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JOSÉ CARLOS FRANCO LIMA

A RELIGIÃO POPULAR

UMA PESQUISA-AÇÃO SOBRE ASPECTOS DA RELIGIÃO DOS


TRABALHADORES DE HELIÓPOLIS

MESTRADO: CIÊNCIAS SOCIAIS

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA


SÃO PAULO
1994
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PARTE I

INTRODUÇÃO

1 APRESENTAÇÃO E PROBLEMÁTICA DA PESQUISA

Heliópolis é uma dessas áreas ocupadas típicas das grandes metrópoles


brasileiras. A ocupação foi iniciada em fins de 60 e acentuou-se no correr da
década de 70 e 80, à margem dos poderes públicos. Com o surgimento de
organizações populares, elas conquistaram melhorias e a favela passou a ter um
projeto habitacional global, elaborado a partir das reivindicações do movimento
popular organizado.
Os trabalhos de organização popular foram desenvolvidos
concomitantemente com os trabalhos de organização religiosa na perspectiva da
teologia da libertação. No momento, um dos grandes desafios para os trabalhos
das CEBs é a compreensão d universo simbólico religioso popular na sua prática
religiosa.
Aliás, essa dificuldade não é privilégio dos clérigos e agentes de pastoral,
mas está presente também nos dirigentes do movimento popular iniciados num
discurso político que os afasta do universo simbólico popular. Aqui está um
elemento negativo para o desenvolvimento de mobilizações populares. Como
membro ativo do movimento popular este pesquisador tentou encarar essa
questão. Além dos motivos ligados a conjuntura das organizações populares
locais, a opção por uma pesquisa no campo das representações simbólico-
religiosas se deve ao fato destas revelarem uma das formas de resistências
típicas dos setores populares brasileiros. O mundo simbólico-religioso formado
nas relações sociais foge, inclusive, ao controle dos especialistas das agencias
religiosas.
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Quanto aos princípios norteadores (inspirados na teologia da libertação)


e analise de conjuntura os agentes dispõem de relativa clareza, mesmo que não
sistematizada, é o que se percebe em cantos como “Pelos caminhos da América”
(ASSEMBLÉIA, 1992):

Pelos caminhos da América, há tanta dor tanto pranto,


Nuvens, mistérios encantos Que envolvem nosso caminhar.
Há cruzes beirando a estrada, Pedras manchadas de sangue,
Apontando como setas que A liberdade é pra lá.

Pelos caminhos da América, há mães gritando qual loucas.


Antes que fiquem roucas, digam aonde acharão
Seus filhos mortos, levados na noite de tirania.
Mesmo que matem o dia, elas jamais calarão.

Pelos caminhos da América, Há mães gritando qual loucas,


Antes que fiquem tão roucas, digam onde acharão
Seus filhos, mortos levados Na noite da tirania.
Mesmo que mantém o dia, eles jamais calarão.

É o que se vê em intervenções como esta de Miguel na assembleia:

“De nada vale planejar nossa caminhada se não pormos em prática, enfrentando
problemas reais. A região viveu ocupações de terra. Na Av. Tancredo neves tem 150
famílias sendo despejadas. O IPESP quer a terra de volta. Dia 12.03 vai haver despejo.
Hoje tivemos uma reunião com a vereadora Terezinha Martins e D. Celso. Devemos
fechar em termos de pastoral da moradia da região sudeste uma carta de apoio. Será
uma atitude concreta. Para sairmos da assembleia de cabeça erguida, temos de sair
comprometidos com os despejados. Essa luta tem sido uma tortura. As celebrações tem
dado força. É fácil falar de luta, duro é estar juntos no sofrimento – isto é opção de classe.
Tem gente diz que lá só tem bandido. Heliópolis era pior na década de 70.”
(ASSEMBLÉIA, 1992)

A profunda proximidade entre os agentes e o movimento popular da área


confirmam esta linha de ação e os objetivos de conscientização crítico-política.
Porém as CEBs não estão conseguindo conquistar as massas “católicas”. Sua
ação religiosa, no geral, vem marcada pela rejeição ao catolicismo popular, tendo
dificuldade em assimilar as práticas religiosas tradicionais e operar com o
sincretismo religioso. Além disso ao exigir que os católicos “não-praticantes” se
submetam às suas exigências para recepção de sacramentos, elas se
distanciam do “povão católico”. As CEBs tem um efetivo, relativamente pequeno
dentro do conjunto dos católicos. Daí as conclusões explícitas da assembleia de
22.02.92, com esta:

“A QUESTÃO DA RELIGIOSIDADE DO POVO E O ATENDIMENTO DO POVO.


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Muitas vezes nós agentes não estamos interpretando a religiosidade do povo.


Os agentes não entendem as necessidades religiosas do povo. O desafio é o
relacionamento entre agentes e povo.” (ASSEMBLÉIA, 1992)
Conforme o proposto e aprovado na reunião de agentes de
15.03.92 a pesquisa deve responder a essa questão:

QUAL A RELIGIÃO DOS TRABALHADORES POBRES, MIGRANTES


NORDESTINOS, FAVELADOS DE HELIÓPOLIS QUE NÃO PARTICIPAM
ASSIDUAMENTE DE NENHUMA AGÊNCIA RELIGIOSA?

A pesquisa é uma tentativa de responder a essa pergunta através do


levantamento dos principais condicionamentos sociais da formação da religião
dos trabalhadores de Heliópolis e não através de uma mera descrição das
crenças e práticas religiosas dos mesmos.
O público alvo da pesquisa são os trabalhadores que não participam
assiduamente de nenhuma agencia religiosa. Esse critério de seleção é
fundamental para se atingir aqueles que vivenciam a religião popular. O objetivo
é compreender seu universo religioso para que as CEBs pudessem trabalhar
com eles. Tentou-se atingir com a pesquisa que não tinha compromisso de
assiduidade e exclusividade com as CEBs ou qualquer agencia religiosa.
O objetivo é contribuir para que se estabeleça um relacionamento explícito
entre as CEBs e a religião popular, baseado no respeito e no diálogo.
Constatou-se, a partir das pesquisas bibliográficas e coleta de
depoimentos, que a exigência religiosa e o quadro de representações religiosas
se constituem num cotidiano de sofrimentos, numa realidade com um grande
variedade de religiões e sofrimentos, numa realidade com uma grande variedade
de religiões e sincretismo religioso, aonde as representações simbólicas
religiosas, os ritos, os sentimentos e expectativas em relação ao sagrado
buscam responder à superação do sofrimento, a uma certa desconfiança em
relação às agências religiosas, e a um indivíduo em trânsito que opera com uma
linguagem descritiva-concreta-repetitiva.
Visando subsidiar a coordenação das CEBs na definição de diretrizes de
ação na área, principalmente no que concerne a articulação entre a organização
de pequeno grupos comunitários e trabalho de mobilização religiosa massiva, e
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a articulação entre senso comum e consciência crítica, direcionou-se a


investigação para as seguintes questões:
1 Trânsito religioso.
2 Símbolos sagrados (gestos e objetos).
3 A superação dos sofrimentos cotidianos como motivação da procura por
exigências religiosas.
4 Postura afetiva em relação aos lugares sagrados.
5 Agente cooptador religioso.

Aliás, essa problemática não é meramente local, mas do conjunto dos


organismos e agentes que atuam na linha da teologia da libertação, que tende
ao uso intenso de uma lógica conceitual (racional), tendo dificuldades em
articular-se numa linguagem mítico-simbólica, não conseguindo, muitas vezes
trabalhar a dimensão emocional, tão característica da cultura popular brasileira.
A primeira parte do trabalho consiste num capítulo introdução contendo a
apresentação do trabalho e da problemática da pesquisa. O segundo capítulo
desta parte são apontamentos gerais sobre Heliópolis no contesto urbano-
industrial-metropolitano, aonde se localiza a problemática da pesquisa no seu
ambiente social; destaca-se neste capítulo uma identificação dos trabalhadores
pobres – migrantes nordestinos – favelados de Heliópolis a partir da história da
área.
Na segunda parte do trabalho se expõe a configuração da pesquisa-ação,
a atuação com a organização coprodutora e as técnicas utilizadas na coleta de
informações teóricas e empíricas. Tentou-se coproduzir a pesquisa, definindo os
papéis da organização e do pesquisador, mantendo este a prerrogativa
metodológica e cabendo à organização a definição de diretrizes gerais da
pesquisa e colaborações esporádicas na coleta de dados. Cuidou-se para
manter a organização informada do andamento e conteúdo da pesquisa, através
da participação do pesquisador nas suas reuniões mensais. Pode-se colocar a
pesquisa como co-produzida pelo pesquisador e CEBs Heliópolis.
A terceira parte do trabalho consiste num aprofundamento da religião dos
trabalhadores de Heliópolis. No capítulo três se faz uma abordagem sobre o
mundo religioso dissertando-se sobre temas como religião, instituições
religiosas, mercado religioso, variedade de manifestações religiosas, polissemia
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de sentidos, matriz simbólico-religiosa de uso comum recepção da mensagem


religiosa.
O último capítulo apresenta a questão do saber popular defensivo-
afirmativo e seus espaços de produção.
A delimitação do sujeito social da pesquisa foi feita a partir de sua
condição econômica e sua posição no processo de produção, de sua identidade
de origem e mobilidade social e sua situação de moradia.
Em seguida se disserta sobre as matrizes religiosas de origem no
nordeste camponês e a condição do migrante diante da realidade metropolitana.
Encerra-se o trabalho com algumas reflexões sobre a metodologia e temática da
pesquisa e apresentação de diretrizes de ação para as CEBs de Heliópolis. Em
termos de conteúdo, mais do que uma descrição detalhada da religião dos
trabalhadores de Heliópolis, se tentou levantar as condições e os elementos que
influem na formação de seus quadros de representações religiosas.

2 HELIÓPOLIS: A CIDADE DO SOL

O contexto urbano-industrial-metropolitano é um dos elementos


condicionantes fundamentais da formação da religião dos trabalhadores de
Heliópolis. Os quadros de representações religiosas dos migrantes nordestinos
sofreram o impacto da nova realidade social na qual passam a viver. O objetivo
deste capítulo é delinear brevemente algumas características da vida na
metrópole e dos moradores da favela de Heliópolis.

2.1 O IMPACTO DA METROPOLIZAÇÃO

A industrialização é uma das característica da sociedade moderna e a


urbanização (sociedade urbana entendida em sentido amplo como realidade
social) é um dos efeitos da industrialização e é uma das características
fundamentais da sociedade moderna. (LEFBVRE, H., 1991: 3). A expansão dos
grandes centros urbanos leva a metropolização.
A cidade é uma das arenas da luta de classes e lutas políticas.
A generalização da mercadoria pela industrialização tende a subordinar a
realidade urbana ao valor de troca. (LEFBVRE, H., 1991: 6)
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A metrópole é um novo mundo de referência dos migrantes. Complexo,


plural, em mudança, um mundo que os migrantes não conseguem compreender
no seu todo, apesar de desenvolver formas simbólicas que lhes permitem
construir um quadro de interpretações para enfrentar esse mundo.
A sociedade industrial desenvolvida se torna mais rica ao aperfeiçoar o
desperdício (hiperconsumo). Os meios de informação em massa fazem aceitar
interesses particulares dos dominantes como sendo de todo mundo.
(MARCUSE, H., 1979: 13) Tudo que atinge grande divulgação se dá como
espetáculo: monitorado pela mídia. Sua produtividade é destruidora do
desenvolvimento livre das necessidades e faculdades humanas; a paz e o
crescimento são mantidos pela repressão via prazer-cooptante, privação-
ameaçante, admiração e coerção. A tecnologia serve para instruir formas novas,
mais eficazes e mais agradáveis de controle e coesão social. A conquista da
sociedade se dá pela tecnologia, padrão de consumo crescente e privatização
das camadas miseráveis. (MARCUSE, H., 1979: 16)
O sistema é repressivo e frustrante para as populações dos países de
terceiro mundo, o que levanta a questão das formas de resistência que elas
desenvolvem em situação de impossibilidade de enfrentamento aberto, seja por
falta de poder, de clareza e/ou projetos alternativos.
Nessa sociedade o aparato técnico de produção e distribuição (com uma
recente automatização) tende a tornar-se totalitário ao determinar as oscilações,
habilidades e atitudes socialmente necessárias e as necessidades e aspirações
individuais. (MARCUSE, H., 1979: 18)
A criação dos setores médios da classe trabalhadora e ampliação da
pequena burguesia contribuíram decisivamente para sustentar a estrutura social
vigente.
Vive-se num clima de pluralidade onde convivem, concorrentes ou
cúmplices, instituições e valores contraditórios e antagônicos. Ao mesmo tempo
existem noções e valores que perpassam o conjunto da sociedade. O trânsito
entre instituições e valores é possibilitado pela pluralidade e por esse “back
ground” que se faz numa convivência social conflituosa. Ao mesmo tempo o
transito religioso permite forjar um mínimo de consenso social, uma
compatibilidade mínima no conjunto social.
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O capital financeiro-produtivo das metrópoles se internacionalizou,


ocorrendo, a partir dos anos 50, uma enorme expansão das empresas
multinacionais. Alguns países da periferia do capitalismo mundial como Brasil,
África do Sul, México, Coreia do Sul conheceram um notável conhecimento
industrial, onde gigantesco centros urbanos bastante industrializados convivem
organicamente com graus inigualáveis de concentração na distribuição social de
renda e de taxas de exploração da força de trabalho. As guerras entre as
potencias parece ter cedido lugar a múltiplos conflitos armados no terceiro
mundo. (VISENTINI, J.W., 1987: 7) Ocorre um desenvolvimento desigual e
combinado do capitalismo a nível internacional.

“No caso das sociedades em vias de desenvolvimento uma característica


parece ser tão específica como essa intensa transformação: a dependência.
Os meios da modernidade são importados em larga escala, sob a forma de
capitais, de bens de equipamentos, de técnicas, de modalidades de consumo,
de modelos institucionais.” (BALANDIER, G., 1976: 99)

As metrópoles brasileiras como estão hoje são produtos da


industrialização recente do Brasil dependente. A consolidação do complexo
cafeeiro e a herança por ele deixada permitiu o surgimento no Brasil de uma
incipiente economia industrial e de uma rede urbana a partir dos anos 20
(WANDERLERLEY, L. E. e BOGUS, Lúcia, 1992: 11)
Passou de 12,8 milhões de habitantes urbanos na década de 40 para 70
milhões na década de 80. A urbanização foi marcada por grandes
deslocamentos populacionais, reorganização do espaço e transformação nos
processos de divisão social do trabalho (BOGUS, Lúcia, 1992: 11). Estima-se
que 30 milhões de pessoas deixaram a área rural para a área urbana entre 1960
e 1980 (BOGUS, Lúcia, 1992: 13).
Os anos 60 são marcados por um desenvolvimento acentuado do setor
secundário e diversificação da indústria pesada, centrados em São Paulo e Rio.
Mas a maturação do processo de industrialização e urbanização do Brasil vão
da retomada do crescimento do Brasil econômico no final dos anos 60 até o
período da instabilidade crônica dos últimos anos de 80 (SEADE, 1992: 22)
Passou-se de 1989 cidades em 1950 para 3991 em 1980.
As áreas de moradias precárias (favelas, cortiços e loteamentos
clandestinos) respondem à chegada maciça de camponeses levados para os
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centros urbanos pelo êxodo rural. A entrada de imigrantes e o fluxo interno tem
sido uma das características do Brasil desde o período colonial.
O fenômeno das favelas é mais novo que o dos cortiços. Em sua maioria
resultaram de ocupação de terras públicas ou terras devolutas. A reconstrução
do centro do Rio no início do século XX e o consequente despejo dos moradores
de cortiços marcam a formação das primeiras favelas metropolitanas nos
modelos existentes hoje nas grandes cidades.

2.2 A REGIÃO METROPOLITANA DE SÃO PAULO

O desenvolvimento do processo de acumulação da economia brasileira,


a partir dos anos 50, baseou-se na expansão industrial. Já desde os anos 30 o
Estado iniciou uma política de transferência de recursos do setor agroexportador
para o setor industrial. Já naquela época, as cidades da região sudeste
passaram a ser sedes das industrias, estando sua economia sujeita ao setor
secundário. A indústria constituiu a “mola-mestra” do projeto nacional-
desenvolvimentista, e o parque industrial nacional, concentrado no eixo Rio-S.
Paulo passou a receber contingentes cada vez maiores de população vinda da
área rural. A partir de 1930, após a grande depressão, a economia paulista
consolidou-se como dominante no cenário nacional, constituindo-se a cidade de
São Paulo como principal centro de imigração do país. São Paulo já contava com
avançadas relações capitalistas de produção, amplo mercado interno, avançada
agricultura mercantil e certa estrutura industrial já antes de 1930. Daí sua
predominância sobre as regiões do país (BOGUS, Lúcia, 1992b: 22). A
industrialização brasileira se concentrou no Estado os principais segmentos
produtivos, uma avançada agricultura e a maior parte do terciário moderno
(SEADE, 1992b: 22)
No caso da grande S. Paulo o aumento populacional na década de 70 e
80 foi responsável por 17% do aumento total brasileiro, sendo que de 80 a 90
correspondeu a 9,6%.
S. Paulo surge como cidade grande com o surgimento da indústria no
Brasil entre 1870 a 1929. Se consolida como maior centro industrial do país entre
1930 a 1955. Finalmente, com o advento da indústria pesada de bens de
produção, se torna a maior metrópole do país e um dos maiores centros urbanos
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do mundo. A região metropolitana de S. Paulo foi a sede e o suporte do processo


de industrialização brasileira, altamente concentrador de população, de
produção e de emprego.
No início dos anos 40 a região metropolitana englobava 11 municípios,
sendo que 85% da população residia na capital, hoje são 38 municípios. A
população atual gira em torno de 16 milhões de habitantes (SEADE, 1992b: 17).
A densidade demográfica da metrópole passou de 24,6 hab/ha em 1961 para
70,7 hab/ha em 1987.
O aumento da mancha urbana foi-se dando por meio de expansão de
bairros periféricos e incorporação de subúrbios isolados. A metrópole se
expande inicialmente às margens das ferrovias, provocando um processo de
suburbanização e periferização. Depois o espaço urbano acompanhou as auto-
s precárias intensificará a partir dos anos 40. Heliópolis situa-se num enclave
entre as áreas ocupadas na época das implantações da ferrovia Santos-Jundiaí
(estação Ipiranga, Tamanduateí, S. Caetano) e da via Anchieta (S. Bernardo,
Diadema). A região caracteriza-se pela presença de indústrias. O caráter
radiocêntrico da metrópole repousa sobre seu sistema viário (SEADE, 1992b:
36).
A presença de migrantes na população é um dos aspectos mais
característicos da região metropolitana paulistana. Oriundos especialmente do
nordeste, os migrantes representavam 56% da população metropolitana em
1980 (BOGUS, Lúcia, 1982: 37). Mesmo com o fraco desempenho dos anos 80,
o processo de urbanização continuou se intensificando; S. Paulo continuou
sendo o principal destino dos migrantes (SEADE, 1992b: 26).
As famílias de 1 a 5 salários mínimos constituem 50% da população de S.
Paulo.
Uma parcela significativa da população metropolitana (37,2%) moram em
condições precárias ou insatisfatórias, ou seja, em habitações sujas
características físicas não atendem o mínimo das necessidades básicas
(SEADE, 1992a: 24).
A crise econômica dos anos 80, ao achatar os níveis de renda das
classes populares levou-as a optar com maior frequência por morar em favelas
e cortiços, em vez das moradias autoconstruídas em loteamento clandestinos
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como nos anos 70. A taxa de desemprego chega a 19% entre as famílias de até
5 salários mínimos.
As condições de atendimento de serviços urbanos de metrópole são
piores sobretudo nas moradias precárias. Dentre as famílias que as ocupam,
42,1% não contam pelo menos um serviço básico como abastecimento de água,
coleta de lixo ou esgoto sanitário (SEADE, 1992a: 27).
A ausência de pavimentação e de guias e sarjetas nas ruas dos domicílios
chega a atingir 34,9% das famílias de moradias precárias (SEADE, 1992a: 30).
O número de favelados saltou de 71.840 em 1973 para 812.764 em 1983.
Além da precariedade, os domicílios construídos em área de pobreza
caracterizam-se também pela ilegalidade (não estão de acordo com o Código de
Obras, Lei de Zoneamento ou Lei de Regularização Fundiária). Estima-se em
7,7 milhões de pessoas na ilegalidade (BOGUS, Lúcia, 1992: 45).
O processo perverso da urbanização provocou a invasão de áreas de
mananciais, áreas verdes, áreas destinadas a equipamentos públicos e a
construção de espaços segregados destinados às classes populares (SEADE,
1992b: 157). Cerca de 10% das famílias pobres residem em áreas invadidas na
região metropolitana.
O padrão de desenvolvimento urbano da metrópole na década de 80
ocorre por meio do adensamento interno. O centro cresce mais que as franjas
periféricas. Uma das faces do processo de adensamento populacional no
município de S. Paulo é o aumento do índice de favelamento espontâneo. Com
a ocupação de espaços vazios internos do município, redistribui-se o lugar das
camadas pobres. Convivem nas áreas mais urbanizadas diversas faixas de
renda (SEADE, 1992b: 161-163).

2.3 OS TRABALHADORES POBRES – MIGRANTES NORDESTINOS –


FAVELADOS DE HELIÓPOLIS

A favela de Heliópolis ganhou destaque na segunda metade da década


de 80, durante a administração municipal de Jânio Quadros na prefeitura de S.
Paulo (1985-1988). O Então prefeito tentou “limpar” a área despejando os
moradores. Os moradores organizados em uma comissão geral resistiram
chegando a ocupar o escritório da COHAB na área e conseguiram a continuidade
do processo de urbanização através da assinatura de um convênio entre
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COHAB-SP, prefeitura, Banco Nacional de Habitação e Banco do Brasil.


