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A FORMAÇÃO
DO CAPITALISMO
DEPENDENTE
NO BRASIL
EDITORA BRASILIENSE
1982
Índice
Introdução ................................................................................ 9
Capítulo I
Elementos de crítica................................................................. 13
Capítulo II
Um esboço de método................................................................ 27
Capítulo III
Fase Portuguesa: A dependência colonial................................. 45
Capítulo IV
Fase Inglesa: A dependência neocolonial................................... 63
Capítulo V
Interiorização da relação de dependência: Transição pare a fase
americana e multinacional ......................................................... 107
Anexo I
Relação de produção no campo: Alguns exemplos ................... 193
Anexo II
Dados estatísticos........................................................................ 199
Ladislau Dowbor
Introdução
“O desenvolvimento econômico, reconhecemo-lo cada vez mais, não é um
problema técnico, mas sobretudo político”: Rodolfo Stavenhagen, Les
Classes sociales dans les sociétés agraires, Paris, Anthropos, 1969, p. 21.
1
Luciano Martins (dir.), Amérique Latine, crise et dépendance, Paris, Anthropos, 1972, pp. 8 e 9.
2
A importância deste debate não se limita à América Latina: numa excelente critica ao "relatório Pearson” da ONU,
Samir Amin interroga-se sobre "o sentido das transformações que exige o desenvolvimento: a) as condições e os limites
do capitalismo agrário; b) a dinâmica e os limites da industrialização extrovertida fundada no capital estrangeiro"
(Samir Amin, Développement et transformations structurelles, "Revue Tiers Monde”, 1972, 111, pp. 467-490).
fase portuguesa, que durou até o início do século XIX; no capítulo IV analisamos a dependência
relativamente à Inglaterra; no capítulo V, enfim, abordamos a transição pare a fase atual,
caracterizada pela dominação dos Estados Unidos e das multinacionais.
As linhas que seguem têm em parte o caráter de um ensaio teórico e poderão parecer
ambiciosas. Na realidade, é preciso levar em conta que a análise do desenvolvimento na América
Latina e no Brasil se manteve durante longo tempo no quadro das teorias do desenvolvimento da
Europa industrializada, transpostas com poucas modificações para uma realidade cuja dinâmica é
profundamente diferente. A falência destes esquemas de análise levou recentemente à formação de
uma escola teórica que busca, no quadro do marxismo mas sem transposições mecânicas, o conjunto
de conceitos que permitam explicar efetivamente esta realidade.
A busca de novas formas de abordar o problema e de novos conceitos oferece evidentemente
bem menos solidez do que a simples "aplicação" de esquemas rodados. Pensamos, no entanto, que
estes problemas devem ser abordados, com todas as fraquezas que isto implica, mas sem perder de
vista o seu caráter hipotético. A longo prazo, parece-nos que um certo "flutuamento teórico",
inevitável durante esta fase de transição na pesquisa latino-americana sobre o desenvolvimento,
levará a análises mais úteis para as forças progressistas do que a repetição de esquemas
ultrapassados.
Capítulo 1
Elementos de Crítica
O Todo e a Parte: Uma Totalidade com Dominante
Um dos princípios fundamentais da dialética é não se considerar a história como a
acumulação de fenômenos isolados, mas como um todo em que os diversos elementos se
condicionam reciprocamente. Este princípio é particularmente importante no estudo do
subdesenvolvimento. Com efeito, nos países capitalistas dominantes a atividade era
fundamentalmente autocentrada e autodinâmica e o aspecto externo da acumulação aparecia como
um elemento essencial mas complementar, no sentido de contribuir para uma dinâmica preexistente,
mais do que criar uma dinâmica nova. Nas economias dependentes, pelo contrário, a atividade
externa do capitalismo dominante constituía a dinâmica principal em função da qual estas
economias dependentes se desenvolviam. Na formulação correta de S. Amin, "as formas de
integração internacional condicionam o ritmo e a orientação do desenvolvimento''.3
Torna-se claro, pois, que é hoje impossível compreender o subdesenvolvimento, e, em
conseqüência, a lute de classes nos países subdesenvolvidos, se não se tome como ponto de partida
uma totalidade: a economia capitalista mundial. Não através da justaposição, realizada por tantos
marxistas dogmáticos, de regiões geográficas com modos de produção diferentes — em que
freqüentemente regiões e modos de produção se recobriam comodamente —, mas mostrando como
se articulam as dinâmicas regionais com as diversas instancias e modos de produção na totalidade.
"A realidade concreta que é o conjunto", escreve Benetti ao criticar a justaposição
não-dialética das partes típicas da abordagem dualista, "não pode ser explicada por análises parciais
de partes distintas: a determinação das partes é em si método logicamente errôneo. Porque o
conjunto é um ser radicalmente distinto da soma das partes que, através da sua presença nelas,
modifica a sua natureza e os seus contributos recíprocos. O conjunto é uma totalidade (...) ao
entrarem em relação umas com as outras, as partes entram em relação com a totalidade. Mais
precisamente, cada uma delas é mediada pelo todo nas suas relações com as outras. E por isso que
só a determinação das partes no todo permite empreender o seu lugar e a sua função".4
Por outras palavras, a análise marxista não admite que a realidade seja artificialmente
selecionada: a) as diferentes instancias, ou seja, o econômico, o político, o ideológico, constituem
fenômenos organicamente ligados entre si e não podem ser analisados separadamente como
conjuntos completos; b) o desenvolvimento do capitalismo na Europa, o colonialismo, a revolução
industrial, o neocolonialismo, o imperialismo, o subdesenvolvimento, constituem fenômenos
históricos ligados entre si, cujas "relações recíprocas" e "desenvolvimento" devem ser
compreendidos; c) o conjunto das regiões atingidas por uma dinâmica deve ser considerado, sendo a
justaposição espacial metodologicamente tão errônea quanto o seccionamento das instâncias ou dos
períodos históricos.
Se as partes somente se compreendem através de um todo, que é a totalidade que elas
constituem, é porque as partes são elas mesmas diferenciadas e ligadas por relações dialéticas. A
totalidade é contraditória. "A dialética, no sentido próprio da palavra”, escreve Lênin, "é o estudo
das contradições na própria essência das coisas".
3
S. Amin, L’accumulation à l’échelle mondiale, Paris, Anthropos, 1970, p. 561.
4
Carlo Benetti, L'accumulation dans les pays capitalistes sous-développés, Paris, Anthropos, 1974, pp. 113-115.
Veja-se em particular a segunda parte: "Question de methode''.
Ao estudar o desenvolvimento do capitalismo europeu, e em particular o da Inglaterra, Marx
"capta" a contradição que se forma entre dois pólos: por um lado, a burguesia, que sob o efeito do
movimento da concentração e da centralização progressiva tende a restringir-se, ao mesmo tempo
que se torna mais rica; por outro lado, ao proletariado industrial junta-se a classe média
proletarizada. "Trata-se da expropriação de alguns usurpadores pela massa", escreve Marx ao
concluir o livro I de O Capital. A formação destas classes não se compreende senão através da
dinâmica de acumulação capitalista e seria absurdo tentar definir cada uma separadamente.
O problema é corretamente resumido por Pierre Salama, que toma já por quadro de análise a
economia capitalista internacional: "A realidade internacional não procede por somas de atividades
econômicas internacionais; existe um processo produtivo mundial do qual as economias mundiais
são componentes. Estruturado e hierarquizado, o sistema produtivo mundial é essencialmente o
produto da acumulação mundial do capital. Mais precisamente, a acumulação mundial do capital é a
força motora do desenvolvimento deste sistema produtivo.... O processo de acumulação do capital
em escala mundial impregna a evolução dos dois pólos e realiza dois tipos de desenvolvimento: um
que respeita às economias do centro, outro que respeita às economias periféricas ou
subdesenvolvidas. A expansão industrial difere em cada um dos pólos ou partes da economia
mundial. A compreensão dos mecanismos do desenvolvimento em cada um deles só pode ser total
se entendermos a acumulação como um todo complexo e totalizante".5
Desenvolvimento e subdesenvolvimento constituem pois os pólos de um mesmo processo, a
acumulação capitalista mundial, mas neste processo as relações entre os pólos não são equilibradas:
"A estrutura desta totalidade é uma estrutura com dominante. Ela reproduz os caracteres principais
da estrutura dominante. Em conseqüência, as estruturas sociais dos países da periferia resultam
essencialmente do contato que estas economias tiveram com os países do centro que as dominam".6
Ora, países do centro e da periferia constituem formações sociais em que a atividade econômica é organizada
segundo modos de produção concretos. "A especificidade da relação de dominância", escreve Beneffi, "exprime a
particularidade histórica da conexão das partes numa dada sociedade. É assim porque o sistema confere à totalidade o
seu próprio estatuto. Já que numa economia capitalista subdesenvolvida o sistema produtivo dominante é capitalista, a
economia no seu conjunto tem uma natureza capitalista... Os outros modos de produção são-lhe subordinados, o que
implica ao mesmo tempo a inclusão dos seus caracteres no todo transformado por este sistema produtivo dominante e a
modificação das suas condições de funcionamento e de desenvolvimento pelo movimento do sistema produtivo
dominante".7
A dinâmica do pólo dominante "impregna" pois o conjunto da economia capitalista dependente e nela se
manifestará sob a forma de dinâmica principal.
Esta abordagem, por geral que seja, abre caminho para a análise mais precisa da articulação
dos modos de produção, ao mesmo tempo que coloca o problema da definição correta das relações
entre a dinâmica externa e a dinâmica interna da economia subdesenvolvida.
A análise das relações de produção a este nível coloca problemas consideráveis, se bem que
se possam constatar progressos na medida em que a questão foi no conjunto corretamente situada.
De um modo geral, O Capital, de Marx, tem por objeto de análise o capitalismo de
concorrência e por campo de análise o Estado-Nação. Neste quadro, a propagação do crescimento
realizava-se com certa naturalidade, na medida em que numa economia de livre concorrência agiam
mecanismos de equilíbrio econômico e a ausência de fronteiras permitia a livre circulação dos bens
e fatores.
5
Pierre Salama, Le procés de sous-développement, Paris, Maspéro, 1972, pp. 8 e 9.
6
Ibid., p 9.
7
Carlo Benetti, op. cit., p. 124.
Ora, na medida em que abordamos o capitalismo monopolista e a economia mundial,
devemos inevitavelmente integrar o espaço na análise. Com efeito, a existência de fronteiras,
coloniais ou nacionais, e a existência de monopólios (mesmo de monopólios coloniais ainda na
época do capitalismo concorrencial) permitiram a constituição de polarizações regionais profundas,
através da divisão internacional ou internacional do trabalho.8
Assim, enquanto que para a Inglaterra do século XIX se podia captar o essencial das
contradições através da análise da polarização de classes dentro da própria nação, na economia
subdesenvolvida constatamos uma interpenetração de contradições de classe internas e externas que
tornam a análise do problema particularmente árdua, ou, pelo menos, a colocam num outro quadro.
A complexidade das relações mundiais de produção na fase imperialista do capitalismo foi
particularmente patente nas análises da lute de classes nos países subdesenvolvidos. Assim, Pierre
Moussa, e em parte A. Emmanuel, ao tomarem consciência da expressão espacial da polarização
entre países subdesenvolvidos e países desenvolvidos, foram levados a valorizar a contradição entre
as nações em relação às contradições entre as classes.
O debate é conhecido, vamos apenas referir as posições pare clarificar o raciocínio ulterior.
Yves Lacoste refute a simplificação desta inversão teórica em P. Moussa, na medida em que
"implica a existência entre países de relações de produção que existem no seio de uma sociedade".
"Trata-se", diz-nos Lacoste, "de uma falsificação do marxismo, pois leva-nos a considerar a
população de cada Estado como um todo, tornando-a de fato uma sociedade sem classes. Ora, os
países subdesenvolvidos não são apenas habitados por explorados: contam com potentíssimos
exploradores".9
Encontramos um raciocínio análogo na crítica de Bettelheim a Emmanuel: "Sabe-se que esta
negação da linha de demarcação de classes se acompanha muito geralmente de uma tendência que
leva a substituir esta linha de demarcação por outra. Assim, apesar das suas posições radicais, A.
Emmanuel encontra-se freqüentemente, quer o queira ou não, ao lado dos especialistas do
'subdesenvolvimento', para quem a 'grande divisão do mundo de hoje' é a que separa os 'países
proletários' dos 'países abastados'; ou, como se tem dito, de forma menos brutal, os países 'pobres'
dos que o são 'menos' ".10
Pouco nos importa aqui que a posição de Moussa seja simplista, como é simplista a posição
que Bettelheim atribui a Emmanuel. O essencial é que fica na ordem do dia o fato de não bastar a
análise de classes ao nível do país, sem que seja considerada a realidade internacional em que estas
classes se inserem. Com efeito, tal como não se pode negar que os países subdesenvolvidos
possuem burguesias potentes e muito ricas, tampouco se pode negar hoje que a diferença entre o
proletariado do Nordeste brasileiro e o de São Paulo ou de Detroit é qualitativa.
Não se trata de encontrar um meio termo. A análise de classes continua evidentemente
fundamental, mas não se pode ignorar que o capitalismo, no seu estádio imperialista, ou seja,
monopolista e mundial, afeta de forma contraditória as classes de regiões diferentes e que as
dinâmicas, recortando-se, exigem uma abordagem mais diversificada. Em particular, trata-se de dar
à análise de classes o mesmo quadro que o das suas determinações históricas, buscando as relações
de produção mundiais.
Na medida em que a análise marxista procedia por países, realizando um corte especial e
histórico de realidades submetidas a uma dinâmica comum, se bem que contraditória, a análise das
8
De maneira geral, o espaço intervém pouco na obra de Marx, que supõe que os preços, os lucros e os salários tendem a
igualizar-se. A passagem à economia internacional e ao capitalismo monopolista leva à constituição de várias barreiras a
estes mecanismos equilibradores, e assistimos à constituição de dinâmicas regionais, contraditórias e interdependentes,
que é necessário levar em consideração. Veja-se a este propósito a excelente análise de A. Emmanuel, Exposé sur
l'échange inégal, École Pratique des Hautes Études, em "Problèmes de planification”, Dezembro, 1962, n.° 2.
9
Yves Lacoste, Géographie du sous-développement, Paris, P.U.F., 1965, p. 14, referindo-se ao Nations prolétaires de
P. Moussa.
10
Charles Bettelheim, prefácio a A. Emmanuel, L'Échange Inégal, Paris, Maspéro, 1972, p. 18.
relações mundiais de produção tornava-se a priori impossível e a teoria econômica internacional
continuou sendo, é compreensível, uma teoria das trocas internacionais. Isto refletiu-se num
empobrecimento do conceito do "imperialismo".
"A análise marxista", escreve Palloix, "sempre se referiu, ao que parece, de maneira
sistemática ao conceito de capital em relação à nação. O conceito de capital sempre foi pensado
referindo-se a uma propriedade formal, ela mesma nacional: capital U. S., capital britânico, francês,
alemão, etc. Logo que o capital atravessava as fronteiras, era analisado sob o ângulo da exportação
de capital (Marx, Lênin), sem que esta escape ao capital nacional do qual era oriundo. É certo que a
maioria dos marxistas continua a raciocinar sobre capital nacional e exportação de capital quando
quer explicar o imperialismo".11
Ora, logo que rompemos com o dualismo ao nível internacional e abordamos a economia
capitalista mundial como sendo a realidade última na qual se articulam partes contraditórias,
podemos ultrapassar também o seccionamento artificial da realidade em instâncias e regiões
isoladas. Explica-se assim que o imperialismo não tenha sido analisado no conjunto das suas
manifestações — como estádio do capitalismo —, mas reduzido aos seus aspectos econômicos
(monopolização e expansão internacional do capitalismo dominante) ou militares. Explica-se
também que a teoria do imperialismo apareça como explicação dos mecanismos expansionistas do
capitalismo dominante, sem ter sido complementada pela análise dos efeitos — em termos de
estruturas econômicas, modos de produção e relações de produção — nas economias dependentes.
A ruptura da justaposição do interno e do externo, do ponto de vista do país
subdesenvolvido, permite pois abordar efetivamente o que as "trocas internacionais" implicam do
ponto de vista das relações de produção.
Mais do que em Lênin, podemos apoiar-nos aqui em Bukárin, que soube compreender que a
economia mundial constituía um dado específico do capitalismo, e não uma extensão da economia
nacional num setor determinado da sua economia. O fato de considerar a economia capitalista
mundial como uma entidade distinta das suas componentes permite a Bukárin passar, para além do
intercâmbio entre nações, às relações de produção que o sustentam.
"Podemos definir a economia mundial", escreve Bukárin, "como um sistema de relações de
produção e de relações de troca correspondentes englobando a totalidade do mundo. A economia
mundial contém todos os fenômenos econômicos que se apóiam, em definitivo, nas relações de
pessoas dentro do processo de produção. De maneira geral, todo o processo da vida econômica
mundial dos nossos dias consiste em produzir mais-valia e reparti-la entre os diversos grupos da
burguesia, na base de uma reprodução sempre crescente das relações entre duas classes: o
proletariado mundial e a burguesia mundial".12
Trata-se no conjunto ainda de uma intuição mais do que de um desenvolvimento científico e
sentimos em Bukárin a generalização excessiva. Mas o essencial da abordagem é indiscutivelmente
válido: a economia capitalista mundial é tomada como "realidade fundamental" e a análise das
trocas internacionais é ultrapassada pare atingir as relações de produção. É a abordagem que Palloix
retoma:
"O fundo do problema é uma articulação das formações sociais na economia mundial, no
imperialismo mundial. É necessário localizar, em cada formação social, o que lhe confere um nível
específico no plano da articulação à escala mundial, criando de um lado formações imperialistas e
do outro formações sociais dominadas e exploradas. Trata-se de enfrentar as relações mundiais de
produção".13
Em resumo: relativamente a O Capital, de Marx, passamos do quadro de análise constituído
pela nação para o quadro do capitalismo mundial, e do capitalismo concorrencial ao capitalismo
11
Christian Palloix, L'économie capitaliste mondiale, vol. 11, Paris, Maspéro, 1971, p 14.
12
Bukárin apóia-se aqui em Marx: "Logo que de uma maneira ou outra os homens trabalham uns para os outros, o
trabalho adquire uma forma sócia” (O Capital).
13
Christian Palloix, op. cit., p. 11.
monopolista; relativamente aos clássicos da análise do imperialismo, devemos ultrapassar o
intercâmbio entre nações e a justaposição dualista imperialismo-economias agredidas para partir da
totalidade e abordar as relações de produção mundiais. Samir Amin resumiu bem o problema:
trata-se de estudar a acumulação capitalista à escala mundial.
É em torno da noção de dependência que uma geração de marxistas latino-americanos
realizou recentemente uma ruptura com as transposições mecânicas e, ultrapassando a dicotomia
contradições internas—contradições externas, buscam a compreensão da gênese do
subdesenvolvimento latino-americano na relação dialética entre economias subdesenvolvidas e
economias desenvolvidas, ao nível das diferentes instâncias —econômica, política, ideológica.
"Para permitir a passagem da análise econômica ou da interpretação sociológica usuais a
uma interpretação global do desenvolvimento, é necessário estudar desde o início as conexões entre
o sistema econômico e a organização social e política das sociedades dependentes, não apenas
nestas e entre elas, mas também em relação aos países desenvolvidos, pois a especificidade histórica
da situação do subdesenvolvimento nasce precisamente da relação entre sociedades periféricas e
centrais".14
14
Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, Dependência e Desenvolvimento na América Latina: Ensaio de
Interpretação sociológica, Rio de Janeiro, Zahar 1970. Esta obra constitui, na trilha das análises de A. G. Frank, uma
importante “viragem” teórica nas análises marxistas recentes na América Latina.
15
Ciro Flammarion Santana Cardoso, Observations sur le dossier préparatoire à la discussion sur le mode de
production féodal, Paris, Centre d'Études et de Recherche Marxistes, Ed. Sociales, 1971, pp. 66 a 69. O próprio Ciro
Cardoso "não considera o sistema colonial brasileiro como escravatura (no sentido do modo de produção de certas
regiões, aliás limitadas, do mundo antigo), nem feudal, e menos ainda capitalista: tem um rosto muito definido e
particalar".
particular a sobreposição de elementos de relações de produção conhecidos na fase européia
pré-capitalista e de uma circulação capitalista que não difere da que se conhece nas economias
dominantes.
Enfim, entra também em jogo a variedade das determinações na superestrutura, cuja
importância não deve ser subestimada na formação dos modos de produção, e que comporta um
amálgama de influências indígenas, portuguesas, africanas, inglesas, americanas e de vagas
sucessivas de imigração.
O resultado é que, segundo se enfoca com maior atenção o norte ou o sul do país, a
economia da exportação ou a que se orienta para consumo popular, a produção ou a circulação, os
aspectos de infra-estrutura ou de superestrutura, tender-se-á a concluir por um ou outro modo de
produção.
Na falta de uma teoria capaz de encontrar as características globais que constituem a
especificidade da nossa história, e que dão conta do conjunto, a análise chegou a uma série de
impasses teóricos.
Um primeiro destes impasses pode ser caracterizado pela teoria dualista.
Na medida em que a essência do problema reside justamente na caracterização das relações
entre o antigo e o novo, entre o "pré-capitalista" e o capitalista, entre estes elementos aparentemente
contraditórios que coexistem de maneira estável na economia brasileira, o corte desta economia em
dois, permitindo explicar a parte moderna por uma extensão dos mecanismos capitalistas e a parte
"arcaica" pela "tradição", constitui uma solução de facilidade, um compromisso teórico que nos
deixa com o problema todo pela frente.
Jacques Lambert, que desenvolveu a análise dualista mais conseqüente no Brasil, toma por
ponto de partida "o abismo que separa a civilização urbana da civilização rural, o país novo do país
velho".
"Os brasileiros são divididos em duas sociedades diferentes pelos níveis e pelos modos de
vida... No correr do longo isolamento colonial (!) formou-se uma cultura brasileira arcaica que
carrega ainda a marca do século XVI e das suas rotinas e que apresenta, enquanto persiste o
isolamento, tanta estabilidade quanto as culturas indígenas da Ásia ou do Oriente Médio... Em
oposição a esta cultura arcaica essencialmente rural... o fluxo de imigrantes europeus, retirados dos
seus meios de origem, trazendo técnicas e modos de vida novos, o desenvolvimento de novas
formas de agricultura, a criação de uma grande indústria, o desenvolvimento dos transportes,
uniram populações numerosas numa vasta sociedade em constante evolução: o Brasil do sul é um
país novo... Em contato em todo o lugar, os dois Brasis tão diferentes são unidos pelo mesmo
sentimento nacional e por muitos valores comuns: não formam duas civilizações diferentes, mas
duas épocas de uma mesma civilização; não são estrangeiros, mas séculos os separam".16 14
O elemento que domina a análise é evidentemente o isolamento das partes, separadas por
um "abismo", por "séculos". Referindo-se ao "isolamento colonial" Lambert escreve que o
colonialismo semeou no país colônias regionais totalmente isoladas. Ora, se o isolamento entre as
unidades ou regiões produtoras é verdadeiro no plano nacional, é o contato direto entre elas que é
fraco: em compensação, recebem impulsões comuns da metrópole, à qual estão ligadas.
O produtor de cacau que limpou o "sítio" pode estar isolado do mundo no que concerne às
unidades de produção vizinhas. Isto não o impede de adequar o seu comportamento econômico às
mínimas flutuações das cotações nos mercados internacionais, exatamente como outros produtores
"isolados".
A economia aparece pois como dual na medida em que examinamos o país isoladamente ou
regiões isoladamente. Tão logo retomamos a totalidade que constitui a sua lógica, o
desenvolvimento do capitalismo ao nível mundial, percebemos que os laços entre as diferentes
partes da economia são patentes, mas duplamente encobertos, na medida em que passam pelo
exterior e sob a forma de mecanismos financeiros que nem sempre são aparentes.
16
Jacques Lambert, Le Brésil, structure sociale et institutions politiques, Paris, A. Colin, 1953, pp. 64 e 65.
A teoria dualista constata pois um fato, as diferenças profundas que existem no interior da
sociedade subdesenvolvida, mas não o explica. Ora, não se trata de negar a profundidade das
diferenças, mas de negar o corte, o "isolamento" entre as partes diferentes. A dualidade interna é o
fruto da dinâmica de acumulação capitalista e o dualismo como teoria não é errado do ponto de vista
estatístico, mas é estéril na medida em que efetua um corte entre as duas partes em vez de
demonstrar o processo histórico que preside à sua diferenciação. O ponto de partida correto para a
busca de uma teoria do desenvolvimento é a constatação lapidar de Stavenhagen: "uma não saberia
subsistir sem a outra".17
Outro impasse teórico é constituído pelo que chamaríamos abordagem pluralista, por
analogia com a teoria dualista. Com efeito, os erros básicos da abordagem dualista, consistindo no
isolamento artificial de formas de organização econômica inseparáveis — donde o isolamento entre
as causas e os efeitos da totalidade analisada — encontram-se na concepção pluralista que
predominou durante muito tempo entre os marxistas brasileiros.
Segundo esta concepção, a sociedade brasileira compreende duas contradições fundamentais,
que exigem solução radical na atual etapa histórica do seu desenvolvimento. A primeira é a
contradição entre as forças produtivas em crescimento e o monopólio da terra, que se exprime
essencialmente como contradição entre os latifundiários e as massas camponesas. A contradição
antagônica entre o proletariado e a burguesia, inerente ao capitalismo, é também uma contradição
fundamental da sociedade brasileira. Mas esta contradição não exige solução radical e completa na
etapa atual da revolução, já que na situação atual do país não há condições para transformações
socialistas imediatas. Na sua etapa atual, a revolução brasileira é antiimperialista e antifeudal,
nacional e democrática.
Se já não estamos no nível da teoria dualista, que opõe o "Norte" ao "Sul", a justaposição de
modos de produção é basicamente muito próxima, do ponto de vista metodológico, da justaposição
de regiões: o elemento essencial, a articulação do conjunto, permanece inexplicado.18
O universo da luta de classes constitui, segundo esta interpretação, uma justaposição de
contradições: o proletariado em contradição com a burguesia nacional, contradição que deverá
tornar-se revolucionária apenas depois de uma revolução democrática burguesa; o campesinato em
contradição com a classe dos grandes proprietários; e o imperialismo, inimigo externo presente na
nação através dos "agentes internos", em contradição com a "nação".
O erro fundamental consiste aqui ainda no isolamento artificial das partes: reencontramos o
dualismo simultaneamente no plano interno e externo.
Já vimos o dualismo interno: as duas contradições que aqui aparecem justapostas
(proletariado-burguesia, por um lado, e campesinato-latifúndio feudal, por outro) pertencem na
realidade a uma dinâmica só, não constituindo dois mundos estanques, mas formas diferentes da
acumulação capitalista. Veremos extensamente nos capítulos seguintes como estas formas se
complementam.
Mas fixemos ainda, no que concerne ao dualismo interno, outro impasse: uma forma de fazer
a ponte entre as duas contradições, de ligar os dois modos de produção, nesta concepção pluralista, é
a transição. Tratar-se-ia de um mundo pré-capitalista no qual o capitalismo penetra gradualmente,
reduzindo a área do modo de produção feudal até se tornar dominante por meio de uma revolução
democrática burguesa, que poria o poder nas mãos de uma burguesia nacional. A fase da "transição"
explica, por conseguinte, a coexistência do capitalismo e do feudalismo.
17
Rodolfo Stavenhagen, Les classes sociales dans les sociétés agraires, pp. 54-55.
18
Na realidade, a divisão regional efetuada pelos "dualistas " e a divisão em "modos de produção" que analisamos
coincidem geralmente. Laclau nota bem esta simplificação: "Logo que se introduz um tal dualismo na análise marxista,
as conseqüências são que o feudalismo representa o setor conservador num pólo da estrutura social, enquanto o
capitalismo representa o setor dinâmico noutro” (Ernesto Laclau, "Feudalismo e Capitalismo na América Latina",
New Left Review). É de se notar que, para além disto, a análise de Laclau permanece tradicional.
Ora, o problema principal, do ponto de vista das relações entre os modos de produção no
Brasil, é que se trata justamente de uma articulação estável entre os elementos pré-capitalistas e
capitalistas: a transição não explica de maneira alguma a coexistência deste conjunto durante mais
de quatro séculos e as razões que fazem com que esta combinação heteróclita se mantenha estão
justamente por demonstrar.
Esta preocupação em redefinir a transição em função da situação particularmente estável das
relações entre modos de produção no capitalismo dependente levou a uma variedade — bem mais
rica — da teoria da transição, que busca as formas de articulação de modos de produção. Partindo
da excelente análise de Pierre-Philippe Rey, Charles Bettelheim tenta uma distinção entre tipos de
articulação:
"Pergunto-me no entanto se... não seríamos levados a distinguir entre dois tipos de
articulação entre modos de produção diferentes: uma que seria 'estável', ou seja, que seria suscetível
de reproduzir-se como tal (talvez através dos 'ciclos' históricos) porque as classes dominantes destes
modos de produção não têm interesses antagônicos e porque a reprodução de um pode ser a
condição da reprodução do outro (ou dos outros); e uma outra articulação, que seria 'instável', o que
deveria conduzir à dominação de um dos modos de produção sobre os outros, logo à transformação
ou à eliminação do ou dos modos de produção dominados. É o processo que seria o de uma
transição".19
Nesta variedade, subsistem dois problemas: primeiro, falar em articulação no lugar de
transição dá-nos sem dúvida uma apreciação mais correta, já que as relações entre os modos de
produção são relativamente mais estáveis. Mas a substituição de conceitos não explica o problema
— abre apenas, e já é muito, uma nova perspectiva de análise; segundo, o conceito-chave será o de
"dominância" de um modo de produção sobre outro. O conceito é rico, mas perigoso: com efeito, o
problema não deve ser considerado resolvido, mas deslocado; "trata-se agora de demonstrar por que
o modo de produção dominante reproduz os outros modos de produção. Noutros termos, por que a
"dominância" não se torna "exclusividade".
Quanto ao dualismo externo, aparece no fato de a contradição principal, na concepção
pluralista, ser a que opõe a "nação" ao "imperialismo" e aos seus "agentes internos". O
"curto-circuito" teórico operado aparece claramente na fórmula "agentes internos".
Senão vejamos:
a) O imperialismo não impede — é hoje uma constatação de fato — a industrialização,
dá-lhe apenas formas determinadas; é, pois, sob a iniciativa da burguesia imperialista que se dá a
industrialização, sendo a burguesia nacional arrastada no movimento. A burguesia e os "agentes
internos" estando confundidos, como colocar as duas contradições? Os "agentes internos"
produzindo hoje no Brasil mais de um milhão de carros por ano e empregando alguns milhões de
trabalhadores, o problema dificilmente pode ser resolvido pela forma "agentes internos" e por uma
contradição com a "nação".
b) As economias dominantes continuam a ter grande necessidade de matérias-prímas e
consideram do seu interesse — e do interesse das suas empresas instaladas no Brasil — manter a
estrutura agrária existente: o desenvolvimento da indústria exigindo a reprodução da orientação da
produção agrícola, o que tem implicações diretas sobre a reprodução das relações de produção no
campo — como separar as contradições e como poderá o camponês lutar contra os "senhores
feudais" sem lutar contra a burguesia industrial que os mantém? E como poderá lutar contra os dois,
sem lutar contra o imperialismo?
A série de contradições enumeradas na teoria pluralista compreende todos os elementos, mas
não forma uma totalidade: enumera os componentes, mas não explica a dinâmica das suas relações.
Não é satisfatório o recurso aos "agentes internos" para explicar a presença eminentemente interna
19
Charles Bettelbeim, “Remarques theóriques à propos de ‘l’articulation des modes de production' de
Pierre-Philippe Rey”, Problèmes de Planification, nO 14, Paris, Sorbonne, s. d., p. 175.
da dinâmica imperialista e à "transição" para explicar a coexistência durante séculos de modos de
produção que deveriam excluir-se.
A abordagem permanece estéril quando se trata de demonstrar o essencial: a articulação do
conjunto num processo histórico.20
20
"A teoria dialética combate... o empirismo, para o qual a contradição não é mais que um fato, não uma lei do ser, e
que a reduz à diferença constatável pela observação, à simetria, à justaposição dos distintos. O pluralismo, forma
refinada do empirismo confunde o imediato e o mediato, despreza as conexões explicativas; negando a contradição,
nega qualquer espécie de teoria unitária e chega a um misticismo de boa qualidade " (Henri Lefebvre e Norbert
Guterman, "Lénine”, Cahiers sur la Dialectique, Paris, Gallimard, 1967, p. 40).
Capítulo II
Um Esboço de Método
O abuso flagrante dos conceitos "feudalismo" e "pré-capitalismo" para definir certas
economias ou certos setores das economias subdesenvolvidas explica a voga de várias
simplificações: é o caso em particular de teses de Roberto Simonsen, autor de uma das melhores
histórias econômicas do Brasil, que considera o Brasil como sendo capitalista desde o inicio da sue
formação e em todos os seus aspectos, apoiando- se no simples fato de que a motivação básica da
atividade econômica era o lucro.
Hoje as análises mais interessantes voltam-se para as razões que permitiram a coexistência
de relações de produção pré-capitalistas e capitalistas ao longo dos séculos, apesar da modernização
da economia, e para as razões que perpetuaram as relações coloniais e a dependência, apesar da
soberania "oficial".
Parece que os progressos teóricos constatados resultam justamente da aproximação destes
dois níveis de análise. Trata-se, pois, ultrapassando a dicotomia contradições internas (de classe) e
contradições externas (nação contra imperialismo), de juntar a análise da dependência —
"ajustamento estrutural pelo qual certas formações nacionais se submetem a outras",21 para retomar
a fórmula de Samir Amin — e a análise das contradições de classe, tomando naturalmente por base
a análise do modo de produção.
O problema central é, evidentemente, a explicação dos mecanismos que permitem, num
quadro capitalista, a imbricação de relações de produção aparentemente pré-capitalistas e de
relações de circulação indiscutivelmente capitalistas, sem que o processo de reprodução alargada do
capital se veja perturbado.
