociabilidade até os seus parques e brinquedos, já que cotidianamente são frequentados por
crianças e suas brincadeiras. Desta forma, no dia de comemoração desses santos as praças se
tornam pontos privilegiados para os devotos doadores de doces e para as crianças que estão
circulando para recebê-los e/ou coletá-los.
Em seu campo, o espaço é pensado a partir dos sentidos atribuídos e pelo seu uso,
ganhando, inclusive, outro nome pelos seus frequentadores e ficando conhecida como Praça de
Cosme e Damião. O autor também explora como a vizinhança se envolve na organização das
festividades e na manutenção do espaço, especialmente do altar destinado aos santos, pensando
como relações de parentesco, devoção e amizade transformam aquele lugar em uma “praça-
santuário”, socialmente reconhecida pelos múltiplos sujeitos que passam por lá. Estes vínculos
reconfiguram imaginários atribuídos a espaços como rua e casa, borrando as fronteiras através
das práticas, por exemplo, ao dispor mesas e cadeiras para confraternizar com amigos e
familiares na rua ou quando o ambiente doméstico se transforma em ponto de apoio na
organização das festividades.
Entretanto, apesar do clima festivo, de certa harmonia durante as comemorações, em
outras temporalidades este lugar também expressa as disputas e conflitos urbanos se tornando
um local de violência direcionada às imagens dos santos e de seu altar, feitos e mantidos pela
vizinhança, resultando em danos físicos e apontados enquanto intolerância religiosa. Como
analisa o autor:
Considerando a variedade de usos desse espaço, podemos pensar na
multiplicidade de práticas e sentidos em torno da Praça que não são
absolutamente excludentes, embora nem sempre harmônicos. É pelas regras
de sociabilidade que as polifonias que constituem a festa são conciliadas,
mesmo que para isso os diversos interesses e seus respectivos grupos sejam
hierarquizados. (BÁRTOLO, 2020, p. 184)
32

Pelas dinâmicas estabelecidas naquele lugar a própria distinção entre público e privado
vai sendo reconfigurada, por exemplo, a entrega das oferendas e o momento de preces junto ao
altar podem construir uma intimidade e privacidade apesar de se estar em um local público.
Neste sentido, também são observadas as relações entre o sagrado e o profano delimitando
espaços sociais. Para o primeiro, que se manifesta de forma mais acentuada no entorno do altar,
são estabelecidas regras e vigilância como o controle entre os devotos, a forma de dispor
oferendas e o recolhimento dos doces pelas crianças, sendo visivelmente delimitado, pelo
cuidado e pelas cercas.
Tratando-se de uma demarcação arbitrária, os espaços sagrado/profano e
público/privado são produtos das relações sociais e podem ser constantemente
redefinidos. A festa, portanto, vai sendo produzida à medida que esses espaços
são instaurados pelas diferentes práticas e formas de associação que
constituem a dinâmica do dia 27 de setembro, adensadas na praça-santuário.
(BÁRTOLO, 2020, p.190)

A descrição e análise do autor exemplificam a multiplicidade possível a partir dos


espaços, usos e apropriações que vão construindo sentidos e imaginários. Me chama atenção o
envolvimento da vizinhança na construção e retificação do simbolismo envolvendo a Praça de
Cosme e Damião. Aproximando do meu campo, o La Luna tem se produzido em uma dupla
dinâmica com seu entorno. Por um lado, temos a positivação da presença do bar justificada em
parte pela revitalização do local e influência nos arredores, como os pequenos comércios de
lanche que se fixam em algumas casas. Por outro lado, o conflito e a distinção partem não só
de moradores, mas de outros espaços como uma igreja e um outro bar. Aprofundo este ponto
ao longo do texto. Também surgem os tensionamentos entre as dinâmicas de público e privado
que permeiam o estabelecimento e o uso da praça como uma extensão do La Luna.
Trago esses exemplos para ilustrar a multiplicidade de expressões que podem encontrar
na praça um lugar para sua manifestação. Os casos acima citados e a presente pesquisa conferem
sentidos ao espaço urbano caracterizando-os enquanto espaço público, como abordado por
Rogério Proença Leite (2002):
A partir de Arendt (1987) e Habermas (1996; 1998), gostaria de sugerir que
um espaço urbano somente se constitui em um espaço público quando nele se
conjugaram certas configurações espaciais e um conjunto de ações. Quando
as ações atribuem sentidos de lugar e pertencimento a certos espaços urbanos,
e, de outro modo, essas espacialidades incidem igualmente na construção de
sentidos para as ações, os espaços urbanos podem se constituir como espaços
públicos: locais onde as diferenças se publicizam e se confrontam
politicamente. (LEITE, 2002, p. 116)
33

Os processos que envolvem a Praça da Guerreira e o La Luna, desde sua chegada,


caracterizam o que o autor está indicando. Durante a pesquisa acessei diferentes relatos sobre a
situação de não uso desse local, sendo apontado como depósito de entulho ou pela sensação de
insegurança transmitida por sua pouca iluminação e movimento. Este cenário vai se
modificando tanto pela presença do bar e seu público durantes as noites, como outros usos que
foram possibilitados ou potencializados durante o dia, pela limpeza e manutenção da praça,
como as pessoas que se abrigam nas tendas instaladas, descansam nos bancos, caminham com
cachorros, pessoas em situação de rua, entre outras situações.
Exploro ao longo dessa pesquisa como a relação entre o La Luna e a Praça da Guerreira,
partindo dos usos e contra-usos desenham paisagens que, por vezes, diferem daquelas esperadas
pelas políticas urbanas. Assim, as apropriações com/no bar retomam o caráter de espaço
público, adicionando sentidos diversos a este lugar.
Ressalto que as dinâmicas presentes no espaço físico conseguem transpassar essa
delimitação, sendo possível observá-las em outros planos, como no digital. Assim, no último
capítulo busco explorar os acontecimentos e as narrativas que surgem sobre o campo nas redes
sociais Twitter e Instagram analisando as conexões estabelecidas entre as experiências
presenciais e digitais que envolvem o La Luna.

2.2 “Vamos Lalunar?”: Primeira investigação e algumas conclusões sobre o La


Luna.

Muitas rotas me direcionaram ao La Luna. A definição deste objeto de pesquisa é


resultado do encontro entre interesses acadêmicos, militância e experiências pessoais que me
encaminharam para iniciar a pesquisa já em 2018 e aprofundá-la nesta dissertação. No primeiro
momento, bastante motivado pelo debate sobre direito à cidade, busquei refletir sobre a
segregação socioespacial que acomete o público LGBTQI+ e as respostas produzidas através
do uso e apropriação de espaços urbanos, encontrando no La Luna um instigante caso para se
pensar a realidade local. Neste tópico apresento um resumo de minha monografia (SANTOS,
2019), abordando alguns aspectos que me auxiliam na continuação da pesquisa e apresentando
alguns espaços e interlocutoras.

O bairro Neópolis surge a partir do processo de expansão da cidade através do primeiro


empreendimento do Instituto de Orientação às Cooperativas Habitacionais – INOCOOP no
estado, seguindo o sistema implementado em outras regiões do país. Anteriormente, ali estava
situada a Granja da Vassoura, vendida em 1968, para construção dos conjuntos habitacionais.
34

As políticas de moradia, já neste momento inicial, adotaram medidas que segregaram a


população, tendo em vista os públicos alvo, visando funcionários públicos e assalariados que
podiam comprovar renda fixa para emergente Zona Sul.

No início da década de 70, a primeira etapa é entregue contendo 760 casas, até a década
de 80 outros dois conjuntos habitacionais de casas foram construídos, Jiqui e Pirangi, seguido
pelos blocos de apartamento com três pavimentos e com quatro moradias cada, como o Jardim
Botânico, Parque dos Rios e o Serrambi IV. Logo, o processo de crescimento vertical fez com
o que as casas fossem sendo substituídas por prédios, acompanhado pela privatização e
muramento dos blocos, distanciando-se da ideia de “conjunto”. Só em 1994 o bairro é
oficializado através da lei nº4328.

Mapa 1- Natal, Zona Sul e Neópolis

Fonte: (SANTOS, 2019)

Se em sua origem Neópolis ficava distante do centro da cidade, cerca de 9km, sem linhas
de transporte coletivo específicas, atualmente desfruta de localização privilegiada devido a
urbanização direcionada à Zona Sul da capital potiguar, sendo limítrofe dos bairros Candelária,
Ponta Negra, Capim Macio e Nova Parnamirim, este último é parte do município de Parnamirim
na Região Metropolitana. Em seus entornos estão diversos equipamentos e serviços, como
35

universidades, shoppings, grandes mercados e vias de acesso às demais zonas, contando com
uma gama de opções de ônibus urbanos e intermunicipais.

O La Luna bar e petiscaria surge em fevereiro de 2017, a partir da ideia de Vanessa que
já tinha trabalhado com seu tio naquele espaço, mas por divergências pediu demissão. Meses
depois, seu tio entrega o ponto alugado e ela decide assumir o local e iniciar junto com sua
amiga, Shirley, um empreendimento voltado para o público LGBTQI+, usando o espaço da
praça e ofertando “comidas gourmet”.

Vanessa afirma-se enquanto mulher lésbica, negra, gorda, tatuada e empreendedora.


Tem trinta anos e mora em Nova Parnamirim. É sem dúvidas a parte mais visível do bar, sendo
sua porta voz e assumindo publicamente este lugar de representante do La Luna. Meus
primeiros contatos com ela se deram a partir dessa relação bar-clientes e foi se modificando
durante a pesquisa iniciada em 2018, pela proximidade que fui estabelecendo com o bar e pelo
início do relacionamento entre ela e uma amiga próxima. Já neste primeiro contato, se mostrou
como uma das principais interlocutoras, papel que permanece durante a presente investigação.

Nossas conversas frequentes me ajudaram a traçar vários dos pontos que exploro ao
longo do texto. Passou a fazer parte da rotina em campo chegar na praça, encontrá-la e conversar
um pouco sobre algo que estava acontecendo ou algum ocorrido que ela entendia como
interessante para compartilhar. Outras vezes também pedia minha opinião sobre algum assunto,
sendo bastante presente na construção dessa investigação. Assim, entendo que alguns insights
apresentados são fruto de nossa cooperação, baseados nas observações e análises
compartilhadas através de conversas informais e breves entrevistas.

Estar no bar com Vanessa ilustra bem como ela tem desempenhando esse papel de
destaque. Sendo uma pessoa bastante carismática, a empreendedora reconhece que esta
característica ajuda a lidar com o público. Estando compartilhando uma mesa ou em alguma
“roda” de amigos que se formam com frequência pela praça, facilmente se percebe a grande
quantidade de pessoas que passam por ela e a cumprimentam. Vanessa me relatou como é
importante para ela estabelecer essa proximidade com o público, que faz questão de passar pelas
mesas ao longo da noite, responder as pessoas e incentivar essas interações entre o público e o
bar. Ao longo do texto descrevo algumas situações onde sua presença constante e reconhecida
influencia diretamente na gestão do bar e dos diversos eventos que se desdobram na Praça da
Guerreira.
36

Outra interlocutora fundamental durante todo processo foi Suzanne. Conheci e me


aproximei dela ainda na graduação, participamos de uma série de eventos que ajudaram a
fortalecer nossos vínculos, principalmente a militância no movimento estudantil e no
movimento LGBTQI+ na cidade, quando fazíamos parte do Grupo Universitário de Defesa da
Diversidade Sexual – GUDDES. Ela se identifica enquanto mulher lésbica, é branca, cientista
social e mestra em Antropologia Social, ambos pelo UFRN.

Nossa amizade possibilitou maior contato com Vanessa, sua companheira apresentada
anteriormente. Além disso, compartilhamos interesses de pesquisa e nossas trocas me ajudaram
bastante a ingressar na antropologia. Sua presença frequente no bar, como parte da equipe ou
aproveitando as noites, e seu contato com várias pessoas ocasionou algumas das situações
exploradas aqui.

Por intermédio dessas duas interlocutoras tive acesso a uma gama de informações sobre
ocorridos enquanto não estive em campo, dinâmicas e relações estabelecidas entre o bar e outros
atores que circundam este universo, como a vizinhança, outros estabelecimentos, a própria
equipe e o público. Estas foram informações fundamentais no aprofundamento das observações
e análises estabelecidas.

Estabeleci contato com outras/os interlocutoras/es ao longa da pesquisa e as/os


apresento na medida que exploro o campo e essas interações. Vale ressaltar o papel fundamental
que meus ciclos de amizade desempenharam durante as idas ao campo, me convidando para ir
ao bar, permanecendo comigo durantes as noites e por meio deles consegui acessar diversas
pessoas que contribuíram para pesquisa. Eles/elas também estão presentes como
interlocutores/as e por diversas vezes dialogavam e refletiam comigo sobre os acontecimentos
no e com o bar.

Nesta primeira pesquisa, a equipe do La Luna tinha certa fixidez, composta por cinco
pessoas, dois homens gays, duas mulheres lésbicas e uma mulher trans. Um perfil bastante
parecido com o do público em termos de idade e certo estilo de vida, todos eram jovens entre
20 a 25 anos, divergindo na questão racial já que a maioria são pessoas negras. A equipe se
dividia entre o balcão e a praça. Quase todos começaram a trabalhar por meio de indicação dos
ciclos de amizade das donas ou por algum funcionário que tenha passado pelo bar.

O bar adotava o sistema de fichas, onde o público se dirigia até o balcão para comprá-
las ou trocá-las pelas cervejas. Somente as comidas e os drinks eram entregues pela equipe na
praça, que aproveitava as passadas pelas mesas para recolher os cascos das cervejas e a louça
37

que não estava sendo utilizada. O preço das cervejas e a variedade de comidas, incluindo opções
vegetarianas e veganas, surgiam como alguns atrativos. O cardápio servia como indicativo da
clientela, que compartilha um certo estilo de vida, com valores e crenças que reforçam
similitudes expressados pelo comportamento, consumo, posicionamentos políticos e afins.

Mapa 2 - La Luna e proximidades

Fonte: (SANTOS, 2019)

Esse sistema provocava um constante fluxo de pessoas pela praça, principalmente na


parte frontal. As idas ao balcão, ao banheiro, em outras mesas com pessoas conhecidas, ou só
para observar o que estava acontecendo, constituíam o movimento e a animação do lugar que
variavam pela quantidade de público e os dias da semana.

Assim, com o início da noite e a chegada das pessoas se intensificava a transformação


do ambiente que começava com a distribuição das mesas e cadeiras. Outros sentidos vão sendo
esboçados pelo uso, apropriação e temporalidade, tonificando seu aspecto mutável, que não
pode ser estático. A ocupação das mesas e bancos se dava entre aleatoriedade e certa lógica que
passava a aglutinar alguns grupos presentes, o que marcava a heterogeneidade do recinto. Por
exemplo, atrás do quiosque, pessoas portando símbolos da cultura negra ou hip-hop, penteados
que valorizavam os cabelos crespos e cacheados, tranças, roupas largas e maior concentração
38

de heterossexuais. Já na parte frontal, próximo ao som, ficavam aqueles com performance mais
feminina, algumas pessoas com estilo hipster, marcadamente por pessoas LGBTQI+.
Entretanto, não ocorria uma separação extrema entre estes grupos e partes do local, como
mencionado o que ocorria eram “concentrações” atravessadas pelos fluxos.

O trânsito de pessoas pela praça envolvia a interação entre os grupos e mesas, desde
pessoas já conhecidas até primeiros contatos, por vezes procurando alguns itens presentes em
várias mesas, como isqueiros, cigarros, sedas ou dichavadores11. A “normalidade” desses
diálogos também era observada no consumo da maconha ou loló. Ser um ambiente
“legalizado”12, proporcionando alguma sensação de segurança para aqueles/as que utilizam
estas substâncias surgia como outra característica avaliada de forma positiva pelo público, mas
era alvo de críticas por parte da vizinhança.

Assim, o La Luna nos ajuda a compreender a existência de lugares espalhados pela


cidade que são construídos enquanto alternativas que rompem com algumas normas
hegemônicas. Para auxiliar nessa análise, recorro à Robert Erza Park (1967) e suas
contribuições para os estudos urbanos, aqui na sua formulação sobre região moral. Segundo ele,
existe uma ordem moral dominante que organiza o espaço urbano, bem como atua como
mecanismo de controle da população. A cidade grande aparece como lugar de múltiplas
manifestações da vida citadina, viabilizando expressões que fogem dessa ordem moral
dominante. O encontro, aglutinação e segregação por meio do compartilhamento de
características vão desenhando pontos na cidade, que o autor conceitua enquanto “região
moral”, definindo como:

...regiões onde prevaleça um código moral divergente, por ser uma região em
que as pessoas que o habitam são dominadas, de uma maneira que as pessoas
normalmente não o são, por um gosto, por uma paixão, ou por algum interesse
que tem suas raízes diretamente na natureza original do indivíduo. (PARK,
1967, p.65)

Desta forma, inspiro-me para pensar o La Luna sob o prisma de uma região moral, onde
os atores presentes e suas ações proporcionam um suporte moral que sustenta estas outras
possibilidades. O uso da maconha, as expressões de gênero e sexualidades que rompem, em

11
Dichavador é uma ferramenta utilizada para triturar a maconha. Seda é o papel usado para enrolar e fazer o
cigarro.
12
Com frequência, este termo e usado para indicar lugares onde é possível fazer uso da maconha ou outras drogas
sem repressão por parte da gerencia do estabelecimento ou do público.
39

diversos aspectos, com a norma hegemônica heterossexual e cisgênera, são alguns dos fatores
que reconfiguram o que pode ser tido como “normal” ou “usual”.

A segurança foi um tema que atravessou de algumas formas a pesquisa. Materialmente,


tínhamos a presença da polícia militar e da equipe de segurança aparecendo no cenário de
formas distintas, no entanto, ambas simbolizavam, ou tornavam visíveis, esta dimensão. A PM
costumava fazer rondas frequentes, passando pela praça em suas viaturas, mas sem descer e
efetuar abordagens.

Já a equipe de segurança do bar foi se tornando evidente, principalmente nos dias de


maior movimento. Desempenhando algumas funções estratégicas, como circular pela praça
atenta as “ações suspeitas”. Nesse ponto, a abordagem utilizada era reforçada junto a
administração se atentando ao respeito a diversidade do público e suas práticas. Entretanto,
mesmo que o consumo de substâncias não fosse um problema, a venda podia ser encarada como
tal. Durante nossas conversas, Vanessa falava sobre algumas denúncias de comercialização na
praça e de como isto poderia afetar o bar.

A existência desses dois atores influenciava diretamente na sensação de segurança


estabelecida no local13, por vezes para além dele. Esse fenômeno possui uma dupla camada, a
primeira se refere a violência urbana geral, que afeta de diferentes formas as pessoas pela
cidade. Já a segunda está ligada a “LGBTfobia14”, violência física e simbólica deferida contra,
principalmente, LGBTQI+.

Neste aspecto, a movimentação no La Luna surgia como positiva, contribuindo com


sentimento de proteção, fator substancial no uso e ocupação de espaços públicos
(MENDONÇA, 2007), expandindo sua influência para além de seus limites físicos. Assim,
além do público, a vizinhança aproveitava tanto na frequência do local, como utilizando-o como
rota de passagem.

Entendendo a “LGBTfobia” como um limitador nas experiências desse grupo, e da


própria vivência citadina, dificultando o acesso e uso de seus equipamentos e serviços, o bar
apresenta-se como um ambiente onde manifestações com esse teor são altamente reprimidas,

13
Vale salientar que esta sensação é proporcionada pelo contexto que o campo se desenvolve. Em outros cenários,
a presença desses atores poderia gerar outras sensações, inclusive de perigo.
14
Aqui entendida como todo ato fundamentado no preconceito e discriminação contra pessoas que não se
enquadram na norma hegemônica cisgênera e heterossexual. No período da pesquisa o termo era bastante utilizado,
principalmente pelo movimento político organizado, incluindo outros segmentos da comunidade que não estavam
abarcados no conceito de homofobia.
40

fazendo com que este sirva como experimentação do espaço público onde se torna possível as
diversas expressões de gênero e sexualidade. Em certa medida, o La Luna engloba estas duas
nuances de se sentir seguro.

Em Natal, algumas experiências parecidas aconteceram em anos anteriores. Destaco o


exemplo da “mits”, como popularmente é/era chamada a Praça Amaro Marinho, localizada no
bairro Lagoa Nova, por trás da antiga concessionária de carros da empresa Mitsubichi, próxima
ao Midway Mall. O lugar ficou conhecido pela frequência de jovens alternativos, rockeiros e
emos, bem como pelo público LGBTQI+, que aproveitavam o espaço para sociabilidade,
encontros, flertes e afins. Após conflitos com a vizinhança, assaltos frequentes e outros fatores
negativos, o point foi sendo descontinuado.

Ferreira (2018) em sua monografia aborda a presença desses locais de sociabilidade


marcada por este grupo na capital potiguar, principalmente os bares e boates. O autor destaca
duas questões interessantes, a primeira sobre o curto período de funcionamento da maioria
desses estabelecimentos, o que vem marcando a restrição das opções de lazer e de convívio
entre estes/as sujeitos/as. A segunda, é sobre a presença de jovens abaixo dos 18 anos e a
impossibilidade de frequentar os estabelecimentos comerciais, o que impulsionaria a ocupação
de espaços públicos onde não operam essas restrições. Esta se mostra também enquanto uma
forma mais acessível, por não ser necessário pagamento de entradas e a possibilidade de
comprar e consumir comidas e bebidas mais baratas.

A popularização do La Luna e o aumento no número de pessoas na praça atraiu outros


pequenos negócios que se instalaram nos arredores. Trailers, vans, barracas e vendedores
ambulantes passaram a compor aquela paisagem, comercializando principalmente comidas e
produtos que não eram ofertados pelo bar. Alguns acordos informais foram estabelecidos entre
este conjunto, buscando manter a harmonia na praça. Como Vanessa me contava, a praça é
pública e ela não podia impedir ninguém de estar ali, mas que era necessário um esforço coletivo
na gestão do espaço, destacando a limpeza do ambiente como um ponto que gerava alguns
conflitos.

O encerramento das noites do bar segue alguns passos predeterminados, como ir as


mesas recolhendo os copos de vidro e oferecendo descartáveis para quem ainda está bebendo.
A equipe também vai organizando as mesas e cadeiras, repondo as cervejas e limpando a praça.
Era comum que grupos permanecessem no local mesmo após o fechamento do bar, para alguns
a noite não se encerraria naquele momento.
41

Seguindo este caminho, o La Luna se conecta a outros espaços da cidade através de seu
público, bem como da sua proposta. Com a observação e o contato com os/as frequentadores,
fui tomando noção de como estes vínculos eram tecidos, formando um conjunto de lugares,
aqui entendido como um possível “circuito LGBT” em Natal, voltado para o lazer e a
sociabilidade.

Mapa 3 - Zona Sul de Natal, conexões

Fonte: (SANTOS, 2019)

Novos desenhos do urbano vão sendo construídos pela frequência nesses lugares,
tecendo vínculos para além de proximidades geográficas, rompendo com ideias de cidade
fragmentada, com espaços isolados. A própria dinâmica urbana é modelada pelas diversas
formas de sentir, experimentar e transformar os locais, estabelecendo outros significados para
eles. Utilizo as contribuições de Magnani (2002) para pensar estas ligações, que conceitua
circuito como

Trata-se de uma categoria que descreve o exercício de uma prática ou a oferta


de determinado serviço por meio de estabelecimentos, equipamentos e
espaços que não mantêm entre si uma relação de contiguidade espacial, sendo
reconhecido em seu conjunto pelos usuários habituais. (MAGNANI, 2002, p.
23)
42

Pensar estes outros desenhos reforça a dinâmica entre indivíduo e espaço, de moldar e
ser moldado. Além de um universo simbólico compartilhado, o âmbito físico proporciona o
encontro entre pares, garantindo certa identidade ao grupo de frequentadores do La Luna.

Já nesta primeira pesquisa a esfera sonora me chamava atenção, principalmente a música


que surgia em vários momentos. As “quartas do karaokê” eram mencionadas como um dos
elementos que ajudaram na popularização do bar, sendo também uma das causas dos conflitos
com a vizinhança. A playlist tocada no bar, feita até certo ponto de forma colaborativa com os
pedidos do público, mantinha alguma sintonia com o comportamento geral do La Luna. Era
como um termômetro, através das reações às músicas, que servia para sentir a “vibe” da noite,
se seria mais agitada ou tranquila. O som é parte constituinte daquele cenário.

Na última seção, me detive em explorar sobre o bar nas plataformas digitais e alguns
conflitos e mudanças que estavam ocorrendo. A primeira busca sobre ele em sites de pesquisa
mostrava seus perfis nas redes sociais, facebook, instagram e twitter, também surgiam algumas
plataformas que traçam rotas e caminhos para chegar até lá.

Me atentei as classificações e comentários sobre o La Luna, no Google e no Facebook,


onde eram apresentados uma série de menções positivas ao espaço do bar, por ser aberto,
arborizado e amplo. No mesmo sentido, elementos subjetivos reforçavam essa perspectiva
destacando a “vibe boa”, “lugar descontraído” e ser “liberal”. Já apareciam também alusões à
sua importância para pessoas LGBTQI+ em Natal, mostrando o engajamento por parte do
público em apoiar o estabelecimento.

As avaliações negativas que encontrei se direcionavam ao sistema que o bar adotava,


com fichas e sem a equipe fazer entrega das cervejas nas mesas, e a infraestrutura, como a
demora dos pedidos, a pouca quantidade de mesas e cadeiras. A maioria desses comentários
eram de 2017 e o próprio bar já tinha se posicionado sobre algumas melhorias e ampliações.
Com o tempo, o próprio público foi se adaptando a utilizar o espaço da praça, como colocar as
mesas próximas aos bancos de alvenaria e já usá-los para sentar.

Outro aspecto no âmbito digital é a prática de mencionar a ida ao La Luna, ou os convites


em abertos feitos no Twitter. Assim, ir ao bar começava algumas horas, ou dias, antes, já na
articulação de saber quem vai e com quais companhias. Também era exposto alguns
acontecimentos das noites anteriores, relembrando algumas situações vividas, pessoas que
encontraram, os diversos estados de alteração de consciência, são alguns dos conteúdos
43

produzidos. A visibilidade dessas postagens serve como mecanismos que marcam a frequência.
O bar se prolongava no espaço e as “idas” se estendem no tempo.

Já finalizando, os conflitos com a vizinhança marcaram algumas mudanças. Vanessa


conta como existe “gente que ama e gente que odeia”, mencionando alguns aspectos já tratados
aqui como a segurança. As reclamações que incluíam o barulho, estacionamento indevido, parte
do público urinando nos arredores da praça, nos muros das casas e no estacionamento, e a
conservação do espaço geraram um abaixo assinado pedindo por restrições no funcionamento
do bar e posteriormente a abertura de processo judicial.

Em audiência foi estabelecido alguns acordos a serem cumpridos pelo bar e seu público,
por exemplo, o encerramento da música do bar e das caixinhas nas mesas após as 00:30. O uso
de banheiros químicos e a disposição dos carros no entorno da praça também sofreram
regulação. A equipe, principalmente de segurança, tratava de reforçar os acordos e evitar ao
máximo novos conflitos com a vizinhança.

A última transformação se refere ao público. O aumento na quantidade de pessoas


presente no espaço ocasionou um crescimento significativo na frequência de grupos
identificados como “heteros”. A própria gerência do bar reconhecia essa transformação,
apontando que naquele momento a clientela já não era “100% LGBT como era no começo”,
passando a ser vista como público alternativo, que gosta do espaço da praça, que vai para beber,
fumar e ficar tranquilo. Entretanto é reforçado que a proposta do estabelecimento continua a
mesma, mas que não nega atendimento a ninguém que respeite a dinâmica do lugar.

Busquei resumir a primeira pesquisa que motivou sua continuação neste trabalho.
Entendo que sendo os espaços mutáveis, eles estão em constantes transformações ao longo do
tempo. Não é diferente com o La Luna, que já apresentava remodelações ainda neste primeiro
momento. Com o surgimento da pandemia, outras tantas reconfigurações aconteceram e foram
evidenciadas, marcadas pelo processo de isolamento social e quarentena. No decorrer do texto
busco apresentar as dinâmicas atuais, traçando alguns paralelos com a investigação iniciada em
2018.

2.3 Retornando ao La Luna: Pedaladas, continuidades e transformações.

Retomar as idas à campo perpassa diretamente as possibilidades de locomoção e de


acesso as tantas localizações espalhadas pela cidade. Neste plano, é inevitável pensar as
mudanças que ocorreram durante 2020, como a redução da frota e de linhas do transporte
44

público que limitam os deslocamentos daqueles que precisam deste serviço15. Já em 2021,
algumas dessas mudanças permaneceram afetando de forma permanente a mobilidade em
Natal, apesar do processo de retorno das atividades presenciais, o transporte público não
acompanhou esta retomada e seguiu funcionando com as reduções nas frotas e itinerários. Outra
alteração que afeta diretamente o lazer e sociabilidade noturna é a restrição dos horários de
funcionamento do transporte público, que após as 23:00 se limita a quatro linhas “corujões”,
porém nenhuma delas cobre o bairro Neópolis, ou utiliza a BR-101. Consequentemente,
aqueles/as que estão indo ao La Luna precisam “encerrar” a noite mais cedo ou utilizar outras
formas de locomoção, que geralmente são automóveis próprios ou plataformas de motoristas,
como o Uber ou 99taxi.
No contexto deste trabalho, o uso do automóvel pode tornar-se uma questão, afinal,
estamos abordando um cenário onde o consumo de álcool é quase majoritário e a combinação
da bebida mais direção pode gerar graves consequências. Diante disto, o público pensa em
formas de contornar a situação, como ir em grupo para o bar e alguém ficar responsável por
dirigir, evitando beber para garantir a saída. Também é possível arriscar dirigir após consumo
de álcool e esbarrar com uma blitz da “lei seca” ou causar acidentes. Estas e outras
configurações se fazem presentes no campo, inclusive em casos onde a pessoa está em estado
bastante alterado, a ponto de não conseguir se equilibrar, assume o volante e sai “cantando
pneu”, gerando comentários sobre os perigos envolvidos.
Tendo em vista o cenário dificultoso, para não dizer excludente, que recai sobre parte
do público que utiliza de transporte coletivo, e as situações comentadas acima, a presença de
carros solicitados via aplicativos é constante. Mesmo com um ponto de táxi fixado no outro
lado da rua, poucas vezes vi alguém que estava no bar utilizando do serviço16. Quando o horário
avança e a noite vai se aproximando do encerramento, pessoas se dirigem às margens da praça
portando seus celulares em mãos tentando identificar os carros, através das placas e modelos, e
confirmarem os motoristas para entrar no veículo solicitado pelos aplicativos.
Fora as opções citadas, ainda é possível encontrar grupos que chegam ou vão embora
caminhando, algumas destas pessoas moram nos arredores do bairro e conseguem se deslocar

15
Durante o ano de 2020 algumas mudanças nos itinerários do transporte público da capital foram realizadas com
apoio da secretaria de mobilidade urbana – STTU do município. Além da redução da frota, o fim de algumas linhas
e a mudança de outras causaram transtornos à população. Em grande parte das alterações foram reduzidos os
trajetos, dificultando os deslocamentos entre zonas e bairros mais distantes. Consultar em:
https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2020/09/14/mudancas-em-linhas-de-onibus-pegam-usuarios-
de-surpresa-e-geram-protesto-em-natal.ghtml
16
Em 2018 uma situação envolvendo um dos taxistas e um rapaz que estava no La Luna gerou alguns comentários
no twitter. O rapaz relatou que sofreu agressões verbais, com comentários homofóbicos, por parte do motorista. O
caso aconteceu próximo ao ponto de táxi. Relato de forma mais aprofundada em Santos (2019).
45

sem precisar de veículos. Além disto, também é possível que saiam em direção a outros espaços
e estabelecimentos no entorno, como o “24h”17 na Avenida dos Pinheirais, ou mais à frente na
Ayrton Senna. Tornou-se constante, ou se intensificou, a presença de ciclistas e bicicletas
espalhadas pela praça, amarradas com as travas de segurança em algumas árvores e placas,
geralmente próximas as mesas e bancos onde seus/suas donos/as estão. Algumas destas pessoas
chegam sozinhas e encontram algum grupo ou chegam de forma coletiva já ocupando algum
espaço.
Se a locomoção surge como uma problemática, a solução que encontrei foi fazer o
trajeto casa-campo de bicicleta. Já buscava incorporar o uso da bicicleta como meio de
locomoção há alguns anos, mas as limitações e riscos causados pelo contexto pandêmico
tornaram esta minha opção preferencial. Assim, pedalar ampliou os trajetos possíveis, visto as
escolhas de rotas limitadas pelo transporte público, bem como minha permanência em campo.
De forma prolongada, conceber o “pedalar” como um meio de experimentação da cidade, para
além das afetações e poder continuar essa atividade física, viabilizou constatar as dinâmicas
sociais e a materialidade das normas estabelecidas pelos decretos governamentais e como os
diferentes atores produziam formas de circular nos períodos de restrição.
Registrar a abertura e fechamentos dos estabelecimentos, limitações de horários, formas
de funcionamento, os fluxos de automóveis, de pessoas transitando, trabalhadores/as esperando
nas paradas de ônibus e outras dinâmicas só se tornou possível por: primeiro, estar na rua e
entender que essas observações poderiam me ajudar na pesquisa; segundo, pelo uso da bicicleta,
sua velocidade limitada e a “exposição” do usuário proporcionarem um campo de interação
com o ambiente bem mais amplo que automóveis ou o caminhar18.
Desta forma, tento pensar através dos meus deslocamentos constantes a relação entre as
medidas formuladas e implementadas pelo Estado, através dos decretos e de suas ações de
cumprimento e fiscalização das normas, as dinâmicas urbanas que são reconfiguradas, e, por
fim, as ações de sujeitos e grupos que estão em constantes negociações e tensões, constituindo
a cidade enquanto arena. É neste fluxo que introduzo a bicicleta e o pedalar para de alguma
forma expandir meu campo de observação para além do La Luna, tentando apreender como
aquela região tem se construído durante a pandemia.

17
São conveniências que, no geral, ficam abertas durante toda noite. Em sua maioria, fazem vendas de bebidas e
servem como pontos de abastecimento para quem está bebendo, uma vez que os supermercados em Natal ficam
abertos até às 22:00. Suas estruturas modestas, alguns contam com maior espaço e aglutinam alguns grupos ao
longo das noites, separando o público do estabelecimento por grades, na tentativa de se proteger de eventuais
assaltos.
18
Levo em consideração a possibilidade de acessar maiores distâncias, em menos tempo, e a própria experiência
sensorial do pedalar que considero ampliar o contato com os elementos urbanos.
46

Para refletir sobre esses movimentos, sou afetado pelas contribuições de Tim Ingold
(2015) e a sensibilidade em sua perspectiva antropológica. O autor destaca como o mover-se
estabelece conexões com o estar atento, que para ele é “estar vivo para o mundo”. Dessa forma,
“Se mover, conhecer e descrever não são operações separadas que se seguem umas às outras
em série, mas facetas paralelas do mesmo processo – aquele da vida mesma. É movendo-nos
que conhecemos, e é movendo-nos também que descrevemos. ” (INGOLD, 2015, p.14-15)
Na bike, o que busco desenvolver é uma observação em movimento. Como aponta
Ingold (2015) ao refletir sobre as relações entre a prevalência das nossas cabeças sobre os
nossos pés, trazendo como advento das viagens orientadas para um destino, entre outros
elementos, impactam em nossas percepções e no entendimento do mundo:
o conhecimento é integrado não por caminhos de movimento de pedestres,
mas através da acumulação de observações feitas a partir de pontos sucessivos
de repouso. Assim, tendemos a imaginar que as coisas sejam percebidas a
partir de uma plataforma fixa, como se estivéssemos em uma cadeira com as
pernas e os pés inativos. (INGOLD, 2015, p.111)

Assim, ao apreender as dinâmicas urbanas e o cenário que vai se modificando ao longo


dos meus trajetos, levo em consideração o modo como estou me movendo e conecto o
“conhecer” e o “descrever” com a locomoção, enfatizando o corpo e os sentidos enquanto
diferentes formas de observação e afetação.
O pedalar enquanto estratégia metodológica se intensifica em meados de março de 2021,
neste período esteve vigente o “toque de recolher” marcado pelo momento crítico da pandemia
nacionalmente. Primeiramente, enquanto prática de exercício físico e de uma alternativa menos
arriscada para estar nas ruas, sem contato direto com outras pessoas, em espaços abertos e onde
o movimento proporcionava alguma sensação de estar seguro quanto à
contaminação/transmissão do coronavírus. É no pedalar quase diário19, principalmente à noite,
que vão surgindo algumas inquietações sobre quais as limitações da pesquisa e quais caminhos
poderiam ser tomados frente as adversidades.
A leitura de Akhil Gupta e James Ferguson (1977) foi fundamental para refletir e
ampliar o que eu estava entendendo enquanto campo. O texto traz análises provocadoras sobre
a construção de arquétipos do/da antropólogo/a e do próprio campo, abordando como fugir de
concepções engessadas destes elementos auxiliam no progresso da disciplina, incluindo outros
métodos e formas do saber antropológico.

19
Optei por pedalar entre 21:00 e 23:30 por alguns motivos, entre eles: ser um horário com menor fluxo e
possibilidade de exposição ao coronavírus, por ser o horário de funcionamento do La Luna que costumava reunir
uma maior quantidade de público e pelas restrições estabelecidas no toque de recolher.
47

Assim, por meio do pedalar, entendo que meu campo não se limita ao espaço físico da
Praça da Guerreira e que o deslocar-se pela cidade, construindo caminhos e refletindo sobre as
escolhas e observações feitas, contribuem na compreensão da minha experiência enquanto
pesquisador/antropólogo. Então, adotar esta perspectiva ampliada questiona o “campo”,
fisicamente delimitado, como lugar privilegiado do conhecimento antropológico, logo, os
caminhos, os entornos e as dinâmicas citadinas que se conectam ao La Luna e seu público
possibilitam o alargamento das reflexões propostas nesta dissertação. Neste caminho, busco
aglutinar nesta pesquisa perspectivas que não se limitam ao plano físico, incorporando
observações realizadas em plataformas no digital, resguardando as limitações próprias de um
trabalho como este.
Retomando, sair de casa e encarar a cidade me incitam a continuar as observações,
afinando o olhar para o que estava ocorrendo e a pensar sobre as ausências que vão surgindo na
temporalidade marcada pela restrição. A vida social da cidade continuava para além da
pandemia. Sendo assim, decidi estabelecer um trajeto fixo20 que funcionasse como um roteiro
marcado por espaços de lazer e sociabilidade, principalmente bares e restaurantes, no itinerário
entre minha casa e o La Luna.
Ele parte de uma das extremidades da Av. Ayrton Senna, próximo à Cidade Verde,
percorrendo até Neópolis, passando pela Av. Dos Pinheirais, chegando ao La Luna via BR-101,
se alongando até a Avenida Roberto Freire, em Ponta Negra. Esse “prolongamento” se justifica
por sua proximidade com meu campo, pela concentração de estabelecimentos/espaços de
sociabilidade e lazer e reconhecimento como ponto turístico, que atrai um fluxo de pessoas que
ultrapassa Natal, até mesmo o estado. Neste trajeto fixo, tentava acrescentar outras rotas que
colaborassem na busca para perceber as dinâmicas urbanas marcadas pelas forças normativas
do Estado e as possíveis respostas a implementação dos decretos.

20
O mapa interativo, com as marcações dos estabelecimentos que vou mencionando ao longo do texto, pode ser
acessado em:
https://www.google.com/maps/d/u/0/edit?mid=1IeMgeTTchoW42zN1P33i0eHpqGpU05yf&usp=sharing
48

Mapa 4 - Trajeto fixo

Fonte: Autoria própria

Aprofundando os caminhos, a Av. Ayrton Senna é uma das vias que conectam a Zona
Sul de Natal com Parnamirim, na Região Metropolitana. Os bairros que ela atravessa são
demarcadamente residenciais, encontramos diversas casas, blocos de apartamento e
condomínios com variadas estruturas e faixas de preço às margens dessa avenida. Também
podem ser vistos escolas, farmácias, postos de gasolina e supermercados que atendem as
demandas da região. Me chama atenção o trecho que vai do Condomínio Serrambi IV até
próximo a lagoa de captação, travessa com a Av. das Alagoas, nele podemos verificar uma
gama de estabelecimentos voltados ao lazer e sociabilidade, como pequenos bares, lanchonetes,
barracas de cachorro quente, restaurantes, conveniências, cigarreiras e espetinhos.
Esse trecho também é marcado pela presença de uma ciclofaixa, que por vezes é
utilizada para estacionar veículos. Para quem está pedalando pode ser um dos momentos de
alívio já que esta medida é pensada para proteger os/as ciclistas. Durante as noites,
49

principalmente nos finais de semana, é onde se encontra o maior fluxo de pessoas, o que causa
alguma sensação de segurança para quem transita por esse local. Durante os períodos de
restrição mais acentuada, observar esses estabelecimentos serviu como parâmetro para o que
encontraria ao longo do trajeto fazendo parte da análise sobre as reconfigurações nas dinâmicas
da cidade.
Já a Av. Engenheiro Roberto Freire possui outras configurações. Grande parte de suas
margens são ocupadas por estabelecimentos comerciais diversos, concentrando parte das
universidades privadas, bares e restaurantes frequentados pelas classes médias da cidade. Essa
via dá acesso à praia de Ponta Negra, um dos principais pontos turísticos de Natal. Esses
elementos garantem que ela seja uma das avenidas mais movimentadas, o que a torna uma
excelente vitrine para os estabelecimentos.
Para esta pesquisa, tornou-se interessante observá-la por conter uma grande quantidade
de espaços de lazer e sociabilidade que vão desde trailer de cachorro quente, espetinhos, redes
de fast food, restaurantes, até bares e botecos que aproveitam da localização e do grande fluxo
de pessoas. Retomo este ponto ao analisar o funcionamento desses espaços durante a vigência
do toque de recolher e das políticas restritivas traçando paralelos com outros estabelecimentos
presentes em meu trajeto e com o próprio La Luna.
Cabe ressaltar que quase todas as regiões, incluindo algumas cidades vizinhas, como
Parnamirim e São Gonçalo do Amarante, possuem linhas de transporte coletivo que fazem essa
rota. É importante marcar a presença de uma faixa compartilhada para ônibus e bicicletas ao
longo da avenida que garante maior mobilidade tendo em vista o trânsito e engarrafamento nos
períodos de pico. Entretanto, a faixa é frequentemente usada como via expressa por motoristas,
o que coloca em risco os/as ciclistas.
Destaco a relação entre a oferta de serviços e os estabelecimentos dispostos nessa
avenida, bem como no bairro de Ponta Negra, e a força política concentrada nesse espaço que
garante o seu funcionamento. Não é coincidência que essa região dispõe de uma grande
variedade de linhas do transporte público, é necessário garantir um mínimo de locomoção para
a massa trabalhadora que mantém essa parte da cidade funcionando, ressalto que três das quatro
linhas corujões passam por esse bairro.
Recuperando a discussão sobre as diferentes pandemias, o primeiro ponto que chama
atenção são as formas diferenciadas de funcionamento adotadas pelos estabelecimentos e os
atores e atrizes que permanecem movimentando a cidade. Inegavelmente os períodos de
maiores restrições, com toque de recolher, diminuíram muito os fluxos e movimentações da
cidade. Após as 21:00, já eram poucos os carros e motos circulando, as frotas limitadas de
50

ônibus faziam com que sua presença fosse ainda menos frequente, poucos pedestres e alguns
outros ciclistas surgiam durante os percursos.
Entretanto, notavelmente, ambulâncias, viaturas da polícia militar e
motoboys/entregadores se faziam presente nas ruas, calçadas e entradas de alguns
estabelecimentos. O aumento no número de ambulâncias acompanhou o agravamento da
pandemia, os meses de março a junho de 2021 tiveram os maiores números de óbitos e casos
confirmados ligados ao coronavírus. A presença mais frequente destes veículos com as luzes e
sons das sirenes reforçam o momento delicado. Já a presença das viaturas, para além das
atividades que já desempenham no cotidiano, remetem a fiscalização e monitoramento de bares
e restaurantes, e na dispersão de aglomerações e na tentativa do cumprimento dos decretos.
Repetidamente encontrava com viaturas paradas nos estabelecimentos, alertando sobre o toque
de recolher e encerrando as atividades, isto também aconteceu em uma grande academia em
Ponta Negra.
Os motoboys e entregadores já circulavam em grande número na cidade, visto a
popularização de aplicativos de delivery, como o Ifood e o UberEats. Neste período mais
restritivo, onde os restaurantes não poderiam ofertar seus serviços em seus espaços físicos, a
adoção da entrega e da estratégia de retirar na loja possibilitou a continuidade das atividades.
Isto é um dos fatores que causaram o aumento dessas pessoas em suas motos e bicicletas, as
primeiras frequentemente em altas velocidades, que fizeram dessa demanda uma oportunidade
na geração ou acréscimo de renda. Outro fator que inegavelmente atua sobre esta situação é o
aumento na taxa de desemprego que se agrava durante a pandemia21.
Alguns outros atores marcam a noite, a ausência ou diminuição dos fluxos que produzem
parte das dinâmicas urbanas faz com que aqueles/as que permanecem nas ruas ganhem maior
destaque. Das poucas pessoas com as quais cruzava durante as pedaladas, presumo, pelos
uniformes e proximidades dos estabelecimentos, que a maioria eram trabalhadores e
trabalhadoras dos serviços tidos como essenciais desde os primeiros decretos como
supermercados e farmácias. Já no fim da Avenida Roberto Freire, era possível ver pessoas com
os uniformes dos restaurantes e hotéis que mantinham suas atividades. Quase sempre estavam
nas paradas dos ônibus, ou indo em direção a elas, esperando pelos transportes com intuito de
retornar para casa. Em algumas paradas também estavam algumas pessoas em situação de rua,
que as utilizavam como abrigo, do vento e de possíveis chuvas, para dormir.