Implementando um acompanhamento intenso da implantação das obras. O
movimento popular conseguiu estabelecer uma tensa e conflituosa parceria com
a prefeitura.
A favela situa-se na região sudeste da capital, nos limites com S. Bernardo
do Campo e S. Caetano. São quase dois milhões de metros quadrados que
começam timidamente a serem ocupados na década de 60 por “grileiros” e sem-
terra. Em 1971, é transferida “provisoriamente” para a parte inferior da área –
próximo ao largo do Sacomã – a favela Vergueiro e parte da favela da Vila
Prudente; a ocupação se intensifica. A parte superior da área, próxima a S. João
Clímaco, só vai ser ocupada em fins da década de 70 e início dos anos 80 (a
custa de acirrados enfrentamentos com grileiros-traficantes de drogas). Mesmo
com a ocupação total da área, a movimentação populacional não se encerrou;
hoje, a intensa comercialização de barracos e casas, e o grande número de sem-
terra que moram como agregados em casas e barracos continuam gerando uma
grande rotatividade na área.
A maioria de mão-de-obra ativa na área é formada por assalariados
urbanos, com um grande contingente de operários (pois a região possui muitas
metalúrgicas – ALIPERT, BACHERT, AUTOLATINA, ARNO e Indústrias têxteis
– TÊXTIL, LINHAS CORRENTE – e outros tipos de indústrias – TRORION) e
trabalhadores do setor de serviços (rodoviários, comerciários, empresa de
limpeza). Verifica-se também a presença de trabalhadores autônomos (diaristas,
pedreiros, camelôs). Geralmente todos acima de 14 anos trabalham,
excetuando-se delinquentes e desempregados. Apequena burguesia presente
na área se resume a donos de bares, farmácias, depósitos de material de
construção, bazares. Os moradores em geral são trabalhadores de baixa renda.
É o que mostra a pesquisa realizada pela “Agora” em 1987 e a
amostragem feita para esta pesquisa em 1992. A maioria das mulheres e
homens é assalariada (73,25%), vindo em seguida os autônomos (10,56%) e os
desempregados (5,40%). A maioria dos assalariados atua na indústria de
transformação. Já os autônomos distribuem-se entre a construção civil, comércio
e serviços.
Os dados anteriores são confirmados pela amostragem realizada por esse
pesquisador em 1992. Foram aplicados 200 questionários.
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SETOR DE TRABALHO DA ECONOMIA E VINCULAÇÃO EMPREGATÍCIA


ASSALARIADOS: SETOR SECUNDÁRIO................................................70 (35%)
ASSALARIADOS: SETOR TERCIÁRIO....................................................42 (21%)
AUTÔNOMOS: SETOR SECUNDÁRIO....................................................9 (4,5%)
AUTÔNOMOS:SETOR TERCIÁRIO.........................................................30 (15%)
DESEMPREGADOS.................................................................................11 (5,5%)
ESTUDANTE............................................................................................29 (14,5%)
APOSENTADOS......................................................................................9 (4,5%)
(AMOSTRAGEM)

O total de assalariados chega a 56% dos entrevistados na amostragem.


Isto revela o perfil proletário da área.
Quem declara ter como profissão estudante, geralmente o faz por estar
desempregado. Somando-se os desempregados e estudantes chega-se a 20%
dos entrevistados.
O sotaque nordestino impera na área toda, sendo inegável a identidade
de migrantes nordestinos.

ORIGEM
ESTADOS DO NORDESTE...............................................................145 (72,5%)
SÃO PAULO.......................................................................................42 (21%)
MINAS GERAIS..................................................................................7 (3,5%)
PARANÁ.............................................................................................5 (2,5%)
MATO GROSSO.................................................................................1 (0,5%)
(AMOSTRAGEM)

A maioria dos moradores hoje já conta com a segurança da posse da terra


o que gera mais estabilidade e segurança, apesar de serem migrantes.

TEMPO DE MORADIA EM HELIÓPOLIS


05 A 10 ANOS....................................................................................69 (34,5%)
MAIS DE 10 ANOS.............................................................................68 (34%)
DE 01 A 05 ANOS...............................................................................52 (26%)
DE 0 A 01 ANO...................................................................................11 (5,5%)
(AMOSTRAGEM)

O acesso apenas a trabalhos de baixa remuneração é consequência,


dentre outros fatores, do baixo grau de escolaridade.

GRAU DE ESCOLARIDADE
Nunca foi a escola.................................................................................26 (13%)
Primário incompleto...............................................................................70 (35%)
Quinta a oitava incompletas...................................................................75 (37,5%)
Primeiro grau completo...........................................................................9 (4,5%)
Segundo grau completo..........................................................................20 (10%)
(AMOSTRAGEM)
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A grande maioria dos entrevistados não completou o primeiro grau 72,5%.


A área é considerada pelos de fora e pelos de dentro como favela, pois
mesmo aonde já está urbanizada, não se tem escritura da terra (possui um
cadastro); os barracos dos miolos de quadra, barrancos e beiras do rio, e os
becos dão ainda uma estética de favela. Estão integrados com as construções
de alvenaria e rua.
Enfim, pode-se definir este segmento social como: os trabalhadores
pobres migrantes-nordestinos-favelados de Heliópolis.
O contexto político nacional marcado pela resistência organizada à
ditadura militar, na segunda metade da década de 70, por meio do sindicalismo
combativo, pastorais populares, CEBs, movimento contra a carestia e defesa dos
direitos humanos, entre outros, influiu diretamente sobre o movimento popular
que se desenvolveu na área. Tanto foi assim, que várias lideranças estavam
presentes na fundação do partido dos trabalhadores em 1980.
A partir de 1978, sob a assessoria direta da pastoral de favelas da região
episcopal Ipiranga da arquidiocese de S. Paulo, inicia-se o primeiro movimento
para reivindicar do poder público: água, luz e coleta de lixo, através da
organização de uma comissão representativa da população. Na parte de baixo
da favela (Heliópolis-Sacomã) a Sociedade Amigos estava sob a direção de
lideranças ligadas ao clientelismo de direita. E mesmo no restante da área
haviam lideranças ligadas ao regime com certo poder de mobilização.
De 1978 a 1984, o movimento organizado se amplia, ganha experiência,
porém, após a resolução do problema da água e luz, nota-se certa acomodação
da população (já que os problemas mais imediatos foram resolvidos). Não ocorre
a remoção de 660 famílias na área do Sacomã prevista para a construção do
trevo viário em 1980. O projeto de implantação da “Vila de Habitação Heliópolis”
pela coordenação de desfavelamento da Prefeitura não chegou a se concretizar,
nem em 1980, nem posteriormente. Muitas lideranças viam o movimento como
instrumento para resolver apenas problemas locais e imediatos. Já a partir de
1982, vários dirigentes se engajam nas campanhas eleitorais apoiando
candidatos do PT, disputando votos com lideranças do PMDB e PDS na época.
Conjuntamente com a assessoria da pastoral de favelas, que depois
passará a ser pastoral da Moradia, estará a assessoria, principalmente jurídica
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e política, do CEATS (Centro de Estudos e Apoio a Trabalhos Sociais). O Vínculo


com a pastoral da moradia e paróquias da região é tão intenso que pode-se
caracterizar essa luta como um movimento popular sob a direção desses setores
da igreja católica. Tentando unificar a área em torno de uma única organização
se cria a UNAS (União dos Núcleos, Associações e Sociedade de Heliópolis/S.
João Clímaco), fundada em 1986. Nessa época se ganha da direita a Sociedade
Amigos de Heliópolis (parte baixa da favela) e com ela o movimento passa a
administrar um convênio com a prefeitura (Secretaria de Bem Estar Social da
Prefeitura de S. Paulo) de três salas de CJs (Centros de Juventude), para
atendimento a crianças e adolescentes. Os convênios se ampliaram na gestão
Luísa Erudina (1989-1992).
A custa de muita pressão para serem recebidos para negociar, os
representantes da área, em 1988, avançam na discussão do Projeto
Habitacional Heliópolis, conquistando a construção de moradias para
desadensamento em áreas desabitadas da favela, abertura e alinhamento de
vielas, colocação de guias e sargetas. No geral, o processo continuará avançado
na sua implantação de maneira lenta.
A UNAS hoje, em termos de representação, tem a hegemonia absoluta da
área. A organização está dividida em 13 núcleos (sub-áreas geográficas dentro
da favela), cada qual com diretorias, comissões ou lideranças-referência.
Chegou a manter cinco convênios com a prefeitura (alfabetização de adultos –
MOVA/SP; trabalhos com crianças de três a cinco anos – CLASSES
COMUNITÁRIAS; urbanização em mutirão; construção de moradias em
mutirão). Um convênio tripartite UNAS-PREFEITURA-MLAL (Movimento Leigo
para a América Latina)1para trabalhos de educação com adolescentes, saúde e
comunicação popular foi estabelecido e rompido em 1993. Já passou pela
experiência de um convenio de creche (creches azulão) com o governo estadual,
encerrado em 1991. Possui duas rádios populares (sistema de alto falantes
fixos), acompanha os trabalhos de assistência social desenvolvidos pela
prefeitura na área, participa do conselho de saúde do posto de atendimento
médico municipal da área. Somam a isto os problemas com moradias em áreas
de risco (barrancos e córregos) que explodem principalmente em época de
chuvas; despejos decretados pela justiça, como o último ocorrido na área do
Sacomã em março de 1992, onde 83 casas e barracos foram retirados; e a
16

resistência à desocupação de 500 famílias no terreno do “Moto-cross” em


dezembro de 1993; e negociação de remoções de áreas do Metrô, que utilizará
o “Núcleo do Imperador” para pátio de obras. Mantém em funcionamento sete
pontos de venda de pão e leite, um mercadinho e está instalado uma padaria
industrial, com o objetivo de alcançar a auto-sustentação. Possui uma sede
administrativa equipada inclusive com o computador. Além dessas atividades
internas os dirigentes da área estão presentes na Coordenação Nacional de
Movimentos de Moradia, Central de Movimentos Populares estadual e nacional,
União de Movimentos de Moradia de S. Paulo, coordenação dos movimentos de
moradia da região sudeste de S. Paulo, conselho deliberativo zonal do PT
municipal, gabinete do vereador José Mentor e tendência opção de esquerda do
PT. Um dos grandes desafios para o movimento popular da área (que já não é
apenas um movimento de moradia – apesar desta questão ser ainda o eixo
básico) é o gerenciamento e organização dessa estrutura e racionalização das
atividades dos militantes.
17

PARTE II

3 A PESQUISA-AÇÃO

Para desenvolver essa parte é necessário tomar explícitos alguns


pressupostos teóricos que embasam a metodologia da pesquisa, para em
seguida detalhar a configuração e o desenvolvimento da pesquisa-ação
realizada na área.

3.1 PRINCÍPIOS ANTROPOEPISTEMOLÓGICOS

A realidade é um todo em contradição e movimento, em harmonia e


permanência, é universalidade e particularidades distintas.
Os seres humanos são corpos conscientes e a consciência existe como
consciência intencionada e compreensiva com caráter ativo, indagador e
sentimental, com capacidade de refazer o saber existente e compreender o não
conhecido. O ser humano é distinção: as pessoas, grupos, sociedades e culturas
têm intensidades próprias (Identidade: conjunto de papéis sociais que se
exercem, valores e história), e a capacidade de aproximar-se da realidade e ao
mesmo tempo tomar distância dela e de si mesmo. Somente o homem pode
distanciar-se do objeto para admirá-lo. Ele é capaz de decidir, optar, valorar.
Objetivando, valorando e sentindo os homens são capazes de agir
conscientemente sobre a realidade objetiva, em especial sobre o mundo humano
(produto da ação do próprio homem). A ação consciente supõe a compreensão
(entender e sentir) dos interesses contraditórios subjacentes presentes na
realidade (FREIRE, P., 1983a: 39, 43, 83, 92, 103/ FREIRE, P., 1983:
25/DUSSEL, E., 1982b: 88)
18

“Explicitar esta compreensão não conduz de maneira alguma a encontrar


as noções abstratas cuja combinação poderia restituí-la no saber
conceitual, mas reproduzir por si mesma o movimento dialético que parte
dos dados recebidos e se eleva à atividade significante. Esta
compreensão que não se distingue da práxis é ao mesmo tempo a
existência imediata (já que ela se produz como o movimento da ação) e o
fundamento de um conhecimento indireto da existência (já que
compreende a existência do outro). (SARTRE, J. P., 1973: 194)

E fundar o saber sobre o não-saber racional e compreensivo.


Compreender-se, compreender o outro, existir, agir: um só e mesmo movimento
que funda o conhecimento conceitual sobre o conhecimento compreensivo, sem
deixar o concreto, a história. (SARTRE, J. P., 1973: 194)

“Esta perpétua dissolução da intelecção na compreensão e, inversamente,


este perpétuo redescender que introduz a compreensão na intelecção
como dimensão de não-saber racional no seio do saber, são a
ambiguidade mesma de uma disciplina na qual o interrogador, a
interrogação e o interrogado se identificam”. (SARTRE, J. P., 1973: 194)

O homem necessita de um modo imaginário (que se forma nas


relações sociais) para descobrir os traços do mundo real que supõe
habitar. (FEYERBAND, Paul, 1977: 43)
O conhecimento não é uma série de teorias coerentes, a convergir
para uma doutrina ideal, não é um gradual aproximar-se da verdade. É
antes de um oceano de alternativas incomensuráveis, e às vezes,
incompatíveis, onde cada teoria singular, cada conto de fadas, cada mito
que faça parte do todo força as demais partes a manterem articulação
maior, fazendo com que todas concorram para a construção da
consciência. (FEYERBAND, Paul, 1977: 41)
É isto a práxis humana, unidade indissolúvel entre as ações e
conhecimento sobre o mundo. O conhecimento não se reduz a reflexão
mediata pelos conceitos, ideias e lógica racionais, envolve também uma
dimensão de emoção, sentimento, paixão. O homem apreende o real
através de formas simbólicas (representações, signos, esquemas de
pensamento). As representações simbólicas têm sua gênese na vivência
social, ao mesmo tempo que condicionam a percepção, ideias,
sentimentos e ações enquanto se materializam em uma imagem, som
toque. Os sistemas simbólicos são veículos de poder e de política, pois
sua temática refere-se à ordem estabelecida. (BOURDIEU, P., 1974: 27-
19

28) Na verdade tem uma ordem prefigurada a qual se coloca na natureza


o mundo humano, esta maneira de olhar antecipadamente faz parte da
consciência humana. (SANTANA, J., 1991: 02)
O nível das relações simbólicas não possui uma única lógica, pois
os signos podem ser ordenados num sistema racional (domínio de
ideias) ou num conjunto de significações que carregam afetos, desejos,
utopias. Um signo pode normalmente ter seu significado restringido e/ou
tomado consciente, como pode trazer significações não conscientes e
impossíveis de serem reduzidas a significações racionais de sentidos
estritos. Pode-se dizer que as relações simbólicas possuem lógicas
próprias que sempre excedem às interpretações mediadas pela lógica
das categorias científicas. A práxis não é somente ação-reflexão
racional, mas sim ação-consciência. Porém é a reflexão racional a marca
da cientificidade, por isso é preciso privilegiar a racionalidade quando se
trata da consciência que sabe. Somente o ser humano é ser da práxis
que é fonte de transformação e criação.
O homem deve ser sujeito da história e não objeto, transformar o
mundo, expressá-lo e expressar-se são próprio dos seres humanos.
(FREIRE, P., 1983a: 108) Porém ao criar o mundo os homens são
também por ele condicionados. O homem chegar a ser sujeito por uma
práxis de luta coletiva e organizada para a construção de sua
humanidade destruída nas relações de poder. (FREIRE, P., 1983a: 105)
Cada homem está situado no tempo e no espaço. O homem é um
ser de raízes espaço-temporais (não é no vazio), é desafiado pela
realidade e a desafia; é desafiado pela dramaticidade de cada momento,
age superando os desafios e criando novas situações. Não está num
presente estático, nem num futuro pré-determinado. Esta situação
coloca a necessidade de uma consciência não absolutizada de mundo
que parta da concretude.
Um dos desafios humanos é ter consciência de sua ação e do
mundo, atuar em função das finalidades que se propõe, ao ter o ponto
de decisão em si e nas relações com o mundo, ao impregnar o mundo
com sua presença criadora coletiva pela transformação da realidade.
(FREIRE, P. A., 1983: 105)
20

A realidade social é uma obra coletiva, jamais acabada e sempre


a ser refeita. As configurações sociais estão em movimento.
(BALANDIER, G., 1976: 03)
A sociedade é um todo e, portanto constitui uma unidade, mas
sobre a consciência que se tem em relação ao poder político, econômico
e ideológico e seus valores éticos-estéticos. Pela análise dos
procedimentos expressivos e conjunto de atos sociais é possível definir
a posição político-simbólica desse sujeito social ”os populares”. A
compreensão do ser humano não se dá a partir apenas das
características individuais de cada um, pelo contrário, pressupõe a
compreensão das estruturas sociais que o condicionam. A vivência de
relações de dominação caracterizada pelas repressões e recalques
consequências criam humanos frustrado, que acabam por buscar o
prazer de viver dominado. O prazer é uma dimensão fundamental do ser
humano. Sem paixão, sentimento, prazer, gente não é gente. O resgate
dessa dimensão está diretamente ligado à alteração nas relações de
poder. A alteração nas relações de poder supõe confronto, a ruptura no
interior de uma sociedade, o que pode ser denominado de “revolução”,
em sentido amplo. Existe uma correspondência entre estruturas de
poder e estruturas mentais que se estabelece por meio de sistemas
simbólicos. Porém a relação entre revolução política e revolução
simbólica não é simétrica.
Em base a esses princípios antropoepistemológicos, a pesquisa
teórica propriamente dita se voltou mais a buscar uma compreensão
ampla das condições e elementos que influem na construção mental da
religiosidade popular do que para uma descrição de crenças e práticas
religiosas dos trabalhadores de Heliólopolis. Assim se buscou um
método que partiu da compreensão do estrutural e do particular.

3.2 A CONFIGURAÇÃO DA PESQUISA-AÇÃO

A partir dos pressupostos colocados se trata de conceber a investigação


científica, como pesquisa-ação, um ato de produção de conhecimento voltado
21

para o aprimoramento da ação coletiva de libertação do grupo, classe ou


categoria na qual está inserido.

“É uma pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada


em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um
problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes
representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo
cooperativo ou participativo.” (THIOLLENT, M., 1981: 14)

A pesquisa-ação envolve três aspectos: a produção de conhecimento, a


tomada de consciência e o desenvolvimento de ações. (THIOLLENT, M., 1981:
19)
Não há investigação fora das sociedades humanas, portanto, o processo
de pesquisa deve partir da historicidade dos homens, negando a possibilidade
de um ser humano abstrato, desligado do mundo e de uma ação transformadora
desta, segundo os interesses dos grupos, classes ou categorias envolvidas.
Assim pesquisar é uma atitude frente ao mundo. No caso específico deste
trabalho uma atitude frente à cultura religiosa. O ato de pesquisar por ser uma
aprendizagem da realidade, se funda na criatividade na unidade teoria-ação,
demanda humildade e pressupõe uma opção política pelas classes exploradas.
(FREIRE, P., 1983a: 67, 77, 79, 81-83/ FREIRE, P., 1983b: 35) Busca-se
descobrir os interesses ocultos que encobrem a realidade.
A concepção e uso da pesquisa-ação, está voltada para uma orientação
de emancipação de grupos sociais comprometidos com as classes populares ou
dominadas. Valores como compromisso com as causas populares, prática de
democracia a nível local, busca de autonomia e negação da dominação são
subjacentes à pesquisa-ação. Na medida em que a pesquisa demonstra as
condições para a elaboração de propostas de ação transformadora ela é
pesquisa-ação. A atividade de pesquisa culmina na geração de alternativas de
ação numa perspectiva de mudança social. Ela tem assim o papel de auxiliar a
população a identificar seus problemas (suas necessidades fundamentais), a
realizar a análise crítica destes, a buscar soluções adequadas. (BRANDÃO, C.
R., 1991: 51) Ela concentra suas preocupações em torno da relação entre
investigação e ação dentro da situação considerada (BRANDÃO, C. R., 1985: 83
e 170), num processo permanente de interação entre reflexão e prática diária.
(BRANDÃO, C. R., 1985: 84 a 151)
22

O objetivo da investigação é evidenciar condicionamentos sociais através


da coleta de informações originais acerca da situação em movimento,
concretização de conhecimentos teóricos e produção de novos conhecimentos
a partir das realidades concretas. (THIOLLENT, M., 1981: 15 e 41) Criando-se
condições teóricas para que a organização análise a situação e planeje ações
para a concretização dos objetivos. O objeto da investigação é a situação social
e os diferentes problemas encontrados nessa situação. (THIOLLENT, M., 1981:
16) Trata-se de buscar solucionar problemas e desenvolver a consciência da
coletividade nos planos político-problemas e respeito dos problemas que
enfrenta. O objetivo é tomar explícita a natureza e a complexidade dos
conhecimentos considerados. (THIOLLENT, M., 1981: 18) Visa-se obter
informações e conhecimentos selecionados em função de uma determinada
ação de caráter social. (THIOLLENT, M., 1981: 38)
O objeto cognoscível se define a partir da própria ação transformadora e
é mediador da cognoscibilidade de sujeitos conhecedores. A compreensão
coletiva da realidade para a transformação da correlação de forças no meio
social é o grande objetivo. Na própria ação de compreender a realidade, surgem
os desafios como problemas em conexão com outros, num plano de totalidade.
O objeto de pesquisa assume características de uma anterioridade não
compreendida na ordem da constituição do mundo, parte do mundo real, mas ao
mesmo tempo “exterior” enquanto desconhecido, mais especificamente no
campo das ciências sociais se trata de um objeto vivo, mutante, condicionado,
livre, imprevisível. Essa liberdade real do outro que pode ser compreendido, mas
jamais “petrificado” em explicações rígidas coloca a pesquisa social como uma
relação entre os sujeitos, já que os próprios objetos sociais são sujeitos. Ainda
mais, o pesquisador ao compreender esses sujeitos sociais e, portanto, o meio
em que vivem, passa a se compreender mais. Nessa perspectiva o pesquisador
interage, se deixa penetrar pelos pesquisados, se compromete com eles, sente,
se transforma com eles à medida que este sujeito coletivo intervém e transforma
a realidade da dada. Busca-se assim a superação da distância tradicional entre
sujeito e objeto.
O objeto de investigação se materializa na definição do tema e da
problemática de pesquisa.
23