Devemos, pois, antes de tudo, definir claramente as fases da reprodução do capital, e para
isto partimos do livro II de O Capital de Marx e dos esquemas de reprodução.
"No processo de reprodução do capital social, Marx engloba 'tanto o processo de produção
imediato como as duas fases do processo de circulação propriamente dito, ou seja, o ciclo completo
que, na qualidade de processo periódico que se repete sem cessar em intervalos determinados,
constitui a rotação do capital'. A reprodução do capital social é pois constituída pela reprodução das
três fases do processo cíclico do capital".22
V
A–M
C
21
Samir Amin, Le développement inégal, Paris, Ed. de Minuit, 1973, p. 12.
22
Apoiamo-nos aqui na excelente apresentação da reprodução do capital segundo K. Marx feita por J. Nagels em La
reproduction du capital selon K. Marx (Boisguillebert, Quesnay, Leontiev), Bruxelas, 1970.
A proporção C/V na despesa do capitalista determinará a composição orgânica do capital. O
capital constante, C, pode ele mesmo ser subdividido em capital circulante e capital fixo, segundo
seja parcialmente ou totalmente consumido num ciclo dado de reprodução. Podemos, pois, escrever
esta fase como segue:
V
A–M
Cf + Cc
Cf + Cc
onde: A = Capital-dinheiro
V = Capital variável
Cf = Capital fixo
Cc = Capital circulante
M = C+ V + S
A — M ...p... M’ - A'
Os três ciclos, vê-se bem, são igualmente necessários ao processo de reprodução do capital.
No entanto, o acento que se dá à circulação ou à produção modifica profundamente a interpretação
histórica de certos fenômenos, donde o debate importante que se instaurou a este respeito.
Na base da situação atual de dependência, devemos situar uma certa vantagem inicial da
Europa do século XVI, cujo capitalismo nascente se via travado no seu desenvolvimento pelas
estruturas feudais e buscava no comércio longínquo a possibilidade de aumentar os seus lucros.
Apesar de, como o nota Bairoch, a decalagem em termos de riqueza não fosse muito grande na época, e em
todo o caso bem menor que hoje, o fato é que os comerciantes com os seus produtos e os "conquistadores" com os seus
canhões representavam pare as civilizações do "ultramar" uma força irresistível, e sabemos que civilizações dotadas de
um alto nível de organização foram completamente desorganizadas ou reorientadas pelo avanço dos mercadores e dos
piratas europeus.
Esta vantagem inicial foi gradualmente transformada numa hegemonia total, pelo conjunto
de métodos que acompanharam a acumulação primitiva do capitalismo. As redes comerciais foram
desviadas, as estruturas de produção reorientadas. Sendo o enfraquecimento das economias do
ultramar conseqüência da pilhagem e do comércio longínquo efetuados para enriquecer a metrópole
e, o que é mais importante, para fortalecer o setor dinâmico dentro da metrópole constituído pelas
atividades capitalistas, o reforço destas era proporcional à submissão crescente daquelas.
Ora, à medida que as conquistas se multiplicavam e que os "entrepostos" de comércio se
estabeleciam nos quatro cantos do mundo, começava a tecer-se a teia da divisão internacional do
trabalho e das relações mundiais de produção.23
Com efeito, a presença do capitalismo mercantil, apesar da sua fraca importância na época,
provocava um desequilíbrio na produção local dos países do ultramar, favorecendo o aparecimento
de atividades econômicas e de grupos dominantes ligados às necessidades dos mercados europeus.
À medida que estas se desenvolviam, a produção para o exterior tornava-se comparativamente mais
vantajosa nestes países e, independentemente das relações de dominação militar que se
estabeleciam, formava-se o "pano de fundo" da dependência econômica dessas regiões, por meio da
divisão internacional do trabalho.
Divisão esta que, baseada numa dominação inicial do capitalismo em pleno florescimento,
não era uma especialização regional para o maior bem comum, como o queria Ricardo, mas
significava, ao contrário, a subordinação da produção na periferia às necessidades da acumulação no
centro.24
23
A compreensão da importância das relações de produção mundiais, já na fase do capitalismo comercial, conheceu
um avanço com recentes trabalhos de história econômica, em particular de Marian Malowist, Immanuel Wallerstein e
outros.
24
Este elemento de dominação encontra-se evidentemente ausente na análise das vantagens comparadas de Ricardo —
a partir desta dominação, certas economias impunham às outras um tipo determinado de especialização segundo as
suas próprias necessidades; se em termos de troca (valor do produto) a vantagem podia ser dividida, o efeito sobre a
estrutura de cada pólo era profundamente diferente. Era bem a periferia que se submetia à dinâmica do centro, e não o
inverso, e enquanto o centro reforçava uma produção em que as economias de escala e os custos decrescentes jogavam
em cheio, permitindo-lhe desenvolver uma economia integrada e reforçada pelos seus laços externos, a periferia
especializava-se em produções pouco dinâmicas por natureza e multiplicava setores desintegrados entre si, cuja única
lógica era a complementaridade relativamente às necessidades do centro.
deste intercâmbio. Participavam do excedente produzido sob diversas formas, mas submetiam-se de
maneira crescente à dinâmica do capitalismo do centro.25
À medida que o capitalismo europeu, desvinculado dos laços feudais que o entravavam,
penetrava na fase industrial, o esquema de reprodução do capital conhecia uma transformação
profunda. Assim, das duas fases de circulação e fase de produção que constituem o processo de
reprodução do capital e da sua acumulação, a acumulação comercial, e com isto as fases de
circulação, passava a pesar relativamente menos no período do capitalismo mercantilista, enquanto
a fase de produção ... p ... se tornava o elemento determinante do sistema.
Sendo que o ciclo do capital só é completo através da sucessão das três fases, não se trata de
"privilegiar" uma ou outra, mas de compreender que, na inversão citada e na medida em que
progrediam as forças produtivas, era a produção que passava a determinar em última instância a
composição e o volume da circulação, e não inversamente. Esta predominância da produção não
impedia, evidentemente, que as formas de circulação continuassem a condicionar por sua vez o
processo de produção.
Ao contrário, nas economias periféricas constatamos a dominância inversa: são as
necessidades de circulação capitalista, que se manifestam na periferia sob a forma de comércio
longínquo, que determinam cada vez mais as atividades econômicas locais. As fases de circulação
tornam-se determinantes, em última instância, da composição ou do volume de produção — ou de
pilhagem — local.
Ora, se recolocarmos estas diferenças relativas da fase de produção e das fases da circulação
no centro e na periferia, constatamos que a produção capitalista na periferia é essencialmente deter-
minada pela procura no centro, enquanto no centro, por um lado, a circulação se vê em última
instância submetida às necessidades da produção; por outro lado, o aspecto exterior desta circulação
é nitidamente complementar, sendo a circulação no seu conjunto determinada essencialmente do
interior.26
Assim, a dinâmica principal na periferia era constituída por uma dinâmica secundária do
centro — é o comércio exterior do centro, cuja função era ali complementar, que se tornava o
elemento principal da estruturação das economias periféricas, através da dominância da circulação.
25
A participação das classes dirigentes periféricas na formação deste sistema é freqüentemente subestimada, dando-se
maior relevo à "agressão" militar e comercial do capitalismo. Ora, o próprio caráter pré-capitalista destas classes —
na falta de um capitalismo local —assegurava a sua extroversão, ou seja, o seu enquadramento pelo capitalismo do
centro. Se a dinâmica capitalista reforçou e cristalizou as relações de produção na periferia, constata-se que os efeitos
fundamentais foram os mesmos nas terras onde o capitalismo constituiu a sua produção complementar em terreno
virgem: é o caso do Brasil ou do Sul dos Estados Unidos, onde instaurou relações de produção análogas. Barbara e
Stanley Stein constatam um mecanismo análogo na Espanha e em Portugal. A este propósito ver em particular os
excelentes estudos de Marian Malowist.
26
Compreende-se, pois, que os efeitos deste processo sejam inversos: enquanto na periferia o comércio longínquo,
reforçando as elites locais, cristalizava o sistema pré-capitalista existente e não contribuía para desenvolver o
mercado local, obrigando os produtores locais a produzir em função do "mercado longínquo ", no centro este
comércio reforçava o artesanato e o comércio capitalista, lançando as bases da ruptura do sistema feudal e abrindo
cada vez mais as possibilidades de produção em função do mercado interno.
Temos, pois, duas "regiões": o "centro", capitalista dominante determinado pela produção e introvertido (as
atividades determinadas pela circulação externa sendo relativamente secundárias e complementares da dinâmica
interna); a "periferia ", em que o capitalismo dependente é determinado pelas esferas de circulação e extrovertido, a
circulação na periferia vendo-se assim determinada em última instância pela produção no centro.
Extroversão da Economia
Capitalista Dependente
Caracterizamos a dominância das determinações capitalistas externas sobre as determinações
internas como constituindo a extroversão econômica de economia dependente.
É evidente que a dominância das atividades extrovertidas constitui simultaneamente uma
causa e um efeito da divisão internacional capitalista do trabalho; esta, sendo efetuada sob o signo
das necessidades de acumulação no centro, não se tratava de um ajustamento recíproco, mas da
submissão de um às necessidades do outro. À medida que a divisão progredia, a acumulação no
centro aumentava, a produção e as necessidades encontravam-se aumentadas e as economias
periféricas reforçavam a sua "especialização". Constituindo o capitalismo do centro o elemento
motor do conjunto, a periferia especializava-se em função destas necessidades.
Poderia objetar-se que nos referimos a mecanismos capitalistas em países onde o capitalismo
ainda dava os primeiros passos. Voltaremos a este problema mais adiante. Constatemos, por
enquanto, que se as relações de produção continuavam a ser em geral pré-capitalistas, o fator que
determinava o que seria produzido e para quem, ou seja, a utilização destas relações de produção,
era a circulação capitalista, não interna, mas a extensão da circulação capitalista do centro. Assim,
as relações de produção pré-capitalistas eram submetidas à dinâmica das esferas de circulação
capitalista, secundárias no centro, mas principais na economia periférica.27
Vemos pois que, apesar das relações de produção pré-capitalistas dominantes, a atividade
para exportação, determinada pela circulação capitalista, podia constituir-se e tornar-se dominante e
determinar as próprias relações de produção.
Temos um exemplo nas plantações de uva na Argélia, país onde a religião tornava o
consumo de vinho quase nulo. Esta produção vê-se indiscutivelmente determinada pelas
necessidades do centro, sem aí constituir uma dinâmica essencial, enquanto que na Argélia esta
produção se torna dominante, cobre as melhores terras e determina a estrutura do poder. Aos que
objetariam que elementos políticos e de força, mais do que mecanismos econômicos, intervieram
neste processo histórico, baste lembrar o caso do café brasileiro, em que uma produção à base de
relações pré-capitalistas é destinada quase totalmente à exportação e se encontra determinada pelas
necessidades de acumulação no centro. A estrutura econômica local foi reorganizada em função
desta circulação capitalista e os grupos ligados a esta produção mantiveram a hegemonia do poder
até 1930. No entanto, o Brasil era um país independente e soberano.
27
Foi na medida em que puderam inverter esta principalidade—as atividades determinadas pelo processo de produção
interna no Norte impondo-se às atividades capitalistas (mas com relações de produção pré-capitalistas) no Sul
determinadas pela circulação capitalista do centro — que os Estados Unidos conseguiram estabelecer a dominância
das esferas de produção e de relações de produção capitalistas. A ruptura dos laços de comércio com o capitalismo
dominante (a Inglaterra) e a supressão de relações pré-capitalistas constituem pois, paradoxalmente o mesmo
movimento. Note-se, no entanto, que certos elementos pré-capitalistas do Sul foram reproduzidos, a partir da
dominação do Norte industrial, no quadro de uma polarização interna.
deslocado — e, no caso que consideramos, esta troca resultava numa capacidade de produção
maior, logo, num problema de realização maior.
No entanto, nas economias periféricas, sendo a produção para o exterior dominante,
segue-se que o essencial da realização do produto (M' — A') não se fazia no interior, mas no exterior
da região produtora.
Daí decorre um fato de grande importância para o estudo das relações de produção: o ciclo
de reprodução alargada do capital fechando-se no exterior (do país ou da região produtora), a força
do trabalho participa apenas marginalmente na realização do seu próprio produto.
Noutros termos, o equilíbrio entre a produção de bens e o seu consumo realizava-se através
de uma exploração muito elevada, ou seja, a mais-valia tomava importância relativamente major.28
O problema deve ser bem compreendido: não se trata de uma situação de subconsumo. No
seu Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia e em Para Caracterizar o Romantismo Econômico,
Lênin refuta a concepção segundo a qual a exportação constituiria uma solução ao subconsumo
local. Com efeito, a exportação supõe a prazo uma importação, e em termos globais o problema de
realização permanece inteiro.29
Trata-se do fato de que a força de trabalho ocupada na produção do açúcar, do cacau, do
tabaco, do café — e isto refere-se também em parte, conforme veremos, aos bens industriais — não
é consumidora destes bens, ou só o é de maneira acessória. Assim, enquanto a identidade
fundamental entre a produção e o consumo se mantém, a realização da quase totalidade da produção
dominante efetua-se por intermédio da mais-valia: a) os bens "coloniais" produzidos serão trocados
por produtos manufaturados da metrópole — bens de luxo, máquinas — ou escravos, ou seja, bens
de consumo capitalista; b) estes bens coloniais serão trocados por produtos da metrópole que não
refletem, em nível igual de produtividade, um input igual de trabalho, originando uma transferência
importante de mais-valia para o centro (mais-valia diferencial, dirá Emmanuel, pois baseada na
diferença de remuneração da mão-de-obra do centro e da periferia, sendo esta mais-valia
transformada em acumulação do capital nas economias dominantes).
Vemos bem aqui as necessidades de acumulação no centro determinando superexploração e
relações de produção pré-capitalistas na periferia. O dado essencial destas relações de produção é
que a força de trabalho (servil, escravo, assalariado, pouco importa aqui), que no capitalismo
dominante exerce uma dupla função, na fase de produção (... p ...) e na fase de realização (M' — A')
— dentro do processo de reprodução do capital —, terá apenas a primeira função no capitalismo
periférico, na medida precisa em que o capitalismo periférico é determinado pelas esferas de
circulação no centro.30
Explica-se então a manutenção de um dado estável: a incrível miséria do proletariado rural,
quaisquer que sejam as relações de produção existentes, nos setores extrovertidos e, por
repercussão, noutros setores, se bem que em menor grau.
O escravo no Nordeste e o operário assalariado das plantações de São Paulo, o trabalhador
agrícola dos séculos XVII ou XX permanecem no fim de contas no mesmo nível econômico, e
28
O consumo de luxo, se bem que muito importante, não basta para explicar o fenômeno; é necessário acrescentar a
transferência de mais-valia para os capitalistas do centro.
29
Ver em particular o capítulo Vl de Para Caracterizar o Romantismo Econômico. No entanto, a crítica de Lênin
aborda o problema em termos demasiado globais. Com efeito, numa fase em que a Inglaterra exporta bens de consumo
e importa bens de produção, o produto encontra-se realizado, pois os bens importados constituem capital produtivo,
ou bens de luxo, ambos de consumo da classe de capitalistas. Neste sentido, o ciclo de reprodução encontra-se
reequilibrado, através, precisamente, da exportação. Isto é possível porque, em termos da classe que consome, não há
equivalência entre o bem exportado e o bem importado, mesmo que haja uma equivalência em termos de valor. É
evidente que a superexploração na Inglaterra do século XIX era possível na medida em que a realização do produto se
fazia em grande parte fora da esfera de consumo do trabalhador. As cadeias que prendiam as crianças às maquinas de
tecer na Inglaterra da revolução industrial são na realidade bem parecidas, no seu fundamento econômico, com a
sujeição extra-econômica que mantém o trabalhador miserável preso à fazenda de exportação do Nordeste.
30
A este propósito ver os excelentes trabalhos de R. M. Marini, em particular Dialética da Dependência, Coimbra,
1976, e Sous-développement et révolution en Amerique Latine, pp. 106 e seguintes. A propósito desta ruptura das
funções do proletariado, ver também Jamil, O Caminho da Vanguarda, São Paulo, 1969.
veremos as relações pré-capitalistas mudar de forma — da escravidão ao "barracão" e ao "cambão"
— sem que se encontre o desenvolvimento "autocentrado" característico das economias capitalistas
dominantes, em que a proletarização do camponês, se bem que signficando um empobrecimento
relativo, aumentava o mercado capitalista.31
Aqui o ciclo de reprodução capitalista fecha-se no exterior. Assim, a miséria e as
características "arcaicas" da agricultura são determinadas não por um atraso do capitalismo, mas
pelo caráter particular do capitalismo periférico.
31
No seu Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, Lênin mostra bem o que tem de progressista, do ponto de vista
capitalista, o empobrecimento relativo que resulta da proletarização do camponês: os seus rendimentos reduzidos
entrarão no circuito capitalista, levando a um aumento absoluto do mercado. Ora, no Brasil, na medida em que a
produção não corresponde ao perfil de consumo da força de trabalho — e isto é verdadeiro para a produção colonial e
também em parte para os produtos industriais de hoje —, o ciclo rompe-se e vai se fechar somente no exterior.
escravatura, de corvéia, de assalariamento não-livre (o operário endivida-se em perpetuidade na
propriedade em que é obrigado a fazer as suas compras e, na realidade, não é livre, se bem que
assalariado — sistema conhecido sob o nome de "barracão"), noutras palavras: por relações de
produção pré-capitalistas.32
O caráter das relações de produção é duplamente determinado pela dinâmica da esfera de
circulação do centro; imediatamente, pelo fato de que fazendo-se a realização do produto na esfera
da circulação capitalista do centro, a força de trabalho não participa como consumidora e é castrada
de uma das suas funções; mediatamente, porque, para fazer a mão-de-obra trabalhar na miséria para
a exportação, num país onde a terra abunda, o capitalismo deve recorrer à força e ao monopólio da
terra, medidas complementares destinadas a impedir que o trabalhador se estabeleça por conta
própria. Este fenômeno aconteceu freqüentemente, apesar de tudo, com a constituição de
"quilombos" (zonas onde se instalam escravos fugitivos para produzir para si) ou, fenômeno
essencialmente idêntico deste ponto de vista, a fuga para terras desocupadas pare praticar a
agricultura sobre queimadas — agricultura de subsistência — depois do fim da escravidão e até
hoje, ou ainda o fenômeno de culturas selvagens atuais, as "posses".
Assim reencontramos fenômenos durante longo tempo considerados como pré-capitalistas,
ou seja, como pertencentes a um modo de produção pré-capitalista, mas determinados pela dinâmica
do capitalismo dominante.
O debate, enquanto é colocado em termos de escolha, sem que se demonstre a possibilidade
de o modo de produção capitalista utilizar relações de produção que foram conhecidas na Europa
durante fases pré-capitalistas, não pode desembocar senão num diálogo de surdos.
Com efeito, que critério escolher pare determinar o modo de produção existente? Se
privilegiarmos a motivação dos empresários, o lucro, como o fez Roberto Simonsen, chegaremos
indiscutivelmente à conclusão de que se trata de um modo de produção capitalista, mesmo nas zonas
mais atrasadas da agricultura do Nordeste; ao contrário, se considerarmos as relações de produção,
em particular as relações de exploração, chegaremos à conclusão de um modo de produção
pré-capitalista, feudal, escravista ou "de transição" para o capitalismo mesmo nas plantações
modernas do Sul.
Na realidade, parece que, na medida em que na periferia domina o capitalismo extrovertido e
monopolista (que constitui, no fim de contas, o que C. Furtado chama "empresa agroindustrial"), o
modo de produção na periferia deve ser analisado como um modo de produção: modo de produção
capitalista dependente.33
Capitalista porque é indiscutível que, se bem que as relações de produção sejam próximas do
que na Europa era descrito como relações de produção pré-capitalistas (servidão ou escravatura), o
conjunto desta dinâmica — relações de produção inclusive — é orientado pelas necessidades da
acumulação no centro, através da dominância das esferas de circulação no processo de reprodução
do capitalismo dependente.
Dependente porque da dominância da dinâmica da acumulação no centro decorre esta forma
particular do capitalismo que permite, pelo fato da extroversão, que este modo de produção apareça
utilizando relações de produção pré-capitalistas.
32
Na falta de definição melhor, qualificamos estas relações de produção como "pré-capitalistas ": como qualificar
relações de produção pré-capitalistas determinadas por (e não em contradição com ) um modo de produção
capitalista?
33
A busca da definição de um modo de produção específico para dar conta da realidade diferente do
subdesenvolvimento capitalista encontra-se em uma série de autores: Ben Haddou Boulghssoul refere-se ao "modo de
produção capitalista periférico "; Tomaz Amadeu Vasconi a um "modo de produção capitalista dependente";
Wanderley Guilherme a um "modo de produção subdesenvolvido". Tratando-se, no entanto, de um modo de produção
capitalista, a definição da sua especificidade coloca uma série de problemas, que estão no centro, justamente, da teoria
da "dependência ".
Notemos, enfim, que neste debate não se devem colocar os dados relativos à circulação
(capitalista, extrovertida) e às relações de produção (pré-capitalistas, lembremos que a escravidão
foi abolida no Brasil há menos de noventa anos e que deu lugar a outras relações que podem ser
qualificadas de pré-capitalistas) no mesmo plano, do ponto de vista político. O fato da existência de
relações de produção pré-capitalistas constitui, sem dúvida, um dado importante para a com-
preensão da tática da luta de classes; por outro lado, a dominância da circulação capitalista
extrovertida é essencial para se compreender a evolução histórica do Brasil, a formação das suas
grandes opções econômicas e classes sociais e as próprias relações de produção, desembocando em
conclusões essenciais relativamente à estratégia da luta de classes, em particular do caráter
revolucionário — no sentido socialista — das massas camponesas.
Referimo-nos acima a um modo de produção. O problema desemboca na articulação de
elementos capitalistas e pré-capitalistas na reprodução do capital.
Já vimos o impasse a que chega a análise da articulação dos elementos capitalistas e
pré-capitalistas através do conceito de "transição". Este permite explicar a existência de elementos
pertencentes a modos de produção sobrepostos, um representando o "passado" e outro o "futuro".
Tal perspectiva é falsa: com efeito, o que caracteriza os países subdesenvolvidos não é um
atraso da manifestação da transição do modo de produção feudal ou escravista para o modo de
produção capitalista, mas justamente a coexistência durável, que se estende por vários séculos,
destes elementos. A própria duração desta transição indica tratar-se, no caso, de um "compromisso"
teórico.
Pierre-Philippe Rey toma corretamente como ponto de partida a perenidade desta articulação,
mas refere-se à articulação de modos de produção diferentes.
"De qualquer maneira, em 1949 o capitalismo tinha estabelecido havia já uns bons anos a
sua dominação nas colônias, mas o desenvolvimento não deixava por isso de ser extremamente
lento; constatava-se igualmente que em todas as colônias dos países capitalistas as estruturas sociais
correspondentes aos modos de produção pré-capitalistas não haviam de modo algum desaparecido, e
tinham-se mesmo em geral reforçado. O que é mais, estes modos de produção pré-capitalistas
continuavam eles próprios a jogar um papel muito importante e mesmo absolutamente determinante
para a sobrevivência das populações".34
As condições concretas dos países subdesenvolvidos são, pois, caracterizadas pelo "tipo de
articulação" que neles se realiza entre o capitalismo dominante e os outros modos de produção.35
Trata-se, pois, de "uma formação social capitalista onde o capitalismo é o modo de produção
dominante, onde os outros modos de produção se reproduzem 'sobre a base' do modo capitalista, no
quadro do próprio processo de reprodução capitalista".36
Se a concepção de articulação de modos de produção sobre a base de um modo de produção
dominante nos parece constituir um enorme progresso relativamente às "justaposições" dualistas ou
pluralistas, comporta no entanto ainda uma grande imprecisão: o modo de produção capitalista é por
certo dominante, mas como qualificar os "outros modos de produção"? Kostas Vergopoulos nota
bem que "o camponês não pode reivindicar uma organização do conjunto da sociedade na base do
modelo 'pré-capitalista'... por conseguinte não pode ser considerado como portador de um outro
modo de produção''.37
Charles Bettelheim aponta com maior precisão o problema: "Pergunto-me, com efeito... se
os 'modos de produção' dominados conservam o estatuto de 'modo de produção', pois a sua própria
instância 'dominante' não pode mais funcionar como tal. Noutros termos, o que pode ser 'pensado'
34
Pierre-Philippe Rey, Les alliances de classe: sur l’articulation des modes de production, Paris, Maspéro, 1973, p. 13.
(18) Charles Bettelheim, "Remargues théoriques", Problèmes de planification, n° 14, 1970, pp. 184-185.
35
Ibid., p. 17.
36
Ibid., p. 158.
37
Kostas Vergopoulos, "Capitalisme difforme ", in: S. Amin e Kostas Vergopoulos, La question paysanne et le
capitalisme, Paris, Anthropos-ldep., 1974, p. 255.
de modo abstrato (num isolamento ideal) como um 'modo de produção' deixa de ser tal na
combinação em que certos modos de produção são dominados".38
Excelente "preocupação" esta de Bettelheim. Com efeito, ou nos encontramos ainda na fase
de penetração do "modo de produção dominante", e neste caso estamos simplesmente numa
concepção mais elástica da transição; ou, então, os elementos pré-capitalistas pertencem ao modo de
produção capitalista, "sobre a base" do qual são reproduzidos, e não há como fugir ao problema: há
que demonstrar como estes elementos pré-capitalistas se integram nas diversas fases de reprodução
do capital, sem constituir os entraves que vieram constituir na Europa da revolução burguesa. E,
neste caso, é de pouco interesse qualificar estes modos de produção pré-capitalistas como modos de
produção, já que constituem um elemento estável da acumulação do capital no modo de produção
capitalista.
Assim, a nossa preocupação foi ir além de conceitos extremamente elásticos e difíceis de
delimitar — a "articulação", a "dominância" do modo de produção capitalista, a reprodução dos
modos de produção pré-capitalistas "sobre a base" do modo de produção pré-capitalista — e tentar,
partindo de uma distinção das diferentes fases de reprodução do capital (A — M ... p... M' — A'),
no decorrer das grandes etapas da economia brasileira (etapa colonial, neocolonial e transição para a
fase atual), compreender como os elementos pré-capitalistas encontram o seu lugar na reprodução
do capital e como a contradição aparente que resulta de coexistência de elementos capitalistas e
pré-capitalistas foi sendo sucessivamente resolvida.
Tal é a perspectiva que nos pareceu mais produtiva. Com efeito, estes desenvolvimentos
teóricos são recentes e não justificam tomadas de posição categóricas. No entanto, pareceu-nos que
na falta de ligar a sua análise do caráter dominante da circulação e da articulação dos modos de
produção a uma teoria de realização, Rey não consegue caracterizar uma forma específica do modo
de produção capitalista e, ao manter a concepção de "luta de modos de produção", não consegue
desligar-se efetivamente de uma concepção "lata" da transição.
Parece-nos que se trata de um modo de produção que se articula com relações de produção
diferentes das do capitalismo dominante, enquanto impõe as suas próprias relações de circulação,
para constituir um dado específico, um modo de produção capitalista dependente. Com efeito, não
há luta de modos de produção diferentes pela hegemonia sobre o processo de produção global: qual
seria, por exemplo, a perspectiva das classes ditas feudais, que produzem açúcar, café e outros
produtos de exportação, senão a de se ligar mais firmemente ao capitalismo internacional?
Se Vergopoulos refuta com razão a concepção de Rey de "luta" entre modos de produção
dentro de uma formação social com "dominância" capitalista, a descrição que dá das relações entre
os diversos elementos continua sendo uma relação de exterioridade: "O capital não visa
necessariamente a extensão do modo de produção capitalista, mas sobretudo a interceptação da
renda e do lucro agrícolas em proveito do modo de produção capitalista. O combate que Rey
constata não visa tanto a mudança das estruturas produtivas, segundo o modo de produção
capitalista, como a submissão das estruturas existentes ao "bombeamento" do modo de produção
capitalista... não há verdadeiro combate entre dois modos de produção, mas sim luta entre
elementos divergentes para a recuperação do produto e do trabalho agrícola".39
38
Charles Bettelheim, "Remargues théoriques", Problèmes de planification, n° 14, 1970, pp. 184-185.
39
Kostas Vergopoulos, op. cit., p 256.
O termo "bombeamento" (pompage) pode induzir em erro: não se trata de uma estrutura
externa que "bombeia" as economias subdesenvolvidas ou as "suga" (perspectiva dualista), mas de
um processo de reprodução do capital no quadro do capitalismo dependente.40
Assim, pode-se perfeitamente dar conta das relações de produção longamente qualificadas
como pré-capitalistas, no quadro do capitalismo dependente, cujas opções fundamentais são
determinadas pela circulação do centro. Com efeito, do ponto de vista do capitalismo dominante,
não se trata apenas de "recuperar o produto", mas sim de assegurar a sua reprodução crescente, e por
conseguinte a reprodução das próprias relações de produção.
Sobre o pano de fundo constituído pelo desenvolvimento das forças produtivas, tanto nas
economias capitalistas dominantes como nas economias capitalistas dependentes assiste-se, pois, a
um gradual deslocamento das formas desta relação enquanto o fundo, a dependência econômica de
umas em relação às outras, permanece.
Este deslocamento das formas de dependência encontra-se bem caracterizado por A.
Emmanuel pare o caso da Índia, relativamente à produção local de tecidos de algodão, considerada
um golpe mortal dado à dominação inglesa. Na realidade, esta passava simplesmente para outro
nível: do intercâmbio de algodão indiano contra tecidos de algodão ingleses, passava-se a uma fase
em que a Índia produz os seus próprios tecidos, enquanto a Inglaterra produz e lhe fornece casimira
fina; mais tarde, a Índia viria a produzir também estes, mas a Inglaterra já lhe fornecia máquinas de
fiação e tecelagem, e assim por diante.41
Sem entrar no pormenor da simplificação evidente de certos condicionamentos do
desenvolvimento indiano, interessa-nos aqui fixar o enfoque geral, que consiste em buscar sob a
transformação técnica das formas externas de dependência a permanência do elemento essencial, da
própria dependência e da extroversão econômica que se segue -impedindo o desenvolvimento
autocentrado — que nos parece rico para a compreensão da dinâmica do desenvolvimento
brasileiro.
Fase Portuguesa:
A DEPENDÊNCIA COLONIAL
O Brasil será uma colônia portuguesa desde a descoberta em 1500 até 1822, data da
proclamação da Independência. Estes três séculos e pouco de colonização lançam as bases do Brasil
atual.
42
Paul Baran escreve que os povos subdesenvolvidos (em geral) "encontram - se presos entre o feudalismo e o
capitalismo, sofrendo todas as conseqüências desastrosas ao mesmo tempo e as do imperialismo ainda por cima. A
dominação implacável dos feudais era ainda atenuada pelos costumes e pela tradição, enquanto que a dos
capitalistas— estrangeiros ou nacionais — praticamente não o era. Ao obscurantismo e à violência arbitrária
acrescentava-se a capacidade calculadora e racional dos capitalistas" (Paul A. Baran, Economie politique de la
croissance, Paris, Maspéro, 1967, p. 187). A tendência para identificar o que foi edificado no Brasil pelo colonizador
com o que os colonizadores encontraram em outros países colonizados permanece grande.
riquezas minerais terem permanecido durante longo tempo desconhecidas orientou desde o início os
colonos para atividades produtivas.43
A economia brasileira vê-se, pois, desde logo organizada para a produção em função de
necessidades externas.
Enfim, cumpre notar a especificidade do Brasil colonial relativamente aos Estados Unidos.
A descrição acima traz evidentemente à mente traços semelhantes entre as duas economias na fase
inicial. A especificidade brasi1eira será marcada apenas mais tarde, quando os Estados Unidos, pela
Guerra da Independência e pela Guerra da Secessão, rompem com os laços políticos e econômicos
da dependência e de extroversão e reorientam a sue economia em função das necessidades internas.
No Brasil, uma série de circunstâncias, entre as quais o próprio caráter dependente de Portugal e o
seu papel de intermediário e a dominância do clima tropical (favorecendo a especialização mais
aprofundada do país em produtos coloniais), asseguraram a predominância das atividades
extrovertidas sobre as atividades autocentradas, perpetuando a dependência.
O Brasil apresenta assim um pouco o caráter de "pura criação" da expansão do capitalismo
europeu e, mais tarde, americano. O estudo da formação das estruturas econômicas e sociais do
Brasil é, pois, particularmente interessante do ponto de vista teórico.44
43
Num pequeno livro importante para a compreensão da América Latina, Barbara e Stanley Stein marcam bem esta
especificidade: "Diferentemente da hacienda (da América espanhola), a plantação era uma unidade econômica
independente, encarregada de fornecer matérias-primas ao consumo externo, ou seja, europeu " (Barbara e Stanley
Stein, L'Héritage colonial de l'Amérique Latine, Paris, Maspéro, 1974, p. 47).
44
É característico que numerosos autores que se colocam o problema da definição dos modos de produção em
economias subdesenvolvidas se tenham voltado para o estudo do Brasil. Para citar alguns: Gunder Frank, Pierre
Salama, Carlo Benetti, etc
45
Barbara e Stanley Stein, op. cit., p. 13. Para um tratamento aprofundado da questão, ver os excelentes trabalhos de
Vitorino Magalhães Godinho, Armando Castro, Frédéric Mauro
46
Roberto Simonsen, História Econômica do Brasil — 1500-1820, Cia. Editora Nacional, 1937, tomo 1, p. 126.
47
Stein, op. cit., p. 31.
metalúrgicos que ela importava... Por outras palavras, por intermédio da economia e das estruturas
políticas portuguesas, no início da era capitalista, o Brasil estava ligado à economia da Europa”.48
Portugal orientava pois a colônia segundo as necessidades das economias de que dependia,
da Holanda e depois sobretudo da Inglaterra, e do seu capitalismo em pleno florescimento.49
A Empresa Agroexportadora
Paraíba ........................................................... 37
48
Ibid., p. 32.