21
De acordo com dados divulgados pelo IBGE, o Brasil alcançou no primeiro trimestre de 2021 a marca de 14,805
milhões de desempregados. Fato preocupante que representa o maior contingente desde 2012.
51

Em Ponta Negra, outras poucas pessoas praticavam esportes, caminhada, corrida e


ciclismo, pelo calçadão. Aparentavam, como eu, usar do período da noite para se exercitar com
menor risco pelo pouco contato com outras pessoas. Algumas outras caminhavam, de forma
mais lenta, nas proximidades dos hotéis, acredito se tratar de turistas que estavam hospedados
pela região. Por fim, algumas mulheres22 em pontos estratégicos de visibilidade nas ruas ou
esquinas que se conectavam a avenida principal, performavam sensualidade, nos seus poucos
passos e roupas curtas, acredito serem trabalhadoras do sexo, esperando por clientes.
Foi interessante perceber como a pouca movimentação das ruas faziam com que elas
ficassem mais visíveis. Apesar de quase sempre estarem em pontos com pouca iluminação, seus
leves balanços corporais e curtas locomoções pelas calçadas eram facilmente percebidos por
quem passava pela avenida. No início desse período, era possível encontrá-las já perto das
22:30, isto foi modificando com a flexibilização e o retorno dos fluxos, fazendo com que
conseguisse perceber suas presenças cada vez mais tarde da noite. Acredito que suas dinâmicas
de trabalho, que tem relação com estar visível e disponível nas ruas, iam se modificando em
diálogo com os próprios fluxos urbanos.
Este conjunto de elementos que passam a compor as paisagens pelas quais transito
durante o pedalar mostram como a realidade é construída e afetada pelas decisões normativas.
As pandemias ganham formas nas presenças que permanecem nas ruas em contraponto com
aqueles que deixam de compor estas paisagens, gerando ausências, diminuindo fluxos e
traçando outras rotas neste constante fazer cidade. No período de maior restrição, as ruas são
marcadas pelo trabalho, como apontam Vogel, Mello e Santos (1985) em seu campo de
pesquisa. Seja nos veículos que continuam circulando e no aumento da sua frequência ou dos
personagens espalhados pela cidade, voltando do trabalho ou tentando trabalhar, o labor surge
como componente fundamental nas dinâmicas da cidade, gerando movimentações e ocupações.
O retorno gradual das diversas atividades e o relaxamento do toque de recolher até sua
finalização vão modificando e impulsionando a volta e o rearranjo dos traçados urbanos. Nas
ruas o maior número de veículos e de pessoas sinalizam a melhora na conjuntura local, um
processo cuidadoso que ainda convive com as recomendações e fiscalizações do Estado, de
forma bem mais branda. Reocupar o espaço público ainda aparece com várias nuances. Por
meio dos meus trajetos busquei acompanhar também estes encadeamentos, tentando traçar

22
Aqui uso “mulheres” pela performance e elementos que remetem ao feminino, numa tentativa de englobar a
multiplicidade que o termo pode conter. A região também é conhecida pela presença de travestis e mulheres trans
trabalhadoras do sexo, como não estabeleci contato direto com elas uso o termo “mulher” de forma genérica, mas
sem intenção de desrespeitar qualquer identidade/expressão de gênero.
52

proximidades e afastamentos entre os estabelecimentos de lazer e sociabilidade, principalmente


bares e restaurantes com o La Luna.
É importante frisar que entre 2020 e 2021 tiveram dois períodos de restrições onde os
bares não puderam funcionar. O primeiro, em 2020, o La Luna adiou seu retorno por uma série
de fatores que envolviam questões pessoais das donas, posicionamentos sobre o retorno de
atividades na pandemia e a parte econômica do bar. Já no segundo, em 2021, o bar voltou a
atividade assim que possível junto aos decretos. As análises estabelecidas por este pedalar se
concentram neste segundo período, de fechamento e de retorno, mesmo que seja influenciado
por afetações que acompanham meus deslocamentos de bicicleta em outros momentos.
A possibilidade de sair de casa modifica consideravelmente a vida noturna da cidade.
Me chamava atenção a duração das noites nos estabelecimentos que observava durante o trajeto
e o cumprimento dos horários estabelecidos pelos decretos. Assim, as primeiras semanas do
retorno das atividades no La Luna foram marcadas pela tentativa de estar de acordo com as
normas, evitando maiores problemas, como uma das donas me fala. Essa “preocupação” é
marcada pela insegurança causada pela pandemia, onde a possibilidade de funcionamento se
vincula aos critérios estabelecidos pelo poder público. Somado a isso, Vanessa destaca alguns
conflitos com a vizinhança sobre o funcionamento do estabelecimento: "Eu prefiro fazer tudo
certinho para não dar ainda mais motivos pro povo que não gosta daqui, só querem o pé”. Para
ela, parte da motivação desses embates são direcionados ao público do bar e suas práticas,
colocados como “puro preconceito”.
Por outro lado, não observava tanto zelo por parte de bares e restaurantes maiores e que,
por vezes, concentravam mais pessoas. Durante a volta para casa, depois do encerramento do
La Luna, passava por alguns lugares que estavam em pleno funcionamento. Nos bares em Ponta
Negra, o afrouxamento das medidas parece ter chegado bem antes. Mesmo nos períodos de
maior fiscalização, com um controle do número de pessoas e de suas ações, alguns destes
lugares já ofertavam pequenos shows com música ao vivo, mesas lotadas, pouco distanciamento
entre o público. Com o efeito do álcool, as medidas sanitárias pareciam ser esquecidas com
facilidade.
Para o funcionamento deste tipo de estabelecimentos, não somente o trabalho surge
enquanto dimensão ocasionadora de estar nas ruas, essa se concentrava nos/nas
trabalhadores/as, mas o acesso a lazer e a sociabilidade impulsionavam a presença do público
nesses lugares e, consequentemente, na manutenção de seu funcionamento. Nesta investigação,
estes aspectos se tornam centrais para compreender como as dinâmicas urbanas vão sendo
53

(re)modeladas pelos sujeitos, explorando a complexidade que envolve os processos de lazer e


sociabilidade.
Não pretendo com isto apontar possíveis problemáticas destas ações. Eventualmente,
todos estes estabelecimentos possibilitaram que o público estivesse mais confortável para não
cumprir alguns protocolos, bem como a própria clientela também vai tornando os espaços mais
suscetíveis a isso, se retroalimentando. O que é interessante são as formas diferenciadas de
gerenciar os decretos e as normas. Esta gestão do contexto pandêmico na escala dos
estabelecimentos parece ser atravessada também por algum resguardo dos próprios agentes do
Estado, tornando turvas as diferenças entre o cumprimento ou rompimento dessas normativas.
Se temos o La Luna preocupado em cumprir os horários estabelecidos para evitar mais
problemas e conflitos, temos também estabelecimentos maiores e em pontos mais valorizados
da cidade que dão menos importância para isto. Esses segundos, conseguem negociar dentro
das próprias dinâmicas de fazer o Estado, um olhar menos severo, com menos risco de batidas
policiais. Das vezes que passei por esses estabelecimentos e notei a presença da polícia a
abordagem me pareceu ser em tom de aviso, tanto que mesmo extrapolando os horários a
presença da fiscalização não significava encerramento imediato das atividades, conseguindo
mais algum tempo para que não fossem causados grandes transtornos ao público e ao bar.
Por outro caminho, algumas cigarreiras23 em Neópolis, um quiosque na Av. Ayrton
Senna e ainda os 24h neste trajeto, pareciam gerenciar a situação aproveitando de sua pouca
visibilidade. Uma das vezes que saí do La Luna e fui ao 24h ali perto o atendente nos informou
que a consumação de bebidas na frente do estabelecimento estava proibida. Contudo, já
apresentando a solução, ele nos indicou ficar em uma calçada ali próxima, o que possibilitaria
continuarmos a beber e ele poderia continuar vendendo as bebidas sem ter problemas com a
polícia no caso de uma batida de fiscalização. Nestas articulações e estratégias podemos
perceber a existência de diversas formas de lidar com a imposição das normas, nelas
encontramos exemplos de rupturas de modelos urbanos que estão disputando a cidade
constantemente.
Não podemos perder de vista que esta experimentação da cidade é, necessariamente,
corporificada. Unido a bicicleta, meu corpo possibilita o transitar pelas ruas, avenidas e demais
espaços, entendendo que ele é atravessado por marcadores sociais que o afeta diretamente.
Pensando de forma interseccional, acessos e restrições são produzidos e sentidos. Ser um jovem,

23
Ao longo da Av. Dos Pinheirais podemos encontrar por volta de cinco destes lugares. São espaços menos que
os quiosques e que concentram um público limitado que não passa de três mesas. Sua estrutura é feita de madeira,
ofertam bebidas, cigarros e algumas opções de tira-gosto.
54

homem negro de pele clara, originário de uma pequena cidade no interior do estado, bissexual,
com uma performance que se aproxima de uma masculinidade hegemônica, norteia minha
experiência citadina. O próprio ato de pedalar a noite, sozinho, é uma experiência generificada,
que naturaliza a presença de homens, salvo as nuances possíveis dentro desta categoria, nos
espaços públicos. Ao mesmo tempo, me preocupo em garantir a maior passabilidade ao transitar
por estes espaços da Zona Sul, portando elementos como documentos e símbolos como
vestimenta e performance corporal que me afastem de um estereótipo racista onde homens
negros representam perigo.
Os trajetos também são pensados a partir dessas reflexões. Saber escolher quais rotas
são possíveis percorrer evitando ao máximo situações de perigo são resultado de um acúmulo
de conhecimento sobre a cidade e um cálculo que considera meus “acessos” e limitações. Vale
destacar que também não circulava pelas periferias, o que poderia me apresentar outros
“riscos”.
Com isto em mente, sublinho as recomendações de Avtar Brah (2006) que propõe
pensarmos as identidades e diferenças sendo produzidas dentro das situações, se estabelecendo
contextualmente. Este ponto reforça a atenção necessária para não cristalizar ou essencializar
alguns marcadores, sempre tentando entender de quais formas estes são produzidos e suas
consequências nas experimentações dos/das sujeitos/as contextualmente.
Estas apreciações traçadas a partir do pedalar ilustram outras formas de observação que
são feitas em movimento e de certa forma compondo as dinâmicas que almejo compreender. A
velocidade determinada pelo ritmo do pedalar permite que maiores distâncias sejam
percorridas, em comparação com uma caminhada, e ao mesmo tempo viabiliza a observação,
que é aumentada pela necessidade de concentração no movimento, nas vias e nos entornos.
Pedalar aciona um estado de alerta, necessário para garantir o trânsito e se resguardar
de possíveis acidentes, que vai aos poucos disciplinando o corpo a reconhecer sinais e reagir a
eles, como buzinas, pessoas que surgem nas vias, carros que se aproximam e colocam o/a
ciclista em perigos. Este estado de alerta unido a frequência nas ruas registram os cenários que
são cruzados, diferenciando-os de forma a conduzir as ações mais apropriadas. Ao longo dos
percursos vamos aprendendo a identificar e reagir aos múltiplos estímulos visuais, sonoros e
táteis, que são incorporadas nas observações e análises deste texto.
O acelerar, frear e parar, passam a ser afetados pelas experiências sentidas pelo corpo.
Assim, no trecho da Av. Ayrton Senna próximo a lagoa de captação, onde já ocorreram diversos
acidentes e furtos, com pouca iluminação e pouco fluxo de carros, é importante estar atento e
aumentar a velocidade para atravessá-lo o mais rápido possível. Por outro lado, no final da Av.
55

Roberto Freire, com boa iluminação, maior presença de pessoas e uma maior frequência de
viaturas da polícia, é possível diminuir o ritmo, aproveitar a vista do Morro do careca em dias
que a lua ilumina o céu com maior vigor, sentir a brisa na pele e, por vezes, o cheiro bom de
comida dos restaurantes localizados nas margens da avenida.
A geografia é outro elemento que intervém junto com o condicionamento físico. Por ser
uma cidade construída em cima de dunas, Natal é lotada de ladeiras que podem impulsionar nas
descidas ou pesar durante as subidas. Nestes momentos, o corpo como motor que move a
bicicleta intensifica o esforço necessário durante o pedalar. Esta ação vai aos poucos
modificando a estrutura corporal que busca se adaptar aos novos estímulos.
Na Praça da Guerreira e nos arredores não é diferente. O próprio bairro Neópolis já é
marcado no imaginário pelos frequentes assaltos que ocorrem em seus espaços públicos. Nos
dias em que o La Luna não funciona, a pouca iluminação e a ausência do público tornam o local
pouco convidativo para permanecer, fato que já surgia na primeira pesquisa (SANTOS, 2019),
onde o funcionamento do bar era apontado positivamente por transpassar uma sensação de
segurança. Sem a movimentação do público as ruas no entorno parecem ganhar uma nuance de
perigo que por vezes se concretiza em furtos. Parar, neste contexto, se torna um desafio que
contrasta com a receptividade e acolhimento que estão presentes nas menções do público
quando se referem ao bar.
Entretanto, as atividades do bar ajudam a tornar a permanência possível. Assim como
para outras pessoas, aquela praça se tornou um ponto marcado na cidade, uma referência para
meus trânsitos e por muitas vezes meu destino. É por este caminho que retomo as observações
em campo, entre o habitual e novos elementos.
Retomo a reflexão de Ingold (2015) sobre o mundo percebido através dos pés para
pensar o processo de apreensão da cidade e dos caminhos percorridos neste pedalar que venho
descrevendo. Em sua análise, o autor explora como o pé tem sido retirado do âmbito da
intelectualidade e posto enquanto um aparato mecânico, tendo como consequência a limitação
das formas de interação entre indivíduos e ambiente. O processo de urbanização, a
pavimentação das ruas, os calçados, são alguns marcos dessa mecanização dos pés, restringindo
a capacidade de percepção através do tato e deixando a visão livre, não precisando focar no
chão.
Mas meu ponto tem sido que a redução da experiência pedestre, que talvez
tenha atingindo o seu auge na atual era do carro, é o culminar de uma tendência
que já estava estabelecida com a mecanização do pé através da bota, a
proliferação da cadeira e o advento da viagem orientada para um destino.
(INGOLD, 2015, p. 108)
56

Seguindo o argumento do autor, entendo que as formas de observar, descrever e mover-


se não estão centradas exclusivamente na cabeça, mas em todo corpo. O pedalar possibilitou a
apreensão de conhecimento que enfatiza a dimensão corporal, que não está restrita a visão. Por
exemplo, minha familiaridade com as vias presentes no trajeto, como a Av. Ayrton Senna, que
formavam caminhos para vários pontos da cidade com diferentes objetivos/destinos. Essa
experiência me propicia conhecer os fluxos do trânsito, os lugares que alagam, os trechos que
necessitam maior atenção, os buracos, entre outros elementos que vão constituindo um
conhecimento mediado pela experimentação. Entendo aqui que o tato, a proximidade com o
chão, os impactos físicos que perpassam a bicicleta e o meu corpo, por exemplo ao passar por
uma via esburacada, se tornam centrais para este corpo senciente.
Como venho descrevendo, esse pedalar é também uma relação com o ambiente e os
personagens que vão surgindo. Acenar com a cabeça para as pessoas como cumprimento,
buscar sinalizar que não representa perigo aos pedestres caminhando ou ainda de
reconhecimento de outro ciclista fizeram parte dessa pesquisa. Sinalizar com os braços as
manobras, curvas e outras ações, encarar ou trocar olhares com pessoas no carro que colocam
o/a ciclista em risco formam um conjunto de conhecimentos que permeiam o pedalar.
Essas experiências corporificadas da cidade e das relações com/no espaço se somam a
aquelas vivenciadas em campo, minhas e dos/das interlocutoras desta pesquisa. Ao iniciar as
conversas na praça buscava entender de onde e como aquelas pessoas estavam vindo, traçando
possíveis conexões entre os caminhos e o La Luna enquanto “destino”. Boa parte residia nos
bairros vizinhos ou próximos ao bar, destacando sua localização e acesso facilitado. Assim,
conseguia desenhar meu campo de forma ampliada em um movimento semelhante ao que
construí por meio do pedalar como ferramenta de observação.

2.4 Recomeçando as noites: A volta do La Luna

No dia 06 de novembro de 2020, estava em casa, faziam alguns meses que cumpria o
isolamento social, quando navegando pelo Twitter soube do retorno do La Luna. Entre
ponderações do que poderia acontecer, decido assumir o risco de acompanhar presencialmente
o retorno das atividades do bar, entendendo que o evento marcaria os primeiros impactos de
“fazer campo” no contexto pandêmico e o desenrolar do seu funcionamento. Essas ponderações
surgiram em outros momentos, influenciadas pelas notícias acerca da situação nacional e local
da pandemia, como já foi abordado anteriormente.
57

Como de costume, antes de ir ao La Luna procurava saber se algum/a amigo/a também


estava pensando em aparecer por lá. Como ninguém da minha rede mais próxima se manifestou,
naquela sexta fui sozinho. Durante o trajeto de quase seis quilômetros, percorridos de bicicleta,
estava inquieto pensando em como estava acontecendo a sociabilidade de forma presencial
depois de tantos meses em isolamento. Aquela era a primeira vez que saia de casa sem ser para
ir ao mercado ou acessar algum outro serviço essencial24. O caminho bastante conhecido trouxe
à tona o sentimento de nostalgia e memórias das idas ao campo para minha monografia. Essa
foi a sensação que permaneceu até minha chegada a Praça da Guerreira.

Seguindo os decretos municipais, o horário de funcionamento naquele dia estava


reduzido, das 18:00 às 23:00. Cheguei pouco depois da abertura e as mudanças no cenário se
misturavam com aspectos que permaneciam, como a música, parte da equipe, cores, mesas.
Uma volta rápida pelo espaço, visto por um olhar instruído, pela pesquisa e pela vivência, já
reconhecia continuidades e transições.

Como já tinha sido avisado pelo bar, foi delimitado, usando cordas com plaquinhas, uma
área de funcionamento que circulava o quiosque, assim era possível maior controle sobre o que
acontecia no espaço. Essas limitações espaciais estipulavam quem estava “dentro” do La Luna
e poderia ser atendido nas mesas e quem estava “fora”, compartilhando a praça, mas de certa
forma já não era no bar. O atendimento do bar deixou de ser pelo balcão, onde os clientes iam
até o quiosque comprar fichas ou trocá-las pelos produtos, e passou a ser feito nas mesas pela
equipe que circulava pela praça.

Essa nova dinâmica diminui bastante os fluxos do público que ocorriam com grande
frequência antes da pandemia. Vanessa me explicou que a adoção dessas mudanças buscava
seguir as recomendações da OMS e dos decretos estaduais/municipais, atendendo aos anseios
do distanciamento social necessários para o funcionamento do bar e evitando possíveis
problemas em caso de ações de fiscalização, além de garantir maior segurança para o público e
para a equipe do bar.

Em nossas conversas, ficava nítido como “garantir a segurança” ganhava outra nuance
em decorrência do período. Se anteriormente abordei como no La Luna poderíamos encontrar

24
Gostaria de destacar que corroboro com a grande maioria das pessoas que ocupam a pós-graduação e defendem
que a pesquisa é uma forma de trabalho. Assim, ir trabalhar se tornou um dos motivadores para o retorno ao meu
campo de forma presencial.
58

uma dupla sensação de segurança, ligadas a violência urbana geral e a LGBTfobia, uma terceira
surge e precisa de uma atenção especial. Assim, Vanessa ressalta como se tornou uma tarefa do
bar garantir o melhor cenário possível contra as transmissões e contaminações pelo coronavírus,
entendendo que a colaboração do público se torna fundamental para que isto aconteça. A
fiscalização dos protocolos e a tentativa de controle no espaço da praça foi sendo incorporado
no cotidiano do estabelecimento.
Como já mencionado de forma breve no tópico em que apresento a pesquisa que
antecede este trabalho, a dinâmica no bar, anterior a pandemia, envolvia um número maior de
pessoas que se espalhavam pela praça e constantemente transitavam por seu espaço. A forma
de atendimento do bar estabelecia um fluxo fundamental entre as mesas, grupos e o balcão, para
que fosse possível comprar as fichas, ou trocá-las pelos produtos, principalmente as cervejas.
Aproveitando esta ida ao balcão, ou ao banheiro, as pessoas já estabeleciam contatos,
encontravam com aqueles/as que estavam em mesas diferentes, conheciam outras, conversavam
nas filas, flertavam, procuravam por alguém ou algo que poderia estar por ali. Em um jogo de
visibilidade, viam e eram vistas naquelas noites, tanto que “dar uma voltinha” para esticar as
pernas e observar o ambiente também eram motivações para circular.
Estes fluxos eram necessários para construir o cenário de movimento, animação e
agitação nas noites do La Luna. O contrário, nos dias mais calmos, com menos público e menor
movimento, eles diminuíam e modificavam a “vibe” 25, com música mais lenta, pessoas mais
fixas, sentadas em suas mesas e focadas nas conversas. Independente da agitação, é perceptível
que os fluxos fazem parte do bar, compondo aquela paisagem urbana. A equipe do bar e o
público corroboravam com essa observação, por vezes quando chegava na praça alguém
comentava sobre o “movimento” que estava fraco ou frenético. Ocasionalmente isso também
surgia nas conversas com a equipe ao fim da noite, onde o cansaço e o trabalho eram relatados
como consequências da demanda do público.

Essa dimensão do fluxo pode ser pensada em diálogo com a do trottoir presente na
pesquisa de Nestor Perlongher (1987) sobre a prostituição masculina em São Paulo. O autor
traça diversas articulações entre os sujeitos e os espaços, como a ocupação de lugares diferentes
por pessoas com diferentes marcadores sociais, em especial classe e raça, constituindo um
cenário heterogêneo, fragmentado por diversos segmentos. Assim, vão se observando

25
O termo surge no campo e está presente no dialeto jovem, pode ser entendido como a “sensação” ou “vibração”
que uma pessoa ou ambiente consegue transmitir.
59

distinções entre os michês e seus clientes, que estão vinculados aos lugares onde fazem ponto
e são estabelecidas relações de classificação e status.

Desta forma, o autor entende ser necessário acompanhar os deslocamentos e perambular


dentro do que ele caracteriza como “gueto gay” no centro da cidade para conseguir se integrar
sistemática e eficientemente ao seu campo e seus interlocutores, postos enquanto “sujeitos à
deriva”. Para ele “não há melhor maneira de estudar o trottoir do que fazendo trottoir.”
(PERLONGHER, 1987, p.34). É no entendimento da dinâmica de sua pesquisa que Perlongher
(1987) se propõe a circular dentro desses fluxos, trazendo essa perambulação enquanto método,
ao observar que essa dimensão está atrelada ao processo de “paquera”, as “derivas” e “devires”
estabelecidas entres os michês e seus clientes.
O interessante desta deriva, no negócio do michê, é que ela é literalmente
desejante, isto é, está guiada pelo desejo de realização de um ato sexual, ainda
que em troca de um pagamento ou de algum usufruto “simbólico” (por
exemplo, o gozo do status que sentem alguns prostitutos por passear num carro
de luxo). Por outra parte, na paquera de “entendidos” e michês, esta procura
de compradores e vendedores de sexo percorre itinerários urbanos,
territorialidades matérias; as circunvoluções desejantes são estampadas no
plano real da paisagem urbana em movimento. (PERLONGHER, 1987, p.249)

Nossos campos se encontram no esforço de captar estes diferentes fluxos e compreender


de quais formas eles permeiam as relações estabelecidas entre espaços, sujeitos e suas práticas.
No La Luna, entendo que os fluxos caracterizam temporariamente o bar e seu funcionamento
influenciando as experiências que acontecem nele e com ele. Esse elemento auxiliou também a
identificar algumas alterações que foram se desenhando ao longo da pesquisa, como o aumento
na quantidade de pessoas, o cumprimento das medidas de segurança até o retorno dos eventos,
que serão abordados a seguir.
De forma mais ampla, aceito o convite proposto por Perlongher e durante toda pesquisa
precisei estar em movimento para apreender as conexões que a Praça da Guerreira, o bar e seu
público estabelecem entre si e com a cidade, pensando o uso do espaço urbano, processos de
consumo, sociabilidade, lazer e política. Isso fica marcado não só nos meus deslocamentos no
La Luna e no seu entorno, pelas mesas, grupos e lugares, como também no trajeto e no pedalar
abordados anteriormente.
Retomando, as delimitações espaciais, para além das cordas, contavam com a vigilância
dos/das seguranças e da equipe, que buscavam orientar e alertar os clientes do bar e quem
passava dentro da área sobre as normas de funcionamento. Diferente da pesquisa anterior, a
complexa fusão entre o La Luna e a praça parecia estar mais frágil, ficava mais fácil pensar
60

uma separação desses dois lugares. Visivelmente, a zona dentro da corda estava melhor
iluminada, o chão de areia e os bancos estavam mais limpos e conservados. Esta marcação feita
com cordas por vezes foi chamada de “cercadinho”, pelo público e alguns funcionários, uso
este termo êmico para definir e referenciar esse local.
Delimitar o local que passaria a ser o bar se complexifica por se tratar de um espaço
público, esta tensão em torno de estar em uma praça e limitar o acesso das pessoas de alguma
forma aparece em diversas situações. Aqui, o cercadinho é uma resposta elaborada para cumprir
com os critérios dos protocolos possibilitando as atividades do La Luna.
No decorrer do texto, utilizo algumas categorias espaciais que por vezes podem ser
confundidas. A confusão aqui presente também ocorre durante as observações e as diferentes
formas de referenciar os locais que constituem o cenário desta investigação. Para nortear a
leitura indico de forma geral como estou utilizando cada uma das categorias a seguir. Quando
menciono a Praça da Guerreira, ou somente “praça”, tenho como referência todo aquele espaço,
delimitado fisicamente pelas calçadas que estão imediatamente ao lado da Alameda dos
Eucaliptos, da Alameda das Acácias e da BR-101. Ao falar de quiosque, penso a pequena
construção onde estão o balcão, a cozinha e os banheiros. Já ao mencionar o La Luna, ou o
“bar”, se trata do espaço delimitado pelas cordas, incluindo o quiosque. Entretanto, este último
durante alguns eventos, por exemplo, pode se expandir e se confundir com o espaço total da
praça.
Alguns novos elementos indicavam/reproduziam o contexto de pandemia,
frequentemente lembrados, como o uso de máscaras ao levantar das mesas, o álcool usado para
assepsia das mãos, o distanciamento das mesas, a abordagem da equipe e as restrições
marcavam o “novo normal”26. Não só a dinâmica do bar estava se modificando, o próprio
público estabeleceu algumas respostas em consonância com o bar, por exemplo afastando um
pouco mais as mesas e não ultrapassando os limites acordados pelo estabelecimento.
Entretanto, desde esse primeiro retorno já se presenciava algumas pessoas que
destoavam. Essas tentavam circular sem máscara, formavam grupos maiores fora das cordas,
entre outras ações que acabavam causando pequenos conflitos e precisavam ser mediados pela
gestão do estabelecimento. Nesse primeiro momento, o bar adotava de forma rígida os
protocolos de segurança, fazendo com que essas pessoas se adequassem à dinâmica ou não
seriam atendidas.

26
Essa expressão passou a circular em diversos âmbitos, presentes até nas mídias de massa. Ela indica as
transformações no cotidiano em consequência da pandemia.
61

Uma das novas medidas adotadas foi o sistema de reserva prévia de mesa. Este servia
para garantir uma consumação mínima, no valor de R$ 20,00 reais 27, e controlar a lotação do
bar, consequentemente o cumprimento das medidas sanitárias elencadas como critérios para o
funcionamento deste tipo de estabelecimento nos decretos municipais e estaduais. Alguns/mas
desavisados/as sem reserva chegavam e ocupavam as mesas, logo alguém da equipe chegava
para informar a nova dinâmica do bar e que para ser atendido seria necessário fazer a reserva.
Nos primeiros dias presenciei alguns desses constrangimentos que geralmente conduziam os/as
“desavisados/as” a ficarem na praça ou irem embora já que não poderiam ser atendidos/as.
Essa era uma situação desconfortável para ambos os lados, a própria equipe me relatava
como era complexo estabelecer esses diálogos de forma que os/as clientes compreendessem
que o bar precisava adotar tais medidas. Nas redes sociais, no anúncio do novo sistema já
constava um pedido de “desculpas” sobre os possíveis transtornos que a exclusividade do
atendimento nas mesas poderia causar.
Esse retorno e as mudanças condicionadas pela pandemia sinalizaram de forma inicial
os desafios e projeções para a pesquisa. Como já mencionado, a instabilidade dos decretos
governamentais, os desencadeamentos do enfrentamento ao coronavírus, as escolhas da gestão
do bar e o público, construíam o cenário de observação. Recorrendo mais uma vez as
recomendações de “transformar o familiar em exótico” (Da Matta, 1978), se fez necessário o
esforço crítico não apenas nas observações do campo, como no acúmulo da pesquisa anterior.
É o que busco durante os outros momentos em campo, enquanto o bar estava funcionando.
Tomando o retorno como ponto de partida, algumas questões se sobressaem durante a
continuidade da observação e possibilitam algumas apreciações.
A preocupação com as medidas/protocolos de segurança ganhava certa flexibilidade e a
tentativa de cumprir com as recomendações sanitárias pela equipe do La Luna por vezes era
contrária as práticas do próprio público. Enfim, mesmo sendo notável a diminuição das
interações entre as mesas, ainda era possível ver apertos de mão, abraços e beijos no rosto que
ocasionalmente mostravam algum embaraço ao lidar com a proximidade ou contato com
alguém. Abraços viravam toques de cotovelo, apertos de mão passavam a ser um “tchauzinho”.
Acessar o corpo do outro pareceu ganhar novos contornos mediados pela possibilidade da
presença do coronavírus, mas, evidentemente, algumas interações aconteciam sem hesitar.
No decorrer das semanas, o atendimento exclusivo às mesas passou a permitir que, caso
houvesse disponibilidade, os/as clientes sem reserva poderiam sentar e ser atendidos/as.

27
Este valor era revertido em consumação.
62

Algumas vezes, dependendo da barganha do cliente, se conseguia comprar alguns itens indo
diretamente ao balcão, principalmente água e cigarros, em uma dinâmica de “compre e saia”.
Se nos primeiros dias de retorno as vendas eram bastante restritas, a dinâmica de funcionamento
foi sendo adaptada por meio das negociações entre as restrições dos decretos e protocolos de
segurança e a venda/consumação dos produtos, uma das principais finalidades do bar.
Nesse jogo, algumas cervejas eram vendidas para quem estava fora do bar, outras
pessoas conseguiam circular pelo espaço sem respeitar o uso da máscara e outras situações que
fugiam das normas estabelecidas ali. Outro exemplo, o encerramento das atividades nos
horários estabelecidos pelos decretos ganhavam alguns minutos de “tolerância”, com o
fechamento total do bar acontecendo até uma hora depois28. Mesmo após o término, era possível
ver alguns grupos que ficavam pela praça prolongando a noite.
A rigidez na adoção e fiscalização das medidas sanitárias pelo bar e por seu público
seguiram o processo de flexibilização estabelecido pelo próprio governo. Não somente no
contexto do bar, mas em diversas situações do cotidiano a “normalização” da conjuntura
pandêmica parece fazer com que algumas destas medidas fossem relativizadas, ganhando
caráter ‘optativo’. No comércio de rua, nas paradas de ônibus, nos espaços públicos, passou a
ser cada vez mais frequente pessoas sem máscaras, demonstrando pouca preocupação em
respeitar as medidas de distanciamento ou isolamento social. Os “cuidados” com a pandemia
vão se diluindo ao longo do extenso período de adoção e sua manutenção vai se mostrando
insustentável.
Na trama desta pesquisa, esse fato fica mais evidente nos dias com maior quantidade de
público na praça, este aumento foi ocorrendo de forma gradual desde o último retorno das
atividades do bar, em maio de 2021, e se intensifica em momentos específicos. Entendendo que
este espaço se insere dentro das dinâmicas de Natal, alguns eventos acabam tornando-se
catalisadores, influenciando na experiência no/do bar. Para exemplificar, tomo alguns dias onde
ocorreram atos e manifestações políticas na cidade, motivadas pela agenda contrária ao
presidente do Brasil e com pautas como defesa da educação, do sistema único de saúde – SUS,
pelo avanço da campanha de vacinação contra o coronavírus e pela retirada do então presidente
Jair Messias Bolsonaro.
O período de maio a agosto de 2021 foi marcado por algumas mobilizações nacionais,
manifestações políticas, atos de rua com grandes caminhadas e uma considerável concentração

28
Alguns decretos previam um tempo de tolerância, geralmente uma hora, após o início do toque de recolher.
63

de pessoas ocorrendo em diversas capitais e cidades do país29. Uma das principais motivações
que surgem nas chamadas e nas falas durantes os atos é a condução da pandemia por parte do
governo federal, sendo apontada a falta de medidas efetivas com algum respaldo científico ou
de acordo com a OMS.
Nestes dias, os atos começavam por volta das 15:00 e se estendiam até o início da noite,
já depois das 18:00. O trajeto era o já comum para as manifestações em Natal: entre o Midway
Mall e o Natal Shopping, seguindo pela Av. Salgado Filho. Pensando a proximidade física entre
o ponto final dos atos e o La Luna, decidi que após acompanhar as manifestações seguiria para
o bar e ver se esses eventos causariam algum efeito em suas noites. Já durante as manifestações,
reconhecia algumas pessoas que costumava encontrar durante minhas idas ao campo, também
tentei visualizar o maior número do possível público para caso se estes/as aparecerem no bar
durante a noite poder reconhecê-los/las.
Ao chegar no La Luna após as manifestações políticas, um pouco depois do seu horário
de abertura, não parecia que aconteceria nada fora do comum, já que o ritmo no começo da
noite é mais calmo. Com o avançar do horário a quantidade do público ia aumentando de forma
constante, algumas pessoas que tinha encontrado nos atos chegavam em grupos na praça e iam
em direção as mesas, geralmente passando pelo balcão no caso de quem fez reserva. O conjunto
continuava a crescer até por volta das 21:30. O bar era tomado pela mistura de quem estava ou
não na manifestação. Já sem mesas e com a capacidade extrapolada, algumas pessoas iam ao
balcão na esperança de conseguir um lugar para sentar, o que muitas vezes acabava em
frustração.
Além dos rostos que reconheci, alguns símbolos anexados aos corpos ali presentes
remetiam diretamente às manifestações. Camisas e bonés de partidos políticos, movimentos
sociais ou coletivos, bem como outros signos como adesivos, panfletos e cartazes, que eram
entregues e colados durante os atos. Nesses era possível visualizar os motes e palavras de ordem
das manifestações, como “Fora Bolsonaro”, e a indignação pelas 500mil vítimas em decorrência
da covid-1930. Já no bar, estes elementos serviam também como indicadores da presença
daquelas pessoas nos atos e, de certa maneira, consistia em formas de apresentação de si para
aqueles/as que os portavam.

29
Tomei conhecimento dos atos via redes sociais. Em suas chamadas e mobilizações feitas via internet, adotou-se
o uso de hastags, usando o dia e a primeira letra do mês para “nomear” os atos, como: #29M, #19J, #30J, #3J e
#24J. Os exemplos citados remetem aos dias/atos que estive presente e baseiam as análises que apresento ao longo
do texto.
30
Até o momento da escrita dessa pesquisa o total de mortes no Brasil ultrapassava 650 mil vítimas.
64

A quantidade de público na praça fazia com que os protocolos de segurança fossem


menos cobrados, a equipe do bar se dividia em ritmo frenético para responder as várias
demandas das mesas e não conseguiam fiscalizar e cobrar, por exemplo, o uso da máscara ao
levantar da mesa e se locomover pelo espaço dentro do cercadinho. Com todas as mesas
ocupadas, os grupos se espalhavam para além dos limites das cordas, alguns conseguiram levar
mesas e serem atendidos mesmo fora da delimitação.
O número de pessoas por mesa também era extrapolado por alguns grupos que
notavelmente preferiam fixar-se na parte da frente da praça, o que diverge do momento anterior
a pandemia onde boa parte do público ficava na parte de trás. Essa parece ser uma nova
estratégia de visibilidade que tenta garantir maior facilidade e celeridade no atendimento, como
é apresentado por um dos clientes:
Pois é, agora que as atendentes deixam as cervejas eu prefiro ficar aqui na
parte da frente. É mais perto do balcão e não fico esperando muito uma delas
passar para pedir. Já que reclamam se ficar indo no balcão, pedem para esperar
na mesa que a cerveja já está indo. Eu não tenho problema em ficar sentado,
só é ruim se ficar esperando demais, aí vou lá mesmo. (Diário de campo, maio
de 2021)

Estes dias servem para reforçar a íntima ligação entre o perfil esperado do público e os
posicionamentos adotados pelo bar. Ali são compartilhados em diferentes níveis um estilo de
vida conectado a um padrão de consumo, de itens vendidos no bar e também de experiências,
com crenças e posicionamentos políticos. Diria que, de forma geral, se vai ao La Luna com o
acúmulo construído ao longo de anos sobre como é a experiência no lugar, reforçado pela
própria perspectiva que o bar constrói de si, através das redes sociais, por exemplo, e da imagem
concebida pelo público.
Desta forma, ostentar símbolos e signos que remetem a um posicionamento político
progressista ou que exalte pautas como defesa dos direitos humanos, diversidade, combate às
opressões, de partidos políticos, coletivos e movimentos sociais entendidos enquanto de
esquerda, não parece causar nenhum tipo de constrangimento para as pessoas. Na verdade, gera
comentários positivos durante conversas e rápidos contatos que podem acontecer ao longo das
noites, trago um enxerto que serve como exemplo:
R – Sim, eu estou usando os adesivos porque vim do ato pra cá. Como tem
muita gente que veio de lá também nem me liguei de tirar.
L – E tu acha que tem problema em sair assim?
R – Aqui tem não, muita gente que pensa parecido, né? Agora se fosse em
outro lugar, que tivesse “bolsominion” podia dar confusão. Tem que saber pra
onde vai também! Na minha bolsa tem esses bottons (um com arco-íris e outro
com o símbolo do comunismo) e as vezes o povo olha feio. Pelo menos aqui
não tenho essa preocupação. (Diário de Campo, Junho de 2021)
65

Entretanto, ir ao bar portando símbolos que remetam a uma direita mais conservadora,
possivelmente vai gerar algumas reações negativas. Em outro dia, estava no bar, próximo ao
balcão, quando um homem se aproximou para falar com Vanessa, proprietária do
estabelecimento. Ele vestia uma camisa preta com a imagem de Bolsonaro e uma frase de apoio
estampadas. Dava para notar como algumas das mesas próximas apontavam, comentavam e
dirigiam olhares pouco amistosos, nitidamente estranhando a presença daquela figura ali
naquele lugar. Para quem frequenta ou conhece o espaço, parece já existir uma imagem
estabelecida do público e do bar, fortalecendo essa construção mútua do que é esperado na
experiência de ir ao La Luna. Aprofundo esta discussão no próximo capítulo, no tópico sobre
política e processos de consumo.
Retornando ao espaço físico, em noites onde a quantidade do público estava na
“normalidade” a situação dentro e fora do cercadinho contrastavam. Sem a vigilância constante
da equipe, as pessoas espalhadas pela praça aparentavam menos zelo com o uso das máscaras,
do álcool para limpeza das mãos e na formação de aglomerações, dado que presenciei grupos
que se aglutinavam com quantidades bem além das permitidas nas mesas31.
A circulação pela praça era bem mais flexível, os contatos mais frequentes e as músicas
nas caixas de som mais altas, em certos lugares quase não dava para distinguir toda a mistura
sonora. A quantidade geral do público, no bar e na praça, passou a ser bem menor do que nos
dias anteriores à pandemia, o espaçamento entre os grupos e a disposição na praça formavam
quase que dois eventos separados.

2.5 Quem vai? Reflexões sobre o público do bar

O cenário do La Luna fica completo quando inserimos seu público e iniciamos algumas
reflexões que servem para nortear as análises e as buscas em campo, estando aberto aos
desdobramentos e vicissitudes que podem ocorrer. Assim, é no desenrolar das situações em
campo, partindo das motivações/escolhas do público e as relações estabelecidas no e com o
espaço que podemos captar e compreender as dinâmicas e os significados que estão sendo
estabelecidos. Aqui, não foco nos trânsitos pela cidade, a estratégia é fixar em um lugar
específico e partir dele, um pouco diferente da proposta de seguir os atores sociais pelos

31
O bar estabeleceu o limite de quatro pessoas por mesa, podendo unir no máximo duas mesas e reunir até oito
pessoas por grupo.
66

diferentes pontos da cidade, estabelecendo padrões. Uma das questões que norteiam a pesquisa
é conhecer quais motivações, estímulos, influenciam na escolha do bar pelo público LGBTQI+.
Recorro novamente as experiências em campo para ilustrar uma das possibilidades da
noite no La Luna. No início de 2021, já passados alguns meses que cumpria o isolamento e não
encontrava com um grupo de amigos, decidimos marcar em algum lugar pela cidade para sair
e conversar. Na procura por um lugar para ir, um deles indica o La Luna, por ser um espaço
aberto e mais central para todos, visto que moramos na Zona Sul ou em Parnamirim. Já cientes
das limitações em seu horário de funcionamento, foi levantada a possibilidade do “after”, o que
faríamos após o fechamento, e decidimos deixar para definir presencialmente, depois de ver
como a noite seria. Me preparei e fui ao bar pedalando.
Estávamos em quatro pessoas, o limite por mesa, e encontramos com um casal de
amigas, sentadas ao nosso lado, que estavam apresentando o lugar para uma terceira moça que
tinha recém-chegado de São Paulo. Os contatos físicos naquela noite ainda estavam limitados
pelo receio ao coronavírus. Quando nos cumprimentamos, uma delas me perguntou “ você ta
abraçando? ”, no intuito de saber o quão restrito estava sendo o distanciamento, naquele
momento optamos pela saudação só com “tchauzinho”.
No decorrer da noite, a conversa, as bebidas e o compartilhamento de itens como
cigarros e comida, transmitia um clima de intimidade que logo possibilitou ficar sem as
máscaras, tocar as pessoas ao lado, se aproximar, limitando-se às duas mesas que se juntaram
formando uma só. Para o contato externo, com o restante da praça, sempre era usado ou
lembrado por alguém de usar as máscaras e álcool, por exemplo nos deslocamentos ao banheiro.
O clima estava calmo, mesmo com algumas mesas ocupadas os grupos estavam relativamente
distantes dentro do cercadinho. Do lado de fora das cordas poucas pessoas estavam na parte de
trás da praça.
Chegando próximo do encerramento do bar, perto das 23:00, já com a equipe recolhendo
mesas e cadeiras desocupadas e passando para avisar que estavam fechando, ainda era “cedo”
e decidimos ir para o 24h que fica ali próximo, na Av. dos Pinheirais, para comprar bebidas e
continuar a noite. Com o “after” decidido, pagamos a conta, recolhemos os nossos objetos que
estavam sobre as mesas e seguimos. Como o La Luna já estava fechando, as poucas mesas que
restavam na praça também se preparavam para ir embora.
Quando estávamos saindo da praça, meus amigos foram abordados por um trio de
pessoas que chegou elogiando a “playlist” que estava tocando durante a noite em nossa mesa,
na caixinha de som com uma seleção de músicas diferentes das que tocavam no bar. Após os
elogios, perguntaram para onde iríamos e que eles também estavam procurando um “after”.
67

Contamos nossos planos de ir ao 24h e eles decidiram se juntar a nós, saímos então em grupo
de dez pessoas, pegando a rua lateral da Alameda das Acácias.
As tensões pelo contato com desconhecidos foram se dissipando enquanto
caminhávamos e conversávamos sobre alguns assuntos em comum, como a frequência no local,
cultura pop, música, universidade, entre outros. Existia uma gama de temas que convergiam
neste primeiro contato, dando corpo a um universo compartilhado entre as dez pessoas que
seguiam em direção ao 24h. Após uns 15 minutos, chegamos no primeiro estabelecimento que
já estava fechado, o que nos levou continuar o trajeto em direção a um segundo, já na Avenida
Ayrton Senna. Depois de andar por mais 15 minutos chegamos na conveniência, à primeira
vista o ambiente causou estranhamento.
Este 24h fica nas margens da Av. Ayrton Senna, ao lado de uma borracharia e de uma
área de mata. Pouco iluminado, a sensação de perigo contrasta com o conforto proporcionado
pelo La Luna, logo a moça que acompanhava minhas amigas mostrou seu desconforto.
Rapidamente conversando com uma delas falei como o lugar parecia precário, mas que em
outras experiências, em contextos bem semelhantes, não tinham acontecido nenhuma situação
de risco/perigo. Quando chegamos lá já tinha uma mesa com três pessoas sentadas bebendo e
outras três estavam nos arredores do estabelecimento. O fantasma da homofobia preocupava
meus amigos que tem performance bastante feminina, mas logo questionei junto com minha
amiga em tom de brincadeira “A atendente é trans, acho que aqui também é LGBTfriendly”
fazendo referência ao La Luna.
O “quebra gelo” da situação e a decisão de permanecer se materializou quando minha
amiga decidiu ir comprar uma cerveja e avaliar a situação, para surpresa de quem estava receoso
tanto a atendente quanto um dos homens que estavam por lá se mostraram bastante solícitos,
ofereceram mesas e cadeiras para sentarmos e logo a tensão no clima foi sendo amenizada. A
moça que demonstrou maior desconforto decidiu chamar um uber e ir para casa, enquanto isso
organizamos duas mesas para caber as nove pessoas ali reunidas. O único incômodo relatado
foi causado por um homem, que aparentava ter por volta dos 45 anos, já estava levemente
alterado pela bebida. Era o mesmo que ofereceu as mesas e cadeiras e de início pensávamos
trabalhar no estabelecimento, mas ele também era cliente. Ele se aproximou tentando puxar
conversa, principalmente com as mulheres, umas três vezes, mas logo parou de ir em nossa
mesa.
Enquanto estas cenas se desenrolavam e depois conversando com minha amiga,
notamos o quanto o desconforto causado na moça parecia estar permeado por sua experiência
de classe, raça, gênero e localidade. Recém-chegada de São Paulo, provavelmente teve pouco
68

contato com estabelecimentos como aquele 24h, que notavelmente se espalham por Natal e
região, surgindo como uma alternativa aos bares que fecham durante a madrugada. A
“precariedade” do lugar conformava uma experiência de classe que não se distancia da
experiência de raça, para minha amiga e eu, ambos negros. A conveniência parecia ser uma
opção viável para continuar a noite, seguir bebendo e socializando, para a moça foi impossível
permanecer. Logo, precisou chamar um uber e retornar à sua casa, um lugar seguro em oposição
aquele local que emanava perigo.
Outro ponto levantado durante as conversas, em tom jocoso, foi a possibilidade da
homofobia e como não poderíamos “exagerar”. Claro que minha performance mais próxima de
um padrão masculino, bem como a forma que estava vestido me permitiam maior passabilidade
e um sentimento de segurança que não era tão forte para meus amigos, bem mais “femininos”,
com shorts pequenos e blusas apertadas. A música escolhida para tocar na caixinha de som em
nossa mesa, uma playlist com “divas pop”, drag queens e voltada ao pop, parecia servir como
mais um marcador de sexualidades não heterossexuais ali presentes. Nas primeiras faixas
escolhidas, entre risadas alguém do nosso grupo soltou a pergunta "será que pode escutar
música de gay? ”.
Na mesa, as conversas fortaleciam a ideia de um universo compartilhado entre meus
amigos e o trio que acabávamos de conhecer, já mencionado acima. Eram dois homens gays
brancos e uma mulher, branca, bissexual, todos jovens na faixa etária entre 20-25 anos,
universitários. Arriscaria dizer que esse é um dos perfis de público mais presente no La Luna,
não por acaso foi onde esse encontro aconteceu. As músicas que serviram como aproximação,
sem dúvidas conduziram as primeiras conversas e possibilitaram o aprofundamento sobre
estilos de vida, preferências/gostos, opiniões, convergências e divergências sobre determinadas
temáticas.
Nessa dinâmica de aproximação, a sociabilidade ia se desenvolvendo com o “colocar
um assunto na mesa”, um jogo descontraído de elencar elementos que possibilitassem conhecer
melhor as pessoas que estavam sentadas, compartilhando aqueles momentos no decorrer da
noite. Nomes de cantoras, filmes, séries e realities shows, foram aos poucos mostrando o acesso
a questões que estão em alta na cultura midiática nacional e internacional, visto a grande
repercussão de algumas produções audiovisuais. Não demorou muito até as redes sociais, como
meio de acesso a esses conteúdos, fossem mencionadas e logo surgiu a pergunta “como está
seu @? ” em referência aos nossos usuários nas plataformas Twitter e Instagram. Seguir e
tornar-se seguidor ali mesmo com o uso dos smartphone fez com que outra barreira fosse
69

ultrapassada e que aquele primeiro contato se alargasse para outros momentos através de
interações, curtidas, comentários e mensagens pelas redes sociais.
Outro ponto interessante foi a tentativa de traçar conexões entre esses grupos
desconhecidos através de lugares frequentados, como a universidade ou espaços de socialização
de pessoas e grupos. Nessa conversa surgiram nomes e lugares em comum, cursos de
graduação, entre outros elementos, conformando uma atmosfera confortável que amenizou a
estranheza do primeiro contato.
No meio dessas conversas eu preferi ficar um pouco mais calado, geralmente não sou
muito falante e prefiro interagir com as pessoas que estão sentadas mais próximas na mesa para
não precisar falar muito alto. Estava sentado ao lado da moça que por vezes tentava me puxar
para conversa, foi ela que perguntou sobre minhas redes sociais, sobre meu mapa astral e afins.
Deu para perceber que naquele momento eu não estava ali coberto por algum manto que me
diferenciava dos demais. Pelo contrário, estava sendo visto como disponível a ponto de ser
acionado a partir do mercado erótico, possível para se tentar flertes e arriscar outras
aproximações. Ser encarado desta forma me fez lembrar como nosso corpo, em alguns campos,
está suscetível a diversas afetações. Também achei interessante como mesmo sem ter sido
perguntado sobre minha sexualidade, foi presumido uma bissexualidade ou heterossexualidade
possivelmente por minha performance masculinizada.
Por possuir características que compartilho com o público, e por se tratar de um espaço
de sociabilidade, alguns arranjos e escolhas em campo podem diluir a divisão entre ser
pesquisador ou só mais um jovem curtindo a noite. Blázquez e Liarte-Tiloca (2018), em sua
pesquisa sobre encontro festivos noturnos, analisam a presença do pesquisador no campo e
como durante essas ocasiões o papel de pesquisador e público/participante não são rígidos, pelo
contrário, suas fronteiras se confundem “Submersos nos devir dessas derivas, em um duplo
papel de antropólogos e participantes das festas, nossos corpos se encontravam praticando
aquilo que observávamos até tornar-nos consumidores consumidos pelas noites que
estudávamos etnograficamente.” (BLÁZQUEZ e LIARTE-TILOCA, 2018, p.205, tradução
livre).
Já eram quase 03:30 da manhã quando decidi encerrar minha saída, estava cansado e
com fome e precisaria fazer o caminho de volta pedalando, o que poderia ser arriscado. O casal
de amigas já tinha ido embora de uber uma hora antes, mas o resto da mesa prolongou o “after”
até quase 05:00 da manhã. Acompanhei este encerramento pelas mensagens, vídeos e fotos que
70

meus amigos mandaram em nosso grupo no Telegram32. Como costumeiro, no outro dia, depois
que todos estavam acordados, comentamos sobre os acontecimentos da noite, algumas das
observações feitas aqui foram reforçadas por eles e serviram como “dados” para reconstruir o
evento que tinha se passado.
Entre encontros e desencontros, esse relato nos possibilita alguns pontos interessantes
para serem aprofundados. Começando pela própria experiência de sair do La Luna e prolongar
a noite em outro espaço, que se torna possível a partir daquela experiência, em uma
temporalidade específica, tendo em vista as poucas opções disponíveis naquele momento. Para
acessar este outro local foi necessário algum conhecimento prévio sobre a geografia do entorno,
também são levantadas experiências anteriores e elementos, como a atendente transexual, que
reforçassem a sensação de segurança e afastasse o receio de sofrer alguma violência motivada
por questões de gênero e sexualidade. Esse esforço de construir este lugar do after já não é
necessário ao pensar o La Luna, uma vez que ser um espaço acolhedor para o público LGBTQI+
é uma das características marcantes do estabelecimento.
Passando para questões de identidade, as aproximações constituem este universo
compartilhado de signos e experiências que auxiliam na reflexão sobre o público do bar. Não
coincidentemente foi o La Luna que primeiramente aglutinou os grupos diferentes e
proporcionou o contato mais profundo entre desconhecidos. Os signos e símbolos, a música,
estilo de vida e o próprio imaginário de juventude, enquanto qualidade almejável, que reforça
aspectos como movimento, ser ativo, disposição a se aventurar e ter novas experiências, se
unem com o imaginário da noite, da rua, numa excitante mistura de possibilidades e perigos,
que servem como plano de fundo deste breve relato. Para além da ideia de etariedade, o ser
jovem aqui é reforçado pelo prolongamento da noite, pela busca do “after” e das oportunidades
que podem ser construídas.
Como a própria descrição do bar nas redes sociais sugere, seu público é
majoritariamente formado por pessoas “LGBTQI+”, sem grandes disparidades de gênero, com
uma clara maioria branca, jovem, abaixo dos 30 anos, universitária, com aparente estilo e
práticas de consumo que remetem as classes médias. Esses são alguns aspectos compartilhados,
mas que não traçam uma homogeneidade. Pelo contrário, como citado acima, são elaboradas
características de distinção entre os grupos que costumam estar na praça.
Tentando fazer um breve histórico, frequento o La Luna desde os primeiros meses de
funcionamento, alternando entre cliente, pesquisador e por vezes como ambos. Nesse período