É preciso questionar a relevância científico-prática do que está sendo


colocado – uma ação que precise e mereça investigação para ser elaborada e
conduzida. (THIOLLENT, M., 1981: 15 e 54)
Vale observar que os conhecimentos adquiridos tem caraterísticas
informais e são obtidos ou produzidos em situação comunicativa e muitas vezes,
deliberativa.
O que fazer da pesquisa envolverá discussões das ações como tal e de
conhecimentos. Um equilíbrio e ligação entre as duas ordens de preocupações
devem ser mantidos. (THIOLLENT, M., 1981: 18)
A pesquisa-ação deve ser inserida e não apenas “baseada” na
organização popular. (THIOLLENT, M., 1981: 15 e 175)
É exatamente a questão da inserção uma das condições que fornecerá
os parâmetros para a definição dos papéis diferenciados dos sujeitos envolvidos
na pesquisa e o grau, a forma e os momentos de participação da mesma.
A inserção implica num envolvimento com aqueles que estão sendo
investigados, em alguns casos exige um comprometimento entre o pesquisador
e os pesquisados. (BRANDÃO, C. R., 1985: 08)
Esta inserção do investigador não tem modelo e metodologia pré-
determinados, pois ela se dá em organizações concretas, históricas, cada qual
com projetos políticos, com estruturas diretivas, com a infra-estruturas próprias:
organizações em contextos de correlação de forças sociais variados. A análise
de conjuntura do contexto geral, local e do movimento e das condições vividas
pelo pesquisador é que fornecerá o modo como se dará a inserção deste. Porém
alguns princípios o orientam neste processo:
- Compartir aproximadamente com pessoas reais momentos redutores de
distância do outro no interior no seu cotidiano; essa relação apaixonada e
apaixonadamente não se faz por mera opção metodológica, não pode ser
programada como um procedimento pré-determinado de pesquisa, pois é um
estado afetivo que envolve “fé” nas pessoas, confiança, empatia, elementos que
fogem ao controle estrito da racionalidade científica com sua linguagem e
maneira de ver o mundo precisa, rigorosa e rígida; não se trata de uma paixão
“romântica”, idealizada, mas permeada também de frustações, decepções,
raivas, desânimos... é uma tensão em conflito;
24

- Essa proximidade do homem coletivo, condicionado, distinto, criativo,


aberto, alienado, etc., é sempre um risco, pois implica em revelar-se a alguém
que se revela, é confrontar-se com alguém, é colocar os a-prioris em “xeque” e
construir novas “verdades”. A proximidade é histórica e originária: nascemos de
alguém e numa cultura compartida, os homens são-num-povo-historicamente. O
ser humano se vê numa totalidade simbólica estabelecida, pois isso não há um
conhecimento mútuo entre pesquisador e pesquisandos só por palavras. Nessa
imediatez desse estar “perante o outro”, há uma exposição da pessoa, mesmo
que nem sempre interpretada consciente ou entendida corretamente, exposição
nem sempre total, seja por defesa do eu, seja por falta de confiança ou
consciência de si. Essa redução da distância, esse aproximar-se implica
necessariamente numa atitude ética de respeito ao outro, acolhida e revelação
entre sujeitos. Por exemplo: nosso povo é muito afetivo, não se pode criar um
clima de calor humano por mera estratégia de aproximação ou tática de
autoafirmação. (DUSSEL, E., 1982: 23-27 e 35)
- A inserção implica num compromisso político da organização. É um
mergulho no outro coletivo que implica numa ação politicamente participativa,
num engajamento nos projetos de luta. (BRANDÃO, C. R., 1985: 12)
- Visão da sociedade em sua complexidade e concretude e clareza sobre
as instâncias de direção existentes (suas disputas de poder, competências,
dinamicidade, bandeira de luta, limites da organização na qual se está inserido);
- Ter confiança nas massas populares, no seu poder criador. Confiança
que leva a assumir a liberdade do outro-oprimido como uma maneira de ser do
homem e a comungar com o povo em sua vida. Comunhão que se concretiza na
convivência com ele, em sua vida. Comunhão que se concretiza na convivência
com ele, em sentir-se tão homem quanto o outro oprimido. Não é se hospedar
nos oprimidos, mas encontro humilde, amoroso, crítico e corajoso, sabendo-se
com eles, somente a um modo diferente de percepção da realidade. (FREIRE,
P., 1983a: 52, 96, 148, 150, 203/ FREIRE, P., 1986: 50, 51 e 80)

“Ao mesmo tempo a inserção incorpora o investigador aos grupos


populares, não mais de acordo com a antiga relação exploradora de
“sujeito e objeto” mas valorizando a parcela de contribuição dos grupos
quanto a informação e interpretação, bem como seu direito ao uso de
dados e de outros elementos adquiridos na investigação.” (BRANDÃO, C.
R., 1985: 138)
25

É o modo diferente de percepção da realidade, resultado principalmente


da diferença de acúmulo teórico e especialização que determinará a divisão
social do trabalho de pesquisa entre o pesquisador e pesquisandos.
Essa incorporação não significa uniformização de investigador-dirigentes-
lideranças-agentes-povo, ao contrário, se mantém a diferenciação de papeis na
consecução de um projeto de trabalho (pesquisa) inserido numa organização. A
pesquisa-ação supõe a manutenção de papéis diferenciados, seja pela
disponibilidade dos agentes. O que garante a produção coletiva, consciente é
uma relação dialógica entre “atores” envolvidos na qual se criem e recriem
permanentemente conhecidos e onde, na medida do possível, todos tenham
uma visão do processo como um todo (mesmo tendo cada um tarefas
específicas).
A participação do pesquisador se elucida dentro da situação de
investigação, sempre se garantindo reciprocidade por parte das pessoas ou
grupos envolvidos na situação. (THIOLLENT, M., 1981: 16)
A participação se dá de forma diferenciada. É essencial que os vários
sujeitos envolvidos no processo tenham uma visão do todo (encaminhamentos,
dados, conclusões), para isso é preciso criar momentos de discussão para a
definição de pontos referentes à temática, avaliação e continuidade do trabalho.
A configuração da pesquisa-ação é variável de acordo com o contexto de
aplicação; participação não elimina o poder, mas busca uma alternativa
democrática para ele. Generalizar a participação em termos de população
oprimida ou mesmo grupos populares, sem levar em conta as relações de poder
existentes nas organizações populares é escamotear que o saber produzido pela
pesquisa é apropriado de forma diferenciada e que gera poder para pessoas,
grupos e organizações no interior no meio no qual o projeto está inserido.

“O aspecto participativo dos procedimentos é igualmente objeto de


controle, pois o discurso da participação não é igualmente objeto de
controle, pois o discurso da participação não é suficiente, por si só, para
assegurar a ausência de manipulações e de escamoteamentos das
relações de poder subjacentes.” (THIOLLENT, M., 1981: 45)

Neste ponto está uma das discussões clássicas da história da


esquerda: a relação dirigente-massas populares. Essa perspectiva de
26

pesquisa-ação orienta-se para a construção de uma relação dialógica


entre direção-povo que assuma a radicalidade democrática, na qual o
agente transformador é sujeito da ação libertadora com os oprimidos
(atores em intercomunicação), o que significa ligação orgânica entre
ambos, mediados pela realidade sobre a qual agem. (FREIRE, P.,
1983a: 127-128/ FREIRE, P., 1986: 179-180) A liderança não é
proprietária das massas por mais importante que seja o seu papel, ao
contrário, o caráter da relação de ambos, deve ser de colaboração com
níveis distintos de responsabilidade. (FREIRE, P., 1983a: 127) Não se
trata de criar mitos para substituir os da elite.
O investigador vive uma situação dual: é direção do projeto de
pesquisa (no sentido que a ele cabe coordenar um trabalho coletivo de
produção de conhecimento) e de apoio/participante das outras
instâncias da organização na qual está inserido. O pesquisador deve
gerar condições para os participantes organizarem e efetivarem suas
ações, mas jamais assumir o papel de direção da organização, é uma
atuação de “clareador” ou “subsidiador” e não de quem fecha um
“pacote” de planos de ação para impô-las ou propô-las aos grupos.
Cabe analisar os momentos onde pode se dar a participação
coletiva:
- definição do tema, problemática e universo de pesquisa;
- colaboração na coleta de dados;
- avaliação do processo como um todo e levantamento de novos
desafios. (BRANDÃO, C. R., 1985: 170)
A produção do saber está desde a discussão da problemática da
pesquisa até a definição das ações.
Na situação concreta desta pesquisa alguns agentes estão
presentes já de antemão: pesquisador, equipe de agentes da área
pastoral, população-alvo, lideranças do movimento popular.
Ao pesquisador cabe a tarefa de empreender o processo de
pesquisa propiciando uma ligação permanente entre a pesquisa e a
organização (situação dialógica), introduzindo novas informações ou
onde procura-las, garantido a organicidade do processo, juntando os
“fios” num todo durante as discussões, montando institucional e
27

metodologicamente a pesquisa-ação, sistematizando os debates e


dados coletados, redigindo os textos conclusivos, sugerindo diretrizes de
ação.
O pesquisador tem o papel de definir os objetivos da pesquisa a
partir das resoluções de ação da organização; colocar à disposição dos
participantes os conhecimentos de ordem teórica ou prática para facilitar
a discussão dos problemas, elaborar as atas das reuniões, registros de
informações coletadas, relatórios de síntese e sistematização das
discussões. (THIOLLENT, M., 1985: 59)
Algumas observações práticas:
- Um tema que não interessa ao pesquisador não será levado a
sério ele não desempenhará um papel eficiente;
- o tema e as questões práticas devem ser resultado de decisões
em conjunto com os participantes;
- o pesquisador deve elucidar a natureza e as dimensões da
problemática designada pelo tema;
- uma vez selecionados o tema e a problemática de pesquisa, o
pesquisador deve enquadrá-los num marco referencial mais amplo, de
natureza teórica que norteará a pesquisa para determinadas categorias
de dados; e definir a área de conhecimento em ciências sociais que vai
ser utilizada. (THIOLLENT, M., 1985: 52)
A coordenação da pastoral, as assembleias, lideranças do
movimento popular, decidem sobre as diretrizes gerais de análise e
ação. Assim suas intervenções se colocam no campo das diretrizes de
ação e não nas questões metodológicas de pesquisa como tal.
A população-alvo participa enquanto fornecedora de informações,
se não estiver engajada em instância da organização, ou receberá um
retorno mínimo em forma de boletim ou similar e/ou visitas ou reunião
geral entre eles, se possível.
Em suma, a pesquisa-ação se desenvolve numa organização
popular, estando voltada para a população organizada. Mesmo quando
atinge a população “não-organizada” é no intuito de incorporá-lo às
organizações populares.
28

Quanto ao desenvolvimento da pesquisa, a partir da temática


geral definida pela organização o pesquisador desenvolve a pesquisa
teórica e de campo – tendo esta o acompanhamento de agentes da
coordenação pastoral. Concluída esse fase se dá o retorno à
organização em forma de seminários e entrega de exemplares da
pesquisa, para que se aproprie do conhecimento produzido e, a partir
dele, defina planos de ações.
A dissertação final de consciência pela organização e
desenvolvimento de ações.

3.3 A ORGANIZAÇÃO CO-PRODUTORA DA PESQUISA

A organização co-produtora é a coordenação das CEBs


Heliópolis, uma rearticulação da Pastoral na área, iniciada em 1991. À
frente serão fornecidos maiores detalhes sobre as CEBs na área, é
importante descrever brevemente suas características, situá-las na
história e conjuntura das CEBs a nível nacional e latino-americano.

3.3.1 As Características das CEBs

As comunidades eclesiais de base são pequenos grupos


organizados em torno da paróquia ou capela, por iniciativa de leigos,
religiosas, seminaristas, padres e bispos. Podem estar distribuídas em
pequenos grupos ou se reunir periodicamente num único grupo maior.
Os membros das CEBs, em geral, pertencem às classes populares e se
reúnem em torno da motivação religiosa e para melhor as condições de
vida. Quer-se unir fé e política. A partir da reflexão sobre os problemas
do bairro, da família e do trabalho, as CEBs foram fundamentais para a
organização de movimentos populares. A palavra libertação sobressai
nas celebrações e discussões.
As CEBs se orientam pelo método ver-julgar-agir. As reuniões
mesclam orações, cânticos e discussão de problemas e dificuldades.
Utiliza-se o texto bíblico para a emersão da consciência crítica, a partir
de interpretações à luz da teologia da libertação. A missa ou o culto é o
29

centro da vida das CEBs. Os sacramentos assumem papel


preponderante. Tenta-se recriar as liturgias à luz da cultura popular. Os
cânticos falam de libertação e a questão da participação é colocada
como um ponto essencial.
Os animadores das CEBs são chamados agentes de pastoral.
Geralmente os grupos têm um coordenador e vários agentes com áreas
de atuação específica (pastoral da saúde, catequistas, equipes de
liturgia, etc.). A direção geral, normalmente, é exercida por padres ou
freiras. Um dos objetivos permanentes é a formação de lideranças de
base a partir da prática e de encontros de formação e retiros entre
agentes de pastoral.

3.3.2 As CEBs a Nível Nacional

Já se falava em CEBs no “Plano de Emergência e Pastoral de


Conjunto” da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), de
1961. Na metade da década de 60, já se podia contar com experiências
comunitárias que procuravam descentralizar o esquema paroquial e
ampliar as responsabilidades dos leigos. Essas experiências eram feitas
num ambiente de renovação da liturgia e da catequese, com acento na
leitura da bíblia. Em 1964 e 1968 nasceram as CEBs como se conhece
hoje. Esta forma de catolicismo, do qual a Teologia da Libertação é a
manifestação erudita, é ligada social e politicamente com os setores
populares organizados. Não seria exagero dizer que a “Igreja da
Libertação” nasce dos pobres que se organizam nas CEBs e Pastorais
populares. Um grande impulso às CEBs foi dado pela Segunda
Conferência do Episcopado Latino-Americano de Medellín, em 1968.
Seu documento apresentou a opção pelos pobres e as comunidades de
base como duas linhas fundamentais de ação eclesial. Se de um lado,
Medellín quis “defender. O segundo o mandato evangélico, os direitos
dos pobres e oprimidos”, de outro lado, os bispos presentes se
posicionaram em favor do desdobramento de todos os meios para
“alentar e favorecer todos os esforços do povo para criar e desenvolver
suas próprias organizações de base, pela reinvindicação e concolidação
30

de seus direitos e busca de uma verdadeira justiça”. Acoplado a esses


objetivos estava o de garantir a hegemonia da Igreja Católica no
mercado religioso da América Latina. Depois de Medellín, a expansão
das CEBs não conheceu fronteiras. A III Conferência do Episcopado
Latino-Americano, reunida em Puebla, em 1979, incentivou-as
novamente. Em diversos países e, em especial, no Brasil, elas
manifestaram um desenvolvimento florescente. Inclusive realizando-se
diversos encontros nacionais (os chamados intereclesiais).
A IV Conferência do Episcopado Latino-Americana de S.
Domingo, em 1992, voltou a referendar as CEBs, apesar das forças
conservadoras colocarem várias restrições ao seu desenvolvimento.
A “Restauração conservadora” que vem caracterizando o
pontificado de João Paulo II torna explícita uma tensão eclesial que já se
perceba desde a Conferência Episcopal de Medellín, em 1968: setores
católicos vinculados às forças populares estão gestando uma mediação
institucional que nem sempre se afirma com a institucionalidade romana,
e esta não quer perder seu domínio sobre a comunidade católica latino-
americana. Assiste-se hoje uma crise crescente dos bispos. Está
desmoronando a doutrina conciliar sobre a Colegialidade Episcopal e os
bispos vêem esvaziar-se seu poder diante do centralismo romano, que
transformou o papa numa espécie de único bispo universal. Na era da
comunicação instantânea e das viagens internacionais, o papa se faz
presente no mundo inteiro e é capaz de interferir em qualquer diocese
do mundo imediatamente após uma ocorrência que lhe desagrade. Hoje,
os bispos estão sendo levados ao alinhamento pastoral compulsório.
Fazendo o balanço das forças em confronto é evidente a disparidade
entre a igreja romana e a “Igreja da Libertação”; Embora o Concílio
Vaticano II e a luta em defesa dos direitos humanos e dos pobres tenham
conferido à “Igreja da Libertação” uma grande legitimidade, não é grande
sua rede de CEBs e pastorais, nem o número de seus bispos e agentes
da pastoral. As CEBs não tem conseguido conquistar as “massas
católicas”. Sua pastoral vem marcada pela rejeição ao catolicismo
popular, tendo dificuldades em assimilar as devoções aos santos e em
desvelar a significação libertadora nas práticas religiosas tradicionais.
31

Além disso, exigindo que os católicos de prática eventual se submetam


às suas exigências para a recepção dos sacramentos, ela se distancia
do “povão católico”. Neste contexto, o futuro das CEBs é problemático.
É certo que elas já são uma forma católica de ser igreja, no entanto está
indefinido seu lugar na estrutura eclesiástica. Se elas conseguirem a
adesão de grandes “massas” de católicos possivelmente resistirão à
restauração conservadora, do contrário terminarão se dissolvendo
dentro da antiga estrutura paroquial.
Muito se questiona sobre o potencial transformador político das
CEBs. Após quase 30 anos de desenvolvimento desse tipo de
organização religiosa, percebe-se entre os agentes mais engajados nas
lutas populares (sindicatos, movimentos populares, partidos populares)
certa incredulidade frente à “lentidão” das CEBs em relação às outras
esferas organizativas populares. Como articular linguagem de fá com a
linguagem da análise social e da organização sindical e política? Como
articular o senso comum do cotidiano penetrado de elementos religiosos
com as exigências da consciência crítica requerida pela militância
organizada? (ASSMANN, H., 1986: 562 e 566) Com trabalhar o universo
cotidiano das motivações religiosas na construção da consciência
crítico-política? (ASSMANN, H., 1986: 562 e 566)
Um dos grandes desafios das CEBs é a articulação entre a
organização de uma sólida rede de pequenos grupos comunitários
religiosos com a mobilização religiosa massiva. Nesse sentido, a
pesquisa tem o objetivo de subsidiar a ação dos agentes comprometidos
com esta orientação, ao se estudar a religião popular. Porém fica a
pergunta: por que ampliar o trabalho de massa? Será por fins meramente
crítico-políticos? Não. A consolidação e ampliação da “Igreja da
libertação” não pode ser analisada apenas sob este prisma, levando-se
(S. João Clímaco, Santa Edwiges, Nossa Senhora Aparecida), a área
esteve desde início sob a ação da pastoral das favelas, depois pastoral
da moradia.

“No começo havia uma pastoral unificada e organizada em torno de quatro


paróquias. Santo Antônio (Vila Carioca), Santa Edwiges (Sacomã), S.
João Clímaco (S. João Clímaco) e Nossa Senhora Aparecida (Vila
32

Arapuã). Depois passou somente para as paróquias Santa Edwiges e Vila


Arapuã (Nossa Senhora Aparecida). Criou-se uma pastoral ligada a luta
política, com a entrada do Pe. Álvaro (Congreção dos Joselinos) na Santa
Edwiges rompeu-se o trabalho de conjunto. A pastoral da área passou a
estar ligada a região Ipiranga (animada pelo Pe. João Júlio e Pe. Sidnei)”.
(Intervenção de Miguel na Assembleia de pastoral do dia 22.02.1992)

A perspectiva e ação orientadas pela Teologia da Libertação canalizaram


praticamente todo o trabalho para a construção do movimento popular que era,
ao mesmo tempo, organização política e religiosa. Muitos dos momentos de
discussões políticas eram momentos de manifestações religiosas e vice-versa.
Esta identificação chegava a tal ponto que, em plenárias do movimento ou da
pastoral, se tiravam representantes para a assembleia arquidiocesana e
delegados para os encontros municipais, estaduais e nacionais de moradia.
Esse modelo entra em crise, de um lado, pela consolidação das instâncias locais
e gerais do movimento de moradia que assume o papel específico de discutir e
encaminhar projetos de luta nesse campo. Por outro lado , o avanço do neo-
conservadorismo em diversos segmentos da igreja católica tem acuado os
setores ligados à teologia da libertação; há estagnação de seu discurso
teológico-político, que não respondeu à nova conjuntura e portanto não
conseguiu definir na prática seu papel na relação com os movimentos populares
e partidos; há ausência de acúmulo teórico na questão dos ritos, símbolos,
celebração e catequese – campo especificamente religioso – a partir de
princípios de democracia, participação, justiça, ruptura, prazer, etc. Todos esses
elementos contribuam para uma certa perda de identidade da atuação pastoral.
A nível regional esse quadro é agravado por um “racha” dentro da pastoral entre
os agentes ligados a Vila Mariana – Heliópolis e as demais áreas de favelas-
cortiços, com base em divergências de concepções sobre pontos tais como
concepção de movimento popular, papel dos partidos, relação com
parlamentares, etc.
A partir de 1991, se inicia uma rearticulação da pastoral na área, se
organizando a ÁREA PASTORAL DE HELIÓLOPOLIS, com a presença de
agentes externos (padres seminaristas, leigos) e agentes internos ligados a
catequese, liturgia e grupo de jovens. Esta rearticulação tem se construído em
cima de atividades como essas, mais catequese, novenas (campanha da
fraternidade e natal) e grupo de jovens. Reiniciada por iniciativa do movimento e
33

acompanhada de perto por dirigentes do movimento, parece apontar para uma


relação próxima de apoio, porém com campos bem determinados de ação.
Porém, sem uma compreensão mais ampla e profunda da cultura religiosa dos
moradores da área, dificilmente a ação pastoral sairá dos grupos restritos para
uma ação que atinja uma amplitude maior de pessoas na área.
As CEBs de Heliópolis estão presentes em seis pontos da área:
Imperador, Heliópolis, Pam, Lagoa, Mina e Gaspar/Gaivota. Em cada uma
agentes leigos que exercem a liderança local. Acima da instância local está, a
assembleia de agentes que é anual e a coordenação que reúne mensalmente
os representantes da CEBs. Por se reunir esporadicamente e não ter clareza
sobre seu papel, a coordenação ainda é uma instância frágil. A direção dos
trabalhos está na mão de dois padres que atuam na área. Em última instância
são eles que decidem os rumos dos trabalhos. Quanto à assimilação do
conteúdo da pesquisa também são os padres que têm mais facilidade por
dominarem a linguagem acadêmica. Por isso, privilegiou-se-os no retorno da
pesquisa. Ou seja, o diálogo com as CEBs se deu por meio dos clérigos.