49
Um marco importante desta evolução é o Tratado de Methween (1703), que confirma a dominação da Inglaterra
sobre a economia portuguesa e, indiretamente, sobre a colônia brasileira. Um breve corte não fez senão relativizar
esta situação sem transformá-la: a presença do marquês de Pombal no governo português entre 1750 e 1777, que se
esforçou por submeter a economia às necessidades portuguesas e por imprimir a Portugal uma política econômica
nacional.
50
"Com a subida dos preços na segunda década da descoberta do Brasil a situação modificou-se e a produção do
açúcar tornou-se interessante" (Heitor Ferreira Lima, História Político-Econômica e Industrial do Brasil, Cia: Ed.
Nacional, 1973, p. 29).
51
Roberto Slmonsen, op. cit., vol. 11, p. 126.
52
Heitor Ferreira Lima, op. cit., p. 25.
53
Ibid., pp. 29 e 30.
Pernambuco .................................................. 296
Alagoas ......................................................... 73
Sergipe .......................................................... 140
Bahia ............................................................. 260
57
Antonil, Cultura e Opulência do Brasil — 1711, Paris, IHEAL, 1968, p. 325.
(17) "É somente depois de se tornar uma mercadoria de grande importância no mercado internacional que o algodão
começa a aparecer, tornando-se mesmo uma das principais riquezas da colônia ", escreve Caio Prado Jr., op cit, p.
83.
(18) Caio Prado Jr, op. cit., p 85.
58
"É somente depois de se tornar uma mercadoria de grande importância no mercado internacional que o algodão
começa a aparecer, tornando-se mesmo uma das principais riquezas da colônia ", escreve Caio Prado Jr., op cit, p. 83.
59
Caio Prado Jr, op. cit., p 85.
60
Celso Furtado, "Agricultura y desarollo económico: consideraciones sobre el caso brasileño”, El Trimestre
Económico, Jan.-Mar., 1972, p. 14.
61
Além da sua importância econômica, a criação de gado exerce um papel importante de integração econômica do país,
fazendo a ponte entre as diversas zonas produtivas.
em número de dois mil e quinhentos, vemos bem claramente quantos animais são necessários para
revestir de couro vinte e sete mil e quinhentos rolos.
"Além disto, exporta-se cada ano da Bahia, com destino ao Reino, até cinqüenta mil peles
tratadas; de Pernambuco quarenta mil e do Rio de Janeiro até vinte mil... num total de dez mil peles.
"Dado o grande número de engenhos de açúcar que, cada ano, se aprovisionam em bois para
os serviços dos carros e o grande número de bois que são necessários aos plantadores de
cana-de-acúcar, de tabaco, de mandioca, às serrarias e ao transporte da lenha para queimar,
poderemos facilmente deduzir o número de bois que serão necessários, de um ano para outro, para
assegurar todas estas atividades".62
Se bem que produzido fundamentalmente com destino interno (do ponto de vista da
colônia), o gado foi criado segundo exigências comerciais, em grandes fazendas do interior do pais,
de onde era "exportado" para atingir o seu mercado freqüentemente situado a milhares de
quilômetros. Assim, grande parte do gado de Pernambuco vinha do Piauí; 63 mais tarde, com o
desenvolvimento da produção de charque no sul do Brasil, este virá aprovisionar o Nordeste e o
Sudeste do país.
Do ponto de vista da função e da estrutura não se trata, pois, da "granja" camponesa de estilo
europeu, que produz em função das necessidades locais ou regionais. A criação de gado ocupava
gigantescas extensões no interior do país e os engenhos reservavam as boas terras à cultura dos bens
de exportação.64 Assim, sob a influência da dinâmica de produção para exportação, a criação de
gado, se bem que destinada ao mercado interno, era por ela orientada. Do ponto de vista regional
esta atividade em grandes propriedades aparecia como exportadora e não contribuía para a
formação de uma dinâmica autocentrada.65
62
Antonil, op. cit., p. 483.
63
"As fazendas do Piauí tornaram-se logo as mais importantes de todo o Nordeste e a maior parte do gado consumido
na Bahia vem de lá, se bem que deva percorrer mil e tantos quilômetros de caminho para atingir o seu mercado" (Caio
Prado Jr., op. cit., p. 67).
64
Capistrano de Abreu descreve como segue a criação, junto do engenho, "de vacas leiteiras, havia currais, em
pequeno número, pois não se fabricava nem queijo nem manteiga. Comia-se pouca carne... o gado era limitado ao
estritamente necessário para o serviço agrícola” (segundo Heitor Ferreira Lima, op. cit., p. 34).
65
Um critério freqüentemente utilizado, se bem que implícito, identifica atividade extrovertida com exportação. Como
veremos mais adiante, a atividade pode ser extrovertida sem dar lugar à exportação, porque obedece à dinâmica
extrovertida que domina a economia. A criação de gado constitui um exemplo importante deste fenômeno.
66
Esta distinção em dois setores é feita pela maioria dos autores, mas com sentidos diferentes: Caio Prado Jr. distingue
um setor de exportação e um setor de subsistência, este último sendo o das "atividades acessórias destinadas a manter
em funcionamento esta economia de exportação” (p. 41). Nós referir-nos-emos à dinâmica que orienta cada setor,
distinguindo a agricultura introvertida e extrovertida, independentemente do fato de se tratar de agricultura de
exportação ou não.
de engenho. O problema do preço e da falta de alimentos não existia para eles e convinha-lhes mais
plantar cana-de-açúcar, mesmo se tivessem que pagar preços mais elevados pelos bens que
consumiam. E como detinham a maior e melhor parte das terras utilizáveis, o problema da
alimentação jamais será corretamente resolvido. A população colonial, com a única exceção das
classes ricas, viverá sempre em estado de subalimentação crônica. A população urbana sofrerá
naturalmente mais; mas a população rural sentirá também os efeitos da ação absorvente e
monopolizadora da cana-de-açúcar, que se reservava as melhores terras disponíveis".67
Se do ponto de vista do latifundiário ligado a uma agricultura comercial em grande escala o
interesse da agricultura alimentar era medíocre, o próprio colono terá poucas possibilidades de
desenvolver a agricultura camponesa e, fato de grande importância para o Brasil atual, de se
constituir em classe camponesa. Desde o início, a pequena e média propriedade que produzia para o
mercado interno tornou-se uma agricultura marginal, gradualmente empurrada para o interior do
país: "O que o pequeno agricultor não esteve em medida de fazer era sustentar a competição com a
empresa agromercantil na grande agricultura, ou seja, na produção destinada à exportação. O fato de
este pequeno agricultor não ser competitivo obedece a diversas causas: em primeiro lugar, havia a
dificuldade de acesso às melhores terras, que eram sempre controladas pelos grandes proprietários.
Segundo, apresentava-se o problema da comercialização do produto, o que exigia capacidade de
financiamento. Enfim, havia o fato de que quem trabalhava a terra entrava em competição com a
mão-de-obra escrava. Mesmo numa fase posterior, quando a escravidão terá desaparecido, as
possibilidades de sobrevivência da pequena propriedade mostraram-se precárias".68
É claro que a influência de Lisboa fez-se sentir nesta orientação. Buarque de Holanda relate
que, "pelos fins do século XVIII, quando a capitania de São Pedro do Rio Grande começava a
exportar trigo para outras regiões do Brasil, o gabinete de Lisboa fazia cessar sumariamente a
cultura deste cereal".69 Assim, acumulavam-se os efeitos do estímulo dado à agricultura de
exportação, da dominância esmagadora da empresa agromercantil e da proibição de outras culturas
ou indústrias que produziam para o mercado interno — e que contribuiriam, portanto, para formar
um mercado interno.70
Por falta de peso e de estabilidade, a pequena produção camponesa não pôde, pois, firmar o
pé e dar lugar a uma classe camponesa, no sentido europeu da palavra. O seu desenvolvimento foi
muito localizado, no Sul do país, ou marginal, como é o caso da agricultura de auto-subsistência em
queimadas. Relativamente às atividades extrovertidas dominantes, esta classe jogava um papel
secundário.
A não-formação de uma classe camponesa e a fraqueza do excedente e do mercado local
tornavam, por sua vez, muito difícil a constituição de atividades paralelas comerciais e artesanais,
que poderiam ter reagido sobre a produtividade camponesa pela criação de economias externas e
criado um processo cumulativo de desenvolvimento capitalista introvertido.
67
Caio Prado Jr., op. cit., p. 43
68
Celso Furtato, op. cit.
69
Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 1956, 3a ed., p. 148.
70
É preciso acrescentar que esta proibição externa, muito valorizada e agradável ao nacionalismo brasileiro, é
secundária relativamente aos mecanismos econômicos internos que a tornam viável. Isto significa que a organização
da economia extrovertida cria dentro do país esferas de interesses e mecanismos que serão mais potentes que as ordens
de Lisboa. Esta interiorização gradual da ordem colonial, da extroversão, é um elemento importante da compreensão
do desenvolvimento brasileiro. Quando Caio Prado Júnior escreve que a ordem colonial constitui no Brasil uma
economia "completamente estranha à população” (História, pp. 104-105) simplifica o problema e torna mais difícil a
passagem do nível das contradições entre “nações” ao nível das contradições de classe: na realidade, os objetivos
coloniais já estavam assimilados por uma minoria importante da sua população — a classe dirigente em formação
O desenvolvimento orientado basicamente para os produtos agrícolas de exportação e
atividades induzidas foi temporariamente diversificado, durante a fase colonial, por uma exploração
mais próxima da acumulação primitiva: no início do século XVIII a busca de metais preciosos, que
não havia deixado de estimular a imaginação de numerosos grupos de aventureiros — os
"bandeirantes" —, deu os seus primeiros resultados com a descoberta do ouro em 1696, na região de
Ouro Preto (Minas Gerais), e logo do diamante, no mesmo Estado, mas em quantidades menos
importantes, em torno de 1730.
Já em 1702 a metrópole organizava o controle de todas as atividades mineiras, reservando-se
o "quinto", e instalava no país um sistema de intendentes responsáveis diretamente perante o
governo de Lisboa.
A fase mineira durou cerca de três quartos de século e as atividades produtivas retomaram o
seu lugar na economia ainda no decorrer do século XVIII. A sua importância resulta, pois, mais das
conseqüências estruturais do que do fluxo de riqueza que criou.
Do ponto de vista político, a diferença entre as atividades produtivas de exportação e a
atividade extrativa mineral é profunda. As atividades produtivas eram baseadas num nível muito
elevado de exploração da força de trabalho, mas a classe dirigente local à qual elas deram lugar
estava profundamente identificada com o sistema extrovertido: desligada do mercado capitalista
internacional, esta classe dirigente não teria outra perspectiva senão de reconverter-se para a
agricultura de subsistência miserável, ou em todo o caso incapaz de lhe assegurar o mesmo nível de
vida, visto a exigüidade do mercado interno. Pelo contrário, a atividade mineira envolvia um
produto que os exploradores legais tinham todo o interesse em guardar, donde um profundo conflito
de interesses que desembocou num movimento de revolta cuja profundidade foi longamente
subestimada: a "Inconfidência Mineira".71 Umas dezenas de anos antes da independência, a classe
dirigente local tomava corpo e consciência dos seus interesses específicos.
Do ponto de vista da estrutura econômica do país, constata-se um deslocamento importante
do eixo econômico do país do Nordeste para o Sul. A capital não é mais Salvador mas, a partir de
1763, Rio de Janeiro. "As comunicações entre as minas e o estrangeiro fazem-se mais facilmente
através deste porto, que se tornará o principal centro urbano da colônia. De um modo geral, é todo o
setor Centro-Sul que toma o primeiro lugar entre as diferentes regiões do país, para conservá-lo até
hoje".72
Do ponto de vista das atividades econômicas induzidas encontramos alterações importantes:
em torno da população que aflui em busca do ouro —"trata-se não somente dos grandes
proprietários que recebiam as concessões proporcionalmente ao número de escravos que podiam
apresentar, mas também de pequenos exploradores semiclandestinos — organiza-se um embrião de
desenvolvimento introvertido.
Antonil, que escreve no início do século XVIII, dá-nos a descrição seguinte da nova
paisagem: "Desta montanha partem dois caminhos, um leva às Minas Gerais do Ribeirão de Nossa
Senhora do Carmo e de Ouro Preto; o outro leva às Minas do Rio das Velhas. Cada um exige seis
dias de viagem. E é somente a partir desta montada que começam, até onde a vista chega, as
plantações de milho e de feijão onde vêm aprovisionar-se os que habitam e trabalham nas minas".73
A atividade agrícola alimentar não é a única destas atividades introvertidas estimuladas pela
extração mineira: "Pela venda de bens comestíveis, de aguardente e de uva, muitos acumularam
também em pouco tempo uma quantidade de ouro considerável. A razão disto é que os negros e os
índios enquanto garimpavam na água escondiam bom número de pepitas e o ouro que retiravam
71
"Pelo início de 1789, uma conspiração formidável havia sido organizada em Minas Gerais, apoiada por alguns dos
homens mais ricos e de maior influência e contando com um apoio importante no seio das tropas que estacionavam na
região... A conspiração de Minas foi fundamentalmente um movimento da oligarquia, no interesse da oligarquia, em
que o nome do povo seria evocado apenas como justificativo " (Kenneth R. Maxwell, Conflicts and Conspiracies: Brazil
and Portugal, 175O-1808, Cambridge, U. P., 1973, pp. 139e 140).
72
Caio Prado Jr., op.cit., p.65.
73
Antonil, op. cit., p. 427.
tanto nos dias feriados como nas últimas horas do dia lhes pertencia; a maior parte deste ouro é
assim gasto em comida e bebida e vai dando gradualmente grande lucro aos vendedores, da mesma
forma que a chuva fina o traz habitualmente aos campos que rega silenciosamente e
ininterruptamente, tornando-os assim muito férteis. E porque mesmo os homens mais ricos não
deixaram de tirar lucro, por este modo, desta mina à flor do chão, empregando nesta exploração
muito frutuosa negras para fazer a cozinha, mulatas para o fabrico dos doces e negros para manter
cabarets, fazendo vir dos portos de mar tudo o que a gula fez habitualmente desejar e buscar".74
A sobreposição de mecanismos capitalistas e de diferentes relações de exploração aparece
claramente aqui. É de se notar também esta mais-valia "desvelada": o escravo trabalha durante o dia
para o seu proprietário e algumas horas a mais — "as últimas horas do dia" e os dias feriados —
para as suas próprias necessidades.
O desenvolvimento destas atividades reage sobre as atividades da agricultura de exportação:
"Estes preços tão elevados e tão correntes das Minas causaram um aumento de preços de todas as
coisas, como se vê nos portos das cidades e das vilas do Brasil, e muitos engenhos de açúcar estão
desprovidos de escravos que necessitam e a população sofre uma grande falta de víveres porque se
enviam quase todos ao lugar onde a sua venda produzirá maiores lucros".75
A proliferação das atividades introvertidas preocupa Portugal que, em 1785, "ordena a
abolição das indústrias e das fábricas do país — para não tirar os braços necessários à cultura e para
assegurar uma diferenciação do produto entre a colônia e a metrópole, que permita o
desenvolvimento do comércio e a exportação do consumo dos produtos industriais da metrópole".76
Outros mecanismos assegurarão que essa lei tenha conteúdo. Por um lado, a riqueza em ouro
e diamantes era limitada e esgotou-se rapidamente no último quarto de século. Por outro lado, as
descobertas mecânicas permitiam na mesma época um rápido desenvolvimento da indústria têxtil
inglesa e o algodão toma o lugar das atividades mineiras.77 Enfim, a riqueza dominante provinha das
atividades exportadoras e o desvio da mão-de-obra para a mineração não podia ser senão marginal.
Dentro do próprio país, a classe dirigente local o garantiria.
Uma última conseqüência, que acelerará o fim da "fase portuguesa", é o enfraquecimento da
metrópole devido ao fluxo de ouro da colônia.78 Enquanto nos outros países da Europa esta riqueza
se transformava em acumulação capitalista e em capacidade de produção maior, em Portugal ela
vinha apenas reforçar a aristocracia parasita, que podia importar uma quantidade maior de bens
manufaturados, enfraquecendo assim a sua própria base produtiva e retardando a passagem para o
capitalismo industrial.
O despertar da classe dirigente brasileira, o enfraquecimento de Portugal e o dinamismo da
indústria inglesa, que cada vez mais assegurava o controle dos mares, preparavam a eliminação de
Portugal do seu papel de intermediário e a tomada de contato direto do capitalismo inglês com a
economia brasileira.
Considerações Teóricas
A este ponto da análise podemos já sugerir alguns aspectos teóricos que se esboçam.
Do ponto de vista das relações de propriedade, parece bem estabelecido que a formação da
empresa agromercantil como unidade-base da economia brasileira responde às exigências das
relações técnicas de produção (em particular no caso do açúcar) e à própria extroversão econômica,
e não a um "modelo feudal" que teria sido importado de Portugal. É interessante constatar que a
cultura do algodão, que exige relativamente menos investimentos, facilitou o aparecimento do
74
Ibid., p. 395.
75
Antonil, op. cit., p. 395.
76
Roberto Simonsen, op. cit., p. 247.
77
O f uso data de 1769, o tear mecânico de 1787.
78
A este propósito, Roberto Simonsen, op. cit., vol. 1l, p. 215; Barbara e Stanley Stein, op. cit., p. 27, além,
evidentemente, dos excelentes trabalhos portugueses, em particular de Armando Castro e Vitorino Magalhães Godinho.
arrendamento a meias no Brasil, como nos Estados Unidos, enquanto que as estruturas mais tarde
denunciadas como "feudais" ou "semifeudais" estão sobretudo presentes nas grandes culturas
semi-industriais, como o açúcar ou o tabaco. No sul do Brasil, bem como no norte dos Estados
Unidos, a agricultura adotou estruturas sensivelmente diferentes.
É preciso constatar também o laço existente entre relações técnicas de produção e a
extroversão: se as primeiras exigem uma produção semi-industrial em grande escala, somente a
existência de possibilidades de escoamento no exterior permite esta escala de produção. Com efeito,
na colônia em fase de constituição, os mercados internos eram praticamente inexistentes no início e
uma atividade em grande escala e introvertida teria sido impossível.79
Notemos, enfim, a ligação entre as relações de propriedade e as relações de exploração.
Sendo o problema fundamental do ponto de vista dos fatores de produção o da mão-de-obra, o
monopólio da terra através de gigantescos domínios contribui, como mais tarde o monopólio da
propriedade dos bens de produção em geral, para fixar o trabalhador na grande propriedade
agromercantil, evitando que se estabeleça por conta própria em pequenas ou médias propriedades.80
A formação das grandes propriedades, os latifúndios, freqüentemente qualificados de feudais,
encontra pois uma explicação na racionalidade econômica da exploração dos fatores, qualquer que
seja o peso da ideologia feudal trazida pelos conquistadores.
Assim, ainda que encontremos relações de propriedade que se assemelham em parte às que
existiram na Europa em outras épocas, a dinâmica da sua criação e da sua reprodução é inversa:
"trata-se de um produto do capitalismo dominante em desenvolvimento, e não de uma base sobre a
qual o capitalismo se iria edificar, negando-a.
Do ponto de vista das relações sociais de produção, não há dúvida de que a escravidão é a
relação de exploração dominante. A racionalidade econômica desta relação é aparente: trabalhadores
europeus não estariam dispostos a trabalhar em grandes plantações exportadoras do outro lado do
oceano, num país onde a terra abundava. Ora, se considerarmos que a mão-de-obra continuou sendo
o fator raro por excelência durante vários séculos, somente a propriedade sobre o próprio homem
podia assegurar uma exploração tão elevada na empresa agromercantil, em face da extensão de terras
virgens disponíveis. Vemos pois aqui complementarem-se uma relação de exploração escravista e
relações de propriedade em parte semelhante às da Europa da Idade Média, para assegurar a
presença da mão-de-obra nas unidades de produção que respondiam às necessidades da acumulação
capitalista. O que as enclosures foram pare o capitalismo inglês — assegurando a expulsão de
mão-de-obra do campo para obrigá-la a vender-se nas empresas — o monopólio da terra e a sujeição
extra-econômica o foram no Brasil para as empresas agromercantis.
Enquanto dura a falta de mão-de-obra, assistiremos a um deslocamento gradual das formas de
sujeição extra-econômica, passando-se da escravidão às diferentes formas patriarcais, ao
arrendamento a meias, ao endividamento perpétuo e tantas outras, sem que a sujeição em si seja
abolida ou substituída por mecanismos econômicos.
A ligação entre as relações de exploração e a extoversão econômica, ou seja, entre a
escravidão e as determinações das necessidades do capitalismo dominante, é bastante clara: com
efeito, a produtividade da mão-de-obra nestas unidades agro-industriais que são os engenhos era
relativamente elevada, enquanto a exploração permanecia muito forte. Face à massa de produção
obtida no quadro de um nível relativamente elevado do desenvolvimento das forças produtivas e à
79
Compreende-se pois que a classe dirigente local que emerge, constituída pelos proprietários das grandes unidades
agromercantis, não tenha maiores contradições com a metrópole ao nível das opções econômicas fundamentais
(economia extrovertida desenvolvida em função das necessidades do capitalismo dominante). As contradições ficam no
plano da repartição da mais-valia gerada e não constituem contradições de classe antagônicas, esta constatação,
tradução do plano da luta de classes da forma particular que assume a reprodução do capital no capitalismo
dependente do Brasil, tem implicações evidentes em termos da análise ulterior sobre o caráter da revolução
brasileira.
80
(39) Se considerarmos o peso dos colonos rurais dos Estados Unidos na ampliação do mercado interno, é fácil
entender a importância do monopólio da terra no Brasil na formação do atraso econômico geral.
inexistência da capacidade de compra da mão-de-obra local explorada, somente a exportação podia
assegurar a realização do produto. Assim, o fato de o ciclo de reprodução do capital se fechar no
exterior do país assegurava a solução da contradição entre o nível das forças produtivas (técnicas
relativamente modernas importadas pelos portugueses) e as relações de exploração.
Assistimos, pois, à criação de relações de produção "pré-capitalistas" sob a impulsão da
acumulação capitalista do centro, a dominância da circulação capitalista e o seu caráter extrovertido
permitindo justamente desenvolver a acumulação sem pôr em questão — pelo contrário,
determinando-as — as relações de produção diferentes.
O fato de não haver contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações
de produção sugere que não se trata da articulação de modos de produção — a relação de
exploração escravista no Brasil não poderia existir independentemente das suas determinações
capitalistas — mas da formação, através da articulação da circulação capitalista dominante e de
relações de produção parcialmente pré-capitalistas, de uma forma específica do modo de produção
capitalista.81
Se a relação de exploração dominante é a escravatura e as relações de propriedade guardam
certos aspectos conhecidos durante a fase feudal européia (concessão de domínios, a título
hereditário, a famílias escolhidas), constata-se também que a orientação global da formação social
em desenvolvimento obedece aos impulsos que decorrem das necessidades do desenvolvimento
capitalista.82
Constata-se que a unidade econômica de base, a grande exploração, é simultaneamente
agrícola e industrial; autárquica (só compra o chumbo e o sal, segundo o ditado da época) e
produzindo totalmente para a exportação, para um mercado capitalista; politicamente soberana, mas
dependente inteiramente das oscilações de mercados longínquos nas suas opções fundamentais;83
escravista, mas enquadrada, por assalariados e dirigida pelas regras mais estritas de rentabilidade
capitalista. Parece pois que, segundo privilegiarmos as relações de exploração ou a circulação, a
formação social em questão aparecerá como feudal, escravista ou capitalista.
Durante três séculos da fase colonial o sistema assim constituído não sofreu praticamente
nenhuma modificação: não estamos, pois, na presença de uma série de elementos contraditórios
cronologicamente justapostos, mas de uma articulação estável de elementos de modos de produção
diferentes, o que sugere um modo de produção particular.84
O objetivo da produção no Brasil é efetivamente facilitar a acumulação capitalista no centro.
Parece que, sendo a razão de existência desta agricultura dependente a exportação e obedecendo o
ciclo completo de reprodução (produção e circulação) às necessidades da acumulação do capital,
seria correto falar de um modo de produção capitalista dependente, pois com dominância capitalista
e submetido a uma dinâmica extrovertida.85
81
Salientemos mais uma vez que a qualificação destas relações de produção como sendo "pré-capitalistas" é errônea
— ou, pelo menos, reflete uma realidade totalmente diferente. Compreende-se então o tateamento, em termos de
conceitos a utilizar, que encontramos em diversos autores, que se referem à "escravatura colonial”, a relações de
produção "patriarcais ", etc.
82
Sugerimos acima (ver capítulo precedente) uma explicação desta dominância das determinações capitalistas numa
economia escravista através da circulação, no desenvolvimento do capital dependente
83
Esta dominância do econômico em todas as fases do desenvolvimento brasileiro constitui mais uma diferença
profunda relativamente ao feudalismo europeu. Ver, a este propósito, Nicos Poulantzas, Pouvoir politique et classes
sociales, Maspéro, 1968.
84
É evidente que nos referimos ao modo de produção específico para marcar uma dinâmica de acumulação particular,
mas não de um novo modo de produção: este modo de produção é capitalista, mas constitui uma forma de acumulação
auxiliar de uma dinâmica capitalista externa; trata-se, pois, de uma forma particular do modo de produção capitalista,
forma que definimos pelo seu caráter dependente.
85
Vemos aqui uma possibilidade de ultrapassar o diálogo de surdos entre os que mostram a circulação e dizem que o
modo de produção é capitalista, e os que mostram as relações de produção e dizem que o modo de produção é
pré-capitalista: com efeito, para além do isolamento de um outro termo, é preciso ver o sentido do ciclo completo de
reprodução (as três fases). Ora, este ciclo obedece à lógica da acumulação capitalista
Capítulo IV
86
''Os países subdesenvolvidos fariam bem em lembrar-se que os ingleses constituíram uma marinha mercante a partir
de cerca de 1.700 navios apreendidos aos holandeses no espaço de dois anos, entre 1652 e 1654 " (Barbara e Stanley
Stein, L'Héritage colonial de l'Amérique Latine, p. 33).
87
"A liberdade do comércio foi uma concessão preciosa e a Europa não poupou a sua aprovação ao governo
português " (Delgado de Carvalho, Le Brésil Méridional, Paris, 1910, p. 104).
Fato característico, revalidam, pelos acordos de 1827, os tratados de 1810, através dos quais D. João
VI abria a sua colônia aos ingleses.88
As Bases do Neocolonialismo
É essencial compreender que a independência do Brasil não resulta da luta travada pelas
classes dirigentes brasileiras contra o sistema colonial, mas do afastamento de Portugal, economia
demasiado fraca para gerir a sua colônia, em face da potência crescente da Inglaterra em plena
industrialização.
A proclamação da independência, em 7 de setembro de 1822, provocará, pois, relativamente
poucos distúrbios e nenhuma transformação essencial das estruturas internas: ratificava uma nova
forma de existência do Brasil no sistema capitalista; refletia por um lado a ultrapassagem do
capitalismo mercantilista e a decadência da Península Ibérica, e por outro lado o crescimento do
capitalismo industrial e a potência da economia inglesa. Não refletia, e isto é fundamental, o
aparecimento no Brasil de atividades econômicas e de uma classe social capazes de pôr em causa a
própria relação colonial.
Em 19 de fevereiro de 1810, o regente português instalado no Brasil e o plenipotenciário
inglês assinam, para um período ilimitado, dois tratados e uma convenção: um tratado de aliança e
de amizade, um tratado de comércio e uma convenção instituindo a ligação postal permanente por
navios regulares entre os dois países. O tratado sobre o comércio instaura um "sistema liberal de
comércio fundado sobre as bases da reciprocidade".89
A grande privilegiada é na realidade a Inglaterra, que dispõe da estrutura industrial mais
dinâmica e que domina os mares. Os navios ingleses obtêm melhores condições que os próprios
navios portugueses: os produtos ingleses pagarão uma taxa alfandegária de 15 por cento, ou seja,
um por cento menos que a taxa que incidia sobre os produtos portugueses ou de outras colônias
portuguesas. Os direitos eram percebidos sobre o valor declarado. Se todos os estrangeiros obtêm o
direito de estabelecer-se com toda a liberdade no país, os ingleses se beneficiam ademais da
extraterritorialidade jurídica.90
O sistema liberal fundado sobre as bases da "reciprocidade" recobria, pois, na realidade, uma
dominação esmagadora da economia inglesa, que já se havia manifestado através de Portugal, mas
que se manifestaria doravante pelo jogo dos mecanismos econômicos e de uma superestrutura
neocolonial.
O que estava em jogo nos tratados de 1810 e o tipo de mecanismos econômicos que eram
instituídos não escapavam a certas esferas brasileiras e ao deixar o Brasil, em 1820, o regente
entendeu dever justificar-se: "Não penseis", escrevia ele no seu manifesto de adeus, "que a
introdução de manufaturas britânicas vá causar prejuízo à vossa indústria... O emprego das vossas
riquezas está atualmente bem orientado para a cultura das vossas terras, o melhoramento das vossas
vinhas... A diminuição dos direitos produzirá uma grande entrada de manufaturas estrangeiras: mas
88
"Esta transferência dos privilégios ingleses tradicionais, durante tanto tempo gozados em Portugal para o império
independente do Brasil foi completada com o tratado comercial de 1827” (A. K. Manchester, British Preeminence in
Brazil, its Rise and Decline, North Caroline, 1933, p. 338)
89
) Preâmbulo do Tratado em Roberto Simonsen, História Econômica do Brasil — 1500-1820, vol. 11, Cia. Editora
Nacional, p. 247.
90
Um observador perspicaz da época, Hyppolito José da Costa, que redigiu em Londres o Correio Brasiliense entre
1808 e 1822, escrevia a este propósito: "As condições contidas na convenção de 1810 significavam a transplantação
do protetorado britânico, cuja situação privilegiada na metrópole era consagrada na nossa esfera econômica e era
mesmo imprudentemente consignada como perpétua. A ausência de reciprocidade era absoluta em todos os domínios;
era aliás difícil de estabelecer, visto a ausência de artigos de necessidade comparável para o consumo: os produtos
manufaturados eram mais necessários ao Brasil que as matérias-primas brasileiras à Inglaterra. A desigualdade
manifestava-se ainda na importância que as exportações representavam para cada um dos países produtores, a
Inglaterra constituindo o mercado quase único para o Brasil, enquanto aquele país repartia os seus interesses entre
países numerosos..." (Hyppolito José da Costa, em Roberto Simonsen, op. cit., vol. 11, p. 254). Estamos longe dos
raciocínios ricardianos.
quem vende muito também compra muito; para ter um grande comércio de exportação é necessário
permitir uma grande importação e a experiência vos mostrará que, a vossa agricultura aumentando,
as vossas manufaturas não ficarão arruinadas na sua totalidade; e se algumas destas manufaturas
abandonam, ficai seguros que é uma prova que esta manufatura não tinha bases sólidas, nem dava
vantagens reais ao Estado".91
Assim, os embriões de atividade introvertida que se haviam constituído em particular durante
a fase mineira seriam sacrificados em proveito da "cultura das nossas terras". Ora, por fracos que
fossem, estes embriões jogavam um papel central na integração intersetorial e regional da economia
brasileira. A abertura dos portos ia consagrar a dominação do setor exportador e o reforço do caráter
extrovertido do capitalismo dependente.92
Aos mecanismos de dominação econômica seria acrescentada uma estrutura "burguesa
compradora" inglesa instalada no Brasil, que passa a controlar essencialmente o comércio, os
transportes e o crédito. "A Inglaterra", escreve Graham, "adquiriu um grande poder sobre a
economia brasileira. Tentando reduzir os riscos do comércio do café, as suas casas de exportação
tornaram-se maiores e controlaram cada vez mais exclusivamente as atividades vitais do Brasil
(Brazil’s life blood).93
Esta tendência caracterizava, aliás, o conjunto da América Latina: "Os comerciantes
britânicos implantaram-se solidamente em toda a América Latina, em Buenos Aires, no Rio de
Janeiro, em Valparaíso, em Caracas, em Vera Cruz, em Cartagena, em Lima".94 (9)
O fim da era colonial significa, pois, simultaneamente a independência jurídica do país e o
reforço da sua dependência econômica. "O Brasil do século XIX", escrevem Stanley e Barbara
Stein, "é um exemplo clássico da maneira como uma herança colonial constituída por uma
agricultura orientada para a exportação e fundada sobre uma mão-de-obra servil determina os
modos da mudança econômico-social depois da independência e leva à formação de uma estrutura
neocolonial, cujas conseqüências sociais são previsíveis e inevitáveis".95
Vemos, pois, a dependência mudar de forma e sobreviver: enquanto Portugal, economia
fraca, não poderia assentar o seu papel senão sobre um monopólio colonial, a Inglaterra era
suficientemente potente para contentar-se com a dominação econômica e financeira.96
Se a ruptura do laço colonial entre o Brasil e Portugal se explica pelo declínio relativo de
Portugal e o reforço prodigioso da Inglaterra, é necessário perguntar-se porque a Inglaterra não se
substituiu simplesmente a Portugal como colonizadora e estabeleceu uma relação neocolonial onde
antes havia relações coloniais.
Um elemento determinante parece ter sido a estrutura interna que o Brasil herda da sua
função colonial: nas colônias de outros continentes, onde o imperialismo sobrepunha uma estrutura
colonial às formações sociais pré-capitalistas mas introvertidas, a presença da dominação política
devia impedir a tendência natural destas economias de seguir o seu caminho e de produzir em
função das necessidades internas; no Brasil, e isto é verdade para outras economias latino-
91
Manifesto de D. João Vl, em Roberto Simonsen, op. cit., vol. 11, pp. 259-260
92
"A Inglaterra, pelo tratado de comércio de 1810, que era na realidade um instrumento criador de privilégios,
continua a jogar na economia brasileira o papel dominante que exercia antes, por intermédio do seu satélite
econômico, Portugal. Inundava o Brasil de tecidos de algodão, de produtos manufaturados à base de ferro e de aço,
tirando-lhe toda a possibilidade de assegurar ele mesmo a fabricação destes produtos, apesar das riquezas do país”
(Barbara e Stanley Stein, op. cit., p. 136).