32
Aplicativo de troca de mensagem bastante similar ao Whatsapp.
71

foi perceptível as mudanças do público durante o processo de popularização do bar,


principalmente ao que se remete as expressões de gênero e sexualidade. No início, o pouco
público era majoritariamente LGBTQI+, o que mudou durante da minha pesquisa monográfica
em 2018 (SANTOS, 2019) e foi percebido pela administração do bar, apontando que naquele
momento o público chegava a ser “meio a meio”, mesmo sem alteração na proposta do bar,
passando a enxergar o público como “alternativo”, composto por LGBTQI+ e heterossexuais
que entendiam/respeitavam as “regras” do bar.
Agora no retorno das atividades durante a pandemia, percebo que a configuração do
público retorna as origens, sendo aqueles/as dentro do cercadinho predominantemente
LGBTQI+, penso ter alguma ligação com o sentimento de fidelidade ao bar ou mesmo as poucas
opções voltadas para esse público em Natal.
O recorte geracional é um ponto marcante que parece aglutinar as diferenças ali
existentes. Cabe então refletir sobre juventude enquanto categoria social, cultural e histórica
que não pode ser reduzida a “idade”, marca biológica. É aqui entendida como construção social
que precisa ser problematizada e situada nos contextos que emergem, vista de forma plural,
como juventudes. As considerações propostas por Ana Lúcia Enne (2010) vão recuperar a
“juventude” e sua constituição na modernidade ocidental, traçando uma interessante análise
onde juventude emerge como o amálgama perfeito entre modernidade, mídia, consumo e estilo
de vida.
Para a autora, a modernidade não seria apenas um marcador histórico, definindo uma
época, mas também uma visão de mundo e uma forma de estar nele, ou seja, um ethos, um
estilo de vida. No mesmo caminho, juventude não seria a mesma coisa que ser jovem,
remetendo a um conjunto de símbolos e signos relacionados a rupturas, ao novo, ao que não se
conforma. Assim, a juventude torna-se um signo do ser moderno, que é fortemente traduzido e
potencializado pelas mídias de massa, assimilado e vendido pela cultura do consumo, em um
cenário onde o desenvolvimento do capitalismo segue transformando as sociedades industriais.
Nessa conjuntura “os jovens” emergem enquanto sujeitos, atores sociais que ganham
força nas disputas e construções de imaginário social. Por essa chave, influenciados pelo
capitalismo liberal, individualista e racional, é apontado o esforço para qualitativamente se
diferenciar dos demais, trazendo cada vez mais recursos para construção de individualidades.
É também explorada a capacidade dos bens produzirem sentido e construir representações de
suas identidades, bem como pelos recursos simbólicos da cultura de consumo. A formulação
de estilos de vida se torna fundamental nesse processo.
72

A busca pela diferenciação também desenha a relação entre “os jovens” e aqueles/as
que estão fora dessa marca. Como já mencionado, juventude enquanto virtude desejável está
para além da marca biológica da idade, entretanto este é um dos fatores que ajudam a marcar
distinções entre “os jovens” e os outros que são produzidos nesta dinâmica. Guilherme
Rodrigues Passamani (2015), em sua pesquisa de doutorado, investigou possíveis tramas entre
envelhecimento, memória e condutas homossexuais em regiões que não são caracterizadas
como grandes centros urbanos. Partindo das experiências de seus/suas interlocutores/as, todos
acima dos 50 anos de idade, o autor descreve diferentes estratégias formuladas por estes/as
sujeitos/as para vivenciar suas sexualidades e expressões de gênero, marcada por uma dinâmica
urbana singular, atravessada pela fronteira com a Bolívia, a Marinha, os marinheiros e o
carnaval. A temporalidade nesta pesquisa é sensibilizada pelas vivências, individuais, coletivas
e pelos eventos, como as “farras”, “fervos” e o “carnaval”, nem sempre em convergência com
tempos “rígidos”.
Aqui, nos interessa pensar como estas experiências conformam noções de
envelhecimento onde busca-se a aproximação com o ideal de juventude enquanto valor, ao
mesmo tempo que se afasta da ideia de velhice, como algo a ser evitado o maior tempo possível.
Marcadores que conformam um corpo ativo, em movimento, que está agindo, que vai para a
rua e ainda está disposto a aventuras no mercado erótico e afetivo, vão construindo estes corpos
que buscam manter-se jovens. Por outro lado, “o velho” é aquele que fica em casa, que já não
se movimenta como antes, que pode estar afetado por doenças e a iminência da morte. Este se
resguarda a rememorar suas façanhas no passado. Assim, a velhice surge como categoria de
diferenciação pensadas e atribuídas de formas singulares, apontadas por estes/as sujeitos/as e
rompendo com homogeneizações desse momento da vida, sendo um processo dinâmico e
complexo.
Estas elaborações perpassam as experiências se relacionando diretamente com estar
inserido nas dinâmicas urbanas, bem como nas atividades sociais, eróticas e afetivas. O trânsito
pela cidade e a presença na vida noturna de bares, boates e outros equipamentos de sociabilidade
surgem como um marcador temporal, onde a maior frequência é ligada a juventude, com maior
disposição física e de tempo livre, em contraponto a uma vida adulta, grifada pelas
responsabilidades do mundo do trabalho e demais obrigações que se acentuam no curso da vida.
Uma reelaboração do debate clássico entre público e privado surge com novos contornos:
As tentativas de permanecer jovem, administrando a vivência de uma
sexualidade com uma intensidade mais moderada, com mais cuidados, está
ligada a uma ideia de trânsito e circulação pelo espaço público. Esta noção de
público busca se contrapor ao privado, que é representado pelo “estar em casa”
73

em frente à televisão, que seria próprio do “ser velho”. Por que chamo a
atenção para esta questão? Porque, costumeiramente, a sexualidade é alocada
(com exceção do campo da prostituição) na dimensão privada. O meu campo
mostra o contrário disso. A sexualidade está no público. (PASSAMANI, 2015,
p. 208 e 209)

Entendendo as diferenças entre nossos campos de pesquisa, as descrições e reflexões


propostas pelo autor parecem ressoar em meu campo, trazendo outra face dos/das
interlocutores/as como público alvo, aqui neste trabalho se trata de um público necessariamente
“jovem”. Marcadamente pela faixa etária abaixo dos 30 anos, a todo momento são acionados
elementos que reforçam a ideia de juventude, como o próprio trânsito e uso do espaço público
durante as noites e madrugadas, inclusive em dias da semana que geralmente são marcados pela
rotina laboral.
Em um espaço com público predominantemente “jovem”, sujeitos e elementos que
fogem dessa lógica são estranhados. Ao chegar no La Luna e encontrar uma mesa composta
por homens que aparentavam ter entre 40 e 50 anos e serem heterossexuais, as pessoas que
estavam comigo, e depois a mesa ao lado, comentaram sobre como aquele grupo parecia
deslocado do cenário geral da praça. Esta observação, com alguma nuance de incomodo, servia
para marcar de alguma forma quais sujeitos se esperava estarem no bar durante seu
funcionamento, enquanto público. As mesmas reações não acontecem, por exemplo, com outros
atores que esporadicamente são vistos pela praça, como pessoas mais velhas que estão ali de
passagem, um senhor que com frequência vai ao bar procurar por latinhas, ou mesmo alguns
dos seguranças que circulavam pela praça.
Este desconforto também surge no campo de Passamani (2015), sendo relatado pelos
interlocutores que percebem as diferenciações marcadas em alguns espaços onde “os jovens”
predominam. Seja por não ter a mesma disposição para os festejos noturnos, por perceberem
que “não são mais jovens” ou sentir algum julgamento deste tipo, estes sujeitos passam a evitar
tais espaços, reelaborando suas formas de sociabilidade e preferências de estabelecimentos
voltados ao lazer.
Um ponto ressaltado aqui é como no mercado erótico de espaços como as boates, onde
corpos marcados pela juventude são os mais cobiçados, estes sujeitos têm poucas chances de
sucesso em suas empreitadas33. Por outro lado, o aumento de opções voltadas para públicos
específicos dentro do mercado segmentado que engloba expressões de gênero e sexualidades

33
Vale ressaltar que essa regra não é absoluta. Dentro do mercado erótico existem diversas estratégias que
potencializam o desejo e aumentam as chances dos sujeitos em suas investidas. Como exemplo, podemos pensar
a figura do “Daddy”, representada por homens mais velhos que acionam o marcador de idade como um diferencial,
uma ferramenta de sedução.
74

não hegemônicas, principalmente nos centros urbanos, permite que eles encontrem locais onde
suas possibilidades de interação eróticas e afetivas sejam maiores.
Nesse jogo de construção de identidade, consumo e estilo de vida, o público LGBTQI+
esbarra no espaço urbano e sua heterogeneidade a possibilidade de encontro com as diferenças,
mas também a possibilidade de aglutinar aqueles/as que compartilham características,
construindo lugares viáveis para expressão das múltiplas subjetividades. O La Luna aparece
como um desses lugares que fomentam outras narrativas sobre a cidade, que pelo
uso/apropriação do espaço da praça, pelo bar e por seu público, viabiliza moralidades não
hegemônicas, remetendo as “regiões morais” (PARK, 1967).
Esta não é uma experiência possível para todas as pessoas que se enquadram nesse
grupo. A própria localidade do bar, os preços praticados, o tipo de serviço oferecido e o perfil
dos/as sujeitos/as ali presentes demonstram isto. Fica nítido na predominância racial de
brancos/as e nas dificuldades relatadas por moradores/as da Zona Norte de frequentarem o
estabelecimento, o que também pode ser motivado pela falta de interesse, como aparece em
alguns comentários sobre o bar no Twitter, tento aprofundar este debate no último capítulo.
Pensar este recorte geracional é impulsionado pelas reflexões citadas e principalmente
pelo que é observado em campo. Se ser jovem surge como um marcador de diferenciação do
público, este passa a atravessar o próprio bar como um lugar que, dentre outras características,
se distingue de outros espaços na cidade por ser voltado ao público LGBTQI+. Essa é uma
relação dialógica que molda as percepções sobre os atores em cena, construindo mutuamente
espaço e público.
Dialogando com debate sobre reconfiguração dos lugares, conto com as contribuições
de Silva e Nascimento (2020). Os autores partem do exemplo da capoeira como forma de
ocupação urbana, transformando as finalidades dos espaços que não são, necessariamente,
planejados para este tipo de atividade. Por este viés, vejo proximidades nos sentidos de
ocupação e apropriação de espaços urbanos em nossos campos. Para os primeiros, a capoeira
surge como ação que povoa espaços sem uso específico, gerando novos sentidos e padrões de
circulação:
Assim, ocupar pela capoeira um espaço urbano – como o do viaduto ou do
mercado, aqui tratados como exemplos –, marcados pela degradação ou pela
inexistência de sentido de uso, é reconhecer a politicidade do ato de gingar,
para além de suas dimensões lúdicas ou artísticas. (SILVA, NASCIMENTO,
2020, p.56)

Frente as ausências do Estado ou do planejamento urbano que tende a excluir ou limitar


equipamentos de lazer a algumas áreas privilegiadas das cidades, os autores ressaltam o cunho
75

político de tais ocupações, que contestam formas impostas por macroestruturas, como o Estado
e o capital imobiliário, remodelando os espaços a partir das diversas apropriações.
Trazendo para o campo abordado nesta pesquisa, não somente o uso do espaço da praça
é reinventado, como os atores e atrizes que o fazem contestam normas sociais que utilizam da
cidade como palco para sua materialização. Desta forma, podemos visualizar através do La
Luna e do seu público uma complexidade de corpos e experiências, expressões de gênero e
sexualidade não hegemônicas, uma apropriação do espaço que trazem o lazer e a sociabilidade
enquanto esferas da vida atravessadas por uma nuance de “politicidade”.
2.6 Acordos, motivações e gestão de riscos na ida ao bar.

O bar é permeado pelas ações do público. Como já pontuado em alguns momentos do


texto, o movimento, o fluxo e as dinâmicas que vão emergindo nas noites são compostas pelas
ações dos/das atores/atrizes ali presentes. Desta forma, considero pertinente explorar o que
motivou aquelas pessoas a frequentarem o bar, o que estão fazendo, de quais formas e o que
pensam sobre. Abordar estas questões envolve atentar aos corpos e performances em interação,
fato que ganha outras conotações e implicações pela presença do coronavírus.
Inicialmente, as motivações aparecem nas narrativas do público de formas diferentes.
Algumas pessoas não mencionam a quarentena quando são perguntadas sobre ir ao bar. Para
estas, socializar com amigos, “sair de casa”, “relaxar”, “curtir um pouco”, são motivos que se
unem a algumas qualidades do espaço como ser um ambiente aberto, amplo e ventilado.
Também é apontado a acessibilidade ou proximidade do lugar, principalmente para moradores
da Zona Sul. Ainda surgem outros motivadores, como ser “onde a galera tá vindo”, “dá pra
fumar um (beck) tranquilo”, ou por já conhecer o lugar como acolhedor para pessoas LGBTQI+.
Para aqueles/as que mencionam a pandemia quando são questionados/das sobre o que
motivava a ida ao bar, as respostas foram bastante semelhantes às citadas acima. Entretanto,
algumas pessoas buscavam articular de forma mais elaborada, em vários níveis, as razões pelas
quais estariam “quebrando a quarentena”. Assim, frequentemente era mencionado o longo
período de tempo e o compromisso com manter o isolamento até parecer inviável permanecer
em casa, uma das moças que tive contato no campo me relatava isto:
Olha, nos primeiros meses eu tava fazendo tudo certinho, era máscara, álcool,
limpava as compras e só saia de casa pra ir no mercado ou alguma emergência.
Só que foram passando os meses e eu trancafiada em casa já tava ficando
doida, ai comecei a ir na casa de amigas e só depois de muito tempo que saí
pra um bar. E só vim aqui porque como é aberto e as mesas estão longe eu
acho menos arriscado. Também não tô sendo o “terror da OMS” saindo pra
tudo quanto é canto, pra festa com muita gente que o povo não bota uma
máscara por nada. (Diário de campo, junho de 2021)
76

Jovem, branca, universitária e morando com outra amiga em Capim Macio, bairro da
classe média natalense, sua fala ilustra bem outras interações que consegui fazer. Em sua
argumentação, ela parece tentar construir justificativas para sua ida ao bar, ressaltando como
tinha mantido a quarentena até onde foi possível. Neste sentido, romper o isolamento social era
menos grave no seu caso por não ser o “terror da OMS”34 e não frequentar festas com muitas
pessoas e afins.
Quando a pandemia era mencionada, eu buscava entender melhor como aquelas pessoas
estavam articulando essa saída de casa. A forma como as narrativas me eram apresentadas
carregavam uma série de esforços e estratégias para tornar as idas ao bar, ou algum espaço
parecido, o menos arriscado possível. Assim, ir com menos frequência ao La Luna, sentar em
lugares mais afastados, não transitar muito pelas mesas, dar preferência a estar com grupos
limitados de amigos, evitar contato físico, entre outras ações, eram acrescentadas as
recomendações gerais feitas pelos órgãos de saúde. Se manter o isolamento social de forma
mais rígida não estava sendo possível, estes/as sujeitos/as optavam por sair, mas de forma
consciente, o que estava sendo proposto era uma gestão dos riscos, de contrair ou transmitir o
coronavírus, que não rompia completamente com os modelos e protocolos de segurança
propostos por instituições como a OMS.
Nessa gestão de riscos, além das ações individuais, dois aspectos ganham força: a
confiança e a vigilância dentro dos grupos. Sobre o primeiro aspecto, a confiança nas pessoas
que estavam dividindo a mesa ou em contato mais aproximado apareceu de diferentes formas
quando perguntava se a pessoa estava vindo acompanhada ao bar e como ela se sentia em
encontrar com outras pessoas fora do convívio direto. Estar entre amigos nos quais você credita
algumas convicções surgia como motivo para poder vivenciar aquele momento com menos
receios, “ah, mas eu tô saindo com amigos que também estão respeitando a quarentena e saindo
poucas vezes, só entre a gente mesmo” foi uma das respostas que recebi.
O segundo aspecto está diretamente relacionado ao primeiro, a vigilância do grupo sobre
os indivíduos aparece como mecanismo de controle que visa coibir e repudiar ações que fujam
dos parâmetros toleráveis dos grupos para as “quebras” da quarentena. Surgem tensionamentos
sobre o convite ou a presença de sujeitos/as que não estejam cumprindo com acordos coletivos
estabelecidos para amenizar os riscos por estar no bar. Esses estavam tendo contato aproximado
com outras pessoas. Assim, a amizade é embebida em relações de aproximação e afastamento

34
Vejo com frequência esta expressão sendo utilizada, principalmente nas redes sociais, para apontar de forma
acusatória pessoas que estariam quebrando os protocolos estabelecidos pela OMS e participando de aglomerações.
77

como reflexo individual das várias formas de gestão de risco. Tolerância, repúdio, liberdade e
repressão passam a se intensificar nas relações que vão sendo traçadas nos espaços públicos,
como lugares de encontro, de sociabilidade que precisam ser reconfiguradas frente a conjuntura.
Vale ressaltar que, nos casos abordados, boa parte dos/das interlocutores/ras estavam
estudando ou trabalhando em casa. Entre 2020 e 2021, muitas ocupações transitaram entre
modelo remoto e presencial. O trabalho apareceu poucas vezes como mais um motivador para
quem estava na praça: “ah, eu já preciso ir trabalhar presencial a semana toda não tem diferença
estar aqui”. O que se observava é que, para as pessoas que estavam trabalhando in loco, parecia
haver uma separação entre o trabalho e o lazer, onde a “quebra” do isolamento para o segundo
precisava ser justificada. Cabe também atentar que existiram ocupações e parcelas da população
que não tiveram em momento algum da pandemia a possibilidade de manter o isolamento
social.
Ponderando sobres estas ações individuais e coletivas na gestão dos riscos que envolvem
a ida ao bar, acredito ser possível traçar alguns paralelos com as contribuições de Michael
Pollak em “Os homossexuais e a AIDS: sociologia de uma epidemia” (1990). Em sua
abordagem, o autor explora as relações estabelecidas entre a doença e os sujeitos, bem como as
narrativas que vão construindo a epidemia envolvendo o Estado e as ações institucionais de
controle e prevenção, os saberes médicos, a mídia hegemônica e as ações das pessoas.
Atravessados pelas concepções de grupos de riscos, a descriminação e a recente liberação
sexual, os homossexuais estariam posicionados entre as liberdades civis e as responsabilidades
individuais e coletivas, fazendo necessária a gestão de risco que circundava as práticas
homossexuais, atentando para como outros marcadores sociais, por exemplo, classe, nível de
instrução e ocupação, interferem no acesso a estas práticas.
As contribuições do autor que dialogam com esta pesquisa estão concentradas no
capítulo 2, onde são traçadas reflexões sobre os riscos e a conduta homossexual. Frente ao
perigo iminente de contágio da doença, observando seu caráter de transmissão sexual, e as
limitadas formas de recursos terapêuticos para possível cura, coube ao grupo desenvolver
técnicas, estratégias e uso de ferramentas para reduzir as chances de contágio e transmissão
ligadas à conduta homossexual. Acionando posturas diferentes, as gestões dos riscos perpassam
as precauções que visam à diminuição das situações de exposição, como reduzir o número de
parceiros e a frequência em locais de trocas sexuais, e as que suprimem a transmissão do vírus,
como o uso do preservativo e o sexo sem penetração. Nas palavras do autor “Mais do que a
uma adaptação das práticas sexuais ao risco de contágio, assiste-se a uma verdadeira
78

reconstrução das relações sociais, a uma modificação das identidades sociais, da vida cotidiana,
das imagens e das referências homossexuais. ” (POLLACK, 1990, p.76)
Observando as diferenciações entre os contextos de pesquisa, o que busco traçar são
alguns apontamentos entre convergências na ideia de gestão individual ou de grupo dos
contextos pandêmicos e epidêmicos. Cabe ressaltar as estratégias que os/as sujeitos/as articulam
para lidar com a realidade do risco e a possibilidade do contágio/transmissão, entendendo que
outros fatores influenciam esta possibilidade, como o nível de instrução das pessoas e a
viabilidade de acesso e execução das medidas de prevenção. Assim, sociabilidade nos espaços
públicos, os contatos, aproximações e as interações sexuais entre sujeitos/as são atravessados
pelas tensões do contágio/transmissão. Pensando o coronavírus e suas formas de propagação se
torna ainda mais complexo já que uma de suas características é a facilidade de contaminação
através do ar e superfícies infectadas.
De certa forma, como apontado por Pollack, lidar com o vírus envolve mudanças de
comportamento. Tratando de populações específicas, se faz necessário pensar a mobilização de
recursos e estratégias capazes de enquadrar o coletivo dentro de medidas comuns, efetuadas por
diversos atores como o Estado, organizações, movimentos sociais e os próprios grupos,
reconfigurando relações sociais. A responsabilização sai de uma esfera macro e passa para
dimensões individuais, recaindo sobre os/as sujeitos/as o peso de lidar com a pandemia. Em
meu campo, o comprometimento com a própria saúde e das pessoas com as quais se está
dividindo a mesa, provavelmente amigos/as, acionam outros pesos nesta relação, fazendo com
que estes indivíduos permaneçam adotando certas medidas para diminuir as chances de
propagação.
Nesse contexto, a confiança mútua age em uma possível reconfiguração da dicotomia
espaço público versus o privado. A tentativa de construir a praça enquanto espaço seguro
mobiliza características da “casa”35 (DAMATTA, 1997), enquanto a afasta das noções da “rua”
que implicam em perigo, risco. Isto só se torna possível através da vontade coletiva dos grupos
de amigos, e no aspecto geral do público, na adoção das medidas estabelecidas durante aquela
noite no bar, mas também é necessário seguir dentro do tolerável no período antes dessa ida e
do possível contato com as outras pessoas.
Ainda pensando o corpo em campo, surge a reflexão sobre estarmos disponíveis ou
vulneráveis às múltiplas situações que podem aparecer junto aos/as sujeitos/as naquele espaço.

35
Aqui aciono as características ligadas a casa propostas por Damatta, mas entendo que este espaço não é encarado
de forma homogênea. Por exemplo, a casa pode ser o espaço da violência ou do perigo para pessoas LGBTQI+,
ou para mulheres quando nos deparamos com os assustadores indicadores de violência doméstica.
79

Estar vulnerável remete a uma série de riscos e perigos que permeiam a experimentação de
alguns lugares pela cidade, dentre eles a violência urbana, a exposição ao coronavírus e,
considerando as características do público, a discriminação contra expressões de gênero e
sexualidade não hegemônicas. Estar vulnerável parece ressoar o pensamento de “corpos
passivos” (SENETT, 2003), suscetível as afetações urbanas impostas e reagindo de formas
neutras e automáticas, com movimentos predefinidos, como evitar o espaço público.
Estar disponível parece evocar de forma mais nítida a gestão de riscos. Existe um teor
de consciência sobre o contexto e uma vontade de se inserir nele, entendendo e administrando
os cenários possíveis. Este me parece ser o caso comentado acima, onde a moça tem noção da
conjuntura pandêmica e mesmo assim se dispõe a estar na praça, compartilhando aqueles
momentos com outras pessoas. Entretanto, é avaliando uma série de critérios, feitos
individualmente e coletivamente pelo público e pelo La Luna, que se busca garantir
minimamente uma sensação de segurança. Um corpo que transita entre condutas prudentes e
rompimentos com alguns modelos/protocolos de segurança.
Apesar de propor essa diferenciação entre as duas categorias, o que observo em campo
é uma complexa combinação de ambas. Ter noção da vulnerabilidade e gerir as ações,
individuais e coletivas, perpassam as experiências dos diversos sujeitos naquele espaço,
trazendo à tona as nuances entre disponível e vulnerável. Esse movimento não é algo exclusivo
do La Luna, como colocado acima, as exposições, escolhas e cuidados atravessam outras áreas
da vida dessas pessoas, influenciando em suas práticas. Com isso, temos como exemplo a
exposição no mundo do trabalho podendo relativizar a frequência em espaços de lazer e
sociabilidade. Vale lembrar que não são apenas os sujeitos que estão no controle dessas tomadas
de decisão, dessa forma evitamos cair em uma responsabilização individual que não ajuda na
compreensão do contexto em uma perspectiva ampliada.

2.7 “ A gente se encontra lá”: Coletividade como forma de estar no espaço

Outra característica presente na dinâmica do bar é a coletividade. Sendo a praça um


espaço para o encontro e permanência, estar em grupo é quase uma regra não dita. Dificilmente
se encontra alguém sozinho pela praça e é pouco provável que permaneça assim durante toda a
noite. Estar rodeado por mesas com grupos dá a sensação de que se alguém está sozinho
possivelmente está esperando por outras pessoas para formar um grupo ou, no mínimo, uma
dupla/casal. Duas experiências em campo me ajudam a pensar esta temática de forma concreta,
em ambas estar sozinho no bar serviu como ponto de abertura para as interações.
80

O primeiro caso ocorreu em novembro de 2020, ainda nas primeiras semanas do retorno
das atividades do La Luna. Sem ter conseguido articular alguma companhia para ir ao bar decidi
seguir sozinho. Era uma sexta-feira, mas o público ali ainda era pequeno. A quantidade de gente
na praça só começou a aumentar semanas depois. Algumas mesas estavam espalhadas dentro
do cercadinho e poucas pessoas transitavam por fora. Minha amiga, Suzanne36, estava
trabalhando no balcão do bar e passei boa parte do tempo observando daquele ponto, enquanto
conversava com ela entre assuntos pessoais e que envolviam o bar. Além disso, tentava dar
algumas voltas principalmente na parte de trás da praça, onde estavam duas mesas.
Entre ir e voltar ao balcão, permanecer em silêncio em alguns momentos, sem estar
consumindo nenhuma bebida ou fumando, comecei a notar que um dos rapazes da equipe, que
trabalha na cozinha do bar, passou a ir ao balcão e olhar de forma disfarçada em minha direção.
Algumas vezes pude perceber seu olhar de estranhamento e leve desconforto. Já próximo do
fim da noite, ele chama minha amiga que estava dentro do quiosque para falar algo. Quando
isto ocorreu decidi voltar para casa, aproveitando que já tinha passado algumas horas que estava
em campo. Ainda nesta noite, Suzanne me relatou, pelo Telegram, que o rapaz tinha estranhado
“esse homem aí todo mal-encarado, sem beber nada parado no balcão”. Ele ainda teria dito: “se
for problema, me avisa!”. Rindo da situação, ela me contou que tinha explicado o que eu estava
fazendo e que não precisava se preocupar pois éramos amigos.
O segundo caso, em 25 de junho de 2021, o contexto era bem parecido com o anterior.
Estava em casa estudando, já era de noite quando pego o celular e vejo por um story no
Instagram que o La Luna iria abrir. A chamada era referente ao “são joão” do bar, já que não
tinha aberto no dia anterior e normalmente se comemora na véspera (24/06), decidi ir ao bar
para ver como as coisas estavam. O horário foi bem parecido com o das minhas pedaladas, mas
encurtei o caminho para ficar no bar e acompanhar o fim da noite. Chegando lá logo percebi a
decoração temática com bandeirinhas na parte coberta do quiosque, apenas isso mantinha
ligação com a temática divulgada. Fui ao bar imaginando um cenário diferente, pois, na noite
anterior tinha acompanhado durante a pedalada como o evento acontecia nos bares pelo trajeto,
seguindo o imaginário que traz elementos como a decoração, vestimentas, comidas e repertório
musical, tudo dentro da temática junina.
Além das bandeirinhas, só dois homens vestiam camisas quadriculadas, que também
aludem ao momento. A mesma amiga estava trabalhando no balcão, decidi dar uma volta pela
praça, cumprimentar de longe algumas pessoas e depois fui falar com ela. Conversamos um

36
Como mencionado anteriormente, compartilho alguns interesses de pesquisa com esta amiga. O La Luna também
aparece em sua investigação de mestrado que aborda identidades lésbicas na cidade.
81

pouco entre um atendimento e outro, desta vez não fiquei tanto tempo parado no balcão, mas
sentei no banco que fica ali perto para observar, já que a maioria das mesas estavam na parte
frontal da praça. Ir sozinho faz com que fique um pouco mais centrado no papel de observador,
tentando gerir a dimensão do sentir no campo.
A música tinha transitado de forró para pop e, já no fim da noite, algumas de MPB, mais
lentas, se somavam ao clima e ao céu pouco iluminado. Próximo do horário de ir para casa,
estava sentado no banco tomando algumas notas no celular quando um rapaz me abordou
oferecendo “cookies canábicos”37, um dos produtos culinários típicos do lugar. Após eu ter
recusado a oferta e ter desejado boas vendas, ele mudou o rumo da conversa e perguntou se
estava tudo bem comigo, dado que tinha me visto sozinho pelo bar fazia algum tempo. Mostrou-
se, ainda, bastante solidário com “minha situação de solidão” dizendo conhecer muita gente por
“rodar” sempre pelo bar oferecendo seus produtos, concluindo que, caso quisesse, eu poderia
sentar com ele e os dois homens de camisa quadriculada.
Tentei explicar para ele o motivo de estar sozinho e que não era um problema para mim,
falei um pouco de minha pesquisa já na tentativa de sinalizar um próximo contato, entendendo
ele como um potencial interlocutor. Avaliando o contexto, por ainda não estarmos vacinados e
por saber que tanto o vendedor como os outros dois homens que estavam na mesa
frequentemente circulavam por diversas mesas, precisei recusar o convite, pois, aquela me
pareceu uma situação de potencial risco de transmissão/contágio do coronavírus. Fui para casa
pensando nesse contato e de como era o único sozinho naquela noite.
Abordo estas situações para sinalizar como o estranhamento ao estar sozinho reforça as
dinâmicas em grupo tecidas naquele lugar. Na primeira situação, não apenas estar sozinho
causou desconforto e deixou o atendente desconfiado, mas o fato de não consumir bebidas e a
proximidade com o balcão fizeram com que ele fosse buscar entender a situação, oferecendo
uma possível ajuda à minha amiga que estava trabalhando ali. No segundo caso, além do
estranhamento, calhou ao vendedor tentar romper com minha “solidão”, tentado saber como eu
estava e se queria compartilhar a mesa junto com outras pessoas, mesmo sendo um
desconhecido.
Assim, criando rupturas em marcos da modernidade, e do capitalismo, que se
manifestam no espaço público como o individualismo, se agrupar e compartilhar a experiência

37
Essa é uma das opções de comidas “mágicas” que aparecem pela praça. No geral, é uma massa de biscoito
misturada com maconha e assada, podendo ter algum recheio de chocolate, creme de avelã, doce de leite entre
outras. Por sua “potência” e pelos ingredientes costuma ser mais caro que os famosos “brisadeiros”, custando por
volta de R$15,00 reais.
82

da noite no bar faz com que estes/as sujeitos/as atomizados reforcem vínculos e aspectos que
os unem e estabelecem particularidades enquanto grupo, inclusive no processo de se distinguir
de outros presentes naquele local. Estar sozinho pode deslocar as pessoas que não se
enquadraram nas dinâmicas grupais para posição de estranho, como foi meu caso nos eventos
narrados acima.
Podemos notar que esse estranhamento do “estar sozinho” não é exclusivo do La Luna,
surgindo em outros contextos onde estar em grupo, ou acompanhado, permeia a dinâmica do
espaço. Essa também pode ser encarada como uma estratégia de segurança para o público, que
em certa medida consegue reconhecer os frequentadores e identificar quem é “diferente”
naquele espaço, tecendo formas de controle social. Outra possibilidade que estava presente é
que essas mecânicas de grupo possibilitavam contatos, flertes e paqueras entre os grupos
partindo do reconhecimento dos indivíduos e outras afinidades.
Em minhas conversas com o público, sempre que questionava sobre estar
acompanhado/a ou sozinho/a recebia a afirmativa de estar em grupo, por vezes me era apontada
a mesa onde a pessoa estava sentada, mostrando suas companhias. Era comum respostas como
“eu sempre venho com amigos” e “se eu não marcar com alguém acabo encontrando pessoas
por aqui”. Uma interlocutora me falava sobre como, quase sempre, ia ao bar para ver gente,
esbarrar com alguém conhecido, mas quando queria ficar sozinha adotava uma outra postura:
Quando eu quero ficar sozinha mesmo venho caladinha no balcão, compro a
cerveja e vou sentar bem longe do movimento. Como o pessoal (bar) aqui me
conhece, deixam eu fazer isso. Aí fico no meu canto, fumo meu beck bem
tranquila, bebo a cervejinha e quando da minha hora passo no bar para pagar
a conta e volto para casa. Mesmo assim, ainda tem vezes que encontro alguém
e converso rapidinho antes de sair. (Diário de Campo, Setembro de 2021)

Os fluxos, permanências, trocas e contatos estabelecidos por uma gama de atores e


atrizes, em suas variadas performances, compõem aquela paisagem social que se constrói em
temporalidades específicas, “as noites do La Luna”. As singularidades dessas experiências, com
seus grupos, estéticas e musicalidades ilustram a mutabilidade própria do espaço. Outra vez
enfatizo que o movimento e a mudança são características que surgem no campo, logo as
heterogeneidades presentes no bar nos afastam de tentativas de engessamento das experiências
possíveis no e com aquele lugar.
Isto dito, contestando possíveis prescrições urbanas que regem um único uso
predeterminado do espaço, estas outras experimentações apontam para outras possibilidades de
fazer cidade. Por este caminho, o que encontramos quando saímos de uma visão distanciada,
macro e totalizante das cidades, ainda presa a dicotomia entre forças opressoras e grupos
83

oprimidos, e nos aproximamos do cotidiano, da micropolítica do fazer e remodelar o espaço


urbano, são múltiplos meios de urbanização que reconhecem a presença ativa de outros atores
sociais.
Estes processos são cercados por dissidências, disputas e discordâncias de projetos que
estruturam a experiência citadina e provocam movimentações que geram constantes
transformações. Em tantos contextos possíveis38, como abordados neste trabalho, passam de
reestruturação de bairros até viabilidade de espaços de lazer. A busca pela imposição da
homogeneização tenta camuflar estes processos:
A espetacularização do urbano (gerada pelas ações do capital financeiro, das
mídias e dos governos locais), portanto, fabrica cidades que buscam mobilizar
o signo da pacificação, do completo consenso (uma vez que é essa a condição
de “atrativo” comercial, cultural e turístico, por exemplo, a ser conquistada e
defendida), excluindo de qualquer campo de visibilidade a manifestação
simbólica ou material dos conflitos, das disputas e dos dissensos que
produzem a experiência citadina, por excelência.(SILVA, NASCIMENTO,
2020, p.43)

Quando pensamos todo este conjunto que perpassa o espaço urbano é possível dar outro
direcionamento ao que Senett (2003) constrói sobre “corpos passivos”. Partindo das
experiências acima citadas, principalmente do campo, o que encontramos são corpos que se
movimentam e constroem diálogos com o espaço, se fazendo ativos em contextos e
temporalidades específicas, rompendo com a noção de neutralidade ou passividade. Estes
atores, por meio de seus corpos e apropriações modelam os lugares, se deixam afetar e afetam
nesta constante construção. Com isto, não afirmo um rompimento completo com a ideia de
corpo passivo, mas de uma reconfiguração que estimula estes corpos a transgredir este estado
de passividade momentaneamente.
Estes processos de formação dos espaços na cidade marcados pelas utilizações, instigam
um interessante debate sobre como estes locais acabam absorvendo características próprias dos
públicos ou de situações que os têm como palco para sua consumação. Assim, vão sendo
constituídas referências outras que se unem a perspectiva geográfica e ao imaginário social, que
passam a adjetivar espaços com atributos positivos e negativos. Nisto, surgem ruas perigosas
ou violentas, praça com clima familiar, a praia que é point dos “maconheiros” e outros exemplos
que vão se constituindo neste processo de quase mimese entre os atores, eventos sociais, formas
de sociabilidade e os locais.

38
Outro exemplo desse conflito é a discussão sobre o plano diretor de Natal, que tem mobilizado diferentes atores
sociais em sua formulação. Consultar em: https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/forum-direito-a-cidade-
e-a-revisao-do-plano-diretor-de-natal/
84

Pensando o contexto de São Paulo, Bruno Puccinelli (2016) analisa a produção da rua
Frei Caneca enquanto “rua gay” que possibilita vivências e trânsitos homossexuais na região
central da cidade. Esta atribuição à rua e a outros equipamentos na região se dá por meio de
vários processos que passam pela frequência no espaço por este grupo, que é acompanhada pela
crescente oferta de empreendimentos imobiliários e estabelecimentos do mercado segmentado
voltados aos gays. A formação deste nicho bem localizado segue o curso dos processos de
gentrificação e generificação dos espaços da cidade, tornando-os mais elitizados e com uma
presença mais delimitada de expressões de gênero que passa a legitimar uma expressão
homossexual masculina, em contraponto a uma heterossexualidade masculina que podem ser
invasivas.
Seguindo este caminho, entendo que a presença do La Luna e do seu público, no
decorrer dos anos, foi atribuindo características à Praça da Guerreira que ocasionou um
imaginário que aproxima a praça do público LGBTQI+. Assim, principalmente nos dias/noites
que o bar está funcionando, o lugar cria rupturas na lógica hegemônica que subentende a
cisheteronormatividade como característica do espaço urbano, legitimando outras expressões e
experiências.
A influência do bar e sua relação com a praça começam a atrair outros estabelecimentos
que compartilham com ele alguns elementos como seu público ou parte da agenda defendida.
Esse me parece o caso do Guima Salon, um salão especializado em cabelos crespos e cacheados,
abordando em algumas de suas iniciativas debates sobre representatividade, beleza e cuidados
direcionados à população negra. Em maio de 2021 o salão inaugurou sua nova localização, na
Alameda das Acácias, realizando um evento em parceria com o La Luna. A relação entre esses
lugares é reforçada em outros momentos, inclusive nas redes sociais onde o salão costuma usar
o bar como referência para seus clientes.
Retornando a praça, sua caracterização é constantemente formulada e está diretamente
ligada ao bar e seu funcionamento. Está nítido que o La Luna é o principal motivador para a
presença dos/das jovens na praça, mesmo entre aqueles que não consomem dele: é a sua
atividade que arquiteta as noites naquele espaço. Este fato ficou marcado durante o período no
qual o estabelecimento não pode abrir devido às restrições das medidas de enfrentamento ao
coronavírus. Nesse intervalo, o espaço se transformou e em certa medida foi descaracterizado,
tendo em vista sua relação com o bar, tornando-se um lugar de passagem, onde poucas
permanências podiam ser observadas, o que contrasta com o cenário de funcionamento do
estabelecimento.
85

Mesmo com a possibilidade de frequentar o espaço, o que encontrei durante as pedaladas


de bicicleta, no horário que o La Luna costuma funcionar, foi um lugar completamente
diferente. Poucas vezes alguém estava pela praça, geralmente duas ou três pessoas. A falta de
público acarretava a ausência de movimento, fluxo, que marca a experiência do bar. A baixa
iluminação e a falta de manutenção do local transformavam aquele cenário em pouco
convidativo para permanecer.
Como apresentado anteriormente, esse contexto contrasta com o que encontrei durante
as observações em 2018 e 2019, onde a presença do estabelecimento modificava os arredores,
colaborando na sensação de segurança e permanência naquele lugar. Na pesquisa anterior
(Santos, 2019), alguns moradores do entorno mencionaram como o bar transformava aquela
localidade fazendo um espaço que antes era entendido como perigoso por ser uma praça com
pouco uso e baixa iluminação, sendo até evitada, e passou a ser uma referência, uma rota mais
segura para transitar.
Acredito que seja necessário ressaltar que esses processos de qualificam e reconfiguram
os espaços partindo dos/das sujeitos/as e suas ações são acompanhado por uma maior abertura
nas formas de produção de conhecimento no âmbito acadêmico em diversas áreas. Para além
da recepção de investigações que buscam distintas configurações da cidade, temos também a
inserção de novos grupos que passam a ocupar lugares enquanto pesquisadores/ras adicionando
uma multiplicidade de perspectivas e interesses.
É no encontro da praça, do bar e do público que podemos observar a manutenção das
caracterizações presentes no imaginário local, de quem frequenta e dos moradores da
redondeza. Este processo, bem como o próprio funcionamento do bar, se dá dentro das disputas
urbanas já mencionadas. A relação da praça com seu entorno também se faz pelas
diferenciações. No próximo tópico, abordarei a discussão acerca das fronteiras simbólicas e da
música como exemplo dessa experiência.

2.8 Fronteiras e sonoridades: O espaço e suas disputas

A sonoridade é um aspecto interessante que se fez presente desde antes da pandemia. A


produção de diversos sons, como as caixinhas portáteis, com playlists próprias, servem também
como uma forma de delimitar pequenas zonas onde os grupos conversam, compartilham
bebidas, cigarros, reagem as músicas, acompanhando parte da letra, gesticulando e dançando.
Assim, os lugares vão sendo estabelecidos pelas pessoas e por ações que demarcam grupos que
86

por vezes são distinguíveis pelo estilo musical, como o pop, o brega funk 39, o rap, o funk, o
forró, a MPB, que tocam no bar, nas mesas e nos grupos fora do “cercadinho”. Os estilos nas
vestimentas e acessórios, a estética corporal, os corpos e os gestos desenvolvidos pelo público
corroboram com as distinções entre os grupos.
Entretanto, as sonoridades não se limitam as músicas produzidas por aparelhos. Alves
(2015), propondo pensarmos paisagens sonoras, recuperando a produção de Schafer (1991),
indica que essas refletem o desenvolvimento industrial e tecnológico, sendo integradas por
diversos elementos sonoros. Assim, “a paisagem sonora se refere a um campo maior e mais
extenso dos fenômenos acústicos, onde habitam uma série de manifestações sônicas de qualquer
tipo ou natureza passível de estudos, medição e avaliação” (ALVES, 2015, p.6).
Partindo do campo, muitos estímulos auditivos perpassam a praça, como o constante
deslocamentos de veículos na BR-101, com buzinas, motores, sirenes, o som do vento passando
pelas árvores, o caminhar das pessoas e suas conversas. Também estão presentes as nuances de
silêncio nos espaços mais periféricos daquele local. A instância sonora auxilia na assimilação
de dinâmicas particulares, como as do bar, porém se expande para aquelas mais amplas, como
da própria cidade.
Isto posto, a complexidade sonora que atravessa o campo se mostra nas formas pelas
quais os sons são produzidos e se relacionam, compartilhando o espaço. Estas sonoridades
também afetam a dinâmica do bar, como já abordado, com as reações do público compondo a
“vibe” das noites podendo ir das mais calmas até as mais agitadas. Estes estímulos podem
ultrapassar os limites físicos da praça, como a BR-101, via expressa que adiciona uma sensação
de velocidade ao mesmo tempo que relembra o contexto urbano que a praça se insere.
Em uma quinta-feira, com o bar bastante tranquilo, com poucas mesas ocupadas, uma
batida entre uma moto e um carro que passavam pela via mencionada gerou um barulho alto,
causado pelo impacto e o acionamento dos freios dos veículos. O evento chamou atenção de
quase todas as pessoas, transformando, por certo tempo, o clima da praça, seja pela surpresa do
ocorrido ou pela preocupação e curiosidade de algumas pessoas que correram até o local,
tentando entender o que tinha acontecido e prestar algum suporte. Por sorte, ninguém teve
consequências graves e logo a polícia foi acionada para auxiliar na situação. O clima na praça
foi retomando ao que estava antes.
Alguns sons podem ser conflitantes. Em uma das noites de sábado após uma
manifestação contra o Presidente Bolsonaro e a forma como o governo federal estava gerindo

39
Estilo musical que mistura o eletrobrega e o funk carioca. Surge em Recife – PE e ganha destaque nacional em
2018 com a música “envolvimento” de MC Loma e as Gêmeas Lacração.
87

a pandemia, em agosto de 2021, com maior quantidade de público que o de costume, um


conjunto de três mesas foi formado com um grande grupo no entorno, todos homens brancos, a
maioria com corpo padrão40, levemente musculosos, com shorts e camisetas de botão
estampadas. Pouco tempo após formarem esta grande mesa, fora do cercadinho, na parte frontal
da praça, ligaram uma caixa de som, com potência igual ou maior da que é utilizada no bar, e
colocaram músicas eletrônicas do gênero house.
O som do bar que também estava ligado, tocava músicas que variavam entre pop
nacional, internacional e brega funk. As duas caixas, que tinham volumes altos o suficiente para
cobrir toda parte da frente da praça, pareciam disputar o espaço, se misturando e envolvendo as
pessoas que estavam por ali. Pouco mais de 15 minutos nesta quase batalha de caixas, o som
do estabelecimento foi desligado e o house permaneceu, como se naquela noite aquele fosse o
“som oficial”, com a playlist selecionada por aquele grupo.
Na parte de trás, próximo aos banheiros, tinha outra caixinha tocando, bem menos
potente, que não parecia entrar na disputa já que o volume era bem menor e a propagação da
caixa do house não chegava lá com tanta intensidade. Já neste grupo, com duas mesas e pouco
mais de oito pessoas, existia maior presença de pessoas negras, alguns casais heterossexuais,
mulheres com vestidos colados ao corpo, marcando suas curvaturas, e outras com shorts jeans
e blusas. Já os homens usavam roupas mais largas, com bermudas, camisas e bonés,
gesticulavam com movimentos mais duros e contidos, no geral não eram musculosos como o
outro grupo descrito acima. Em alguns momentos os casais aproveitavam para executar alguns
poucos passos de dança, se movimentando bem próximos. Nesse grupo, o estilo musical foi
majoritariamente o brega funk, passando por algumas letras populares naquele período do funk
carioca, paulista e piseiro/forró. Estes sons conseguiam coabitar a praça sem muito conflito pela
distância física.
A complexidade dessa paisagem sonora perpassa as negociações entre as sonoridades
produzidas e os próprios sujeitos, como no caso do desligamento do som do La Luna. Além
disso, as formas como os grupos vão se distribuindo e se fixando na praça revelam
aproximações e distanciamentos, era comum presenciar interações com as músicas tocadas nas
caixinhas e os grupos no entorno por meio de danças, movimentações do corpo, acompanhar
através do canto ou mesmo tecer comentários. Dessa forma se torna possível a presença de
múltiplos estímulos sonoros, transitando entre consonâncias e conflitos.