3.3.4 A assembleia de 22 de fevereiro de 1992

Pela importância decisiva que assumiu na área e pelo que representa,


para os objetivos da presente pesquisa, será analisada rapidamente a
Assembleia das Comunidades Eclesiais de Base de Heliópolis/S. João Clímaco,
realizada em 22.02.92 e a partir dela serão levantadas algumas observações
sobre as perspectivas de ação para 1992.
O centro das discussões da Assembleia fixou no enfrentamento entre a
ação da paróquia Santa Edwiges (catolicismo tradicional) e a pastoral da área
(teologia da libertação) no Sacomã – Heliópolis, parte baixa da favela. A partir
da discussão desse problema se levantaram as grandes questões que
orientaram as ações para 1992 na área:

“1 A DEFINIÇÃO DA PASTORAL EM HELIÓPOLIS DEPENDE DA


ESTRUTURA DA PASTORAL DA ÁREA. A favela é de todos ou de
ninguém? Confusão, conflito de linhas de pastorais e ausência de pastoral
de conjunto.
34

2 A QUESTÃO DA RELIGIOSIDADE DO POVO E O ATENDIMENTO DO


POVO. Muitas vezes n´s agentes não estamos interpretando a
religiosidade do povo. Os agentes não entendem as necessidades
religiosa do povo. O desafio é o relacionamento entre os agentes e o povo.

3 A QUESTÃO DOS ESPAÇOS FÍSICO-MATERIAIS PARA ALCANÇAR


AS METAS. O povo aqui tem ou não espaços? Não há espaços religiosos
suficientes na favela. O povo quer igrejas. O espaço dos centros
comunitários não são suficientes para atender o povo.” (ASSEMBLÉIA DE
22.02.92, 14)

O conflito vem se dando desde que o pároco da Paróquia Santa Edwiges


assumiu em 1989. Na época, a paróquia mantinha dois agentes liberados para
trabalhar em Heliópolis, porém estava submetidos à direção da sede episcopal.
Não conseguindo torna-los submissos à linha da paróquia deixou de mantê-los.
Em 1990, um convênio PADI (PROGRAMA DE ATENDIMENTO E
DESENVOLVIMENTO INFANTIL) entre prefeitura e uma entidade beneficente
na área foi encerrado e houve uma disputa acirrada entre a paróquia e a UNAS
para assumir o convênio. A UNAS assumiu. Os últimos fatos que se
desencadearam novos conflitos foram a compra de duas casas pela paróquia,
dentro da favela, para desenvolver trabalhos pastorais e assistenciais, sem
consultar a coordenação de pastoral da área. A região Episcopal, durante esse
período, tentou contornar a situação incentivando a pastoral da moradia a
ampliar seus trabalhos na área, submetida à direção da pastoral da região, e
permitindo que a paróquia também desenvolvesse de maneira autônoma seus
trabalhos na área (o Santuário é o segundo maior da região). Em 1991, iniciou-
se um trabalho de reorganização que para avançar depende de um trabalho de
conjunto e de uma ampliação do atendimento religioso do povo. É no sentido de
garantir uma pastoral de conjunto, através da definição da estrutura da pastoral
da área, que se apontaram as principais propostas levantadas na Assembleia:

“1 A criação da paróquia ambiental ou geográfica de Heliópolis ou da área


de pastoral autônoma.

2 A comissão de pastoral de Heliópolis administrará as casas de Sacomã


e Heliópolis compradas pelas paróquia Santa Edwiges.

3 Realização de miniassembleias nas comunidades.


Assuntos das miniassembleias
1 Criação da área pastoral autônoma ou paróquia ambiental
2 Encontros por áreas pastorais: liturgia, catequese, juventude, círculos
bíblicos.
3 Quadro de agentes e programação de atividades.” (RESOLUÇÕES DA
ASSEMBLÉIA 01 e 02)
35

Porém a ação cotidiana e básica da pastoral está nas celebrações: missas


e novenas. As missas foram as únicas atividades com calendário fechado para
o ano todo:

“PROGRAMA DE CELEBRAÇÕES:
PAM (Posto de atendimento médico) 1 DOM 10 Hrs
IMPERADOR 1 DOM 10 Hrs
HELIÓPOLIS TODO DOMINGO 10 Hrs
GAIVOTA/GASPAR proposta: revesar Heliópolis /
Sacomã ver proposta com eles
MINA2 3 DOM 15 Hrs
MINA1 3 DOM 10 Hrs
LAGOA 4 DOM 18 Hrs.”

(RESOLUÇÕES DA ASSEMBLÉIA DE AVALIAÇÃO E PLANEJAMENTO


DAS CEBs HELIÓPOLIS REALIZADA EM 22.02.92, p. 12)

A proposta das miniassembleias mostra uma organização


preocupada em envolver as bases na discussão, e responder a questão
da interpretação religiosa do povo e do atendimento do povo; busca ser
um canal de diálogo entre os agentes e os católicos da área. Porém, o
intuito de compreensão do imaginário religioso popular não está explícito
e não está no centro das preocupações das miniassembleias.
Percebe-se que o trabalho pastoral aponta para a construção de
uma igreja libertadora voltada eminentemente para a formação de uma
consciência crítico-política. Porém, que tipo de comunidade eclesial se
quer, como elas se organizam, que modo de relacionamento caracteriza
estas comunidades não se tem claro. O projeto da igreja local não está
claro. A questão da infra-estrutura material (templos, salas, etc.)
apareceu na Assembleia como uma questão fundamental para a
construção da pastoral. Em contatos informais se percebe certa
resistência por parte de alguns agentes externos (padres) em elaborar
em detalhes por escrito de um projeto eclesial, pois os agentes internos
não operam como instrumentos desse gênero, mais efeitos aos
intelectuais.
Diante do quadro de ações levantado pela Assembleia, aparece
como objetivo principal para a pastoral de Heliópolis a constituição de
36

uma pastoral de conjunto para a construção de comunidades eclesiais


no Heliópolis. Isto supõe:
- uma direção unificada da área;
- um projeto eclesial comum de referência que defina a concepção
e prática das comunidades que se quer;
- alocação de recursos humanos e materiais para viabilizar o
projeto.

As propostas de “miniassembleias”, a “comissão para ir conversar com o


bispo”, a proposta da “área de pastoral autônomo ou paróquia geográfica”, são
ações no intuito de unificação pastoral da área. Contudo, no que tange a
elaboração de um projeto eclesial a partir das bases, não se discutiu, nem se
definiu nenhuma ação. O conjunto das ações encaminhadas constituem
elementos de um projeto eclesial, que nesse momento estaria oculto, incompleto
e não-sistematizado.
Outras observações sobre a Assembleia:
- Os cantos em geral inspirados na teologia da libertação criticam as
injustiças sociais, incentivam e destacam as lutas dos oprimidos na América
Latina e a ação do “Deus Libertador” que age pelos pobres organizados, falam
da utopia de um novo mundo igualitário. Merecem destaque vários cantos que
tratam da paixão, afetividade, relação amorosa, masculinidade-feminilidade;
- a presença de lideranças da UNAS, principalmente através do seu
presidente, tornou presente da assembleia problemas como remoções e
despejos na região, porém a título de solicitar apoio, ou seja, a pastoral não é
vista como uma instância de deliberação de projetos de luta da moradia;
- a relação movimento popular / partidos / pastoral não é um problema real
ou é um problema oculto sobre o qual os agentes pouco se manifestarem; o
ponto não chegou nem sequer a gerar debate na assembleia. (ASSEMBLÉIA,
1992)
- o uso constante da nomenclatura núcleo (instância de organização do
movimento popular da área – UNAS), para designar as comunidades presentes,
mostra ainda uma identificação entre o movimento popular e movimento
religioso.
37

- a pouca participação de agentes na última reunião antes da Assembleia


(e primeira reunião de 1992), seja de agentes internos, seja de agentes externos;
- a improvisação quanto a reservar o local e encaminhamentos do dia;
- praticamente nenhuma decoração simbólica do local, a não ser um altar
no meio da roda de cadeiras que não chegou a ser usado, nem flores tinha sobre
ele;
- a falta de divulgação da Assembleia aos agentes da área, o que mostra
falta de comunicação;
- ausência de autoridades eclesiásticas ou animadores de pastoral da
moradia, representando a região episcopal.
A passagem de uma ação de pastorais específicas (favelas, depois
moradia) para a organização de CEBs coloca a perspectiva de um trabalho
religioso mais amplo, que abarque uma grande variedade de atividades
religiosas (novenas, missas, catequese, pastorais específicas, sacramentos,
etc.) e circunscreve a ação pastoral no contexto histórico das CEBs (tipo de
organização eclesial com um acúmulo histórico diferente das pastorais
específicas). As observações anteriores demonstram os rumos libertadores das
CEBs nos cânticos e na proximidade com o movimento popular, mas também
revelam que o processo de organização ainda estava numa fase inicial.

3.4 O DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

Para viabilizar um trabalho investigativo coproduzido, que respondesse


aos interesses de ação e projeto eclesial das CEBs Heliópolis e aos interesses
do pesquisador, se procedeu da seguinte forma:
1 Interpretação de interesses prioritários da equipe de agentes a partir da
assembleia do dia 22.02.92 e reunião do 15.0392, e proposição do público-alvo
pelo pesquisador ao grupo.
2 Coleta de depoimentos da população-alvo pelo pesquisador e
clareamento da problemática geral. Na coleta inicial de depoimento, para fins de
definição da problemática, os agentes de cada área acompanharam o
pesquisador.
3 Coleta de depoimentos da população-alvo pelo pesquisador e agentes
no intuito de:
38

- colocar os agentes em contato direto com a população-alvo em situação


de interação;
- verificar empiricamente através de alguns casos a orientação geral da
problemática da pesquisa, por meio da categorização das falas significativas
referentes à temática da pesquisa.
4 Apresentação do conteúdo da pesquisa e sugestão de diretrizes de ação
aos agentes (através de seminário) e aos padres através do fornecimento de
cópias da pesquisa e conversas em particular.

3.4.1 Análise Documental das Assembleias, Reuniões de Agentes e Outros


Documentos das CEBs

Para garantir que a pesquisa-ação esteja vinculada à organização faz-se


necessário um trabalho constante de registro das atividades da mesma e análise
do material documental por ela produzido ou repassado. Nesse sentido, a
organização de um arquivo documental referente a ação das CEBs na área
completa a participação do pesquisador nas atividades da organização.
A análise desse material das CEBs tem como objetivo prioritário garantir
o vínculo entre a pesquisa e as CEBs tem como objetivo prioritário garantir o
vínculo entre a pesquisa e as CEBs. Por exemplo: o Oitavo Encontro Nacional
de CEBs realizado em Santa Maria (RS), em julho de 92, apontou como grande
desafio das CEBs a questão do trabalho de massa, o que deslocou o enfoque
inicial de pesquisas da religiosidade popular da “articulação entre consciência
crítico-política e senso comum” para a “articulação entre a organização de
pequenos grupos comunitários religiosos com mobilização massiva”.

3.4.2 Pesquisa Bibliográfica

As fontes bibliográficas foram definidas a partir do tema geral da pesquisa


e enfoque metodológico do pesquisador. Em conjunto com os dados empíricos
com a organização formam o conjunto de fontes da pesquisa.
Observe-se, no entanto, que a pesquisa bibliográfica exerce um papel
prioritário no embasamento teórico da pesquisa, pois ela antecede a coleta de
dados e condiciona a interpretação dos mesmos, apesar destes apontarem para
novas leituras.
39

3.4.3 Coleta de Departamentos e Amostragem

Nos procedimentos a seguir expostos ocorreu a participação de agentes


da organização coprodutora, conforme previsto por essa configuração de
pesquisa-ação.

A. Coleta de Depoimentos

Foram coletados nove depoimentos. Eles ocorreram nas moradias, de


forma coloquial. O pesquisador já conhecia os depoentes. A situação foi sempre
de grupo de depoentes, pesquisador e agente de pastoral. Essa situação coletiva
só foi possível pela convivência já do pesquisador com essas pessoas e teve
como objetivo criar condições para emergir posturas de consenso e, ao mesmo
tempo, as divergências existentes entre os depoentes.

Diretrizes Gerais
A. História de vida – destacando-se os fatos relacionados a experiência
religiosa (símbolos), mitos, ritos cumpridos, experiências concretas, etc.
B. Visão da realidade social – garantia da posse da terra, processo de
urbanização.
C. Sentimentos e expectativas em relação ao sagrado.
D. Situações de depoimentos coletivos. Somente em uma delas havia um
entrevistado, nas demais foram visitas a grupos.
Combinou-se com os agentes de pastoral que se evitaria uma proposta
proselista.

Roteiro
1 Onde nasceu, de onde veio; como foi a infância; como era a vida
religiosa?
2 Quando chegou a favela? Como era? Como foi a luta?
3 O que acha de tantas religiões? Uma dúvida que tenha sobre religião.

B. Questionário
40

O questionário utilizado na amostragem direcionou-se no sentido de


levantar informações sobre a religião nas seguintes questões:
1. Identificação da população-alvo (sexo, origem, faixa etária, setor econômico
de trabalho, tempo de moradia em Heliópolis, grau de escolaridade).
2. Trânsito religioso.
3. Símbolos religiosos (gestos e objetos sagrados).
4. Participações em ritos de massa do catolicismo popular.
5. Postura afetiva em relação aos lugares religiosos.
6 Agente cooptador religioso.
7 Motivações da procura por experiências religiosas.
Os conhecimentos levantados sobre essa questão visavam subsidiar a
definição de diretrizes de ação das CEBs na área principalmente no que
concerne a articulação entre a organização de pequenos grupos comunitários e
trabalho de mobilização religiosa massiva.
Para garantir uma amostra representativa, dividiu-se a população-alvo por
área geográfica, sexo e faixa etária:
1 Lagoa / Pam
14 questionários para a juventude feminina.
14 questionários para a juventude masculina.
14 questionários para a adultos femininos.
14 questionários para a adultos masculinos.
06 questionários para idosos femininos.
06 questionários para idosos masculinos.

2 Praça D. Pedro / Mina (sentido S. João Clímaco)


14 questionários para a juventude feminina.
14 questionários para a juventude masculina.
14 questionários para a adultos femininos.
14 questionários para a adultos masculinos.
06 questionários para idosos femininos.
06 questionários para idosos masculinos.

3 Heliópolis / Portuguesa / Imperador (sentido Sacomã)


41

17 questionários para a juventude feminina.


17 questionários para a juventude masculina.
17 questionários para a adultos femininos.
17 questionários para a adultos masculinos.
08 questionários para idosos femininos.
08 questionários para idosos masculinos.

Foram aplicados apenas 20% de questionários a idosos, porque esta faixa


etária é minoria na área (em geral muitos idosos retornam ao nordeste quando
aposentados, vindo para cá apenas a passeio ou para tratamento de saúde).
Esta constatação foi confirmada pela dificuldade de encontrar idosos na rua no
domingo, no mutirão de coleta de entrevistas da rua.
Definido o questionário pelo pesquisador, esse foi apresentado e discutido
com dois grupos de PJMP (Pastoral de juventude do meio popular), no dia
15.08.92.
Ficou definido o mutirão de entrevistas para o dia 13.09.92.

E. Mutirão de Coleta

Foi desenvolvido no dia 13.09.92, a partir das 13 horas.


Participaram 14 agentes, com os seguintes encaminhamentos:
- foram distribuídos 10 questionários para cada entrevistador;
- cinco entrevistadores foram designados para entrevistadores foram
designados para entrevistar juventude (05 para homens e 05 mulheres), 05
entrevistadores para adultos e 04 para idosos;
- construíram-se três grupos por área geográfica: um se deslocou para a
parte inferior da favela (HELIÓPOLIS / PORTUGUESA / IMPERADOR), (PRAÇA
D. PEDRO / MINA); cada grupo foi composto por entrevistadores de juventude,
adultos e idosos;
- após duas horas de trabalho, se retornou ao ponto de partida para uma
breve avaliação dos trabalhos. Nem todos conseguiram preencher todos os
questionários.

3.4.4 Apresentação da Pesquisa para as CEBs


42

O retorno da pesquisa se deu de duas formas. Realizou-se um seminário


aonde se apresentou de forma sucinta, os resultados da pesquisa e as sugestões
de diretrizes de ação. Foram entregues na íntegra os textos da pesquisa aos
padres que dirigem as CEBs de Heliópolis; foram realizadas conversas com os
mesmos sobre os conteúdos da pesquisa, em especial, sobre as sugestões de
diretrizes de ação.
43

PARTE II

4 O SABER POPULAR E A RELIGIÃO DOS MIGRANTES NORDESTINOS

Nesse capítulo são apresentados apontamentos sobre a constituição do


saber popular nas micro instituições e espaços de autonomia de setores
populares e sua utilização como mecanismo de sobrevivência. Em seguida se
delineiam as matrizes religiosas de origem no nordeste camponês e a nova
realidade com a qual o migrante se depara em S. Paulo.