93
Richard Graham, Britain and the Onset of Modernisation in Brazil, Cambridge University Press, p. 320.
94
Stanley e Barbara Stein, op. cit., p. 122.
95
Ibid., pp. 135 e 136.
96
Pierre-Philippe Rey mostra bem que o imperialismo toma a via da dominação política somente na medida em que
esta é necessária para implantar estruturas financeiras e mecanismos econômicos de exploração. Logo que estes são
possíveis – o que implica um certo nível de desenvolvimento interno da colônia — é do interesse do imperialismo
substituir os seus exércitos por mecanismos de mercado capitalista. Neste sentido, Rey apresenta a forma política de
dominação do imperialismo como uma forma transitória para as formas econômicas de dominação que caracterizam o
neocolonialismo. Ver Pierre-Philippe Rey, "Sur l'articulation des modes de production ", in: Les Alliances de Classes,
Paris, Maspéro, 1973, em particular a página 133.
americanas, o fato de toda a economia ter sido constituída em função das necessidades externas, a
ponto de a própria classe dominante local ver a sua prosperidade depender da boa marcha das
exportações, tornava possível a forma neocolonial de dominação — por intermédio de mecanismos
econômicos e financeiros — quando a forma de dominação colonial estava ainda nos seus primeiros
passos em outros continentes.
A apreciação da nova forma de dependência da economia brasileira em relação ao capital no
dominante exige, portanto, a compreensão do papel particular da classe dirigente local.
Portugual, como vimos, jogava relativamente ao Brasil um papel de intermediário: "Estado
entreposto de todo o comércio, Portugal ganhava sobre a importação de manufaturas estrangeiras
que iam ser consumidas no Brasil, ganhava novamente sobre os impostos que estes artigos pagavam
na colônia; ganhava ainda sobre os impostos dos produtos que a colônia exportava em pagamento
dos que consumia... Os artigos estrangeiros consumidos no Brasil eram desta forma taxados em
mais de 40 por cento do seu valor inicial. Era natural que uma situação de tal ordem despertasse, na
maioria dos colonos, a consciência de uma autonomia que, de fato, existia já no início do século
XIX" 97
Assim, para os colonos brasileiros não era a orientação colonial em si que constituía uma
fonte de conflito, mas o fato de a posição lucrativa de intermediário ser ocupada pelos aristocratas
de Lisboa e não por eles mesmos. Com efeito, a herança colonial não predispunha a classe dirigente
crioula a uma verdadeira independência: vimos que a fase colonial havia deixado no Brasil uma
estrutura econômica essencialmente extrovertida. Isto significava não somente que o produto era em
grande parte exportado, mas que o conjunto da estrutura econômica, a escala de produção, o tipo de
produto e as relações de produção existentes haviam sido constituídos em função de necessidades
externas à colônia. O fato traduzia-se, como vimos, pela não-constituição de uma classe camponesa,
pela fraqueza do mercado interno e das atividades comerciais e artesanais locais, tornando pouco
viável a reconversão da economia para um modelo capitalista autodinâmico.98
É, pois, bastante compreensível que a classe dirigente local, ao mesmo tempo que não vê a
necessidade de repartir com os dignitários portugueses os frutos do trabalho dos seus escravos,
tampouco tenha intenção de "exagerar" a independência e pôr em questão a própria orientação
colonial da economia.
Vimos que a independência do Brasil resulta menos da lute da classe dirigente local por um
desenvolvimento econômico autocentrado do que do afastamento de Portugal, incapaz de cumprir o
seu papel.
Vemos agora que a continuidade da orientação extrovertida estava inscrita nos interesses
imediatos da classe dirigente local.
As repercussões do tratado de 1810 marcam bem a diferença entre uma classe burguesa
nacional e uma classe dependente, como o era a classe dirigente de Portugal e, mais tarde, a do
Brasil.
Esta diferença não escapava a Roberto Simonsen, se bem que permanecesse confusa: “À
colônia, egoisticamente, pouco importava que o tráfego (que resultava da abertura dos portos)
enriquecesse os ingleses ou os portugueses da metrópole, e foram estes últimos que sofreram
realmente com a perda do antigo monopólio, cuja manutenção consideravam vital".99
97
Roberto Simonsen, op. cit., vol. 11, p. 200.
98
Caio Prado Júnior, que tende de modo geral a simplificar o papel das determinações internas, não deixa no entanto
de resumir corretamente o essencial da herança colonial do ponto de vista econômico: "Este é o traço que sintetiza a
economia brasileira no momento em que o país atinge a sua autonomia política: todas as suas atividades giram em
torno deste fim específico de fornecedor de alguns produtos tropicais de alto valor mercantil, de metais preciosos e de
pedras preciosas ao comércio internacional. O resto é secundário, acessório, e serve somente para tornar possível a
realização deste fim " (Caio Prado Júnior, História Econômica do Brasil, p. 105).
99
Roberto Simonsen, op. cit., vol. 11, p. 257.
Celso Furtado analisa este problema mais de perto: "Como não havia na colônia sequer uma
classe comercial de alguma importância — o grande comércio era um monopólio da metrópole —,
resultava que a única classe com expressão era a dos grandes proprietários agrícolas. Qualquer que
fosse a forma de aquisição da independência, seria esta classe que ocuparia o poder, o que aconteceu
efetivamente, particularmente a partir de 1831... Grande plantação de produtos tropicais, a colônia
estava intimamente ligada às economias européias, das quais dependia. Não constituía poIs um
sistema autônomo, mas um simples prolongamento de sistemas mais vastos... A tensão que se
manifesta no decorrer da primeira metade do século XIX entre o governo britânico e a classe
dominante brasileira não recobre, pois, nenhuma contradição séria de interesses. Não se pode, pois,
afirmar que, se o governo brasileiro tivesse gozado de plena liberdade de ação, o desenvolvimento
econômico do país teria sido necessariamente mais intensivo".100
O essencial do problema, que é o da identificação fundamental entre os interesses da
metrópole — o capitalismo dominante —e a classe dirigente local, a quem a herança colonial
predispõe a continuar a produzir em função das necessidades externas, fica claramente colocado.
Este papel particular da classe dirigente — que designaremos como sendo uma burguesia
dependente —, cujos interesses de classe se vêem ligados à orientação da economia em função das
necessidades do capitalismo dominante, está na base das análises atuais que buscam situar este
"crescimento sem desenvolvimento", esta forma particular do capitalismo dependente que
representa o caso brasileiro.
"Encontramos aqui a originalidade radical da América Latina no interior do sistema...
Formados como Estados nacionais no quadro da crise do sistema colonial e no contexto da
emergência de um novo sistema de dominação internacional, os países latino-americanos são, por
origem e constituição, dependentes. Isto significa que o que se designa como 'situação de
dependência' e que evidentemente encontra a sua raiz na subordinação aos 'países dominantes'
implica, por um lado, o modo de relação dos países latino-americanos com o exterior e, por outro, o
modo de organização interna das suas estruturas sociais, econômicas e políticas. Noutros termos: o
sistema capitalista em formação forma as sociedades de acordo com as exigências do seu cresci-
mento. Com a independência que, como se sabe, é associada à transformação das relações
internacionais de dominação, vemos instalar-se e desenvolver-se a ambigüidade que constituem os
atuais 'países dependentes': autonomia política e dependência econômica. Ambigüidade cuja
estrutura interna se trata de esclarecer".101
Encontramos também esta compreensão da identidade fundamental de interesses entre a
burguesia brasileira e a ordem colonial como base da orientação do desenvolvimento ulterior em
Barbara e Stanley Stein, que põem em relevo o peso da herança colonial nesta situação. Assim,
caracterizam a independência como um "ponto de referência histórico, que serve simplesmente para
indicar quando se realizou a principal aspiração local — substituir-se à dominação ibérica, ao
mesmo tempo que preservam as estruturas sociais e políticas herdadas da época colonial. Depois da
100
Ceko Furtado, Formação Econômica do Brasil, pp. 120 e 121. Notam-se no entanto hesitações importantes
no raciocínio de Furtado: um pouco mais longe (p. 145) afirma que os interesses ingleses ocuparam o vazio deixado
pelos portugueses, o que é incorreto: os interesses ingleses manifestavam-se através de Portugal e é a burguesia
brasileira que se substitui aos portugueses no papel de intermediário, donde este papel ambíguo, simultaneamente
nacional e colonialista (em termos internos), da nova classe dirigente. Segue-se a hipótese muito justa que levanta
Furtado, segundo a qual se a classe dirigente brasileira tivesse gozado de uma "plena liberdade de ação” a
orientação do desenvolvimento não teria sido fundamentalmente diferente. Mas Furtado coloca ainda o problema em
termos de "intensidade” do desenvolvimento: ora, o desenvolvimento era intensivo, o que é importante é a sua
orientação.
101
Francisco C. Weffort, Classes populaires et politique, tese de doutoramento, São Paulo, 1968, p. 21. Esta linha de estudos é a
que seguem atualmente, como já mencionamos, Fernando Henrique Cardoso e muitos outros sociólogos e economistas
latino-americanos.
independência, esta classe, para sobreviver, teve que opor-se às reformas sociais e impedir o
movimento de libertação nacional de se transformar em revolução".102
Compreendemos, pois, que no próprio momento em que uma série de atividades
introvertidas, nascidas como complemento da atividade mineira de Minas Gerais, recebia um golpe
mortal, a elite local, no seu conjunto, não deixava de mostrar a sua satisfação. Um comentário da
imprensa da época reflete bem este estado de espírito: "Deste modo, não intervindo os negociantes e
as barras de Lisboa e do Porto, chegavam as coisas de fora mais baratas e saíam as da terra mais
caras do que antigamente. Por outra parte, com a chegada de muitos navios mercantes, não podia
haver falta de artigos comerciais estranhos e aumentando-se com esperança do maior lucro a
agricultura do País, devia ser grande a abundância dos gêneros desta. Tudo assim logo sucedeu. Foi
mais o tabaco da Bahia, o café do Pará e do Rio de Janeiro, o arroz do Maranhão, o algodão deste e
da Bahia e a madeira e courama das capitanias marítimas".103
Explica-se, pois, pela orientação da classe dirigente brasileira —ela mesma determinada pela
herança colonial, em termos de estrutura econômica, que a criara — a facilidade com que a
Inglaterra pôde manter a orientação colonial do país sem outro elemento de poder que a instalação
de uma rede de comércio, de transportes e de crédito em alguns centros urbanos e, naturalmente, a
potência dos laços econômicos do capitalismo dominante expresso no mercado capitalista mundial.
O Brasil possuía, por certo, como o vimos, uma burguesia introvertida embrionária, ligada
na maior parte às atividades de aprovisionamento da agricultura de exportação. Além da agricultura
alimentar, tratava-se de uma pequena indústria dispersa e de uma rede comercial de importância
crescente. No entanto, presa entre a concorrência inglesa e a atração das atividades de serviços
ligadas ao comércio longínquo ou à nova administração, esta burguesia nascente foi carregada e
absorvida na dinâmica neocolonial.
Assim, a uma independência política correspondia uma integração mais direta na esfera das
necessidades do mercado capitalista mundial. A dependência mudava de forma, mas permanecia.
Veremos todo o seu peso ao analisarmos a estrutura do aparelho produtivo.
102
Stanley e Barbara Stein, op. cit., p. 145.
103
Roberto Simonsen, op. cit., p. 404.
(19) "Até a abertura dos portos, as deficiências do comércio português haviam operado como barreiras
protetoras de uma pequena indústria local" (Caio Prado Júnior, op. cit., p. 137).
104
"Até a abertura dos portos, as deficiências do comércio português haviam operado como barreiras protetoras de
uma pequena indústria local" (Caio Prado Júnior, op. cit., p. 137).
caixões para defuntos, conta um contemporâneo, vinham da Inglaterra, estofados e prontos para o
uso. E esta situação tenderá a agravar-se com os anos, graças ao aperfeiçoamento contínuo da
indústria européia, que levava a uma melhoria da qualidade e redução dos preços. O artesanato
brasileiro, que pela força das circunstâncias e o ambiente desfavorável tinha ficado no seu modesto
estatuto do passado, perde terreno cada vez mais".105
Até ai o mecanismo é clássico e segue o curso descrito por Marx e Engels algumas dezenas
de anos mais tarde: "Ao explorar o mercado mundial, a burguesia deu uma forma cosmopolita à
produção e ao consumo de todos os países... O antigo isolamento e a autarcia local e nacional abrem
lugar ao tráfego universal e à interdependência universal das nações... Em seguida ao rápido
aperfeiçoamento dos instrumentos de produção e graças ao melhoramento incessante das
comunicações, a burguesia precipita na civilização até as nações mais atrasadas. O baixo preço das
suas mercadorias é a artilharia pesada com a qual derruba todas as muralhas da China e obtém a
capitulação dos povos mais obstinadamente xenófobos. Força todas as nações, sob pena de correrem
à sue perda, a adotar o modo de produção burguês; força-as a importar o que se chama civilização.
Noutros termos: fez delas nações de burgueses''.106
No caso do Brasil, no entanto, o mecanismo de asfixia de uma indústria nascente por uma
indústria mais potente, por meio da concorrência, será prodigiosamente reforçado pela própria
herança colonial. Com efeito, na medida em que a economia brasileira foi constituída em função das
necessidades do capitalismo mundial e que o essencial da sua produção era exportado, o afluxo de
produtos manufaturados da metrópole era incomparavelmente maior, do ponto de vista do seu peso
relativo, do que no caso de economias colonizadas mas parcialmente autocentradas, como era o caso
de países em que a estrutura econômica preexistente à colonização era importante.
Não se trata, pois, somente da concorrência entre duas economias de maturidade diferente,
mas do fato que o modo de produção capitalista dependente no Brasil implicava que o ciclo de
reprodução do capital se fechava no exterior das zonas de produção. Em conseqüência, era do
interesse da classe dirigente local facilitar este comércio, já que a importação de produtos
manufaturados era a contrapartida inevitável da exportação necessária de produtos tropicais, nos
quais o Brasil se especializara durante três séculos. É evidente que qualquer limitação da importação
de produtos manufaturados teria repercussões negativas nas exportações e na produção local.
A conjugação das necessidades do capitalismo dominante, que buscava novos mercados, e
da herança colonial, que levava a classe dirigente brasileira, constituída pelos grandes capitalistas
agroexportadores, a realizar no exterior o essencial da produção, tendia, pois, a reforçar a divisão
internacional do trabalho e a perpetuar a herança colonial.
Longe de pô-la em questão, o capitalismo reproduz, pois, a herança através da própria classe
dirigente brasileira.
Este aspecto interno da perpetuação do modo de produção capitalista dependente, ligado ao
papel particular da nossa classe dirigente, que não rompeu a dependência mas se contentou em
retomar da oligarquia portuguesa o seu papel de intermediário — completando assim a extroversão
que já ditava o seu papel exportador —, tende a ser geralmente subestimado. Ao referir-se aos
privilégios assegurados aos ingleses pelo tratado de 1810, Gilberto Freyre queixa-se de que “à
sombra de tais privilégios a economia brasileira foi imperialmente dominada pela economia
britânica”.107 Este tipo de raciocínio, se bem que lisonjeiro para a classe dirigente brasileira, tende a
velar o caráter interno da contradição neocolonial e a substituir uma contradição de classes pela
contradição “externa” entre o país e a Inglaterra imperialista.
105
Caio Prado Jr., op. cit., pp. 137 e 138.
106
Karl Marx e Friedrich Engels, O Manifesto Comunista. Um marxista antes da hora declarava no Brasil: "Uma
nação deve temer a instalação de um escritório inglês no seu país bem mais que todas as peças de artilharia inglesa”
(em Ferreira Lima, História Político-Econômica e Industrial do Brasil, p. 139).
107
Giberto Freyre, Ingleses no Brasil. Rio de Janeiro, 1948, p. 177.
Ora, o essencial não está nos "privilégios" injustos obtidos pelos ingleses, mas na
solidariedade da classe dirigente brasileira que, sobre a base da herança colonial, assegura a
recondução do capitalismo dependente e interioriza, em conseqüência, a própria relação colonial.
O papel essencial da classe dirigente local encontra-se também insuficientemente sublinhado
em Gunder Frank, que tende a sobrestimar o papel da determinação externa: “A estrutura
monopolista metrópole-satélite do sistema capitalista não se transformou realmente —modificou-se
apenas na forma e no mecanismo. Durante a época mercantilista, o monopólio da metrópole foi
mantido pela força militar e o monopólio comercial; foi assim que a metrópole desenvolveu a sua
indústria, enquanto que os satélites subdesenvolviam a sua agricultura. Durante a época liberal, o
mesmo monopólio da metrópole (dispondo já de um potencial industrial reforçado) foi mantido e
estendido pelo livre-câmbio e a força militar”.108 É certo que o livre-câmbio teve um papel essencial
e que a força militar assegurou temporariamente à Inglaterra o controle dos mares: mas o fato de não
ter tido necessidade de empregar esta força militar no Brasil provém da estrutura particular da
economia brasileira e do caráter especifico da sua classe dirigente.109
Um dos elementos-chave desta ação conjugada da herança colonial e da dinâmica do
capitalismo liberal é a estrutura do mercado interno. Vimos que a orientação extrovertida da
economia, sob impulso do capitalismo dominante, havia freado durante a fase colonial o
desenvolvimento das atividades introvertidas e, por conseguinte, o da classe camponesa e das
atividades urbanas locais:; por outro lado, o fato de o essencial da produção ser realizado fora das
zonas de produção e a mão-de-obra não preencher, neste capitalismo dependente, papel significativo
na fase de circulação mas somente na fase de produção, havia permitido o desenvolvimento da
produção, enquanto mantinha o grosso dos trabalhadores numa incrível miséria. Enfim, vista a forma
particular do desenvolvimento econômico brasileiro, que sob o impulso do mercado exterior
desenvolvia regiões de monocultura que obedeciam todas com rigor aos estímulos da metrópole,
estas regiões encontravam-se perfeitamente integradas, mas não integradas entre si, o que levava a
uma dispersão do mercado que tornava difícil o aparecimento de um mercado nacional importante.110
Assim, a extroversão econômica freava o desenvolvimento do mercado interno, o que por sua
vez forçava os produtores a produzirem para a exportação. O binômio extroversão econômica—
108
Andre Gunder Frank, "Le développement capitaliste du sous-développement au Brésil”, in: Capitalisme et
sous-développement en Amérique Latine, Paris, Maspéro, 1972, p. 156.
(24) Aqui, ainda, a incompreensão do caráter simultaneamente interno e externo da dependência tende a obscurecer o
debate sobre as contradições de classe e de nações, mantendo a posição absurda da dualidade de contradições. Aparece
agora que, na medida em que a orientação dependente da economia nacional é assumida pela classe dirigente
brasileira, a contradição com o imperialismo manifesta-se, do ponto de vista do proletariado rural e industrial
brasileiro, através da contradição com esta classe.
(25) Esta intepração pelo exterior, que resulta da dominância da circulação extrovertida no capitalismo
dependente, foi naturalmente interpretada como desintegração sem mais pelos autores que não tomaram em
consideração o sistema capitalista como umtodo, do qual o Brasil é parte. Com efeito, tomando-se o Brasil como campo
de análise, a economia aparece como um arquipélago desconexo e a imagem do feudalismo apresenta-se facilmente ao
espírito. Ver Witold Kala, Teoria ekonomiczna ustroju feudalnego (Teoria Econômica do Sistema Feudal), Varsóvia,
PWN, 1962, em particular p. 42.
109
Aqui, ainda, a incompreensão do caráter simultaneamente interno e externo da dependência tende a obscurecer o
debate sobre as contradições de classe e de nações, mantendo a posição absurda da dualidade de contradições. Aparece
agora que, na medida em que a orientação dependente da economia nacional é assumida pela classe dirigente
brasileira, a contradição com o imperialismo manifesta-se, do ponto de vista do proletariado rural e industrial
brasileiro, através da contradição com esta classe.
110
Esta interpretação pelo exterior, que resulta da dominância da circulação extrovertida no capitalismo dependente,
foi naturalmente interpretada como desintegração sem mais pelos autores que não tomaram em consideração o sistema
capitalista como um todo, do qual o Brasil é parte. Com efeito, tomando-se o Brasil como campo de análise, a
economia aparece como um arquipélago desconexo e a imagem do feudalismo apresenta-se facilmente ao espírito. Ver
Witold Kula, Teoria ekonomiczna ustroju feudalnego (Teoria Econômica do Sistema Feudal), Varsóvia, PWN, 1962, em
particular p. 42.
concentração da renda constitui até os nossos dias o ponto de ruptura de todas as políticas
econômicas que querem romper o ciclo da dependência.111
“A economia colonial da América Latina”, escrevem Stanley e Barbara Stein, “tal como a do
sul dos Estados Unidos, tinha concentrado a renda, mantido em nível mínimo a renda per capita das
massas e impedido a formação de capital líquido; numa palavra, havia tornado impossível a
existência, no interior do país, de uma procura orientada para os produtos caros de uma indústria
nascente".112
Ora, no decorrer da fase neocolonial, a classe dirigente brasileira, ávida de reforçar os seus
lucros na nova situação de liberdade de comércio e de comprar os produtos europeus cujo uso a
corte havia difundido no país, não podia deixar de reforçar a exploração dos seus trabalhadores e de
frear o desenvolvimento do mercado interno. Celso Furtado pensa que “há indícios suficientemente
claros de que a renda real per capita baixou sensivelmente no decorrer da primeira metade do século
XIX".113
Heitor Ferreira Lima, ao abordar o problema da formação do mercado interno, fez um
paralelo interessante entre o Brasil e os Estados Unidos: “Enquanto a nossa população total andava à
volta de 4 milhões de habitantes em 1820, a dos Estados Unidos atingia o dobro, ou seja, 9,5
milhões... Se considerarmos a população negra, quase toda escrava, logo praticamente sem poder de
compra, vemos que ela representa 39,9 por cento no Brasil em 1822, e 22,5 por cento nos Estados
Unidos em 1820. Em 1850 a população negra do Brasil atingia 48,3 por cento, enquanto nos Estados
Unidos ela representava 19,6 por cento da população. Constatamos, pois, que esta parte da
população com capacidade de compra muito fraca não somente era bem maior no Brasil do que nos
Estados Unidos, mas que, no decorrer do período que examinamos, aumentou no Brasil, enquanto
nos Estados Unidos diminuía proporcionalmente; e a população de capacidade de compra mais
elevada, ou seja, a de maior presença no mercado, predominava”.114
Os efeitos simultâneos do estreitamento do mercado interno e da invasão dos produtos
manufaturados ingleses deixavam, pois, pouco lugar ao desenvolvimento de atividades introvertidas
e de uma burguesia nacional orientada para um desenvolvimento auto-sustentado.
Os resultados não se fizeram esperar. Os navios estrangeiros afluíram aos portos brasileiros
em grande número. O registro de navios que entram no porto do Rio de Janeiro traz as cifras
seguintes:
111
É em particular esta sólida imbricação da dependência, da extroversão da estrutura do aparelho produtivo e da
estrutura da renda, que retira qualquer eficácia às propostas de economistas como Hollis B. Cbennery, que gostariam
de ver fortalecido o mercado interno sem tocar na posição que o Brasil ocupa no sistema capitalista mundial.
112
Stanley e Barbara Stein, op. cit., p. 122.
113
(28) Ceko Furtado, op. cit., p. 136 No entanto, é necessário salientar que Furtado, ao raciocinar em termos de
renda per capita, enfoca apenas as variações globais do rendimento deixando na sombra o fenômeno essencial que
constitui a não-extensão da esfera de consumidores. Raciocinando deste modo, é levado a ver uma correlação positiva
entre o desenvolvimento do mercado interno e o desenvolvimento das exportações. Ver, em particular, pp. 136 e 137.
114
Heitor Ferreira Lima, op. cit., p. 213. Notemos, no entanto, que Ferreira Lima exagera ao considerar a população
negra como sendo "quase toda escrava ". Segundo dados de Caio Prado Júnior (op. cit., anexo II), obtemos uma
progressão da proporção de escravos de 28,5 % a 31,2% entre 1823 e 1850. Furtado, por sua parte estima que em
1850 o Brasil contava com uma população de 7 milhões de habitantes, dos quais 2 milbões de escravos (op. cit., p
137). O fenômeno essencial constatado parece, no entanto, ser razoavelmente estabelecido.
115
Heitor Ferreira ldma, op. cit., p. 206.
1805 810 _
1806 642 _
1807 779 _
1808 765 90
1810 422 422
1819 350 350
1820 354 354
“Nestas condições”, escreve Ferreira Lima, “a criação de manufaturas era restrita e lenta.
Pelo que sabemos, no decorrer das duas décadas de 1822 a 1841 apenas foram fundadas 14 fábricas
e somente duas sociedades anônimas brasileiras”. 116
O caso da siderurgia, cujo desenvolvimento havia sido favorecido pelo regente na véspera da
independência, é significativo: A Fábrica de Ferro do Morro Gaspar Soares funcionou até 1825 e as
suas instalações foram vendidas em leilão em 1830; a Real Fábrica de Ferro de São João de
Ipanema, dirigida por Varnhagen, teve dois altosfornos, exigiu investimentos importantes, mas
entrou em decadência a partir de 1821; Von Eschwege fez uma tentativa no Estado de Minas Gerais
e construiu uma fábrica que, significativamente, se chamou Fábrica Patriótica e produziu algumas
toneladas de ferro.
Quando se consideram os meios ainda relativamente precários de transporte da época, o fato
de se importar ferro da Inglaterra num país rico em minério de ferro dá uma medida do peso da
dependência. E considerando o caráter estratégico da produção de ferro para a emancipação
econômica — veja-se o papel da siderurgia semi-artesanal na independência e no desenvolvimento
econômicos do Japão — é fácil compreender o que a blocagem destas atividades representava para o futuro
do país.
“A produção brasileira reduzir-se-á cada vez mais aos poucos produtos da sua especialidade
destinados à exportação. Assim, o sistema econômico colonial ao qual nos referimos várias vezes
agrava-se, se bem que em função de outras circunstâncias. O Brasil, já confrontado com tantas
dificuldades para sair deste sistema deixado por três séculos de formação colonial, em função do
qual a sua vida se tinha organizado, assistia agora ao seu reforço: em vez das restrições do regime
colonial, operava agora a liberdade do comércio, no sentido de assegurar uma organização
econômica disposta unicamente à produção de alguns bens destinados à exportação”.117
116
Ibid., p. 136.
117
Caio Prado Júnior, op. cit., pp. 137 e 138.
118
Caio Prado Júnior, op. cit., p. 83.
Sob a pressão da procura inglesa, vemos também desenvolver-se rapidamente a produção do
algodão, que ocupa em alguns anos todo o interior do país, penetrando até Goiás. Fato típico para o
Brasil, esta produção entrará em crise com a mesma rapidez, sob o efeito da concorrência do
produto americano, e voltará a ser uma fonte de prosperidade quando a Guerra da Secessão,
temporariamente, exclui o algodão americano do mercado.119
Mas se os antigos produtos conhecem altos e baixos, que não chegam nem à reconversão
econômica em favor de outros produtos ligados ao mercado interno, nem ao desenvolvimento
efetivo das regiões produtoras, um novo produto se impõe desde os primeiros anos da
independência e dinamiza a atividade exportadora: o café.120
Implantado no Brasil a partir de 1727, o café será inicialmente cultivado no Norte e no Sul
do país, mas sem ser importante antes do novo ciclo agrícola que caracteriza o início da fase
neocolonial. A rapidez do seu desenvolvimento vê-se na progressão das exportações.121
1821-1830 3 187
1831-1840 10 430
1841-1850 18 367
1851-1860 27 339
1861-1870 29 103
1871-1880 32 509
1881-1890 51 631
Durante os anos trinta, a produção já se tinha suficientemente firmado para resistir a uma
redução temporária dos preços no mercado mundial.122 A força da procura dos Estados Unidos, que
em 1850 já importavam mais de 50 por cento do café brasileiro, iria estabilizar a produção e
assegurar o seu desenvolvimento.
Do ponto de vista geográfico, enquanto respondia às necessidades do mercado interno, o café
foi uma cultura dispersa e pouco intensiva. Ao tornar-se um produto importante no mercado
mundial, o café foi cultivado de maneira muito intensiva e regionalmente concentrada. Inicialmente
tratava-se do vale do Paraíba, próximo do Rio de Janeiro, que possuía terras virgens favoráveis à
cultura do café. Rio de Janeiro, simultaneamente porto e centro financeiro e comercial, assegurava
os serviços necessários a esta monocultura de exportação. Nos anos 1860, com as terras do vale do
Paraíba em grande parte esgotadas por uma cultura irracional, o café emigra para o oeste, para São
Paulo, onde atingirá o seu apogeu.
Esta concentração regional não é fortuita. Por um lado, teve influência a proximidade dos
portos, visto tratar-se de produto de exportação: Rio de Janeiro e, depois, Santos estavam
respectivamente próximos do vale do Paraíba e das regiões produtoras de São Paulo. Por outro lado,
é no Sul que o declínio das atividades mineiras havia deixado disponíveis empreendedores e
119
Celso Furtado, Formação Econômica do Brasil, p. 141; Caio Prado Júnior, op. cit., p. 84.
120
A obra básica relativamente a essa cultura.é a de Affonso de E. Taunay, História do Café do Brasil — excelente no
plano da documentação, mas fraca no plano explicativo.
121
Caio Prado Júnior, op. cit., p. 164.
122
Celso Furtado, op. cit., p. 143: "A quantidade exportada foi multiplicada por cinco entre 1821-30 e 1841-50, apesar
de os preços médios terem caído cerca de 40 por cento durante este período”.
capitais: “Os produtores brasileiros encontravam no café uma oportunidade de utilizar recursos
produtivos parcialmente disponíveis desde a decadência da mineração”.123
É certo que o clima e a terra, condições naturais, jogaram também um papel importante; no
entanto, esta especialização regional estava ligada em grande parte ao caráter exportador desta
cultura, que exigia não somente a proximidade dos portos de embarque, como também uma
infra-estrutura de serviços comerciais, financeiros e de transporte.124
O desenvolvimento da cultura do café reforça o deslocamento do centro da economia para o
Centro-Sul, Rio de Janeiro e depois, sobretudo, São Paulo, onde a acumulação ligada ao café está na
base do desenvolvimento industrial ulterior.125 Paralelamente, o Norte e o Nordeste, que produzem
bens menos cotados ou mais instáveis no mercado internacional, entram gradualmente em
decadência.126
As relações de propriedade ainda são muito próximas das que observamos no Nordeste três
séculos antes.127 A formação de grandes propriedades de monocultura de exportação, a "plantação",
responde às técnicas da produção do café, que exige muita mão-de-obra e uma imobilização
importante de fundos, já que a planta se torna produtiva apenas depois de quatro ou cinco anos. “O
café, sendo uma planta de produção retardada, exige pare a sua cultura um investimento maior de
capital. Esta cultura é, pois, menos acessível ao pequeno proprietário e ao produtor médio”.128
Este fato não basta, no entanto, para justificar a estrutura fundiária extremamente
concentrada que resultou da plantação do café; com efeito, a sua cultura tinha-se disseminado
através do país no decorrer do século XVIII, em particular no Estado do Pará, sem dar lugar ao
mesmo fenômeno. Na realidade, a sucessão de produtos coloniais em que se tinham especializado as
diferentes regiões do Brasil havia dado lugar a uma classe de empresários que, vista a exigüidade do
mercado interno herdado da estrutura extrovertida da economia, podiam produzir em escala
industrial apenas para o mercado mundial. Logo que esta produção começou a ser desenvolvida por
123
Celso Furtado, op. cit., p. 143.
124
Esta especialização regional mantinha, evidentemente, a desintegração da economia no plano interno. Já vimos que
esta desintegração, ligada à integração no plano mundial, sem a qual a reprodução do capital se veria obstruída,
atomizava o mercado interno. Vemos agora que esta justaposição de regiões especializadas, entre as quais a
propagação de fluxos econômicos se via freada pelo caráter extrovertido da economia, levava a uma fraca capacidade
de desenvolvimento inter-regional induzido. Assim, o Nordeste estagnava na espera de uma nova alta de preços do
açúcar e do algodão no mercado mundial, sem participar da nova prosperidade do Centro-Sul.
125
(40) André Gunder Frank, ao tomar o exemplo de São Paulo para mostrar as possibilidades de industrialização de
uma região menos tocada pelas atividades exportadoras, dá um mau exemplo para um raciocínio justo no conjunto.
São Paulo deve a sua prosperidade inicial e a infra- estrutura que atraiu a indústria ao açúcar e ao café. Ver a este
respeito A. G. Frank Capitalisme et sous-développement en Amérique Latine, p. 54: “d`après les hypothèses de mon
modèle...”.
126
Não abordaremos aqui o fenômeno já amplamente estudado dos efeitos negativos das flutuações da economia
regional em função das oscilações do mercado mundial, fenômeno que, bem melhor do que as “estruturas arcaicas” —
mas por que permanecem arcaicas? — explica a reticência dos grandes proprietários e empresários para se lançarem
em grandes investimentos regionais de infra-estrutura. Com efeito, a extensão das áreas de cultivo — donde a
manutenção de grandes áreas não-cultivadas — ou a sua redução segundo aflutuações do mercado não constituem
imobilizações significativas de capital e perdas por não utilização de capacidade produtiva. Um mecanismo análogo
será encontrado conforme veremos, para o investimento em mão-de-obra. É evidente, em todo o caso, que a
produtividade destas regiões continuará reduzida.
127
Num estudo de fundo sobre esta região da primeira fase do café, o vale do Paraíba, Stein cita os seguintes dados
relativos a um município representativo, o de Vassouras: "Um cadastro incompleto de Vassouras sugere a que ponto a
concentração da propriedade havia progredido pelos fins dos anos 1880. Com efeito, 20 por cento dos proprietários
nas duas paróquias possuíam cerca de 70 por cento da superfície destas paróquias, ou seja, toda a propriedade de
dimensão de “fazenda”. Em outros termos, 41 proprietários — bancos ou indivíduos —controlavam 4 715 alqueires,
num total registrado de 6631 alqueires” (Stanley Stein, Vassouras: a Brazilian Coffee County — 1850-1890, Harvard
U.P., 1957, p. 225). (Um alqueire eqüivale a 4,84 hectares no Rio de Janeiro.)