40
Socialmente corpo padrão é entendido enquanto aqueles que se aproximam estética e performaticamente dos
arquétipos de beleza ocidental, centrados em corpos brancos, magros e fortes.
88

O fato de ser um espaço aberto também ajuda a dissipar bem os sons ali produzidos, o
que possibilita esta coexistência dos sons de forma mais harmoniosa, dependendo das distâncias
estabelecidas. Não só entre as músicas, por vezes mesas ou grupos trocam de lugar para poder
evitar conflitos sonoros. Um bom exemplo é que quem vai conversar prefere sentar mais
afastado do balcão do bar, onde as misturas de sons e da música dificulta a escuta e a
compreensão, o que acaba exigindo mais de quem está falando. Durante uma das conversas,
perguntei a uma interlocutora se ela tinha escolhido o lugar que estava sentada, na frente do bar
já próximo aos limites das cordas, que me respondeu da seguinte forma: “Eu gosto de sentar
aqui na frente, mas quando está assim (aponta para mesa mais próxima ao balcão) perto do bar
é ruim pra conversar, a pessoa tem que gritar mais que o som (risadas) ”. As pessoas da mesa
apontada por esta moça aproveitavam a proximidade do som para levantar e dançar em algumas
músicas.
O silêncio também ganha espaço se pensarmos grupos que ficam nas margens da praça,
próximo do paredão, o som geral do bar mal consegue chegar até lá e os sons que esses grupos
produzem também não conseguem se propagar para longe, o que garante maior privacidade e
liberdade, seja para conversas íntimas ou para “curtir” seu som de forma mais tranquila e sem
muitas interrupções. Em geral, nessas margens, principalmente na parte de trás da praça, as
sonoridades se concentram próximas aos grupos, fazendo com que nos espaços vazios apenas
o som de fundo produzido pelo entorno seja escutado. Estão mais presentes as conversas, os
ruídos urbanos e poucas vezes alguns sons produzidos pela igreja vizinha.
Ainda pensando na propagação dos sons e como estes se relacionam, é possível traçar
um nexo com os grupos e ações que os emitem. Se naquele cenário existem fronteiras físicas
bem delimitadas, como o espaço da praça, o cercadinho com as cordas, o próprio quiosque
como espaço para equipe do bar, outras delimitações são constantemente produzidas e
repensadas durante as noites. Aqui penso nas fronteiras simbólicas, que alertam e marcam os
espaços, mas nem sempre são identificáveis por olhares despretensiosos ou contatos rápidos.
Podemos recuperar o caso do grupo de ciclistas com suas bikes ao lado como marcação visual,
alguém ou grupo que vai para fumar e constrói uma diferenciação pela fumaça, o cheiro
produzido e a disposição das pessoas em roda, corpos e corporalidades com diferentes
performances, o uso de símbolos como vestimentas, objetos, entre outros.
Estes diversos elementos servem como indicadores, características que evidenciam os
diferentes grupos presentes no local, moldando-o de forma dinâmica, servindo também para
que o público possa se reconhecer. Este ponto me lembra as reflexões de Magnani (1993)
quando o autor propõe a idéia de “pedaço” no centro da cidade:
89

A diferença com a ideia do pedaço tradicional, aquele encontrado no âmbito


da vizinhança, é que aqui os frequentadores não necessariamente se conhecem
– ao menos não por intermédio de vínculos construídos no dia-a-dia do bairro
– mas sim se reconhecem enquanto portadores dos mesmos símbolos que
remetem a gostos, orientações, valores, hábitos de consumo, modos de vida
semelhantes. Está-se entre iguais, nesses lugares: o território é claramente
delimitado por marcas exclusivas. O componente espacial do pedaço, ainda
que inserido num equipamento de amplo acesso, (no caso, uma galeria) não
comporta ambiguidades porque está impregnado pelo aspecto simbólico que
lhe empresta a forma de apropriação característica. (MAGNANI, 1993, p.9)

Tratando de sonoridade, as caixinhas de som parecem servir como uma ferramenta para
ampliar estas fronteiras simbólicas, tendo em vista suas capacidades de reproduzir sons em altos
volumes e de sua propagação. O estilo musical e a possibilidade de escolha da playlist podem
acentuar as marcas de grupo, por exemplo ao tocar um estilo que fuja das músicas mais tocadas
pelo bar, ou, ao contrário, ao reforçar isso. Mesmo com grupos definidos, as fronteiras são
atravessadas por permeabilidades, sujeitos/as que conseguem transitar entre os diferentes
grupos, como a equipe do bar ou pessoas que vendem alguns produtos pela praça.
Ainda neste caminho, apesar dos grupos serem definidos, no sentido de produzir alguma
diferenciação, não são rígidos e podem ser modificados no decorrer da noite. Não é difícil ver
mesas que se formam, se misturam ou se separam pela chegada ou saída de novas pessoas. Bem
como as fronteiras, a própria configuração desses diversos grupos é mutável. Tal qual o espaço,
os atores e atrizes podem seguir em movimento, com fluxos e trocas que compõem o cenário
do bar.
Pensando a relação entre música, identidade e grupos um caso me chama atenção. Em
algumas conversas com Vanessa ela mencionava uma mesa que estava com frequência pelo bar
e já tinha ganhado um apelido: os/as Kaliuchers. O nome é em referência a cantora norte-
americana/colombiana Kali Uchis, essa mesa sempre pedia para tocar no bar suas músicas,
principalmente o álbum “Sin Miedo (del Amor y Otros Demonios)” lançado no final de 2020,
que fez bastante sucesso entre o público do bar que quase sempre reagiam as faixas mais
famosas.
Essa forma de classificar os/as sujeitos/as reforçam uma identidade que é atribuída em
diálogo pelo bar, por meio de Vanessa, e passa a ser assumida por esses indivíduos. Durante as
pesquisas no Twitter encontrei uma interação onde o La Luna anuncia o Halloween na praça e
logo um dos integrantes responde: “Diz a data que eu levo os kaliuchers de sempre ❤️✨”.
Conversei com algumas dessas pessoas para entender melhor como se dava essa interação, esses
clientes revelavam como já frequentavam o bar e já eram conhecidos, mas que foi a partir da
90

repetição do pedido pela cantora que se estabeleceu essa identidade ainda em tom de
brincadeira. Um dos rapazes, jovem, universitário e cliente antigo do bar me explicou:
A gente já frequentava e sempre pedia música, mas como nossos amigos
ficaram viciados na Kali Uchis a gente achava que combinava com o bar e
pedia. Quando Vanessa vinha na mesa já falava “eu já sei o que vocês querem
escutar” e começou a tirar onda e chamar pelo apelido. Quando não dava pra
escutar no som do bar a gente botava na caixinha pra escutar na mesa, mas
também escutava outras coisas que combinavam, tem até uma playlist nossa
pra escutar no La Luna com outras música. Depois de um tempo a gente
escutou menos Kali Uchis mas o apelido ficou! (Diário de Campo, Abril de
2021)

Esse caso em específico reforça como algumas relações são tecidas entre o bar e seus
clientes. Nesse caso, a música se torna um elemento diferenciador desse grupo e mostra como
uma identidade pode ser construída no diálogo entre público e estabelecimento. Apesar de não
usar apelidos, existiam outros grupos que Vanessa e outras pessoas da equipe costumavam
identificar por algum elemento compartilhado, quase sempre a esfera sonora ou imagética
estavam atreladas a essa categorização.
Nem sempre as classificações eram em tom de brincadeira ou de forma positiva, um
exemplo eram “os heteros” que por vezes iam para praça, geralmente estavam nos bancos já
próximos a igreja, e nem sempre eram as mesmas pessoas. Esses foram retratados como “não
consomem, trazem as bebidas e ainda deixam o lixo pra gente limpar, tem uns que ainda acham
ruim quando vamos falar que não pode som de carro aqui”.
Como podemos notar, uma complexa paisagem sonora é constantemente elaborada
durante as noites neste lugar. Alguns sons mais comuns, como o barulho do vento, dos carros
em movimento, das cervejas sendo abertas, das risadas, compõem esse cenário junto com outros
estímulos sonoros, como sirenes e estilos musicais que dificilmente são escutados no lugar. A
paisagem sonora é mutável, vai sendo moldada pelos personagens presentes e os diversos usos
que ocorrem ali.
Um último aspecto chama atenção nesta questão. Se tratando de música, o som do bar
é um dos principais meios para se escutar algo, bem como uma das ferramentas que norteiam
parte do clima. Frequentemente as pessoas fazem seus pedidos de algum/a artista ou música
para ser tocado no bar, o que na maioria das vezes é acatado e adicionado a playlist da noite.
Decidir uma playlist, pedir uma música tem uma nuance coletiva, uma vez que todos no entorno
vão compartilhar esse momento, com diferentes níveis de atenção. São nestes momentos que
as reações do público influenciam também no que vai permanecer tocando.
Quando o público responde de forma negativa, ou a escolha da música contrasta com o
clima da noite, logo as reações chegam até o balcão do bar que percebe e tenta alterar o que
91

está sendo reproduzido. Algumas vezes a música permanece, mas no geral é trocada tentando
agradar maior parte do público, como exemplo uma música entendida como “triste”
provavelmente vai ser criticada em dias mais agitados. Por outro lado, algumas músicas causam
reações positivas quase que instantaneamente ao serem tocadas, expressadas de diversas
formas, seja dançando, cantarolando ou acompanhando a letra de forma mais enfática, como
uma performance. Essas reações em campo aparecem como ecos, que legitimam as escolhas
musicais e indicam um caminho para as próximas faixas que serão tocadas.
Estas escolhas e suas reações ganham outra amplitude quando relacionamos o que é
tocado com o cenário musical que envolve diretamente o público LGBTQI+ ou que é fomentado
por ele, como é o caso do gênero pop, reconhecidamente presente nas experiências dessas
pessoas. Longe de tentar homogeneizar as experiências e preferências musicais do público que
são tão diversas, alguns gêneros musicais aparecem com maior frequência. Entendo que
conexões históricas ganham adesão por estes sujeitos e são reproduzidas pela grande mídia, que
tem papel fundamental no alcance e aceitação de artistas e produções.
Nicolas Wasser (2020) traça uma instigante reflexão sobre o que ele vai conceituar como
“movimento musical LGBT” e seus desdobramentos enquanto potências e alvo de
contramovimentos, de cunho conversador. Ao explorar uma cena de novas artistas na música
popular brasileira, em vários gêneros musicais, o autor aborda como a presença dessas sujeitas,
com corpos e expressões de gênero e sexualidade que rompem com a cisheteronormatividade
hegemônica e as suas linguagens artísticas, traçam formas de intervenções e contestações no
campo social e político do gênero e sexualidade. Entretanto, suas ações não se limitam neste
campo, abordando também questões que envolvem raça, classe e territorialidade, de forma
interligada, em uma perspectiva que podemos entender como interseccional. Como aponta o
autor:
Insisto em que este movimento musical atravessa uma linguagem
interseccional que está racializando e, com isso, pluralizando os sujeitos
políticos LGBT. Muitas de suas artistas são negras e vêm das periferias
urbanas. Trata-se de uma articulação não-branca de corpos e sexualidades fora
da heteronorma e que possuía, até recentemente, pouca voz na música popular
comercializada. É um fenômeno que se percebe, por exemplo, nas próprias
categorias, mais recentes, que as artistas articulam sobre gênero e sexualidade
em conjunto com identidades negras, e também nas maneiras como essas
categorias estão sendo recebidas pela mídia de massa. (WASSER, 2020, p.
57)

O alcance e repercussão que esta cena conquista e a possibilidade de produção de outras


subjetividades, dialoga com o crescimento do público, até mesmo com uma conjuntura de luta
por direitos e avanços que o movimento LGBTQI+ vêm forjando no Brasil. Popularidade e
92

visibilidade nas mídias de massa fazem estas vozes chegarem no grande público e por estarem
nesses espaços, como as rádios e nos programas de televisão, questionam e causam rupturas em
estruturas de poder41.
O escopo trabalhado por Wasser, de certa forma é observado em campo, nas escolhas
das músicas42 que podem ser vistas como ações que de alguma forma apoiam a cena do
“movimento musical LGBT”. Não à toa, nomes que aparecem em seu trabalho como Pablo
Vittar, Linn da Quebrada, Urias, Gloria Groove, Mulher Pepita, Jaloo, Johnny Hoocker e tantas
outras são tocadas frequentemente no bar. Outros nomes que surgem nas noites marcam um
aspecto territorial e regional, como as Drags Queens Potyguara Bardo e Kaya Conky, da cidade
e que frequentavam o espaço, Danny Bond, Getulho Abelha e outras que circulam por gêneros
musicais diversos, como o pop e o funk.
Também surgem algumas bandas de forró, como Calcinha Preta e Companhia do
Calypso, que parecem despertar o sentimento de nostalgia e quase sempre geram ecos. Alguns
ritmos que recentemente ganharam maior repercussão nacional, como o brega funk e o piseiro,
tocam esporadicamente, com as músicas que estão em alta, aqui também podemos incluir
alguns nomes do rap nacional. Com estes últimos, não são estabelecidas muitas aproximações
pelas letras, que quase sempre relatam experiências focadas na heterossexualidade, acontece
bem mais pela grande repercussão que alguns artistas ou músicas ganham nas mídias de massa
e também nas redes sociais como Instagram e Tiktok, com os videos dançando os “hits” do
momento.
Se é possível compreender fronteiras que diferenciam os grupos na praça, também é
possível pensarmos como estas diferenciam o próprio lugar de outros espaços e equipamentos
urbanos no entorno. Em um dos dias que o bar abriu mais cedo, uma tarde de domingo em
setembro de 2021, aproveitei para ir de ônibus ao campo, pegando uma das linhas que utiliza a
BR-101. Desci na parada próxima a passarela e, para chegar ao bar, passei pelo ponto de taxi e
pelo kioske101, que estava com quatro mesas ocupadas, um churrasquinho e uma caixa de som
tocando uma música43, no estilo forró, que falava sobre um homem que tirava uma mulher do

41
Entretanto, neste contexto também estão presentes grupos e agressores, como os movimentos antigênero, que
fazem uso da violência e repressão, amparados por ideais conservadores que buscam manter a ordem hegemônica
estabelecida. Para isto, se tornou comum a utilização de fake news, perseguições e linchamentos virtuais, que
incitam o ódio no âmbito digital e para além dele, contra grupos historicamente subalternizados como mulheres e
LGBTQI+.
42
Tentando aproximar o/a/e leitor/a/e desta experiência venho gerindo uma playlist, na plataforma spotify, com
intuito de registrar as músicas que aparecem com maior frequência durante minhas noites em campo. A playlist
pode ser acessada em: https://open.spotify.com/playlist/7sTRn7PFG8fVOvLsSbPgR7
43
A música em questão era “Eu vou tirar você do cabaré” de Tarcísio do acordeon.
93

“cabaré” para virar sua companheira. Ao chegar no bar me sentei com duas amigas, comentei
sobre a música que foi classificada por uma delas como “podre, o suco do machismo”.
Percebi que algumas pessoas passavam pela calçada da praça e alguns carros
estacionavam no entorno, mas pelas vestimentas dava para deduzir que elas estavam indo para
igreja que fica bem no fundo da praça. Pouco tempo depois, no som do La Luna começou a
tocar a música “Dedo Nocué” de Linn da Quebrada e Mulher Pepita, que faz um jogo de
palavras que remetem a inserir o dedo no ânus, no seu refrão temos “Dedo nucué tão bom/ Dedo
nucué tão gostoso”, ao enfatizar algumas sílabas temos a sensação de escutar “dedo no cu é”.
A música tocada no La Luna causava estranhamento, olhares e passos apressados de quem
passava por ali em direção à igreja. Já no bar, algumas mesas acompanhavam a letra, algumas
pessoas de forma bem performativa se movimentavam e interagiam com quem estava próximo.
Trago este relato como forma de ilustrar o debate feito acima. O elemento sonoro
aparece como marcador dos espaços, que ajudam a acentuar as diferenciações entre estes três
lugares: o kioske101, o La Luna e a igreja. Entre os bares, as escolhas das músicas ressoam os
públicos que os frequentam, possivelmente a música sobre cabaré iria gerar reações negativas
no La Luna pelo seu cunho machista, bem como as músicas de Linn da Quebrada e Pepita, com
suas letras que exaltam experiências corporais, de gênero e de sexualidade que fogem das
normas hegemônicas, causariam no mínimo estranhamento neste outro bar. Por outro lado, a
igreja se produzia pelo aspecto visual, marcado-se nas vestimentas e corpos dos/das fiéis, e pelo
estranhamento e distanciamento estabelecidos desses/dessas com o La Luna, evidenciando-se
pelo andar apressado pela calçada e depois pelo refúgio atrás dos portões vigiados e protegidos
por uma equipe de “recepção”.
Essa igreja se instalou no fim da praça em 2018, após um ano de funcionamento do La
Luna. Desde então tem produzido algumas ações para marcar sua presença no espaço, por vezes
disputando o uso da praça. Em geral, existe pouco contato entre o público da igreja e do bar
pelas diferenciações estabelecidas e pelo horário alternado de funcionamento. A seguir
compartilho sobre uma tentativa de aproximação que conduzi na tentativa de complexificar as
narrativas ali presentes.
No início de setembro de 2021, o La Luna aproveitou o feriadão do dia da independência
do Brasil para realizar sua feijoada no domingo, iniciando as atividades por volta das 14:00,
com previsão de encerrar próximo à meia noite. Cheguei no bar eram quase 16:30, o sol ainda
brilhava forte iluminando o espaço. Sentei com um casal de amigas na parte de trás e logo
outros amigos delas se juntaram ao grupo unindo duas mesas. O cercadinho estava quase
completo e já tinham três grupos nos bancos próximos. Por volta das 17:30 as movimentações
94

de carros e pessoas passando pelas calçadas na lateral da praça se intensificaram, a igreja tinha
aberto o grande portão um pouco antes para receber os/as fiéis que chegavam, geralmente
vinham acompanhados/as.
Enquanto ia anoitecendo e o entorno ficava menos iluminado, a igreja acionou seus
refletores que iluminam de forma intensa todo o muro e um fragmento da parte de trás da praça.
É comum que essas luzes sejam ligadas apenas durante suas atividades. Nesse contexto, não
apenas iluminam o entorno, como servem para traçar fronteiras com o bar e seu público. Isto
fica nítido na forma como esta ação afasta os grupos que estão mais próximos da parede, que
precisam se realocar em outros bancos, mais afastados do destaque feito pelo clarão.
Em outras ocasiões, observei como os portões de entrada da igreja se fechavam com o
início do culto. Entretanto, neste dia eles permaneciam abertos, resguardados por uma equipe
de recepção de quatro pessoas que utilizam o termômetro e álcool, medidas de segurança contra
o coronavírus comuns em outros espaços, e ajudavam no estacionamento dos carros. Percebi
que seria uma boa oportunidade para tentar estabelecer uma conversa com estas pessoas. Decido
dar a volta na praça e ir até lá.
Em um primeiro momento abordei um senhor, que aparentava ter por volta dos 50 anos,
me apresentando como estudante da UFRN que estava realizando uma pesquisa sobre a praça.
Ao questioná-lo se poderia fazer algumas perguntas, ele foi bastante solícito em escutar.
Quando perguntei sobre a relação entre a igreja e a praça ele aparentou estar receoso em
responder e me disse que chamaria um líder para me ajudar na pesquisa. Fiquei esperando
encostado ao muro, próximo aos portões, a vinda dessa pessoa. Enquanto isso, o primeiro
senhor retornou e outras duas mulheres se juntaram para responder meu questionamento, de
forma objetiva falaram como a relação com a praça é boa e mencionaram algumas ações
solidárias que realizaram naquele lugar.
No meio da conversa o líder chegou e as outras pessoas se dispersaram. Era um homem
branco, de baixa estatura, aparentando ter por volta dos 50 anos. Em sua narrativa, buscava
diferenciar a igreja do bar, com bastante certeza em suas colocações, e apontava como a praça
estava sendo apropriada de forma indevida de acordo com seus princípios. Apresentou a igreja
como “batista tradicional”, que seguia à risca o que estava nos testamentos. Entendia que a
relação com o espaço era boa e que a intenção era expandir seus alcances, usando o lugar para
“ganhar mais vidas para Deus”, mencionando o círculo de orações realizado em alguns dias
pela manhã já próximo ao quiosque.
Durante nossa interação ficou nítido a percepção negativa que tem sobre o bar e o uso
que este faz da praça, deixando marcada a separação entre estes espaços, me alertando três
95

vezes sobre o que acontecia no local e seu público: “como você mesmo pode ver, esse pessoal
vem para cá e tem bebida, tem uso de droga e está cheio de casais homossexuais”. Também me
contava sobre os conflitos do La Luna com a vizinhança, enquanto a igreja tentava a política da
“boa vizinhança”, como não estacionar os carros na frente das garagens.
Essa interação serviu para concretizar algumas conclusões que a própria Vanessa, sócia
do bar, já tinha mencionado: "Eu sei que o povo da igreja não gosta da gente, passam olhando
torto. Mas vão ter que aturar! Fica cada um no seu canto que não tem briga”. Também serve
para ilustrar as disputas estabelecidas ali, como o lider da igreja menciona “ tá vendo essa
parede? Foi a gente que mandou pintar e depois fazer o grafite. E fez assim pra mostrar que
aqui é uma igreja, mas também para falar com os jovens que vem para praça, que também é um
lugar pra eles”.
Este homem buscava, portanto, estabelecer uma comunicação com a juventude
apostando neste tipo de linguagem e acionando símbolos que remetem a igreja também marcado
pelas disputas simbólicas de ocupar a praça. Antes desse mural, esse paredão já estava completo
por outros grafites e pichações, que foram apagados e cobertos por essa nova mensagem.
Entretanto, as pichações voltam a aparecer, compartilhando a parede com os grafites.
A parede mencionada se alonga por toda parte final da praça, foi pintada completamente
de branca e após foram feitos cinco grafites que se conectam por uma linha com curvas.
Próximo ao portão da igreja temos uma mão negra segurando um copo com líquido escuro,
possivelmente vinho, e um pedaço de pão, seguindo em direção à BR-101 temos uma
mensagem “Uma Igreja que ama a CIDADE”, após, uma jovem cantando com microfone e
fones, vestindo uma blusa de manga longa e uma bata branca por cima, em seguida temos um
rapaz de camiseta e com boné virado para trás, um dos punhos cerrado e gritando, ambos
possuem rostos bem expressivos, mostrando eloquência, por fim, outra mensagem escrita “Um
Lugar Para Pessoas Imperfeitas”.
Como me foi relatado, o grafite parece ser uma forma que tenta traçar conexões entre a
igreja e os jovens. Os personagens retratados, as emoções que expressam e a mensagem escrita
traz a igreja para fora dos muros, interagindo com a cidade e as pessoas que frequentam a praça.
Por outro lado, a presença das pichações e tags44 ilustram novamente as disputas simbólicas
que ocorrem na praça e se assemelham a outras intervenções espalhadas no local, como no
escorrego de alvenaria que aparece na foto a seguir.

44
São assinaturas de pessoas ou grupos, um tipo de identidade visual que está diretamente ligada a alguém ou
algum coletivo.
96

Assim, a igreja vai se fazendo presente. Se o seu público não se mistura com o do La
Luna, por meio de alguns elementos ele consegue permear essa fronteira estabelecida pela
apropriação do espaço, a luz dos refletores, o grafite do muro e a produção sonora vão
demarcando a existência desse outro ator naquela paisagem.
Figura 1 - Fundo da praça: grafites e pichações

Fonte: Autoria própria

Um último ponto dessa interação que me chamou atenção foi a receptividade para falar
comigo. Durante a conversa, a forma como aquele senhor mencionava o público não me
englobava naquele conjunto. Isso ficou nítido quando ele descrevia “aqueles jovens” que
estavam envolvidos com bebidas, drogas e eram homossexuais. Na ocasião, eu estava vestindo
calção, tênis, camisa um pouco larga, máscara e boné, o que unido a minha performance pouco
feminina, quando comparado com o público geral do bar, me garantiu certa passabilidade.
Considero que meu corpo foi uma das chaves de acesso. Somado a dimensão corporal e
performática, mencionar meu vínculo com a UFRN, a forma como expliquei a pesquisa
intencionalmente falando sobre a praça e os diferentes usos e a iniciativa de querer escutar a
perspectiva da igreja conformaram esse conjunto que possibilitou essa interação.
97

Neste capítulo apresento e lanço algumas reflexões sobre a cidade, o espaço público e
o bar. Avançando nessa relação, abordo as observações feitas em campo e penso o La Luna
enquanto uma experiência que vem sendo construída em diálogo com seu público. Busco
construir uma perspectiva ampliada do campo englobando não apenas a Praça da Guerreira,
mas o entorno e alguns caminhos que me levam até ela utilizando o pedalar como ferramenta
de observação, dando destaque para as dinâmicas urbanas que foram sendo modeladas pelos
sujeitos, decretos e pela pandemia. Assim, retorno ao La Luna explorando continuidades e
transformações que são atravessadas pelo contexto histórico e social no qual ele se insere,
explorando aquela paisagem urbana, os atores e cenas que ali se desenrolam.
98

3 DINÂMICAS, NEGOCIAÇÕES, FRONTEIRAS E CONSUMO: AMPLIANDO


SENTIDOS

Neste capítulo me detenho sobre aspectos que incidem sobre consumo e mercado
segmentado, relacionando estes aspectos com outras formas de fazer política presentes na
atuação do bar e seu público. Exploro a construção de uma identidade política firmada nos
ideais expressos nas práticas do La Luna e compartilhados com seus frequentadores.

3.1 Consumo, sociabilidade e política

A relação entre o público e o bar se dá através da sua própria proposta, visando um nicho
específico. Esta é umas das características do mercado segmentado, onde estabelecimentos têm
suas ações focadas em parcelas da população, com nuances de abrangência, como examinado
por Isadora Lins França (2006, 2012) em campos que vão de saunas destinadas ao contato
erótico até espaços de sociabilidade e consumo, voltados para homens que se relacionam
afetivo-sexualmente com outros homens. De forma semelhante, Regina Facchini (2012) realiza
um estudo sobre bares marcados pela presença do público lésbico na cidade de São Paulo, que
integram um circuito de lazer noturno destinado à estas mulheres. Consumo e subjetividade
ganham novos contornos, se conectando a partir das experiências, como ocorre também no La
Luna.
Facchini, França e Braz (2014) fazem uma interessante revisão crítica dos trabalhos
antropológicos que entrecruzam sexualidade, sociabilidade e mercado, trazendo estudos
produzidos desde 1960. É apontado um aumento a partir dos anos 2000, sendo um possível
reflexo da conjuntura nacional onde se observava uma complexificação e multiplicidade de
sujeitos, de ações do movimento organizado e o incremento de políticas públicas focadas nesta
parcela da população. Marcadas pela trama que envolve visibilidade e orgulho, temos as
“paradas do orgulho” como eventos que centralizavam algumas das demandas e anseios do
público neste contexto. Toda esta efervescência acontecendo nas grandes cidades é
acompanhada pelas pesquisas desenvolvidas com estes sujeitos e nestes lugares.
É também apresentada a ampliação do número de estabelecimentos e diversificação no
mercado segmentado voltados a sociabilidade e lazer desse público, transformando espaços
anteriormente vistos enquanto “guetos” em nichos comerciais e pontos de referência das
cidades. Esse processo de expansão de lugares marcados pela presença de homossexuais é
apontando em pesquisas como a de Simões e Facchini (2009) onde abordam a trajetória do
movimento político relacionado a homossexualidade.
99

Nos interessa pensar a forma como os autores citados acima exploram o contexto de
avanço da urbanização dos grandes centros e capitais brasileiras enquanto abordam o processo
de politização e complexificação de identidades sexuais e de gênero. Nessa relação entre a
cidade como possibilidade de vivências que fogem da norma hegemônica cisgênera e
heterossexual e o surgimento de um movimento político organizado os lugares de sociabilidade
ganham destaque por sua capacidade de aglutinar estes sujeitos.
Assim, festas, bares, boates, saunas, praias, galerias, ruas e praças transformavam-se em
pontos de encontro para estas pessoas e, para além da sociabilidade e da “pegação”,
propiciavam um fluxo de informações, de estreitamento de relações e possibilidades de
articulação de demandas e reivindicações que vão se intensificando também em outros grupos
da sociedade, frente ao contexto ditatorial que marca o período. Turmas, grupos de amigos,
núcleos, colunas, jornais, entre outros, materializavam algumas das primeiras articulações em
torno do interesse comum voltado à homossexualidade no Brasil.
O período de “movimentação” homossexual entre as décadas de 1950 e 1970,
que aqui tratamos brevemente, desenhou os contornos gerais do processo que
fez que as homossexualidades saíssem do armário e se dirigissem não só para
as festas, mas também para as assembleias e reuniões de pauta. (SIMÕES e
FACCHINI, 2009, p. 79)

Este e outros trabalhos nos ajudam a pensar a relação histórica existente entre lugares
de sociabilidade, mercado e política, indicando como esta conexão ainda hoje é presente e tem
se tornado multifacetada, abarcando os diversos segmentos, formas de consumir e de atuação
política. Locais como o La Luna, podem ser enxergados como potenciais aglutinadores,
reunindo não apenas um nicho de consumo voltado às pessoas LGBTQI+, como também um
público-alvo para campanhas, por exemplo a apresentação de candidaturas ao legislativo
municipal. Em 2020, a candidatura de Brisa Silva Bracchi (PT) que realizou uma atividade de
campanha no bar e conseguiu se eleger vereadora de Natal.
Voltando a revisão crítica, alguns apontamentos feitos pelos autores aglutinam o
conjunto dos trabalhos, entendendo os recortes do qual se propõem e o período no qual a
pesquisa foi realizada. Dessa maneira, apontam:
A maior parte do conjunto de trabalhos voltado para a sociabilidade parte da
conhecida trama que conecta espaço urbano a homossexualidade e que se
expressa majoritariamente na constituição de espaços comerciais e na
conformação de territórios simbolicamente marcados pela presença da
homossexualidade nas grandes cidades. (FACCHINI, FRANÇA, BRAZ,
2014, p. 106)

Como bem apontado por esta revisão, existe uma centralidade das pesquisas nas Regiões
Sudeste, Centro-Oeste e Sul, marcadamente o eixo Rio de Janeiro – São Paulo, que aparecem
100

de forma massiva e refletem dinâmicas da geopolítica nacional que, entre outros fatores,
ocasionam a invisibilização e por vezes inviabilizam iniciativas que surgem e tem
continuamente se reinventado na tentativa de expor outras narrativas existentes no país,
abordando as Regiões Norte e Nordeste.
O enfoque nos grandes centros urbanos e consequentemente a escassez de trabalhos que
abordem cidades com outras dimensões nublam outras formas de experimentação da relação
entre expressões de gênero e sexualidade não hegemônicas e espaço urbano, como apontado
por Passamani (2015). Estas não são crítica às/ao autoras/autor em si, mas uma tentativa de
trazer ao debate planos de fundo que perpassam os empreendimentos de pesquisadores/as que
se distanciam dos grandes polos, seja por seus objetos de pesquisa ou por suas filiações
institucionais.
Este debate sobre geopolítica envolvendo a produção de conhecimento vem sendo
levantado por diversos/as autores/as que têm questionado as centralidades e as construções de
periferias/margens, que por vezes reproduzem dinâmicas sociais existentes no Brasil, como
sinalizam Facchini, França e Braz (2014). Nesse sentido, Thiago Oliveira, Milton Ribeiro e
Vinícius Venâncio (2021) fazem uma discussão provocativa, explorando processos como o
avanço das políticas de ações afirmativas e a ampliação e interiorização do ensino superior
público, através de políticas como o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão
das Universidades Federais – REUNI, possibilitam o ingresso de parcelas da população
historicamente excluídas nestas instituições de ensino, fazendo com que estes sujeitos que antes
ocupavam apenas o lugar de objeto de pesquisa, passassem a vislumbrar outros horizontes,
assumindo posições enquanto sujeitos de pesquisa, pesquisadores/ras produzindo
conhecimento acadêmico.
Não obstante, os autores apontam como este fenômeno traz consigo outras experiências.
Ao adentrar estes espaços, suas presenças causam diversos ruídos dentro de uma estrutura de
produção do conhecimento já posta. Refletidas em vivências diversificadas, estes corpos
negros, indígenas, quilombolas, interioranos, vindos das classes populares, entre outras tantas
trajetórias, ampliam o prisma de perspectivas, viabilizando produções que ultrapassam modelos
já estabelecidos, lançando luz a questões que nem sempre tiveram a atenção necessária.
Esse contexto tem ganhando contornos de uma reflexão político-
epistemológica que privilegia o modo como a análise das experiências sociais
é marcada por categorias de diferenciação que se materializam de maneiras
particulares em cada contexto. O comprometimento com essa reflexão deve
ser lido como a ruptura dos dispositivos que interditam o trânsito de
conhecimento entre centros e margens, entre lugares para fazer pesquisa e
lugares para produzir ciência. Essa separação, falsa por princípio, instaura o
101

lugar como um dispositivo político que deve ser pensado em suas dimensões
materiais e simbólicas. (OLIVEIRA, RIBEIRO e VENANCIO, 2021, p.5)

São apontadas as potencialidades, principalmente no campo da antropologia, que vão


sendo construídas. Corroboro com os autores na chamada para o reconhecimento da
materialidade dos nossos corpos e suas consequências na produção do conhecimento, bem
como das posicionalidades e espaços físicos e simbólicos que ocupamos para que questões
como as desigualdades regionais não sejam apagadas, tais questões atravessam minha trajetória
enquanto pesquisador e impactam o desenvolvimento desta pesquisa. Algumas questões,
portanto, se colocam: esse processo de localizar os sujeitos que estão produzindo conhecimento
nos auxilia no reconhecimento e compreensão de quem pode produzir? Como? Onde? A partir
de quais referências?
Torna-se cada vez mais urgente o conhecimento e a divulgação destas investigações em
outros contextos geográficos e demográficos. Sousa (2020), ao pesquisar sobre experiências de
homens que se relacionam afetiva e sexualmente com outros homens em três cidades pequenas
do interior de São Paulo, aponta como a lacuna de estudos com estes focos e recortes
espaciais/demográficos coloca, em alguma medida, que nessas pequenas cidades pode existir
uma homogeneidade, expressada em um espaço politicamente assumido enquanto
heterossexual. Nestes contextos, a falta de locais e possibilidades que viabilizem sexualidades
dissidentes acabam “apagando” a existência da esfera afetiva e sexual desses sujeitos, que
precisam traçar estratégias para poder vivenciá-las enquanto driblam o forte controle social
presente nessas cidades, a hostilidade e diferentes tentativas de enquadramento nas
performances de gênero e masculinidade, muitas vezes desempenhadas no ambiente doméstico,
pela família, mas também no espaço da rua.
Entretanto, outras pesquisas destacam como este grupo tem criado rupturas nesta lógica
que, num primeiro momento, tende a limitar a vivência nestes contextos urbanos as violências
e cerceamentos, engessando experiências e reproduzindo estereótipos, por exemplo que cidades
do interior são mais conservadoras e, consequentemente, locais pouco acolhedores para pessoas
LGBTQIA+. Aqui cabe mais uma vez destacar a necessidade de investigações que possam
explorar outras narrativas nesses espaços45, bem como pesquisas demográficas/estatísticas que
produzam dados levando em considerações questões de gênero e sexualidade.

45
Em uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IGBE, divulgada em 2022,
Natal aparece como a segunda capital do país com o maior número de adultos que se declararam homossexuais ou
bissexuais. Consultar: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/natal-tem-segundo-maior-percentual-de-
homossexuais-e-bissexuais-entre-as-
capitais/539290#:~:text=Desse%20total%2C%2094%2C8%25,assexual%20e%20pansexual%2C%20por%20exe
mplo.
102

Neste sentido, Teixeira (2015) explora como os grandes centros urbanos vão se
constituindo enquanto habitat para homossexuais, abordando como parte das migrações desse
grupo é fundamentada pelas esferas afetivas e sexuais, para além de questões econômicas.
Assim, é posto que “A supervalorização do ambiente urbano na formação identitária
homossexual seria avaliado criticamente sob o conceito de “metronormatividade”: o urbano
como referência absoluta para uma suposta vida de liberdade e satisfação. ” (TEIXEIRA, 2015,
p.23). O autor desenvolve seu argumento partindo da construção do imaginário que grandes
centros urbanos por suas características como impessoalidade, anonimato, ideias de maior
liberdade e modernidade, são lugares que proporcionam algum nível de emancipação para
pessoas homoafetivas, se tornando um destino inevitável para aqueles/as que desejam ter uma
vivência sexual e afetiva por dispor de maiores possibilidades e por estar longe das amarras e
controles familiares e sociais ligados ao rural e as pequenas cidades.
Neste caminho, as pessoas LGBTQI+ seriam migrantes natos, uma vez que os
deslocamentos atravessariam as experiências desse grupo, sendo impositivo em suas trajetórias
de vida. A constituição de circuitos nacionais e internacionais marcariam as grandes metrópoles
enquanto objetivos a serem alcançados, criando rotas migratórias, sempre proporcionando
experiências diversificadas onde marcadores como raça, classe, territorialidade e nacionalidade
vão se articulando no mercado erótico, influenciando as ofertas de corpos e os contatos
afetivos/sexuais.
O autor corrobora com o entendimento que esta “norma” ligada às grandes cidades e
seus impactos, junto a outros macroprocessos como a globalização, repercutem na formação
identitária, cultural e política dessa população. Assim, práticas, narrativas e vivências fora
desses espaços vão sendo apagadas em contraponto a sociabilidades que se constroem como
referências nacionais:
Porém o estilo de vida homossexual paulista e carioca seria reproduzido
nacionalmente em uma assemblagem de referências estéticas, culturais e
estereotipadas (o corpo do carioca, o vestir do paulista, gírias locais, modelos
de negócios e entretenimento, etc.), tendo impacto sobre subculturas
homossexuais tradicionais de outras regiões brasileiras. (TEIXEIRA, 2015,
p.31)

A crítica à metronormatividade aponta para relevância de se explorar outros


enquadramentos geográficos que auxiliam na diversificação e no autoconhecimento de
expressões locais de estilos de vida e formas de ser LGBTQI+ em pequenas e médias cidades,
além de contextos rurais, quilombos, aldeias, entre outros. Desse modo, se torna possível atentar
para formas diferenciadas de sociabilidade, consumo, trocas afetivas e sexuais que vão sendo
103

desenhadas por esses sujeitos em diálogo direto com seus territórios. Vale atentar que mesmo
nas grandes metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro existem experiências diversificadas
que também fogem de um imaginário de estilo de vida LGBTQI+ que tem maior visibilidade46.
Para isso, tento abordar alguns trabalhos que me auxiliaram nas reflexões presentes
nesta dissertação e que me inspiraram nesse debate. Trazendo alguns pontos que foram
levantados anteriormente, Bruna Silva Araújo (2021) tem buscado entender a construção da
figura das drag queens em Sobral, interior do Ceará. A autora relaciona o processo de
desenvolvimento que a cidade tem passado, tornando-se um polo para região norte do estado,
com a construção de uma imagem ligada a modernidade e liberdade, trazendo a oferta de
serviços e a implantação de instituições de ensino, como universidades públicas e escolas
particulares, como fatores que impulsionam a migração, temporária ou permanente, de uma
grande quantidade de jovens. Este cenário causa alguns ruídos na imagem das cidades do
interior do Nordeste, marcadas pelo ideal de baixo desenvolvimento em um espectro
hegemônico.
Este contexto urbano “moderno” amplia as possibilidades das experiências de drag
queens, bem como do público LGBTQI+, marcando a presença desses corpos de forma mais
acentuada nos espaços de sociabilidade. Nessa investigação, são bares onde esse público se
reúne, as drags queens desenvolvem o ofício de deejays e os trajetos que estes percorrem
conectando diferentes pontos neste circuito local. Para a autora:
A vivência drag queen, bem como seu público, possibilitam uma realidade sui
generis; de (re)construção desse espaço a partir de sujeitos que dialogam no
processo de fazer e refazer a cidade à medida que esta recebe apropriações,
propostas e projetos que dialogarão com os usos tradicionalmente inseridos
nesses espaços. (ARAÚJO, 2021, p.4)

Entre montar-se e desmontar-se, que fazem parte da arte drag, a presença desses sujeitos
vai conformando os espaços da cidade. Entretanto, apesar de Sobral ser apontada como
referência para região, atravessada pela experimentação LGBTQI+ e como um lugar que
possibilita o ofício de deejay e da arte drag, o imaginário de modernidade e liberdade encontra
ruídos para estes corpos, que apontam o receio de transitar pelas ruas e em determinados
espaços. Como mencionado acima, os bares desempenham papel substancial enquanto lugares
possíveis para estas vivências de gênero e sexualidades dissidentes.

46
Destaco aqui o festival Bixa Nagô, que busca promover a diversidade e a potência criativa da juventude negra e
LGBT+ das periferias do Brasil. Acontece em São Paulo e mistura manifestações culturais com debates sobre
temas que atravessam seu público. Consultar em: https://www.festivalbixanago.com/
104

Outro exemplo é pensado por Lopes (2017), em sua pesquisa sobre homossexualidades
em contextos interioranos. Me chama atenção como, por meio da narrativa dos interlocutores,
Cuiabá é produzida enquanto “cidade pequena” apesar de ser a capital do Mato Grosso. Isso se
dá pela manutenção de algumas características ligadas a esse contexto urbano, como cadeiras
nas calçadas, solidariedade da vizinhança, impossibilidade de invisibilidade nos locais de
sociabilidade, entre outras, em contraponto com a racionalidade, a impessoalidade e a
modernidade da cidade grande. O autor nos convida a pensar este fato também pela
proximidade com os grandes centros, como Rio de Janeiro e São Paulo, afeta essa percepção
dos interlocutores, como já aparece em outras pesquisas.
Ao abordar a história da cidade e da emblemática figura “ Jejé de Oyá”, um homem
negro, homossexual e seguidor da Umbanda, o autor, preocupado em estabelecer uma análise
que leve em consideração os elementos interseccionais, explora o “contexto interiorano” e as
possibilidades que surgem a partir dele. Com isto, se repensa o “interior” enquanto lócus da
violência ou expulsão para pessoas que fogem da heterossexualidade e dos padrões
hegemônicos de gênero. A vivência de uma pessoa como Jejé de Oyá, sua influência e
capacidade de mobilização de capital social/cultural nesse contexto ilustram as ambiguidades e
contradições presentes nestas cidades. Corroborando com a presente discussão, o autor nos
chama atenção para o risco de substancializar estes fenômenos, impondo um “olhar colonizador
das sexualidades” para “cidades do interior”.
Vejo algumas aproximações entre as percepções dos interlocutores de Lopes (2017) e
algumas que encontro em meu campo. Parte do público que acessei durante a pesquisa também
constrói/reproduz narrativas que aproximam Natal de uma “cidade pequena”. Por um lado, são
elencados elementos de infraestrutura do espaço que estão ausentes ou sucateados, como o
sistema de transporte público que não conta com sistemas rápidos por ônibus – BRT ou
metrôs47, ou ainda um sistema que integre a Região Metropolitana e funcione até mais tarde da
noite, facilitando o deslocamento após 23:00.
Por outro lado, também é apontado como os espaços de lazer e sociabilidade são
reduzidos, bem como a menor oferta de eventos culturais e artísticos, principalmente de grandes
proporções e com atrações internacionais. Aqui é interessante pensar que estas perspectivas são
construídas em comparação com São Paulo e Rio de Janeiro, mas também surgem outras
cidades mais próximas como Salvador, Recife e Fortaleza enquanto referências dentro do

47
Cabe o adendo que, apesar de não contar com sistema de metrôs, a Região Metropolitana de Natal possui duas
linhas de trem: a linha norte, ligando Ceará Mirim, Extremoz e Natal; a linha sul, passando por Parnamirim e
Natal. Ambas têm o terminal central no bairro da Ribeira, na capital do RN.
105

Nordeste que conseguem ganhar destaque dentro do cenário nacional, contando, por exemplo,
com grandes festivais de música e outras artes.
A união desses e outros elementos reforçam uma imagem de Natal ligada à “cidade
pequena” pela chave da ausência. Ela vai se afastando do imaginário de modernidade e
desenvolvimento que é estabelecido em relação com outras capitais, uma vez que estas
conseguem ofertar bens e serviços que não são encontrados, ao menos não de forma facilitada,
localmente. Esta perspectiva acaba nublando as potencialidades e especificidades que vem
sendo construídas ao longo do tempo em Natal. É inegável as restrições que perpassam a cidade,
mas, pensando no lazer e sociabilidade, várias iniciativas vêm ganhando forma e visibilidade,
alcançando o público local e de outras regiões, fomentando seu potencial turístico48 e de oferta
de serviços de maneira mais ampla.
Ainda explorando este debate, Pietra Conceição Azevedo (2021) aborda em sua
pesquisa questões sobre visibilidades sociais das performances identitárias de travestis em
contextos rurais e interioranos, partindo de uma pequena cidade no interior do Rio Grande do
Norte. Já de início, a autora enfatiza a falta de produções que explorem esses contextos,
traçando relações entre travestilidades e espaços fora dos centros urbanos e capitais.
Ao aprofundar o contato com seu campo e suas interlocutoras, Pietra Conceição
Azevedo (2021) reflete sobre a construção de imaginários sobre corpo e performance das
travestis e como estes são atravessados por “ideais” que partem dos contextos citadinos. Ao se
deparar com os processos de performatização identitária, o cotidiano e as relações estabelecidas
por suas interlocutoras, a autora defende uma travestilidade múltipla, que por meio de
investigações podem garantir maior visibilidade para os variados contextos encontrados no
país.
No campo abordado pela autora, perspectivas e vivências presentes nos centros urbanos
são contrapostos pelas experiências dessas travestis, que apesar de estarem inseridas em
ambientes rurais/interioranos conseguem tecer relações que não acionam unicamente a chave
da discriminação e do preconceito. O contato estabelecido entre as interlocutoras e as demais
pessoas, principalmente homens, e o desejo público direcionado a elas, são alguns fatos que
apontam para rupturas da imagem do interior e o rural enquanto espaços de violência ou
expulsão, sendo tratados aqui como locais de respeito, desejo e pelo interesse em permanecer
dessas travestis. Nas palavras da autora: “Todas essas situações de publicização da cobiça pelos
corpos de nós, travestis, evidenciam a humanização através da “naturalização”, dos desejantes

48
Destaco os festivais de música MADA e Bloquíssimo que conseguem mobilizar atrações nacionais e
internacionais, além de movimentar um público de outros estados próximos ao Rio Grande do Norte.
106

e dos transeuntes, acerca do afeto e da atração para/por nós e a agência travesti frente a este
processo” (AZEVEDO, 2021, p.19).
É interessante perceber como o campo da autora é perpassado pelo lazer e sociabilidades
nos espaços públicos (seja em bares, festas, serestas, ruas e afins). Estar nestes ambientes e ser
reconhecida pelas outras pessoas marcam como as interlocutoras negociam e agenciam
diferentes situações do cotidiano, por vezes contornando situações risíveis e de ridicularização.
O “ser famosa” e a afirmação enquanto travesti expressados nos cumprimentos constantes
deslocam para o ambiente público os contatos e desejos direcionados à estas pessoas, que em
outros contextos se limitam aos espaços privados, envoltos pela “discrição”, como a própria
autora relata.
Pensar estas e outras especificidades dos diversos cenários geográficos espalhados pelo
país nos auxilia na compressão das movimentações que são feitas por diferentes vias, sendo
uma delas a constituição do mercado segmentado voltado ao público LGBTQI+. Direcionando
o olhar para realidade local, temos uma dinâmica comercial que compartilha semelhanças e
distanciamentos com os campos abordados por França (2006, 2012), situados em São Paulo.
Natal, como mencionado anteriormente, é uma capital que demograficamente está em uma zona
mediana quando comparada com as demais capitais do país. Em consequência, o mercado
segmentado em sua atual configuração no município não se manifesta de forma a restringir
muito especificamente seus públicos nos espaços de sociabilidade e lazer49.
Milton Ribeiro da Silva Filho e Carmem Izabel Rodrigues (2012) ao traçarem uma
etnografia abordando a sociabilidade LGBT no circuito GLS de Belém-PA apontam que nessa
cidade o mercado não se segmentou de forma tão delimitada, sendo comum encontrar no
mesmo ambiente diferentes grupos e estilos de vida que se encaixam, ou não, na sigla LGBT,
como ursos, coroas, travestis, lésbicas, entre outros. Para o autor e a autora, os usos e utilidades
dados aos espaços de sociabilidades estão ligados à construção da subjetividade desses
indivíduos, determinando a frequência nos lugares por meio das identidades construídas.
Assim, a diversidade encontrada nesses locais pouco segmentados aumenta as possibilidades
de interação de sujeitos com marcadores sociais distintos.
Voltando para Natal, que se assemelha ao caso de Belém analisado por Silva Filho e
Rodrigues (2012), essa “mistura” presente no público não quer dizer que não existam
diferenciações entre os grupos que frequentam os poucos locais reconhecidamente voltados a
essa população, mesmo que os próprios estabelecimentos não sinalizem isto de forma mais

49
Aqui não estou levando em consideração os espaços de pegação ou de contato sexual, que são majoritariamente
voltados para homens que se relacionam afetiva e sexualmente com outros homens.
107

nítida. O que venho observando é uma configuração quase sempre mista, com alguns aspectos
prevalecentes, como raça, classe social, gênero, idade, entre outros.
No próprio La Luna, que tem um direcionamento explícito de seu público, encontramos
uma multiplicidade de sujeitos que compartilham o espaço, por exemplo, pessoas
marcadamente heterossexuais que frequentam o bar, esporádica ou constantemente, ou usam o
espaço da praça. Assim, outros elementos acabam direcionando as características do público,
como o tipo de música tocada, se é cobrada entrada, os preços praticados, a localização e
consequentemente o próprio perfil das pessoas que frequentam, acabam servindo como
aspectos para segmentação50. O formato do bar, a disposição de mesas e não ter uma “pista”,
como no caso de boates, também direcionam o público de acordo com as propostas e objetivos
para noite, por exemplo, ficar sentado conversando ou passar boa parte da noite dançando com
outras pessoas.
Um aspecto relevante que surge nas falas que encontro no/sobre o La Luna está ligado
a ele estar em um espaço aberto. Esse é um dos motivadores que tem mobilizado o público
desde antes a pandemia do coronavírus e aparece também no trabalho de Ferreira (2018), onde
os/as frequentadores/as do estacionamento do Carrefour apontavam como uma das
características/qualidades que os/as levavam até lá era ser um espaço aberto. Dentre outras
semelhanças, esses elementos surgem em ambos os lugares, podendo apontar esse ponto como
algo relevante para esse público em Natal.
Esses elementos citados também aparecem para França (2012) que desenvolve sua
pesquisa em três localidades da cidade de São Paulo, uma grande boate de música eletrônica,
um boteco onde funciona um samba GLS e uma festa voltada para ursos51. Durante suas
descrições, vai ficando nítido como estes lugares e seus públicos se produzem e se diferenciam
dos demais, relacionando elementos de classe, raça, masculinidade, corpo, preferências
musicais, entre outros. Esta é uma das nuances que aproximam esse mercado segmentado nas
duas cidades.
Uma característica que difere Natal dos grandes centros urbanos é a própria distribuição
geográfica52 dos lugares que aparecem no imaginário coletivo dos/das LGBTQI+, ou onde sua

50
Um exemplo de evento que acontece na cidade é o “bar das sapatão”, uma festa direcionada à mulheres lésbicas
e bissexuais. Entretanto, o evento é aberto para “todas e todos”, desde que se respeite o protagonismo das mulheres,
como descrito no próprio evento. A presença de homens marcadamente gays no evento gerou alguns conflitos
fazendo uma das organizadoras se manifestar nas redes sociais. Para maior aprofundamento sobre a temática,
indico o trabalho de Suzanne Freire Pereira (2021) que tem refletido sobre sociabilidades entre mulheres lésbicas
e bissexuais em Natal/RN.
51
Grosso modo, são homens gordos e peludos que se relacionam afetiva e sexualmente com outros homens.
52
Ferreira (2018) faz um ótimo trabalho ao pontuar esta distribuição geográfica na cidade entre os anos de 2014 e
2017.
108

frequência é marcada. Notavelmente, a maior parte das poucas iniciativas que funcionam
atualmente na cidade se concentram na Zona Sul, mas até estas estão espacialmente separadas.
Diferente do que nos apresenta França (2007), onde se constituem nichos com diversos
estabelecimentos, marcadamente direcionados para segmentos desse grupo, concentrados em
ruas ou no centro histórico de São Paulo. Localmente, a experiência que mais se aproximava
disso seria a Rua Chile, no bairro da Ribeira, que congregava alguns lugares e eventos, como a
virada cultural, marcados pela presença de LGBTQI+, mas a falta de investimentos fez com
que aos poucos os estabelecimentos fossem fechando, diminuindo a movimentação da rua.
Como pude notar através do trajeto percorrido durante as pedaladas, o La Luna
compartilha uma proximidade espacial com alguns outros estabelecimentos voltados ao lazer e
sociabilidade, por exemplo, os que estão espalhados ao longo da Av. dos Pinheirais, vizinha a
praça. Entre bares mais estruturados, cigarreiras, algumas bodegas53, lanchonetes e um 24h,
pouco diálogo parece acontecer entre esses lugares e o La Luna, com exceção da conveniência
24h que surge como alternativa para a compra de bebidas, cigarros e petiscos que acabam sendo
levados e consumidos na praça. Esse lugar também aparece enquanto opção de “after”, como
já foi abordado no capítulo anterior.
Na pesquisa anterior (Santos, 2019), abordei como a partir da presença do La Luna
outros pequenos negócios foram se instalando ao redor da praça, oferecendo uma diversidade
de comidas e aproveitando o público que se concentrava no bar. Com a pandemia e o
fechamento do estabelecimento, esses outros pequenos negócios que ali orbitavam também
deixaram o local. Durante a reabertura só vi uma outra iniciativa na praça, uma barraca
vendendo cachorro-quente, que logo deixou de acontecer. Na outra esquina, onde fica uma
bodega, se instalou um carrinho de cachorro-quente, que tem funcionado inclusive nas noites
em que o bar não está fechado. Recentemente, na esquina oposta também foi reaberto uma
barraquinha de açaí.
Outra modalidade de comércio que ocorre na praça é menos fixa, são pessoas que
circulam pelo público ofertando uma gama de produtos, principalmente brigadeiros, bolos,
cookies e pirulitos, que eventualmente contam com a opção “mágica”54 ou “canábica”. Algumas
figuras já são conhecidas por seus produtos, frequentemente é solicitada a opinião de alguém
que já consumiu as mercadorias para saber se “bate mesmo? ” e se o negócio “vale a pena”.