4.1 AS MICRO-INSTITUIÇÕES E OS ESPAÇOS DE AUTONOMIA

Sem o poder econômico dos meios de comunicação de massa e sem o


poderio sacro das instituições religiosas, pode-se detectar a existência no
cotidiano de uma rede comunicativa produtora de símbolos e valores, entre
outras coisas, constituída em cima de um rol sem fim de “micro instituições”, e
em espaços de autonomia entre os “iguais”.
Espaços que se definem pela identidade dos populares e que
demonstram e exercem a “filtragem” (reinterpretação ou introjeção e difusão
reinterpretada) dos significados impostos pelas instituições dominantes. São
sem dúvida espaços de elaboração de uma contra ideologia em contraposição à
vigente. Não se pode idealizar esses espaços, por si sós, como constituidores
de uma nova sociedade alternativa. Neles se reelaboram e se criam símbolos e
valores que revelam os desejos, interesses e conhecimentos dos sem poder,
que não são necessariamente dos sem poder, que não são necessariamente em
vistas ao bem comum. Neles novo e arcaico se entrelaçam na formação dos
quadros de referência e representação do mundo. (BOSI, A., 1992: 336-337)
Num dos depoimentos aparece uma discussão sobre o controle dos pais,
irmãos e maridos sobre as mulheres, como forma de evitar que elas “transem”
antes do casamento, engravidem antes de casar ou traiam seus maridos. Na
conversa contam casos, situações vividas e se expõem opiniões. Generosa
conta que o irmão de Roselita não a deixa sair para ela não namorar; Helena
44

conta que conheceu uma família na qual a filha que não saía se tornou mãe
solteira três vezes e os pais criaram os filhos dela; Elmiro diz que “ciumar” não
adianta. É em momentos como esse que é reelaborado e reafirmado o princípio
que a confiança vale mais que o controle rígido. Situações como esta, acima
descrita, são exemplos de uma micro instituição em ação.
São estruturas comunicativas (com temas, formas e espaços concretos)
com as quais os sem poder buscam a superação do desespero e a organização
da esperança possível. Essa estrutura comunicacional se alimenta de
testemunhos factuais em relação às possibilidades de acreditar em horizontes
de esperança. (ASSMANN, H., 1986: 566)

“É no local de moradia, nas associações reivindicatórias e agremiações


recreativas nas praças, esquinas e bares, nas rua e na casa que
transcorre este vasto processo dinâmico de formação cultural tornando o
mundo denso de significados nem fixos, nem finais, nem únicos. Sempre
renovados, esses significados são inventados ou reinterpretados
apelando-se para as novas experiências ou para as antigas tradições. E é
aí a heterogeneidade econômica, do ponto de vistados lugares que
ocupam no processo produtivo, cede lugar a homogeneidade das
múltiplas práticas cotidianas das classes populares, à troca de experiência
de subalternos, aos múltiplos modos de oferecer resistência a dominação,
à construção de uma identidade social mais ampla que a de classe
operária – a de trabalhadores pobres, assim como a ramificação de um
vasto sistema de comunicação social que une as ruas do mesmo bairro,
os bairros pobres da cidade entre si /.../”. (ZALUAR, A. 1985: 50)

O dinamismo da vida popular se reproduz quase organicamente em micro


espaços, no interior da rede familiar e comunitária, apoiada pela socialização de
parentesco, vicinato e grupos religiosos. (BOSI, A., 1985: 162). Um exemplo que
ilustra bem essa afirmação é a situação vivida pela família de Elmiro e Generosa
que prestaram depoimentos nessa pesquisa. O casal, os filhos e parentes que
moram numa casa são bastante tímidos à primeira vista, retraídos; suas feições
demonstram desconfiança. São originários de um povoado muito humilde,
localizado na divisão do Piauí com a Bahia. Nos contatos anteriores, travados
numa sala de alfabetização de adultos, percebia-se também certa falta de auto
estima quando diante de professores, ou talvez certa consciência de sua
condição de sem poder (pobres e sem estudo). A moradia é uma pequena casa
de três cômodos, situa-se numa viela escondida, tranquila, estreita e isolada.
Longe até das ruas principais da favela, tem-se a impressão de se estar no meio
de um labirinto, num canto escondido. As casas coladas uma as outras e a pouca
45

olhares vigilantes do poder. A família, os vizinhos, os migrantes recentemente


chegados formam um grupo homogêneo: trabalhadores pobres, favelados e
migrantes nordestinos. A conversa travada com eles só foi possível por se
realizar nesse ambiente por haver confiança em relação ao pesquisador. Aí,
entre os iguais, se fala longamente sobre as experiências de vida, sobre o que
se pensa e se acredita. As crenças, a participação nos cultos, as superstições
emergem no bate-papo. São essas conversas entre os “iguais” em espaços
frequentados a apropriados por eles que foram essa imensa rede de micro
instituições e espaços de autonomia dos “populares”. O anonimato e a
simplicidade desses espaços de proteção com liberdade relativa.
Os fenômenos simbólicos pelos quais se expressa a vida brasileira tem
sua gênese nos quadros de representação simbólica do povo e vão desde o rito
indígena ao candomblé, do samba de roda à festa do divino, das assembleias
pentecostais à umbanda, sem esquecer as manifestações grupais e obedecem
a uma série de cânones, são micro instituições, dispersas e que são distintas da
cultura oficial, guardando dela boa distância. (BOSI, A., 1985: 156)

“O que se passa nas ruas, nas praças, nos bairros, nas casas dos
subalternos não são momentos de inteira liberdade de produção de
significados destes... mas, sem dúvida, é nesses lugares que os
subalternos silenciados nos rituais de dominação ousam inventar novas
maneiras de se relacionar. Nesse espaço público oficial da sociedade
abrangente, instauram uma vasta rede de comunicação na qual falam
entre si, transacionam bens e posições de poder, negociam significados
coletivos vindos das múltiplas tradições a que têm acesso, resistem e
lutam”. (ZALUAR, A. 1985: 57)

Esse modo de vida próprio dos submetidos, forjado numa estrutura de


comunicação com autonomia relativa, constitui um mundo aonde elementos das
culturas dominantes estão presentes de forma reelaborada e transfigurada no
cotidiano. Um exemplo dessa realidade é a presença nas institucionais
tradicionais produtoras de sentido religioso de uma religião erudita dos
especialistas e de uma religião popular. Muitas vezes os espaços físicos e
temporais, como uma missa, por exemplo, são compartilhados por ambos
sujeitos, com certa unidade aparente, mas no nível da consciência e percepção
são vivenciados de maneira diferenciada. Na comunidade do núcleo Heliópolis,
por exemplo, a coordenadora da catequese e da comissão de finanças da capela
é batizada na umbanda e frequenta periodicamente tal culto.
46

4.2 O SABER POPULAR DEFENSIVO-AFIRMATIVO

Ao constatar-se a existência de uma estrutura comunicativa, micro


instituições ou espaços de autonomia, onde se forja um modo de vida próprio
dos populares com relativa autonomia, se está afirmando a existência de uma
consciência popular, de um saber popular. Saber, nem sempre consciente, que
elabora no nível do simbólico uma prática de resistência, seja dissimulando e
ocultando os problemas reais, seja afirmando (em forma simbólica) a esperança
possível.

“Cultura popular implica modos de viver: o alimento, o vestiário, a relação


homem-mulher, a habitação, os hábitos de limpeza, as práticas de cura,
as relações de parentesco, a divisão de tarefas durante a jornada e,
simultaneamente, as crenças, os cantos, as danças, os jogos, a caça, a
pesca, o fumo, a bebida, os provérbios, os modos de cumprimentar, as
palavras-tabu, os eufemismos, o modo de olhar, o modo de sentar, o modo
de andar, o modo de visitar e ser visitado, as romarias, as promessas, as
festas de padroeiro, o modo de criar galinha e porco, os modos de plantar
feijão, milho, mandioca, o conhecimento do tempo, o modo de ser e de
chorar, de agredir e consolar... passando do material ao simbólico e vice-
versa.” (BOSI, A., 1985: 157)

Esse saber se articula fundamentalmente numa linguagem mítica – capaz


de carregar significados afetivo-cognitivos. Os mitos servem para simbolizar
situações totalmente diferenciadas que vão do individual ao cósmico, do
passado ao futuro escatológico, ou seja, eles sempre se permitam ser usados
para responder as exigências de cada conjuntura, cada situação da realidade
concreta. Com eles se abordam tanto problemas imediatos quanto padrões
éticos consensuais. A linguagem mítica ou os mitos são estruturas e princípios
de estruturação do mundo. Encerra com os meios que lhes são próprios um certo
saber. (THIOLLENT, M., 1981: 203) Assim quando Ercilene afirma a crença e
fala de suas conversas com Nossa Senhora Aparecida em busca de cura, ela
também afirma inconscientemente o poder das mulheres e a esperança de um
dia haver igualdade com os homens; como também reafirma a maternidade e a
vida como valor supremo.
Esse saber mítico constitui-se num órgão de sobrevivência e de busca
mínima de prazer, sendo necessário para a sobrevivência no cotidiano. Veícula
sonhos, desejos, afetos e interesses de um modo diferente das explicações
47

científicas (linguagem científica); está para a linguagem científica como a arte


está para a ciência. Permite a simbolização da superação do desespero e a
organização mínima da esperança possível. Porém não é um órgão suficiente
para a luta social que exige um projeto histórico, detalhado em suas metas
estratégicas e passos táticos. O que levanta a questão de como articular as
expressões, símbolos e linguagem da cotidianidade com a consciência crítico-
política. (ASSMANN, H., 1986: 565 e 567)
Antes de avançar na questão do saber popular defensivo-afirmativo cabe
citar rapidamente as condições de vida dos pobres, base material de suas
representações simbólicas e estruturas comunicativas. O saber popular está
ligada a sua existência e sobrevivência, ao sofrimento e alegria (negação e
afirmação do encontro prazeroso com o outro). O sofrimento aparece maciço e
gritante: a incidência de doenças infecciosas, particularmente nas crianças,
sequelas de acidentes e doenças, tratamentos mal conduzidos e incompletos,
não aproveitamento de técnicas médico-cirúrgicas por falta de recursos,
alcoolismo frequente, promiscuidade, tráfico de drogas, ausência de
saneamento básico, comida fraca, desemprego, salários baixos, baixa
escolaridade ou analfabetismo, estrutura afetiva com muitos recalques,
delinquência, estrutura familiar frágil – muitas separações, concubinato,
mulheres surradas, crianças espancadas, homicídios, equipamentos públicos
aquém da demanda ou com falta de recursos humanos e materiais. Na região
de Heliópolis, funcionam dois postos de atendimento médico da prefeitura, um
do estado, um centro de atendimento para consultas especializadas a um
hospital estadual. Os agendamentos de consultas chegam a 60 dias de
antecedência, faltam médicos, especialmente pediatras; o hospital vive
superlotado, faltam remédios e os aparelhos não têm manutenção. O
atendimento preventivo praticamente não existe. Na área atual três quadrilhas
de marginais: uma no Imperador, uma no Sacomã e outra na Lagoa-PAM. O
tráfico de crack/maconha e os assaltantes de banco comandam a área do crime.
Matadores e/ou justiceiros, menores delinquentes, drogados também estão na
área. Em maio de 93, em uma guerra de quadrilhas, morreram cinco malandros,
podendo-se notar o poder de fogo dos armamentos presentes na área. Crianças
e adolescentes são cooptados para distribuir drogas, passando também a
consumir. Apesar de muitas conquistas no projeto de urbanização, 60% da área
48

continua sem saneamento básico. Paulinho, membro do conselho tutelar, só em


fevereiro/94 atendeu cerca de 90 casos de crianças e adolescentes com
problemas. Uma padaria estava distribuindo pães amanhecidos no centro
comunitário: as filas chegam a 200 metros. O consumo de cachaça é alto, sendo
comum encontrar bêbados pela rua.
As alegrias e os sofrimentos que marcam também a maneira como se vê
a realidade. Em tal contexto, a consciência coletiva desenvolve uma ideologia de
resistência, de dissimulação-afirmação e de contra valores. Tem por objetivo
mascarar, conter e ocultar uma ansiedade particularmente grave e pode ser
definida como mecanismo de defesa elaborado por um grupo social particular (a
especificidade varia de acordo com o grupo). É destinada a lutar contra o perigo
e risco reais. Para ser operatória deve obter a participação de todos os
interessados (consenso); ser dotada de certa coerência, o que supõe que
corresponda a realidade, mesmo que para isso se tenha que evitar situações
que a coloquem em “xeque”, por exemplo abstendo a prática religiosa de
qualquer “racionalização”. Dissimulação, medo, silêncio contido são elementos
que fazem parte dessas estratégias de resistência. Tem sempre um caráter vital,
fundamental, necessário, coletivo, tão inevitável quanto a realidade. (DEJOURS,
C., 1991: p. 35-36) Esse comportamento se torna nítido e paradigmático em
Heliópolis, quando se fala sobre o crime organizado e matadores/justiceiros: as
pessoas abaixam a voz, olham para os lados e se aproximam das outras para
comentar fatos ocorridos. A maioria tem medo de ser ou confundido com
delatores e sofrer retaliações. Ocorre um processo de dissimulação das relações
de poder e exploração vigentes e das próprias condições de vida como tal,
evitando-se o confronto com a aparente inevitabilidade da situação vivida. No
âmbito religioso se transfere para a figura da divindade o controle e o arbítrio das
relações entre grupos e classes. Esta fala de Luzenita ilustra este aspecto do
saber popular defensivo-afirmativo:

“Quem dá destino é quem faz a gente. Você já nasce com o destino, sabe
por quê? Se fosse pelo nosso gosto nós não íamos passar fome, nós não
íamos trabalhar, nós viveríamos numa boa. Não é? É o que Deus lhe fez,
se tem que passar naquele caminho que ele mandou; você paga aqui o
que ele já deixou marcado. Se você nasce pra ser rico, você vai ter que
ser um dia. Se você nasce para morrer mendigo, você vai ali do jeito que
Deus te fez.” (DEPOIMENTO)
49

Ao mesmo tempo tal ideologia permite a afirmação de elementos


fundamentais a vida humana como: sentido existencial, identidade grupal,
solidariedade, etc.
Apesar das crenças afirmadas servirem para dissimular as relações de
poder, elas invocam melhoras no dia-a-dia, o que aponta para a superação de
problemas no presente e não no futuro escatológico. Quando Ercilene alega já
ter ido em terreiro e feito promessa, o motivo é a busca de cura. Quase todos os
testemunhos de depoentes sobre experiências religiosas estão ligadas à busca
de resolução de problemas imediatos.
No que tange à religião se esperam justificações da existência, superação
da angústia existencial, da contingência e da solidão, livramento da miséria
biológica, da doença, do sofrimento, da morte (BOURDIEU, P., 1974: 48),
distinguir grupos, classes, associar e dissociar. A vida do corpo, a vida do grupo,
o trabalho manual e as crenças religiosas confundem-se no cotidiano pobre. O
ser humano dirige sua atenção para aquilo que ele acha decisivo para
sobreviver.

“A representação do paraíso como lugar de uma felicidade individual opõe-


se a esperança milenarista de uma subversão da ordem social presente
na ordem social presente na fé popular.” (BOURDIEU, P., 1974: 49)

As experiências mais decisivas de felicidade ou de sofrimento são


experiências em relação com outras pessoas e com uma profunda dimensão
emocional e política. (MADURO, O., 1994: 34)

4.3 O MIGRANTE E A NOVA REALIDADE METROPOLITANA

São Paulo é para o migrante um novo mundo, uma nova realidade que
precisa ser compreendida e ordenada. Muitas vezes esta nova realidade
inviabilizará as antigas noções trazidas dos locais de origem, revelando sua
inadequação, outras vezes se reinterpretará um conjunto de crenças e
superstições a partir da nova realidade. O que não pode mais ser vivenciado,
ficará apenas na memória coletiva, seletiva e idealizadora como bens que foram
perdidos e aos quais se continuará saudosamente desejando. Como sistemas
50

simbólicos e de representações acham-se envolvidos por uma forte carga


afetivo-emocional. (ALMEIDA, A. V. M., de 1991: 21)
Os ritos da religião popular se tornam uma forma de encontro com uma
identidade histórica de origem perdida, uma forma de resguardar um patrimônio
cultural construído e adquirido (MOURA, A., 1976: 216), uma forma de afirmação
de autonomia de quem não tem ciência, o poder, o dinheiro, a política ou a
teologia. Por exemplo, Ercilene afirma em seu depoimento que para a filha parar
de xingar precisa batizar de novo (crismar); a mãe dela vai ser a madrinha e a
menina será crismada no norte. Esse rito busca a solução de um “mal”
comportamento, sacraliza os laços de parentesco e mantém a identidade de
origem.

“Os migrantes urbanos vivem uma sociedade que se caracteriza pela


complexificação crescente, pela mobilidade social (vertical e horizontal),
no interior de um processo de mudança social acelerada. A
complexificação das relações sociais é acompanhada cada vez mais por
uma complexidade cada vez maior do universo religioso. Persiste a
religião tradicional, mas reinterpretada; emergem novas crenças.”
(BENEDETTI, Luiz R., 1991: 21)

É comum andar em Heliópolis e se deparar com igrejas pentecostais, são


mais de trinta. As torres dos grandes templos católicos dos bairros em torno, se
veem de longe. Os terreiros, mais discretos, estão presentes: são dois internos
e dois próximos. Os amuletos nos braços: fitas, pulseiras, etc. São vistos em
quantidade, pois são de uso comum. Mas as marcas da pluralidade religiosa
ficam mais nítidas nas áreas de muito fluxo de pessoas na metrópole, geralmente
áreas centrais, ali aparecem também as seitas orientais, os jogos divinitórios, os
espíritos e espiritualistas. Como a frequência nas áreas centrais é constante
pelos moradores da área, elas passam a fazer parte de seu mundo.
Nas tentativas de síntese que vagarosa e sofridamente o migrante vai
fazendo, permanecem por longo tempo juntas, mas não assimiladas,
justapostas, visões do mundo, representações e práticas religiosas
diferenciadas, porém integradas de certa maneira por interesses comuns que
perpassem as várias concepções e práticas religiosas. As representações
religiosas se constituem em eixo de ordenação e sentido. É através do sagrado
que o migrante ordena, compreende, explica e se relaciona consigo próprio e
51

com o mundo. Para ele o sagrado é o real do qual as situações emanam e são
manifestações. (ALMEIDA, A. V. M., de 1991: 26)
As representações religiosas são necessárias para o migrante articular; e
de algum modo unificar sua consciência em um saber compreensivo do real. A
religião ao explicar a realidade a transfigura de tal modo que quase se chega a
perdê-la, apresentando características de legitimação, reprodução ou
contestação da ordem sociocultural vigente. (ALMEIDA, A. V. M., de 1991: 26)
Essa nova situação (urbana, metropolitana e colonial) afeta a vida de
numerosos mitos e lendas; remanejamentos, modificações de temas exprimem
na linguagem dos mitos religiosos, as vicissitudes sofridas, problemas surgidos
para os homens, para a sociedade em razão da urbanização e dominação
cultural (BALANDIER, G., 1976: 204) A nova situação introduz agentes e
elementos desestabilizadores, por isso torna indispensável aquele que sofre a
dominação “situar” esses novos agentes e elementos. Importa-lhes subjuga-los
o mais possível, a fim de reduzir a desordem e as perturbações que podem
resultar de sua irrupção. Nesse caso, o mito permite, remanejamento e
adaptado, tornar inteligíveis os citados fatores de perturbação. Os mitos
religiosos podem ser uma forma de reação ao constrangimento colonial.
(BALANDIER, G., 1976: 205 e 208)
“O sincretismo permite captar, de maneira indireta, os valores do
colonizador e rivalizar, eventualmente, com ele.” (BALANDIER, G., 1976:
205)

As visões do mundo, as tradições que trazem de seu local de


origem, bem como as representações, valores e símbolos com as quais
entram em contato em São Paulo emergem e integram o sistema global
de representação da estrutura do real.
A tradição exerce também uma função de segurança tanto mais
eficiente quanto maior a dificuldade dos indivíduos se adaptarem às
situações instáveis. Nas sociedades em vias de modernização, em que
as transformações sucedem em cadeia, as voltas a uma tradição
reconstruída tem o sentido de encontrar uma “linguagem” que permita
dar sentido a novidade ou formular reações a ela. Mantém uma parte da
antiga paisagem sociológica, tornando possível a conservação de certos
52

quadros sociais, culturais e ações rituais simbólicas. Se trata de um


processo contínuo de recriação. (BALANDIER, G., 1976: 105)
Os conteúdos da consciência religiosa estão relacionados à
maneira pela qual o migrante apreende, interpreta e representa as
condições materiais de sua existência, a si próprio, sua vida, a vida dos
outros migrantes, suas inter-relações tanto no local de origem quanto em
São Paulo. Na sua linguagem estão toda sua subjetividade, intuição,
saber, memória, projetos e lutas. (ALMEIDA, A. V. M., de 1991: 24 e 25)
Porém o migrante sofre manipulação do sentimento religioso por meio
dos meios de comunicação e agências religiosas que pode ser definida
como uma ardilosa e perspicaz interferência na apreensão popular dos
limites e possibilidades de autodefesa e sobrevivência num dia-a-dia
privado de verdadeiras esperanças. (ASSMANN, H., 1986: 564)
53

5 AS PRÁTICAS RELIGIOSAS CONTINUAM VIVAS

Tanto quanto em outros tempos, os fenômenos religiosos


continuam presentes, mais complexos e diversos, convivendo no mesmo
espaço urbano, marcados pela diferença e pelo consenso. A abordagem
de conceitos como religião, religiosidade, agências religiosas, trânsito
religioso, pluralidade religiosa e religiosidade mínima entre outros, feita
nessa parte da pesquisa, são fundamentais para a compreensão dessas
práticas religiosas. A religiosidade popular se constitui numa construção
cultural que entre outros fins visa enfrentar as diversas situações de
opressão vivida pelas classes populares. Uma dessas situações
localiza-se no próprio âmbito religioso na relação entre os especialistas
que detém o poder legítimo da mediação com o sagrado e os demais
fiéis que foram deslegitimados pelas agências religiosas para realizar
essa mediação. Tem-se no nível religioso, portanto, uma relação de
expropriação do poder sagrado dos fiéis. Daí a religiosidade popular ser
também uma forma de resistência à dominação dos especialistas
religiosos, a medida que ela se constrói à revelia dos “olhos oficiais”.

5.1 A RELIGIÃO E AGÊNCIAS RELIGIOSAS

5.1.1. A religião como princípio de estruturação da realidade.

A religiosidade é aqui entendida como o conjunto de elementos,


influências e práticas religiosas encontradas nas relações sociais,
inclusive fora das estratégias religiosas. Religiosidade é assim um
conceito mais amplo e difuso que o de religião. Pode-se iniciar
caracterizando a religião como uma das formas de relação do sujeito
com o mundo. Religião e, sem dúvida, uma das formas primordiais de
consenso social em relação ao sentido dos signos e ao sentido do
mundo que eles permitem construir: religião é assim um sistema
simbólico ao mesmo tempo estruturado e estruturante (estrutura
estruturada e princípio de estruturação do mundo). (BOURDIEU, P.,
1974: 28) Os símbolos e práticas religiosas expressam as
54

representações, sentimentos e aspirações coletivas existentes ao


mesmo tempo que as constituem. (BOURDIEU, P., 1981: 87) Religião é
um sistema simbólico que revela uma interpretação da vida, é uma forma
de situar-se no mundo, é oferta de sentidos e serviços simbólicos de teor
sagrado. (BRANDÃO, C. R., 1991: 01) A mensagem religiosa vem a
constituir um conjunto de respostas a questões existenciais.
Para o nordestino lei e religião se distinguem. Alei vem de cima,
representa as regras impostas e imutáveis. Cada igreja é uma lei. Pode-
se entender lei no sentido de “aparelho burocrático religioso”. Já religião
se refere à presença das forças sobrenaturais no mundo, a todo
encantamento presente no mundo. Mais à frente este tema será tratado
em maiores detalhes.
A fé religiosa se fundamenta numa “fé antropológica”
(organização da esperança possível e superação do desespero) que
acrescenta explicações ou soluções mágicas para problemas cotidianos
podendo chegar a refundamentar para nova direção o conjunto das
motivações da vida cotidiana. (ASSMANN, H., 1986: 566)
O conteúdo (tema e sintaxe) do discurso religioso está
relacionado aos interesses dos que o produzem, o difundem e o
recebem. Os sistemas de crenças e práticas religiosas são uma
expressão transfigurada (apesar de não se reduzir a elas) das
estratégias dos diferentes grupos de especialistas em competição pelo
monopólio da gestão dos bens de salvação e das diferentes classes
interessadas por seus serviços. (BOURDIEU, P., 1981: 32) A crença na
Bíblia, por exemplo, assumida pela quase unanimidade dos
entrevistados na pesquisa, é resultado do consenso dos especialistas
das diversas religiões quanto ao seu poder revelador, como também
passa pelo crivo da experiência empírica dos populares de revelar o
poder de Deus em momentos de dificuldade.