128
Caio Prado Júnior, op. cit., p. 170. Por outro lado, Celso Furtado lembra que esta cultura exige menos capital que o
açúcar: "A empresa do café permite a utilização intensiva de mão-de-obra escrava e assemelha-se nisto à do açúcar.
No entanto, apresentava um nível de capitalização bem mais baixo que esta última, já que se baseava mais amplamente
na utilização do fator terra” (Celso Furtado, op. cit., p. 143). Este fato será compensado pela escala de produção
sensivelmente mais elevada no caso do café, que exige ainda uma infra-estrutura de transporte mais desenvolvida.
empresas agromercantis, é natural que a produção camponesa ou “artesanal” do café tivesse
estagnado.
Assim, enquanto no caso do açúcar vimos que a estrutura fundiária era essencialmente
determinada pelas relações técnicas de produção, vemos aqui o efeito de indução negativo da
herança colonial sobre a dinâmica nova criada pelo mercado capitalista mundial.129
É, pois, compreensível que o café tivesse dado lugar a uma classe de grandes proprietários.
Prolongando o movimento que levou plantadores do Nordeste a deslocar-se com os seus escravos
para Minas Gerais durante o ciclo da mineração, assistimos agora a um deslocamento dos grandes
produtores da região minerais, em crise, para o Centro-Sul do café. “Os empresários que fundaram a
classe dos 'fazendeiros’ ”, escreve Orlando Valverde, “saíram na maioria do interior em direção ao
mar, já que eram, na sua vasta maioria, da região de Minas Gerais, cuja atividade mineira se tinha
totalmente desorganizado durante a última década do século XVIII”.130
Esta terceira geração da oligarquia exportadora, depois das do açúcar e das minas, sem diferir
substancialmente quanto ao objetivo da produção — o lucro pela produção para o mercado externo
—, apresenta, no entanto, um caráter distintivo fundamental: na medida em que as atividades
ligadas à comercialização já não se faziam, como durante a fase colonial, em Portugal mas no
próprio Brasil, a ruptura entre a fase comercial e a fase produtiva, que se constatava, em particular
no Nordeste, deixava de existir nas mesmas proporções. Não há dúvida que as casas exportadoras
inglesas tiveram um papel muito importante, mas desde o início e cada vez mais os grandes
produtores do café souberam fazer jogar em seu favor a interiorização da ordem colonial, captando
também uma boa parte dos frutos da fase de comercialização que outrora enriquecia a aristocracia
portuguesa.
É, pois, esta passagem ao neocolonialismo, com a retomada pela burguesia local do papel de
intermediário outrora jogado por Portugal, que explica a amplitude de atividades que constata Celso
Furtado: “A economia do café formou-se em condições distintas (da do açúcar). Desde o início, a
sua vanguarda era formada por homens que tinham uma experiência comercial. Durante toda a etapa
de gestação, os interesses da produção e do comércio estavam ligados. A nova classe dirigente
tinha-se formado numa luta que se estende numa vasta frente: aquisição de terras, recrutamento de
mão-de-obra, organização e direção da produção, transporte interno, comercialização nos portos,
contatos oficiais, interferências na política financeira e econômica”.131
Esta nova oligarquia não tinha razões para entrar em choques profundos com os outros
setores exportadores dos quais provinha, setores interessados como ela no desenvolvimento da
129
A estrutura fundiária respondia também, é útil recordá-lo, à necessidade de fixar mão-de-obra na propriedade,
tendo neste plano efeitos complementares relativamente ao controle extra-econômico sobre a mão-de-obra. Alberto
Passos Guimarães tem razão ao lembrar aqui a doutrina Wakefield, segundo a qual era necessário manter elevados os
preços da terra, a fim de impedir que os camponeses se fixassem em terra própria, o que privaria os latifundiários de
uma mão-de-obra indispensável (Alberto Passos Guimarães, Quatro Séculos de Latifúndio, São Paulo, Ed. Fulgor,
1964, em particular, p. 103).
130
Oriando Valverde, La fazenda de café esclavista em el Brasil, p. 10.
A produção de metais preciosos no Brasil evoluiu da maneira seguinte:
A produção do café tendo tomado importância a partir dos anos 1820, a retomada da dinâmica de um ciclo
pelo outro parece razoável. Cifras de Fredéric Mauro, Histoire du Brésil Paris, P. U.F., 1973, p. 37.
131
Celso Furtado, op. cit., p. 145.
orientação extrovertida, e uma descentralizacão parcial do poder permitirá manter a unidade
nacional da burguesia dependente.
No entanto, vemos aparecer os fundamentos da orientação do setor de Estado, instrumento
da burguesia dependente na sua luta para manter, dentro de um quadro geral definido pela orientação
neocolonial, o máximo de lucros dentro do país.132
O Brasi1 neocolonial dotava-se, pois, de uma classe dirigente nacional e de um Estado
encarregado de defender os interesses desta classe e da nova divisão internaciona1 capitalista do
trabalho, à qual esta classe deve a sua existência. Detendo o poder exclusivo até 1930, esta classe
ver-se-á limitada por um único fator: o fato de a sua reprodução e subsistência se deverem à sua
submissão à dinâmica do capitalismo dominante, às relações mundiais de produtos.
A grande monocultura de exportarão do café, organizada por capitalistas, sob a impulsão de
necessidades do capitalismo dominante que se refletem na estrutura de preços no mercado mundial,
orientada por filiais de casas de comércio e de crédito inglesas insta1adas no Brasi1, adotava no
segundo quarto do século XIX relações de produção escravistas.
Vimos mais acima as cifras citadas por Heitor Ferreira Lima: a proporção de negros no
Brasil era de 39,3 por cento em 1822 e de 48,3 por cento em 1850. Segundo Caio Prado Júnior,
havia no Brasil cerca de um milhão de escravos em 1800, cerca de l milhão e l5O mil em 1823 e
cerca de 2 milhões e 5OO mil em 185O, data em que, sob pressão inglesa, o tráfego de escravos, foi
proibido.133 Segundo Celso Furtado, a importação de escravos no decorrer dos primeiros cinqüenta
anos do século XIX teria “provavelmente ultrapassado meio milhão”.134
Parece, pois, bastante bem estabelecido que, com a produção do café, o sistema escravista,
que se encontrava, se não posto em questão, em todo o caso abalado com a crise das atividades
exportadoras do fim do século XVIII e do inicio do século XIX,135 retoma vigor.
Poder-se-ia supor que os empresários do café, oriundos em boa parte das antigas zonas
produtoras, levavam consigo a “tradição” da escravatura. Não parece ser este o elemento principal:
estes mesmos homens, um século antes, não puderam impedir o sistema de escravidão de se
degradar durante a fase mineira, que implicou uma série de atividades introvertidas.
Parece mais justo sublinhar simplesmente o aspecto de racionalidade econômica da
escravidão no quadro da plantação de café: subsistindo a falta de mão-de-obra, apenas a posse da
mão-de-obra podia assegurar a sua permanência nas grandes propriedades, sobretudo considerando
que o café exigia uma mão-de-obra muito importante e que o proprietário não podia dispor, nas
novas regiões do café, de um exército de reserva importante. Por outro lado, as zonas de produção
do café visam essencialmente a exportação e os produtores viam-se pouco interessados na formação
de um mercado interno. Em todo o caso, o processo de reprodução capitalista poderia continuar sem
entraves do lado da realização do produto, que se daria fora das zonas de produção.
Por sua vez, o desenvolvimento de relações de produção escravistas reforçava a
concentração da propriedade fundiária: “Os pequenos plantadores, por sua vez, não se tinham
132
Isto explica em grande parte este caráter simultaneamente nacional e antinacional do Estado brasileiro:
instrumento de poder de uma classe burguesa dependente numa formação social caracterizada pelo modo de produção
capitalista dependente, este Estado lutará sempre para assegurar a maior parte possível de lucros a esta burguesia e
opor-se-á freqüentemente ao capitalismo dominante. No entanto, sendo a sua razão de ser como a da burguesia
dependente, a existência do sistema global capitalismo dependente — capitalismo dominante, o Estado nunca chegará
a pôr em questão, até hoje, o próprio sistema, nem a propor um desenvolvimento autônomo e auto-sustentado.
Voltaremos mais adiante ao problema. Notemos, por enquanto, que a redução deste Estado à função de “instrumento”
ou de “agente interno” do imperialismo constitui uma simplificação que deixa de lado a amplitude da integração do
Brasil na economia capitalista mundial.
133
Caio Prado Júnior, op. cit., p. 351.
134
Ceko Furtado, op. cit. p. 147. Celso Furtado estima também o número de escravos existentes no início do século XIX
em pouco mais de um milhão. Não se podem então compreender as cifras que cita Heitor Ferreira Lima na página 237
da sua obra: "A quantidade de escravos existentes entre nós no início do século XIX era de 3 993 000, contra 1347 000
brancos”, cifra que ele baseia em Viotti da Costa, Da Senzala à Colônia, São Paulo, 1966, p 13.
135
Vimos mais acima esta formação de relações de produção “híbridas” nas atividades mineiras. É preciso
acrescentar que um número importante de escravos utilizou o ouro ganho para comprar a própria liberdade..
interessado pela agricultura de subsistência, porque a elevação do nível de preços de escravos os
impedia de comprar novos e forçava-os a vender os que tinham aos grandes plantadores e às
companhias de estradas. A absorção crescente da mão-de-obra escrava disponível pelas grandes
plantações levou ao desaparecimento gradual das pequenas plantações e fazendas (farms)”.136
A reprodução destas relações de produção reage por sua vez sobre a orientação da produção.
Notamos aqui uma diferença importante relativamente ao ciclo do açúcar: se é verdade que no caso
do açúcar os grandes plantadores não tinham que se preocupar com a realização do produto junto
dos próprios trabalhadores, e portanto do nível de rendimentos dos mesmos, foi diretamente que o
capitalismo dominante determinou a orientação da produção para a agricultura de exportação. Ao
contrário, no caso dos plantadores do café, vemos a imbricação e complementação de
determinações do mercado capitalista mundial e da herança colonial: com efeito, as opções da fase
colonial haviam tornado impossível, conforme vimos, a formação de um vasto mercado interno; em
conseqüência, os produtores que queriam ultrapassar a escala da pequena agricultura deviam
produzir para o mercado solvável existente, ou seja, para a exportação; produzindo para a
exportação; não tinham que se preocupar com a fraqueza do mercado interno e perpetuavam as
condições desumanas de exploração (e portanto a fraqueza das atividades econômicas locais
artesanais ou comerciais), mais tarde interpretadas como feudais ou pré-capitalistas, quando são o
fruto do capitalismo sob a sua forma dependente.137
A situação da Inglaterra é bastante mais ambígua: a luta que ela trava contra o sistema
escravista no Brasil surpreende pela sua violência. As motivações humanitárias certamente tiveram
o seu papel. No entanto, não eram determinantes. Basta considerar o tratamento que os capitalistas
ingleses infligiam aos seus próprios trabalhadores e o fato de os escravos encontrados em navios
brasileiros serem entregues aos plantadores de colônias inglesas.138 Parece mais lógico supor que a
Inglaterra, dividida entre os interesses das filiais inglesas instaladas no Brasil, e que favoreciam a
produção para a exportação, na qual o país se tinha especializado — o que implicava o
desenvolvimento da escravidão —, e os interesses dos proprietários de manufaturas que queriam
aumentar o mercado brasileiro, tenha favorecido a segunda corrente. Mas se a escravidão foi
efetivamente abolida (o tráfego em 1850 e a escravidão em 1888), a lógica do modo de produção
adotado no Brasil levará os grandes proprietários a contornar esta medida e a desviá-la dos efeitos
buscados: conforme veremos, uma vez abolida a escravidão, os empresários agrícolas adotarão
outras medidas para manter o controle extra-econômico sobre a mão-de-obra e a superexploração.
O desenvolvimento das forças produtivas ao nível mundial não deixava de influenciar o
sistema escravista brasileiro, que ganhou mais racionalidade: Valverde note o caso do comendador
Joaquim José de Sonza Breves, que possuía cerca de vinte fazendas e 6 000 escravos e que “tratava
os escravos como se tratam cavalos. Aplicava-lhes princípios de zootecnia. Havia uns pretos bem
forçudos, com bons dentes, cuja função era de reprodutores. Eram levados de fazenda em fazenda
do comendador pare multiplicar o número de cativos”.139
136
Stanley Stein, Vassouras: a Brazilian Coffee County, p. 48. É importante ter presente no espírito esta relação
estreita entre as relações de propriedade e as relações de exploração, e destas com a orientação extrovertida da
economia..
137
Ver acima relativamente à separação entre a função de produção e de realização exercida pela força de trabalho
no ciclo de reprodução do capital; lembremos que no quadro das nossas hipóteses a contradição entre o nível das
forças produtivas, que se desenvolvem rapidamente, e as relações de produção, que progridem no sentido do
escravismo, resolve-se no modo de produção capitalista dependente pela realização fora das esferas produtivas (e não
necessariamente fora do país, conforme veremos)
138
Sir Alan Pin, Colonial Agricultural Production, Oxford, 1946, citado por Celso Furtado, op. cit., p. 155.
(54) Orlando Valverde, op.cit., p. 24.
139
Orlando Valverde, op.cit., p. 24.
Constata-se, pois, em pleno século XIX, sob a impulsão do mercado capitalista mundial e a
supervisão da estrutura neocolonial inglesa no Brasil, uma retomada vigorosa das relações de
produção escravistas. A herança colonial, longe de ser abandonada, é reproduzida e modernizada.140
Mas esta herança reproduz-se por intermédio de estruturas de poder internas: os grandes
plantadores tornam-se rapidamente bastante poderosos para assegurar um poder hegemônico dentro
do país, poder que será mantido até 1930. É, pois, segundo os interesses desta classe, que deve a sua
existência à identificação com os interesses do capitalismo dominante, que será orientado o
conjunto da economia.
Modernização da Dependência:
Segunda Fase do Café
140
“O sistema tradicional de uma economia totalmente virada para a produção intensiva de alguns produtos de
exportação reforçou-se... a grande propriedade agrícola de monocultura trabalhada por escravos, que vinha da época
colonial e havia sido momentaneamente abalada, perpetuava-se” (Heitor Ferreira Lima, op. cit., p. 233).
141
Ver mais atrás, p. 41, acerca da reprodução das relações de produção e o deslocamento das bases técnicas da
dependência.
142
Heitor Ferreira Lima, op. cit., p. 201. Lembremos ainda que a precisão aparente das cifras não deve levar o leitor a
considerá-las sólidas: o total da produção relatado por Ferreira Lima para a década de 1821-1830 é inferior às cifras
dadas por Caio Prado Júnior relativas à exportação somente. Esta utilização de cifras precisas para uma realidade
bastante mal determinada nos seus contornos é característica comum do Brasil e de outras economias pobres.
Retomamos estas cifras tais como são apresentadas, lembrando apenas que se trata de meros índices que sugerem a
orientação geral dos fenômenos estudados. Ver também os dados citados na p. 103.
1821-1825 487 594
1826-1830 1 618 202
1831-1835 3 304 312
1836-1840 4 623 345
passava a exigir mais do que uma simples extensão da terra ocupada e da mão-de-obra escrava,
sobretudo porque o preço desta ú1tima se tornava muito elevado. A intensificação da exploração da
economia dependente exigia uma modernização de certas estruturas de produção. Assim, a
modernização de certas estruturas de produção no Brasil é estimulada na sua origem não em reação
contra a oligarquia “pré capitalista” e a ordem colonial, mas de acordo com esta e visando a
racionalização da ordem existente.
A impulsão modernizadora da dominação inglesa começa nos anos 1850. Em setembro de
1850 a lei Eusébio de Queiroz proíbe o tráfego de escravos, dando assim satisfação à Inglaterra, que
havia exercido pressões muito fortes neste sentido. A importação de escravos no Brasil caiu
vertiginosamente:
Anos Escravos
1845 19 463
1846 50 324
1847 . 56 172
1848 60 000
1849 54 000
1850 23 000
1851 3 287
1852 700
143
Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil, Rio de Janeiro, ed. José Olympio, 1956, p. 92.
144
O primeiro Banco do Brasil for fundado no início do século, mas entrou em decadência e foi fechado. Conta-se que
D. João VI contribuiu para esta decadência, levando o essencial do conteúdo deste Banco ao voltar a Portugal em
1820. Mais importante para nós é constatar que a iniciativa fora tomada, mas não encontrara as condições necessárias
na época, cabendo-lhe a mesma sorte que a dos esforços iniciais de implantação de uma indústria siderúrgica.
145
Sérgio Buarque de Holanda, op. cit., pp. 88-89.
“Mesmo depois da inauguração do regime republicano, em 1889, jamais talvez fomos
tomados, em período tão curto, por uma febre tão intensa de reformas como a que se registrou
precisamente no meio do século passado e particularmente durante os anos de 1851 a l855”.146
Apesar da corrente modernizadora ser essencialmente orientada de modo a facilitar a
produção e o escoamento do produto mais rentável na época — o café —, atinge também outras
regiões, segundo as flutuações do mercado internacional. “Em 1875”, relata Celso Furtado, “o
parlamento aprovou uma lei autorizando o governo imperial a garantir os interesses dos capitais
estrangeiros investidos na indústria do açúcar até um montante de 3 milhões de libras. Nos dez anos
que seguiram, cinqüenta usinas de açúcar foram instaladas, com equipamento moderno, financiadas
quase sempre por capitais ingleses sob a proteção desta lei”.147 A concentração dos amigos
“engenhos” e a formação de grandes “usinas” de açúcar —que aliás continuam a concentrar-se e
racionalizar-se atualmente, num prolongamento do mesmo movimento — aumentou,
evidentemente, a produtividade das grandes plantações.
Assistimos, pois, a uma diversificação importante do sistema produtivo, que levou ao abalo
das relações de produção escravista. Mas esta dupla transformação deve ser delimitada quanto aos
seus efeitos e alcance.
No que toca à orientação da infra-estrutura moderna instalada nesta época, era ditada pelas
necessidades de racionalizar a extroversão econômica: as ferrovias, em particular a São Paulo
Railway, que liga as zonas do café no planalto ao porto de Santos, os portos, as casas de exportação,
as instituições de crédito, as comunicações telegráficas, tudo é feito para ligar a metrópole aos
centros produtores do principal produto de exportação da época, o café. Explica-se assim o caráter
extremamente concentrado do ponto de vista regional da infraestrutura econômica, que cobre quase
exclusivamente o eixo Rio—São Paulo.
Do ponto de vista da economia brasileira parece tratar-se antes de tudo de uma racionalização
da dependência. Richard Graham confirma esta orientação, que ele acha positive, ao considerar que
o caráter particular da modernização da economia brasileira é de obedecer ao que ele chama
“estruturas involuntariamente neocoloniais” (unwittingly neo-colonial structures): “Uma apreciação
ponderada do papel britânico deve incluir o reconhecimento da parte importante que teve na
promoção da mudança. A economia exportadora do café deu uma nova vida ao Brasil e as ferrovias
tornaram o boom do café possível. Os britânicos deram o impulso inicial à construção das ferrovias,
forneceram em seguida os indispensáveis técnicos, os empréstimos, o investimento, o capital, o
know-how, o material-equipamento. Esta foi a sua principal contribuição ao arranque da
modernização do Brasil. A economia de exportação foi também ajudada por outros fatores já
citados: casas de exportação, companhias marítimas, companhias de seguros, trabalhos portuários e
os estabelecimentos bancários, aos quais é necessário acrescentar os importadores e distribuidores
de maquinaria agrícola”.148
O esforço de modernização é, pois, explicitamente, um esforço de modernização da
economia exportadora. É ligado à “economia exportadora do café”, à qual “deu uma nova vida”.
Ora, esta nova vida durava na realidade já havia mais de três séculos no Brasil, somente as técnicas e
os produtos variando ligeiramente, segundo os ciclos sucessivos da economia. A contribuição
modernizadora constitui apenas uma contribuição tecnológica, que atualiza a deformação
fundamental da economia brasileira: a sua extroversão.149
146
Ibid., p. 88.
147
Celso Furtado, op. cit.
148
Richard Graham, op. cit., p. 323.
149
É significativo que não encontramos nesta enumeração de Graham uma só palavra sobre a estrutura
sócio-econômica e que a análise se concentra nas técnicas. Ora, já nesta época aparece com clareza cada vez maior o
fato de que não se trata de dotar estruturas existentes de meios técnicos mais aperfeiçoados, mas de transformar as
próprias estruturas. Toda a contradição ligada à penetração da tecnologia moderna resulta deste fato. Os
melhoramentos tecnológicos, em si positivos, reforçam estruturas dependentes e exercem, em conseqüência,
simultaneamente um papel de estímulo e de distorção maior da economia no seu conjunto.
Modernização da Dependência
e Relações de Produção
150
No Sul, “as propriedades foram largamente distribuídas: queria-se consolidar a propriedade portuguesa, que até
então se via garantida somente pelas armas. Os abusos não tardaram e, apesar da limitação legal das concessões (3
léguas, ou seja, 108 quilômetros quadrados por concessionário), propriedades monstruosas se formaram" (Caio Prado
Júnior, op. cit., p. 98). Algumas destas propriedades ultrapassavam 100 léguas, ou seja, 3 600 quilômetros quadrados.
151
Octávio lanni, Industrialização e Desenvolvimento Social no Brasil, ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1963,
p. 97
152
Sérgio Buarque de Holanda, op. cit., p. 89.
153
Caio Prado Júnior, op. cit., p. 179.
abolicionista fez mais barulho nos centros urbanos do Sul, que dispunham de jornais e de uma
inteligência liberal em maior escala. Mas o que nos interessa aqui é ver como se apresentava nas
zonas de produção a relação entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de
produção existentes, e neste sentido é necessário constatar que as empresas agromercantis do Sul
iam no sentido da escravidão, enquanto que os latifúndios do Nordeste transformavam
espontaneamente as relações de exploração existentes (mas num sentido particular, conforme
veremos).
Em segundo lugar, a indústria da época não constituía um setor de peso suficiente em termos
políticos para exigir e obter a abolição, se a classe dirigente agroexportadora considerasse que a
medida era contrária aos seus interesses. E é necessário perguntar-se a que ponto a abolição teria
mudado a situação desta indústria, já que o número de trabalhadores que esta empregava era
mínimo. Basta lembrar que a indústria têxtil, que absorvia o grosso da mão-de-obra industrial,
contava 424 operários em 1853, 785 em 1866, 3 600 em 1882 e 3 172 em 1885, véspera da
abolição.154
Enfim, considerando as necessidades elementares de qualificação técnica, é compreensível
que as empresas industriais nascentes — e com maior razão as atividades administrativas em
desenvolvimento —concentrassem os seus interesses na mão-de-obra européia imigrada e não no
trabalhador escravo. Antônio Francisco Bandeira Júnior, visitando em 1901 as fábricas de São
Paulo, o que lhe permitiu fazer um relatório exato, nota que os operários eram quase todos
imigrantes brancos. Em São Paulo havia então uns 50 000 operários, dos quais cerca de 10 por cento
eram de origem brasileira. Os outros eram quase todos italianos. Os amigos escravos não haviam
sido absorvidos pela indústria nascente. Marcin Kula, que relata estes dados, constata: "Tender-se-ia
a pensar que a força de trabalho dos negros seria a primeira a ser incorporada na indústria nascente.
As coisas passaram-se de outra maneira. Uma massa de negros liberados, abandonando as
plantações, procurou as cidades, onde a concorrência de imigrantes os levou a aumentar as fileiras
do lumpemproletariado".155
Parece, pois, mais justo procurar o elemento determinante do abandono progressivo das
relações de exploração escravistas na evolução do próprio sistema agroexportador.
O fator essencial que determinou a adoção da escravidão — a falta de mão-de-obra —
encontra-se nesta época em grande parte ultrapassado. Já no fim da fase colonial, Caio Prado
refere-se ao fenômeno de excesso de mão-de-obra nas gigantescas propriedades de criação de gado
do extremo sul do país: "Cada légua (36 quilômetros quadrados) pode suportar 1500 a 2000 cabeças
de gado, densidade bem superior à que encontramos no Norte ou em Minas, o que demonstra a
qualidade superior dos pastos. O pessoal compõe-se do capataz e de peões, raramente de escravos;
em geral índios ou mulatos assalariados, que constituem o fundo da população do campo. Seis
pessoas ao todo, em média, para cada lote de 4 a 5 000 cabeças. Não há realmente trabalho
permanente para um pessoal mais numeroso; e nos momentos de necessidade acorrem os peões
extraordinários que se recrutam na numerosa população volante que circula pelo interior, oferecendo
os seus serviços em todo lugar, sempre em movimento e jamais fixada".156
Mas é um fenômeno ainda muito marginal, ligado à fraca capacidade de absorção de
mão-de-obra característica da criação extensiva. Depois dos anos 1850, Caio Prado constata o
fenômeno nos grandes centros urbanos: "A questão da mão-de-obra nestes centros maiores onde se
localiza a indústria será resolvida facilmente e a baixo preço. O que será aliás o fator máximo da sua
prosperidade. Aí, a população marginal, sem ocupação fixa e meio regular de vida, era
154
Stanley Siein, The Brazilian Cotton Manufacture, Harvard U.P., 1957, p. 191.
155
Marcin Kula, Formação da Classe Operária no Brasil, Varsóvia, 1967. Vemos aqui aparecer, na sua fase
embrionária, um fenômeno importante: como a industrialização e a crise da escravidão obedecem a dinâmicas
independentes — conseqüência da extroversão econômica e da desintegração entre as forças de transformação
internas — não há complementaridade entre os dois fenômenos. De certo modo, compreende-se melhor o erro
"finalista" de lanni (ver supra, p. 120), da proletarização antes da industrialização.
156
Caio Prado Júnior, op. cit., pp. 99-100.
numerosa, fruto de um sistema econômico dominado pela grande cultura trabalhada por escravos. A
população livre mas pobre não encontrava lugar neste sistema que se reduzia ao binômio
mestre-escravo. Quem não era escravo e não podia ser mestre, era um elemento desajustado que não
podia integrar-se normalmente no organismo econômico e social do país. Esta situação, que já vinha
dos tempos longínquos da colônia, resultava em contingentes relativamente grandes de indivíduos
mais ou menos desocupados, de vida incerta e aleatória, e que davam, nos casos extremos, estes
estados patológicos da vida social, a vagabundagem criminal e a prostituição".157
Celso Furtado dá outro índice deste excesso de mão-de-obra, ou pelo menos da redução da
sua falta: no decorrer da segunda metade do século XIX, quando os preços do cacau e depois da
borracha começaram a subir, pelo menos meio milhão de pessoas teria emigrado para as zonas do
Pará e da Amazônia: "Esta enorme transferência de população indica claramente que pelos fins do
século já existia no Brasil uma reserva substancial de mão-de-obra e leva a crer que, se não tivesse
sido possível resolver o problema da cultura do café por meio da imigração européia, uma solução
alternativa teria aparecido no próprio país. Aparentemente, a imigração européia para a região do
café deixou disponível o excedente de população nordestina para a expansão da produção da
borracha".158
Certo é que, sendo o café o elemento motor do desenvolvimento da economia brasileira, a
falta de mão-de-obra ressentida nesta cultura no Rio de Janeiro e São Paulo foi abusivamente
generalizada ao Brasil na sua totalidade. Ora, se constatamos sem surpresa que numa nova região
em rápida expansão há falta de mão-de-obra, compreendemos também que regiões menos
favorecidas pelos preços mundiais, e em estagnação parcial, sintam o peso de um excesso de
mão-de-obra.
A distribuição regional dos escravos reflete esta distribuição, como se pode observar na
tabela da página seguinte:
Constatamos facilmente no quadro que o reforço do capitalismo modernizador, apoiado nos
investimentos e na infra-estrutura europeus, aumenta nitidamente a escravidão nas regiões do
Centro-Sul, em particular em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, enquanto no Nordeste se
reduzia rapidamente a mão-de-obra escrava empregada: a população escrava de Pernambuco passa
de 150 000 a 89 028. Notemos ainda o importante progresso da escravidão no Rio Grande do Sul,
tão citado como modelo de uma agricultura "moderna".
157
Caio Prado Júnior, op. cit., p. 203.
158
Celso Furtado, op. cit., p. 164.
POPULAÇÃO ESCRAVA POR ESTADO, 1823 E 1872159
Ora, a existência de um excesso de mão-de-obra nas zonas mais "tradicionais" permite ver
com maior clareza o abandono do sistema de escravidão. Com efeito, é aparente que nestas regiões
se torna mais econômico manter os trabalhadores livres — ou seja, obrigados a prover ao seu
próprio sustento — mas disponíveis, na medida em que permanecem ligados à empresa
agroexportadora por uma série de controles extra-econômicos que foram facilmente classificados
como feudais. A empresa libertava-se assim da necessidade de alimentar os escravos o ano todo e
dispunha de uma reserva de mão-de-obra agrícola na região para as fases de ponta do ano
agrícola.160
Compreende-se então a facilidade com que o Norte "primitivo" aderiu à campanha
abolicionista — ao mesmo tempo que freava a emigração dos ex-escravos para o sul — e as
posições escravistas que defendiam as modernas empresas do Centro-Sul.161
159
Stanley Stein, Vassouras: a Brazilian Coffee County, 1850-1900, Harvard University Press, 1957, p. 295, apêndice
estatístico.
160
O fato de a liquidação de parte das relações de produção escravistas não se fazer, como nos Estados Unidos, sob a
pressão de uma burguesia capitalista oposta à oligarquia rural, mas por razões internas do próprio setor exportador,
visando a um reajustamento de caráter racionalizador, explica em boa parte o aborto desta pseudolibertação, que se
traduzirá numa modificação das formas extra-econômicas de controle, mas não na sua eliminação.
161
Quando ficaram reduzidas a importar mão-de-obra européia, as plantações de café do Centro-Sul trataram os
imigrantes como escravos, fato geralmente interpretado como sobrevivência das "tradições" adquiridas pelos grandes
proprietários. (Ver, por exemplo, O. Ianni, Industrialização e Desenvolvimento Social no Brasil, Rio de Janeiro, 1965,
p. 136. ) Se a tradição teve certamente o seu peso, é também necessário constatar que estes latifundiários continuavam
estas “tradições” ou pelos menos esforçaram-se por mantê-las, porque eram perfeitamente fundadas do ponto de vista
econômico. O problema foi tão longe que teve lugar uma vasta campanha na Europa para travar a emigração dos
trabalhadores, literalmente escravizados nos cafezais. Sob pena de perderem a sua fonte de mão-de-obra, os
plantadores tiveram que adaptar-se ao trabalho assalariado.
No entanto, é necessário perguntar-se por que, num momento em que havia simultaneamente
um excesso de mão-de-obra no Norte e no Nordeste e uma falta de mão-de-obra no Centro-Sul, a
ponto de exigir a importação de mão-de-obra da Europa, não se procedeu, conforme o sugere Celso
Furtado, a uma transferência de mão-de-obra de uma região para outra. Várias forças, ligadas à
forma de constituição da economia, contribuíram para entravar este deslocamento: por um lado, a
estrutura econômica sob forma de arquipélago de unidades produtivas, com fraca articulação interna
— resultado da extroversão econômica —, reduzia os fluxos internos de mão-de-obra, que serão
bastante retardados; por outro lado, não se tratava de uma agricultura camponesa, mas de vastas
empresas agromercantis, e a emigração de mão-de-obra seria um fator negativo do ponto de vista
dos latifundiários. Com efeito, a agricultura camponesa, da mesma forma que a criação extensiva de
gado, cujas necessidades em mão-de-obra são diminutas e que tendem mesmo a expulsar a
população camponesa quando existe, aceitam evidentemente o êxodo rural que deixa terras livres. A
cultura semi-industrial exportadora, pelo contrário, caracteriza-se tanto pela necessidade de
mão-de-obra em grande número, como pelo caráter sazonal desta necessidade.
O interesse da agricultura de exportação é constituir um vasto exército rural de reserva capaz
de prover à sua própria subsistência, deixando, pois, de pesar sobre o orçamento do latifúndio
durante a maior parte do ano, mas disposto ou forçado a participar nos trabalhos do latifúndio nos
períodos de grande atividade. Compreendemos, pois, a generosidade dos empresários do Nordeste
que abandonam as relações escravistas de produção, substituindo-as por uma série de mecanismos
extra-econômicos ou semi-econômicos que Gilberto Freyre explicará pelo "patriarcalismo" natural
dos grandes plantadores, que simultaneamente pressionavam as autoridades locais (governos esta-
duais) para que proibissem a emigração da população local para outras zonas do país.162
Em terceiro lugar, é preciso citar a disposição dos próprios trabalhadores, que preferiam
freqüentemente a agricultura de subsistência ou a marginalização nas cidades, recusando-se a ir
trabalhar nas plantações do café, onde a exploração era sem dúvida mais racional mas nem por isto
mais atraente.
162
Mais do que distinguir entre capitalismo e feudalismo, parece necessário aqui distinguir agricultura camponesa e
economia agroexportadora: numa unidade camponesa a variedade da produção obedece à necessidade de ocupar o
camponês durante o ano todo com certa regularidade, sendo a mão-de-obra (família e eventualmente alguns
empregados) em geral estável. Pelo contrário, na monocultura de exportação, as variações em termos de utilização de
mão-de-obra são extremas, sendo necessário compreender que aqui o exército rural de reserva se distingue
nitidamente do exército industrial de reserva: não por pertencerem a modos de produção diferentes, mas por serem
diferentes as relações técnicas de produção. Não visamos também aqui subestimar a força das determinações
ideológicas e do peso da tradição: o mecanismo econômico descrito permite-nos compreender porque precisamente
estas “tradições” se reproduzem, já que as tradições, para se manterem como tais e não serem transformadas em
“passado”, devem responder a determinadas funções que as fazem sobreviver.