53
Um tipo de pequeno comércio que, geralmente, compartilha o espaço da casa na venda de alguns doces, chicletes,
confeitos, pipocas e salgados.
54
Que em sua composição é utilizada a maconha, apresentando uma alternativa para o consumo da erva que
geralmente é fumada.
109

Esses/as comerciantes parecem tecer uma relação bastante harmoniosa na praça, entre as
passadas nas mesas ficam com algum grupo, se misturando com o público geral do bar, sendo,
em muitas situações, vendedores no e consumidores do La Luna.
Se faz necessário trazer um pouco do debate acerca do consumo e quais perspectivas
entendo dialogarem com este trabalho. Gisela Black Taschner (1997) aponta que em
abordagens mais tradicionais, por exemplo na economia e na sociologia, as análises privilegiam
as relações entre consumo e produção, com enfoque nas questões de trabalho, desenvolvimento
do capitalismo, alienação, entre outros. O que a autora chama atenção é para abordagens mais
recentes, que ampliaram as análises voltando o olhar para relação entre consumo e cultura, no
esforço de compreender como esses elementos dialogam e vão se constituindo. Seguindo esta
concepção ampliada, a autora apresenta a categoria “cultura do consumo”, que entende como:
Todo um conjunto de imagens e símbolos que vão sendo criados e recriados,
associados a esses bens, além de novas formas de comportamento efetivo e no
modo de pensar e sentir de segmentos cada vez mais amplos da população da
chamada sociedade ocidental, os quais valorizam positivamente os atos
ligados ao consumo de bens e/ou serviços, seja renovando-os seja
acumulando-os. (TASCHNER, 1997, p.184)

A ideia de cultura do consumo serve de âncora para pensar o consumo ultrapassando as


simples relações de compra-venda, podendo-se observar contextos onde este passa a mediar
relações, atribuir status, caracterizar sujeitos, ou seja, transmitir uma mensagem através destas
práticas. Taschner (1997) vai ainda destacar uma dimensão política, de forma mais marcada no
último século, que ajuda a pensar os desdobramentos encontrados em campo. Ao tratar do
processo de consolidação dos direitos/defesa do consumidor, fica nítida a relação entre
consumo e cidadania, entendida como acesso a direitos e garantias, sendo o primeiro uma via
de consolidação da segunda. Assim, os/as consumidores/as podem utilizar de sua força política
para pressionar ou reivindicar causas, como conclui a autora “Em outras palavras, em vez de
ser inibida por uma cultura do consumo, a cidadania parece ter chances de ser melhorada ou ao
menos ampliada por ela. ” (TASCHNER, 1997, p.198).
Estes apontamentos parecem dialogar diretamente com a ideia de mercado segmentado,
visto enquanto possibilidade de consumo, que neste trabalho circula em torno do lazer e
sociabilidade, mas também do uso e apropriação de espaços da cidade. É interessante ressaltar
como a atuação dos consumidores podem interferir diretamente nas dinâmicas de mercado
através de ações coletivas e individuais, como exemplo o boicote a determinados
110

estabelecimentos ou marcas55. Também vale ressaltar as conexões com dimensões políticas e


outras formas de atuação e reivindicação de pautas, como abordarei ao longo do presente tópico.
Um aspecto que se torna fundamental para entender a constituição do mercado
segmentado, e do próprio La Luna, é a identificação política e as conexões estabelecidas entre
a constituição de identidades e sujeitos políticos, como o caso das pessoas LGBTQI+ e o
mercado. Ressaltando a ideia de consumo enquanto aspecto que pode aproximar ou fortalecer
os processos de construção de subjetividade, de reconhecimento e pertencimento a
determinados grupos, Gleicy Mailly da Silva (2019), partindo da experiência de uma
marca/ateliê direcionado a mulheres negras, aborda em sua pesquisa “como algumas formas
recentes de engajamento político de mulheres negras têm articulado relações entre corpo,
estética e emoção enquanto aspectos centrais de seus processos de autoafirmação e de
aprendizado político” (SILVA, 2019, p.174).
A autora coloca como o lugar vai se configurando enquanto espaço de encontro,
traçando reformulações sobre corpo e sentidos de beleza, ultrapassando uma relação simples de
negócio centrado somente na compra e venda. Assim, partindo desta vivência, mulheres negras
têm construído novos referenciais não só de padrões de beleza, como também atribuindo novos
significados a sentimentos e emoções causados pela sensação de desajuste ou inadequação,
fazendo emergir emoções positivas que vão sendo coletivamente reconfiguradas por essas
experiências. Permeadas por outras possibilidades de subjetivação e de identificação, trazem o
consumo e o mercado segmentado como um meio que propicia contatos e inclusões, utilizando
a estética e o próprio corpo como comunicador de seu lugar político no mundo social.
Vejo algumas aproximações entre nossos campos, principalmente pela abordagem que
relaciona o que muitos classificam como “pautas identitárias" que podemos pensar enquanto
uma agenda de interesses de grupos sociais específicos e consumo, observando como o mercado
segmentado tem estado atento e buscado absorver cada vez mais algumas das demandas que
surgem nesse processo. Outro ponto é a centralidade de um espaço capaz de congregar esses
dois aspectos, que nesta pesquisa se manifesta na experiência do La Luna.
Essa parece ser uma expressão do funcionamento do sistema capitalista que tem a
capacidade de absorver e assimilar possíveis críticas, ameaças e desvios, garantindo sua

55
É importante pensar também como essas ações podem estar articuladas não com a garantia de acesso, mas a
manutenção de exclusões históricas. Como exemplo, inúmeros casos de marcas que buscam incluir determinados
segmentos da população ressaltando a ideia de diversidade e são bombardeadas por campanhas de boicotes
encabeçadas por setores conservadores. Consultar em:
https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2015/06/01/opiniao-quer-boicotar-empresas-que-apoiam-lgbts-
feche-a-conta-no-facebook.htm
111

continuação e perpetuação dentro de novas dinâmicas sociais. Izabela Domingues e Ana Paula
de Miranda (2020), exploram como empresas e marcas têm buscado incorporar o discurso
ativista em suas diversas áreas de atuação. Dessa forma, se torna possível não apenas
comercializar pautas políticas, como também operar uma reconversão simbólica
transformando-as em objetos para consumo que por vezes se dá de forma contraditória. Como
exemplo, as autoras trazem a popularização da imagem de Ernesto “Che” Guevara, um dos
líderes da revolução cubana e crítico do capitalismo, sendo amplamente comercializadas sem
necessariamente estabelecer ligações com seu simbolismo.
De forma ampla, a proposta das autoras é mostrar que consumo e ativismo não estão
obrigatoriamente em lados opostos “O ativismo pressupõe o consumo de símbolos capazes de
propagar ideias e conceitos, os quais, por sua vez, acabam sendo reprocessados pelo sistema a
favor de sua própria reprodução” (DOMINGUES e MIRANDA, 2020, p.57). Nesta dinâmica,
o mercado vai criando estratégias de atuação que possam aglutinar consumidores apaixonados,
defensores que corroboram e legitimam suas ações, demonstrando apoio através do consumo e
também da propagação de uma imagem positiva sobre o produto/serviço. De forma oposta, se
busca evitar as críticas e protestos que questionam a construção dessa imagem, que proporciona
identificações políticas entre os sujeitos envolvidos no processo de consumo.
Um caso interessante que perpassa algumas dessas dinâmicas de apoio, críticas e
afastamentos, me surgiu através do Twitter. Conheci um interlocutor em uma das idas ao La
Luna, nas primeiras semanas do retorno das atividades no final de 2020. Homem branco, 23
anos, gay, com ensino superior, morador do bairro Capim Macio na Zona Sul e fã da cantora
Rihanna, é um frequentador assíduo do lugar. Depois de conhecê-lo, passamos a nos seguir no
Twitter, logo notei que ele também utilizava a plataforma para comentar sobre o bar, falando
sobre os convites que recebia de sua rede de amizades, situações que ocorreram na praça e,
adotando uma posição bastante engajada, sair em defesa do bar sempre exaltando suas
qualidades.
Entretanto, em janeiro de 2022 o rapaz foi ao Twitter fazer uma reclamação sobre o La
Luna, relatando como no dia do seu aniversário passou por mau atendimento por parte do bar.
Ele e seus amigos receberam reclamações pela quantidade de pessoas, por volta de 11, na mesa,
baseadas nas restrições causadas pela pandemia. O fato deixou o rapaz indignado, pois, em suas
palavras, “10 dias atrás o la luna tava fazendo um evento e ontem veio frescar pra juntar mesa.
”, apontando a incoerência na aplicação dos protocolos de segurança por parte do
estabelecimento. Ainda nessa postagem, ele comenta que seguirá frequentando o lugar por se
sentir bem e ter um carinho especial, mas que não era “besta”.
112

Depois de ler seu relato e fazer uma busca no seu perfil, percebi que aquela publicação
destoava das demais feitas sobre o bar, sempre o avaliando positivamente. Entrei em contato
com ele através de mensagens diretas, para entender melhor essa relação. Me interessava saber
as motivações de fazer aquele relato de forma pública e porque tinha escolhido o Twitter como
espaço para essa crítica. Trago algumas partes de nossa conversa:
No dia do meu aniversário e também mais umas 2x antes desse dia, vieram
falar com a gente reclamando da quantidade de pessoas(11 pessoas) por causa
da pandemia, mas não fazia sentido já que duas semanas antes do meu
aniversário eles fizeram um evento (feijoada de domingo) que não tinha nem
canto pra sentar de tão lotado, outra vez depois do meu aniversário teve uma
mesa com bem mais pessoas porém pessoas que tem uma influência em natal
e ninguém mexeu, outra vez uma mesa com 14 pessoas (quase 100% hétero)
e ninguém falou nada. . (Twitter, Março de 2022)

Eu costumo falar do bar no Twitter porque é a rede social que mais gosto de
usar mas também costuma postar no insta as vezes. Usei mais o Instagram pra
divulgar eles durante o período mais complicado da pandemia que eles
estavam só com delivery, pra ajudar a divulgar e fortalecer, sempre comprei
também por delivery pra ir ajudando e quando reabriu também fiz questão de
ficar indo e postando pra ajudar de alguma forma a não fechar. (Twitter,
Março de 2022)

Ao escolher esta plataforma para fazer sua crítica ao serviço do bar, ele aponta que só
fala “assim” por entender estar falando com sua rede de amigos, sua “bolha”, e em outros
contextos, como em uma “rodinha com meus amigos héteros", não expõe pontos negativos do
espaço. Entretanto, diz que não se sentiu valorizado como cliente, enfatizando todo o apoio que
tem oferecido ao bar, pelas conexões que faz com ele e pelo “valor” que o lugar possui. Apesar
de relatar seu descontentamento, ele deixa nítido que não tem intenção de boicotar o bar ou de
promovê-lo negativamente de uma forma geral: “Na minha bolha tá tudo certo eu falar. A gente
discute, mas a gente não boicota ou deixa de ir, ou de falar por aí em si. Mas tipo, a gente sente,
né.”.
A partir desse caso, podemos refletir como o bar e parte do seu público tem construído
um sentimento de grupo, de uma comunidade ancorada nos pertencimentos desenvolvidos entre
sujeitos e o espaço. Subjacente a isso, é perceptível o posicionamento político do rapaz na
maneira como suas críticas são tecidas e expostas, resguardando o estabelecimento e as pessoas
LGBTQI+, diminuindo possíveis aberturas para críticas externas, principalmente de
heterossexuais.
A exposição desse acontecimento não gerou respostas imediatas por parte do La Luna.
Ainda que o caso tenha gerado algumas interações e que o rapaz tenha marcado o perfil do bar
na publicação, ele não teve nenhum retorno. Trouxe esse caso para exemplificar como algumas
113

demandas são geradas para o estabelecimento por seu público. Neste caso, críticas ao serviço
são aliviadas ou não são alvo de forma mais intensa, em consequência da proposta e imagem
política que o estabelecimento vem construindo junto com seu público.
Nesse contexto, vai ficando cada vez mais nítida a capacidade de intervenção dos
consumidores no mercado. Para pensar esses sujeitos e suas atuações, Domingues e Miranda
(2020) exploram a ideia de “consumidor-cidadão”:
Consumidores se tornam comunicadores e multiplicadores de discursos
políticos definindo o consumidor-cidadão que busca demonstrar suas adesões
e seus apoios a causas atuais por meio do ato de consumo como disseminador
de narrativas agora visibilizadas em rede, entendendo os mesmos como
difusores de comportamento e propagadores do que chamaremos aqui de
consumo de ativismo. (DOMINGUES e MIRANDA, 2020, p.81)

Outra noção importante para as autoras é de consumo de ativismo, colocada como “a


adesão ao discurso ativista como valor simbólico de interação social que não implica em prática
de ação ativista, mas que também não a exclui.” (DOMINGUES e MIRANDA, 2020, p.82).
Para inteirar esse debate, as autoras ainda fazem uma diferenciação entre o consumidor ativista,
que se afirma por meio da prática constante, e o consumidor de ativismo, que busca expressar
seu apoio ou simpatia a alguma causa sem a constância da prática no sentido de ações mais
concretas.
Essas complexas relações auxiliam no entendimento de algumas narrativas sobre/com o
La Luna, por parte do público e do próprio bar. Diversas vezes me foi relatada a importância
do estabelecimento pelas pautas políticas que ele representava, bem como sobre a importância
de o público estar ali “apoiando” a iniciativa. Ainda nesta direção, Vanessa costuma ressaltar,
durante conversas e falas públicas, o “peso” do La Luna ser gerenciado por duas mulheres
lésbicas e outras nuances que isso representa, desde possibilidades de acesso a lazer e
sociabilidade para pessoas LGBTQI+ até dificuldades específicas que o lugar enfrenta para se
manter funcionando, reflexo dos preconceitos encarados por suas características e pelo perfil
do público que o frequenta.
Esse panorama ilustra como o consumo simbólico, e como os sujeitos também se
apropriam de coisas e locais para suas pautas do ativismo, vem sendo apropriado pelo
mercado/marcas e pelos cidadãos como moeda social, que consegue articular alguns status
positivos para aqueles/as que vinculam sua imagem à essa prática. Também serve para destacar
como as fronteiras entre mercado, consumidores, cidadãos, marcas e ativistas acabam sendo
borradas, por vezes confundindo os papéis e finalidades de cada um desses atores no processo
do consumo.
114

Nessa relação que vai se estabelecendo, não só o mercado se apropria das pautas sociais.
Meu campo serve para ilustrar como o La Luna se apropria de narrativas políticas para se
produzir ao mesmo tempo que os próprios movimentos também utilizam do
estabelecimento/bar, se apropriando desses espaços, ampliando suas formas de atuação e
propagando os ideais políticos que defendem.
Penso que no contexto local o bar se destaca e, com isso, acaba se distinguindo de outros
espaços por sua abordagem ao reconhecidamente “levantar bandeiras”, tecendo complexas
relações que extrapolam o âmbito comercial de compra e venda. Ao desenhar posicionamentos
que “normalizam” ou legitimam experiências que fogem da cisheteronormatividade, acabam
construindo um lugar onde LGBTQI+ se sentem seguros para se expressar. Esse fenômeno
ocorre de forma semelhante para as pessoas que fazem uso da maconha, entre outros grupos.
Essas ressignificações estão presentes no espaço da praça e agregam valor e status não
só aos produtos e a experiência, que em uma concepção ampliada de consumo também é
englobado naquilo que é ofertado pelo bar e consumido por seus clientes. É também parte
daquilo que passa a qualificar e/ou caracterizar aquele lugar. Esse fato não é restrito aos clientes,
tendo em vista que parte do público pode frequentar a praça sem necessariamente tecer relações
comerciais com o estabelecimento.
Sobre esta experiência, um caso específico ajuda a ilustrar um pouco deste debate. Em
uma quinta-feira, junho de 2021, chamei Suzanne para “dar uma volta” de bicicleta e parar no
La Luna para ver o que estava acontecendo por lá. Passei na casa dela e fizemos uma rota
diferente da que costumo utilizar, passando da Av. Maria Lacerda para BR-101 em direção à
Neópolis. Já era por volta das 21:00, o fluxo de carros estava bem calmo o que proporcionou
uma pedalada tranquila, já que a alta velocidade dos carros nessas vias aciona um estado de
alerta constante em quem está de bicicleta.
Chegando ao bar, pouco mais de 10 mesas no cercadinho e dois grupos na parte de fora
estavam pela praça. Estacionamos as bikes próximo ao quiosque e no caminho para sentar em
um dos bancos Suzanne encontrou um casal de amigas que nos convidou para ficar em sua
mesa. Aceitamos. Já conhecia uma das moças de outra ida ao bar e lembrava de algumas falas
interessantes durante as conversas. Nesta noite, alguns pontos se repetiram e decidi tomar nota,
falando um pouco sobre minha pesquisa e fazendo algumas perguntas.
Essa moça é bastante falante, estudante de mestrado, branca, vinda do interior do estado,
da cidade de Macau, tendo migrado justamente por causa da faculdade em 2014. Foi na
universidade que presenciou o primeiro beijo entre pessoas do mesmo gênero. Contou que não
115

lembrava se tinha sido entre homens ou mulheres, mas havia sido em um “role do DEART”56.
Bissexual, ela relata sobre como a experiência de ser do interior57 influenciou em seu
entendimento tardio enquanto “bi”, evidenciado por manter-se relacionando exclusivamente
com homens ao chegar em Natal. Isso, segundo ela, apenas se transformaria depois do contato
prolongado com amigas lésbicas, quando teve sua primeira “experiência com mulher” e logo
iniciaram um relacionamento.
Em razão dessa relação e, posteriormente, pela pandemia, disse que não conseguiu ir
em muitos “roles” ou lugares em Natal voltados para o público LGBTQI+. Várias vezes ela se
diferenciava das outras meninas na mesa justamente por sua pouca experiência enquanto “bi”,
apontando que as amigas e a sua namorada eram “experts” no assunto e que já tinham “pegado
muitas mulheres”.
O pouco movimento no bar, a música um pouco mais baixa que o costume, tocando
“forró das antigas”, a noite, as luzes coloridas próximas ao balcão e o clima frio típico da época,
compunham o cenário da conversa que continuava. Em uma mesa próxima, reconhecemos um
amigo que estava com mais duas pessoas, uma conversa rápida entre as mesas surgiu quando
os dois grupos estavam procurando por seda para bolar um cigarro.
Voltando o olhar para a mesa, a moça continuava falando sobre sua experiência e
articulava uma narrativa que envolve o “interior” e a família, na figura da sua mãe. Diz que
depois de se entender como bissexual e começar a namorar uma mulher, a mãe não aceitou
muito bem. Acrescentou que não encontrava no espaço da família um lugar de acolhimento
para falar sobre o que estava passando, mesmo conseguindo dialogar sobre outros âmbitos de
sua vida. Já atento nesta história, que tinha sido apresentada na conversa anterior, ela conta
como sofrer um acidente no fim de 2020 fez com que ela sentisse a necessidade de “sair do
armário” para família toda e para o “interior”, revelando que esse processo foi fundamental para
sua saúde mental.
Nesse momento ela já introduz em sua fala a importância de estar entre pessoas
LGBTQI+ que compartilham e compreendem sua situação, mencionando o La Luna como um
lugar que possibilita o encontro e essas conversas. Em suas palavras:
Olhe eu estou falando muito aqui, mas isso tudo foi um processo. Eu falo agora
que estou aqui, na mesa só tem viado e sapatão, eu sei que não vai acontecer

56
DEART é o Departamento de Artes da UFRN, fica localizado já nas extremidades da universidade com o viaduto
próximo ao Via Direta Shopping e Natal Shopping, um pouco afastado dos demais centros e departamentos de
aula. Entre 2014 e 2018 ocorreram diversos eventos, com diferentes propostas, entre eles alguns direcionados a
pessoas LGBTQI+ do qual participei da organização.
57
Durante a conversa o “interior” surgia como referência a Macau, mas também era acionado de forma mais ampla,
referenciando uma experiência interiorana compartilhada por pessoas “assim como a gente que é LGBT e veio do
interior” como ela mesma define após saber esse nosso aspecto em comum.
116

nada comigo e minha namorada. Posso beijar e ficar aqui, porque sei que como
o espaço é, é um lugar para gente... E não foi fácil, viu! Sentar e falar assim
sobre todas essas coisas, de perguntar pra saber mais como era isso de namorar
uma mulher, e estar em um lugar que me deixa acolhida foi fundamental. A
gente aqui dessa mesa só se encontrou hoje por causa do La Luna, tô errada?
(Diário de campo, Junho de 2021)

Estar entre pares em uma mesa de bar onde é “aceita e acolhida” faz com que ela se
sinta à vontade para falar sobre esferas de sua vida que entende não ser possível abordar em
outras situações, como no ambiente familiar, no “interior” ou mesmo outros núcleos que circula
e tem uma predominância de pessoas heterossexuais, como o trabalho. Em outro momento,
ressalta a importância de valorizar espaços desse tipo e o esforço que as donas, principalmente
Vanessa, que é sua amiga, fazem para manter o lugar funcionando.
Além destes aspectos, é interessante perceber como outra referência espacial, o
“interior”, aparece nesta fala com tom de oposição. Um lugar que não se pode falar, diferente
do La Luna e as aberturas encontradas nele, e está relacionado com a presença da família. Nesta
outra localidade, o processo de “sair do armário” se faz necessário não só para o núcleo familiar
como também para o “interior”, tendo em vista as tramas mais próximas, íntimas e os
mecanismos de controle social que cidades pequenas proporcionam.
Utilizando novamente as contribuições de Silva (2019), a autora sintetiza de forma
bastante objetiva em suas considerações finais as relações traçadas entre consumo e política
ilustradas nas falas dessa interlocutora:
Consumo e política seguem experimentados através do corpo e traduzidos na
forma de emoções e de sentimentos partilhados coletivamente reforçando a
concepção feminista de que “o pessoal é político”. E se corpo e emoções estão
na ordem do político, o consumo torna-se um aspecto central na integração
desses diferentes elementos de interação que revelam novos espaços de
enunciação, de reflexão, e também de cooptação. Desse modo, tais dinâmicas
indicam, sobretudo, itinerários de luta por visibilidade e por reconhecimento.
(SILVA, 2019, p.198)

Não é todo o público que se engaja nesta economia de sentimentos, como também
podemos observar no caso do rapaz do Twitter relatado acima, que está presente no e com o
bar, entretanto ela é constantemente acionada pelo público e pelo próprio estabelecimento, que
articula os vínculos construídos no/com o lugar e seus posicionamentos e ações políticas,
desempenhando um papel diferenciado dentro do conjunto de espaços voltados ao público
LGBTQI+ em Natal.
117

Ainda seguindo as contribuições de França (2007), ao traçar aproximações entre


“mercado GLS” e “movimento GLBT”58, no contexto de São Paulo a partir da década de 90,
um ponto interessante é destacado: o compartilhamento de símbolos entre estes dois atores.
Assim, símbolos caros ao movimento, como as bandeiras59, vão sendo cada vez mais utilizados
pelos estabelecimentos, sinalizando para qual público aquele serviço é voltado, ou ainda
ressaltando a “inclusão” desses grupos, o que surge em alguns contextos como
“LGBTfriendly”. Nas palavras da autora:
Os espaços de consumo e sociabilidade passam a incorporar, em certa medida,
elementos do discurso ativista do orgulho e da visibilidade, explicitando o seu
direcionamento a um público de orientação sexual determinada e
compartilhando alguns símbolos com o movimento GLBT, como é o caso da
bandeira do arco-íris, que passa a ser comum em lugares GLS e em muitas
atividades do movimento. (FRANÇA, 2007, p. 299)

Estas observações se fazem presentes também no La Luna, no espaço físico e nas redes
sociais. De longe, ao chegar na praça se vê uma bandeira do arco-íris pendurada na porta do
balcão do bar, posicionamento que também é destacado nas descrições dos perfis nas diferentes
plataformas digitais. Outros símbolos ornamentam o lugar, como aqueles direcionados a outros
grupos e pautas políticas, como combate ao racismo, valorização da estética negra, combate ao
machismo e apoio às pautas feministas. De forma mais segmentada, dentro do grupo
“LGBTQI+”, temos o apoio a causa lésbica, bissexual e das pessoas trans e travestis, apontando
a falta de visibilidade e representação política dentro do movimento que acometem estes grupos
específicos.
No espaço físico do quiosque e pela praça, estão placas, adesivos, artes visuais como
colagens, grafites, pichações, estêncil, poesias e frases que se espalham desde os antigos
brinquedos de alvenaria na parte de trás da praça, bancos, paredes, até nos banheiros. De forma
ampliada, transmitem mensagens sobre inclusão, liberdade, igualdade, combate às opressões,
legalização das drogas e das disputas acontecendo naquele cenário. Parte deste arcabouço
simbólico ressalta ideais de juventude, contestadora e ativa nas transformações, já apontados, e
servem como aglutinadores e ainda como marcas que qualificam o lugar e seu público.
Esta cena repleta de informações compõem uma identidade política para o bar, que é
capaz de comunicar, como tratamos acima, quais perspectivas são adotadas pelo

58
Essas são categorias utilizadas pela autora no artigo. Pela data de publicação e a constante complexificação das
identidades abarcadas neste grupo optei por manter, entendendo que a autora em trabalhos recentes já utiliza outras
categorias mais abrangentes.
59
Diferentes representações são acionadas por meio das bandeiras, como o arco-íris, com um machado
representando as lésbicas, ou uma pata de urso, entre outras, representando algumas diferenciações dentro do que
é englobado enquanto LGBTQI+. Outros movimentos também utilizam desses símbolos, como as feministas, a
luta antirracismo e outros.
118

estabelecimento. Não coincidentemente, os signos espalhados pela praça reforçam essas ideias,
aproximando o público e, por vezes, afastando sujeitos que adotam posicionamentos contrários
ou conflituosos. Assim, os vestuários, as substâncias utilizadas, os assuntos abordados, as
próprias experiências no local, entre outras coisas, passam a agregar aquele ambiente fazendo
com que o público corrobore, em certos níveis, com a mensagem comunicada pelo La Luna
através, também, do consumo, tornando-se parte dela. Esse último ponto ganha forma nas
intervenções realizadas por frequentadores/as do local, são mensagens compartilhadas através
das diversas expressões artísticas citadas acima que reafirmam laços entre sujeitos e lugares.
Essas movimentações de aproximação/afastamento remetem novamente ao debate sobre
fronteiras, já detalhado anteriormente. Entretanto, vale pensar que tratamos aqui de dimensões
que se expressam através desse “consumo ativista” que enxerga na ida ao bar/praça uma forma
de apoio a causas políticas, como os direitos das pessoas LGBTQI+, ao mesmo tempo que
buscam se distanciar de outros espaços da cidade, sobre os quais recaem alguma acusação ou
memória de evento negativo, como aparece na fala a seguir:
Eu gosto de vir ao La Luna porque é um bar LGBT de verdade, assumido! E
não é como outros por aqui que só apoiam a causa na hora do dinheiro.
Também ia pra outros barzinhos aqui por perto, mas sempre que acontece uma
coisa que faz a gente se afastar. Por exemplo, o Pedrão que já teve altos casos.
De racismo mesmo, tu ficou sabendo, né? (Diário de Campo, Setembro de
2021)

Ao ser perguntada sobre os motivos de ir ao bar, essa interlocutora busca qualificar o


La Luna através de seu apoio a causa LGBTQI+ de forma “assumida”, ressaltando como esse
posicionamento está presente no espaço. De forma contrária, aponta um outro bar do qual se
afastou pelos eventos negativos, inclusive questionando se eu tinha conhecimento do
acontecido. Dessa forma, acredito que através dessas escolhas, da forma como ela estabelece
alguns critérios para frequentar/consumir os lugares, a interlocutora elabora uma mensagem
sobre si, adquirindo status positivos ao apoiar um bar “LGBT de verdade” enquanto “boicota”
outro, acusado de protagonizar uma situação envolvendo racismo.
Esses elementos que vão formando o cenário da praça evidenciam outras formas de usos
e apropriações. Quando somados as diversas formas de ser e estar naquele lugar, observando a
perspectiva corporal e de performance como meio de expressão, revelam a dimensão política
que vai sendo conformada. Novas estratégias vão se configurando a partir de experiências como
o La Luna, evidenciando verdadeiras cenas que envolvem política, consumo, sociabilidade,
corpo e dinâmica urbana.
Embora o Estado e os movimentos sociais sejam as esferas a partir das quais
tradicionalmente pensamos o fazer político, é preciso lembrar que as esferas
119

do mercado e do consumo também constituem cenários públicos em que nossa


capacidade de agência e ação política é exercida, independentemente de
aderirmos ou não a noções como “sociedade do consumo”. Nessas esferas,
também se negociam direitos, disputam-se significados, enfrentam-se ou
reforçam-se desigualdades. (FACCHINI, FRANÇA, BRAZ, 2014, p. 123)

Esse esforço de demarcação de posicionamentos não se limita aos símbolos acima


mencionados. O bar tem sido palco para uma série de atividades afinadas com as pautas que
defende, como rodas de conversa sobre o 29 de agosto, dia da visibilidade lésbica, debate e
apresentação de candidaturas ao legislativo municipal encabeçadas por mulheres que constroem
as pautas feministas, LGBTQI+ e de negritude. Neste conjunto também são somadas as
participações em várias campanhas locais e nacionais, que vão desde arrecadações de alimentos
e absorventes, rifa para mastectomia60 de homens trans, até a campanha nacional pela
criminalização da LGBTfobia que passava pelo Supremo Tribunal Federal – STF em 2019.
Lazer e corpo são imbuídos por nuances do fazer política, como aparece durante
algumas conversas estabelecidas no bar. Se em outros contextos os corpos que se distanciam
das normatividades hegemônicas são apresentados como alvos de violência, discriminação e
preconceito, pela chave do lazer e da construção coletiva de um lugar, podem ser pensadas
outras possibilidades que positivam aquelas experiências e existências. Entretanto, não quero
aqui negar a possibilidade do acontecimento de violências em vários âmbitos que também se
fazem presentes na praça, mas mesmo nestas situações o tratamento tende a ser diferenciado,
na medida que o bar tem a oportunidade de colocar em prática seu discurso, como aparece em
alguns momentos que serão tratados no próximo capítulo.
Assim, é reconhecido o processo de transformar os estereótipos, que insistem na
narrativa única de vulnerabilidade, e se atentar às negociações e perspectivas que reconhecem
os diferentes agenciamentos estabelecidos nessas relações. É preciso estar aberto para novas
formas de atuação política61 que têm ao longo dos anos se fortalecido e incorporado elementos
próprios de um sistema econômico que impulsiona o consumo e a rapidez nas trocas de
informação presentes nas sociedades ocidentais.

60
Procedimento cirúrgico que consiste na retirada da glândula mamária e reposicionamento das aréolas.
61
O Estado continua sendo um mediador e produtor de algumas atuações políticas, bem como da ideia de
desenvolvimento e ampliação de mercados. O governo do Rio Grande do Norte tem feito algumas aproximações
e sinalizações mostrando interesse no desenvolvimento do “turismo LGBT”, realizando capacitações e
confirmando presença em fóruns voltados para esse ramo. Consultar em: https://brasilturis.com.br/rn-confirma-
participacao-no-forum-de-turismo-lgbt-do-brasil/
http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/rn-faz-capacitaa-a-o-de-profissionais-para-captar-turistas-
lgbtq/496780
120

3.2 Estratégias de consumo, atuação política e engajamento do público

Não podemos perder de vista que todos estes elementos estão inseridos em um contexto
atravessados por dinâmicas comerciais, afinal este é um dos pilares que mantém o bar ativo e
em funcionamento. De maneira bastante singular, no conjunto dos diversos equipamentos de
lazer encontrados em Natal, o La Luna se beneficia dessa relação política com grupos
específicos e sua atuação pode ser entendida como uma forma de propagandear o negócio,
mesmo que para Vanessa este não seja o objetivo dos vários posicionamentos adotados.
É interessante perceber como o bar se distancia de outros que estão geograficamente
próximos quando observamos estratégias e atributos utilizados na divulgação e
impulsionamento do negócio. Tomando como referência os estabelecimentos presentes no
trajeto das pedaladas, a música ao vivo é um fator que impacta diretamente na maior quantidade
de público. Até nos períodos das políticas restritivas, os bares em Ponta Negra chegavam a lotar
e causar pequenas aglomerações nos dias de apresentações dos grupos que executavam
repertórios focados em músicas que estavam em evidência no período, em especial, o “piseiro”,
o sertanejo universitário, o samba e o forró.
Outro atrativo acionado por estes locais é a reprodução ao vivo dos jogos de futebol dos
principais campeonatos nacionais e internacionais. Nos dias de jogo, era comum a presença de
pessoas com camisas de seus times bebendo enquanto assistiam as disputas. Este é inclusive
um recurso que os bares menores, como os localizados na Av. dos Pinheirais, conseguem
articular, diferente da música ao vivo que só presenciei nos bares com melhores estruturas e
maiores públicos. Lógico que existiam diferenças nesse aspecto também, enquanto os primeiros
usavam televisões com dimensões menores, os segundos contavam com grandes telas e
projetores. Algumas vezes me deparei com ambos os atributos acontecendo simultaneamente,
estes foram momentos em que notava quantidades de pessoas que extrapolavam as delimitações
físicas dos bares.
O La Luna já utilizou dessas estratégias antes do início da pandemia, com algumas
diferenciações. Na adoção da música ao vivo, que ocorreria com maior frequência, a praça
ficava lotada, inclusive era preparado uma estrutura de bar além do quiosque para dar conta das
demandas do público. Somada a mudança física, a escolha das apresentações acionava a ideia
de “representatividade”, que era reforçada durantes algumas falas no microfone, dando
preferência a artistas LGBTQI+, abarcando desde grupos, djs e algumas performances62.

62
Um dos últimos eventos deste tipo que ocorreram no bar foi uma batalha de Vogue e discotecagem, organizadas
pelo Coletivo Ninho de Guabiru em parceria com o La Luna., em uma sexta-feira 13, do mês de março de 2020.
121

Seguindo este fluxo, os estilos musicais presentes nos repertórios incluíam a música eletrônica,
o house, o pop internacional e nacional, representados majoritariamente pelas cantoras drag
queens, transgênero e travestis que tem ganhado maior destaque na mídia de massa, semelhante
ao que toca no bar durante os dias “comuns”.
O bar também teve experiência com o futebol. Em 2019, fez parte da campanha “Jogue
Como Uma Garota”63 e transmitiu os jogos da copa do mundo de futebol feminino daquele ano.
Nas chamadas divulgando a abertura do bar nas redes sociais, em dias e horários que nem
sempre seguiam seu funcionamento rotineiro, era reforçado a importância de acompanhar e
celebrar o futebol feminino. Eram levantados pontos sobre a falta de investimentos e
visibilidade para esta modalidade, tendo em vista que esta era a primeira vez que a competição
era transmitida em um canal da televisão aberta.
Ainda neste evento, o Tirésias – Núcleo Interdisciplinar de Estudos em Diversidade
Sexual, Gênero e Direitos Humanos da UFRN, em um dos dias que ocorreu a transmissão,
realizou um debate no bar, antes do jogo começar, convidando algumas mulheres atletas,
professoras e estudantes envolvidas com o esporte em Natal e na Região Metropolitana, para
conduzir a conversa com título “A copa é das mulheres”. Com isso, se evidencia que para além
da relação entre o La Luna, política e consumo se somam ações da universidade,
complexificando a gama de atores operando e produzindo diversas formas de diálogos e
movimentações.
Esses diálogos e alianças formados com outros atores, que tem como amálgama o apoio
à alguma pauta política, como a causa das mulheres ou da população LGBTQI+, fortalece a
perspectiva de que os variados movimentos não podem ser analisados sem levar em
consideração os contextos sociais e históricos nos quais estão inseridos, ou das relações que os
constituem. Facchini (2009), partindo do movimento LGBT brasileiro, reflete sobre contexto
de múltiplas conexões utilizando as noções de “campo” e de “arena”. A primeira se refere aos
atores diretamente envolvidos nos processos, podendo se expandir/contrair seus limites. Já o
segundo, seria uma área social ou cultural imediatamente próxima ao campo, onde se encontram
os sujeitos políticos que não estão diretamente engajados nos processos definidores, mas estão
ligados diretamente com os participantes do campo.
Estas noções auxiliam na ampliação das perspectivas sobre os movimentos políticos
possibilitando reconhecer diversas posicionalidades através das atuações, negociações e

63
Campanha nacional pensada pela marca-protesto Peita, de Curitiba. Foram mobilizados vários bares pelo país
no intuito de apoiar as jogadoras da seleção feminina de futebol com a torcida e promover o debate político sobre
o lugar da mulher na sociedade.
122

coalizões que são formadas para o fortalecimento de algumas pautas. Aqui em especial,
podemos pensar o lugar do consumo que pode aparecer mais na arena, como marcas
“LGBTfriendly”, ou em espaços como o La Luna que adentra o campo através de sua atuação
na cidade, sendo inclusive reconhecido em algumas instâncias institucionais64.
Por fim, uma estratégia que tem sido adotada desde antes da pandemia é a “feijoada
tradicional e vegana”, ocorrendo nos domingos. Esta tem sido uma experiência que acaba se
diferenciando dos outros dias no bar, por acontecer uma vez ao mês, começando à tarde.
Ocorrem também variações no cardápio, com a oferta da feijoada e até as músicas são alteradas
apresentando maior frequência dos ritmos como samba e reggae. O público em si não parece se
modificar, mas é notável outras estéticas nas vestimentas, nos adornos, que parecem se adaptar
ao momento do dia e ao clima quente da cidade. No fim de 2021 se iniciou uma feirinha, Feira
do Kbça, com apoio do La Luna, reunindo diversos artistas, empreendedores, pequenos
comerciantes, que se espalham pelo espaço da praça. Não consegui acompanhar de forma mais
detida as edições que foram ocorrendo, mas é uma iniciativa que se soma e ilustra o que vem
sido debatido ao longo do texto.
Trouxe estas experiências para explanar algumas das formas que mercado e política se
articulam na composição desses atrativos. Se na experiência de outros estabelecimentos o uso
da música ao vivo ou do futebol recorrentemente propiciam um maior número de clientes, no
La Luna podemos notar como estas ganham características que aproximam o público, como a
presença dos/das Djs ou a opção vegana da feijoada. Também servem para reafirmar
posicionamentos do bar, como a transmissão do futebol feminino. São táticas que
propagandeiam o negócio ao mesmo tempo que denotam o nicho ao qual se destina, ou se
prioriza, o bar, materializando mais uma vez a construção de uma identidade política para o
estabelecimento, forjada nas pautas e ações adotadas juntamente com seu público.
Este movimento que relaciona política e consumo também se dá em outra frente,
protagonizado pelo público em sua posição de consumidor, como foi abordado acima. A ideia
de consumidores ativistas/cidadãos explorada por Domingues e Miranda (2020) ajuda a pensar
as atuações desses diversos atores no cenário do La Luna e da cidade65, sendo expressada, por

64
Em 2019, Vanessa e outras ativistas receberam homenagem da Câmara Municipal de Natal, através da
proposição feita pela então vereadora Divaneide Basílio (PT) em celebração do Dia Internacional do Orgulho
LBGT. Consultar em: https://www.cmnat.rn.gov.br/noticias/1273/ativistas-recebem-homenagem-da-cmara-no-
dia-do-orgulho-lgbt
65
Alguns casos em Natal promoveram discussões e mobilizações, por exemplo um casal de rapazes que foram
abordados dentro de um shopping por um senhor que pedia para eles se afastarem, os mesmos postaram um vídeo
da situação “expondo” o ato de homofobia sofrido. O relato gerou grande indignação, ganhando proporções
nacionais e fazendo com que o shopping lançasse nota afirmando seu posicionamento contra qualquer tipo de
123

exemplo, através da presença do público nos eventos citados acima ou ainda por meio de
curtidas, comentários e compartilhamentos nas redes sociais, com mensagens que reforçam a
importância dessas atividades.
Durante minhas investigações do Twitter, esbarrei com algumas publicações que
conseguiam sintetizar algumas das nuances desses consumidores ativistas. Me chamava atenção
às articulações que se formavam na tentativa de qualificar o estabelecimento, apontando como
o espaço conseguia de diversas maneiras proporcionar uma experiência singular para o público
LGBTQI+, articulando lazer, segurança e possibilidade de uso dos espaços da cidade. Abaixo,
reproduzo dois exemplos66, uma “thread67” e dois tweets, retirados do Twitter:
Eu preciso falar um pouco sobre a importância da cigarreira no meio de uma
praça pintada de roxo. Como futuro arquiteto e urbanista, constantemente
vemos exemplos teóricos e práticos de que espaços públicos são mais do que
apenas praças, parques e etc. De NADA adianta ter espaços bem elaborados
se a sociedade (ou parte dela) não tem nenhum laço afetivo pelo local. +Pois
bem, visto isso, entramos no assunto de que na nossa cidade as opções para a
parcela LBGTQIA+ da população são escassas e muitas vezes, nem é
acessível para todos ao mesmo tempo. +Agora pense comigo, é certo destratar
de tal forma um lugar que agrega significado para os moradores e para os
frequentam da área e que ainda proporciona lazer de forma segura e livre de
preconceitos para os LGBTQIA+? +As vezes somos bem infelizes com as
palavras e isso acontece. Mas é sempre bom aprender um pouco sobre
representatividade e significado. Saber que os espaços são feitos por pessoas
e pelas memórias afetivas que são construídas ali. Pela essência e pelo carinho
que recebem (TWITTER , Dezembro de 2020)

Eu levo totalmente pra o pessoal quem fala do la luna(e tipo, a troco de nad)...
Tem tantas questões importantes que um simples lugar levanta que
obviamente um desalmado n entenderia jamais. Eu jamais vou esquecer da
época das eleições 2018 e nem de todos os momentos icônicos que tive lá...
nunca foi sobre estrutura pq ali vai muito além de ser só um espaço, eh
resistência pura, eh acolhimento eh o maior 🏳️🌈❤️ (TWITTER, Dezembro de
2020)

Estas manifestações públicas em defesa do estabelecimento mostram um pouco desta


articulação entre consumidores, mercado e política. No primeiro, temos um estudante de
arquitetura enfatizando esta característica para dar força ao seu argumento sobre as relações
estabelecidas entre espaços e sujeitos, reforçando como um lugar onde pessoas LGBTQI+
conseguem desfrutar de forma segura o lazer não deveria ser alvo de determinadas críticas. Já
na segunda postagem, o rapaz revela “levar pro pessoal” alguns comentários sobre o bar, usando

preconceito e alertando que LGBTfobia é crime. Consultar em: https://www.novonoticias.com.br/natal-shopping-


divulga-nota-sobre-caso-de-homofobia/
66
Ambos foram postados no início de dezembro de 2020, quando um acontecimento movimentou localmente o
Twitter. Me aprofundo neste evento e abordo alguns desdobramentos no próximo capítulo.
67
É uma sequência de tweets vinculados, geralmente utilizada como recurso para fazer comentários longos que
não cabem no limite individual de 280 caracteres.
124

o posicionamento do La Luna em relação às eleições de 201868 para apontar a relevância


simbólica do estabelecimento em comparação com sua estrutura física.
Nesses comentários, podemos perceber que a “defesa” não está centralizada unicamente
no estabelecimento, é posto de formas diferentes como os aspectos simbólicos e representativos
que circundam o La Luna e suas atuações servem para respaldar o engajamento dessa parcela
do público. Ao demonstrar seu apoio ao bar e a tudo que ele representa, estes sujeitos expõem
e comunicam ideias com as quais compactuam. Se tratando de ambientes digitais, conseguem
angariar uma série de apoios de suas redes pessoais através das interações, curtidas e
compartilhamentos.
Se faz necessário destacar como o La Luna aparece durante toda minha pesquisa
ocupando um lugar de centralidade no circuito de espaços LGBTQI+ em Natal. Com isto, não
pretendo homogeneizar uma única perspectiva desse grupo sobre o local, mas surgia de forma
recorrente em meu campo narrativas sobre a importância do bar para este público. A capacidade
de articulação com diversos atores exploradas durante este capítulo corrobora com o imaginário
coletivo sobre o estabelecimento.
Além disso, o La Luna se projeta dentro do conjunto de locais e equipamentos que se
tornaram referencias na capital potiguar. A relevância que o bar possui se reflete no quantitativo
de pessoas que ela agrega durante suas noites e também com a conexão estabelecida com outros
lugares. Diversas vezes me era relatado ou escutava enquanto circulava pela praça que estar no
La Luna servia como “esquenta”, “prévia” ou mesmo enquanto um lugar para se iniciar uma
programação voltada para sociabilidade e lazer em Natal.
Ao longo deste tópico busquei descrever algumas das formas que os processos de
consumo foram se apresentando em campo. Adotar uma perspectiva ampliada, para além da
compra-venda de bens e serviços, possibilitou abordar as complexas relações mediadas pelo
consumo, como a construção de uma identidade política do La Luna e de seu público. Foi
também possível explorar algumas alianças que o bar vem construindo com outros atores locais
e como outras formas de fazer política apresentam-se no diálogo entre “campo” e “arena”,
mobilizados por meio de pautas políticas.
Neste cenário, o estabelecimento consegue comunicar através de seus elementos e ações
um leque de ideais, movimentos e práticas com os quais está em consonância. Por outro lado,

68
Durante a campanha eleitoral para presidência da república em 2018, o La Luna se posicionou diversas vezes
contra o então candidato Jair Bolsonaro. Utilizando a hashtag #EleNão, o bar indicava que não concordava com
os posicionamentos do candidato, principalmente por suas falas que estimulavam violências contra LGBTQI+,
mulheres e pessoas negras.
125

parte do público escolhe ir ao local por compactuar com esta mensagem comunicada, se
engajando junto ao bar e fortalecendo a noção de consumo-cidadão. Dessa forma, ambos
conseguem articular status através de seus processos de consumo, entendendo que alguns
posicionamentos e apoios a causas políticas podem ser encaradas como moedas sociais,
somando positivamente esses sujeitos.