“A religião contribui para a imposição dissimulada dos princípios de


estruturação da percepção e do pensamento e do mundo e, em particular,
do mundo social na medida em que impõe um sistema de práticas e
representações cuja a estrutura fundada num princípio de divisão política
apresenta-se como estrutura natural-sobrenatural do cosmos.”
(BOURDIEU, P., 1981: 32)
55

A religião enquanto princípio de estruturação:


- Constrói a experiência em termos de lógica em estado prático e
problemática reais;
- faz a manipulação simbólica das aspirações que ajusta as esperanças
e condições reais;
- transfigura as relações sociais vigentes pelas práticas e
representações;
- produz o desconhecimento dos limites do conhecimento que ela
produz. (BOURDIEU, P., 1974: 46)
Toda a religião busca autoperpetuação, que está ligada à sua
capacidade de se adaptar aos interesses dos grupos que o adotam com
o correr do tempo e afirmação da unidade em torno de um mínimo de
dogmas, que esforçam a eficácia da estrutura dos sistemas de
representações e práticas. (BOURDIEU, P., 1974: 52-53) Uma questão
a ser levantada é que a religião popular não é uma religião nos moldes
das organizações religiosas tradicionalmente conhecidas. Ela é um
fenômeno difuso que se alimenta das agências religiosas, mas se
desenvolve nas micro instituições e espaços de autonomia.
As necessidades religiosas estão condicionadas aos desejos,
interesses e conhecimentos dos que produzem, consomem ou se
relacionam de alguma maneira com o fenômeno religioso. Qualquer
tentativa de detectar um outro interesse como determinante sem uma
contextualização precisa dos sujeitos envolvidos incorre em
reducionismo.
O campo religioso tem por função especifica satisfazer um tipo
particular de interesse religioso que leva os “devotos” a buscar em
“ações mágicas ou religiosas”, ações fundamentalmente “mudanças” e
práticas, a fim de que tudo corra bem ou se supere problemas imediatos.
Nesse sentido é interesse o depoimento de Antônio sobre o seu
relacionamento com Deus. Perguntando se ele conversa ele é
contundente: “Não”, porém em seguida ele acrescenta: “mas a gente
sempre pede a Deus”. Essa mescla de motivações “transcendentes” com
necessidades imediatas também é constatada na amostragem aonde as
56

alegações de cunho religioso somaram 147, enquanto as motivações


relacionadas a problemas concretos somaram 238.
Dentro de uma religião existe aberta e em expansão a viabilidade
de sub-construção comunitária de formas próprias de adesão, partilha
de crenças e cultos. (BOURDIEU, P., 1974: 13) É o que se pode verificar
em três casos de agentes de pastoral da favela: uma coordena a
catequese e finanças da capela de Heliópolis, é batizada na umbanda e
pratica periodicamente; outra senhora é catequista e testemunha que
seu marido já sofreu “feitiço de macumba” e a sua participação no culto
o liberou, hoje ela não pratica, mas crê; outro caso é de um agente de
pastoral maranhense de nascimento cujos os parentes em S. Luís (MA),
fazem um culto de mesa branca as doze horas da sexta e ela acende
toda a sexta uma vela nesse horário. São exemplos de possibilidade real
de reelaboração de uma fé numa forma sincrética.
Como também existe a possibilidade do trânsito religioso entre as
várias instituições religiosas, chegando-se a constituir a partir de um
conjunto de noções comuns uma religiosidade mínima reinterpretada
que não exclui a participação nas religiões específicas. (DROGOGERS,
A., 1987: 64)

5.1.2 O Aparelho Burocrático Religioso: As Agências Religiosas

As religiões se concretizam em instituições religiosas: aparelhos


burocráticos que se apropriaram de formas de organização de outras
instituições, ao mesmo tempo, que ofereceram modelos de organização
burocrática ao contexto. À medida que esses aparelhos se tornaram
mais complexos, se desenvolveram relações de poder entre os grupos
que os compunham.
A gestão do poder religioso (dogmas, ritos templos, etc.), produto
do trabalho e experiência religiosa acumulada, e o trabalho religioso
necessário para garantir a perpetuação deste poder garantindo a
conservação do mercado simbólico-religioso, somente podem ser
assegurados por meio de um aparelho de tipo burocrático, por exemplo
igrejas. Este aparelho deve ser capaz de exercer de modo duradouro a
57

ação continua necessária para assegurar sua própria reprodução, ao


reproduzir os produtores de bens de salvação e serviços religiosos, o
corpo de sacerdotes, e os consumidores-produtores destes bens
dotados de um mínimo de competência religiosa necessária para sentir
a necessidade dessa experiência. Em última instância toda experiência
religiosa implica em autoconsumo pelo fiel, pois ele vivencia o papel de
ser perante o sagrado, mesmo que seja uma relação mediada pelo
“especialista”. (BOURDIEU, P., 1974: 51)
A presença desse aparelho burocrático pode ser visto na própria
organização coprodutora dessa pesquisa: os quatros dirigentes são dois
padres, um provincial de uma congregação e outro reitor de um
seminário teológico de uma congregação missionária. Os trabalhos
específicos (catequese, juventude, liturgias) são coordenados por
seminaristas. Os agentes locais são subalternos aos especialistas. AS
liturgias invariáveis e os sacramentos estão nas mãos dos sacerdotes.
O conhecimento sistemático da teologia é concentrado também nos
sacerdotes e seminaristas. Por último o financiamento das construções
de capelas, cursos e outras atividades é obtido do exterior é obtido do
exterior pelos sacerdotes. Ou seja apesar do discurso libertador a
burocracia eclesiástica nas CEBs é evidente.
Produto da institucionalização, burocratização e “banalização”, as
igrejas apresentam inúmeras características de uma burocracia:
delimitação explicita das áreas de competência; hierarquização
regulamentada das funções; racionalização correlata das remunerações,
“nomeações”, “promoções” e “carreiras”; codificação das regras que
regem a atividade profissional e extraprofissional; racionalização dos
instrumentos de trabalho como o dogma, a liturgia e formação
profissional. E, geralmente, opõe-se a ação extraordinária da
contestação da ordem ordinária. Toda seita que alcança êxito tende a se
tornar igreja. (BOURDIEU, P., 1974: 59)
A “sistematização casuístico-racional” e a “banalização” são
condições fundamentais para a burocracia funcionar pois permite a
qualquer agente exercer de maneira continua a atividade sacerdotal com
menor custo e risco. (BOURDIEU, P., 1974: 69)
58

A lógica do funcionamento do aparelho religioso burocratizado, a


prática sacerdotal e, ao mesmo tempo, a forma e o conteúdo da
mensagem que ela impõe e inculca, são a resultante da ação conjugada
de coerções internas, inerentes ao funcionamento de uma burocracia
que reivindica com êxito mais ou menos total monopólio do exercício
legítimo do poder religioso sobre os leigos e da gestão dos bens de
salvação e de forças externas que assumem pesos desiguais de acordo
com a conjuntura histórica. É o que se percebe em posicionamentos
como este do cardeal primaz do Brasil, em 1956, D. Augusto Alvaro da
Silva, em Carta pastoral sobre a vida religiosa do povo.

“Praticam atos de aparente devoção e piedade, mas somente enquanto


os façam parecer religiosos: dizem palavras bonitas a respeito de Deus,
da igreja, dos mistérios e coisas sagradas; fazem cortesias amáveis aos
pastores e ministros da igreja; dão-se a práticas exteriores, como “vivas”
a religião, discursos laudatórios, exibição de oratórios domésticos, com
imagem de vulto; possuem diploma de mais de uma ordem terceira e
insígnias de associações de piedade: é quanto lhes basta para se
presumirem “católicos”, apostólicos, romanos. O essencial da religião,
porém, não lhes permite o superficialismo sentir, nem praticar, nem fazer
conhecido.” (HONAERT, E., 1978: 08)

As coerções internas surgem como imperativo para uma


qualificação profissional homogênea adquirida do sacerdócio, atividade
banal, por ser cotidiana e repetitiva, e para manter a unidade. O conflito
entre ortodoxia e heresia é uma forma de disputa do monopólio da
gestão dos bens de salvação no interior de uma instituição religiosa.
(BOURDIEU, P., 1974: 65) As aparências de unidade por trás das
liturgias invariantes apenas dissimulam invariantes apenas dissimulam
as diversidades no interior do aparelho religioso. (BOURDIEU, P., 1974:
67)
A religião popular conta com ambiguidade e complacência do
clero nas CEBs de Heliópolis. Não se explicita as bases da relação entre
elas.
O processo de constituição de instâncias especificamente
organizadas para produção, reprodução e difusão dos bens religiosos e
evolução dessas instâncias para uma estrutura mais diferenciada e
complexa (que gera uma autonomia relativa), é acompanhado pela
59

sistematização das representações religiosas que vão do mito e


ideologia religiosa, do tabu-deus-primitivo-arbitrário-imprevisível ao
deus-justo pessoal-bom. (BOURDIEU, P., 1974: 37) a racionalização da
religião está ligada a um corpo especificamente sacerdotal.
(BOURDIEU, P., 1974: 36)

“Enquanto resultado de monopolização da gestão dos bens de salvação


por um corpo de especialistas religiosos socialmente reconhecidos como
detentores exclusivos da competência especifica necessária a produção
ou a reprodução de um “copus” deliberadamente organizado de
conhecimentos secretos (e, portanto, raros), a constituição de um campo
religioso acompanha a desapropriação (ou expropriação) objetiva
daqueles que são excluídos e que se transformam por esta razão em
leigos (ou profanos) destruídos do capital religioso (ou de um dos
principais instrumentos de produção religiosa) e reconhecendo a
legitimidade desta desapropriação pelos simples fato de que a
desconhecem enquanto tal.” (BOURDIEU, P., 1974: 39)

A existência de especialistas está ligada a delegação de liderança.


Mesmo nas seitas os líderes detêm em última instância o poder da verdade.
Quando um entrevistado na amostragem declara. “É tudo comércio”, ao ser
perguntado sobre o que acha das religiões, mostra a desconfiança em relação
aos que mandam nas religiões, mostra a desconfiança em relação aos que
mandam nas religiões, mostra a desconfiança em relação aos que mandam nas
religiões. Regis, por exemplo, em seu depoimento diz que muitos pastores e
pais-de-santo apenas encenam eventos religiosos. Generosa mostra em suas
declarações a insistente tentativa de cooptação de um pastor. Os especialistas
religiosos são vistos como pessoas especiais, porém perigosas à medida que
tentam cooptar e manipular os seguidores.
A oposição entre especialista que tem o monopólio da gestão do sagrado
e os ignorantes da religião e estranhos ao corpo de administradores do sagrado
constitui a base para o julgamento do que seja manipulação legítima do sagrado
e do que seja “feitiçaria”. Já é critério de julgamento do leigo sobre a legitimidade
ou não se assentará muitos mais em respostas concretas e problemas imediatos
que o ato religioso tenha produzido ou não, sobre a adesão social a
determinados antes e ritos religiosos. A síntese religiosa se dará a distância dos
especialistas da vida cotidiana. Constrói-se uma religião mínima que de certa
maneira escape à totalização de uma única agência. Ercilene afirma sua fé em
Nossa Senhora Aparecida porque ela se sente protegida. Generosa diz ter que
60

voltar aos terceiros por ter conseguido o que pediu. Dona Maria saúda S.
Francisco por ter curado sua filha da queimadura. Dona Edithe relembra a cura
de seu filho com leptospirose pela graça de Nossa Senhora. Na amostragem
muitos evangélicos dizem ter encontrado as soluções para seus problemas de
trabalho e familiares. A experiência prática do sagrado na solução de problemas
é um critério fundamental de adesão de crenças.
Forja-se uma matriz simbólica religiosa de uso comum, sobre a qual o
grupo religioso e/ou cada indivíduo faz seu próprio recorte e combina seu
repertório da crenças; nascida da concorrência religiosa essa matriz condiciona
as experiências religiosas particulares de cada agência.
Trata-se de uma religião que se manifesta publicamente em contexto e
ambientes não especificamente religiosos, que é veiculada pelos meios de
comunicação de massa, pelos políticos, pelo estado, pela linguagem cotidiana
(ditos e expressões populares) e que tem como uma de suas características mais
marcantes a circulação por várias agências religiosas.
É reforçada tanto pelos políticos (que exploram a convicção comum na
esperança de mais prestígio e votos), quanto pelo povo em geral (arredio aos
conflitos). Um dos dogmas da religião mínima é a Bíblia, o livro sagrado do
cristianismo. Afirmado pelos especialistas religiosos, pelos políticos, respeitado
pela mídia como um tabu intocável, reproduzida pelas editoras, a Bíblia alcançou
na amostragem 76% de adesão. Quando perguntados se acreditavam na Bíblia,
150 dos 200 entrevistados declaram sim. Poderia-se acrescentar a lista de
dogmas: Jesus, Nossa Senhora, céu, inferno, hóstia, sinal da cruz, Espírito
Santo, mau olhado, demônios, entre outros.
As relações de transação – conflituosas ou de colaboração – que
estabelecem-se entre especialistas e leigos com base em interesses diferentes
e relações de consciência que opõe os diferentes especialistas no interior das
instituições religiosas constituem um dos princípios das transformações da
ideologia religiosa. (BOURDIEU, P., 1974: 50) Generosa frequentou durante um
ano uma seita evangélica, participando do culto, quando o pastor a pressionou
para se batizar, ela rompeu com seita. A colaboração vai até o limite da crença
pessoal ou dos interesses pessoais.
61

“Em função de sua posição na sua estrutura de distribuição de capital de


autoridade propriamente religiosa, as diferentes instâncias religiosas,
indivíduos ou instituições podem lançar mão do capital religioso na
concorrência pelo monopólio da gestão dos bens de salvação e do
exercício legítimo do poder religioso enquanto poder de modificar em
bases duradouras as representações e as práticas dos leigos, inculcando-
lhe um princípio gerador de todos os pensamentos, percepções e ações,
segundo as normas de uma representação religiosa do mundo natural e
sobrenatural, ou seja, objetivamente ajustados aos princípios de uma
visão política do mundo social.” (BOURDIEU, P., 1974: 50)

O poder de autoridade de uma instância religiosa depende da


força material e simbólica dos grupos ou classes que ela pode mobilizar
ao satisfazer seus interesses religiosos. Muitas vezes a ortodoxia tem
que fazer as concessões à religião popular, mesmo que com o intuito de
limitá-la. A ação religiosa institucionalizada passa pela mediação dos
especialistas porém os não-especialistas, quando não totalizados pela
instituição, conservam certa autonomia de auto-produção-consumo
religioso. Aqui cabe um questionamento sobre a pouca adesão às CEBs
em Heliópolis. Será que os clérigos que atuam na área não conseguem
perceber os interesses do povo? O discurso das CEBs não é imediatista,
é lógico-racional-sistemático e as celebrações rotineiras; sem falar na
ausência de espaços especificamente sagrados. Mas como transformar
sacerdotes estrangeiros, formados numa teologia sistemática, em
líderes próximos `cultura popular?
“Quanto maior a distância econômico, social e cultural entre o grupo de
produtores, o grupo de divulgadores e o grupo de receptores, tanto mais
ampla a reinterpretação.” (BOURDIEU, P., 1974: 51)

Levada ao extremo essa situação de múltipla compreensão, se


concretiza num sistema de auto-produção-consumo religioso aonde os
indivíduos, grupos ou segmentos elaboram suas convicções e práticas
sem o controle introjetado das instituições religiosas das quais estão
próximos. Essa situação de auto-produção-consumo está no extremo
oposto da monopolização completa e totalitária da produção religiosa.
Essa postura aparece claramente a afirmação “Religião cada qual tem a
sua”, declarada por vários entrevistados na amostragem.
O risco do autoconsumo e a concorrência religiosa pode levar a
um movimento de definição da originalidade da comunidade em face às
outras e concessões a demanda religiosa popular. É exatamente a
62

afirmação da originalidade e distinção um dos favores que explicam a


pulverização e multiplicação das seitas evangélicas pentecostais em
Heliópolis, são mais de trinta. Quebrando o silêncio das noites com seus
louvores, com o “dom das línguas”, com seus usos e costumes, eles
estão próximos aos moradores, liderados por “convertidos” que
comungam da mesma linguagem e cosmovisão popular, eles se
distinguem, crescem, constroem salões... e chegam ao seu limite. O
crescimento do pentecostalismo na área não se deu pelo
hiperdesenvolvimento e massificação de alguma seita ou igreja
evangélica, mas pela multiplicação de pequenos grupos independentes.

“A natureza e a forma das interações diretas entre os agentes ou as


instituições que estão emprenhados nesta concorrência, e os
instrumentos e as estratégias que utilizam nesta luta, dependem do
sistema de interesses e autoridade propriamente religiosa que cada um
deles deve à sua posição na divisão do trabalho de manipulação simbólica
dos leigos, à sua posição na estrutura objetiva das relações de autoridade
propriamente religiosa que definem o campo religioso.” (BOURDIEU, P.,
1974: 88s)

Porém se num momento inicial a sectarização é a força de


expansão das seitas, num segundo momento significa isolamento, assim
num mercado religioso pulverizado e plural, numa realidade urbano-
industrial de trocas intensas e velozes, todos os sistemas sagrados
tendem `partilha de símbolos e significado.
Percebe-se uma ampla gama de manifestações religiosas na
paisagem urbano-industrial: catedrais, basílica, santuários, igreja matriz,
capelas, cruzeiros, capelinhas, nichos, bandeiras do divino, mastros de
S. João, CEBs, no campo católico; templos luteranos, anglicanos,
presbiterianos, batistas, mórmons, no campo das “denominações
protestantes históricas”, templos ‘pentecostais”, pregação nas ruas e
praças; candomblé, umbanda, kardecismo, no campo do espiritismo;
jogo de búzios, tarô, I ching, pêndulo, quiromancia, bola de cristal, cartas,
mapas astrais, numerologia, rumas, no campo dos sistemas divinatórios,
massagens psico-espirituais, exercícios, alimentação “natural”, eubiose,
elementos de “energização”, no campo das terapias e filosofias
“alternativas”; acumputura, do-in, shiat-su, quiropatia, cromoterapia,
holística, ioga, tai-chi-chuam, ritos budistas, taoísta, sei-cho-noiê, no
63

campo das religiões orientais. (MOGNANI, J.G.C., 1991: 5-7) Contam


em Heliópolis mais de trinta igrejas evangélicas, três capelas católicas e
dois terreiros. Se ampliarmos os horizontes de visão para os bairros ao
redor esses espaços sagrados se multiplicam muitas vezes. Tão ampla
quanto esta lista é a variedade de motivações que as sustentam:
tradição, costumes, salvação, paz doenças, moradia, desemprego,
problemas familiares, vícios, problemas financeiros, violência, busca de
identidade, curiosidade, lazer, etc. O trânsito religioso se fará nesse
mercado plural.
Concomitantemente a essa pluralidade e nascida dela, vê-se
numa matriz simbólica de uso comum constituída por noções comuns no
campo religioso que contribuem para um trânsito religioso, tais como:
alma dos mortos, céu e terra, divindades positivas e negativas, um deus
soberano, puro e impuro. Formada de elementos existentes no “mercado
religioso brasileiro” ao mesmo tempo é substrato das religiões nele
existentes. Por ser constituída de elementos gerais esta matriz simbólica
é mínima e não provoca debates sobre suas verdades. (DROOGERS,
A., 1987: 65) Expressa o consenso da opinião pública, disso depende
sua popularidade. Um de seus porta-vozes são os meios de
comunicação de massa; quando esses tocam em assuntos religiosos
evitam o debate e a contestação, fogem dos dilemas, limitam-se a falar
do mínimo geral – a não ser que seja uma programação voltada para um
público muito específico. Não fogem do tema religião, pois conhecem a
sua alta no mercado brasileiro de comunicação, traduzem a opinião
pública e a influenciam. Operam nas margens estreitas do geral, sem se
desviar daquilo que é comum. Outro de seus porta-vozes são os políticos
e o estado que, por busca de prestígio ou para incutir no povo
comportamento conformistas, difundem noções religiosas comuns ao
maior número de pessoas possível. Por fim, essas noções religiosas
básicas passam pelo crivo da experiência empírica dos populares e pela
difusão nos seus micro-espaços de autonomia.