163
Voltaremos ao problema da imigração européia mais adiante.
camponeses, tornou com maior razão difícil a sua formação no quadro da intensificação da
dependência. Em vez de desembocar na proletarização que abriria o caminho do desenvolvimento
capitalista autocentrado, o aparecimento de um excesso de mão-de-obra levava à formação de uma
camada com caráter específico, marginalizada da economia de exportação e incapaz, diante da
dominância das atividades extrovertidas e o monopó1io das terras próximas dos centros comerciais,
de desenvolver uma atividade agrícola comercial para o tão reduzido mercado local, e que em
conseqüência buscava o isolamento na agricultura de auto-subsistência, ou então migrava para as
cidades, onde veio constituir o embrião da marginalização urbana.164
Por sua vez, esta forma de libertação contribui muito pouco para o desenvolvimento do
mercado interno, contrariamente ao que se passou na Europa. Se retomamos a primeira parte do
Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, de Lênin, constatamos a justeza da crítica feita aos
românticos: estes acreditavam que a proletarização do camponês, empobrecendo-o, reduziria o
mercado interno e, por conseguinte, bloquearia o desenvolvimento do capitalismo no país. Lênin
nota que o camponês fica mais pobre, sem dúvida, mas que o pouco de rendimento de que dispõe
entra doravante no circuito do mercado, constituindo uma expansão de fato do mercado
capitalista.165
Ora, vemos aqui que, na medida em que o camponês se vê parcialmente expulso das
estruturas de produção e se mantém junto das unidades de produção numa produção de
autoconsumo miserável, não se “proletariza” e continua a viver fora do fraco mercado capitalista
interno, sem contribuir pare desenvolvê-lo significativamente.166
A que ponto se trata de um fenômeno econômico e não de um “primitivismo” local qualquer,
constatamo-lo com a formação de co1ônias européias de pequenos agricultores do Sul, no fim do
século XIX. À primeira vista espanta ver colonos alemães utilizar as mesmas técnicas e estruturas
agrícolas que os marginalizados “brasileiros”. Celso Furtado dá uma excelente descrição deste
fenômeno: “No entanto, a vida econômica das colônias (de estrangeiros instalados no Sul) era
extremamente precária, pois não havia mercado para os excedentes de produção e, sendo o setor
monetário atrofiado, o sistema de divisão do trabalho sofria uma involução e a colônia regredia para
um sistema rudimentar de subsistência. Viajantes europeus que passavam por estas regiões
surpreendiam-se pela forma primitiva de vida destes colonos e atribuíam os seus males às leis
inadequadas do país ou a outras razões da mesma ordem”.167
É compreensível que esta deficiência do mercado interno tenha levado a interpretações
baseadas num modo de produção pré-capitalista. Ora, o que não havia era capitalismo introvertido
suficientemente desenvolvido, na medida em que o próprio caráter deste capitalismo dava um peso
dominante ao mercado externo. A integração profunda da economia brasileira no mercado
capitalista mundial implicava necessariamente uma desintegração econômica interna elevada. E um
dos efeitos desta desintegração era a fraqueza estrutural do mercado interno.
164
Considerando o mecanismo da sua formação, é difícil ligar esta camada às noções desenvolvidas por Marx, de
lumpemproletariado ou de superpopulação relativa (sendo evidentemente esta última a mais próxima). Noutro
trabalho utilizamos o conceito habitual, mas vago, que se encontra nos estudos latino-americanos: “marginalização
econômica” (Les mecanismes de la marginalisation au Brésil, Varsóvia, 1974). O mais importante aqui parece-nos ser
a compreensão de que o fenômeno da marginalização é o resultado de um processo relativamente recente do
desenvolvimento capitalista, e não um resquício pré-capitalista. Esta compreensão abre, a nosso ver, o caminho para a
"localização" correta desta camada dentro do processo revolucionário, como parte do proletariado rural. Ver Jamil,
“Quienes son las masas”, Trimestre ideológico, Caracas, 1971.
165
Lénin, O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia.
166
Na realidade é preciso, ligando a análise de classes à análise do modo de produção e do processo de reprodução
do capital, definir de forma um pouco mais precisa a forma particular da proletarização deste tipo no capitalismo
dependente: o trabalhador rural aqui proletariza-se na medida em que constitui o exército de reserva rural das
empresas agromercantis. Mas não se proletariza no sentido da sua função de participar ativamente na fase de
realização do ciclo de reprodução do capital; esta proletarização truncada explica o caráter simultaneamente
integrado e marginalizado desta parte da população.
167
Celso Furtado, op. cit., p. 156.
Assim, tanto o colono europeu no Sul do país, como o escravo libertado no Nordeste, na
falta de poder penetrar a esfera de produção em escala industrial ligada à exportação, reservada aos
empresários que dispunham de capitais importantes, e na falta de um mercado suficiente para
desenvolver com lucro a agricultura comercial para o mercado local, eram levados para uma
agricultura de auto-subsistência que não contribuía para romper a estrutura do sistema estabelecido.
Assim, a escravidão abolida não permitia resolver a dificuldade essencial que entravava o
aparecimento de uma dinâmica capitalista autocentrada.168 Mantendo um exército de reserva junto
das grandes explorações, tornava a orientação mais racional sem pô-la em questão.
No conjunto, constatamos que se a instalação de uma administração nacional, de redes de
crédito, de comunicações e de transportes permitiam elevar sensivelmente o nível das forças
produtivas no Brasil, o fato de esta modernização se fazer no sentido de um reforço da extroversão
econômica tende a reproduzir as relações de produção que impedem o desenvolvimento de
atividades introvertidas: a grande propriedade de monocultura de exportação é mantida, o
desenvolvimento da classe camponesa continua a ser entravado, a formação de um excedente de
mão-de-obra rural e a abolição da escravidão não desembocam numa proletarização no sentido
europeu. Neste quadro, o desenvolvimento capitalista não contribui para ampliar o mercado interno,
apesar do crescimento da economia se manter acelerado.A extroversão econômica não pode deixar,
nestas condições, de se ver reforçada.
Uma das verdades correntemente aceites é que a industrialização tende por sua própria
natureza a romper as estruturas da dependência. O raciocínio implícito é que a industrialização,
independentemente da sua orientação, coloca o país no caminho do desenvolvimento capitalista, e
em conseqüência na via dos países capitalistas hoje desenvolvidos. De uma certa forma deixam de
"estragar" e entram na "corrida".
168
“O trabalho escravo abolido, não houve, praticamente em lugar algum modificações realmente significativas na
forma de organização da produção e mesmo da distribuição da renda” (C. Furtado, op. cit., p. 175). No entanto, é
necessário notar que não seguimos o autor quando atribui a fraqueza do mercado interno a uma insuficiência da
expansão da economia de exportação: “A possibilidade de produzir para o mercado interno dependia da expansão da
economia de exportação” (p. 157). Este raciocínio tem limitações: primeiro, na medida em que uma expansão das
exportações cria um certo fluxo de riqueza interna, é fato que o fraco mercado interno vê-se conjunturalmente
reforçado; a prazo, no entanto, esta expansão implica a redução das atividades introvertidas, reduzindo o excedente
realizável no mercado interno, e leva a uma gradual deterioração estrutural do mercado interno em termos relativos.
Segundo, C. Furtado tinha provavelmente em mente o efeito positivo da exportação do algodão nos Estados Unidos,
onde esta atividade contribuiu efetivamente para financiar o desenvolvimento do conjunto do país e, indiretamente,
para reforçar o mercado interno. Mas nos Estados Unidos o setor capitalista introvertido (o Norte) tornou-se
dominante em termos nacionais e foi capaz de utilizar os ganhos da exportação do Sul para o desenvolvimento
autodinâmico nacional. No Brasil, onde a dinâmica dominante é extrovertida, os efeitos encontram -se invertidos.
encontra sem uma definição prévia do nível das duas indústrias, ou seja, da relação global que
resulta do aparecimento do novo ator.
É verdade que o Brasil se dotou pouco a pouco de uma proteção aduaneira freqüentemente
reforçada pela política de câmbio: depois do monopólio português que durou até 1808, tratado de
1810 instituiu uma taxa preferencial de 15 por cento para a Inglaterra e de 24 por cento para os
outros paises.169 Logo outros países em fase de industrialização adiantada obtêm o mesmo
tratamento preferencial. Em 1814, por decisão parlamentar, a taxa é dobrada e será fixada em 30 por
cento, apesar dos protestos ingleses. Em 1860 os direitos elevam-se a cerca de 50 por cento, o que
constitui uma barreira protetora séria.
No entanto, quando as primeiras indústrias têxteis são criadas, nos anos 1860, é pouco
provável que se tratasse de uma concorrência aos produtos das empresas inglesas. Os dados sobre a
evolução do perfil da produção inglesa tendem mais a indicar que a indústria brasileira, ao começar,
por meio de máquinas usadas compradas na Inglaterra, a produção de tecidos muito grosseiros
destinados a vestir os escravos, ou seja, produtos que eram importantes para a indústria européia
mais de meio século antes, tende a preencher o vazio deixado por uma indústria que avança e se
concentra cada vez mais em produtos que contêm um valor incorporado maior.
Com efeito, a industrialização do Brasil orienta-se para a produção de tecidos de muito baixa
qualidade: fato previsível, já que a produção é realizada por meio de máquinas usadas, capitais
fracos e mão-de-obra pouco qualificada. A Inglaterra concentra-se na mesma época no mercado
estreito, mas muito rico, que resulta da estrutura extremamente concentrada do rendimento: a
concorrência do produto brasileiro neste mercado era impensável. Quanto às exportações inglesas,
não ficam reduzidas, mas deslocam-se: a exportação de tecidos de baixa qualidade — e por
conseguinte de fraco valor incorporado — é substituída por máquinas e tecidos de luxo.
É dfflcil fundar este raciocínio em números conclusivos. Notemos, no entanto, esta evolução
das exportações da Grã-Bretanha para o Brasil, e que constitui um índice:170
169
Tarifas universais ad valorem.
170
Richard Graham, op. cit., p. 330.
Constatamos que, à medida que a Inglaterra se industrializa e o Brasil se moderniza, a parte
dos têxteis nas exportações inglesas para o Brasil decresce sensivelmente, enquanto a parte de bens
de capital toma uma importância preponderante. É provável que a partir de um certo período se
tenha tornado relativamente mais interessante para os capitalistas ingleses vender máquinas usadas
(ou novas) à burguesia brasileira e permitir-lhe que se concentrasse na produção de tecidos
grosseiros, ao mesmo tempo que se concentravam no mercado mais sofisticado que, considerando a
estrutura dos rendimentos no Brasil, era particularmente exigente.171
Assim, o Brasil lançava as suas primeiras e modestas empresas industriais com muitas
proclamações nacionalistas, mas partia na realidade com uma decalagem que o levava a ocupar os
terrenos à medida que iam sendo já abandonados pelo capitalismo dominante. Ao comprar
máquinas para satisfazer um mercado que já não interessava à Inglaterra senão de forma marginal, o
Brasil permitia ao capitalismo dominante manter a relação neocolonial em dia com o
desenvolvimento das suas forças produtivas e renovar as bases técnicas da dependência sem
questioná-la.172
Este fenômeno é significativo, mas ainda relativamente marginal durante o período inglês:
estudá-lo-emos mais de perto ao analisarmos o ciclo econômico ulterior.
O declínio da presença inglesa no Brasil, pelos fins do século XIX, resulta do seu
enfraquecimento relativamente aos Estados Unidos. As empresas estrangeiras instaladas no Brasil
entre 1861 e 1920 refletem esta tendência:173
171
Assim se explicaria que “uma grande parte do parque industrial de máquinas e de equipamento utilizado pelos
fabricantes brasileiros era produzido e financiado pelos ingleses ". Annibal Villanova e Wilson Suzigan, Política do
Governo e Crescimento da Economia Brasileira, 1889-1945, IPEA, Rio de Janeiro, 1973, p. 126. É interessante ainda
confrontar esta análise com o fato de que a indústria têxtil perde rapidamente a sua posição dentro da economia
inglesa, relativamente aos outros setores mais dinâmicos: o emprego na indústria têxtil representa 13 por cento do
emprego industrial total em 1841 e 10,7 por cento em 1861 (M. G. Mulhall, Dictionnary of Statistics, 4ª ed., Londres,
1898, pp. 420 e segs, in Paul Bairoch, Révolution industrielle et sous-développement, ed. Mouton, Paris, 1974, p. 268).
172
É, pois, necessário tomar com mais cuidado a análise dos aumentos do proteção aduaneira. Werner Baer acredita
poder limitar o “privilegio” inglês a 1844: “O mercado brasileiro de bens manufaturados era a reserva especial dos
fabricantes portugueses e britânicos. Estes últimos detinham privilégios especiais pelos tratados com Portugal e
guardaram estes privilégios mesmo após a independência até 1844”. Ora, à medida que os direitos aduaneiros iam
subindo, parece claro que a sua importância ia decrescendo, do ponto de visto da capacidade de proteção, visto o
atraso relativo crescente do Brasil e a modificação gradual dos interesses britânicos (Werner Baer, Industrialization
and Economic Development in Brazil, Yale, 1965, p. 15). A função destes direitos deve ser vista como repartição da
mais-valia, sendo evidente que neste nível a burguesia local fará tudo para aumentar o seu quinhão; é necessário
lembrar, no entanto, que as contra dições a este nível não constituem contradições antagônicas. Uma função análoga,
tributária, em favor de uma burguesia dependente, tinba o imposto sobre as importações em Portugal.
173
Richard Graham, op. cit., p. 305.
EMPRESAS ESTRANGEIRAS AUTORIZADAS A OPERAR NO BRASIL, 1861-1920
Grã-Bretanha 78 99 80 171
Estados Unidos 6 13 11 138
Alemanha 4 18 21 40
França 1 10 25 68
Bélgica - 7 21 29
Portugal 12 7 3 15
Outros 2 13 19 84
“Os britânicos”, comenta Graham, “não tinham mais o Brasil para si De uma certa maneira,
a proclamação da república foi também uma afirmação da liberdade no Brasil relativamente aos
antigos laços com a Inglaterra”.174
Mais uma vez, aparece que a “libertação” resulta não da afirmação no Brasil de uma força
que exige a independência, mas do declínio da metrópole ligado ao deslocamento do centro do
capitalismo dominante, desta vez para os Estados Unidos. Este fato tem peso considerável para a
manutenção do caráter dependente da burguesia brasileira. Com efeito, se na fase da proclamação
da República, em 1889, o movimento nacionalista foi profundo e as manifestações antibritânicas
freqüentes, a burguesia nacional era um elemento marginal do movimento.175 Assim, pela própria
dominância das estruturas de produção extrovertidas, a substituição dos ingleses que se produziu
com a proclamação da República não fez senão colocar brasileiros nas funções anteriormente
ocupadas pelos ingleses. As funções, estas permaneceram as mesmas.
Esta nacionalização da superestrutura neocolonial é compreensível: com o aumento da escala
de produção e o desenvolvimento das comunicações, as principais operações da empresa faziam-se
já nos centros urbanos. As cidades tomaram uma importância maior e os empresários rurais mais
importantes instalaram-se nas cidades, não, como é freqüentemente descrito, para viver uma vida de
senhores semelhante à dos aristocratas europeus, mas essencialmente para seguir a transformação do
caráter das suas atividades, que exigiam, como o vimos acima, a importação de máquinas, a
obtenção de créditos, contatos políticos, etc.; esta função urbana, que constituía o núcleo da
dominação inglesa direta, foi gradualmente penetrada pelos brasileiros que, com a proclamação da
República, ocuparam o essencial do terreno.
Nas mãos dos grandes proprietários rurais, estas funções urbanas não iam mudar de caráter e
a classe no poder, ao facilitar o aparecimento da indústria têxtil que permitia vestir a bom preço os
seus trabalhadores, não esboçou nenhuma tendência nacionalista e não fez senão apropriar-se dos
ganhos realizados pela burguesia compradora inglesa. Doravante, a extroversão econômica seria
totalmente dirigida por brasileiros.
174
Richard Graham, op. cit., p. 304.
175
O próprio movimento industrial era em grande parte controlado pelos empresários do café, para quem a indústria
representou uma atividade paralela ou complementar: “Antes de 1900, a maior parte das fábricas de tecido de
algodão do Estado (de São Paulo) havia sido fundada pelos próprios fazendeiros. Tinham interesses na fundição, nas
serrarias, cervejarias, no sisal, no açúcar, no vidro, etc. Em 1901, num total de 12 680 operários das cinqüenta
maiores empresas de São Paulo, cerca de 5 530 eram empregados das empresas controladas por fazendeiros” (Villela
e Suzigan, op. cit., p. 124)
Os ingleses guardaram ainda durante longo tempo os seus interesses econômicos e o poder
que estes interesses implicavam. Mas neste plano iam sendo gradualmente substituídos pela
dinâmica incomparavelmente mais potente da economia dos Estados Unidos.
Notas Teóricas
176
Esta “especialização desigual”, como a caracteriza Samir Amin, está no centro do fenômeno moderno de
subdesenvolvimento. Com efeito, enquanto vemos a atividade aproexportadora levar a uma reprodução das relações
de produção pré-capitalistas, com um entrave para o desenvolvimento de atividades econômicas introvertidas, na
economia dominante a industrialização rompe as estruturas pré-capitalistas e torna-se a base estrutural e tecnológica
da revolução agrícola. É nestes efeitos estruturais secundários que vemos todo o peso da especialização desigual, que
acentua brutalmente a polarização dentro do sistema capitalista no decorrer do século XIX. Quando mais tarde as
economias dependentes passam a industrializar-se a decalagem ou atraso relativo permitirá reconstituir o mecanismo
de dependência sob outra forma.
constituição de atividades introvertidas, e assistimos à formação de um círculo vicioso de
extroversão.
Promovido à independência pela fraqueza do seu colonizador, o Brasil será dirigido pela
classe que tinha desenvolvido no país a produção colonial e cujos interesses eram, por conseguinte,
ligados à manutenção da orientação precedente. Tentará, sem dúvida, racionalizar as suas atividades
e aumentar a sua participação nos lucros resultantes do sistema, mas o conjunto da orientação está
demasiado assente na estrutura econômica do país para que esta classe considere uma opção
nacional burguesa.
Encontramos aqui a raiz interna da continuação da dinâmica neocolonial, que as pressões
externas do imperialismo ou a penetração de “agentes do imperialismo” não explicam: trata-se do
caráter particular, dependente, da classe burguesa brasileira, derivado do modo de produção
dependente sobre o qual ela se constitui.
As relações de produção são decerto modificadas, mas no sentido de melhor adaptar as
unidades de produção ao desenvolvimento das forças produtivas, sem qualquer reconversão notável
que possa caracterizar a penetração de um novo modo de produção.
Do ponto de vista das relações de propriedade, constatamos que, sob a impulsão de uma
dinâmica desta vez incontestavelmente capitalista, as estruturas coloniais tão freqüentemente
qualificadas de feudais viram-se não transformadas, mas ao contrário reforçadas, mantendo-se a
dominação absoluta da grande propriedade latifundiária.
Do ponto de vista das relações de exploração, constatamos um fenômeno análogo: a
progressão rápida das relações escravistas sob a impulsão do capitalismo inglês, e particularmente
no Sul “capitalista”, tende a reforçar a tese de que não se trata de uma articulação de modos de
produção diferentes, e menos ainda da penetração da “civilização” capitalista num mundo primitivo,
mas de uma forma específica do modo de produção capitalista que, pelos seus caracteres de
dependência e extroversão, reproduz relações de exploração pré-capitalistas; a progressão da
escravidão no Sul em pleno século XIX e o aborto da libertação no Nordeste (onde os engenhos são
transformados em usinas que utilizam a força mecânica) na passagem para o século XX não podem
ser jogados nas costas do “passado” e devem encontrar uma explicação dentro da dinâmica
capitalista contemporânea.
Em quatro séculos os dados essenciais do modo de produção resistem e “digerem” a
progressão das forças produtivas: permitem o crescimento e mantêm a dependência e a extroversão.
Estes dados diferentes parecem, pois, formar um sistema particular, que qualificam os de modo de
produção capitalista dependente, mesmo se os diferentes elementos que o compõem já existiram
isoladamente na Europa nos quadros de modos de produção diferentes e em épocas diferentes.
Não nos compete aqui pronunciarmo-nos sobre o problema insolúvel de determinar a que
ponto tiveram ou não peso as “tradições” feudais e outras. O que constatamos é que os elementos de
“tradição” selecionados para sobreviverem, junto com os elementos modernos ligados ao
desenvolvimento das forças produtivas, formam um conjunto que, analisado à luz das diversas
etapas da reprodução do capital, não apresenta contradições ou incoerências internas, seja no plano
da formação do capital, da produção ou da realização.
No entanto, na medida em que esta coerência interna só se constata quando vemos a
economia brasileira mediada pela totalidade do sistema capitalista a que pertence, forçoso é
constatar que a luta de classes dentro do país se coloca desde o início num plano simultaneamente
interno e externo e que pôr em questão o modo de produção capitalista no Brasil implicaria pôr em
questão simultaneamente a contradição de classe e a contradição nacional, erroneamente
dissociadas.
69
Capítulo V
As economias do centro, da mesma forma que o Brasil, constituem não conjuntos estáticos,
mas uma dinâmica contraditória que exige em particular uma readaptação periódica das relações de
produção ao nível de desenvolvimento das forças produtivas.
Da crise estrutural do fim do século XIX o capitalismo emerge sob a sua forma imperialista:
"O imperialismo é o capitalismo numa etapa de desenvolvimento que leva à dominação dos
monopólios e do capitalismo financeiro, ao aumento da importância da exportação de capitais, à
repartição do mundo entre os trustes internacionais e à conclusão da divisão do globo terrestre pelos
grandes países capitalistas".177
Pelos fins do século XIX e início do século XX, a indústria européia já entrava na fase
redistributiva, ou seja, numa fase em que o proletariado participava cada vez mais como consumidor
na realização do capital-mercadoria. O mercado de um produto relativamente sofisticado como o
café encontrava, em conseqüência, uma base de expansão relativamente estável.178
Esta demanda estável iria traduzir-se em preços sustentados no mercado mundial: apesar das
variações conjunturais, em particular das crises de 1896-97, 1902-03 e 1907-08, o preço do café
estimulava o desenvolvimento da produção local.
Se o consumo dos países ricos e o nível de preços no mercado mundial tendiam a manter a
orientação fundamental da economia para a exportação, o movimento de exportação de capitais do
centro e a sua entrada no Brasil iria reforçar as bases técnicas desta orientação: de uma certa forma,
o imperialismo fornecia ao mesmo tempo os fins e os meios.
A entrada do capital estrangeiro no Brasil tomou essencialmente duas formas: por um lado,
tratava-se de empréstimos concedidos ao Estado, que por sua vez afetava o grosso destes meios a
obras de infra-estrutura da economia exportadora. É assim que a dívida externa brasileira passou de
31 milhões de libras em 1889 a 40,5 milhões em 1897 e atingiu 129,3 milhões em 1910 e 162
milhões em 1914.179 Por outro lado, tratava-se de investimentos das empresas financeiras
estrangeiras que instalavam filiais no país e concentravam também os seus esforços no
desenvolvimento da infra-estrutura da região do café. “A contribuição do capital estrangeiro foi
importante”, escrevem Villela e Suzigan. “Estima-se que o capital estrangeiro aplicado no país até
177
Lênin, Imperialismo, Estádio Superior do Capitalismo.
178
O consumo mundial de café, em sacas de 60 quilos, atingia 11 milhões de sacas em 1886, 16 milhões em 1902 e 22
milhões em 1914. Heitor Ferreira Lima, História Político-Econômica e Industrial do Brasil, Ed. Nacional, S. Paulo,
1973, p. 303, citando dados de Roberto Simonsen. Nos anos 1920, a expansão do mercado deixaria de acompanhar a
expansão da produção, provocando uma superprodução crônica. Ver Celso Furtado, op. cit., p. 227.
179
Villela e Suzigan, op. cit., p. 335. As condições desfavoráveis destes empréstimos, salientados por Villela e Suzigan
(p. 333), transformavam-nos em subsídios indiretos ao setor exportador.
1930 se elevou a 2,6 bilhões de dólares, ou seja, mais de quatro vezes a dívida externa acumulada
durante toda a história econômica do país. O montante compreendia não somente as aplicações de
capitais privados, mas também a colocação no exterior de títulos do governo. Os capitais britânicos
e norte-americanos predominavam, investidos basicamente nos transportes, energia elétrica e
indústria em geral”.180
A “República do Café”
A Burguesia do Café
A produção agrícola para o mercado interno mantinha-se num nível relativamente baixo. Em
1907, com uma produção agrícola do valor de 1.170 mil contos e uma exportação de produtos
agrícolas de 794,7 mil contos, o Brasil exportava 67,9 por cento da sua produção agrícola.182
Ao mesmo tempo, o Brasil importava produtos alimentares em quantidade. “O Brasil”,
escreve Caio Prado Júnior, “torna-se neste momento um dos grandes produtores de matérias primas
e de bens tropicais. Concentra-se aliás em proporção crescente nestas atividades, sem possibilidade
de vagar a outras ocupações. Em conseqüência, a produção de bens de consumo interno reduz-se:
tornam-se cada vez mais insuficientes relativamente às necessidades do país e tornam necessária a
180
Villela e Suzigan, op. cit., p. 81.
181
O ministro, Rui Barbosa, afirmava em 1889 no seu primeiro relatório que a República devia apoiar-se no
desenvolvimento industrial. Ao demitir-se, desiludido, em 1892, declarava ao Senado: "Que resta, com efeito, das
instituições criadas pelo governo provisório?... Nada, Senhor Presidente, nada senão a parte mais pesada, difícil e
menos simpática do plano” (Ferreira Lima, op. cit., pp. 290 e 292).
182
(ó) Villela e Suzigan, op. cit., pp. 68 e 112.
71
importação da maior parte mesmo dos artigos alimentares mais vulgares. Os bens alimentares
figuram na importação com percentagens consideráveis, por volta de 30 por cento e mais, situação
paradoxal e totalmente anormal num país exclusivamente agrário como o Brasil”.183
Assim, a agricultura voltada para o mercado interno não constituía um peso comparável ao
da agricultura de exportação. Mas a força dos interesses do café iria afirmar-se dentro da própria
agricu1tura de exportação.
Período Café Açúcar Cacau Mate Tabaco Algodão Borracha Couros Outros
E peles
1889-1897 67,6 6,5 1,1 1,2 1,7 2,9 11,8 2,4 4,8
1898-1910 52,7 1,9 2,7 2,7 2,8 2,1 25,7 4,2 5,2
1911-1913 61,7 0,3 2,3 3,1 1,9 2,1 20,0 4,2 4,4
1914-1918 47,4 3,9 4,2 3,4 2,8 1,4 12,0 7,5 17,4
1919-1923 58,8 4,7 3,3 2,4 2,6 3,4 3,0 5,3 16,5
1924-1929 72,5 0,4 3,3 2,9 2,0 1,9 2,8 4,5 9,3
1930-1933 69,1 0,6 3,5 3,0 1,8 1,4 0,8 4,3 15,3
1934-1939 47,8 0,5 4,3 1,4 1,6 7,6 1,1 4,4 21,3
1940-1945 32,5 0,6 3,2 0,9 1,2 9,1 2,4 4,6 46,5
r~ .
Constatamos facilmente que, fora a borracha, que constitui uma fonte temporária de
prosperidade e não chegou a dar lugar a uma classe capaz de exercer uma influência duradoura, o
café não encontra concorrentes e mantém uma posição esmagadora que os seus representantes
saberão traduzir em dominação política.
Papel do Estado
183
Caio Prado Júnior, op. cit., p. 216. É preciso levar em conta a importância que representa este reforço da
orientação da agricultura no sentido da monocultura exportadora, no mesmo momento em que se processa a
libertação dos escravos: cortando as possibilidades da atividade agrícola introvertida, uma das poucas saídas abertas
ao trabalhador livre mas privado de meios de produção, e em face da fraqueza do emprego industrial — a
transformação da agricultura obedece a uma dinâmica independente da dinâmica da industrialização —, assistimos à
marginalização da mão-de-obra, que busca a agricultura de auto-subsisténcia ou atividades urbanas semiparasitárias,
e ao reforço do exército rural de reserva. O processo fundamental que constitui a interação das transformações do
mundo rural — que fornece a mão-de-obra e o mercado — e do mundo industrial — que fornece emprego e bens
manufaturados —, e que constitui a base econômica da “república burguesa " européia, está ausente desta “república
do café” brasileira.
184
Villela e Suzigan, op. cit., p. 70, citando dados do Anuário Estatístico do IBGE 1939-1940, pp. 1379 e 1380
72
185
Esta ambigüidade fundamental do Estado brasileiro soberano numa formação social dependente, não significa,
como sugere Marcos Kaplan, que ele existe “na fronteira” dos interesses nacionais e dos interesses do capitalismo
mundial. Esta perspectiva tende a esconder o caráter de classe do problema e a colocá-lo na esfera da contradição
“nação-imperialismo”. Parece-nos mais acertado dizer que este Estado serve os interesses da classe dependente local,
no quadro de um sistema definido pelos interesses do capitalismo dominante. Este dado deve ser levado em
consideração pelos que vêem na extensão do setor estatal no Brasil uma abertura para a independência econômica e
a socialização. Ver Marcos Kaplan, Estado, dependência externa y desarrollo en América Latina, Buenos Aires, 1969.
186
A região do Rio de Janeiro, em função do papel particular de capital, sofreu várias subdivisões (formação do
Distrito Federal e, posteriormente, do Estado da Guanabara). Referimo-nos ao conjunto da região.
187
Celso Furtado, op. cit., pp. 207 e 208; no mesmo sentido ver W. Guilherme, Contribuição ao Estudo das
Contradições Sociais no Brasil, Rio de Janeiro, p. 23; ver também Villela e Suzigan, op. cit., pp. 189 e seguintes, onde
os autores estudam os efeitos da inelasticidade da oferta do café a curto prazo.
188
Ver a este respeito os dados citados por Villela e Suzigan, op. cit., p. 335, e o capítulo dedicado a este tema por
Afonso de E. Taunay na sua Pequena História do Café no Brasil, Rio de Janeiro, 1945.
73
1819 1 790 -
1820- 1829 7 765 955
1830- 1839 2 669 304
1840- 1849 7 703 649
1850- 1859 117 592 6 310
1860- 1869 110 093 1 681
1870- 1879 193 931 11 730
1880- 1889 527 869 183 979
1890- 1899 1 205 803 735 076
1900- 1909 649 898 323 446
1910- 1919 821 458 232 586
1920- 1929 846 522 478 094
1930- 1939 333 701 259 318
189
Villela e Suzigan, op. cit., p. 41. É característico destes autores atribuírem o desequilíbrio em formação à
“desorganização do mecanismo do mercado” pelo Estado, sem se referirem às forças internas e externas que
determinam esta intervenção.
190
Caio Prado Júnior, op. cit., p. 194. Villela e Suzigan notam que “foi somente graças à imigração subvencionada,
necessária à substituição do escravo, que a mão-de-obra estrangeira necessária ao café pôde ser assegurada” e
estimam que a proporção de imigrantes que podia entrar na categoria de imigrantes subvencionados era de cerca de
80 por cento em São Paulo no fim do século (p. 256).
191
Octávio lanni, Industrialização e Desenvolvimento no Brasil, ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1963, pp.
296 e 99. Retificamos o total para São Paulo
74
controlado por capitais ingleses, mas foi gradualmente transferido para o Estado, à medida que os
lucros obtidos se reduziam.
No início do século XX, o Estado empreendeu obras importantes para modernizar os portos,
em particular Santos, Rio de Janeiro e Recife. Se Santos constituía uma concessão privada, bem
como Salvador e llhéus, os outros portos pertenciam já ao Estado. A Lei n° 957, de 30 de dezembro
de 1902, autorizava o governo a recorrer a empréstimos externos para financiar estas obras e uma
caixa especial dos portos centralizava os recursos provenientes dos empréstimos a partir de 1907. É
assim que, em 1903, 1909, 1911 e 1913, através de empréstimos repetidos, o Estado se endividava
no exterior para financiar economias externas para o setor exportador.192
Iniciativas similares tiveram lugar nas ferrovias: em 1901, o governo contraiu empréstimos
externos para financiar o desenvolvimento da rede. Cerca de 6 por cento da receita das exportações
eram na época destinados ao serviço desta dívida. Assim, o movimento de nacionalização das
ferrovias tomava forma.193
O desenvolvimento da rede ferroviária que acompanha a expansão da agricultura de
exportação é considerável:194
Fato característico, a nacionalização da maior parte da rede ferroviária não iria exercer
grande influência sobre a sua orientação econômica. Os ingleses tinham-se limitado a criar linhas de
escoamento que desembocavam em Santos, Rio de Janeiro, Recife e Salvador, ligando os portos às
zonas agrícolas de exportação. Ora, nota-se no quadro acima que a extensão da rede estagnou
praticamente com a crise de 1929, data que marca o início do recuo relativo da monocultura de
exportação. A passagem da rede ferroviária ao domínio público constituía uma nacionalização dos
prejuízos e o Estado, coerente com a sua função particular, não busca nova orientação para o setor,
192
Vilela e Suzigan, op. cit., pp. 386-387.
193
Ibidem, p. 396: “O fato mais notável da evolução das ferrovias brasileiras do ponto de vista do regime de empresa
é o declínio contínuo da empresa privada”. Em 1929, apenas cerca de 33 por cento da rede eram controlados por
empresas privadas.
194
Villela e Suzigan, op. cit., p. 393.
75
195
O pagamento das dívidas contraídas para o desenvolvimento da rede exigia o reforço das entradas em divisas e,
por conseguinte, das exportações, restringindo na realidade a margem de manobra. A modernização não podia
fazer-se sendo através de uma extroversão mais profunda. Trata-se bem da modernização da dependência.
196
Villela e Suxigan, op. cit., pp. 331 e 332, Apêndice D, “Evolução da dívida externa”.
197
Caio Prado Júinior, op. cit., p. 277.