3.3 Encerrando a noite: entre mudanças, retornos e um “novo normal”.

Durante estes dois primeiros anos de pandemia, pude acompanhar as movimentações


que aconteciam na cidade e perceber como ela esteve se moldando entre períodos críticos, de
quase colapso do sistema de saúde, e de maior brandura, com o avanço da campanha de
vacinação e a diminuição nos índices de casos e óbitos em decorrência da covid-19. Como todo
passeio ou trajeto pelo espaço urbano tem seu ponto de chegada, aqui concentro algumas
reflexões sobre os momentos finais do meu campo, já no fim de 2021, para encerrarmos as
noites no La Luna.
Desde meados de setembro de 2021 a movimentação do bar vem crescendo, com
aumento do público e também de fluxos na praça. Esse processo, além da quantidade de
pessoas, ficava nítido pela expansão da área delimitada pelas cordas, o cercadinho, que foi cada
vez mais ocupando um espaço físico maior da Praça da Guerreira. Não coincidentemente, foi
nesse período que a faixa etária de boa parte do público que frequenta o La Luna, acima dos 20
anos, começava a tomar as primeiras doses da vacina contra a covid-19. Estar vacinado/a,
mesmo que de forma incompleta, apareceu em algumas conversas como um aspecto que gerava
maior segurança para voltar a sair para rua e compartilhar espaços com outras pessoas.
Neste mesmo movimento, tivemos o aumento das mesas para suprimir as demandas que
surgiam modificando também o sistema de reserva, retornando a ser por ordem de chegada.
Aos poucos, voltavam a aparecer pessoas e grupos que circulavam pela praça procurando por
mesas e cadeiras para poder sentar, ser atendidas e curtir a noite. O atendimento também teve
suas flexibilizações, neste período já não eram raras as vezes que pessoas começavam a
consumir antes mesmo de estarem em uma mesa, esperando pela oportunidade de ocupar um
desses objetos que durantes os dias mais movimentados se tornavam alvos de disputas.
Estas mudanças também foram percebidas pelo bar. Sobre este período, Vanessa me
contava sobre como era complexo administrar um estabelecimento voltado ao lazer durante a
pandemia. As estratégias adotadas tentavam minimizar as possibilidades de contágio e
126

transmissão já assumindo que estar ali potencializava os riscos decorrentes do coronavírus. Nas
palavras de Vanessa:
Eu vejo um lado positivo ali no La Luna, que é a questão de ser um lugar
aberto. De eu conseguir... por mais que tenha uma galera que queira ficar
assim um enxame de abelha, um em cima do outro, querem fazer um coreto,
vários sentados e outros em pé, e vira uma grande roda. Eles gostam de fazer
isso. Mas aí eu falo: gente, quando for circular coloca a mascarazinha, se
chegar lá no balcão vou dar shade69 na cara de tudinho, todo mundo me
conhece. (Diário de campo, Fevereiro de 2022)

Nessa fala, a empresária traz para si uma responsabilidade com o público e também com
o cenário pandêmico. De certa forma, naquele espaço ela consegue ter algum controle com os
protocolos de segurança, garantindo o funcionamento do bar. Ela ainda me conta como a
vacinação e a queda no número de óbitos, apesar dos indicadores de contaminação no período
ainda estarem altos, deixaram o ambiente menos tenso “todo mundo vacinado, todo mundo ok,
então vamos seguir”. A continuidade das atividades ajudou a situação financeira do bar, junto
ao cenário geral, isto possibilitou a contratação de equipes maiores durantes os dias mais
movimentados, outra resposta ao acréscimo da quantidade de público.
Para aprofundar este contexto, exploro dois eventos, o Halloween do La Luna e o debate
com Natalia Bonavides e Manuela D’ávila, que exemplificam bem novas conformações de
eventos e como estes evocam algumas continuidades que remetem ao período pré-pandemia,
desenhando possibilidades entre retornos e criações de “novos normais”70.
Dia 03/11, por volta das 20:00, o La Luna fez um post no twitter perguntando o que os
seguidores achavam de um halloween na praça “essa galera anima um halloween de graça na
praça, com direito a um som chic, djs, feira cultural e comidinhas??”. As reações quase
imediatas de comentários, curtidas e retweets sinalizavam uma grande adesão do público, que
interagiam na postagem confirmando a presença e chamando outras pessoas para o possível
evento.
O perfil ficou até o dia 11/11/21 sem novas publicações, quando finalmente veio
anunciar a confirmação do evento. A chamada escrita na postagem e a imagem de divulgação
trouxeram alguns elementos que me deixaram curioso. “ALÔ ALÔ, ALGUÉM AQUI AINDA
ANIMA UMAS TRAVESSURAS NA PRAÇA MAIS BABADEIRA DA CIDADJE?” e

69
A expressão geralmente é utilizada em tom negativo, como tecer comentários maliciosos. Nessa fala, Vanessa
usa como uma forma de repreender uma atitude que está em desacordo com a dinâmica do bar, no caso “quebrar”
os protocolos de segurança vigentes na pandemia.
70
Esta expressão apareceu com frequência em meu campo, mas também ganhou visibilidade nas mídias de massa
e redes sociais. No geral, indica um cotidiano que é impactado pela pandemia e as ações de combate ao coronavírus.
127

“Avisa que DOMINGO tem comeback do lalu com esse halloween delicia do jeito que elas
goxxtam com feijoada, feirinha cultural e LINE UP chiquerrimo!!!”
Figura 2 - Folder HALLOWEEN La Luna

Fonte: Página do La Luna no Twitter71, 2021

O folder tem no fundo um degradê da cor roxa para a lilás, com palavras e imagens em
branco e salmão causando contraste. No centro da imagem temos uma lua, uma mão saindo do
chão/gramado e duas sepulturas, logo abaixo está o nome do evento “HALLOWEEN La Luna”.
Outros elementos como alguns pares de olhos, e as informações de data, horário, atividades
previstas e o apoio/realização completam a imagem. A estética e os componentes descritos
remetem diretamente à temática do evento.
Inicialmente, fica explícito como durante esses anos de funcionamento a Praça da
Guerreira é incluída na narrativa do bar, borrando possíveis distinções entre esse espaço e o
próprio La Luna. O convite para o evento não se limita ao estabelecimento, convidando as
pessoas a irem para praça, que é qualificada como “babadeira”, adjetivo bastante utilizado pelo
público para indicar algo muito bom.
Outro elemento que chama atenção no anúncio é o “comeback”, usado como
retorno/volta. Entendo essa volta em um duplo sentido, primeiro ligado a volta de eventos com

71
Disponível em: https://twitter.com/lalunanatal/status/1458823686874705923
128

maiores proporções acontecendo no local, se distinguindo em alguns aspectos dos dias


corriqueiros. O segundo, está relacionado com os momentos anteriores à pandemia, onde o
público do bar costumava lotar a praça durante as festas com música ao vivo e discotecagem.
Nesta noite, em uma das rápidas conversas que tive com Vanessa, que mantinha um ritmo
frenético desempenhando várias funções, comentei sobre a quantidade de pessoas que estavam
ali e ela, concordando, me falou “amigo, eu esperava muita gente, mas não esse tanto. Aos
poucos a gente tá voltando, tá dando certo. ”.
Assim, a ideia de “retorno” envolve não somente os eventos, tendo em vista que o bar
tem realizado mensalmente a “feijoada tradicional e vegana” no primeiro domingo do mês,
como também a quantidade de público, trazendo o período pré-pandemia enquanto uma
referência ainda viva na memória daquelas pessoas. As publicações sobre o evento não
reforçavam os protocolos de segurança, como uso da máscara para transitar, diferente dos
momentos anteriores onde sempre eram relembrados alguns critérios para estar no bar, como a
limitação de pessoas por mesa.
Um último elemento presente no flyer são as parcerias estabelecidas para realização do
halloween, sendo dividida entre o bar e Meladona72, com o apoio dos mandatos de Brisa,
vereadora pelo PT de Natal, e Isolda, deputada estadual pelo PT do RN. Por mais que já tenham
acontecido diálogos parecidos entre esses atores e o La Luna de forma individual, esta é a
primeira vez que se articula um conjunto para executar um evento daquela proporção na praça.
Neste dia também ocorreu uma feirinha cultural com algumas banquinhas vendendo diferentes
tipos de artes e artesanatos, produtos de sex shop, brigadeiros mágicos e outros itens.
Fiquei sabendo da confirmação através do post, por mais que tenha acompanhado um
pouco dos bastidores e as reclamações de Vanessa para conseguir cumprir com as “burocracias
para fazer um evento na praça, tem que ter carimbo de um monte de órgãos.”. De pronto,
suspeitava que o evento teria grandes proporções, pois, além da temática e os/as djs, foi marcado
para véspera do feriado de Proclamação da República. Outro sinalizador é o processo de
aumento do público na praça comentado acima.
No dia do evento acompanhei brevemente pelas redes sociais algumas pessoas
confirmando ida. A abertura ficou marcada para às 14:00, mas decidi chegar mais tarde para

72
Meladona vêm de Rádio Meladona, uma iniciativa pensada por alguns/mas djs e produtores/as culturais de
música eletrônica e underground que atuam em Natal e foi implementada durante a pandemia. Com a reabertura
dos espaços de lazer e sociabilidade, a flexibilização das restrições da quantidade de público e o avanço da
vacinação passou a ser um selo de eventos atuando em vários espaços da cidade, sinalizando o tipo de música, e
consequentemente parte do público, naquela festividade. Para mais informações sobre a Meladona e a cena clubber
na cidade, consultar o trabalho de Lukas Patrick, em desenvolvimento no PPGAS-UFRN.
129

poder ficar até o final do evento. Marquei com duas amigas e as encontrei no bar por volta das
18:00, quando o primeiro dj já estava tocando. A igreja estava funcionando, com os portões
abertos, mas sem a “equipe de recepção" que geralmente se mantém na entrada. Fora do usual,
os refletores direcionados à parede que a separa da praça estavam desligados e as luzes se
concentravam no portão, por onde as pessoas entravam e saíam rapidamente, a sensação de ver
aquelas pessoas indo em direção aos seus carros a passos largos ao final do culto era de ter o
mínimo de contato possível com o que acontecia na praça.
O bar ampliou a estrutura de atendimento, incluindo o balcão, colocando uma mesa na
lateral com duas pessoas vendendo fichas de bebidas e comidas e uma tenda, onde era possível
trocar as fichas pelas cervejas. A equipe de atendimento também estava ampliada, com cerca
de nove pessoas, além dos seguranças que circulavam pela praça. As cordas continuavam
circunscrevendo a frente e as laterais da praça, delimitando o espaço onde estavam as mesas e
cadeiras. Na parte de trás, junto a tenda das bebidas, foi montado um pequeno palco com o
sistema de som, onde as apresentações comandavam as músicas.
A praça mantinha a decoração de halloween colocada alguns dias antes, com aranhas,
morcegos e abóboras feitas de papel e alguns tecidos enrolados nas árvores simulando teias.
Algumas das atendentes usavam acessórios que remetiam a fantasias, como chapéus, óculos e
maquiagens. Era perceptível que existiu uma organização prévia para que o evento se
encaixasse na proposta.
Passei quase toda noite na parte de trás da praça, onde se concentrava de forma massiva
o público. O ambiente estava levemente escuro, como em outros dias, com alguns lugares
iluminados pelas luzes roxas espalhadas ao redor da tenda. Era recorrente ver algumas filas se
formando para comprar as fichas, mas a distribuição das cervejas era rápida e constante. Neste
evento o bar optou pelas cervejas em lata, o que gerava maior fluxo entre ir pegar a bebida e
voltar para onde estava curtindo a noite.
A grande concentração de pessoas se espalhava entre o espaço de frente para os/as djs,
onde o som estava mais alto e a parte mais escura da praça, onde os grupos estavam
minimamente distanciados. O estilo musical da noite foi o house, com algumas faixas limitadas
que mixavam outros gêneros, como o pop ou a MPB, com os samples73 e beats/batidas
característicos da música eletrônica. No cenário geral, as pessoas dançavam sem movimentos
muito alargados, a iluminação, a sonoridade e a proximidade entre os corpos construíram um
ambiente intimista, favorável à leves esbarradas e contatos mais prolongados, como dançar

73
São trechos ou partes inteiras de músicas. Usualmente, os/as djs vão anexando esses samples para construir
novas músicas.
130

junto, os abraços e beijos. A música e a dança aproximando as pessoas, não é o habitual do bar
pois as movimentações estão quase sempre centradas nas mesas. O evento inverte não só essa
questão espacial como o distanciamento social. Naquele momento não só é permitido o contato,
como é impulsionado pela concentração das pessoas em um espaço delimitado, na frente do
sistema de som, querendo ou não você se movimenta com a grande massa envolvida pela batida
da música.
Apesar da proximidade entre as pessoas e dos esbarrões, o ambiente aberto e ventilado
estava agradável. Diferente de outros locais em Natal, como boates fechadas, ou mesmo
experiências de rua como é o beco da lama, o clima abafado e o calor fazem os corpos suarem
mais, a ponto de causar incômodos ou a necessidade de dar uma volta buscando espaços mais
arejados. No caso do bar da meladinha, onde semanalmente os djs se encontram com seu
público para tocar este estilo de música eletrônica, apesar de estar em uma rua/beco o calor é
intensificado pela pouca circulação de vento, grande concentração de pessoas e bastante fumaça
produzida por diversos tipos de cigarro.

Figura 3 - Público no HALLOWEEN La Luna

Fonte: Autoria própria


131

Voltando para o Halloween, boa parte das pessoas não estavam utilizando máscaras,
mas era possível encontrar alguns indivíduos e grupos que mantinham este protocolo, além de
manter-se distanciados da grande aglomeração, com interações mais restritas. Essas posturas
entre o cumprimento total ou a abolição das medidas de segurança adicionam camadas, como
já exposto em outros momentos, na gestão de risco e exposição dessas pessoas, nublando as
próprias noções de risco e segurança. Neste ponto também acredito estar a complexidade da
ideia de “retorno” utilizada pelo bar.
Este cenário composto por estas condutas por vezes divergentes, pode remeter a
momentos anteriores a pandemia, onde eventos desse tipo ocorriam sem preocupações com
transmissão/contágio do coronavírus, ou ainda sinalizar para uma superação desse contexto, um
possível pós-pandemia. Entretanto, a presença de alguns elementos, como a máscara ou o uso
do álcool em gel nas mãos, demarcam que esse período ainda não foi completamente
ultrapassado, o que fica nítido em uma breve conversa que tive com um interlocutor que estava
entre as pessoas mais afastadas e a aglomeração na frente do som:
L: O que você tá achando do rolê?
M: Muita gente, né?
L: Pois é, mais do que eu esperava.
M: Ta parecendo antes, quando não tinha pandemia.
L: Sim! Me lembrou bastante outros roles aqui.
M: Mas eu ainda fico receoso, tanto que quase não tô tirando a máscara. Acho
que vai demorar um pouco para eu me acostumar.
L: Eu também. Não fico muito confortável com tanta gente assim.
M: É, mas com as coisas voltando acho que a pandemia tá acabando. (Diário
de campo, Novembro de 2021)

No decorrer da noite, estabeleci algumas breves interações. A praça estava bastante


movimentada, mas o som precisou acabar uma hora e meia antes do encerramento das
atividades do bar, à meia noite. Vanessa disse que era para não causar problemas com a
vizinhança. Conversando com Suzanne, que estava trabalhando na tenda entregando as bebidas,
ela me contava como o evento tinha superado as expectativas, usou a venda das cervejas como
indicador “amigo, pra você ter noção, Vanessa já saiu pra repor cerveja cinco vezes!! já tá
acabando”.
Dava para perceber a animação geral marcada pela dança, a bebida e o consumo de
outras substâncias que surgiam entre os grupos de amigos. Enquanto dançava próximo da
aglomeração, escutei um rapaz falar em tom de surpresa e desapontamento “bicha, “aquilo” mal
chegou e já acabou! Ninguém tem mais”. O encerramento do som acalmou a agitação da praça,
fazendo parte do público ir embora antes do fechamento do bar. Alguns grupos permaneceram
132

pela praça e outros voltaram para as mesas, usando suas caixinhas de som para alongar por mais
alguns minutos sua noite.
Este conjunto de acontecimentos, elementos e sujeitos que compõem aquele cenário nos
levam por diversos caminhos. Aqui quero brevemente abordar como essa gama descrita acima
retratam experimentações de ambientes e de relações sociais estabelecidas neles e com eles.
Del Picchia (2021), fazendo pesquisa em fluxos de funk em São Paulo, configuração festiva
frequente no funk de rua paulista, aborda as relações que são estabelecidas entre os sujeitos, a
música, os sistemas de som e outros elementos: “ Falar de um “musicar” funk, ou seja, trazer
os elementos que o constituem, descrever os engajamentos possíveis de agentes humanos e não-
humanos, implica também em abordar a materialidade da festa e as sensações corporais que a
massa sonora causa” (DEL PICCHIA, 2021, p.216).
O autor mostra como a experiência no fluxo é atravessada pela dimensão sensorial,
expressa em “relações sônicas”, onde o som é um elemento central. “Se sentir dentro da música”
aparece como um dos motivadores para estar no fluxo do funk, como é apresentado pelos/as
jovens interlocutores/as de Del Picchia (2021), o que só é possível por meio dos potentes
sistemas de som tocando em altos volumes.
É nesta dimensão sonora onde enxergo possibilidades para compreender a experiência
formulada no Halloween do La Luna. A proximidade do público com os/as djs e as caixas de
som suprem potências e volumes menos elevados que se dissipam com maior facilidade por
estarem em local aberto. Neste espaço onde as pessoas vão se aglomerando, o sentir o som é
também ritmado pelas movimentações, além das ondas sonoras que impactam diretamente os
corpos, os balanços corporais atravessados por olhares, toques e beijos que vão diluindo
preocupações com qualquer “distanciamento social” possível no “front”74.
Vale ressaltar que o sentir nesse contexto está frequentemente atravessado por estados
de consciência alterados. A própria noção de materialidade e o tato vão sendo modificados.
Destaco o uso de algumas substâncias, como o álcool, presente nos diálogos de alguns
interlocutores enquanto potencializadores que agem deixando as pessoas mais “sensíveis”,
aguçando os sentidos, e também da própria dimensão sonora encabeçada pelos dj e suas
mixagens. Por vezes, o movimento dos corpos é instigado por esses elementos e pela música
que entorpecem os sujeitos levando-os para um estado de sinestesia.
Para encerrar esse relato, as escolhas musicais pareceram causar algumas poucas
discordâncias. Depois de algumas horas tocando um mesmo estilo musical, apesar das

74
Expressão usada para o espaço imediatamente à frente dos djs e sistemas de som. Este local é bastante apreciado
pelo público mais assíduo das festas de música eletrônica.
133

diferenças entre os sets dos djs, começaram a surgir alguns burburinhos entre o público.
Visivelmente o público mais simpatizante do house se manteve próximo as caixas de som e dos
artistas que se apresentavam, reagindo através da dança e pequenos gritos de animação, a
algumas faixas ou técnicas utilizadas na produção do som.
Entretanto, uma parte das pessoas que estavam ali quase não reagiam ao som, estando
em pé parados e conversando entre amigos/as. O contraste entre esses grupos também servia
como termômetro, para sentir como as atrações estavam sendo apreciadas. Outra parte
questionava se naquela noite tocariam algum estilo de música mais popular, como o pop ou o
funk que costumeiramente faz parte do repertório do bar. Estas pediam por “farofa”, termo
bastante presente entre o público LGBTQI+ para designar os estilos de música mais comerciais,
como os anteriormente mencionados.
No Twitter, após o evento, também encontrei alguma repercussão nesse sentido, ficando
expresso o descontentamento com a escolha de um único gênero "alguém demite esse dj do
laluna que só tocou eletrônica". Em outras postagens, algumas pessoas lamentavam não terem
ido ao evento enquanto outras comentavam sobre a noite: “menina, era uma renca de lgbt tão
bela naquele la luna ontem. fora a música perfeita, companhias maravilhosas e “meninaaaa,
quanto tempo não te via!!!”. nem esperava que fosse me divertir tanto.”; “o laluna esta insalubre
novamente graças a deus - Quando tem de novo? -Próxima sexta se deus quiser”.
O bar, no Instagram, fez uma publicação agradecendo a presença do público, falando
como não estavam esperando aquela proporção e se desculpando pelos imprevistos. Seguindo
o clima de “retorno”, em uma parte da postagem coloca: “A gente tava morrendo de saudade
desse vuco-vuco. ”, indicando mais uma vez como o evento em si remete a algo que estava
presente na memória dos/das frequentadores/as e da própria equipe do bar. Ainda sobre a
repercussão nessa plataforma, várias pessoas postaram stories mostrando suas fantasias e o
movimento presente na praça.
O segundo evento tinha uma proposta diferente do primeiro: associava um debate
político sobre violência de gênero ao consumo e ao lazer. De início, a articulação entre figuras
públicas e o La Luna se formava pela visibilidade que ambos possuem, aproximações de ideias
e atuações políticas, pela possibilidade comercial do evento e, não menos importante, pelo
público em potencial que estes atores conseguem alcançar.
Alguns dias antes de sair a notícia “oficial”, fiquei sabendo durante uma conversa com
Suzanne sobre o evento com Natália e Manuela D’Ávila. Este foi pensando pelo mandato da
deputada federal Natália Bonavides (PT-RN), que propôs a parceria com o La Luna, oferecendo
a estrutura necessária, som, luz, ornamentação e cadeiras, enquanto o bar “cederia” o espaço da
134

praça, ofertando também seus serviços como em outras ocasiões. Alguns dias antes, começaram
a circular as imagens chamando para o debate que aconteceria em 29 de novembro de 2021.
Cheguei na praça um pouco depois das 19:00, horário marcado para o início da
atividade. As cadeiras voltadas para um “palco” improvisado já estavam lotadas e os últimos
ajustes no som estavam sendo finalizados. Decidi procurar uma cadeira na parte da frente do
bar para assistir as falas, percebi que as mesas que se concentravam na lateral/frente também
estavam ocupadas. Encontrei uma e fui sentar próximo ao escorrego de concreto onde Suzanne
estava sentada gravando uma live no Instagram75 através do perfil do La Luna. O evento iniciou
com uma apresentação lúdica com duas mulheres lendo relatos, comentários e ameaças
direcionadas as debatedoras em suas vidas públicas, introduzindo o tema explorado naquele
encontro, “política e violência de gênero”.
A quantidade de pessoas reunidas ali era um pouco maior que no halloween, mas alguns
elementos marcavam as diferenças entre esses dois acontecimentos. A grande maioria das
pessoas que estavam concentradas no debate utilizavam máscaras e ficaram localizadas o mais
próximo possível do palco. A iluminação adicionada garantia visibilidade para as palestrantes
e para o público, restando poucos pontos mais escuros como normalmente é aquela parte da
praça.

75
A live permanece salva no perfil do bar no instagram, assim como algumas fotos e o folder de divulgação. A
live pode ser acessada em: https://www.instagram.com/p/CW4TYUWJXBb/
135

Figura 4 - Público no debate com Manuela D'Ávila e Natália Bonavides

Fonte: Autoria própria

A sonoridade estava focada no discurso das mulheres que empunhavam o microfone,


mas, por causa do horário, também era comum ouvir o som dos veículos passando pela BR -
101. A ausência de música permitia escutar as conversas que o público desenvolvia entre as
pessoas ao redor. A igreja estava com os portões abertos, seus refletores estavam ligados e
reforçavam a iluminação, que neste dia não “afastava” o público. Pouca movimentação
acontecia ali e também não dava para escutar nenhum som saindo daquele lugar. Por causa da
lotação, diversas pessoas foram se aproximando do muro e dos bancos de concreto próximos a
ele.
136

Figura 5 - Público no debate com Manuela D'Ávila e Natália Bonavides 2

Fonte: Autoria própria

A estrutura e sistema de funcionamento do bar era parecida com a do halloween,


utilizando fichas para compra das cervejas e comidas. Entretanto, a troca das fichas pelos
produtos acontecia no próprio balcão, o que gerava certo fluxo na parte da frente da praça. Dois
pontos me chamaram atenção sobre o público. Primeiro foi a proximidade com os
frequentadores usuais do bar nos quesitos de raça e classe. A maioria continuava sendo de
pessoas brancas que aparentavam pertencer às classes médias. Segundo, sobre faixa etária,
fiquei surpreso com uma maioria jovem, apesar da presença de pessoas que aparentavam ter
mais de 40 anos, o que não é rotineiro naquele lugar.
Acredito que isso reforça as aproximações entre o público do bar e os grupos
mobilizados pelos mandatos que ali estavam presentes, destacando a presença da deputada
estadual Isolda (PT), e os/as vereadores/as, Brisa (PT), Pedro Gorki (PCdoB), Robério Paulino
(PSOL) e Divaneide Basílio (PT), do município de Natal, e Thabatta Pimenta (PSB), de
Carnaúba dos Dantas. Este grupo tem em comum uma atuação que garante algum destaque as
pautas da juventude na cidade e no estado, sendo alguns deles jovens oriundos do movimento
estudantil.
137

Durante as falas, era destacada a importância da presença feminina nos espaços de


poder, se atentando para o entrelaçamento com outros marcadores sociais, como raça, classe,
territorialidade, etariedade, entre outros. Em especial, se discutiu algumas especificidades das
mulheres presentes no debate que ocupam cargos políticos e que são vítimas de violências de
gênero nestes ambientes. De forma direcionada, era apontado como sujeitos ligados ao
conservadorismo e a extrema direita, geralmente associados ao presidente Jair Bolsonaro, eram
grande parte dos algozes que protagonizavam estes tristes e revoltantes acontecimentos.
Aqui o som também é sentido. As palavras proferidas pelas debatedoras, as intervenções
no microfone, os gritos, palmas e outros sons em apoio ao que está sendo falado constroem uma
atmosfera onde é possível sentir/produzir a euforia do público presente. Não à toa, a cena é
complementada pelo discurso esperançoso que aponta para as batalhas que serão travadas na
conjuntura política, mas que enfatizam a potencialidade daquele conjunto de pessoas ali
presentes como meio para alcançar objetivos em comum. Os corpos e as sonoridades afetam e
são afetados pelo ambiente. Apesar de compartilharem diversos elementos, o contexto de
"festa" e de "debate político" conduzem a noite de forma diferenciada. As sociabilidades
mediadas pela dimensão sonora exemplificam como as dinâmicas dos eventos vão sendo
modeladas e remodeladas ao longo da noite.
Já no fim do debate, a juventude entra em pauta como o público de grande importância
na derrubada do “bolsonarismo” e nas eleições de 2022. Os discursos e o público estavam ao
longo do evento construindo conexões que comunicavam, em múltiplos aspectos, ideais
políticos que não são novidade naquele local. Durante esta noite, estava nítida a
intencionalidade na escolha do espaço, visando o cenário já constituído do La Luna.
A atividade acabou perto das 22:00, quando o bar ligou o som e algumas pessoas
migraram para a parte onde estavam as mesas. Boa parte do público, principalmente a mais
velha, foi embora com o fim das falas ou após fotos/autógrafos com Manuela D’Ávila. As
pessoas que ficaram pela praça continuaram bebendo, com menor presença das máscaras. O
encerramento da noite foi bastante tranquilo, possivelmente teria se prolongado caso não fosse
uma segunda-feira.
Nas plataformas digitais a repercussão foi bastante positiva. Entre diversos convites para
ir ver o debate e comentários ressaltando como a noite foi interessante, fica nítido as conexões
já mencionadas acima. O La Luna repostou muitos stories que marcavam o bar, de selfies com
as figuras públicas ali presentes à fotos do cenário com mensagens falando da importância,
também surgiram alguns tweets no mesmo sentido: “Tudo esse laluna de hj chega da
138

esperança”, “Gente, o la luna foi arrepiante. Em especial, a fala de Thabatta… a primeira trans
eleita no RN.”.
Inicialmente, estes eventos chamam atenção pela quantidade de público que
conseguiram reunir. Como é utilizado na narrativa do próprio bar, eu e algumas pessoas que
tive oportunidade de conversar durante os eventos marcavam estes episódios como um retorno
aos períodos onde a possibilidade desses acontecimentos não era atravessada pela presença do
coronavírus. Entretanto, elementos que se tornaram partes cada vez mais incorporadas ao nosso
cotidiano, como as máscaras, acrescentavam nuances que remetiam ao período atual. Entre
recordações e futuros possíveis, o “novo normal” do La Luna é fortemente transpassado pelas
memórias construídas pelo seu público, que aproveita as chances de experimentar novamente
uma vida noturna através do lazer e da sociabilidade, construindo formas de estar na cidade.
Já finalizando, é interessante como estes eventos partiram de outros atores, produtores
culturais e mandatos políticos, escolhendo estabelecer com o La Luna esta parceria. Acredito
que isto ilustra como o bar tem ganhado relevância na cena local, ultrapassando os limites de
relações comerciais ou somente de sociabilidade entre jovens. Naquele espaço, vem se
desenhando relações que vislumbram usos dos espaços urbanos por sujeitos que nem sempre
podem transitar com liberdade pela cidade. Mais que isto, podemos ver na prática a construção
de ideias progressistas que enxergam a centralidade da juventude nas diversas esferas políticas.
Assim como outros momentos já citados neste trabalho, podemos perceber como
espaços como o La Luna indicam uma emergência intimamente ligada as transformações nos
movimentos sociais, aqui centrados, principalmente, naqueles que discutem questões que
abarcam diversidade de gênero e sexualidades. São exemplificações do processo de politização,
de forma nítida, de empreendimentos e iniciativas de sociabilidade e lazer, voltadas para
parcelas específicas da população, ou suas expressões artísticas e culturais.
Neste debate, percebo uma aproximação direta entre minha pesquisa e a de Bruno
Nzinga Ribeiro (2021), que vai refletir sobre a constituição de uma “cena preta LGBT” em São
Paulo, partindo das conexões entre produção cultural, estética, corpo, ativismo, as relações que
vão sendo produzidas neste contexto e as iniciativas culturais produzidas para e por negros/as/es
LGBTs. Ponderadas as diferenças entre os contextos de pesquisas, ambos observamos e
refletimos acerca da mobilização e participação política, além da inserção nos/dos movimentos
sociais que atravessam nossos campos.
Pensar em outras formas de ação/prática que perpassam as cenas culturais, espaços de
sociabilidade e o lazer, estabelecendo conexões com o mercado e práticas de consumo de
determinados grupos, lança luz a outros contornos de fazer política. Em certa medida, por
139

ambas iniciativas observadas serem protagonizadas por jovens, desde quem produz até seus
públicos/quem consome, e atuarem por meio do lazer/sociabilidade, estas são atravessadas por
duas perspectivas, por vezes conflitantes. Por um lado, são qualificadas e caracterizadas como
algo positivo, por romperem certas lógicas excludentes e estabelecerem fortes vínculos com
seus públicos. Por outro, encontram dificuldades para sua realização e manutenção, de forma
que preservem suas particularidades e as narrativas que constroem. Neste ponto, esbarram com
a deslegitimação e descaracterização de suas práticas, apontadas enquanto despolitizadas por
não se enquadrarem em modelos clássicos/tradicionais dos movimentos sociais.
Observa-se, portanto, as potencialidades que emergem de uma cena cultural negra e
LGBTQI+ que qualificam e produzem outras narrativas sobre estética, cultura, afetos, entre
outros elementos que, em perspectiva ampliada, rompem com enquadramentos estabelecidos
pela estrutura racista, como é posto por Ribeiro (2021). Ou ainda, pelas possibilidades de viver
e (re)modelar a cidade, fazendo uso e transformando espaços públicos pelo consumo, discurso
e ação cotidiana de permanência, pela presença de corpos e afetos que não se enquadram em
modelos hegemônicos de gênero e sexualidade, como tenho descrito e analisado nesta pesquisa.
Compactuo com Ribeiro (2021) por entender o “fervo”, a festa, o role, enquanto possível
prática política quando observamos os contextos e os/as personagens que neles se inserem.
Localmente, pensar um dos poucos espaços públicos onde a presença de LGBTQI+ não só é
aceita, mas é também estimulada, me parece um constante ato de ação política protagonizado
pelo La Luna e seu público. Isto ganha mais força se observamos o histórico de Natal, onde,
com frequência, iniciativas deste tipo são encerradas e espaços ocupados por este grupo passam
por processos que constroem um contexto que impõe o fim daquela experiência, seja pela
discriminação, pela falta de apoio público, pela insegurança ou pela vizinhança, marcando a
incontinuidade, a negação da cidade para essa parcela da população, como está presente no
trabalho de Ferreira (2018).
No cenário do La Luna, as relações entre juventude, raça e expressões dissidentes de
gênero e sexualidade, mediadas pelo mercado e processos de consumo, colocam em perspectiva
estas outras formas de fazer política. Somada a isto, a territorialidade, pelo bar estar localizado
na Zona Sul, e as práticas que sinalizam aproximações com a classe média por parte do público
surgem em algumas narrativas conformando esta experiência enquanto elitista, de certa forma
desqualificando o que tem acontecido ali. Por exemplo, algumas pessoas no Twitter e no
Instagram manifestaram descontentamento e questionaram o porquê do evento com Manuela
D’Ávila não ocorreu em outro espaço da cidade, apontando a centralização de eventos na Zona
140

Sul da capital. Tais aspectos apenas evidenciam conflitos e nuances em um movimento que
nitidamente não se produz de maneira homogênea ou sem dissenso.
Neste tópico, busquei refletir sobre as dinâmicas de consumo e como estas tem
implicações diretas nos atores e nas práticas desenvolvidas por estes. Assim, podemos notar as
conexões estabelecidas através do consumo com outras esferas sociais, como a política, e como
estas conseguem moldar ações das pessoas e estabelecimentos. Identidade, representatividade,
posicionamentos, causas sociais, entre outros, são elementos que ganham força no
discurso/pratica dos cidadãos/ativistas, que passam a pressionar cada vez mais o mercado, que
tem acompanhado este fluxo, modificando-se para conseguir assimilar estas “novas” demandas.
Ao longo deste capítulo explorei as complexas formas pelas quais o consumo se
apresenta em meu campo, reforçando a perspectiva ampliada que o desenvolve para além das
relações de compra e venda. Assim, analisei como mercado, política, sociabilidade e lazer se
encontram na Praça da Guerreira e produzem conexões que são transformadas em mensagens
que exprimem ideais e práticas compartilhadas pelo La Luna e por seu público.
141

4 IMERSÃO NO DIGITAL: OUTRAS PERSPECTIVAS SOBRE O CAMPO

Neste capítulo exploro com maior ênfase a minha inserção e o desenvolvimento da


pesquisa no digital. Busco acessar e captar narrativas e interações que são estabelecidas sobre
e com o La Luna a partir da Internet. Nesse trajeto, exploro o Instagram e o Twitter enquanto
espaços relevantes para observação, partindo dos perfis do bar e as conexões estabelecidas
nestas plataformas.
Ao procurar traçar estratégias frente a conjuntura pandêmica e ampliar algumas
reflexões anteriores, vejo na antropologia do/no digital um caminho possível para dar conta de
um campo complexo que tem abertura para uma “dupla abordagem”, tentando interligar as
observações e experiências presenciais e aquelas mediadas pelo digital. Como bem apontam
Beatriz Accioly Lins, Carolina Parreiras e Eliane Tânia de Freitas (2020) a digitalização de boa
parte de nossas atividades ressalta a importância dessa perspectiva de estudos, que perpassa
uma ampla gama de pesquisas e chama atenção para como “as tecnologias, representadas por
seus múltiplos dispositivos e pelas redes de conexão, são fundamentais para as relações que
estabelecemos uns com os outros e com o mundo” (PARREIRA; LINS; DE FREITAS, 2020,
p. 2). Sigo o entendimento das autoras ao apontar que “o que chamamos aqui de digital se refere
a um conjunto heterogêneo e bastante amplo de objetos, ações e relações sociotécnicas que se
tornaram parte de nossa experiência cotidiana, modulada por marcadores sociais de classe,
gênero, idade, raça, sexualidade, dentre outros. ” (PARREIRA; LINS; DE FREITAS, 2020, p.
2)
É importante que pesquisas no/do digital elaborem boas descrições dessas redes para
que seja possível situar tanto as pesquisas quanto os/as leitores/as, explorando os meios que
estão sendo utilizados na investigação e também as perspectivas dos/as usuários/as. Vale
ressaltar que o acesso ao digital é desigual, desde as possibilidades de uso e conexão até o
manejo e conhecimento de suas ferramentas. Desta forma, boas descrições desnaturalizam esse
conhecimento que para pesquisadores/as em contextos universitários podem parecer dado, mas
que reflete a própria sociedade no qual se insere e suas desigualdades.
Tendo em vista a existência desta problemática, é necessário tocar no assunto mesmo
que de forma breve. Em meu campo o acesso a conexão e aos dispositivos digitais acontece de
forma ampla, fato que se apresenta pelo uso frequente dos smartphones no espaço da praça e
pelas interações que vão surgindo nas redes sociais. Isto sinaliza que, para além de acesso,
existe entre o público do bar um domínio, uma expertise quando pensamos o uso das
plataformas que são analisadas nesse trabalho. Por exemplo, temos o uso de aplicativos como
142

o Uber e o 99pop na volta para casa, encerrando a noite no bar, que tem algumas exigências
como estar conectado à internet, ativar a geolocalização do dispositivo, adicionar uma forma
de pagamento, entre outras.
As postagens, fotos e interações feitas pelos atores ali presentes apontam para, entre
outras coisas, as conexões estabelecidas além da praça e certa facilidade com a qual conteúdos
sobre o La Luna acabam sendo compartilhados pelo público, possibilitando maior repercussão.
Apesar de o bar não oferecer rede wi-fi para seus clientes, o uso quase geral do celular
exemplifica como outras formas de conectividade estão presentes, sobretudo com a utilização
dos dados móveis. Essas conexões e habilidades ao navegar pela rede e pelas plataformas
também refletem o perfil geral do público frequentador do espaço, jovens universitários das
classes médias, que dispõem de maiores possibilidades de consumo de dispositivos e da própria
internet.
Rompendo com a ideia de separação entre o “real” e o “virtual”, o que encontro no La
Luna é um contínuo entre experiências corporificadas e mediadas, ou não, por
dispositivos/internet. Retomando as autoras acima citadas, é posto que:
Com a consolidação da internet sem fio e a popularização dos smartphones
(LINS, 2019) deixamos de “entrar na internet” e passamos a nela viver
imersos, ou, no mínimo, a termos nossa vida cotidiana atravessada pela
digitalização, que atinge até mesmo aqueles que não dispõem de acesso
doméstico” (PARREIRA; LINS; DE FREITAS, 2020, p. 4)

Em 2018, a partir do levantamento feito para a minha pesquisa anterior, pude notar que
os comentários sobre o bar, suas classificações, avaliações e os relatos de acontecimentos,
extraídos de plataformas como Google e Facebook, construíam um imaginário multifacetado
do bar, com um desenho majoritariamente positivo sobre seus elementos e experiências
atravessadas por ele. Nas mesas, entre conversas, pude observar que os celulares são
operacionalizados com conferidas nas redes sociais, postagens e conversas que vão permeando
as experiências físicas de estar no bar.
Assim, as narrativas sobre o local ganham formas através de seu público na internet e
dos perfis usados pela administração para fazer divulgação e compartilhar com os/as clientes
informações que vão desde o funcionamento até posicionamentos políticos – como adesão a
campanhas que pautam o combate as opressões, fortemente ligadas a diversidade sexual e de
gênero, ou a outras temáticas tidas como “progressistas”. Assumir esse lugar reforça o perfil do
La Luna e estabelece uma relação de cumplicidade com seu público que notavelmente valoriza
essas manifestações e características, como aparece nas avaliações online que ressaltam os
143

aspectos “inclusivo”, “alternativo”, “mente aberta” do bar e seu público, aparentando os


qualificar – ou constituir – de forma relacional.
Débora Krischke Leitão e Laura Graziela Gomes (2017) trazem uma interessante
discussão metodológica para pesquisas em ambientes digitais. Ao enxergar as plataformas
digitais enquanto “ambientes”, as autoras traçam aproximações com a formação das cidades e
do processo de urbanização, entendendo-os como “construídos”, não naturais, representando
não só os processos de adaptação dos seres humanos, mas também uma nova forma de vida.
Este debate fundamenta outras possibilidades de modos de vida que, no caso dos/das usuários/as
de plataformas digitais, não se restringem a um único espaço, marcados pela experiência “off-
line”. Em algumas instâncias, os processos de urbanização e de digitalização questionam noções
essencialistas de “vida natural”, já que outras formas de vida vão sendo construídas,
acompanhando a progressão das cidades e das diversas e complexas plataformas.
Estabelecida esta contextualização, as autoras propõem três abordagens etnográficas em
ambientes digitais: perambulações, acompanhamentos e imersões. Em razão de as duas
primeiras me ajudarem a pensar meu campo, mesclo suas características para apreender as
movimentações feitas nas plataformas e perfis que explorei. A perambulação é pensada para
lidar com ambientes digitais atravessados pela rápida propagação de informações, imagens,
opiniões e rumores, semelhante aos grandes fluxos urbanos das grandes cidades. Para captar
estes espaços, é necessário percorrê-los, movimentar-se, flutuar pelas plataformas, entendendo
essa perambulação como modo de conhecimento. As autoras afirmam que:
Uma sensibilidade etnográfica transeunte, de idas e vindas, percorrendo
caminhos em meio à multidão de imagens e mensagens, pode ser profícua
quando acionada na observação de plataformas que têm como característica
os trânsitos intensos e a efemeridade. (LEITÃO e GOMES, 2017, p.46)

Nos próximos tópicos irei descrever as plataformas76 e apresentar alguns dos fluxos que
percorri, bem como escolhas e ferramentas utilizadas durante minhas perambulações. De forma
geral, parti de um ponto fixo, o perfil do La Luna no Instagram e no Twitter, visualizando
conexões estabelecidas, principalmente, com seu público. Acessar curtidas, compartilhamentos,
comentários, marcações e links que circulavam pelas plataformas envolvendo o bar
viabilizaram esse trânsito que, apesar de não ser predeterminado, era norteado pelos fluxos que
atravessavam meu campo analógico e consequentemente meu objeto de pesquisa.
Já sobre o acompanhamento enquanto abordagem, Leitão e Gomes (2017) exploram um
pouco da centralidade que o perfil ocupa em algumas plataformas, como o facebook,

76
Neste capítulo optei por trazer alguns printscreen, isto é, são capturas/fotografias de telas, para ilustrar melhor
as interfaces e também dar algumas noções de como são estabelecidas as interações entre usuários/as.
144

ressaltando que nessas existe a predominância de uma convergência identitária. Essa lógica de
aproximação entre identidades civis e perfis ganha força em redes de amizades que entrecruzam
o off-line e o online, se atentando como as próprias plataformas impõem, ou tentam fortalecer,
essas práticas. Aqui se mostra a necessidade de ponderar também sobre os contextos off-line,
caso seja pertinente dentro de nossas pesquisas, incluindo as observações presenciais.
Partindo dessas reflexões, estive acompanhando os perfis do La Luna no Instagram e no
Twitter, observando de quais formas estavam sendo traçadas essas continuidades entre o digital,
o bar, a praça e seu público. Acompanhar essas conexões perpassam os/as interlocutores/as de
pesquisa, suas práticas, mas também os agenciamentos tecnológicos dos próprios ambientes
digitais. De forma recorrente os acontecimentos no local são transportados para estas
plataformas por meio de comentários, debates, fotos, marcações etc. que acabam gerando várias
outras interações com o público presente na ocasião ou não. No mesmo sentido, inúmeras
postagens iniciam movimentações que podem culminar em uma ida ao bar – como convite entre
amigos, flertes ou mesmo buscas por companhias de pessoas até então desconhecidas – ou
manterem-se restritas ao ambiente digital. Acompanhar esses fluxos exigem que, enquanto
pesquisador, eu também estabeleça essa continuidade entre online e off-line:
Nesse caso, o pesquisador estaria seguindo o fluxo das socialidades já
existentes nesse ambiente, quase como um etnógrafo-stalker, já que dessa vez
estaria acompanhando os passos de perfis/pessoas na própria plataforma e fora
dela, viajando junto com seus interlocutores. (LEITÃO e GOMES, 2017,
p.53-54)

Estabelecer esses acompanhamentos modificaram em certo nível meu uso dessas


plataformas. De forma direta, entendendo um pouco como esses ambientes transformam nossas
conexões e nossos usos em dados/algoritmos que direcionam as experiências, como o
estabelecimento da relevância para publicações ou perfis que aparecem em nossos feeds, passei
a interagir mais com o público do La Luna nessas plataformas, na tentativa de “moldar” o
algoritmo para mostrar mais conteúdos ligados a pesquisa. Essas interações feitas a partir dos
meus perfis pessoais me deixavam disponível de modo quase contínuo em um estado de alerta
sobre qualquer publicação relacionada ao bar. Este parece ser um desafio para pesquisadores/as
no/do digital, apontando para a necessidade da negociação de limites entre esferas pessoais e
da pesquisa.
Nesse debate, ainda é preciso destacar como as próprias noções de perfil ou de
convergência identitária ficam um pouco nubladas no meu campo. Digo isso por se tratar do
perfil de um estabelecimento que traça aproximações entre o bar na praça e no digital, alargando
as conexões possíveis entre uma identidade online e off-line.
145

Entre perambulações e acompanhamentos, é inevitável estabelecer analogias entre as


movimentações que estabeleci percorrendo a cidade e as plataformas. Expandir a pesquisa para
os ambientes digitais me ajuda a pensar noções que têm sido abordadas ao longo do texto, como
a própria experiência corporificada de ser um pesquisador em campo, das afetações do contexto
pandêmico, das possibilidades de deslocamento por diferentes espaços e das interações
estabelecidas com o objeto de pesquisa e uma gama de atores sociais que aqui se transformam
em interlocutores/as, não estando limitados aos seres humanos. Os fluxos percorridos, entre
plataformas e ruas, destacam algumas formas possíveis de interatividade e continuidade entre
o online e off-line, fazendo necessário o esforço de apreender como se estabelecem esses
trânsitos, transportando-os nessa pesquisa.
Jair de Souza Ramos (2015) explora de quais formas a sociabilidade em rede, fortalecida
pelas tecnologias de comunicação, gera efeitos sobre o processo de subjetivação na
contemporaneidade, fazendo um resgate histórico sobre o desenvolvimento dessas tecnologias,
formas de conexão e propondo a internet como espaço social. O autor ressalta como os
mecanismos simbólicos, trazendo a internet como meio de produção social, atuam na
subjetivação dos sujeitos, alinhando com o desenvolvimento de novas tecnologias que
possibilitam a troca de informações em alta velocidade, como o computador em casa, o celular
e a conexão móvel.
Neste contexto, modos de identificação como o login, o avatar e o nickname
possibilitam a criação de novas identidades no digital, podendo estar ligadas ou não a identidade
fora das redes, traçando outras formas de interação. O autor argumenta:
Assim, a partir da articulação entre o on-line e off-line, e do apagamento das
fronteiras entre público e privado, os padrões de sociabilidade construídos nas
redes sociais operam uma convergência entre as múltiplas possibilidades
identitárias e radicam as personas em um eu que tem rosto e registro contínuo
de seus gostos, de suas preferências artísticas e políticas, de suas ações
profissionais e de lazer, de seus eventos familiares, etc. (RAMOS, 2015, p.73)

Para auxiliar nesta investigação no digital, parto também das contribuições de Christine
Hine (2020), traduzidas por Carolina Parreiras e Beatriz Accioly Lins, que reflete sobre os
desafios que nós etnógrafos enfrentamos ao fazer pesquisas em contextos digitais e/ou
envolvendo a internet. Hine (2020) aborda três aspectos da experiência contemporânea da
internet que atravessam estratégias e metodologias que impactam no desenvolvimento de
pesquisas nessas conjunturas: ela é incorporada, corporificada e cotidiana.
Para o desenvolvimento de uma estratégia etnográfica para a Internet, parece
particularmente significativo que ela é incorporada em várias molduras
contextuais, instituições e dispositivos, que a experiência de usá-las é
146

corporificada e, consequentemente, altamente pessoal, e que ela é cotidiana,


frequentemente tratada como uma infraestrutura normal e mundana, ao invés
de ser algo sobre o qual as pessoas falam a menos que algo significativo dê
errado. (HINE, PARREIRAS e LINS, 2020, p. 14-15)