“Múltiplas e variadas são as formas por meio das quais se expressa a


religiosidade e busca de contato com valores espirituais, hoje na cidade
de S. Paulo. Mais: fazem parte do que denominamos “campo mágico
64

religioso” onde com as exceções de praxe – convivem mais do que se


degladiam. Ou seja, em vez de um comportamento baseado no
proselitismo sectário, estabelecem entre si relações de contato, troca,
esforço, Outra característica de sua peculiar forma de existência na
metrópole é a utilização da tecnologia: bênçãos através de rádios,
previsões, missa, sessões, curas e cultos via TV, mapa astral pelo
computador, consultorias espirituais, marketing, etc. De modo que a
modernidade não só não acabou com o chamado obscurantismo de
práticas “irracionais” como terminou sendo um instrumento de sua
propagação /.../ O que se vê não é apenas uma continuidade das práticas
mágico-religiosas como sua coexistência com a tecnologia.” (MOGNANI,
J.G.C., 1991: 07)

A utilização em grande escala dos meios de comunicação de


massa na difusão religiosa mostra a eficácia dos mesmos no mercado
religioso.
No âmbito religioso detecta-se a existência de programas
propriamente religiosos voltados para públicos-alvo bem definidos, como
também programações, que difundem noções religiosas consensuais
voltadas ao público em geral. É de se perguntar porque esses grandes
complexos produtores de imagens, palavras, ritmos, abrem espaços as
ideias religiosas. De um lado, os meios de comunicação operam como
um sistema mercantil-cultural, assim eles recriam, reformulam e
repassam em larga escala bens simbólicos produzidos por uma gama
imensa de instituições economicamente poderosas, vendendo seus
serviços a elas. De outro lado, condicionados ao consumo, a produção
dos meios de comunicação está limitada ao compatível com a maioria.
Procura-se adequar a produção ao universo de aspirações do público,
estimulando nele a demanda e tentando homogeneizar os gostos. Existe
uma realidade cultural, estruturada a partir das relações sociais internas
aos consumidores, que os meios de comunicação tem que levar em
conta para que alcancem êxito.
A música e a imagem vêm de equipamentos produtores externos
e distantes aos indivíduos e grupos sendo consumidos maciçamente.
Rádio, televisão, jornais, telenovelas, gibis: tudo isso é fabricado em
série, é montado na base de algumas receitas de êxito rápido, que
operam em cima de convenções sociais do universo simbólico do
público.
65

“Os processos psicológicos envolvidos nesses programas são em geral,


os de apelo imediato: sentimentalismo, agressividade, curiosidade. Há
uma dosagem de realismo e conservadorismo que, ao mesmo tempo,
excita o desejo de ver, mexe com as emoções primárias e as aplaca no
happy end. Tudo o que é posto em crise no decorrer do programa ou do
texto ilustrado é reestruturado no fim.” (BOSI, A., 1992: 157)

Na amostragem realizada, a penetração dos programas


estritamente religiosos alcançou 43,5% dos entrevistados.

VOCÊ ASSISTE ALGUM PROGRAMA RELIGIOSO DE RÁDIO OU TELEVISÃO?

ASSISTEM.........................................................................87 (43,5%)
NUNCA ASSISTEM...........................................................106 (53%)
NÃO RESPONDEM............................................................7 (3,5%)
(AMOSTRAGEM)

O fato da maioria dos entrevistados nunca assistirem a programas


religiosos reflete a postura do público-alvo da pesquisa: pessoas que não
participam assiduamente das agências religiosas.
Os meios de comunicação vivem da propaganda e estão sempre
dispostos a agradar o maior número possível de espectadores.
(DROOGERS, A., 1987: 74)
A coexistência das práticas religiosas e tecnologia é
acompanhada pela convivência, de esquemas mentais religiosos. No
nível da consciência convivem quadros de interpretações de
interpretações da realidade distintos e até contraditórios, mas que não
se excluem. Assim, uma interpretação científica de um fato não exclui a
possibilidade de uma interpretação religiosa do mesmo.
As pessoas são a um tempo “científicas” e “religiosas”, orientam-
se por categorias explicativas cujo alcance e regras de validação se
contradizem; participam de circuitos sociais cujas “experiências”, valores
e referências são distintos e até contraditório. Frequentam o benzedor,
o santo, o padre e o médico sem se perder entre eles; convivem com
várias visões de mundo. (FERNANDES, Rubem C., 1983: 09)
Voltando a questão da variedade de manifestações religiosas,
percebe-se que a busca de hegemonia religiosa é regida pela lógica e
retórica do mercado religioso de bens simbólicos. (BRANDÃO, C. R.,
1991: 04) O cruzamento do campo simbólico de sentido religioso com
outros como a ciência, a arte e as várias alternativas de misticismos
66

(qualquer sistema articulado sobre origens e destinos e tudo, e de


preceitos sobre a ética de trocas entres os seres dos vários mundos
possíveis) cria possibilidade do fator religioso se tornar cumulativo, seja
na doutrina ou nos símbolos. (BRANDÃO, C. R., 1991: 05) Isso significa
uma flexibilidade de visão do próprio sujeito, principalmente entre os
“não-praticantes”, especialistas e lideranças preocupadas com o diálogo.
(CARVALHO, J. J., 1991: 04)
Nessa realidade, cada sujeito religioso (não necessariamente
confessante e nunca foi exclusivo ou sectário) para realizar seus próprios
recortes de crença ou seu próprio código de virtude, isto é, uma
polissemia subjetiva da experiência religiosa. (BRANDÃO, C. R., 1991:
06) A possibilidade social e simbólica da transitoriedade e desejo
individual de transitar invertem, de maneira muito significativa, a lógica
da ética dos sistemas tradicionais de produção simbólica de sentido. O
fiel tem que ser uno e múltiplo. (BRANDÃO, C. R., 1991: 07) Porém nem
todos os trânsitos são de fatos viáveis. Existe um mundo de interdições
entre matrizes religiosas diferenciadas (CARVALHO, J. J., 1991: 08) e o
conjunto de noções comuns que permitem o trânsito. (DROOGERS, A.,
1987: 65) Por exemplo, uma crença que negue a existência de um Deus
soberano, possivelmente seja excluída. Aonde este transito acumulativo,
se dá de maneira clara e consciente é nas pessoas que conseguem se
colocar numa certa cultura criadora individualizada.
A recepção da cidade religiosa se dá de maneira seletiva o que
implica numa reinterpretação por parte do grupo que recebe a forma
elaborada pelos especialista. Essa interpretação é operada
conscientemente ou não no processo de circulação de mensagem
religiosa, segundo desejos, interesses e conhecimentos acumulados
pelo grupo.
A experiência religiosa pode, segundo a biografia de adesões do
sujeito, vocações assumidas perante o misticismo, reconhecimentos dos
interesses simbólicos na trajetória de busca, angustia ou estabilidade
confessional, realizar equações de símbolos e significados,
desempenhar jogos de afetos e atribuir virtudes e poder místico.
(BRANDÃO, C. R., 1991: 13)
67

Atualmente, a diversidade de domínios simbólicos religiosos e de


sistemas de sentido expande-se em todas as direções e oferece aos sujeitos
sociais, atores sociais opções de escolhas de sistemas exclusivos, próximos,
alheios ou antagônicos. No interior de um bloco social ou segmento cultural há
divergências de escolhas. (BOURDIEU, P., 1974: 13)
O campo de escolha de adesões coloca alternativas confessionais e suas
variações, mas também opções de vivencias, uso de sistemas de sentido sob a
forma de um vago e difuso repertório de crenças, ritos e códigos de construção
pessoal. (BRANDÃO, C. R., 1991: 04)
A complexidade do campo religioso e insegurança das condições de vida
abre para os migrantes favelados duas possibilidade: o fundamentalismo e o
trânsito. De um lado, os migrantes urbanos buscam uma visão de mundo do tipo
ortodoxo, fundamentalista, que assegure um ponto de referência do caos
(anomia) urbanos. De outro lado, sob o signo da experimentação, o migrante
transita entre igrejas, seitas e grupos religiosos, considerando que todas as
religiões no campo visível da fé são dotadas de verdade, valor, virtude e poder
– verdadeiras todas, nenhuma esgota a plenitude da verdade do poder.
(BRANDÃO, C. R., 1991: 04)
O transito sob o signo da experimentação parece ser o caminho
que a maioria segue, e o que se percebe no resultado da amostragem
na questão sobre a frequência a apenas uma ou mais agencias
religiosas.
Haviam quatro perguntas sobre frequência religiosa:
1 Você já fez promessa?
2 Você já foi em romaria, procissão ou missas?
3 Você já foi em igreja evangélica?
4 Você já foi em terreiro ou centro espírita?

A maioria dos entrevistados já participaram de ritos ou cultos em mais de


uma das correntes. Apenas cinquenta escolheram apenas uma opção; os
demais 150 escolheram duas ou três opções, ou seja, 75% dos entrevistados já
vivenciaram o transito religioso. Mesmo os pentecostais, que negam qualquer
legitimidade em outra forma religiosa, incorporam em seus cultos “guias e orixás”
como possessões demoníacas, o que não deixa de revelar um transito religioso.
68

Em vários depoimentos, há declarações explicitas de visitas esporádicas


ou por períodos longos a terreiros, mesa branca, igrejas pentecostais e
participações eventuais nos ritos católicos. Busca de cura, da resolução de
problemas diversos, curiosidade, entre outros justificam o transito. Posturas
condescendentes com a variedade de religiões e arredias ao conflito revelam
consensos culturais que permitem o transito. Ao mesmo tempo, há interdições-
limites, que parecem emergir quando das tentativas de absorção total do “fiel” ou
“devoto” pela agencia religiosa em relação ao pentecostalismo, é o que se
percebe no depoimento de Regis que alega admirar “crentes”, porém acha muito
difícil abrir mão da televisão. A história de Generosa é ainda mais precisa da
possibilidade do transito e nos seus limites: Durante mais de um ano ela
frequentou assiduamente uma igreja pentecostal. Assumiu tal feito com
convicção e não demonstra culpa. Ela só vai deixar a igreja a partir do momento
que o pastor lhe tenta batizar e “filiar” à igreja. Tenha-se em conta que o batizado
tem que assumir os usos e costumes da igreja; eis aí a interdição limite a perda
do anonimato e da liberdade, principalmente no embelezamento do corpo. Além
do mais, seria uma afronta a seu pai que a tinha batizado na católica. Em outra
passagem, ela afirma ter ido em centro espírita e, por ter sido ajudada tem o
dever de procurar tal culto a elasticidade da consciência religiosa encontra limites
mas muito distantes da ortodoxia-dogmática das agencias religiosas.

“G. Andei mais de um ano, aí quando o pastor me deu um papel assim


para mim batiza, civil, falei assim, olhei bem assim no pastor, seu domingo,
eu acho que isso não é certo não.
Ele falou de que? Eu já sou batizada, meu pai fez o meu batismo, e eu
não vou desfazer aquilo que Deus fez, não. E mas você não sabia, você
não viu, que não sei o que. Você tem que decidir. Digo, não, duma vez
que meu pai procurou meus padrinhos para me batizar, ele fez tá bem
feito; não tem que vá me tomar. Eu não vou decidir isso não. Não daqui a
quinze dias você vem. Não sei o que. Falei tá bom. Fiquei, fiquei, eu não
fui, ele foi na minha casa. Peguei, aqui seu papel, ele falou não mulher eu
vim aqui lhe explicar, eu vim chamar você para batizar amanhã, mas cê
não tem que usar calça, esse negócio que passa nas unhas, esse negócio
que passa nos beiço, esse outro não sei de que. Eu falei ainda mai, nós
não pode cortar cabelo, não pode ir na festa, não pode ir em baile. Eu
digo, vou ficar presa de novo. Deus me livre. Eu já fui criada desse jeito,
que não tinha direito de sair de lugar nenhum. Agora depois que eu tô por
a minha conta, que eu posso viver, eu vô presa de novo, digo, sai fora, eu
não quero mesmo não. Pode levar seu cartão eu não vou marcar. Peguei
e saí, ele falou que era um servo de Deus, que Jesus tava chamando.
Falei deixa ele chamar.” (DEPOIMENTO DE GENEROSA)
69

O transito aponta para um auto consumo religioso que evita a totalização


do indivíduo em alguma agencia religiosa e, ao mesmo tempo, permite uma
experiência religiosa supõe a variedade, a pluralidade, ao mesmo tempo, uma
consciência unificada. Permite a distinção daqueles que vivem subalternos, de
um grupo de origem, de um indivíduo. Isto implica que o fiel seja múltiplo. O
transito religioso é uma estratégia de resistência que vem desde o período
colonial brasileiro, aonde a religião oficial foi imposta e as demais reprimidas.
Esta estratégia foi transplantada junto com a migração para as cidades, agora
não mais para enfrentar a repressão religiosa, mas para enfrentar a pluralidade.
O transito é assim um componente fundamental da psique coletiva brasileira. É
o que se percebe nos depoimentos em relação a defesa da pluralidade e
variedade de religiões. Generalizando este dado à vida metropolitana do
migrante, pode-se afirmar que a pluralidade não seja um fator de desagregação
da psique dos migrantes. Numa sociedade caracterizada pela complexidade,
pluralidade e incerteza, num campo de aonde experiências religiosas “intensas”
ocorrem em várias religiões, num sujeito social sempre ameaçado de ser
manipulado, a religião popular é caracterizada fortemente pelo respeito à
variedade, à liberdade de escolha religiosa e à desconfiança. As afirmações que
se seguem aparecem na coleta de depoimentos e esporadicamente na
amostragem. Revelam certas opiniões que são consensos sociais sobre as
religiões e fundamentam a possibilidade do transito religioso a partir de uma
certa religião mínima.

“Todas são iguais”


“Todas são a mesma coisa”
“Tanto faz, todas elas tem um interesse”
“Estão crescendo e dividindo a opinião das pessoas religiosas”

Não aparece no texto, nem seria possível, a entonação da voz


usada nessas afirmações: um certo tom de desconfiança.
O poder escolher a própria religião é afirmado como um direito,
um reconhecimento da pluralidade religiosa estabelecida:

“Cada qual segue aquilo que gosta, que acha melhor, que lhe é
conveniente.” (AMOSTRAGEM)
70

Questionado sobre o que achava de tantas religiões, Antônio afirma que


se a pessoa põe “fé e é ajudada, então a religião é válida”. Conseguir ajuda
depende da fé que se põe; pondo fé em qualquer uma é eficaz. O critério ode
validação religiosa é a proteção, regida por uma relação de obrigação-proteção
entre o fiel e o santo, típica da religiosidade do catolicismo popular e dos cultos
afro-brasileiros.

“F. Que acha de tantas religiões?


E. Não tenho idéia.
A. È bom.
F. Faz bem?
A. Faz bem. Uma coisa, que você põe fé, você é feliz. Você normalmente é
ajudado
É ou não é? Que você acha? /.../
G. Tudo Existe?
A. Tem. Tem, tudo existe. Tem vários tipos de religião, vários tipos de santo,
tudo existe. Tudo tem seu protetor. Acho que sim, né”.
(DEPOIMENTO DE ERCILENE E ARNALDO)

“A. Acho que isso aí vai da fé da pessoa, né.”


“A. Sei lá. Religião cada qual tem sua.”
(DEPOIMENTO DE ARNALDO)

“F. Na de crente você entra?


A. Ás vezes, eu entro, já tenho entrado, qui não, no norte.
Posso entrar, só para assuntar mais o pessoal lá. O movimento crente,
né. Acho que tá certo tudo é lei, é religião. Entendeu, cada que siga
aquilo que gosta, que acha que é certo. Para mim acho que é certo é
a católica, entendeu? Minha religião é essa.”
(DEPOIMENTO DE ARNALDO)

“R. Cada um decida o que quer.


A. O que pensa. Se eu vê que é melhor ser crente. Aí pode seguir. Agora
para mim mesmo é a católica.
R. Crente eu acho assim. Um problema de saúde, pego aquela gana,
vai ficando melhó, aí se converte. Cada um tem uma história pra conta,
negócio de crente. Davi Miranda chega lá, melhora, daí se converte,
aí é crente daqueles fanático.”
(DEPOIMENTO DE ANTÔNIO E REGIS)

Ao mesmo tempo que respeita todas as religiões e se reconhece nelas


uma utilidade e poder, também se mantém uma postura de desconfiança em
relação a elas.
Vale a pena destacar, nesse bloco de depoimentos sobre a variedade de
religiões, a afirmação de opção e trânsito religioso. As diversas manifestações
abrem a possibilidade de escolha e do trânsito. O ter “fé” parece ser uma
71

necessidade inquestionável, acompanhada do direito de escolha: direito


afirmado explicitamente.

5.3 OS ESQUEMAS RELIGIOSOS DE PERCEPÇÃO DOS


NORDESTINOS

5.3.1 Os Esquemas de Percepção

A religião exprime as convicções pessoais, as grandes seguranças que


dão valor à vida. Diz respeito a uma filosofia de vida, uma visão de Deus, do
bem, do mundo e uma série de atitudes práticas de piedade e devoções.
(HOONAERT, E., 1978: 49) A religião não vem da catequese, embora essa
concorra para formar o universo religioso.

“O ambiente no qual a pessoa nasce e cresce, a tradição oral dentro de


casa e na porta da casa (as longas horas de casa), os costumes herdados
dos antepassados, tudo isso concorre poderosamente para a formação da
religião tradicional, que não é simplesmente uma vaga religiosidade, mas
que tem a sua consistência.” (HOONAERT, E., 1978: 96)

É o que se percebe em afirmação como esta de Generosa: “Meu pai fez


o meu batismo e não vou desfazer o que Deus fez”, quando se negou a ser
batizada numa seita evangélica. A sua adesão a um ritual vem do passado
camponês mediado pelo laço de parentesco e, quando na cidade, a tradição
resiste e é utilizada para se posicionar ao ter que tomar uma decisão.
As pessoas interpretam o meio, a partir de quadros de referência
resultantes da aprendizagem social de mitos e símbolos.
Existe uma pluralidade de grupos com identidades distintas na sociedade;
a configuração de grupos de referência depende da distância ou proximidade
com os grupos ou grupo (camada ou classe) no qual se originou.
(HALBAWACHS, M., 1990: 33)
A experiência religiosa supõe também uma disposição afetiva. A
percepção não é um registro mecânico dos dados dos sentidos, ao contrário,
uma experiência ocorre num contexto de disposições, motivações e quadros de
representações que definem papéis sociais que devem ser assumidos –
entendendo-se papel social como respostas tipificadas a expectativas tipificadas,
ele fornece o padrão segundo o qual a pessoa ou outrem deve agir numa
72

situação. A definição de papéis (humano e transcendente), num quadro de


representações e práticas sociais, políticas e econômicas. O conjunto das
interpretações, explicitações e cosmovisões de caráter místico são princípios
estruturantes da compreensão de si mesmo, das relações sociais, do sistema
econômico, do mundo e da vida.
Na formação da religião, sentimentos, crenças, atitudes e valores dos
populares atuam esquemas de percepções, motivações e comportamentos que
não chegam a ser um sistema lógico-racionalmente organizado, mas possuem
uma força psicoativa decisiva. (VALE, E., 1976: 175)

“O homem pobre conhece o uso da matéria por força das suas obrigações
diárias, lida com a terra ou com instrumentos mecânicos, que são o seu
meio único de sobrevivência. Daí lhe vem um realismo, uma praticidade,
um senso vivo dos limites e possibilidades de sua ação, que convergem
para uma sabedoria empírica muito argalada, o que é a sua principal
dessa numa economia adversa. Mas esse mundo de necessidade não é
“desencantado”. Há na mente dos desvalidos uma relação tácita com
forças superiores; e assimila ao mesmo panteão os ídolos provindos da
comunicação de massa, ou, eventualmente, as pessoas mais prestigiadas
no interior da sociedade. (BOSI, A., 1975: 158) Há uma combinação entre
um empirismo ou realismo no trabalho e na esfera econômica básica com
um universo potencialmente mágico (construídos de acasos, azares,
sortes, simpatias, maus-olhados, pés-direitos e pés-esquerdos, ervas
animais, imagens, fotos, figas, fitas, amuletos, bentinhos e pedras.” (BOSI,
A., 1980: 158)

A vida prática parece envolvida por um certo mistério que a torna


dependente da dominação religiosa.
A religião cura o corpo e mais longinquamente purifica a alma, ela serve
para curar e re-curar o espirito afligido através de alguma artimanha interna ou
exterior do sujeito. (BRANDÃO, C. R., 1991: 2) Os sujeitos populares tendem a
personificar os seres sagrados.

“O catolicismo populares em suas várias vertentes, os cultos “afro” e o


pentecostalismo sugerem a adesão da pessoa não apenas a uma igreja
ou semelhante, mas ao “meu santo padroeiro”, a “minha madrinha Nossa
Senhora”, ao “meu anjo da guarda”, ao “meu Jesus Cristo único salvador”,
ao “meu orixá de cabeça”, ao “meu espírito protetor”. (BOSI, A., 1985: 12)

A fé religiosa popular pode acrescentar explicações ou soluções


mágicas para problemas cotidianos ou chegar a refundamentar para a
nova direção o conjunto das motivações da vida cotidiana. (ASSMANN,
H., 1986: 566)
73

É o que se percebe no cruzamento das alegações de motivações da


procura do catolicismo popular, espiritismo e pentecostalismo na amostragem na
área.
Perguntamos quais os motivos que os levaram a fazer promessas, ir a
romarias e missas ou a frequentar igrejas evangélicas e terreiros ou centros
espíritas, a maioria dos entrevistados alegou necessidades de resolução de
problemas financeiros familiares, vícios, violências, doenças, moradia,
desemprego, etc.
Atualmente a variedade de manifestações religiosas representa entre
outras coisas um busca por grupos de pertencimento, de encontro, de partilha,
de valores e controle mútuo. Numa grande metrópole com S. Paulo, se trata de
sentir-se membro de um pequeno grupo de referência, situar-se numa rede de
sociabilidade, mostrar sinais de reconhecimento, “os irmãos”, “os adeptos”, e de
diferenciação, os “iluminados”, os “eleitos”, etc. Pelas vestes os evangélicos são
reconhecidos de longe em Heliópolis, principalmente as mulheres.
Frente a imprevisibilidade do dia-a-dia, as práticas e os jogos divinitórios
têm o particular efeito de produzir, no aparelho psíquico de seus usuários, um
fortalecimento da sensação de autoconfiança, eliminando ou reinterpretando os
focos de tensão e medo. Confirma esta afirmação o grande número de pessoas
que afirmaram crer em signos: 84 (42%). Dessa forma, tanto as religiões
tradicionais como as novas, continuam sendo sistemas de símbolos que
norteiam a vida e dão significado ao mundo. É a mesma antiga necessidade que
se tem de pôr ordem – alguma ordem, mas consistente, totalizadora, às
consequências da vida e dar sentido às suas grandes e perenes questões.
(MOGNANI, J.G.C., 1991: 7)

“No coração de cada homem do povo convivem uma resignação


fundamental e uma esperança sempre renascente”. (BOSI, A., 1985: 63)

Por sim, uma das características do saber popular é ser altamente


influenciado pela indústria cultural e instituições de poder de saber, religiões, etc.
Dificilmente se encontrará na área uma casa que não tenha uma televisão, um
rádio, toca-disco e toca-fita. Porém ocorre uma reinterpretação assimilando
compreensível no universo simbólico, o compatível com a manutenção do
equilíbrio da personalidade.
74

“Há um filtro, com sujeições maciças de matéria impertinente e


adaptações sensíveis de matéria assimilável. De resto, a propaganda não
consegue vender a quem não tem dinheiro. Dá-se imagens, palavras e
ritmos que são incorporados ou reincorporados pela generosa gratuidade
do imaginário popular”. (BOSI, A., 1985: 63)

Esse fenômeno já foi aludido nas religiões na relação entre o corpo de


especialista e os leigos – aonde os últimos constroem uma experiência religiosa
distinta das religião dos eruditos, mas que utiliza seus elementos e convive com
ela.