198
Hoje chamada Estrada de Ferro Santos a Jundiaí. Graham lembra que os investimentos eram, depois dos
empréstimos públicos, a área de atividade mais importante dos investimentos ingleses (R. Graham, op. cit., p. 317).
199
Villela e Suzigan, op. cit., p. 378 — dados do CNAEE.
76
1890 1,267
1900 10,367
1910 157,401
1920 367,018
1930 778,802
1940 1 243,877
1945 1 341,633
A expansão de um novo setor-região, resultante do ciclo econômico do café, não tem nada
de novo no Brasil e já vimos que a sucessão de ciclos constituía justamente uma das características
do desenvolvimento econômico do país.
O que é novo é sem dúvida o fato de o ciclo do café se prolongar durante quase um século e
coincidir agora com a expansão do capital do centro, que caracteriza o imperialismo. Em
conseqüência, a quase totalidade dos aperfeiçoamentos técnicos e dos investimentos, sejam de
origem privada ou estatal, brasileiros ou estrangeiros, concentram-se no setor dinâmico da
77
Norte 742
Nordeste 4 526
Leste 14 590
Sul 14 049
Centro-Oeste 1 373
Brasil 35 280
200
Heitor Ferreira Lima, op. cit., p. 232. Ver também Roberto Simonsen, “Aspectos da História Econômica do Café”,
in: Evolução Industrial do Brasil e Outros Estudos, Cia. Ed. Nacional, São Paulo, 1973, p. 198.
201
Villela e Suzigan, op. cit., p. 403, Apêndice “Transportes terrestres”.
202
(26) Villela e Suzugan, op. cit., p. 380, e George Whyte, “Brasil, Trends in Industrial Development” in: S. Kuznets
et al., Economic Growth, Brazil, India, Japan, Duke University Press, 1955. Todos os dados são do CNAEE (Conselho
Nacional de Águas e Energia Elétrica).
78
Concentração da mão-de-obra
O resultado foi que São Paulo conheceu rapidamente uma concentração de mão-de-obra
estrangeira muito maior que o resto do país.
203
Villela e Suzigan, op. cit., p. 269 — apêndice demográfico, dados do IBGE
79
deslocamento gradual da população para a zona dinâmica constituída por São Paulo e pelo Sudeste
de modo geral é nítido. Veremos mais adiante algumas características deste deslocamento.
A concentração dos transportes possibilita a integração regional e o aumento da produção,
cujo escoamento se encontra facilitado. A energia elétrica permite a mecanização e, em
conseqüência, o desenvolvimento da indústria. A imigração fornece uma mão-de-obra
freqüentemente dotada de experiência proletária e empresários ao par das técnicas industriais da
Europa. A presença de capitais muito importantes numa região relativamente restrita, apesar de
serem direta ou indiretamente ligados à produção do café, beneficiará nos seus fluxos e refluxos
uma série de atividades complementares, entre as quais a indústria.
Por outro lado, vimos que os imigrantes, inicialmente orientados para as colônias agrícolas,
onde se desenvolvia uma economia de subsistência pouco dinâmica, tinham obtido, após as
violentas reações na Europa e a ameaça de suspensão da imigração, o pagamento de salários. Esta
prática e a falta de mão-de-obra favoreceram a extensão do salariato.205
Em conseqüência, a concentração de imigrantes numa só região, aliada à concentração da
infra-estrutura econômica, levou a um fenômeno inédito no Brasil: a constituição de um importante
mercado local.
204
Villela e Suzigan, op. cit., p. 251, apêndice demográfico, dados do IBGE.
205
“Se antes a escravidão corrompia o homem livre, agora era a liberdade que corrompia o escravo”. Caio Prado
Júnior, op. cit., p. 195
80
Concentração da Procura
206
Caio Prado Júnior salienta este caráter particular do mercado interno, constituído como dado complementar numa
economia essencialmente extrovertida: "A orientação da economia brasileira, organizada em produção regional
virada para o exterior, tinha impedido a unificação efetiva do país e o estabelecimento de uma densa rede de
comunicações internas que as condições naturais já tornavam difíceis. Os poucos milhões de habitantes
encontravam-se espalhados ao longo de um litoral de quase 6 000 quilômetros e numa superfície de mais de 8 milhões
de quilômetros quadrados; reagrupavam-se, pois, em pequenos núcleos distantes e sem contatos apreciáveis entre si.
É assim que se apresentava o mercado que se oferecia à indústria brasileira; nada lhe podia ser mais desfavorável"
(Caio Prado Júnior, op. cit., p. 264). Na realidade, conforme veremos, esta estrutura não impedirá a industrialização,
mas imprimir-lhe-á uma orientação particular.
207
É evidente que isto é devido simultaneamente às limitações que pesam sobre a mobilidade dos fatores de produção e
existência de um pólo dominante que desequilibra o conjunto. Voltaremos aos mecanismos que fazem com que a
integração interregional em torno de um pólo dominante reforce a desintegração intra-regional.
208
Villela e Suzigan, op. cit., p. 300, apêndice demográfico, dados do IBGE, censos de 1920 e 1940.
81
fraqueza geral das atividades introvertidas no conjunto do país, a cidade brasileira não resulta de
uma transformação gradual que faria surgir,
BRASIL — POPULAÇÃO URBANA DAS CIDADES DE 20 000 E MAIS
HABITANTES (POPULACÃO TOTAL DA REGIÃO = 100)
209
Encontramos uma excelente análise deste fenômeno em Milton Santos, Les villes du Tiers-Monde, Paris, Génin,
1971, p. 428.
210
Milton Santos, op. cit., p. 15.
211
Ibidem, pp. 56 e 355. O fenômeno de urbanização macrocéfala nos partes subdesenvolvidos é qualitativamente
diferente dos problemas conhecidos nos países capitalistas ricos: se nestes últimos a população que reside em cidades
de mais de 500 000 habitantes não chegou a dobrar entre 1920 e 1960, nos países subdesenvolvidos viu-se
multiplicada por 7.
82
organiza-se uma função industrial no país a partir do fim do século XIX. A produção levou, pois a
uma diferenciação que permite um novo tipo de atividades industriais”.212
O movimento toma então a forma de um processo cumulativo. O Rio de Janeiro passa de
811 mil habitantes em 1906 para 1 158 mil em 1920. São Paulo passa de 240 mil em 1900 para 580
mil em 1920 e a sua população crescerá a partir daí num ritmo de mais de 5% ao ano.213
O eixo Rio—São Paulo, dispondo de um mercado regional “razoável”, e sobretudo único, de
mão-de-obra imigrada habituada ao trabalho industrial, de uma infra-estrutura moderna e de capitais
importantes, constitui uma base econômica que o diferencia nitidamente do conjunto do país e
fornece à indústria nascente economias externas importantes.
Mas esta industrialização, formada não como nos Estados Unidos através da ruptura de
estruturas da economia extrovertida, mas, pelo contrário, como ativada complementar e sobre a base
desta herança econômica, refletirá todas as distorções do passado que a determina.
Dinâmica do Desequilíbrio
Com efeito, se a República é proclamada e a escravidão abolida, constatamos também que a
extroversão da produção, através do desenvolvimento do setor do café, é reforçada e que as relações
de produção, em particular a propriedade dos bens de produção na agricultura, são reproduzidas.214
O fato de as relações de exploração se modificarem sem pôr em questão a orientação
econômica ou as relações de propriedade é fundamental e dá a medida de toda a diferença
relativamente às modificações conhecidas na Europa. Trata-se de empresas capitalistas que,
sob a pressão da falta de mão-de-obra e face à quase impossibilidade de encontrar escravos, adotam
relações de exploração apoiadas parcialmente no salariado e parcialmente nu m a série de form as
secundárias que veremos mais adiante.215
No quadro das novas relações de exploração, a produção de café progredirá regularmente:
“Contrariamente à opinião dos pessimistas, a expansão das culturas (do café) sempre conservou a
mesma estrutura e organização de base e adquiriu um ritmo considerável, o que deu, alguns anos
depois da abolição, a primeira grande crise de superprodução”.216
Ora, a abolição da escravidão, ou seja, a modificação das relações de exploração no mundo
rural, enquanto as relações de propriedade permaneciam idênticas, vai determinar a transformação
da maior parte da mão-de-obra agrícola brasileira em proletariado agrícola e em exército rural de
reserva semimarginalizado, e não em campesinato.217
A facilidade da passagem ao trabalho assalariado no quadro das mesmas estruturas de
produção e da mesma orientação econômica parece confirmar, como nota Caio Prado Júnior, a
hipótese de que se trataria, no campo brasileiro, de um modo de produção capitalista. Duas
características deste modo de produção, a dependência e a extroversão, permitiam a utilização de
relações de exploração capitalistas de um tipo particular, e em particular a superexploração.
212
Fernando Henrique Cardoso, “Les élites d'enterprise”, in: Sociologie du sous-développement en Amérique Latine,
Paris, Anthropos, 1969, p. 188. Por outro lado, A. G. Frank resume este processo de desenvolvimento capitalista, que
cita, entre outros, como sendo constituído “pela concentração da atividade econômica e da renda num centro
metropolitano nacional e pela polarização da economia tomada no seu conjunto” (A. G. Frank, Capitalisme et
sous-développement en Amérique Latine, Paris, Maspéro, 1972, p. 162)
213
Milton Santos, op. cit., p. 56. A generalidade do fenômeno deve-se ao fato de ele refletir um mecanismo
característico do capitalismo dependente, que se desloca gradualmente para as atividades industriais, não apesar de —
ou contra —, mas sobre a base de uma economia extrovertida.
214
Com a abolição, o que restava de escravos “transformou-se em assalariados, continuando empregados nos mesmos
estabelecimentos rurais (fazendas, engenhos...), cujo ritmo de produção e estrutura econômica, que era a grande
exploração agrária, não se modificaram no essencial” (Caio Prado Júnior, A Revolução Brasileira, p. 148).
215
No momento da abolição, o Brasil era um dos últimos países escravistas do mundo e o preço dos escravos no
mercado tinha atingido um nível que tornava o sistema economicamente pouco viável.
216
Caso Prado Júnior, op. cit., p. 149. A primeira crise de superprodução é de 1895.
217
Deixamos aqui de lado as implicações políticas, em particular a atualidade da revolução socialista no campo e as
perspectivas particularmente favoráveis de uma aliança de classes com o proletariado industrial.
83
Ora, a transformação que constatamos nas relações de produção, se bem que contribua
indiscutivelmente para desenvolver o mercado interno, dá-lhe uma constituição muito particular:
enquanto a proletarização do campesinato europeu permitia concentrar o seu poder de compra, por
pequeno que fosse, a formação de um proletariado rural ligado às empresas agromercantis de
exportação conferia a este mercado um caráter extremamente disperso e um peso específico local
insuficiente para estimular a produção artesanal ou semi-industrial local.
Sabemos que, por um lado, este fato agia no sentido da desarticulação da economia local e
regional e reforçava a integração através do grande centro urbano (macrocefalia) que podia captar
estas pequenas reservas através de redes nacionais de comercialização.
Por outro lado, a manutenção de uma taxa de exploração extremamente elevada determinará
o perfil de consumo dos trabalhadores rurais, que irão canalizar os seus rendimentos monetários
para a compra de alguns bens elementares cuja produção, salvo parcialmente no caso dos produtos
têxteis, não é de natureza a estimular o desenvolvimento das manufaturas em geral.
A forma parcial da modificação das relações de produção leva assim — no quadro de uma
agricultura dominada pelas atividades de exportação, onde o trabalhador assalariado, como antes o
escravo, inexiste praticamente como consumidor do bem que produz — a uma taxa de exploração
que cria uma situação particular: a dicotomia do mercado interno, polarizado entre o consumo de
luxo próprio das classes abastadas e o consumo do trabalhador assalariado rural — o fenômeno é
menos verdadeiro para o trabalhador urbano — que orienta o seu poder de compra para produtos de
tipo e qualidade diferentes.
218
Parece-nos que seria necessário situar com mais precisão as afirmações de A. G. Frank. “Segundo as hipóteses do
meu modelo, são as regiões satélites menos solidamente ligadas à metrópole que têm a possibilidade de atingir um
desenvolvimento autônomo maior e mas especialmente um desenvolvimento industrial” (A. G. Frank, Capitalisme et
sous-développement en Amérique Latine, Maspéro, 1972, p. 154). A afirmação é certamente verdadeira no que
concerne a um “desenvolvimento autônomo”, mas o desenvolvimento industrial é perfeitamente possível no quadro de
uma “ligação com a metrópole”. O que é de se analisar são os limite de um desenvolvimento industrial que parte
destas bases.
84
Imperialismo e Industrialização
219
Albert 0. Hirschman, “The Political Economy of Import Substituting Industrialization in Latin America”, The
Quarterly Journal of Economics, fev, 1969, p.4.
220
Percebe-se aqui a fertilidade da sugestão de S. Amin, que se refere à coexistência, na economia periférica, de
mecanismos de desenvolvimento capitalista e da acumulação primitiva. Assim, sendo o pólo dinâmico forçado — na
falta de colônias — a realizar a sua exploração primitiva nas costas do próprio povo, a polarização aparece como
inevitável. No entanto, tratando-se de um sistema que reproduz a “exploração primitiva” e as relações de produção
que a permitem, voltamos a uma relação de exterioridade que não explica a dinâmica de reprodução do sistema no seu
conjunto.
45
Claudio Haddad, "Crescimento do Produto Real Brasileiro, 1900-1947", Revista Brasileira de
Economia, jan./mar. 1975, pp. 3 a 26 O autor retoma os índices calculados por Simonsen,
Loeb-Meiren, a CEPAL, Fishlow e por Villela e Suzipan.
46
Roberto Simonsen, op. cit., p. 16, Heitor Ferreira Lima, op. cit., pp. 321 e 324, Caio Prado
Júnior, op. cit., pp. 265 e 266; A. G. Frank, op. cit., p. 161.
85
47
Roberto Simonsen refere-se a 3 250 estabelecimentos e 150 841 operários, op. cit., p. 17; Caio
Prado Júnior, a 3 258 estabelecimentos e 150 841 operários, op. cit., p. 266; Ferreira Lima, a 3
410 estabelecimentos e 156 250 operários, op. cit., p. 324.
48
Villela e Suzigan, op. cit., p. 87. Ver também as páginas 122 e 145.
49
Stanley Stein. The Brazilian Cotton Manufacture, p. 103.
50
Este é, em particular, o caso de Villela e Suzigan, que não hesitam em sugerir que a extroversão
econômica é necessária à industrialização: “Os efeitos da crise internacional de 1913 e a
Guerra de 1914-18 impediram a continuação deste desenvolvimento (industrial). Afetando o
comércio exterior, reduziram abruptamente as trocas e a capacidade de importação da
economia”. Na realidade, não houve “interrupção” da industrialização, mas uma modificação
temporária da sua orientação.
51
Villela e Suzigan, op. cit., pp. 437 e 432, apêndice 1, tabelas XVII e XXI.
86
independente das perturbações externas, acompanha grosso modo as cifras precedentes. Lembremos
por outro lado que Stein, no levantamento que fez das importações de máquinas para a indústria
têxtil, a principal do Brasil na época, constata que o Brasil importou 13 344766 quilos de máquinas
em 1913, contra 2 194 261 quilos em 1915 e 2 449 638 em 1916; a importação volta a subir em
1920 com 4 262 251 quilos.52
52
Stanley Stein, op. cit., p. 195.
53
F. H. Cardoso, Sociologie du développement, p. 69. É evidente, no entanto, que o adjetivo
"vegetativo" utilizado por F. H. Cardoso recobre toda a dinâmica da industrialização, que
reflete o deslocamento das bases técnicas da dependência e a sua penetração na área industrial.
87
Por outro lado, a tônica que se coloca, na maioria das discussões, sobre os mecanismos
que presidiram os diferentes momentos da industrialização — em particular os da substituição de
54
Albert O. Hirschman, op. cit., p. 10.
55
Francisco Oliveira, A Economia Brasileira: Notas para uma Revisão Teórica, 1974, p. 14.
56
Heitor Ferreira Lima, op. cit., p. 328.
57
Roberto Simonsen, op. cit., p. 17.
58
Roberto Simonsen, op. cit., p. 26. Trata-se do valor da produção industrial deflacionada pela
evolução do custo de vida.
88
Constatamos que a importância dos produtos têxteis progride, como a dos produtos
alimentares, ambos característicos da indústria ligeira. Esta forma de industrialização difere
sensivelmente mesmo dos últimos surtos industriais do centro, como a Itália ou o Japão.
59
Roberto Simonsen, op. cit., p. 17.
89
60
Albert O. Hirschman, op. cit., p. 7.
61
T. C. Baker, "L'économie britannique de 1900 à 1914", Revue d'Histoire Economique et Sociale,
n° 2, 1974, pp. 208 a 222. O autor refere-se a S. B. Saul, "The development of British Industry
and Foreign Competition 1875-1914", London, 1968, in. The Engineering Industry, Derek H.
Aldcroft, ed.
62
George Whyte, Brazil, Trends in Industrial Development, in: S. Kuznets, op. cit., p. 66: "A
independência econômica não deve ser tomada literalmente, pois durante um longo período o
crescimento industrial deverá aumentar provavelmente, e não reduzir, a dependência do Brasil
relativamente aos materiais, gasóleo e técnicas importadas". Na realidade, "trata-se de uma
interdependência, contribuindo as compras do Brasil para criar economias de escala à indústria
do centro em expansão. A dependência é pois, sempre um movimento duplo, com esta diferença
essencial: os termos da complementaridade são determinados pelo pólo dominante
90
outro. "Uma grande parte da indústria brasileira", escreve George Whyte, "concentrou-se em
empresas que fornecem artigos de consumo comuns de baixo nível".63
A reprodução, ao nível das estruturas de produção, da dicotomia que prevalece na
estrutura do rendimento não aparece nas estatísticas, já que nestas a produção é dividida em setores
(têxtil, químico, etc.) e não segundo o mercado destinado a absorver o produto. Trata-se, no entanto,
de uma distinção fundamental que cada empresário tomava em consideração. Se a produção de
tecidos populares, por exemplo, era facilitada e podia ser desenvolvida por meio de máquinas
fornecidas pela Grã-Bretanha e comercializada através da rede interna controlada pelos ingleses,
qualquer penetração prematura na esfera do mercado de luxo provocava reações imediatas. "Um
produtor do Rio de Janeiro", relata Stein, "declarou que os importadores e intermediários tinham a
intenção de levar uma 'guerra de exterminação' para liquidar a sua empresa quando propôs a
produção de meias...". 64
É evidente que o atraso técnico relativo da indústria brasileira a predispunha a fabricar
bens menos sofisticados que os fabricados pela Grã-Bretanha ou os Estados Unidos. Mas do ponto
de vista das economias capitalistas dominantes esta orientação ia no sentido da evolução do seu
perfil de produção: "Desde muitos anos, a camisaria inglesa tinha-se tornado cada vez mais fina. A
mudança teve duas ou três causas, mas a principal foi o progresso da mecanização nos países para
os quais os nossos (da Inglaterra) fios de grosso calibre e os nossos tecidos comuns eram antes
enviados. Estes países produzem agora estes artigos numa escala bem maior para o seu próprio
consumo e deixam-nos a produção das qualidades mais finas".65
Esta divisão do mercado vinha complementar o ciclo na nova divisão internacional
capitalista do trabalho: com efeito, se a Inglaterra dispunha, conforme relata Baker, de um mercado
de profundidade social bem inferior à do mercado americano, e tinha em conseqüência grandes
dificuldades para produzir bens de capital em escala competitiva, a exportação destes tornava-se
imperiosa para complementar o mercado interno. A exportação de máquinas, por sua vez, não podia
senão estimular a produção industrial no exterior. Numa economia dependente como a do Brasil, a
repartição dos mercados internos constituía, pois, a melhor das soluções: permitia exportar bens de
capital, ao mesmo tempo que se reservava para o produtor inglês o que os capitalistas brasileiros,
sempre conscientes da distinção entre as faixas de mercado, chamavam de "filé mignon" do
mercado.
Esta evolução aparece com clareza na indústria têxtil, a mais importante e melhor
estruturada da época. 66
"O mercado que as empresas têxteis brasileiras tentavam atingir, naquela época como
agora, era composto da parte rural e, em menor medida, da parte urbana da população, os que
buscavam tecidos "para calças de homens, azuis ou claros... ou para camisas brancas ou calico e
tecidos para vestidos e lenços para as mulheres". Os grupos ricos da sociedade brasileira
continuavam a comprar tecidos importados, casimiras, seda e lãs para a sua vestimenta". 67
Ora, considerando a manutenção e a reprodução das relações de produção caracterizadas
pela superexploração, a profundidade social do mercado era extremamente limitada e é interessante
notar que já em 1920. L. S. Garry, enviado comercial dos Estados Unidos, ao analisar as
perspectivas da indústria têxtil brasileira do algodão, via "somente duas alternativas: exportar, ou
concentrar-se na manufatura dos bens de qualidade até então importados".68
63
George Whyte, op. cit., p. 49.
64
Stanley Stein,op.cit., p. 70.
65
T. C. Baker, op. cit., p. 214.
66
“Em 1920, apesar de a produção de tecidos representar 27,6% da produção industrial do país
em valor, absorvia 38% do total dos capitais investidos na indústria" (Simonsen, op. cit., p. 21).
67
Stanley Stein, op. cit., p. 69-70.
68
L. S. Garry, Textile Markets in Brazil (Stein, op. cit., p. 108).
91
69
Roberto Simonsen, Evolução Industrial do Brasil. p. 17.
70
T. C. Baker, op. cit., p. 231. Segundo Graham, "em 1913 o Brasil importou 16 milhões de libras
de mercadorias da Inglaterra; dois anos mais tarde, este montante caiu para 6,6 milhões de
libras esterlinas. Apesar de uma certa recuperação, por volta de 1918 o nível atingia apenas
10,8 milhões, enquanto as importações dos Estados Unidos subiam para 19 milhões... Apesar da
breve prova de forças depois da guerra, os britânicos tinham perdido a partida em proveito dos
americanos (had lost out to the Americans) por volta de 1924 " (Graham, op. cit., p. 315).
71
Normano, J. F., in. Ferreira Lima, op. cit., p. 34.
92
O reforço da presença financeira americana constituía, por outro lado, uma excelente
infra-estrutura para os investimentos diretos que vinham apropriar-se do mercado de luxo
anteriormente satisfeito pelas importações provenientes da Inglaterra.
Ferreira Lima nota esta forma particular da penetração capitalista americana, que "se
manifestou através de uma série de empresas que abriram filiais no Brasil, em geral empresas
industriais, visando a penetração do nosso mercado".72
A instalação de filiais de grandes empresas americanas toma vulto nos anos 1920.
Notemos, entre outros, a instalação do National City Bank of New York em 1915; da American
Chemical Works em 1917; da Brazilian Tobacco Corporation em 1918, seguida no mesmo ano da
American International Steel Corporation; em 1920 instalam-se a American Coffee Corporation, a
Ford Motor Company, a Sydney Ross Company, a Betlehem Steel; a Atlantic Refining Company
instala-se em 1922, Firestone em 1923, Armour of Brazil em 1924 juntamente com a IBM. A
International Harvester em 1926, Goodrich em 1928, General Tyre em 1929 juntamente com a
Burroughs e a Pan American Airways. Notemos também, entre outras, a penetração da indústria do
cinema, com a instalação da Metro Goldwyn Mayer do Brasil em 1926 e da First National Pictures
of Brazil em 1929.
O movimento que se esboça é fundamental: "Trata-se da passagem gradual da
internacionalização do capital, que Lênin caracteriza, para a forma atual, que se caracteriza pela
internacionalização das próprias estruturas de produção.73
Nesta fase, ainda uma parte apenas do processo produtivo era transferida para o Brasil:
"A abertura destas empresas subsidiárias tinha por objetivo assegurar o nosso mercado a estes
produtos, ou aproveitar certas facilidades aduaneiras, ou a mão-de-obra mais barata de que dispunha
o nosso país, ou ainda beneficiar de vantagens de transportes, dividindo assim o processo de
produção em duas partes: uma, de fabricação de peças ou de componentes na matriz; outra, da
montagem aqui". 74
A importância relativa da parte da produção executada no país varia evidentemente
segundo o produto. "Na indústria farmacêutica, por exemplo, há casos em que a seção brasileira se
limita à embalagem de artigos acabados e de produtos da matriz. A General Motors e a Ford Motor
Company instalaram em São Paulo oficinas de montagem de veículos com peças importadas das
suas fábricas americanas; pouco a pouco, algumas destas peças começaram a ser fabricadas nestas
oficinas. Na fábrica de pneus, a borracha é totalmente elaborada no Brasil, mas as lonas são
importadas".75
A orientação deste setor da indústria do ponto de vista do mercado a atingir é bastante
clara: por um lado, trata-se de captar parte do mercado sofisticado que os ingleses forneciam com
bens importados, e a instalação de empresas de montagem no Brasil constituía uma forma vantajosa
de concorrência; por outro lado, é compreensivel que a internacionalização da estrutura de produção
72
Ferreira Lima, op. cit., p. 34.
73
Ver p. 54. Christian Palloix distingue as fases da acumulação mundial do capital segundo
dominam na troca internacional as diferentes fases do ciclo de reprodução do capital: M — M'
(etapa mercantil), A — A' (exportação de capital) e ...P... (internacionalização do capital
produtivo). Esta distinção abre uma nova perspectiva das relações econômicas internacionais,
que consiste em ultrapassar o estudo das trocas em proveito do estudo das relações de produção
que se formam a nível mundial. Com efeito, à medida que assistimos a uma internacionalização
do aparelho de produção, ligada à mobilidade relativamente mais fraca do fator trabalho, as
relações de troca tornam-se necessariamente relações de produção.
74
Heitor Ferreira Lima, op. cit., p. 343.
75
Caio Prado Júnior, História Econômica do Brasil, p. 272.
93
concerne às indústrias dinâmicas nas próprias economias dominantes, e não uma resposta às
necessidades a longo prazo da população brasileira.
"Os principais ramos de produção (das subsidiárias americanas)", escreve Caio Prado
Júnior, "são os automóveis, os produtos farmacêuticos e químicos, os aparelhos elétricos, a
alimentação (farinhas, conservas)". 76
Além disto, e o fato é particularmente claro na indústria alimentar, trata-se também de
produzir no Brasil para o mercado das próprias economias dominantes. Simonsen relata a
existência, nos anos trinta, de 14 grandes estabelecimentos frigoríficos "mantidos na sua maioria por
capitais americanos e ingleses".77
Estas empresas, escreve Caio Prado Júnior, "não visam o mercado brasileiro, mas
somente a utilização da matéria-prima abundante no país e a exportação da carne para a Europa.
Trata-se de Wilson, Armour, Swift, Continental, Anglo. Toda a indústria brasileira de carnes
congeladas (à qual se acrescentará logo a carne em conservas) sempre foi, e continua a ser,
controlada por filiais de grandes empresas estrangeiras, americanas em particular".78
A importância destas indústrias é grande: Simonsen, escrevendo pelo fim dos anos
trinta, lembra que "elas representam hoje, em função do valor de produção, a nossa segunda
atividade industrial", abatendo mais de 1,5 milhão de bovinos e quase 1 milhão de porcinos por ano.
Desta produção, cerca de metade ia para a exportação".79
É interessante constatar que, se os empresários brasileiros tinham dificuldades em
penetrar no mercado sofisticado, souberam fazê-lo na medida em que se ligavam às empresas
estrangeiras: "Ao grupo de indústrias subsidiárias das grandes empresas estrangeiras podem ser
assimiladas outras que, se bem que formadas por capitais brasileiros, e portanto nacionais, ou pelo
menos com uma parte apreciável de capital brasileiro, não fazem senão montar peças acabadas ou
semi-acabadas que importam. Concentram-se sobretudo no setor dos aparelhos elétricos (motores,
elevadores, rádios, toca-discos, etc.). Estas indústrias, apesar de nacionais, estão em geral
intimamente ligadas e mesmo subordinadas a organizações estrangeiras".80
Do ponto de vista da dinâmica própria deste subsetor, constituído por filiais de empresas
estrangeiras e pelas empresas nacionais que as acompanham, parece tratar-se essencialmente de uma
descentralização das estruturas de produção do capitalismo dominante, mais do que de uma
dinâmica de industrialização correspondente à maturidade interna da economia brasileira.
Utilizando técnicas já relativamente modernas, este núcleo constituirá a ponta de lança do desen-
volvimento do Brasil a partir dos anos 1950 e assumirá a hegemonia do processo a partir de 1964.
Do ponto de vista do efeito estrutural sobre a economia brasileira, é relativamente fácil
perceber o que nos traz este ramo da indústria. Com efeito, trata-se de uma indústria ligada ao
mercado sofisticado ou estrangeiro, que depende, não só em termos econômicos, mas também em
termos jurídicos, das matrizes situadas nas economias do centro (e algumas vezes, no caso do
Brasil, na Argentina, onde empresas estrangeiras se instalaram antes) e que se concentram, da
mesma forma que as empresas brasileiras ligadas ao mercado popular, essencialmente em São
Paulo, com exceção de algumas empresas do setor alimentar, situadas mais perto das fontes de
matérias-primas.
76
Caio Prado Júnior, op. cit., p. 272.
77
Roberto Simonsen, op. cit., p. 39.
78
Caio Prado Júnior, op. cit., p. 272.
79
Roberto Simonsen, op. cit., p. 39.
80
Caio Prado Júnior, op. cit., p. 273. A assimilação destas empresas nacionais “às grandes
empresas estrangeiras” constitui, evidentemente, uma simplificação. O problema reside
precisamente no fato de assistirmos à constituição de uma classe brasileira cujos interesses
coincidem com o capitalismo dominante, na medida em que a sua própria prosperidade depende
da manutenção do sistema. Isto não impede que se trate de uma classe que lutará duramente
para melhorar o seu lugar neste sistema e que saberá entoar as loas nacionalistas para este fim.
94
Relações:
81
Villela e Suzigan, op.,cit., p. 68 — Anexo Estatistico, quadro XVI.
95
importação de bens de capital para a indústria levavam ao reforço das exportações agrícolas, ou,
pelo menos, à sua manutenção acima de um certo mínimo. Por outro lado, constatamos que a parte
de produtos agrícolas importados no total do consumo agrícola reduziu-se, passando de 12,7% para
5,5%, para estabilizar-se praticamente, em particular por causa das importações de trigo.
Estes dados constituem uma simples aproximação. Com efeito, cumulam os efeitos do
desenvolvimento de um agricultura efetivamente destinada a aumentar o nível alimentar da
população e as matérias-primas exportadas para a região do Rio ou de São Paulo no quadro das
novas relações internas. É o caso da carne, cuja produção no Brasil é muito importante, que
constitui um bem alimentar e será vendida no mercado interno, mas também em parte exportada
como produto da indústria alimentar e não elevará senão marginalmente a produção de leite e de
derivados para o mercado popular.
A tendência geral é indiscutível e reflete-se na distribuição setorial da produção
agrícola:82
82
Villela e Suzigan, op. cit., p. 189, citando dados do Ministério da Agricultura.
96
83
Preston James. grande admirador dos embriões da "scientific agriculture" criada entre Rio e São
Paulo com a ajuda da Nelson Rockefeller American International Association for Economic and
Social Development, considera perfeitamente Iógica esta polarização: “Se a agricultura
(científica) deve dar lucro através da redução dos preços dos produtos agrícolas nos grandes
mercados urbanos, deve ser inicialmente desenvolvida nos lugares facilmente acessíveis a estes
mercados. Isto significa que a agricultura científica deve aparecer antes perto do Rio de Janeiro
e de São Paulo” (Preston James, "Brazilian Agriculture Development", in: Simon Kuznets, ed.,
Economic Growth: Brazil, India, Japan, Durham, Duke U. P., 1955).
84
Um estudo de Bertha K. Becker, The North of Espírito Santo as a Case Study for the
center-periphery model, Rio de Janeiro, 1971, constitui um bom exemplo de estudo dos efeitos de
drenagem e de polarização interna ainda relativamente pouco estudados no Brasil.
97
1907 1919
Estados
Valor da Valor da
produção Emprego produção Emprego
Distrito Federal 30,3 23,4 22,4 20,3
Rio de Janeiro 7,5 8,9 6,1 6,1
São Paulo 15,9 16,0 33,1 30,6
Rio Grande do Sul 13,5 10,1 11,8 9,0
Outros 32,8 41,6 26,6 34,0
Brasil 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%
85
Villela e Suzigan, op. cit., p. 171.
86
Por outro lado, Stein lembra que esta concentração industrial se dava na própria cidade, no Rio
de Janeiro e em São Paulo: “É significativo no crescimento da indústria nos primeiros anos do
século XX a concentração crescente da manufatura brasileira do algodão não só na área do Rio
e de São Paulo, mas num perímetro de agumas milhas das duas áreas " (Stein, op. cit., p. 103).
87
“O rápido acesso do Estado de São Paulo à preeminância industrial aparece claramente: a sua
parte era de 31% em 1920, 44% em 1939 e 50% em 1949" (G. Whyte, op. cit., p. 50),
88
Roberto Simonsen, Evolução Industrial do Brasil, p. 33.
89
Villela e Suzigan, op. cit., p. 390:“Oito Estados, ou seja, seis do Norte e Nordeste e dois do Sul,
realizavam entre 74 e 99 por cento do seu comércio interestadual por meio de cabotagem... As
trocas comerciais entre o centro econômico do país, eixo Rio-São Paulo, e as regiões do
Nordeste e do Sul faziam-se, na maioria, por meio de navios”. A tonelagem transportada passa
de 1 190 mil toneladas em média por ano durante o período de 1921-23 para 1 780 mil
toneladas por alto durante o período 1924-29, e 3124 mil toneladas durante os anos 1940-45.
Ver Villela e Suzigan, op. cit., apêndice, p. 389, dados do IBGE.