Busco ao longo das descrições e análises atentar para as formas como essas
características se fazem presentes e influenciam na minha experiência em campo, seja no
presencial ou no digital. Para a autora, é pelo uso, na presença cada vez mais intensa de
dispositivos, que sentimos como a internet vai sendo incorporada, se tornando entrelaçada a
vida cotidiana. Sem perder de vista que o/a usuário/a da internet é corporificado, com
experiências corporais que situam socialmente os corpos e também está presente em suas
experiências com a internet, fazendo emergir continuidades entre o online e off-line, como
abordo em alguns casos. Ao se tornar cotidiana, a internet pode ser encarada como uma
infraestrutura invisível, mas é importante conseguir captar e apresentar esses aspectos que
atuam nas diversas experimentações, como os direcionamentos ordenados por algoritmos que
privilegiam determinados sujeitos/dados/informações.
Entendo que este debate, por sua complexidade, demanda uma série de análises que não
cabem aqui. Entretanto, ao explorar algumas dessas contribuições consigo dar um melhor
direcionamento aos dados construídos ao longo desta pesquisa. Assim, mesmo que não utilize
todas as abordagens, elas me ajudam a pensar desde a minha inserção em campo até como o
digital vai surgindo durante a investigação, entendendo que a internet é múltipla e o recorte que
tento traçar são os usos que os atores políticos e sociais, em situações particulares, fazem dela.
Nesta direção, busquei acompanhar o bar, o que tem acontecido com ele e postagens
que o mencionam no Twitter e no Instagram. Utilizar o digital como forma de mediação para
pesquisa traz questões complexas na construção de seu método, bem como um esforço para as
análises. Nesse contexto, surgem questões éticas sobre dados que estão disponíveis
“publicamente” nesses ambientes, mas pertencem as pessoas que estão por trás das telas e
dispositivos. As próprias plataformas estabelecem noções de privacidade e compartilhamento
de dados, mas que precisa ser pensado também pela perspectiva do usuário e, além disso, como
essas informações aparecem nas pesquisas sendo necessárias negociações com os/as usuários
das plataformas que passam a ser encarados/as como possíveis interlocutores/as.
Alguns aspectos influenciaram na escolha das plataformas, como a visibilidade e
alcance das páginas do bar, a frequência das postagens e movimentações, bem como as
interações entre os perfis do La Luna e do público. No instagram, além das postagens no feed,
chamava atenção os stories que eram replicados pelo público, divulgando algum evento ou
campanha lançada pelo bar. Já no Twitter, se destaca a possibilidade de busca utilizando
147

palavras chaves que levavam aos tweets mencionando o bar, abordando uma gama de temáticas
e também pela possibilidade de “seguir” essas discussões, acessando respostas, curtidas, perfis,
entre outros. Desenvolvo de forma mais aprofundada as descrições das plataformas, as escolhas
metodológicas, a postura enquanto pesquisador/usuário e demais observações ao longo deste
capítulo.
Antes das descrições das plataformas é necessário explicitar como me insiro nesses
ambientes. Assim como outras pessoas pesquisando em contextos digitais parecidos precisei
refletir sobre algumas escolhas em campo. A principal delas está relacionada a necessidade de
criar novas contas nas redes sociais voltadas exclusivamente para pesquisa ou utilizar minhas
contas pessoais. Optei pela segunda alternativa por entender que não haveria necessidade de
criar novas contas, visto que, na verdade, esta opção poderia dificultar a manutenção de alguns
vínculos online que estabeleci ou de acessar algumas informações, como perfis privados77 que
já tinha acesso em minhas redes pessoais. Além disso, durante quase todo o campo estive
acionando minhas redes pessoais, seja interagindo com pessoas que eu já seguia e que eram
minhas seguidoras, pelas conversas privadas e ainda pelas interações com terceiros que surgiam
em minhas linhas do tempo conectadas através dessa rede pessoal, muitas vezes sendo sugeridas
pelas próprias plataformas.
Contudo, sinalizei em meu perfil do Instagram meu vínculo com mestrado e algumas
vezes reforçava essa informação com alguns stories que mencionam minha pesquisa ou
interesses acadêmicos. No Twitter, em setembro de 2021, decidi deixar fixado78 em meu perfil
um “convite” para as pessoas que frequentam o La Luna e tivessem interesse em conversar
comigo e contribuir com minha pesquisa. Entendi que essas foram medidas necessárias para
sinalizar em alguns primeiros contatos meus objetivos em algumas interações.
Digo isto pois, durante a pesquisa, principalmente no Twitter, passei a seguir algumas
pessoas que costumava encontrar na praça durante o campo, tantas outras vezes curti as
postagens que encontrava enquanto navegava nas plataformas sem conhecer seus/suas
autores/as. Essa estratégia me rendeu algumas conversas que começavam nos comentários das
postagens e seguiam para mensagens privadas ou interações no bar. Em setembro de 2021
estava no La Luna, sentado com um amigo, tomando algumas notas em meu caderno quando

77
Nesse tipo de perfil existem restrições para acessar suas informações e publicações. Também é feito um controle
sobre quem pode seguir/adicionar, geralmente se manda uma solicitação para o/a usuário/a que pode aceitá-la ou
não.
78
“Fixar tweet” é uma ferramenta que permite ao usuário escolher uma postagem para permanecer no topo de sua
página, fazendo com que todos aqueles que acessarem consigam facilmente encontrá-lo. Usualmente é utilizado
para destacar algum conteúdo relevante para aquele perfil, podendo ser desde listas de filmes, músicas, produção
acadêmica, fotos, entre outros.
148

fui abordado por uma moça que já conhecida da UFRN. Ela me relatou que tinha visto meu
tweet e queria contribuir com minha pesquisa, puxando uma cadeira para dividir a mesa e
respondendo alguns questionamentos sobre o bar. Essa situação se repetiu, de forma parecida,
algumas vezes. Em outras ocasiões, após abordar alguém e falar sobre a minha investigação,
o/a interlocutor/a mencionava a postagem, seu conhecimento prévio sobre a minha investigação
e sua vontade de colaborar.
Algumas dessas ações em meus perfis auxiliam nas conexões com interlocutores, mas
também servem para marcar esse lugar de pesquisador. Neste sentido, parte dos assuntos que
costumo abordar nas redes se relacionam com os recortes explorados nesta pesquisa. Por
exemplo, ao compartilhar algo sobre Natal, ou que ressalte essa esfera territorial e os
atravessamentos das vivências LGBTQI+ na cidade, aciono esse lugar duplo e simultâneo,
sujeito e pesquisador. Assim, esta construção nas plataformas faz emergir outras nuances dessa
experiência corporificada.
Semelhante aos dias em que estive na praça, pude adotar posturas que resultavam em
maior ou menor visibilidade para minha presença no ambiente digital. Neste contexto, se torna
facilitado observar as atividades de forma quase “invisível”. Assim, parte dos eventos que
exploro neste capítulo são frutos de percepções que não necessariamente geraram interações
diretas com os sujeitos que protagonizaram as cenas, trazendo outras interpretações de como
podemos estar inseridos nos campos, fazendo algo que remeta a uma “observação participante”
A interatividade pode ser também olhada sobre outro prisma, o da imersão
oculta, isso quer dizer que mesmo o pesquisador “não interagindo” com os
observados, o estudioso pode conseguir captar a interação deles e edificar os
sentidos sociais captados. Portanto, mesmo não havendo uma interação em si,
o pesquisador pode conseguir levantar até mesmo de forma minuciosa o que
os pesquisados pensam, principalmente, nos meios digitais, pois, como já
falado, são meios de comunicação que permitem os seus usuários tomarem o
protagonismo dentro do processo de comunicação. (VIEIRA JUNIOR, 2020,
p. 21)

Cabe ressaltar que, nesta pesquisa, o processo de captar e edificar os sentidos sociais
dessas interações contam com um repertório pessoal, um acúmulo oriundo da imersão em
campo e de aproximações e compartilhamentos que são estabelecidas entre os/as interlocutores
e eu. Por vezes, só a observação de determinadas postagens me deixava confuso sobre as reais
intenções do que estava sendo posto, se mostrando necessário o aprofundamento por meio do
exame mais detalhado dos perfis envolvidos ou do contato enviando mensagens diretas
149

4.1 Instagram: uma vitrine virtual

Criado em 2010, o Instagram tem como foco o compartilhamento de fotos e vídeos,


oferecendo uma gama de ferramentas que vão desde edição até interações por meio das
postagens e mensagens diretas. A plataforma faz parte do conglomerado de tecnologia e mídias
sociais “ Meta Plataforms, Inc”, ou Meta, unida ao Whatsapp, o Facebook e outras. Este é um
ponto importante para entender algumas conexões estabelecidas entre elas, onde é possível o
compartilhamento direto de postagens, reações, indicações de amizades e seguidores, incluindo
um sistema integrado de mensagens privadas, o Messenger.
É possível criar perfis no Instagram utilizando número de celular, e-mail ou com uma
conta do Facebook. Deve-se adicionar uma série de informações pessoais, como um “nome de
usuário” que se torna uma identidade exclusiva pela qual você pode ser encontrado/a e uma
“bio”, onde você pode fornecer outras informações que ficarão visíveis em seu perfil. O sistema
de interação entre usuários está baseado em seguir e ser seguido, sendo esta relação
independente, ou seja, você pode seguir alguém e esta pessoa não te seguir de volta.
Na tela principal79, em maior destaque, está o “feed”, espaço que reúne as publicações
dos perfis seguidos, bem como uma série de sugestões de conteúdos e usuários, patrocinados
ou não, indicados pela plataforma de acordo com seus usos. Para visualizar as postagens é
preciso descer/rolar o feed, fazendo surgir novas fotos e vídeos. Abaixo de todas as publicações
estão os ícones de interação, sendo o coração para curtir, um balão de diálogo para comentar e
ver os comentários escritos, uma seta que permite você adicionar o post em seu story ou enviar
para alguém, e uma bandeira para armazenar em sua coleção de postagens salvas.
No topo da plataforma, está a logomarca/nome do Instagram, ao tocá-la você retorna
para o início do feed. Em seguida, tem as ferramentas que permitem realizar novas publicações,
sinalizada por um quadrado com um “+” no centro, a central de atividades/notificações,
sinalizada por um coração, que permite verificar as interações feitas com seu perfil, e o “direct”,
com ícone semelhante a uma seta ou um balão de diálogo, onde se pode iniciar uma conversa e
acessar as mensagens privadas recebidas e enviadas.
Logo abaixo, ficam os “stories”, uma linha horizontal que mostra os ícones dos perfis
seguidos, começando com o da própria conta, onde é possível fazer publicações de fotos e
vídeos, de até 15 segundos80, que permanecem publicados durante 24 horas, desaparecendo
automaticamente após esse período de tempo. Esta é uma das ferramentas mais importantes

79
Esta descrição está baseada na versão para android do aplicativo, portanto, outras versões podem sofrer algumas
alterações. Entretanto, as funcionalidades e ferramentas são comuns entre elas.
80
Recente atualização no aplicativo passou a permitir a publicação de vídeos maiores, até 60 segundos.
150

nesta pesquisa, visto que por meio dela conseguia acessar uma série de informações dos
usuários e do La Luna, pois, seu formato dinâmico é frequentemente utilizado para divulgar as
ações do bar (como funcionamento, promoções, movimentações na praça), bem como fotos e
vídeos do público que, entre outras coisas, sinalizam que estão lá, mostram a praça e o quiosque
e/ou marcando a localização georreferenciada do aplicativo.
Na parte inferior, estão o “home”, ícone de casa, que retorna o feed para o início e o
atualiza, o ícone de lupa que te direciona para ferramenta de busca na plataforma, uma claquete,
que leva até os “reels”, um espaço de criação, edição e compartilhamento de vídeos de até 30
segundos, onde são exibidos conteúdos de contas que você está, ou não, seguindo. Nessa parte,
também está a loja, um espaço de compra e venda dentro da plataforma, e, por fim, seu ícone
de usuário com a imagem que você define, por onde é possível acessar seu perfil, com sua “bio”,
suas publicações, isto é. Seu feed com todas as postagens realizadas desde que criou a conta na
plataforma, e algumas opções de edição de informações.
151

Figura 6 - Interface do Instagram

Fonte: Autoria própria

As primeiras postagens no perfil do La Luna no Instagram são de fevereiro de 2017,


próximas a inauguração do bar. Essas primeiras fotos mostravam um pouco do espaço, com
destaque para “arte urbana” que adorna o quiosque e alguns dos pratos que estavam no cardápio
nessa fase inicial, já destacando as batatas fritas com molhos que se tornaram uma das marcas
152

do estabelecimento. As legendas quase sempre servem para convidar o público para conhecer
o bar, nos comentários vão surgindo alguns elogios e é frequente as pessoas marcando umas às
outras para irem ao local. Esse tipo de divulgação me recorda a antiga estratégia “boca a boca”,
agora repaginada para o que pode ser entendido como um “@ a @”81, mencionando os perfis
dos/as usuários/as que são notificados/as para tomar conhecimento daquele assunto.
Ao longo das publicações vai sendo construída a identidade do bar na plataforma
ressoando as diversas movimentações que também aconteciam na praça. Já é possível
identificar adesão a algumas campanhas nacionais, como o “FORA TEMER”82, e articulação
com produtores culturais da cidade, traçando parcerias em eventos que começavam a gerar
grande movimentação na praça, como arraiás e discotecagens.
Podemos pensar o feed dos perfis no Instagram enquanto uma “vitrine” que dá
visibilidade e comunica mensagens específicas para o público que o acessa. Adara Pereira da
Silva (2020) ao tratar sobre consumo feminino de roupas, acessórios e maquiagens em Natal,
entendendo este como produto e produtor de sociabilidade, identificou a importância das
plataformas neste processo. Ao abordar o Instagram, ela traz a noção de vitrine atrelada a
apresentação dos perfis nessa plataforma, explorando como esta pode ser encarada como novo
instrumento da economia de desejos, intensificando visualmente o processo de consumo. Para
a autora, os feeds das lojas se tornam vitrines virtuais, ressaltando, que isto fica nítido ao notar
uma construção estética das publicações.
Acredito que não apenas a dimensão visual da vitrine é reconfigurada para o virtual
através do Instagram, mas também parto da compreensão que as interações possíveis ganham
outras escalas. Durante a pesquisa, Silva (2020) trata a relação entre as lojas físicas distribuídas
em diferentes localidades da cidade e seus perfis virtuais, atuando nos processos de
deslocamento de suas interlocutoras. Esse ponto destaca como delimitações geográficas são
borradas no digital, possibilitando o contato e relações de consumo. No caso do La Luna, o bar
ganha projeções também pelo seu perfil ao participar de campanhas nacionais, aparecer em sites
de turismo LGBTQI+ e ter seu “@” marcado por pessoas de grande visibilidade, como a
Deputada Federal Natalia Bonavides ou artistas locais como Potiguara Bardo e Kaya Conky.
Essa visibilidade que alcança outros públicos (além de usuais frequentadores/as) pode se

81
O “@” nestes contextos se torna similar aos nomes das pessoas ou os nomes de usuário escolhido por elas.
Servem para interagir diretamente com outros/as usuários/as ou localizá-los com maior facilidade, bem como
facilita a localização da postagem por eles/as.
82
Movimento que cresceu após o processo de impeachment contra a Ex-Presidenta da República Dilma Rousseff
em 2016, apontado como um golpe à democracia brasileira pelas forças políticas progressistas, que resultou em
Michel Temer, até então Vice-Presidente, assumindo a Presidência.
153

traduzir em futuras relações de consumo, por exemplo, por grupos de outras regiões que
compartilham características com os consumidores do bar e que passam a tê-lo como uma
referência em Natal.
Além de expor os serviços, estrutura física e eventos, essa vitrine virtual do La Luna
também revela posicionamentos e discursos com os quais está alinhado, como já foi explorado
no capítulo anterior. Se é por meio das práticas e eventos que vão sendo traçados
posicionamentos e atuações políticas, os feeds/perfis nas plataformas se mostram fundamentais
na construção dessa identidade política, criando, armazenando e publicizando as ações e
perspectivas que o bar e sua administração estão adotando como estratégia, tornando-se, como
examinado anteriormente, uma de suas principais características. As primeiras informações
apresentadas no Instagram do estabelecimento exemplificam essa ideia: o ícone do perfil com
o nome do bar e um fundo com as cores do arco-íris e, na sua “bio”, a descrição como “🌛 Bar
LGBTQI+ 🌜”.
Como mencionado acima, a ferramenta “story” se mostrou um recurso interessante para
observar as movimentações envolvendo o bar nesta plataforma. Além das divulgações sobre o
funcionamento, é costumeiro que seja repostado os stories marcando o estabelecimento,
construindo uma nova esfera de comunicação. Outra forma de contato são as “caixas de
perguntas” que permitem fixar alguma frase em um story possibilitando reunir as respostas,
aumentando a interação entre o perfil e seus visitantes. Com frequência é perguntado ao público
o que gostariam de ouvir no bar, com intuito de elaborar novas playlists que tocam durante as
noites de funcionamento. Vale frisar, além disso, que as “caixas de perguntas” são um recurso
usual para produzir engajamento na página que as disponibilizam, elemento fundamental para
que o perfil se torne “relevante” e apareça para um público maior, ultrapassando seus/suas
seguidores/as.
Pela sua potencial visibilidade, os stories frequentemente são usados para divulgar
produtos e serviços. No caso do La Luna, boa parte das postagens envolvem seus principais
produtos, ou seja, são fotos e vídeos dos “carros chefes” do local, as batatas e as cervejas. Sobre
as primeiras, é explorado visualmente a forma como elas saem da cozinha ainda quentes e com
vapor, exibindo os molhos e recheios. Já com as cervejas, se explora o contrário, mostrando
como estão geladas, o que fica nítido pela leve camada de gelo que se forma na garrafa de vidro,
um estado que é conhecido como ficar “suado”. Propositalmente, estas publicações podem
acionar na clientela a memória e/ou desejo, despertando os sentidos e diversas sensações que
inflamam a vontade de ir até o bar.
154

4.1.1 Rifa, delivery e a narrativa de ajuda

Dois momentos, que se desenrolaram durante períodos de maior restrição ao convívio


social fisicamente próximo na pandemia, sobressaltam o uso da ferramenta story estabelecendo
processos que demarcavam de forma mais intensa a conexão entre o público e o bar. Não
obstante, ambas as situações retratam um esforço por manter relações de consumo que, com a
justificativa de voltar-se à sobrevivência do estabelecimento em momento de aguda crise,
acionaram narrativas que exaltavam os vínculos entre o estabelecimento e sua clientela além da
ação estritamente comercial de compra-venda. Descrevo a seguir o pano de fundo e a
implementação do delivery e da rifa encabeçados pelo La Luna.
A conjuntura pandêmica e as medidas adotadas pelos governos, já mencionadas,
forçaram os estabelecimentos a desenvolverem novas estratégias para fugir da ameaça de fechar
definitivamente. Como aponta estudo realizado pelo IBGE no primeiro semestre de 2020, 4 em
cada 10 dos negócios fechados (um total de 522.000 firmas), temporariamente ou
definitivamente, afirmaram que a suspensão das atividades deveu-se à pandemia (EL PAÍS,
2020). Deste conjunto, as pequenas empresas, como o La Luna, foram as mais afetadas. O que
nos leva a pensar como, de forma mais ampla, a lentidão das respostas do Estado no
enfrentamento à pandemia, na criação de suporte às micro e pequenas empresas e a demora na
proposta de auxílio emergencial que só começou a ser distribuído em abril de 2020,
ocasionaram perdas significativas para esse grupo.
Desta forma, durante os períodos em que o bar não esteve funcionando com atendimento
nas mesas e balcão na praça, foram desenvolvidas duas medidas interessantes pelos seus
acionamentos e formatos, sendo elas, a rifa online e a criação do sistema de delivery, para lidar
com essa situação. Ambas mediadas pelo digital, projetadas para manter o bar em
funcionamento, utilizavam do discurso “compre do pequeno empreendedor/a” que ganhou
bastante projeção durante a atual crise sanitária, que também é econômica e afeta de forma mais
significativa as camadas populares da sociedade.
Não obstante isso, também foi possível observar que, em torno de uma narrativa de
“ajuda”, de solidariedade, acionou-se um conjunto de afetações baseadas nos vínculos entre o
bar e seu público. Desta forma, a “ajuda” se articula com a saudade/memórias que envolvem o
estabelecimento, como aparece em alguns comentários nos posts de divulgação, ressaltando sua
importância em Natal e na vida pessoal dos sujeitos. Desde os itens do sorteio à compra das
rifas, ajudar o local parece uma forma alternativa de frequentá-lo, manter e reafirmar esses
vínculos. Os prêmios doados e sorteados semanalmente entre julho e setembro de 2020,
155

partilhavam a estética/proposta do La Luna, exaltando símbolos como o arco-íris e a luta


feminista, traduzidos pela dinâmica do consumo, reforçando a ideia de mercado segmentado
que examinei no capítulo anterior.
Durante esse período, também foram feitas algumas publicações no feed sinalizando
que os sorteios estavam em curso. Entretanto, a maior parte da divulgação acontecia nos stories
que, além de mostrar as premiações, o perfil seguiu por algum tempo compartilhando e
agradecendo a adesão do público, seja pelos números da rifa comprados, por repostar a
campanha ou ainda para mostrar os/as ganhadores/ras.
Os sorteios aconteciam no formato de “live”, como um story ao vivo que, enquanto está
sendo transmitido, fica em destaque para os/as seguidores/as. Usando um site para fazer a
escolha dos números, o resultado permanecia salvo nos stories. Vanessa conduzia o momento
sempre agradecendo as pessoas que contribuíam com os itens e também o/a ganhador/a.
“Ajudar o La Luna” aparecia em quase todas as movimentações feitas no digital e estava
diretamente relacionada com a possibilidade de retorno do bar. Assim, o estabelecimento
traçava conexões temporais diferentes com seu público, onde a garantia do presente se dava por
meio dessa “ajuda” que, por sua vez, era impulsionada pelo passado e as memórias construídas
durante o funcionamento físico do bar. Esses dois tempos fundamentavam ainda um futuro
condicionado, pela questão econômica e pelo contexto pandêmico, que apontava para o retorno
das atividades assim que possível.
O sistema de delivery, implementado durante o segundo período de fechamento do bar,
entre março e maio de 2021, também acionava a narrativa da “ajuda”. A divulgação do serviço,
que contava com um cardápio parecido com o que é ofertado de forma presencial, com batatas
fritas recheadas e cervejas, foi bem mais presente no Instagram, usando a ferramenta dos stories
para intensificar o alcance. Na “bio” do bar estava o link para fazer os pedidos, podendo
direcionar os clientes para a conversa com o estabelecimento no Whatsapp ou no Ifood,
plataforma específica para compra e venda de alimentos e bebidas.
Durante nossas conversas, Vanessa me explicava que essa medida poderia ser encarada
de duas formas. Apesar da tentativa de engajamento pelo Instagram, economicamente o
delivery não estava sendo rentável, principalmente quando comparado ao funcionamento
presencial do bar. Entretanto, o serviço teve o papel fundamental para a continuação do
estabelecimento até que fosse possível a retomada das atividades, pois, nas palavras de Vanessa,
a gente começou a movimentar com os deliveries. Deu certo porque fomentou
a volta do La Luna, né. Foi uma coisa assim, que foi um degrauzinho para as
pessoas verem que a gente ainda funcionava. Mas, financeiramente, não era
rentável. Aí, eu e Shirley passava a noite lá e as vezes a gente vendia cinco,
156

seis pedidos. Era frustrante. As vezes era cem, cento e vinte (reais) por noite
que entrava no Ifood. Na semana inteira que a gente trabalhava era trezentos
e alguma coisa. Ficava: “não, mulher, pelo amor de deus”. Era mais mesmo
pra circular, fazer aquilo ali não parar, porque a gente tava precisando mesmo
que aquilo ali não parasse. A sensação que a gente tinha era “ a gente tá
saindo”, aí conseguiu a liberação com restrição. (Diário de campo, fevereiro
de 2022)

Além de contar com o auxílio da família e das redes de amizades das donas, é
interessante perceber como algumas estratégias de sobrevivência para o negócio não se limitam
exclusivamente ao aspecto econômico. Antes dessa fala, Vanessa me contava como o bar tinha
se tornado “algo a mais”, que não era só para ela e Shirley, sua sócia, pois toda movimentação
que acontecia naquele espaço e a “representatividade” já teriam sido firmadas no cenário local
através do público.
Essas outras significações para o estabelecimento serviram como uma das motivações
para Vanessa “não fechar de vez”, como pensou algumas vezes nos momentos de restrições que
impossibilitavam seu trabalho e acabou gerando algumas dívidas. Como a empreendedora
coloca em sua fala, “ a gente tá saindo” serve para imaginar um contexto mais amplo, onde a
conjuntura pandêmica vai se amenizando e possibilitando algumas flexibilizações. De forma
mais específica, serve para projetar que o bar conseguiria reverter aquela situação negativa e
retomar suas atividades.
Unido a ideia de “ajuda”, aparece de forma notável os acionamentos das memórias, com
stories perguntando ao público sobre experiências que tiveram no bar e repostando algumas
fotos publicadas pelos/as clientes, mostrando os pedidos com frases como “matando as
saudades”. Assim, ajudar, comprar e falar das experiências são formas alternativas de
frequentar o La Luna, proporcionando uma sociabilidade mediada pelo digital, onde a troca de
informações entre o público constitui o espaço social. As várias pessoas se interligam por meio
desta circulação de dados, frente a impossibilidade desta sociabilidade ocorrer pelo
compartilhamento do espaço físico da praça.
Entre divulgações dos serviços, campanhas e memórias, o bar opta por estratégias que
ressaltam a conexão estabelecida com o público ao longo dos anos. Por outro lado, estas
medidas não seriam efetivas se dentro do conjunto de sujeitos que compõe sua clientela não
tivessem aqueles/as que respondem a essas demandas por “ajuda”, através de seu consumo
engajado. Aqui também podemos pensar a relação entre “consumo ativista” e as possibilidades
de ampliar essas ações, divulgando através das plataformas, pensadas aqui também como
vitrines virtuais, suas práticas de consumo que apoiam um bar com tantas características como
o La Luna.
157

Nessa direção, se estabelece um diálogo onde o bar, por meio de ações como a rifa e o
delivery, passa a convocar seu público para que juntos materializem os planos de manter o local
funcionando. Do outro lado, o público se mobiliza de diversas formas, atendendo ao chamado,
não só através da “ajuda” financeira, mas engajando em seus perfis essas ações reforçando
vínculos e memórias.

Figura 7 - Comentário sobre o anúncio da rifa

Fonte: TWITTER
158

Retomando o argumento de Domingues e Miranda (2020) desenvolvido no capítulo


anterior, é possível pensar outras esferas que essa “ajuda” pode conter. Segundo as autoras, “O
que falamos e, por conseguinte, o que postamos nas nossas mídias digitais influencia o modo
como os outros nos veem, funciona como uma moeda social, capaz de nos tornar mais ou menos
valorizados aos olhos das outras pessoas. ” (MIRANDA e RODRIGUES, 2020, p.106).
Portanto, se partimos do entendimento de que o público do bar valoriza os posicionamentos
políticos do estabelecimento e o apoio que ele dá a causas sociais, é possível concluir que essas
pessoas, os meios sociais e as redes que elas convivem também apreciem, apoiem e avaliem
positivamente a adesão, pessoal ou de terceiros, a estas ações quando o próprio bar, com suas
singularidades estéticas-políticas, está em questão.
Figura 8 - Comentários sobre a rifa

Fonte: TWITTER
159

Desta forma, “ajudar” o La Luna se torna também uma maneira de propagandear suas
próprias ações, isto é, da própria clientela, que, encaradas enquanto consumo ativista, podem
ser avaliadas positivamente por amigos/as e seguidores/as. Nesse cenário, os processos de
consumo vão sendo constituídos por uma série de significados, passando pela ajuda financeira
ao bar que está impedido de funcionar, as memórias e afetos construídos com/no lugar, até uma
prática ativista que pode gerar uma gama de status para os/as envolvidos/as. Como pano de
fundo que impacta diretamente toda esta trama, está a plataforma (no caso, o Instagram) que
viabiliza e garante maior amplitude, seja para as campanhas em si ou para aqueles/as que
aderem a elas.
Durante o período que estive acompanhando o perfil do La Luna no Instagram precisei
entender quais mecanismos da própria plataforma poderiam viabilizar uma observação que
conseguisse captar as complexidades que foram expostas acima. Naquele momento percebo
que a ferramenta de busca pouco me ajudava a encontrar interações envolvendo o bar. O uso
de palavras chaves como “ La Luna”, “laluna” ou “lalu”, quase sempre me direcionavam para
o perfil do estabelecimento ou de outros com o mesmo nome – além de outras postagens que
não tinham nenhuma conexão com o interesse desta pesquisa.
Entretanto, também pude observar que a “localização” do La Luna disponibilizada pela
plataforma mostra, além do posicionamento geográfico, as publicações que adicionaram o local
como referência, exibindo-as em ordem de “mais relevante” ou “recentes”. Através desse
mecanismo pude (re)conhecer um pouco do público e dos acontecimentos que ficam registrados
na plataforma83.
Outra forma de acessar essas conexões foi através dos comentários e curtidas nas
postagens do bar. Além de conseguir acompanhar como o público regia, qual formato de
conteúdo costumava ter maiores interações, foi possível encontrar neste ambiente algumas
pessoas que costumava esbarrar pela praça e começar a segui-las. Outra forma de encontro foi
partindo da seção de “marcados”, semelhante ao recurso de localização, que exibe publicações
nas quais o perfil do La Luna era marcado.
Esses foram alguns dos caminhos traçados dentro desta plataforma, tentando entender
os usos e significados construídos pelo bar e seu público neste ambiente que apesar de ser
diferente, mediado pelo digital, aciona uma série de elementos e acontecimentos que remetem
ao espaço físico. As afetações, memórias e estratégias exploradas servem para exemplificar

83
A ferramenta indica mais de mil publicações quando acessamos a localização. Boa parte são fotos do público,
individuais ou em grupos, mas também aparecem as divulgações de eventos e ações envolvendo o bar.
160

como a relação de continuidade entre online e off-line vão sendo tecidas ao longo da pesquisa,
bem como as análises propostas.

4.2 Twitter: “todo mundo tem o que falar”84

O Twitter é uma plataforma online de interação entre seus/suas usuários/as que, como
mencionado em seu site (www.twitter.com), busca promover a conversa pública. Idealizada por
Jack Dorsey e lançada em 2006, sua proposta era inspirada em mensagens curtas e rápidas,
como os “SMS”. Inicialmente as postagens podiam conter até 140 caracteres, limite que foi
expandido para 280 em 2017, sendo uma marcante mudança para seu público mais antigo.
Em sua página inicial é possível cadastrar uma nova conta ou fazer o login, caso já
possua uma. Também é possível navegar pela plataforma sem estar cadastrado, podendo
visualizar as postagens, tópicos e perfis, entre outras formas de navegar, quando a configuração
desses é “aberta”/“pública”. Entretanto, os recursos e ferramentas são limitados, principalmente
aqueles que estão voltados as interações, como curtir ou comentar.
Uma vez conectado/a, o/a usuário/a pode editar seu perfil adicionando informações
como: uma foto/ícone, foto de capa, nome, bio, localização, anexar link para algum site e data
de nascimento. Além dessas informações, é necessário criar um nome de usuário exclusivo,
também conhecido como “@”, que serve para localizar de forma mais rápida e fácil o perfil e
as postagens vinculadas a ele.
Já na página inicial, centralizado e com destaque, está o espaço para escrever suas
postagens, os tweets. Eles devem conter o máximo de 280 caracteres e, idealmente,
responderiam a famosa interrogação: “What’s happening? ” (em português, “ o que está
acontecendo?”). Além de escrever, é possível anexar fotos, gifs, emojis, fazer enquetes,
adicionar localização e programar a postagem para outro momento, podendo salvar como
rascunho. Um recurso interessante recentemente lançado foi o “adicionar outro tweet”,
facilitando a criação de threads, sequência de postagens organizadas em ordem cronológica, o
que ampliou as possibilidades de escrita e discussão.
Logo abaixo está a “timeline” da página inicial, onde é exibido o fluxo de tweets das
contas que você segue, chamados de following, bem como os tópicos, listas, conteúdos
sugeridos pela plataforma e ainda algumas interações que os perfis seguidos estabelecem, como
curtidas e comentários. Este é um dos principais espaços do Twitter, onde se encontra o grande

84
Durante uma conversa informal com Vanessa, essa foi a frase que ela usou para caracterizar os comentários
sobre o La Luna no Twitter. Uso ela no título dessa seção do capítulo por acreditar que ilustra bem parte das
interações observadas na plataforma.
161

fluxo de informações, que tende a aumentar de acordo com o número de contas seguidas, o que
propicia maiores chances de interações entre usuários/as.

Figura 9 - Interface Twitter

Fonte: Autoria própria

Na lateral esquerda estão o ícone da página inicial, que movimenta a timeline para o
início, atualizando-a. No mesmo espaço fica a ferramenta de busca, que pode ser usada para
localizar informações, perfis, publicações, entre outros, através de palavras-chave. Voltarei
nesta ferramenta ao longo das descrições, pois, ela foi um caminho essencial para acessar
grande parte das interações que tive na plataforma. Ainda neste espaço, temos a central de
notificações, com um sino como ícone, onde são exibidas todas as interações feitas com sua
conta, como as curtidas, comentários e retweets dados em suas postagens, marcações de seu
“@”, novos/as seguidores/as ou ainda indicações de publicações de contas seguidas que o
162

Twitter acha relevante, geralmente baseadas em suas atividades e interações “geridas” pelo
algoritmo da plataforma.
Temos também o espaço onde ficam as mensagens diretas privadas, ou DM, com uma
carta como ícone, e os itens armazenados, cujo ícone é uma bandeira, onde estão concentradas
todas as publicações que são salvas e podem ser acessadas de forma facilitada. As listas, ícone
de página, podem ser criadas por outras pessoas ou por sua conta, elas aglomeram contas e
tweets que vão surgir na sua timeline, geralmente por assunto ou interesse. Para finalizar,
dispomos do perfil, ícone de pessoa, que direciona para sua página pessoal, o “mais”,
representado por três pontos dentro de um círculo, onde estão as configurações e central de
ajuda. No fim dessa coluna encontramos o botão “Tweetar”, que abre uma nova caixa onde é
possível escrever e postar novos tweets.
No modo navegador, com a página expandida, temos uma coluna do lado direito onde
estão algumas sugestões de notícias, debates e os “trending topics”, que são assuntos populares
no momento, em determinados lugares85, que ganham visibilidade com o uso das #hastags.
Aqui aparece a ferramenta “explorar”, simbolizada por um “#”, onde também são exibidas
informações personalizadas para cada conta.
Tweet é como são chamadas as publicações feitas na plataforma. De forma geral,
contém textos curtos que podem estar acompanhados de imagens ou links que redirecionam
para outros sites e plataformas. Também é possível conectar um novo tweet a algum já
existente, publicado por você ou demais pessoas. Essa ação é conhecida como retweetar, que
pode ser feita de forma direta ou adicionando um comentário. Os atalhos de compartilhar um
tweet em seu perfil, bem como comentar, curtir e salvar, ficam na parte inferior de todas as
postagens, podendo inclusive visualizar outras pessoas que realizaram essas ações.
As descrições feitas têm como base a versão para computador/navegador, as
localizações de algumas ferramentas são modificadas nas versões mobile para os sistemas
Android e iOS, mas, no geral, mantém as mesmas funcionalidades. Por exemplo, para fazer um
novo tweet basta clicar no símbolo “+” localizado no canto inferior direito da tela do celular.
Deslizando a tela para direita é possível encontrar ferramentas como configurações, listas,
tópicos, perfil, entre outras. Ainda na parte inferior do aplicativo, estão a ferramenta de busca,
central de notificações, as mensagens diretas (DMs) e o “página inicial”, que retorna para o
topo da timeline e a atualiza.

85
Esses tópicos são separados por assuntos e temáticas diferentes. Também é possível acessar aquilo que está em
destaque em determinada cidade, região, país ou no mundo.
163

Feitas essas breves descrições, sigo explorando minha experiência com a plataforma, os
caminhos e métodos utilizados e como as narrativas sobre o La Luna vão se constituindo e
ganhando sentidos a partir deste ambiente. Conheci e criei uma conta no Twitter em 2018, desde
então faço uso diário com diversas finalidades. Inicialmente ingressei para manter contato com
amigos e me manter informado, mas durante a construção de minha monografia (SANTOS,
2019) percebi como o La Luna surgia com certa frequência na minha timeline. Foi em razão
desse contato em outro ambiente que surgiua ideia de explorar o bar no digital, mesmo que de
forma breve.
Após essa decisão, minha experiência na plataforma ganhou uma nova perspectiva.
Unido ao ingresso no mestrado, passei a incorporar em minha rede perfis que contribuíssem
para minha pesquisa e passei a estabelecer contato com outras pessoas ligadas a antropologia,
pesquisadores/as com temas em comum, revistas, grupos de pesquisa e alguns portais voltados
para produção acadêmica. Esse movimento tem transformado meus usos no Twitter, mesclando
esferas particulares e profissionais. Deixo isso explícito em minha bio ao mencionar que estou
“tentando ser antropólogo”, também para sinalizar e causar alguma identificação ao seguir as
contas acima mencionadas.
Dito isto, durante esta investigação tentei traçar algumas estratégias que viabilizassem
estar em campo e conseguir captar as dinâmicas que estavam sendo tecidas na plataforma.
Como já explorado, algumas leituras me auxiliaram nesta observação e estabeleci como ponto
de partida o perfil do La Luna para então seguir os diversos fluxos possíveis. O bar criou sua
página em agosto de 2017, alguns meses após sua inauguração, e utiliza a mesma identidade
visual adotada no Instagram. Na bio, também podemos perceber a relação entre as páginas nas
duas plataformas, exibindo informações de forma muito similar, acrescentando a localização
do bar e informações sobre a feijoada que acontece todo primeiro domingo do mês.
Os primeiros tweets na página já apontam uma das diferenças mais nítidas entre a
atuação do bar no Instagram e Twitter. Na segunda plataforma, o número de publicações e de
interações com o público é bem mais elevado, enquadrando, de certa forma, nas dinâmicas que
perpassam esse ambiente. Neste início, existia uma presença bem mais marcada da atuação do
bar na rede, principalmente propagandeando suas batatas, cervejas, o karaokê e os vários
eventos que aconteceram nesses primeiros anos do bar. De forma geral, o La Luna aposta em
uma linguagem que se aproxima de seu público, evidenciado nas escolhas das palavras e gírias
164

usadas nos tweets, ficando mais evidente no uso de gifs e memes86 com referências à cultura
pop internacional, nacional e local.
Figura 10 - Tweets do La Luna

Fonte: Página do La Luna no Twitter

As interações com o público abrangem desde curtidas nas publicações, passando pelos
comentários e retweets, feitas com maior frequência nos tweets que marcam o “@” do bar.
Assim como no Instagram, ser repostado pode proporcionar alguma visibilidade para os perfis
que criam essas publicações e esta rápida exibição pode ser direcionada, por exemplo, em
tweets onde a pessoa relata estar sem companhia para ir ao La Luna e, por meio dessa interação
com o bar, ampliar suas chances de encontrar parceria.
Esse fluxo de interações entre o perfil do estabelecimento e seu público é modificado
com o início da pandemia e a pausa no funcionamento físico do local. Poucas publicações foram
feitas nos primeiros meses de 2020, mas as movimentações retornam com o lançamento da
rifa87. Nesse período, a divulgação da ação era unida aos agradecimentos e retweets de apoio
feitos por diversas pessoas que, frequentemente, evidenciavam a importância daquele espaço e
várias significações que tornavam sua sobrevivência relevante localmente.

86
Na figura 10, temos a imagem a drag queen natalense Kaya Conky que aparece esbanjando cerveja, literalmente
“enchendo a cara”. O bar comenta “todas fazendo a @Kayabixa”, para sinalizar que as clientes aproveitaram a
noite e beberam bastante. Já a outra imagem é um GIF do reality show “Glitter: em busca de um sonho” onde as
participantes estão sentadas esperando com diferentes expressões faciais.
87
As figuras 7 e 8 mostram os tweets do bar falando sobre a rifa e agradecendo a adesão.
165

Com a campanha da rifa finalizada, a conta volta a ser movimentada anunciando a


possibilidade de retorno as atividades presenciais. Os tweets do bar e suas interações
diminuíram, se compararmos com os primeiros anos, passando a ter menos curtidas e
comentários. Em sua maioria, agora estavam focados em divulgar o funcionamento e os eventos
que também foram retornando aos poucos. O anúncio de festas, como o Halloween de 2021 e
o debate com Manuela D’Ávila88, exibiam a animação do público que refletia na presença em
maiores quantidades também na praça.
A gestão das redes sociais do bar também passou por momentos diferentes. Vanessa me
explicou que boa parte do tempo ela mesma estava administrando os perfis nas diferentes
plataformas e contava com ajuda de Shirley em algumas ocasiões. Em determinados períodos,
dispuseram de auxílio profissional principalmente no desenvolvimento dos panfletos e artes
para divulgação. Vanessa ainda me contou como “não leva jeito” para gerenciar os perfis, mas
entendia a necessidade e assim que fosse financeiramente viável contrataria algum profissional
“Nisso eu sou ruim, tenho total noção. A gente precisa ter novamente uma pessoa cuidando
disso, para postar, interagir com o público, mas agora não temos como!” (Conversa realizada
em fevereiro de 2022).
Saindo um pouco do perfil do La Luna como foco na plataforma, comecei a explorar as
conexões e como o bar poderia surgir em outros contextos. Assim, fazendo uso da ferramenta
de busca do twitter passei a acessar tweets e discussões que não ficavam visíveis na conta do
estabelecimento. O mecanismo de pesquisa do Twitter é bastante abrangente e complexo,
partindo de buscas simples, como encontrar um “@” ou uma #hashtag, até funções avançadas
como os filtros por localização, com palavras específicas, frases, em determinadas contas, com
determinados engajamentos e períodos de tempo.
Levei algum tempo para compreender melhor todas essas possibilidades e quais dessas
poderiam me ajudar em meu campo. Assim, tornou-se rotineiro abrir o Twitter, olhar minha
timeline, passar pelo perfil @lalunanatal e partir para ferramenta de pesquisa, utilizando os
termos “la luna” e/ou “laluna”. Os primeiros contatos me causaram confusão, pois, pelo nome
do bar ser bastante popular, as buscas me levavam para outros lugares que não tinham conexão
com minha investigação. Eram perfis e postagens que usavam esses termos como nomes de
usuário/a ou descrevendo alguma situação, por vezes em espanhol. Assim, precisei captar
aspectos que me ajudassem a separar as narrativas envolvendo meu campo de pesquisa dos

88
Eventos citados com informações detalhadas no capítulo anterior.
166

tantos outros usos para “la luna”, como as referências à famosa música da banda Rouge, “brilha
la luna”.
Nesse movimento, o filtro de localização, que limita os resultados para os tweets feitos
“perto de você”, foi um importante aliado na seleção dos conteúdos que surgiam na plataforma.
Entretanto, por não permitir a escolha da abrangência territorial, por vezes este filtro restringia
demais as buscas, precisando recorrer a outras estratégias para complementá-lo. Partindo das
primeiras publicações encontradas, entendi que as interações, as pessoas que seguiam e que
eram seguidores/as também poderiam me ajudar. Deste modo, ao esbarrar com tweets
utilizando os termos descritos acima, frequentemente dava uma breve olhada no perfil da pessoa
que tinha postado, buscando por referências em sua rede de contatos e interações que
confirmassem a ligação do post com o La Luna. Em casos que essa referência era explícita, eu
apenas tomava nota do conteúdo, curtidas, comentários e retweets.
Essa rota traçada para as buscas com termos/palavras-chave difere um pouco de outras
pesquisas feitas no Twitter. Como exemplo, temos a investigação de Raquel Souza da Silva
(2012) que aborda o uso da hashtag “#ForaMicarla”. A autora vai descrever como um conjunto
de pessoas, através dos seus perfis, se conhecem em rede e promovem um tipo de ativismo
social utilizando esta plataforma, ainda que ela não tenha sido desenvolvida para essa
finalidade.
Esta mobilização, que acontece através da hashtag “ForaMicarla”, se centralizava nas
críticas à gestão da então prefeita de Natal, Micarla De Souza (2009-2012). Nesta pesquisa, o
Twitter é pensado como um espaço de luta social, através do uso político da plataforma na
construção desse movimento que surge no digital, mas que é ressaltada a continuidade entre o
online e o off-line, seja pelo encontro das pessoas, por ações diretas como atos de rua e
acampamento na Câmara Municipal, ou ainda pelo relato das situações de precariedade da
gestão municipal observadas no dia a dia e levadas ao Twitter em forma de reivindicações.
As hashtags são construções coletivas e em rede online, sendo essas duas
características que fazem dessa categoria um “nó social” importante para
pensar a cultura contemporânea, especialmente para refletir sobre a
distintividade dessa, que se vem produzindo online em plataformas
tecnológicas como o Twitter. (SILVA, 2012, p.136)

Na pesquisa de Silva (2012), a hashtag foi percebida como um ponto de encontro entre
os twitteiros e demarcava um território onde ocorriam suas ações cotidianas de denúncias,
críticas e demandas. Apesar de compartilhar algumas proximidades entre nossos campos, na
presente pesquisa o uso da hashtag é ínfimo. Quando se trata do La Luna, raramente é utilizado
essa ferramenta para sinalizar algo no Twitter. Isto enfatiza como contextos e interesses de
167

pesquisa necessitam de avaliações para compreensão de quais abordagens precisam ser


utilizadas, apesar de acontecerem em uma mesma plataforma. Também sugerem as
transformações que vão ocorrendo nestes ambientes, seja de sua interface ou dos usos que são
feitos.
Ressalto como o contexto pesquisado pela autora e o que venho desenvolvendo na
presente investigação convergem ao tratar de construções, ou tentativas, de uma Natal no
digital, mas que ultrapassam suas limitações. Desta forma, as propostas de intervenções
realizadas pelos/as usuários/as no Twitter mantêm esse diálogo específico, onde os/as
sujeitos/as envolvidos/as trazem à tona disputas sobre o fazer cidade, um contínuo de ações
realizadas no digital e presencialmente.
Uma vez que as hashtags não apareceram em meu campo, fui entendendo que a busca
por palavras-chave era o caminho mais interessante a ser seguido. Boa parte dos tweets que
envolviam o bar nem mesmo mencionavam seu “@”, o que demandava um esforço maior para
conseguir acessá-los. Como falado acima, segui acompanhado as discussões por meio da
ferramenta de pesquisa do Twitter, bem como das interações e conexões estabelecidas com os
perfis e postagens que encontrava.
Neste ponto, a dinâmica da plataforma demandava alguma familiaridade com a sua
interface. O grande fluxo de informações que transcorre por diversos caminhos, aponta para a
necessidade de transitar entre publicações, perfis e outros ambientes, estabelecendo
perambulações (GOMES e LEITÃO, 2017) entre os links. Tornou-se rotineiro encontrar algum
post interessante e a partir dele ver as interações e outros direcionamentos que podiam ser
tomados por meio dos retweets, trago alguns exemplos:
168

Figura 11 - Interações sobre/com o La Luna

Fonte: Twitter

Como podemos observar, na imagem da esquerda está a publicação onde um rapaz


aciona sua rede buscando argumentos para levar outra pessoa ao La Luna. Alguns comentários
ressaltavam os pontos positivos do bar, como o público e as batatas; outros, ironicamente,
perguntavam porquê fazer isso. Entretanto, os retweets, na imagem à direita, feitos por seus
seguidores, prosseguem para o sentido oposto, argumentando de forma negativa sobre uma
possível ida ao bar. Aparecem também algumas referências a um caso de maior repercussão
que também envolve as motivações que levam o público a frequentar aquele espaço.

4.2.1 Perambulações, casos e plataformização

Durante minhas perambulações, me deparo com uma situação no twitter que causou
certa comoção e ganhou proporções que ultrapassaram as bolhas mais restritas dos grupos de
interação que são delimitados pelo uso da rede e também pelos algoritmos. No início de
dezembro de 2020, quando o La Luna tinha retomado as atividades há pouco mais de um mês,
um post aparentemente despretensioso passou a ecoar nos retweets e replies (comentários).
169

A postagem89 de um rapaz, aparentando por volta dos 20 anos, fazia uma comparação
entre o La Luna e o bar do Chico, que ficava localizado próximo ao Instituto Federal do Rio
Grande do Norte – IFRN, campus central, e o Midway Mall, colocando em tom jocoso que o
primeiro era “só uma cigarreira roxa no meio de uma praça”. Logo se formou um debate entre
pessoas que defendiam o bar, apontando sua importância na cidade e para o público LGBTQI+,
em oposição a outras que partilhavam opiniões parecidas com o rapaz. Estas últimas enumeram
pontos que consideravam negativos: estar localizado na Zona Sul, ser elitizado e pouco
acessível para pessoas de outras zonas da cidade, principalmente da Zona Norte.
O comentário gerou certa mobilização no Twitter e a expressão “cigarreira roxa” passou
a ser utilizada em tom sarcásticos pelo público ao mencionar suas idas ao bar. Algumas pessoas,
mais engajadas na relação com o lugar, comentavam e respondiam as postagens que foram
surgindo durante alguns dias depois do ocorrido. Trago alguns comentários90:
Aqui em Natal temos poucos bares voltados para o nosso público,
pouquíssimos levantam a bandeira na teoria e prática assumidamente e menos
ainda tem preços acessíveis.

Eu jamais vou esquecer da época das eleições 2018 e nem de todos os


momentos icônicos que tive lá...nunca foi sobre estrutura pq ali vai muito além
de ser só um espaço, eh resistência pura, eh acolhimento.

bicha eu não acredito que o finado bar do chico é so uma cigarreira no meio
de uma avenida pintada de amarelo, eu jurava que era pelo menos um barzinho
tal qual o la luna.

o la luna talvez não ofereça o conforto que as pessoas imaginam, mas não
consigo citar um estabelecimento mais democrático em Natal que esse.
quisera a gente ter um lugar desse pra frequentar quando era mais novo.
(TWITTER, Dezembro de 2020)

Por outro lado, existiam comentários que articulavam uma outra visão sobre o bar e/ou
ressaltavam que a discussão tinha tomado proporções exageradas. Entretanto, nem todos os
comentários adotavam lados específicos, visto que boa parte apontava como o rapaz não estava
mentindo sobre a estrutura do bar, mas que era necessário levar em conta o valor simbólico que
ele representa. Coloco alguns comentários que retratam um pouco dessa outra narrativa:
ei mas o boy teve que se RETRATAR com um texto SÉRIO por chamar o la
luna de uma cigarreira numa praça.

O caba precisar se justificar por criticar o La luna é a prova de que estamos no


fim dos tempos kkk.

89
O usuário acabou privando sua conta apenas para seguidores o que limitou meu acesso direto as suas postagens.
90
Pela dinâmica da plataforma e seu alto fluxo de informações acabei não conseguindo guardar imagens de todos
os comentários. Os textos trazidos foram preservados em meus diários de campo.
170

corre que os fãs do la luna tão puto. (TWITTER, Dezembro de 2020)

Esse episódio de conflito ilustra como as percepções sobre o bar não são estáticas e
homogêneas. Também traz à tona reflexões sobre alcance e audiência no digital 91, onde as
noções de espacialidade e temporalidade são menos limitadas e podem tomar proporções que
fogem do controle individual.
A partir do exame dessa controvérsia, me parece que não apenas as percepções sobre os
espaços na cidade estão sendo debatidas. Em torno dos distintos posicionamentos, entra em
jogo o processo de construção de si nessas plataformas, de modo que expressar sua opinião
através de tweets, comentários, curtidas e retweets sinaliza uma gama de perspectivas,
ideologias e práticas com as quais o sujeito pode se identificar (ou querer ser identificado).
Esses modos de identificação no digital, como postos por Ramos (2015), podem estar em
consonância ou não com esses sujeitos no “off-line”, o que apontaria uma convergência
identitária. Podemos imaginar, por exemplo, que parte do público que ingressou no debate
citado acima adotando uma postura de defender a importância do La Luna costuma materializar
esses comentários através de suas práticas de consumo, frequentando o espaço.
Entendo que nem sempre as posturas desenvolvidas no digital convergem com as
práticas presenciais e que apoiar um lado durante um debate não exclui a possibilidade de
mudanças. Nessa situação específica, e ao longo do campo, facilmente notava pessoas que
apesar das críticas permaneciam frequentando o bar, flutuando entre elencar pontos negativos
atribuídos ao local em alguns tweets e manter certa presença, usando o Twitter para saber se
alguém de sua rede estava ou pretendia ir ao La Luna.