5.3.2 Matrizes de Interpretação Religiosa do Nordeste Camponês

Esse saber religioso se articula a partir dos quadros de representações


simbólicas de origem, dos elementos religiosos básicos de uso comum,
reforçados pelo menos de comunicação cotidiano.
A grande maioria dos moradores da favela Heliópolis é originária do
nordeste-camponês e traz de sua origem as vertentes de suas representações
religiosas: o catolicismo tradicional popular, os cultos afro-brasileiros e o
pentecostalismo. Essas três matrizes de interpretações forneceram os
elementos simbólicos para a reelaboração dos quadros de representações
religiosas na vida metropolitana.
O catolicismo tradicional-popular tem suas origens no período colonial.
Caracterizado pelas profissões, espetáculos, devoções e milagres herdados do
catolicismo lusitano; pelo padroado em que a figura do rei era mais forte do que
a do papa; pelo espírito de cruzada contra os invasores holandeses, tribos e
quilombos, pela impregnação de toda a vida pública pelas ideias religiosas e pelo
culto familiar, oratórios, capelas, e direção patriarcal do culto e formação religiosa
dos filhos. (CAMARGO, C. P., 1973: 96-101) Os grandes cultos de massa e
devoções do Brasil colônia passaram pelos leigos organizados nas irmandades,
confrarias, ordens terceiras, companhias e folias (OLIVEIRA, P. A. R., 1976:
133); eram momentos de festa: folia de reis, festa do divino, procissão das almas,
festas juninas, etc. (OLIVEIRA, P. A. R., 1976: 136) A crise com Pombal estatiza
a Igreja ao mesmo tempo que a enfraquece (expulsão de jesuítas e ordens).
Desenvolveu-se nas áreas rurais uma vivencia religiosa distanciada dos padrões
75

da hierarquia sacramental católica, mas tolerada. (CAMARGO, C. P., 1973: 32)


Ermitões e sacristães leigos reuniam o povo para rezar. (OLIVEIRA, P. A. R.,
1976: 136)
O círculo já bastante amplo das relações de parentesco na família
patriarcal camponesa foi ampliado pela instituição do compadrio – uma extensão
familiar por meio de uma instituição religiosa.
A ruptura com o catolicismo oficial de estado impelirá uma forte
clericalização-romanizada ao catolicismo tradicional. No nordeste a figura do
missionário passa a ser o centro das pregações, com uma pregação
marcadamente tridentina, reduzindo a mensagem cristã ao âmbito individual e
moral, exaltação da obediência e penitência; identifica vida cristã e
devocionismos. (HOONAERT, E., 1978: 77-86)
A influência do catolicismo tradicional-popular fica clara na amostragem
pelo número de entrevistados que já frequentaram ritos de massa do mesmo e
nos depoimentos. O fato de muitos não lembrarem quem os convidou indica uma
indicação na infância, aonde ir a esses rios aparece como algo natural e não
como opção.

VOCÊ JÁ FOI EM ROMARIA, PROCISSÃO E MISSAS?


Já frequentaram alguns desses ritos.....................................................................177 (88,5%)
Não frequentaram..................................................................................................5 (2,4%)
Não frequentaram..................................................................................................18 (9%)

QUEM CONVIDOU?
(Porcentagem dos que responderam sim)
Ninguém................................................................................................................67 (37,8%)
Parentes.................................................................................................................42 (23,7%)
Amigos ou colegas.................................................................................................42 (23,7%)
Padre......................................................................................................................4 (2,2%)
Não responderam...................................................................................................36 (20,6%)
(AMOSTRAGEM)

Em vários depoimentos se faz menção a santos protetores e


lugares de culto no nordeste. Nossa Senhora do Brejo da Serra (Avelino
Lopes – PI), Nossa Senhora da Lapa (LAPA – BA), Monte Santo (Bahia),
S. Francisco. Geralmente ligado ao passado, o culto a esses santos ou
é atualizado pelos parentes e amigos que estão no nordeste ou é
adaptado através da devoção a outro santo protetor. No depoimento de
Ercilene, ela testemunha que conversa com Nossa Senhora Aparecida
76

e que confia muito nela, para ela é a mesma Nossa Senhora do Brejo da
Serra, só que aqui muda de nome. Porém não muda só o nome, símbolo
verbal, a imagem com a qual conversa é outra (pequena, negra, com
manto azul), o lugar de culto é outro. A necessidade de relação pessoal
com o santo é atualizada, agora no contexto urbano e sulino.

NOSSA SENHORA DO BREJO DA SERRA


“E. Lá é a mesma Nossa Senhora Aparecida do Norte. Só que lá eles fala
Nossa Senhora Aparecida do Brejo da Serra.
F. Nossa Senhora Aparecida do Brejo da Serra? Sabe por quê?
E. Não, não sei.
F. Deve ter aparecido lá, alguma coisa assim?
E. Diz que apareceu na serra. Diz que achava ele na serra.”
(DEPOIMENTO DE ERCILENE)

“A. Acho que isso aí vai da fé da pessoa, né.”


“A. Sei lá. Religião cada qual tem sua.”
(DEPOIMENTO DE ARNALDO)
NOSSA SENHORA DA LAPA
“A. Tem um santo muito protetor. Nossa Senhora da Lapa, lá.
(DEPOIMENTO DE ARNALDO)
MONTE SANTO
“R. Crente tem muito lá. Lá é festa assim religiosa. Tem um morro lá com uma
igreja, tem um santuário. Todo feriado como o de páscoa agora dá bastante
gente, que vai pagar promessa. Aonde foi gravado aquele pagador de
promessas”. Foi lá.
R. É o nome do lugar Santo. Não, tipo assim, que nem Nossa Senhora
Aparecida. Cristo Redentor, não é assim. É uma cidade religiosa, mas não
tem um santo que nem Padim Ciço, não é. Tipo assim como Nossa
Senhora das Dores.”
(DEPOIMENTO DE REGIS)

S. FRANCISCO
“M. Enquanto eu vivesse nunca mais eu trabalhava naquele dia. Quarta feira.
Como deu certo. Deus me ajudou e S. Francisco só ficou o lugarzinho assim,
no quadril, um pouquinho.”
(DEPOIMENTO DE DONA MARIA)
Os cultos afro-brasileiros e indígenas foram considerados como
“feitiçaria”, superstições e “pacto com o demônio” no tempo colonial, e o
espiritismo no século XX. (HOONAERT, E., 1978: 07) Os escravos africanos
violentamente deportados para o Brasil não podiam transportar abertamente a
sua religião; os índios violentamente reduzidos a aldeamentos e vilas dificilmente
conseguiram difundir ou realizar seus cultos tradicionais. Contudo, suas religiões
continuaram a existir e a se difundir, porém reprimidas por preconceitos, tabus e
coerção oficial. (HOONAERT, E., 1978: 71) Na Colônia, as alternativas religiosas
77

ao catolicismo mantiveram-se circunscritas à clandestinidade, apesar de


recriaram-se continuamente com as sucessivas vinda de levas de escravos.
(HOONAERT, E., 1978: 100 / AZEVEDO, T. de, 1981: 14)
Conforme conta Regis, no seu depoimento, saiam caminhões lotados nas
sextas à noite para irem ”macumba”. Ele afirma que ia, mas não era macumbeiro,
ia se divertir. Esse caráter de festa também é encontrado nas grandes
manifestações religiosas do catolicismo popular.

“R. Terreiro de umbanda já fui, mas não sou macumbeiro, nem nada. Mas já
frequentei quando era mais novo. A gente ia pra bagunçar, namorar, zuá.
Chegava lá entreva ná. Batê tambor. Aqueles tambozão alto, ficava batendo,
né. O povo todo de branco lá, manifestando, caindo por cima do outro. Nós leva
aquele espinho de mandacaru. Quando nós dava com tambor, espetava
aqueles espinhão grande ali, entreva té o pé. Se o cara tiver manifestado memo
ele não sente não. Não sente. Agora tinha muitos cara que fazia que tava, ai
gritava. Era malando. Os cara levava bebida pra bebe escondido. Escondia no
caminho, nós ia buscar depois. Ficava com aquelas lanterna assim procurando,
achava aqueles litrão de uísque. Bebida boa!
A. Ah é...
R. Lá sai caminhão lotado pra fazer sexta feira a noite assim. É gente pra
caramba sai aqueles caminhão de gente. Pra fazer trabalho, essas coisa.”
(DEPOIMENTO DE REGIS)
Um outro caso é contado por Dona Maria que fala do irmão do seu marido
que punha fé “nessas coisas de macumba” e levou seu marido para ser tratado
por um homem que curava.

“F. Morreu de uma hora pra outra, então?


M. Ele vivia doente. A tempos que ele vivia doente, mas fazendo tratamento.
Fazendo tratamento. E tinha um irmão dele que dava crença e essa coisa de
macumba, né. Então ele levou ele lá em casa dum homem, diz que fazia
tratamento dessas coisa, tava pra lá, lá ele morreu. Agora, ele morreu, vivia
doente, mas vivia. Ele morreu no dia 28 de fevereiro, um dia de domingo,
aondeele tá doente. Ficava distante de casa, três léguas, e eu fui peguei um
burro, pus cela e montei, e joguei o menino na garupa e fui visitar ele, passei
lá o dia com ele, aonde ele tava. Aí eu chamei ele, se ele queria vir pra casa,
ele falou, não. Só vou quarta feira. Quarta feira você vem. Vem de burro pra
mim ir; eu vou pra casa.
F. Que lugar era esse na casa?
M. Era numa casa, nos interior, na chapada.”

Em ambos os depoimentos se constata a presença dos cultos afro-


brasileiros, porém o depoente não se inclui como participante de tal crença.
O pentecostalismo tem uma “militância” aguerrida, busca responder a
questões imediatas, incorpora os entes dos cultos afro-brasileiros em seu culto
78

na forma de “demônios” e trabalha a dimensão emocional, daí se tornar tão


próximo ao universo religioso nordestino.
Os líderes dos cultos pentecostais são da mesma cultura e possuem a
mesma cosmovisão popular, justamente a cosmovisão ameaçada, se
apresentam como fator de segurança, garantia, continuidade do tradicional. A
aparência exterior é diferente do catolicismo tradicional, mas o sistema de
interpretação do mundo, os pontos de referência são muito parecidos: salvação
individual da pessoa, promessa de vida eterna, abandono do pecado, pregação
contra o pecado de sexo e vícios, curas, etc.
Antônio, 27 anos, a sete anos em S. Paulo, portanto de migração recente,
mostra o pentecostalismo no interior no interior do nordeste como uma das
opções religiosas:

“Ás vezes eu entro, já tenho entrado, aqui não, no norte. Posso entrar, só pra
assuntar mais pessoal lá o movimento crente, né.”
(DEPOIMENTO DE ARNALDO)

5.3.3 A Distinção entre Lei e Religião

O nordeste faz uma distinção entre “lei” e “religião”. A lei vem de


cima, é um elemento exterior, representa uma ordem que não muda,
uma ordem de coisas estáveis. Todo homem tem sua lei. Cada igreja é
uma lei. Uma lei que tem de se seguir, mesmo sem entender muita coisa,
diante da qual se assume a ignorância. (HOONAERT, E., 1978: 49) O
mais seguro é seguir a lei onde a pessoa nasceu. Seguir a lei católica,
por exemplo, é batizado os filhos, acompanhar as festas, ir à missa das
festas (ligadas a músicas, esplendor, movimento, cor, beleza; é missa
para se ver). (HOONAERT, E., 1978: 51)
A lei crente cria comunidade, explica melhor as coisas, fala muito
em evangelho, se baseia na Bíblia e irmandade dos eleitos.
(HOONAERT, E., 1978: 54)
A atitude diante da lei é de respeito e submissão.
Catolicismo e protestantismo são antes de tudo “leis”,
organizações religiosas, enquanto os cultos afro-brasileiros são vistos
79

como um conjunto de crenças de interpretação e manipulação de fatos


da vida.
Nas três falas que se seguem, Antônio, Elmiro e Generosa usam
o termo lei ao se referir a igreja católica e igreja de crente. Não utilizam
o termo religião.

“A. Não lembro, não. Se chegaro a fazer, não lembro, não. Sei que são muito
religiosos, pela lei católica.”
(DEPOIMENTO DE ARNALDO)

“E. A minha lei é a católica, a lei de crente para mim não. A minha lei é a
católica, mesmo eu acho que um cara depois se batizá não é certo não.
G. Vem aqui, vem aqui seu Domingo, eu nunca vi um crente que ele hoje é
crente, já foi católico. Passa pra lei crente, alguma coisa não deve ser ele
deve ter feito. Ele falou assim, quem falou pra você. Se acha que eu sou
tão besta assim, eu sei já aprontou. E, justamente, já mesmo. Por isso que
a gente tem que convertê, ele disse, para Cristo perdoa, que não sei o
que. Eu nunca aprontei nada demais. É o dia que eu aprontá quem vai me
perdoar é Deus, se eu merecer esse perdão, se não merecê deixe que vá
lá pros canto ruim.”
(DEPOIMENTO DE ELMIRO E GENEROSA)

Enquanto a lei se refere ao aparelho burocrático religioso, a


religião aponta para um modo de encarar a vida, e para o encantamento
do mundo.
A constituição de uma religião dos migrantes nordestinos
favelados de Heliópolis nos espaços de autonomia vem resgatar a
identidade de origem, enfrentar a complexidade e mobilidade do mundo
metropolitano, possibilitar a convivência com a padronização dos meios
de comunicação e com os aparelhos burocráticos religiosos tradicionais,
superar as agruras da pobreza e más condições cotidianos da vida:
enfrentar a contingência e desespero existenciais, entre outros objetivos.
Enfim, pode-se enfocar essa experiência religiosa como uma forma de
resistência popular.
80

CONCLUSÕES

“Buscai e achareis” já dizia o “velho mestre”. A primeira questão é definir


o que se está procurando. As CEBs de Heliópolis vêm buscando: combinar a
organização de pequenos grupos religiosos com o desenvolvimento de ações de
mobilização massiva; articular a consciência crítica com o senso comum do
povo. O trabalho dos agentes junto ao povo supõe o aprofundamento do
conhecimento sobre a religião dos populares. Daí a pesquisa partir a questão:
“qual a religião dos trabalhadores pobres – migrantes nordestinos – favelados de
Heliópolis que não participam assiduamente de nenhuma agencia religiosa?”
81

Esta pesquisa se situou no âmbito geral da metodologia da pesquisa-


ação, porém tentou-se elaborar uma configuração de pesquisa-ação com
delineamentos específicos e precisos que levasse em conta a situação e a
realidade local. A pesquisa pretendeu ser uma contribuição ao desenvolvimento
da pesquisa-ação. O êxito da pesquisa esteve diretamente ligado à profundidade
do conhecimento e sua apropriação pelos dirigentes das CEBs.
Optou-se por uma compreensão da formação da religião popular a partir
da sua contextualização e levantamento da realidade religiosa local. Foi usado
como princípio metodológico que conhecer essa religião é compreender as
condições nas quais ela se forma. A pesquisa teórica se dirigiu no sentido de
desvelar as principais condições e elementos que influenciam na formação da
religião popular. Não se intentou fazer um mero levantamento de crenças e
práticas dos trabalhadores de Heliópolis.
Nessa perspectivas se transitou por categorias da sociologia, história,
antropologia, psicologia e filosofia. Levantaram-se apontados sobre a realidade
urbano-industrial-metropolitana e a variedade de manifestações religiosas na
cidade, sobre a favela Heliópolis, sobre os migrantes de Heliópolis e suas
matrizes religiosas de origem no nordeste; tratou-se dos conflitos internos na
ação católica na área; apontaram-se as contradições entre religião popular e as
agencias burocrático-religiosas; analisaram-se os elementos culturais e
psicológicos que atuam na formação do saber religioso popular: as micro
instituições, os espaços de autonomia, a polissemia de sentidos, os elementos
religiosos básicos de uso comum, os quadros de referência. Estudou-se a
atuação do saber afirmativo-defensivo na percepção da mensagem religiosa.
De maneira geral, o método partiu do geral e do particular para
compreender a realidade. Na escolha desses conteúdos teóricos esteve
subliminarmente presente o parâmetro do real vivido; isso é compreensível pela
condição de inserção do pesquisador, porem esse “real vivido” não era um
procedimento científico pré-concebido, como em uma observação participante.
A coleta de dados ocorreu concomitantemente à pesquisa teórica, o que se
acabou transformando-a num reforço às constatações sobre a religião e não o
ponto de partida propriamente dito. Essa postura metodológica se, por um lado,
permite uma compreensão crítica da religião popular, de outro dificulta a inalação
de ações concretas para as CEBs. Isto ocorre a medida que não se apontam
82

ritos, crenças ou práticas religiosas específicas que devam ser assimiladas no


cotidiano das CEBs. A compreensão das condições gerais de formação da
religião popular permite a definição de diretrizes gerais da ação, para
posteriormente concretizá-las em programas de ação. Operar com a linguagem
científica implica num distanciamento. A tensão constante entre proximidade e
distanciamento parece ser fundamental para uma compreensão crítica da
realidade social. Como a inserção foi mais consequência de uma postura pessoal
e de uma relação social já estabelecidas do que um a-priori metodológico de
pesquisa, no geral os princípios colocados foram implementados.
Para garantir o retorno dos resultados da pesquisa às CEBs Heliópolis,
além da participação das reuniões mensais da coordenação, foram realizadas
conversas em separado com os dois padres que dirigem os trabalhos pastorais,
uma tarde de estudo com os três agentes que acompanharam a primeira coleta
de depoimentos, um seminário de estudo com a coordenação das CEBs a uma
discussão sobre o transito religioso. Além da entrega dos resultados da pesquisa
aos padres dirigentes das CEBs e da sugestão de diretrizes de ação ao conjunto
dos agentes.
Inicialmente a problemática da pesquisa apontava para um universo de
pesquisa exterior ao conjunto dos agentes de pastoral (entendidos como um
grupo homogêneo) que seriam os “católicos não-praticantes”, pessoas sem
vinculação orgânica a nenhuma agência religiosa. Porém, no seminário de
estudo realizado em novembro de 1992 com os agentes locais, à medida que
estes expunham suas experiências ficou claro que a religião dos agentes leigos
não s e diferenciava dos pesquisados na área durante o ano. A maioria dos
testemunhos apontava para experiências de transito em terreiros e mesclagem
de crenças. Esta constatação pôs por terra a distinção inicial da problemática da
pesquisa, ao mesmo tempo que deixou clara a distância econômico-cultural dos
especialistas (padres e seminaristas) dos agentes locais. Explicitar a realidade
de trânsito e tirar dela as consequências na ação parece ser um desafio ainda
por se resolver na organização. Isto demonstra uma falha do pesquisador no
tocante a um princípio afirmado no item “configuração da pesquisa-ação”: levar
em conta as relações de poder existentes na organização na qual se desenvolve
a pesquisa. Um outro problema: até que ponto é possível ao pesquisador
83

compartilhar o projeto da organização, quando este implica em opções de fé


diferentes das convicções do pesquisador?
Embora tinha sido aprovado em assembleia e tenha-se discutido a
pesquisa em todas as reuniões mensais, as CEBs de Heliópolis não estão
suficientemente consolidadas para inferir da discussão de diretrizes práticas de
ação. Há inclusive entre um dos especialistas-dirigentes (padre) de peso nos
trabalhos pastorais uma certa resistência à implementação de planejamentos
detalhados, o que vai de encontro aos interesses da maioria dos agentes. Assim
se discute as ações do dia-a-dia de uma “agência” religiosa (ritos, cultos,
encontros), mas não se registra e “fecha” questões em torno de problemas mais
gerais. Soma-se a esses fatores, o fato das CEBs estarem sob a “sombra” do
movimento popular na área, detentor das lideranças mais experientes e
estruturas físicas; acaba-se sempre por dar prioridade em encaminhamentos do
movimento, em caso de falta de tempo.
A aliança movimento popular-padres também passa pelo financeiro: o
primeiro cedeu dois terrenos para capelas e cede centros comunitários para
reuniões e celebrações religiosas; os segundos, em compensação, cederam
uma máquina de xerox, um computador ultrapassado, um sistema completo de
alto-falantes para o rádio popular e têm contribuído nas reformas dos centros
comunitários. Tanto as CEBs quanto o movimento popular têm tido dificuldade
em desenvolver trabalhos de educação e mobilização de massa; não se
conseguiu perceber a contribuição que a pesquisa daria nessa questão. A
construção de dois espaços religiosos na área foi uma medida encaminhada
pelos padres para atingir esse público pesquisado. Também a organização de
procissões, novenas e terços na área são tentativas de resgatar o catolicismo
tradicional do nordeste camponês à luz da teologia da libertação.
84

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