91
Um fato interessante é que durante esse debate minha pesquisa (SANTOS, 2019) foi citada por algumas pessoas,
o que ocasionou um grande número de acessos a ela no repositório de monografias da UFRN. Usando a linguagem
desse público no Twitter, podemos dizer que “hitei”.
171

Figura 12 - Comentários irônicos sobre o La Luna

Fonte: Twitter

Não só essas posturas críticas e, de certa forma, contraditórias surgiam na plataforma.


Parte do público construía uma forma de se comunicar ironizando acontecimentos ou pontos
postos como negativos, estabelecendo um jogo onde os comentários reais, bem como as suas
intenções, se confundiam com piadas e expressões irônicas. Retomando o evento acima,
podemos perceber como o tweet colocando o La Luna como “só uma cigarreira roxa” repercutiu
e virou parte do acervo utilizado por seu público.
172

Figura 13 – Comentários irônicos sobre o La Luna 2

Fonte: Twitter

Assim, o público demonstra seu engajamento na defesa do bar ao transformar, por meio
da ironia, algumas das narrativas negativas em formas de expressar seu apoio. Características
como a estrutura física do espaço são ressignificadas e ser “só uma cigarreira roxa no meio de
uma praça”, não ter mesas e cadeiras suficientes ou fazer com que seja necessário sentar nos
bancos de concreto, apontadas como algo ruim, surgem nos comentários como motivadores
para ir ao bar, por vezes alegando gostar de certa “insalubridade”. Na figura 13, o uso de
emoticon92 de uma carinha gritando corrobora com o tom de ironia da mensagem.

92
Figuras e carinhas que expressam algum sentimento ou representam algo, usadas com frequência em conversas
online e postagens.
173

A ironia também aparece nas postagens para justificar idas ao bar por parte das pessoas
que costumam estar criticando ou alegam não gostarem de frequentar o espaço. Assim, na figura
12 é criado uma conversa fictícia onde um amigo convida outro para ir ao La Luna, esse
segundo responde dizendo odiar o bar e questiona o motivo de estar lá. O diálogo ilustra como
ironia e contradição fazem parte das noites nas quais essas pessoas acabam frequentando o
local, apesar das críticas e indagações.
O próprio bar passou a reivindicar em algumas postagens o nome de “cigarreira roxa”,
por vezes ironizando o ocorrido e agradecendo seu tempo de funcionamento e a presença do
público. Estar inteirado das situações envolvendo o campo facilitaram minha compreensão e a
distinção entre comentários que teciam críticas ou apoiavam o estabelecimento. Entendo que
minhas aproximações com o público e características compartilhadas favoreceram este
processo, por estar nesta posição de pesquisador/usuário e contar com um repertório que
facilitou a comunicação com os/as interlocutores/as.
Destaco ainda como através do Twitter consigo acessar narrativas que não são positivas
sobre o estabelecimento, como nas imagens acima, inclusive de pessoas que alegam nunca
terem ido ao bar. Este fato não ocorreu em nenhuma das interações com o público na praça,
onde, majoritariamente, as descrições são positivadas. Isto reforça as possibilidades de
complexificar a investigação, colocando em cena conflitos que envolvem o La Luna mesmo
que indiretamente.
No fim de julho de 2021, enquanto olhava minha timeline, vi algumas menções de um
“exposed”93, onde um homem era acusado de assediar duas mulheres. O que me chamou
atenção foram as menções ao La Luna, me fazendo pesquisar mais sobre o ocorrido. Acionei
minha rede mais próxima para saber se alguém tinha conhecimento da situação, mas ninguém
sabia sobre o caso. Então, por meio das interações de algumas postagens consegui chegar a um
amigo em comum que me relatou melhor o fato. Ele me explicava que os abusos não
aconteceram no bar, mas que o homem o frequentava com certa constância. Trago algumas
reações que encontrei na plataforma:
eu tenho pra mim que esse povo que leva expose faz reunião no la luna toda
sexta pra tramar o próximo crime.

esse negócio do la luna me deu uma bad da porra a gente vai pra espaços mais
lgbt/de-esquerda na esperança de ficar mais protegido de homem babaca daí
vai e tem homem babaca do mesmo jeito sinto muito por vocês que foram
assediadas, de verdade :(.

93
É um termo frequentemente usado nas redes sociais quando alguém denuncia outra pessoa por alguma ação.
Geralmente está ligado a violências, abusos e discriminações.
174

só faltou o exposed dos outros assediadores q vivem no laluna tbm.


(TWITTER, Julho de 2021)

O tom das postagens tece críticas a presença de homens com essas condutas naquele
espaço. Fica nítido nos relatos a decepção e a revolta. Apesar do assédio não ter ocorrido
naquele lugar, são feitas conexões entre o local e este frequentador apontando como sua conduta
é contraditória, tendo em vista o perfil que se espera no La Luna, que em seus posicionamentos
reforça o combate a opressões e violências como a exposta. Este triste evento serve para pensar
também sobre as projeções que o estabelecimento tem localmente, que neste caso ultrapassa
limites físicos, adentrando o digital.
Eliane Tânia Freitas (2017), coloca que nas redes hiperconectadas sempre existe a
possibilidade da sua audiência ultrapassar suas previsões, expectativas e compreensão. Assim,
ao pensar o linchamento virtual, ela traz que existe uma desproporção entre o erro e a punição
imposta expressa, principalmente, pela grande quantidade de pessoas reagindo negativamente
– julgando e punindo – a um fato. Para a autora, o linchamento virtual tem como objeto uma
ação ou comportamento que está em desacordo moral, sendo apresentada as denúncias que são
passíveis de correção. Uso essas contribuições para refletir sobre o caso acima, atentando que,
apesar de numericamente não ser tão expressivo, ele conseguiu ecoar nas redes conectadas ao
bar.
No caso do exposed, o que parece acontecer é uma consequência do linchamento virtual,
como se as críticas principais direcionadas ao agressor respingassem também no bar, fazendo
com que parte daquele debate levantado afetasse o estabelecimento. Por exemplo, ao alegar que
o La Luna é um espaço de reunião dos indivíduos expostos, a moça direciona para o lugar uma
narrativa que contradiz aquilo que ele vem afirmando – ser um espaço seguro. Assim, é posto
em cheque o prestígio e o capital social que o estabelecimento vem construindo com seu
público. Neste caminho, parece estar sendo cobrado não só do rapaz apontado como abusador,
mas do próprio espaço alguma ação que repare ou desvincule sua imagem à destes sujeitos, de
forma que isso poderia causar prejuízos a sua reputação.
Freitas (2017) aponta como a ampliação da audiência, proporcionada pelo digital, faz
com que os acontecimentos estejam potencialmente expostos as leituras descontextualizadas,
ou vistas por outras perspectivas, recebendo diferentes valorações. Fazendo um paralelo com o
campo, citar o bar de forma descontextualizada, como no caso acima, pode gerar uma má
impressão do lugar ou uma falsa imagem sobre acolher esses abusadores. A administração do
bar parece reconhecer essa possibilidade e postou em seu perfil no Twitter: “vocês sabem que
175

algumas piadinhas/brincadeiras podem acabar queimando o estabelecimento e depois tchau,


né? #consciência (TWITTER, março de 2020).
Podemos perceber como a ideia de identidade política e consumo abordadas
anteriormente ganham ênfase em situações como esta, que parecem tensionar o que tem sido
construído de maneira concreta e simbolicamente através das ações do bar. Em contrapartida,
quando algum evento semelhante ganha proporções nas redes ou passam a marcar o bar para
que a administração tome conhecimento e se posicione, costumeiramente, o estabelecimento
reforça sua atuação de não tolerar nenhum tipo de “violência ou discriminação” 94, como no
tweet abaixo:

Figura 14 - Posicionamento do La Luna sobre discriminação

Fonte: Página do La Luna no Twitter

Nesta dinâmica, o bar busca consolidar suas propostas de atuação reforçando ideais que
fundamentam sua identidade política em constante construção. O público também passa a gerar
uma série de demandas e críticas que por vezes colocam em cheque estes posicionamentos95.
Também surgem avaliações de outros elementos que compõem aquele cenário, como a
estrutura, a localização, os preços praticados e até o próprio perfil do público. Como ficou nítido

94
Em outro caso, onde uma moça alega ter sido agredida por um “gay”, o bar também se colocou à disposição
para intervir, afirmando “não passar pano” para esse tipo de atitude. Consultar em:
https://twitter.com/dprnanna/status/1136369763511390208
95
Atitudes e/ou ações que de alguma forma contradigam essa imagem construída podem dar margem para o
estabelecimento ser “exposto” ou mesmo “cancelado”, o que pode resultar em boicote. Essa dinâmica de cobranças
parece típico das redes sociais, com destaque em setores progressistas.
176

no caso da “cigarreira roxa”, fatores socioeconômicos que caracterizam a classe média ali
presente são apontados como excludentes por alguns, enquanto são postos como acessíveis por
outros em comparação com demais estabelecimentos voltados as pessoas LGBTQI+ na cidade.
A gestão do bar parece estar atenta as diversas considerações feitas na plataforma e
presencialmente. Em conversa, Vanessa me explicava como tentava sempre buscar no Twitter
o que estava sendo comentado sobre o bar e que era receptiva as críticas, mas demarcava como
algumas vezes as opiniões não eram construtivas e para essas não dava atenção.
Olhe, a gente está trabalhando com o possível, eu sei que tem muita coisa para
melhorar, mas o pessoal não entende que não é tão fácil assim. Aí eu entro no
Twitter e vejo o povo descendo o pau no bar, esses eu nem ligo. Agora se
chegar pra gente, dando um “feedback” eu tento melhorar com essas críticas,
mas não posso fazer tudo também. Aqui é uma praça pública, não posso sair
mexendo na estrutura, sem falar que tem também a vizinhança. (Vanessa,
fevereiro de 2022)

Como mencionado, o bar costuma dar algum retorno as publicações nas redes,
principalmente no Twitter. Em sua maioria, é utilizado uma linguagem séria, mas com alguns
elementos que revelam proximidade com o próprio público, como a expressão “não passar
pano” que aparece com frequência para informar que não será conivente com alguma atitude
que está em desacordo com os ideais daquele espaço. Entretanto, o próprio perfil adota tom
jocoso para lidar com parte desses comentários que Vanessa classifica como pouco relevantes,
ou que não são construtivos. Ainda sobre o caso da “cigarreira roxa”, por exemplo, a única
postagem96 do La Luna foi um famoso GIF de Ciro Gomes gesticulando com as mãos e um
emoji com os olhos revirando como comentário.
Duas dimensões são postas e estão em constante interação. A primeira é formulada pelas
plataformas, aqui pensando o Twitter e o Instagram, que são programadas e constantemente
passam por atualizações com um direcionamento concreto, delimitando formas de uso a partir
dos termos de serviço, política de privacidade e outros mecanismos próprios de cada uma. A
segunda dimensão é do usuário, que concorda com os termos de serviço, mas consegue
estabelecer finalidades diversas que nem sempre convergem com aquelas que foram
programadas. Assim, ferramentas e mecanismos são ampliados em várias direções, dando
outros contornos as plataformas.
Ítalo Vinicius Gonçalves (2020) refletindo sobre as práticas etnográficas em contextos
online/digitais, aborda noções sobre plataforma e plataformização e como essas podem

96
O tweet teve um bom engajamento, quando comparado com outros do perfil. Vários comentários com risadas,
apontando o deboche e enaltecendo a atitude faziam coro com a publicação, bem como pelos retweets que ela
ganhou. Consultar em: https://twitter.com/lalunanatal/status/1338461701541425156
177

contribuir no avanço da antropologia, amplificando noções como o “campo etnográfico”. Ao


apresentar uma certa “resistência antropológica” às primeiras pesquisas envolvendo contextos
digitais, o autor demonstra como esse campo vai ganhando espaço e respaldo à medida que os
avanços tecnológicos tornam assuntos como redes sociais, plataformas e algoritmos cada vez
mais presentes em nosso cotidiano.
Seguindo este raciocínio, o autor aponta para importância de encararmos as plataformas
buscando compreender a centralidade que estas desempenham nos diversos contextos sociais
que se inserem, fugindo de uma perspectiva simplista onde são vistas apenas enquanto
meio/espaço:
Assim, ao olharmos para as plataformas digitais, não apenas percebemos tais
ambiências enquanto espaços de comunicação e/ou de sociabilidades, mas
também como infraestruturas que configuram e modulam modos de vida,
organizações sociais e percepções do real de maneira intercambiável.
(GONÇALVES, 2020, p. 4)

Logo, é possível entender como estes ambientes influenciam nossas experiências e


atuações, coletando e controlando fluxos de dados conforme os objetivos e propostas de cada
uma dessas infraestruturas. Temos ainda a noção de plataformização, entendida como: “o modo
de atuação e inserção das plataformas em diferentes níveis, esferas e camadas da vida social. ”
(GONÇALVES, 2020, p. 6). Esse processo evidencia a agência das plataformas, indicando
negociações feitas entre os diversos atores e tecnicidades envolvidas, perpassando as conexões,
usos, performances e funcionalidades imbuídas por múltiplas significações e perspectivas,
colocadas enquanto experiências plataformizadas.
Não podemos esquecer que as plataformas estabelecem conexões entre si, o fluxo de
dados e informações entre esses ambientes é constante e pode nos auxiliar a refletir sobre os
deslocamentos que fazemos ou de nossos/as interlocutores/as, analisando as formas como essas
interligações são construídas e quais motivações e sentidos elas possuem. Podemos pensar nos
mecanismos que algumas plataformas criam para incentivar a permanência de seus/suas
usuários/as, como as diversas sugestões ou feeds quase infinitos, mas como são traçadas outras
possibilidades de trânsitos. Por exemplo, o perfil do La Luna no Twitter tem um link que
direciona o/a usuário/a para seu perfil no Instagram, além das diversas postagens que
estabelecem essa vinculação entre as plataformas através desse sujeito que está presente em
ambas.
Entre conexões, diferentes finalidades e funcionalidades, as comunicações estabelecidas
entre diferentes plataformas nos mostram como cada vez mais as experiências plataformizadas
vão se tornando “comuns”. Desde conversar com amigos, estabelecer novas relações, se
178

alimentar, se localizar ou se deslocar pelas cidades, até outras tantas possibilidades vão
atravessando e modificando formas de estar no mundo e de relações sociais. Dito isto, busquei
ao longo deste trabalho destacar como o digital esteve presente nesta pesquisa, não apenas como
ferramentas, mas sendo parte substancial nas análises, concentradas nas descrições das
plataformas e presente desde os trajetos de bike.
O Twitter e o Instagram estabelecem dinâmicas que estimulam temporalidades que nem
sempre são convergentes. No primeiro, o grande fluxo de informação através dos breves tweets
exige um acompanhamento constante para se manter inteirado dos acontecimentos. Já o
segundo, com suas fotos e vídeos publicados, em sua maioria, de forma bem menos frequente,
mostra outra nuance dessa “vitrine virtual”, que demanda maior atenção para ser vista e
apreciada. Entretanto, algumas ferramentas transformam essas temporalidades com maior
fluidez, por exemplo, os stories que requerem uma visualização dentro de um período. Já no
Twitter, podemos pensar na função de fixar, que destaca alguma informação que poderia ser
perdida dentro de tantos fluxos.
Essas temporalidades influenciam no acesso, mas também no entendimento de algumas
informações. Assim, chegar até uma postagem que pode parecer solta, frequentemente,
necessita ser situada dentro de algum contexto. Por exemplo, quando o La Luna tweetou sobre
como o público deveria se portar em casos de agressão ou de assédio, existiu um cenário que
instigou o bar a postar sobre. Essas conexões só são possíveis por meio de uma observação
prolongada e que se mantém inteirada dos acontecimentos que se tangenciam.
Entretanto, acredito ser necessário expor algumas “fragilidades” que marcaram essa
investigação nas plataformas. Começando pelas ferramentas e interfaces, além de um
conhecimento que viabilizasse meus trânsitos por esses ambientes, existiram limitações que
precisei lidar durante as observações. A forma como os conteúdos são distribuídos nestes
espaços está constantemente sendo influenciado por seus algoritmos e gestões de dados, como
já discutido. Longe de tentativas de abranger um “todo” que é impossível, busquei acessar o
máximo de informações, perfis e conexões estabelecidas com meu objeto de estudo. Entretanto,
as próprias ferramentas de pesquisas de ambas plataformas limitavam os resultados, mesmo
que utilizasse os mesmos caminhos.
Assim, principalmente no Twitter, não estar online fazendo um acompanhamento
constante acabava restringindo alguns materiais. Movimentos dos usuários como apagar as
postagens ou tornar o perfil privado, limitaram meus acessos e me levaram construir outros
caminhos. No caso do “exposed” que tratei anteriormente, não consegui acessar diretamente a
publicação, pois, a moça tornou a sua conta no Twitter privada e só seus seguidores poderiam
179

ver. Para contornar estas situações, tentava chegar por meios indiretos, catando informações
com terceiros, tentando manter os dados encontrados em meus diários de campo ou até fazendo
print das telas, para garantir poder revisitá-los caso fosse necessário. Estas foram algumas
dificuldades e estratégias que perpassaram meu campo.
Isto posto, o Twitter se mostrou um campo complexo e frutífero para acessar e
aprofundar algumas relações estabelecidas com e a partir do La Luna. Neste ambiente, as
possibilidades de debate e de interações são ampliadas por suas ferramentas e dinâmicas, que
estabelecem fluxo e movimentos de informações que instigam os/as usuários/as a comentar
sobre, curtir e retweetar. Estas ações vão posicionando e reforçando convergências e
divergências entre as diferentes pessoas que frequentam o bar e a praça. Bem mais que postar
fotos ou vídeos, nesta plataforma parece ser mais interessante se engajar em falar sobre, desde
os convites em abertos até as considerações sobre os acontecimentos, expandindo estas
observações sobre o La Luna para seu público e até mesmo para o bairro e zona da cidade onde
ele está localizado.
Neste capítulo busquei traçar reflexões que consigam abarcar essa dupla perspectiva,
presencial e digital, que o próprio campo apresenta. Longe de separações, as observações e
acompanhamentos feitos na praça e nas plataformas apontam para a continuidade entre online
e off-line. Entendo que, assim como os espaços físicos agem sobre nossos corpos e influenciam
em nossas ações, estes ambientes no digital conseguem direcionar nossos usos. Entretanto, em
ambos os contextos esses corpos não se mostram completamente passivos. Se presencialmente
estamos constantemente desafiando dinâmicas urbanas, remodelando-as, nestas plataformas
os/as usuários/as passam a construir sentidos e apropriações que nem sempre caminham lado a
lado com as propostas estabelecidas, por vezes confrontando políticas de uso e até mesmo seus
algoritmos.
Em certa medida, esbarrei com estes usos buscando compreender os engajamentos do
público do La Luna, suas especificidades e como as pessoas faziam uso dessas plataformas e
quais sentidos eram atribuídos a elas. Assim, no Instagram a visibilidade foi um ponto que
esteve presente desde o perfil do bar, passando por suas publicações e as suas interações.
Mostrar que frequenta aquele lugar, através das fotos e vídeos, apoiar e ajudá-lo pode refletir
nos seus processos de consumo, ressaltando características e ideias compartilhadas pelo
estabelecimento e sua clientela. Esta “vitrine virtual” aparenta ser um espaço ideal para deixar
uma gama de qualificadores a mostra, fortalecendo vínculos por meio de suas memórias,
curtidas e stories.
180

Já o Twitter me lembrou, em certa medida, o cenário que encontrava na praça com


grupos de pessoas interagindo entre si e por vezes com os demais grupos no local. O fluxo de
informações e as possibilidades de perambular pelos tweets, acompanhando as formas de fazer
coro ou de rechaçar algum posicionamento ou comentário, me ajudaram a traçar caminhos
durante esta pesquisa. Assim, fui estabelecendo minha presença nestes ambientes, assimilando
que assim como no campo na praça, no digital também foi necessário o desenvolvimento de
habilidades para lidar com possíveis interlocutores e com as diversas ferramentas e interfaces.
181

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

É chegado o momento de encerrar nossas noites no La Luna. Nestas considerações


finais, retomo, de forma breve, alguns pontos desenvolvidos nesta pesquisa. Partindo das seções
introdutórias, apresento os caminhos que me levaram até a Praça da Guerreira, ao
desenvolvimento dessa etnografia e como o advento da Pandemia da COVID-19 fez emergir
novos desafios para realização desta investigação, sendo necessário (re)elaborar metodologias.
Assim, pensar o corpo do pesquisador em campo adquire outros contornos, tendo em vista os
riscos de contágio/transmissão do coronavírus. Surgem os questionamentos sobre como agir
em um espaço de sociabilidade e lazer, como estabelecer contato, como desenvolver as trocas,
as comunicações e como tecer observações e construir dados etnográficos.
Esses questionamentos levaram-me a discussões sobre a centralidade dos nossos corpos
enquanto antropólogos/as em campo, rompendo com perspectivas que tentam invisibilizá-los.
A dimensão corporal amplia as formas de fazer observação, trazendo outros sentidos, para além
da visão, enquanto formas de sentir o campo. Aqui o “ouvir” e as sonoridades ganham destaque.
Apresento os caminhos éticos e metodológicos, que nortearam esse trabalho, traçando rotas de
como executei a pesquisa sendo atravessado pela pandemia.
Ao fazer um balanço geral sobre os impactos dos decretos, das medidas e protocolos de
segurança, que eram produzidos em resposta aos diferentes períodos, desde os mais brandos até
os mais críticos, traço um diálogo sobre ética em pesquisa trazendo à cena que a noção de “risco
zero” é enganosa, onde boa parte da produção antropológica implica em algum “risco”. Ainda
sobre as respostas/ações do Estado, exploro como estas medidas afetam a dinâmica urbana
partindo de restrições, flexibilizações, abre e fecha dos comércios e serviços baseados nos status
de “serviços essenciais”.
É nas diferenciações de como as pandemias, no plural, são produzidas que reforço o
potencial da etnografia na produção de uma pesquisa que consiga ilustrar as múltiplas formas
de fazer cidade, pensando que não apenas “grandes” atores sociais e macroestruturas como o
Estado ou o mercado afetam a dinâmica urbana, mas também os diversos sujeitos que estiveram
construindo a cidade frente ao coronavírus.
Nesse caminho, penso o espaço urbano através do prisma que reconhece as
multiplicidades de suas formas, por sua mutabilidade e as disputas que nele acontecem. Aposto
na observação corporificada, que reconhece essa dimensão nos processos de pesquisa e ressalta
o diálogo estabelecido entre corpo e cidade, carne e pedra, trazendo à tona como os sujeitos,
suas práticas e relações interferem ativamente no urbano.
182

Assim, vão surgindo diversas experiências que ilustram os diferentes sentidos que
constituem os lugares, sendo necessário abordagens pensadas a partir de um olhar próximo, que
busquem no cotidiano exemplos capazes de questionar perspectivas totalizantes sobre a cidade,
que enxergam somente as forças das macroestruturas sociais e esquecem as potencialidades das
micro relações, dos indivíduos e suas ações.
É nesse sentido que entendo a experiência do La Luna como uma instigante maneira de
compreender os usos e apropriações de espaços públicos por LGBTQI+, pensando nos
desdobramentos apresentados nesta pesquisa, que exploram um outro desenho, uma outra chave
de entendimento a cidade de Natal e seus contornos, partindo dos sentidos criados em diálogo
pelo bar e seu público.
Desde o primeiro contato com o bar, os fluxos e movimentações na Praça da Guerreira
mostraram-se elementos relevantes nas dinâmicas do local. Assim, a quantidade, o perfil do
público, os grupos, as conexões e relações ali estabelecidas influenciavam diretamente nas
percepções sobre as noites, constituindo a vibe do estabelecimento. Esse cenário era sentido em
diversas dimensões, desde as observações visuais, o contato do tato, até os aspectos sonoros.
Ao longo dos anos de funcionamento, o bar e seu público vão consolidando imaginários que
passam a caracterizar essa experiência.
Quando retorno ao La Luna me deparo com as continuidades, mas também com as
mudanças decorrentes da conjuntura pandêmica. Aqui, surge, de maneira mais demarcada, a
percepção de que as dinâmicas urbanas estão intimamente entrelaçadas com aquilo que
acontece em meu campo, fazendo com que adote uma perspectiva ampliada, que não se limitou
ao espaço da praça. É nesse movimento que exploro o pedalar enquanto ferramenta de
observação e busco traçar conexões entre o La Luna e outros equipamentos de lazer e
sociabilidade, atentando para como as ações do Estado, Mercado e outros atores e sujeitos, que
permaneceram nas ruas, vão construindo múltiplas dinâmicas urbanas. É pela presença e/ou
ausência desses elementos, como as ambulâncias, viaturas, trabalhadores/as, que obtenho pistas
do contexto e consigo refletir sobre as implicações de se fazer pesquisa presencial durante uma
pandemia.
A volta das atividades é marcada pelas medidas e protocolos de segurança que
modificam diretamente as formas de estar no bar. Não só a presença de itens como as máscaras
e o álcool evidenciam o período, mas o sistema de serviço, as interações, a distribuição das
pessoas pelo espaço, a quantidade permitida nas mesas, a delimitação de uma área de
atendimento, entre outros, transformam os fluxos e o cenário como um todo. Essas novas
formas de estar no La Luna vão sendo modificadas ao longo das atividades e acompanham
183

mudanças da conjuntura nacional, seguindo medidas para momentos mais críticos ou mais
flexíveis. A presença do coronavírus impacta diretamente as dinâmicas em campo, mas é
preservada a mutabilidade enquanto característica.
O público do La Luna é composto majoritariamente por pessoas LGBTQI+, jovens,
brancos, universitários e com práticas de consumo que estão vinculadas às classes médias da
cidade. Entretanto, foi possível notar outros grupos que frequentavam o bar e a praça,
diversificando os grupos encontrados no local. Assim, destacavam-se as pessoas
heterossexuais, que passaram a compor esse público, bem como o aumento de pessoas negras
e algumas vezes indivíduos com idade mais avançada.
Traçar o perfil dos/das frequentadores/as culmina em observar a presença de diversos
grupos que se distinguem dentro daquele grande conjunto na praça. Aqui são estabelecidas
fronteiras físicas e simbólicas que caracterizam esses/as sujeitos/as através de elementos em
comum, como a música, vestimentas, corporalidades, ou mesmo itens como bicicletas e
cigarros. Longe de estarem isolados, esses grupos vão se formando e remodelando ao longo das
noites, interagindo entre eles por dividirem o mesmo espaço.
De forma geral, é esperado que exista uma sintonia entre o bar, seus ideais, suas práticas
e o público, constituindo uma identidade política. Além disso, existe um universo
compartilhado que envolve símbolos e signos em comum. São perspectivas de mundo, estilos
de vida, práticas de consumo que aglutinam esses sujeitos e compõem aquela experiência ou o
que se espera ao ir naquele lugar. Nesse sentido, surge uma série de motivadores que incentivam
o público a frequentar o bar. São características como: o fato de ser um espaço aberto, a sua
localização, a música que é tocada, a “vibe”, as pessoas e as possibilidades do que pode ocorrer
que qualificam e destacam positivamente esse lugar.
A pandemia também surge nesse debate. Por um lado, é apontado como as medidas de
segurança e a configuração espacial transmitem certa sensação de resguardo para quem estava
rompendo a quarentena e o isolamento social. Por outro lado, são elencadas justificativas para
aquela situação, trazendo, por exemplo, a necessidade de trabalhar como uma quebra da
quarentena que legitima a ida ao bar em busca de lazer. Nesse cenário, está sendo posta uma
série de negociações entre as medidas defendidas pelos órgãos de saúde e o Estado, em uma
esfera coletiva, e ações individuais que são traçadas pelas diferentes gestões de risco. Assim,
as mesas representavam como os sujeitos e os grupos estavam lidando com os riscos de
contaminação/transmissão do coronavírus, individual e coletivamente, e como isso poderia
afetar os grupos e suas configurações. Ir ao bar envolvia formas de lidar com o contexto que
184

não convergiam e nem rompiam completamente com modelos de gestão de risco pensados pelo
Estado e os órgãos de saúde.
Ao pensar as mesas, entendo que a dinâmica do La Luna se constrói de forma que estar
em grupo é o esperado para aquele espaço. Assim, estar sozinho na praça pode causar
estranhamentos, o que reforça o caráter coletivo do lugar. Como já foi falado, diferentes grupos
vão se formando e compondo o grande conjunto do público do La Luna. Apesar das
diferenciações, é na relação com o entorno que uma identidade comum dos/das
frequentadores/as vai sendo forjada, fazendo aquele lugar se distinguir dos outros, por exemplo,
a igreja e a praça que são suas vizinhas.
Refletindo sobre essas fronteiras físicas e simbólicas, que vão sendo estabelecidas a
dimensão sonora, que ganha destaque no campo. Delinear a paisagem sonora daquele espaço,
perpassa a coexistência dos diversos estímulos auditivos que nem sempre o habitam de forma
harmoniosa. São ruídos urbanos, músicas, conversas, barulhos do vento e das árvores, silêncios,
entre outras sonoridades que constituem essa paisagem. Essa dimensão influencia diretamente
na “vibe” da noite e nos fluxos da praça, servindo também para diferenciar, por exemplo, os
grupos com suas caixinhas de som e playlist próprias, e o bar, afirmando, junto com outros
elementos, seu direcionamento para o público LGBTQI+ e combate a discriminações.
Chegando ao debate sobre consumo e sociabilidade, dois pontos são centrais para
compreender a experiência do La Luna. O primeiro é a respeito do mercado segmentado, acesso
a lazer e sociabilidade. Exploro como alguns setores têm se direcionado para nichos específicos
da população, no caso desta pesquisa para LGBTQI+, e através dos processos de consumo e a
ação de outros atores, como ocupações de espaços, passam a garantir algum acesso ao lazer e a
sociabilidade, possibilitando novas formas de vivenciar as cidades e seus equipamentos. No
caso da cidade de Natal, temos o exemplo de estabelecimentos privados e de locais públicos,
que são apropriados por esse público, e passam a ser reivindicados enquanto lugares onde o
grupo pode experimentar suas sexualidades e identidades de gênero dissidentes com menor
risco de sofrer represálias e discriminação.
Já o segundo ponto é sobre a construção de uma identidade política do bar que é
compartilhada, com certas nuances, com seu público. É pensada uma mensagem que passa a
ser comunicada pelas ações do bar em diversas dimensões, desde elementos espalhados pela
praça, eventos, parcerias, postagens nas redes sociais, adesão a campanhas, até posicionamentos
mais demarcados sobre determinados assuntos. Assim, o La Luna comunica seu caráter
progressista, valorizando a diversidade e colocando-se contra os diferentes tipos de opressões
185

presentes na sociedade, se destacando: a luta pela diversidade sexual e de gênero, pelos


feminismos, no combate ao racismo e pela legalização das drogas.
Esse discurso é valorizado e compartilhado com parte do seu público, construindo uma
identidade política para o bar e conformando certo consumo engajado, que está ligado aos
comportamentos, modos de pensar e práticas sociais desses sujeitos. Nesse ponto, processos de
consumo e ativismo encontram-se e viabilizam certo valor simbólico, materializando novas
formas de “fazer política”, como demonstrado nos casos em que o público saiu em defesa do
La Luna, ressaltando sua importância na cidade. O engajamento e a atuação política do
estabelecimento e seus frequentadores também ficam nítidos nos eventos e associações com
diferentes atores, como candidaturas progressistas, ativistas e a própria universidade.
Por fim, apresento minha imersão no digital buscando acessar outras narrativas
com/sobre o bar de maneira que pudesse complexificar aquilo que era observado
presencialmente. Partindo das contribuições que a antropologia no/do digital tem realizado,
traço problematizações e estratégias que auxiliaram na imersão nas diferentes plataformas.
Assim, parto dos perfis do La Luna no Instagram e no Twitter, desenhando a presença do
estabelecimento nesses ambientes, trazendo suas ações, conexões, interações com o público e
outras formas que o bar consegue expandir sua experiência.
No Instagram, se destaca o caráter de “vitrine virtual”, já típico da plataforma. Nele
consegui observar como o estabelecimento projetava sua identidade política através do seu feed,
ressaltando ser um “ bar LGBTQI+” e demais posicionamentos adotados que buscam se
concretizar na experiência do La Luna. Outro movimento interessante foram as campanhas
financeiras realizadas e como a adesão por parte do público fortalecia a narrativa de “ajuda” e,
consequentemente, as relações entre consumo, política e ativismo.
Já no Twitter, foi possível acessar outros discursos sobre o bar em que críticas,
avaliações, ironias e declarações misturavam-se e atravessavam o imaginário acerca daquele
lugar. Nessa plataforma, o debate e engajamento do público, para defender ou criticar, ganha
outras proporções, sendo possível construir imagens sobre o bar e seus frequentadores. Pude
perceber como uma ideia de ativismo, de atuação política, foi se estabelecendo, partindo da
ajuda e proteção do bar, bem como abordando eventuais contradições presentes naquele lugar.
Encerro com o debate sobre plataformização e a presença, cada vez mais intensa, do digital em
nossas vidas, pensando algumas conexões entre as diferentes plataformas. O que fica evidente
é uma sensação de continuidade entre aquilo observado presencialmente e no digital, ambos
compondo o que entendo ser a experiência do La Luna.
186

Não poderia finalizar esse texto sem mencionar a dedicação e persistência que o bar,
seu público, apoiadores e tantos os sujeitos que circulam pelo espaço da praça têm realizado
cotidianamente para manter aquele espaço vivo. São diversos desafios que atravessam nossos
corpos nas múltiplas tentativas de fazer e refazer da cidade um local que seja possível não só
nossa sobrevivência, mas uma vivência plena e digna. Ao longo do texto busquei tramar como
atuação política, luta por direitos, acesso a trabalho e realizar pesquisa se encontram com o
lazer e a sociabilidade.
Por fim, ressalto os desafios de fazer pesquisa e precisar lidar com uma pandemia, fora
tantos outros atravessamentos que nos acompanham. Concluo esse texto como as diversas idas
ao campo, depois das várias interações e inquietações, que não se finalizam na praça, mas nos
acompanham nos próximos caminhos, encerrando as noites no La Luna.
187

REFERÊNCIAS

ALVES, Tiago Fernandes. Os sons da cidade: uma investigação sobre os campos e paisagens
sonoras em espaços urbanos paraibanos. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA,
17., 2015, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: CBS, 2015. p.1-20.
ARAÚJO, Bruna Silva. “(...) A gente tem receio de sair na rua...”: A cidade de Sobral/CE em
perspectiva a partir das experiências de deejays drag queens. In: ENCONTRO ANUAL DA
ANPOCS, 45, 2021, Remoto. Anais. ISSN 2177-3092.
AZEVEDO, Pietra Conceição. “Cansei da linha mapôa, hoje gosto de chamar atenção, de ser
travesti”: visibilidades sociais e travestilidades em contextos rurais e interioranos. In:
ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 45, 2021, Remoto. Anais. ISSN 2177-3092.
BÁRTOLO, Lucas. . A Praça de Cosme e Damião: reciprocidade, sociabilidade e devoção em
torno de um altar suburbano. In: Renata Menezes; Morena Freitas; Lucas Bártolo. (Org.). Doces
Santos : devoções a Cosme e Damião. 1ed.Rio de Janeiro: Museu Nacional, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 2020, v. , p. 152-199.
BLÁZQUEZ, Gustavo; LIARTE-TILOCA, Agustín. De salidas y derivas. Anthropological
Groove y “la noche” como espacio etnográfico. Íconos. Revista de Ciencias Sociales, n. 60, p.
193-216, 2018.
BOLLETTIN, Paride; SANABRIA, Guillermo Vega; TAVARES, Fátima (org.).
ETNOGRAFANDO NA PANDEMIA. Padova: Coop. Libraria Editrice Università di Padova,
2020. 288 p.
BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. cadernos pagu, n. 26, p. 329-376, 2006.
CORADINI, Lisabete. Praça XV: espaço e sociabilidade. Fundaçã Franklin Cascaes, 1995.
CORADINI, Lisabete. Desvio na praça 20. Trajetórias antropológicas: encontros com Gilberto
Velho, p. 173, 2016.
DA MATTA, Roberto. O ofício de etnólogo, ou como ter anthropological blues. 1978.
DA MATTA, Roberto. Casa, rua e outro mundo: o caso do Brasil. R. Damatta. A casa e a rua.
Rio de Janeiro: Rocco.[Links], 1997.
DEL PICCHIA, Paulo Menotti. A Neblina e o Fluxo: o funk nos corpos elétricos da quebrada.
Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo. 2021.
DOMINGUES, Izabela; DE MIRANDA, Ana Paula. Consumo de ativismo. Estação das Letras
e Cores Editora, 2020.
EL PAÍS: 716.000 empresas fecharam as portas desde o início da pandemia no Brasil, segundo
o IBGE. São Paulo, 19 jul. 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-07-
188

19/716000-empresas-fecharam-as-portas-desde-o-inicio-da-pandemia-no-brasil-segundo-
oibge.html#:~:text=De%20acordo%20com%20o%20Sebrae,at%C3%A9%20a%20metade%2
0de%20junho%E2%80%94.. Acesso em: 14 maio 2021.
ENNE, Ana Lucia. Juventude como espírito do tempo, faixa etária e estilo de vida: processos
constitutivos de uma categoria-chave da modernidade. Comunicação Mídia e Consumo, v. 7,
n. 20, p. 13-35, 2010.
FACCHINI, Regina. Entre compassos e descompassos: um olhar para o" campo" e para a"
arena" do movimento LGBT brasileiro. Bagoas-Estudos gays: gêneros e sexualidades, v. 3, n.
04, 2009.
FACCHINI, Regina. Vinte anos depois: mulheres,(homo) sexualidades, classificações e
diferenças na cidade de São Paulo. Revista Gênero, v. 9, n. 1, 2012.
FACCHINI, Regina; FRANÇA, Isadora Lins; BRAZ, Camilo. Estudos sobre sexualidade,
sociabilidade e mercado: olhares antropológicos contemporâneos. cadernos pagu, p. 99-140,
2014.
FERREIRA, Letícia Carvalho de Mesquita. Uma etnografia para muitas ausências: o
desaparecimento de pessoas como ocorrência policial e problema social. Museo Nacional de la
Universidad Federal de Río de Janeiro (UFRJ), Río de Janeiro, 2011.
FERREIRA, Matheus Soares. Fora do armário: uma análise geográfica dos espaços de
sociabilidade LGBT em Natal entre 2014 e 2017. 2018. Trabalho de Conclusão de Curso.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
FRANÇA, Isadora Lins. " Cada macaco no seu galho?": poder, identidade e segmentação de
mercado no movimento homossexual. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 21, n. 60, p.
104-115, 2006.
FRANÇA, Isadora Lins. Identidades coletivas, consumo e política: a aproximação entre
mercado GLS e movimento GLBT em São Paulo. Horizontes Antropológicos, v. 13, p. 289-
311, 2007.
FRANÇA,. Isadora Lins Consumindo lugares, consumindo nos lugares: homossexualidade,
consumo e subjetividades na cidade de São Paulo. EdUERJ, 2012.
FRANCO, Carlos Henrique Pereira; ANDRADE, Darlane Silva Vieira. A PRAÇA DO
CAMPO GRANDE: território de lazer e sociabilidade de adolescentes homossexuais em
Salvador. In: RODRIGUES, Cristiano et al, (org.). Territorialidades: Dimensões de Gênero,
Desenvolvimento e Empoderamento das Mulheres. Salvador: EDUFBA, 2018. p. 131-161.
ISBN 978-85-232-1765-5.
189

FREITAS, Eliane Tânia. Linchamentos virtuais: ensaio sobre o desentendimento humano na


internet. Revista Antropolítica, v. 42, p. 40-163, 2017.
FONSECA, C. 2018. Pesquisa ‘risco zero’: é desejável? É possível? In: Grossi, M.
P., Schwade, E., Mello, A. G. de e Sala, A. (Orgs.). Trabalho de campo, ética e
subjetividade, 195-212. Tubarão/Florianópolis: Copiart/Tribo da Ilha.
GOMES, Laura Graziela Figueiredo Fernande; LEITÃO, Débora Krischke . Etnografia em
ambientes digitais: perambulações, acompanhamentos e imersões. Revista Antropolítica, n. 42,
Niterói, p. 41-65, 1. sem. 2017, 2017.
GONÇALVES, Italo Vinicius. Da etnografia multissituada à “plataformizada”: aproximações
entre antropologia e estudos de plataforma. Cadernos de Campo (São Paulo-1991), v. 29, n. 2,
p. e175274-e175274, 2020.
GUPTA, Akhil; FERGUSON, James. 1. Discipline and Practice:" The Field" as Site, Method,
and Location in Anthropology. University of California Press, 1977.
HANNERZ, Ulf. Explorando a cidade: em busca de uma antropologia urbana. Editora Vozes
Limitada, 2015.
HARVEY, David. O direito à cidade. Lutas sociais, n. 29, p. 73-89, 2012.
INGOLD, Tim. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Editora Vozes
Limitada, 2015.
HINE, Christine; PARREIRAS, Carolina; LINS, Beatriz Accioly. A internet 3E: uma internet
incorporada, corporificada e cotidiana. Cadernos de Campo (São Paulo-1991), v. 29, n. 2, p.
e181370-e181370, 2020.
LEITE, Rogerio Proença. Contra-usos e espaço público: notas sobre a construção social dos
lugares na Manguetown. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 17, p. 115-134, 2002.
LOPES, Moisés Alessandro de Souza. Algumas observações sobre as homossexualidades em
“contextos interioranos”: lançando questões de “fora dos centros”. Amazônica-Revista de
Antropologia, v. 8, n. 1, p. 24-37, 2017.
MADSON, Túlio. Bairro Neópolis: vida e morte de uma utopia. Carta Potiguar, 2013.
Disponível em: https://www.cartapotiguar.com.br/2013/12/26/bairro-neopolis-vida-e-morte-
de-uma-utopia/. Acesso em: 27 de set. 2021.
MAGNANI, José Guilherme Cantor. Rua, símbolo e suporte da experiência urbana. Publicado
em Cadernos de História de São Paulo, v. 2, 1993.
MAGNANI, José Guilherme Cantor. Festa no pedaço: cultura popular e lazer na cidade. Unesp,
1998.
190

MAGNANI, José Guilherme Cantor. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana.
Revista brasileira de ciências sociais, v. 17, n. 49, p. 11-29, 2002.
MAGNANI, José Guilherme Cantor. Etnografia como prática e experiência. Horizontes
antropológicos, v. 15, n. 32, p. 129-156, 2009.
MALUF, Sônia. Antropologia em tempo real: urgências etnográficas na pandemia. Aula
inaugural Programa de Pós-Graduação em Antropologia UFAL. https://ics. ufal. br/pos-
graduacao/mestrado-em-antropologia/institucional/eventos/aula-inaugural-2020-profa-sonia-
maluf, 2020.
MENDONÇA, Eneida Maria Souza. Apropriações do espaço público: alguns conceitos.
Estudos e Pesquisas em Psicologia, v. 7, n. 2, p. 0-0, 2007.
NASCIMENTO, Silvana. A cidade no corpo. Diálogos entre corpografia e etnografia. Ponto
Urbe. Revista do núcleo de antropologia urbana da USP, n. 19, 2016.
NASCIMENTO, Silvana De Souza. O corpo da antropóloga e os desafios da experiência
próxima. Revista de Antropologia, v. 62, n. 2, p. 459-495, 2019.
PARREIRAS, Carolina; LINS, Beatriz Accioly; DE FREITAS, Eliane Tânia. Estratégias para
pensar o digital. Cadernos de Campo (São Paulo-1991), v. 29, n. 2, p. e181821-e181821, 2020.
PARK, Robert Ezra. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no
meio urbano. Tradução de Sérgio Magalhães santeiro. O fenômeno urbano. Rio de Janeiro:
Zahar, p. 29-72, 1967.
PASSAMANI, Guilherme Rodrigues. Batalha de confete no" Mar de Xarayés": condutas
homossexuais, envelhecimento e regimes de visibilidade. 2015.
PERLONGHER, Néstor Osvaldo. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. In: O
negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. 1987. 261p.
PEREIRA, Suzanne Freire. Os (des) fazeres do brejo: Notas sobre lesbianidades em Natal/RN
2021. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Centro de Ciências Humanas, Letras e
Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2021.
POLLAK, M. Os homossexuais e a AIDS: sociologia de uma epidemia (Trad. de Paula Rosas)
São Paulo: Estação Liberdade. 1990.
PUCCINELLI, Bruno. Rua declinada no masculino: sexualidades, mercado imobiliário e
masculinidades no Centro de São Paulo (Brasil). Revista Punto Género, n. 6, p. 113-126, 2016.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Ver, ouvir escrever. 1998.
RAMOS, Jair De Souza. Subjetivação e poder no ciberespaço. Da experimentação à
convergência identitária na era das redes sociais. Vivência: revista de antropologia, v. 1, n. 45,
2015.
191

RIBEIRO, Bruno Nzinga. Afronta, vai, se movimenta!: uma etnografia da cena preta LGBT da
cidade de São Paulo. 2021. 1 recurso online ( 165 p.) Dissertação (mestrado) - Universidade
Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP.
RIBEIRO, Mílton; VENANCIO, Vinicius; OLIVEIRA, Thiago. A antropologia brasileira e os
ecossistemas localizados: formação, institucionalização e desenvolvimento de antropologias
regionais. Novos Debates: Fórum de Antropologia, v. 7, n. 1, 2021.
ROLNIK, Raquel. O que é cidade. Brasiliense, 2017.
SANTOS, Lucas do Nascimento. " Vamos lalunar?": experimentações do espaço público em
Natal-RN. 2019. Trabalho de Conclusão de Curso. Universidade Federal do Rio Grande do
Norte.
SEGATA, Jean. A pandemia e o digital. Todavia. Porto Alegre, RS. Vol. 7, n. 1 (dez. 2020), p.
7-15, 2020.
SEGATA, Jean et al. A Covid-19 e suas múltiplas pandemias. 2021.
SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Tradução
Marcos A. Reis – 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.
SILVA, Adara Pereira da. O ciclo das compras: uma análise etnográfica sobre compras
femininas de roupas, acessórios e maquiagens em Natal. 2020. 187f. Dissertação (Mestrado em
Antropologia Social) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, Natal, 2020.
SILVA FILHO, Milton Ribeiro da; RODRIGUEZ, Carmem Izabel. Na rua, na praça, na boate:
uma etnografia da sociabilidade LGBT no circuito GLS de Belém do Pará. Ponto Urbe, n. 11,
p. 2-14, 2012.
SILVA, Gleicy Mailly da. Corpo, política e emoção: feminismos, estética e consumo entre
mulheres negras. Horizontes Antropológicos, v. 25, p. 173-201, 2019.
SILVA, Igor Monteiro; NASCIMENTO, Ricardo César Carvalho. “PERNADAS NAS
RUAS”: EXPRESSÕES DA CAPOEIRA COMO FORMA DE OCUPAÇÃO URBANA.
Revista Desenvolvimento Social, v. 26, n. 1, 2020.
SILVA, Raquel Souza da. Twitter e ciberativismo: o movimento social da hashtag
#ForaMicarla em Natal-RN. 2012. 142 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) -
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2012.
SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito (1903). Mana, v. 11, p. 577-591,
2005.
SIMÕES, Júlio Assis; FACCHINI, Regina. Na trilha do arco-íris: do movimento homossexual
ao LGBT. Editora Fundação Perseu Abramo, 2009.
192

SOUSA, Lucas Henrique de. Homossexualidades e cidades pequenas: a experiência de homens


gays em cidades pequenas. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 44, 2021, Remoto. Anais.
ISSN 2177-3092.
TASCHNER, Gisela Black. Dimensões políticas da cultura do consumo. Lua Nova: Revista de
Cultura e Política, p. 183-199, 1997.
TEIXEIRA, Marcelo Augusto de Almeida. “Metronormatividades” nativas: migrações
homossexuais e espaços urbanos no Brasil. Áskesis-Revista des discentes do Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da UFSCar, v. 4, n. 1, p. 23-38, 2015.
VIEIRA JUNIOR, Luiz Augusto Mugnai. A imersão oculta em plataformas online: uma
experiência antropológica a partir dos estudos de recepção. Cadernos de Campo (São Paulo-
1991), v. 29, n. 2, p. e175275-e175275, 2020.
VOGEL, Arno; DA SILVA MELLO, Marco Antonio; SANTOS, Carlos Nelson Ferreira.
Quando a rua vira casa: a apropriação de espaços de uso coletivo em um centro de bairro.
Projeto, 1985.
WASSER, Nicolas. O movimento musical LGBT e seus contramovimentos/The LGBT musical
movement and its countermovements. Revista Brasileira de Sociologia-RBS, v. 8, n. 20, p. 50-
77, 2020.

Você também pode gostar