98
Cabotagem Importação de
Valor da produção matérias-primas
Anos industrial Matérias-primas Manufaturas estrangeiras
(valor) (valor) (toneladas)
1931 100 100 100 100
1932 95 99 117 94
1933 102 113 116 107
1934 117 137 185 104
1935 145 170 221 118
1936 166 201 247 125
1937 193 223 269 145
1938 206 235 252 136
90
“Não tenho dúvidas em afirmar", escreve Simonsen, "que as indústrias nacionais consumiram em
1938 mais de 5 bilhões de contos em matérias-primas e que, deste valor, mais de 4 bilhões foram
adquiridos nos nossos mercados nacionais”. Simonsen congratula-se com o ato de “já se operar
um tecido salutar de relações entre as diversas regiões do país" (Evolução Industrial, p. 33). É
de se notar que o economista é às vezes obscurecido pelo político e Simonsen, que era
representante da Federação dos Industriais de São Paulo e votará pela ilegalidade do Partido
Comunista, não hesita em atribuir, uma página mais adiante, a miséria das “grandes zonas
agrícolas brasileira” à sua “autarcia", à “facilidade da alimentação e clemância do clima”,
bem como das “restrições internacionais postas pelos países imperialistas ao comércio de
produtos tropicais” (Simonsen, op. cit., p. 34).
91
Milton Santos, Brazil: an Underdeveloped and Industrialized Country, Toronto, 1973, p.7.
92
Francisco Oliveira, A Economia Brasileira: Notas para Uma Revisão Teórica (policopiado),
Paris, 1974.
99
Movimento de 1930 —
Transformação da Superestrutura
e Reprodução das Relações de Produção
Pelo fim dos anos 1920 o desenvolvimento introvertido havia atingido um nível que já
não justificava a hegemonia dos interesses ligados ao café no seio do Estado.
No decorrer dos anos 1920 já se sentiam tensões. No entanto, foi a ruptura provocada
nos laços econômicos internacionais pela crise de 1929 que provocou uma modificação importante
da situação. O valor das exportações caiu de uma média de 88 200 mil libras durante os anos
1926-30 para 38 000 durante os anos 1931-35. As importações baixaram de 5 460 mil toneladas
para 3 830 mil toneladas durante os mesmos períodos. A saca de café baixou de 4,71 libras em
média em 1929 para 1,80 em 1933-34. O café exportado deu ao Brasil 74 milhões de libras em
1925, 21 em 1934 e 10 em 1940.94
A agricultura de exportação no seu conjunto entra pois em recessão relativamente à
95
indústria:
93
Conceição Tavares, The Growth and Decline of Import Substitution in Brazil, CEPAL, Nova
lorque, 1964, p. 11. “Esta sobreposição, inicialmente devida à abundância relativa de
economias externas na área situada entre Rio de Janeiro e São Paulo, transformou o Centro-Sul
numa área com alta concentração de atividades econômicas através de um processo cumulativo
que facilitou muito o crescimento da substituição de importações, apesar de levar a unia
agudização dos desequilíbrios regionais".
94
Heitor Ferreira Lima, op. cit., p. 353.
95
Villela e Suzigan, op. cit., p. 180.
100
Assim, uma crise conjuntural ia reforçar os grupos que exigiam uma readaptação das
superestruturas e da política econômica no seu conjunto, menos em relação à industrialização em
curso — fato muitas vezes exagerado — do que à interiorização econômica em geral, que exigia
uma diversificação e intensificação da ação do Estado, limitada até então a servir os interesses do
café.
Apoiado pelo movimento militar, Getúlio Vargas toma o poder em outubro de 1930 e,
face à crise existente, encarna a nova tendência.
96
"Na realidade, a queda do prestígio dos plantadores do café não deixou vazio, pois os grupos
industriais em desenvolvimento da área do Rio de Janeiro e de São Paulo, onde os proprietários
de empresas têxteis exerciam uma influência considerável ultrapassaram rapidamente os
membros da oligarquia agrícola em influência política. Foi uma revolução despercebida e não
anunciada, revolução que se preparava desde a Primeira Guerra Mundial (Stein, The Brazilian
Cotton Manufacture, p. 135).
97
Celso Furtado, op. cit., p. 249.
98
Octávio lanni, op. cit., p. 111.
99
É a expressão habitualmente utilizada; na realidade, não há revolução senão quando uma classe
substitui outra no poder, o que não é o caso.
101
— com a tendência, a longo prazo, que consiste na reprodução, a um nível mais elevado, da
estrutura econômica e das relações de produção existentes.
Parece mais lógico supor — e esta interpretação fica mais clara se levarmos em conta a
estrutura bipolar do mercado e do aparelho de produção industrial — que se trata de um período de
readaptação da classe dirigente, no seu conjunto, às novas exigências do capitalismo mundial, que
implica atividades industriais. Assim, é na modificação da relação de dependência deslocada para
um nível técnico mais elevado e conseqüentemente mais interiorizado — noutros termos, na
adaptação das relações de dependência ao nível mundial das forças produtivas — que devemos
buscar compreender a nova orientação da classe dirigente, e não na simples acumulação de dados
sobre a progressão da indústria.
100
Ver William Tyler, “Manufactured exports promotion in semi-industrialized economy: the
brazilian case ", Journal of Development Studies, Londres, 1973.
101
A importância da transferência de rendimentos do Nordeste para o eixo Industrial do Sul foi
mostrada por Celso Furtado no documento que levou à constituição da SUDENE, organismo
encarregado do desenvolvimento do Nordeste: “... O Nordeste não utilizou a totalidade de
divisas criadas pelas suas exportações. Cerca de 40% dos ganhos em trocas com o exterior
eram transferidos para outras regiões do país” (“A policy for the Economic Development of the
North-East — 1959", Conselho do Desenvolvimento do Nordeste, in: Werner Baer, Regional
Inequality and Economic Development in Brazil, Yale University, 1964, p. 278).
102
transferência de rendimentos para as zonas de produção do Rio e de São Paulo, onde estas empresas
se situam; por outro lado, como estas empresas dependem ainda mais do que as "nacionais" da
importação (afora as máquinas, importam ainda uma parte das peças, se bem que em quantidade
decrescente), a extroversão econômica da agricultura apenas pode ser-lhe favorável, já que reforça a
capacidade de importação do país; enfim, do ponto de vista da realização, estando estas empresas
ligadas ao mercado de luxo, a estrutura existente que favorece a concentração da renda, tanto em
favor das camadas mais ricas como da região mais desenvolvida, constitui um alargamento
qualitativo do mercado, ou seja, uma transferência da capacidade de compra das esferas de produção
das empresas "nacionais" para a sua própria esfera.102
Quanto às empresas agroindustriais do interior do país, devemos ter em conta o fato de
que, se do ponto de vista social e macroeconômico a manutenção da estrutura e da orientação
econômica destas regiões é desastrosa, do ponto de vista dos grandes proprietários a polarização
social implicada por esta estrutura constitui um elemento positivo; o Nordeste, por exemplo, pode
temer a concorrência do açúcar e do algodão produzidos na região de São Paulo, mas o mercado
interno que se abre para eles pela polarização das atividades no país constitui uma compensação.
Por outro lado, trata-se de empresas em que a composição orgânica do capital está em
permanente elevação e a possibilidade de equiparar-se no Sul com custos inferiores aos dos
produtos importados não pode ser mal recebida.
No que concerne aos produtores do café, uma boa parte dos capitais e dos empresários
industriais provinham deste setor e vimos o Estado tomar medidas importantes de proteção à
indústria em pleno período de hegemonia dos interesses do café. Esta indústria constituía uma
atividade complementar importante para muitos produtores rurais afetados pelas variações
conjunturais no mercado mundial do café e fornecia-lhes também bens manufaturados importantes
para as suas atividades. É assim, por exemplo, que os sacos destinados à embalagem eram
produzidos por esta indústria.
Enfim, cumpre lembrar que se a industrialização, sob a pressão dos interesses
imperialistas e os limites constituídos pela herança colonial, tomava uma direção determinada, o seu
desenvolvimento dentro desta direção não era entravado pelos interesses do capitalismo dominante.
Estes, ao manter a extroversão da economia (os Estados Unidos, por exemplo, continuam a
interessar-se pelos produtos coloniais que o Brasil pode produzir, apesar de estes produtos deixarem
de constituir o elemento central da relação) orientam-se gradualmente para os investimentos
industriais diretos e terão em conseqüência necessidade de reforçar a infra-estrutura industrial local,
favorecendo assim indiretamente a indústria "nacional" que, conforme vimos, se orienta para um
outro mercado e não Ihe fez concorrência.
O setor estatal, cuja importância econômica já mencionamos, e que, em conseqüência da
extrema concentração da classe dirigente brasileira, constitui um peso importante como estrutura
organizada, continua a desenvolver as suas atividades de infra-estrutura que são, no entanto,
reorientadas parcialmente em função das necessidades tanto da agricultura, que se moderniza, como
dos dois subsetores da indústria, que têm interesse em importar o mínimo possível. É assim que
uma iniciativa como a empresa siderúrgica de Volta Redonda, apresentada na época como um
símbolo da emancipação nacional, foi construída pelo Estado com a ajuda de capitais americanos.103
102
Conceição Tavares dá uma excelente descrição desta alternativa de crescimento “horizontal” ou
“vertical” do mercado interno no caso da industrialização do Brasil (Conceição Tavares, The
Growth and Decline of Import Substitudon in Brazil, CEPAL, Nova Iorque, 1964).
103
Esse tipo de contribuição do capitalismo dominante — e não se trata de um caso isolado, já que
em 1920 capitais europeus tinham constituído a Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira —
parece-nos melhor explicada no quadro de deslocamento das bases técnicas de dependência,
que implicam um tipo de industralização, do que como resultado das pressões nacionalistas, que
encontravam pouco apoio no país, no seio das classes dirigentes, a não ser o apoio demagógico.
Vimos acima que numa fase em que esta iniciativa de constituir uma base siderúrgica teria tido
103
Esta breve vista geral dos interesses que se defrontam no seio da classe dirigente
brasileira, que nos deixa como impressão fundamental a solidariedade dos diversos grupos em torno
do sistema vigente, fornece-nos uma das chaves da compreensão do subdesenvolvimento atual: é na
medida em que a agricultura extrovertida já era capitalista e contribuía para a acumulação do capital
no centro, e não feudal ou "autárquica", que as suas funções puderam ser reorientadas para as
necessidades do pólo dinâmico interno sem que a própria estrutura fosse posta em questão.104
Por outro lado, vemos esboçar-se uma contradição que opõe o setor da indústria ligado
ao mercado popular, que a longo prazo não pode desenvolver-se sem uma redistribuição dos
rendimentos, e o setor industrial ligado ao mercado sofisticado, cujos interesses vão no sentido de
uma extensão, dentro do país, de um perfil de consumo análogo ao perfil de consumo dos países
capitalistas dominantes, extensão que supõe, dada a pobreza geral da população brasileira, a
concentração de rendimentos e não a sua redistribuição. "O corte entre indústria nacional e indústria
estrangeira", escreve com razão Cardoso, "terá menos importância, no que concerne às repercussões
sociais e políticas que acarreta, do que o corte entre a indústria destinada ao consumo amplo e a
indústria de consumo restrito''.105
56 e para 72 655 mil sacas em 1959-60.108 No decorrer deste período, o consumo interno do café
permanece bastante estável, em torno das 8 000 mil sacas por ano.
Por outro lado, o Nordeste praticamente não diversificou a sua produção: o açúcar e o
algodão, complementados pela pecuária extensiva, representam a quase totalidade da agricultura
comercializada. No entanto, seria errado concluir, como é freqüente, qua a extrema miséria da
população do Nordeste significa estagnação do aparelho produtivo. No que concerne à zona do
açúcar, em particular, as técnicas progrediram rapidamente, se bem que menos que no Centro-Sul,
onde a produção do açúcar faz concorrência à do Nordeste.
Em 1910 havia já 130 usinas de açúcar e 166 em 1920, em substituição aos antigos
engenhos. Este processo, que concentra a propriedade fundiária e a transformação do açúcar em
gigantescas unidades, continua até nosso dias: “Com a usina”, escreve Manuel Correia de Andrade,
“o processo de divisão das propriedades ficou não só bloqueado, mas assistimos à formação de um
processo de concentração fundiária, a ponto de haver hoje usinas, como a de Catende, da Central
Barreiros ou de Santa Terezinha, que controlam zonas imensas, ultrapassando 35 000 hectares cada,
reunindo sob a sua dominação mais de cinquenta antigos bangüês (engenhos). Vinte ou trinta
engenhos na mão de uma só usina é um fato comum em Pernambuco”
O processo foi decerto parcialmente travado pela queda dos preços nos anos vinte e
trinta, mas retomou vigor com a Segunda Guerra Mundial: "Com o novo fluxo de desenvolvimento
provocado pela Guerra Mundial de 1939-45, (as usinas) não aumentaram consideravelmente a sua
própria produção mas, com a utilização do caminhão e a melhoria das estradas, começaram a
aumentar as suas zonas de influência".109
Os efeitos sobre as relações de produção são relativamente fáceis de prever. A
concentração da propriedade no Norte e no Nordeste leva em 1950 a uma situação em que 2% dos
estabelecimentos agrícolas controlam 75% das terras e 3% dos estabelecimentos controlam 54% das
terras, respectivamente.110 O desenvolvimento das forças produtivas e a concentração da
propriedade, travando por um lado o aparecimento de uma classe camponesa, reforçam por outro o
fenômeno de proletarização do mundo rural, que demonstra Correia de Andrade e que atinge em
1950, para todo o Brasil, entre 40 e 60 por cento da mão-de-obra agrícola, segundo os critérios
utilizados.111
No entanto, este movimento de proletarização não tende — e trata-se aqui de uma
particularidade importante — a constituir as bases de um desenvolvimento capitalista autodinâmico
regional. Com efeito, na medida em que a sua produção é escoada no quadro de um "comércio
108
Ivan Ribeiro, The Relations Between Agriculture and the National Economy in Brazil, Varsóvia,
1959, tese de doutoramento, SGPIS.
109
Manuel Correia de Andrade, A Terra e o Homem no Nordeste, ed. Brasiliense, 3ª ed., 1973, pp.
111 e seguintes. A obra constitui uma das raras boas descrições das relações de produção na
agricultura do Nordeste. Para dar ao leitor uma idéia da ordem desta concentração, lembrernos
que a Central Barreiros produz em 1973 cerca de 1 200 mil sacas de 60 quilos (ou seja, cerca de
72 000 toneladas de açúcar), enguanto as “pequenas” usinas, que produzem cerca de 100 000
sacas por ano, vão sendo absorvidas pelas maiores, e estas pelos grandes grupos econômicos:
“O processo de concentração atinge um tal nível, que não só as usinas maiores absorvem as
mais pequenas, mas também as firmas proprietárias de grandes usinas adquirem outras,
organizando grupos econômicos que controlam não uma, mas várias usinas" (op. cit., p. 115).
110
CIDA — Comitê lnteramericano de Desenvolvimento Agrícola, Posse e Uso da Terra e
Desenvolvimento Sócio-econômico do Setor Agrícola, Nova lorque, 1966, p. 96. Resultado de
um grande esforço de pesquisa local durante os anos 1962-63, esta obra constitui um
documento-base sobre a organização sócio-econômica da agricultura brasileira.
111
Ibid., p 142.
105
112
Samir Amin, L'accumulation à l'échelle mondiale.
113
Rui Mauro Marini, Sous-développement et révolution en Amérique Latine, Maspéro, Paris,
1972, pp. 11 e 19.
114
Ibidem.
115
0 erro que consiste em isolar alguns elementos, fazendo abstração da dinâmica geral à qual
pertencem, pode ser invertido e poderíamos concluir que formações sociais da antiguidade em
que dominava o trabalho assalariado e a economia monetária constituiriam já formações
sociais capitalistas. No mesmo erro caem os que “privilegiam” as relações de produção ou as
relações de circulação, sem se interrogar sobre a orientação geral do ciclo completo de
reprodução do capital que as diversas fases constituem.
106
culturas permanentes, como a banana ou o café, são absolutamente proibidas, a fim de o morador
não poder reclamar uma reparação em caso de mudança".116
Este sistema, como vemos, permite ao proprietário libertar-se dos custos da reprodução
da força de trabalho, da mesma maneira que, no tempo da escravidão, permitia-se ao escravo
trabalhar para a sua alimentação no domingo, ou como em Minas Gerais, onde se permitia ao
escravo garimpeiro guardar o que encontrava durante as últimas horas do dia.
Esta forma de divisão especial entre o trabalho necessário e o sobretrabalho varia com
as regiões e estas variações provocaram um emaranhamento de descrições complexas das relações
de produção, que perdem de vista a simplicidade básica e a unicidade que representam, dentro de
um mesmo ciclo de reprodução do capital.117
Segundo os períodos do ano ou as variações dos preços do produto principal, o tempo
afetado a cada uma das atividades — a produção comercial e a produção no lote individual de bens
de subsistência individuais — pode variar, dando a impressão de uma proletarização mais ou menos
avançada, quando se trata de uma variação no grau de exploração. "À medida que o processo das
usinas evolui", escreve Correia de Andrade, "a superfície cultivada da cana-de-açúcar aumenta e os
proprietários não só limitam os lotes dos moradores, retirando-lhes as terras mais favoráveis, mas
exigem deles cinco dias ou seis nas suas plantações de cana, o que impede os trabalhadores de
tomar conta das suas próprias culturas domésticas. Assim, desenvolvesse gradualmente o processo
de proletarização da massa camponesa".118
A divisão entre o tempo de trabalho "necessário" e o sobretrabalho pode fazer-se pelo
deslocamento do trabalhador, dando lugar ao trabalho temporário e à constituição de camadas de
trabalhadores de fora, que vivem nas vilas da região, onde constituem frequentemente a maior parte
da população, e fornecem, segundo as épocas e as regiões, um número mais ou menos grande de
jornadas de trabalho ao latifúndio.
A residência do trabalhador agrícola nas piores terras e mais afastadas do latifúndio, ou
na região deste mas em terras que são de sua propriedade (minifúndios), não constitui uma mudança
importante das relações de produção, visto que o trabalhador continuará a prover essencialmente da
mesma maneira às suas necessidades de subsistência.
Com as variações da relação entre a oferta de trabalho e as necessidades das empresas
agrícolas em mão-de-obra, este fenômeno pode desdobrar-se. Assim, durante os períodos de maior
necessidade o latifúndio exerce a sua atração sobre a força de trabalho das regiões vizinhas. Trata-se
dos "corumbas" ou "catingueiros", que residem nas zonas mais áridas do interior e se deslocam para
as zonas da cana durante o corte e voltam para as suas terras com o tempo das chuvas. Estes
116
Manuel Correia de Andrade, op. cit., p.123.
117
É assim que lanni distingue os trabalhadores rurais que “são incorporados, sob formas diversas,
na economia de mercado, ou seja, numa economia já capitalista (!) em certas zonas ou em
constituição como tais noutras”, enquanto que, conforme mostramos noutro trabalbo
(Mecanismes de la marginalisation au Brésil, Varsóvia, SGPIS, 1974), é a dinâmica particular
do capitalismo dependente no Brasil que mantém as zonas “não-incorporadas” na economia de
mercado. No grupo “incorporado” lanni distingue por sua vez cinco categorias de
trabalhadores. Esta análise enumerativa é freqüente, mas pouco explicativa. Ver lanni,
Industrialização e Desenvolvimento Social no Brasil, Rio de Janeiro, ed. Civilização Brasileira.
1963, p. 144.
118
Manuel Correia de Andrade, op. cit., p. 123. O que Correia de Andrade não diz é que, se uma
conjuntura de preços desfavorável no mercado mundial provoca o movimento inverso,
poder-se-á então falar em “desproletarização”? O critério salarial parece bem insuficiente. O
que é necessário salientar é que tanto a produção comercial como a produção individual
constituem partes integrantes de um mesmo sistema. Veja Anexo I.
107
trabalhadores alugam-se ainda para trabalhar a centenas de quilômetros e o seu transporte constitui
hoje uma atividade econômica importante.119
Estes trabalhadores das regiões longínquas moram evidentemente nas terras mais
isoladas e mais áridas, no agreste ou no sertão, onde praticam o que classicamente se chama na
América Latina agricultura de "subsistência". Trata-se de uma agricultura alimentar, que fica ao
nível das necessidades pessoais, em geral de mandioca, arroz, milho ou feijão.
Mas esta cultura não dá lugar a um excedente, ou dá lugar a um excedente muito fraco:
"Em princípio a oferta de terra podia ser considerada como ilimitada, e, a partir de uma certa
distância dos centros de comercialização, a terra também podia ser considerada como um bem livre;
no entanto, o homem que trabalhava a terra, onde esta constituía um bem livre, estava por definição
na incapacidade de criar um excedente comercializável, visto que não beneficiava de qualquer
economia externa''.120
Assim, este "camponês" via-se forçado, para realizar as suas compras indispensáveis,
como o sal, alguns medicamentos ou outros, a vender temporariamente a sua força de trabalho nas
grandes empresas rurais ou a submeter-se às diferentes formas de arrendamento a meias. O custo de
reprodução desta força de trabalho é, pois, particularmente baixo e, em contrapartida, a sua
capacidade de criar um fluxo de rendimentos capaz de provocar atividades induzidas permanece
mínima.121
Reencontramos assim, na lógica da expansão do latifúndio e da monopolização da terra,
a constituição da micropropriedade. Assim como o "camponês" do sertão ou do agreste, isolado
demais para se tornar camponês ou agricultor no sentido efetivo de criar um excedente e dar lugar,
pelos seus investimentos, a uma dinâmica de aumento da produtividade, o proprietário de um
"minifúndio" dispõe de uma extensão de terra pequena demais para nela criar um excedente.
Deverá, pois, ele também recorrer a atividades complementares e constituirá uma reserva de força
de trabalho temporária para a empresa rural, sem que os rendimentos monetários assim obtidos
correspondam ao mínimo necessário para o manter.
O laço entre o minifúndio e o latifúndio é pois estreito. É o monopólio sobre a
propriedade da terra que obriga o trabalhador a limitar-se a uma propriedade que não pode ocupar o
ano inteiro. É a necessidade da grande agricultura comercial de dispor de mão-de-obra temporária
que justifica a reprodução do sistema aos olhos do latifundiário, que recorre ao sistema de
minifúndio como uma das múltiplas formas de reter a mão-de-obra sem ter que financiar a sua
subsistência. Enfim, é a necessidade da agricultura de exportação em vista da acumulação no centro
ou no pólo dominante do país que confere ao conjunto o seu sentido econômico e reproduz o
sistema global.
"O minifúndio", escreve com razão Francisco Julião, "faz parte da reserva do grande
exército de explorados do campo. Podemos enunciar, se não como lei, pelo menos como regra, que
onde há latifúndio há minifúndio, as duas faces de uma só moeda, e quanto mais o latifúndio se
concentra, mais o minifúndio se multiplica por pulverização"122
119
Este transporte é efetuado em caminhões chamados “pau-de-arara”, pelos sofrimentos que
impõem aos trabalhadores neles “pendurados”. Daí o nome “pau-de-arara” dado ao
instrumento de tortura utilizado pelo exército e pela polícia.
120
Celso Furtado, Subdesenvolvimento e Estagnação na América Latina, Civilização Brasileira, Rio
de Janeiro, 1966, p. 58.
121
A relação entre as relações de propriedade — monopólio da terra — e as relações de exploração
— superexploração e separação geográfica entre o trabalho necessário e o sobretrabalho — é
pois estreita. Veja o Anexo I para uma descrição destas relações.
122
Francisco Julião, Cambão: la cara oculta de Brasil, Siglo XXI, México, 1968, p. 91. Francisco
Julião foi o criador das Ligas Camponesas no Nordeste. O laço entre o minifúndio e o latifúndio
108
Assim, uma série de traços das relações de produção do campo brasileiro jogados
habitualmente nas costas de outros modos de produção123 encontram um lugar perfeitamente lógico
no desenvolvimento capitalista do país, sob a sua forma dependente.
Reencontramos mecanismos análogos da superexploração e da formação de uma
superpopulação relativa, se bem que sob uma forma um pouco diferente, nas zonas de pecuária
extensiva, que constitui uma das principais atividades agrícolas do Brasil, ocupando todo o interior
do país do Norte ao Sul.
Aqui as unidades de produção constituem gigantescas propriedades que praticam a
criação extensiva. A mão-de-obra necessária não constitui mais que uma minoria, já que o gado é
simplesmente deixado solto nas grandes extensões. No entanto, um input importante de trabalho
inicial é necessário para criar os pastos. Considerando a existência de uma reserva bastante grande
de mão-de-obra sem emprego que circula em busca de trabalho, a forma dominante adotada para
constituir os pastos consiste em permitir aos trabalhadores realizar duas colheitas sobre queimadas,
o que os obriga a limpar a terra. As duas colheitas pertencem aos trabalhadores, que devem antes de
deixar a terra semeá-la com capim, deixando o pasto pronto.
O trabalhador retira a sua parte de bens alimentares, sem criar evidentemente excedente
econômico, dadas as condições temporárias deste trabalho, enquanto a preparação do pasto constitui
um sobretrabalho fornecido ao proprietário. Ora, trata-se de fenômenos contemporâneos,
desenvolvidos por fazendas capitalistas freqüentemente controladas por sociedades anônimas,
apesar da análise das relações de produção não permitir o aparecimento de moeda nem de salário. O
produto é exportado para São Paulo ou para os matadouros do Sul, onde será parcialmente
industrializado e exportado e parcialmente consumido no local.
Encontramos aqui, como em outros setores, a extrema exploração e a formação de um
universo bipolar entre os empresários rurais e os trabalhadores; no entanto, a criação é caracterizada
pela utilização de um número restrito de trabalhadores permanentes e o efeito de expulsão de
mão-de-obra é relativamente mais marcado do que nas zonas de cultura comercial.
Analisando este processo no Estado de Sergipe, Correia de Andrade escreve: "O que
aconteceu em Sergipe, o recuo da cana-de-açúcar diante do gado, tem conseqüências sociais das
mais sérias, pois a pecuária, exigindo menos braços do que a empresa agroindustrial, provoca um
grande desemprego no meio rural. O usineiro que se torna criador tem necessidade de menos braços
e obriga uma grande parte dos moradores a deixar as suas terras. Estes afluem então para as
pequenas aldeias vizinhas, Maruim, Divina Pastora, Riachelo, etc., para as vilas e aglomerações,
bem como para Aracaju (capital do Estado), provocando um excedente de população que estas
cidades, na falta de indústria, não podem empregar. E a população, sem perspectiva de um futuro
melhor, emigra para a Bahia — um grande número de sertanejos vive em Salvador — ou para o
Brasil do Sudeste — Rio de Janeiro e São Paulo — ou ainda para o Norte do Paraná. Assim, o gado
resolve a situação econômica de algumas dezenas de proprietários, levando ao desemprego, à
miséria e à emigração uma grande porcentagem da população sergipana". 124
é também evidenciado por Alberto Passos Guimarães, que cita de frente das características
gerais da agricultura brasileira: “a) a extrema concentração latifundiária... b) o extremo
aumento dos minifúndios nas piores terras, meio pelo qual os latifundiários fixam, nas suas
regiões, as reservas de mão-de-obra para as suas necessidades eventuais” (Alberto Passos
Guimarães, Quatro Séculos de Latifúndio, ed. Fulgor, São Paulo, 1964).
123
É o caso, em particular, de Passos Guimarães, cuja obra Quatro Seculos de Latifúndio tende a
demonstrar que se trata de uma agricultura feudal. Encontrando inevitavelmente a cada passo
mecanismos capitalistas, Passos Guimarães conclui pela existência de urna dupla dinâmica,
uma feudal e outra capitalista, gue se interpenetram para constituir uma “fase de transição”. A
obra encontra uma excelente refutação em A Revolução Brasileira, de Caio Prado Júnior, que
constitui no entanto um esboço a ser complementado por uma análise mais detalhada.
124
Manuel Correia de Andrade, op. cit.. p. 118.
109
125
CIDA, Posse e Uso da Terra e Desenvolvimento Sócio-Econômico do Setor Agrícola, OEA et al.,
1966, p. 96.
126
CIDA, op. cit., pp. 94-95.
110
lado, uma multidão de pequenas propriedades onde se concentra uma população agrícola subempre-
gada ou sem emprego, bem como as formas selvagens de propriedade, o nomadismo rural, o
trabalho temporário, certas formas de arrendamento a meias, a agricultura nas zonas isoladas,
combinadas com o trabalho no latifúndio. Não se trata de dois modos de produção e sim de duas
classes em luta.
Retomemos a imagem no seu conjunto. Em 1950 havia no Brasil cerca de 12,6 milhões
de trabalhadores e proprietários rurais, distribuídos da maneira que se apresenta no quadro seguinte:
127
ClDA, op.cit., p.142.
111
128
Cf. Caio Prado Júnior, A Revolução Brasileira, ed. Brasiliense, 1966, p. 56. Francisco Julião
apóia-se nesta passagem para a crítica que faz a Caio Prado Júnior, mas sem abordar a solução
do problema que coloca. Ver Francisco Julião, op. cit., p 80.
129
Se dermos um passo à frente para considerar o problema do ponto de vista da luta de classes,
compreende-se que na medida em que as relacões de produção às quais o trabalhador rural se
112
O Desequilíbrio Herdado
encontra submetido são determinadas pela sua posição no ciclo de reprodução do capital numa
economia dependente, a sua libertação passa necessariamente por um enfrentamento com o
capitalismo dependente. Isto significa, por um lado, que estas relações de produção, que
constituem apenas uma parte do ciclo de reprodução do capital não podem ser atacadas sem
que o modelo de reprodução do capital no seu conjunto seja atacado, por outro lado, sendo este
capitalismo dependente, a ruptura das estruturas capitalistas que pesam sobre o proletário rural
não pode ter lugar sem se romper com a divisão internacional capitalista do trabalho da qual
este capitalismo faz parte.
130
CIDA, op. cit., p. 146. William Nicholls escreve, por outro lado: “As cifras não deixam dúvidas
que a estrutura agrária no Brasil reflete uma concentração relativamente elevada da
propriedade da terra, da riqueza e do rendimento. O que se esperava menos, no entanto, era que
estas cifras indicassem que a distribuição do rendimento agrícola fosse mais concentrada na
agricultura moderna do que na agricultura relativamente primitiva do Nordeste” (“Economic
Development and Cultural Change”, Abril, 1971, in: Celso Furtado, Análise do Modelo
Brasileiro, ed. Civilização Brasileira, 1972, p. 119)
113
indústria, voltam-se para a faixa superior do mercado, onde a superioridade em termos técnicos e
financeiros torna a concorrência do setor "nacional" pouco viável.
Não entraremos aqui na análise da evolução dos investimentos diretos estrangeiros — o
setor "moderno" — que orienta o desenvolvimento atual. Mas é necessário notar que o modelo de
acumulação adotado por este setor possui uma coerência interna indiscutível: no plano do
financiamento, preconiza o reforço da taxa de exploração e a reprodução de relações existentes no
setor agrícola, o que favorece a acumulação e permite-lhe financiar a importação de máquinas e de
técnicas do centro; no plano da realização, orienta-se para a produção para o mercado rico, cujo
poder de compra se encontra reforçado pela concentração da renda, enquanto o mercado popular se
reduz.
Ao contrário, a indústria tradicional, cujo traço significativo é a sua orientação para o
mercado popular, vê-se presa numa contradição entre as suas necessidades de financiamento e de
importação de bens de produção — que exigem a reprodução da orientação extrovertida da
agricultura — e o seu modelo de realização — que exige a redistribuição dos rendimentos e o
alargamento " horizontal " do mercado.
No decorrer dos anos trinta e quarenta, no entanto, este setor ver-se-á particularmente
favorecido pelas perturbações do mercado mundial e do fluxo de investimentos diretos para a
América Latina, afetados pela Grande Crise e pela II Guerra Mundial.
A expansão da produção industrial brasileira em plena crise mundial não é
surpreendente: se a extensão do parque de máquinas se encontra decerto tocada pela queda da
capacidade de importação,131 a intensidade da sua utilização e a formação de pequenas empresas
capazes de equipar-se localmente reforçou-se. estimulada pela pressão da demanda preexistente
local.132
O Brasil, que contava 13 569 empresas empregando 293 673 pessoas em 1920, possui
em 1940 cerca de três vezes mais, ou seja, 49 418 empresas e 781 185 operários,133 e atinge em
1950 a cifra de 92 350 empresas e 1 279 184 operários.134
131
“Do ponto de vista da capacidade de importação, as restrições que afetaram o Brasil durante a
depressão e a Segunda Guerra Mundial foram semelhantes às de outros países
latino-americanos e representaram uma redução de cerca de 50 por cento na quantidade de
importações” (Maria da Conceição Tavares, "The Growth and Decline of Import Substitution in
Brazil", CEPAL, Economic Bulletin for Latin America, United Nations, Nova lorque, 1964, p.
12).
132
“O crescimento da produção industrial foi obtido forçando-se ao máximo a utilização de
equipamento e instalações existentes, o que ocasionou o fato de certos ramos da indústria terem
o seu equipamento completamente usado e envelhecido no fim da guerra” (Villela e Suzigan, op.
cit., p. 230).
133
Lembremos, no entanto, que 56,4 por cento destes estabelecimentos “industriais” contavam
menos de cinco operários e assemelhavam-se mais ao artesanato (Villela e Suzigan, op. cit., p.
210).
134
Heitor Ferreira Lima, op. cit., pp. 331, 359 e 376
135
Villela e Suzigan, op.cit., p. 212.
114
O processo reforça-se com a guerra. Claudio Haddad calcula uma taxa de progressão do
crescimento industrial de 9,18 por cento para o período situado entre 1940-42 e 1945-47, contra
7,20 por cento por ano no período situado entre 1930-32 e 1940-42.136
Se o ritmo de desenvolvimento é de invejar, a questão que se coloca, lembremo-lo, é de
saber por que esta indústria não pode criar uma dinâmica capaz de sustentar o seu próprio
desenvolvimento. Vimos um aspecto deste problema: o setor agrário brasileiro sendo capitalista, as
relações de produção predominantes no campo não foram postas em questão. Trata-se agora de ver
os limites da capacidade de dinamização desta indústria a partir do fluxo de rendimentos e de
atividades induzidas que resultam da sua própria atividade. Por outras palavras, a necessidade de
manter a herança já foi vista, trata-se agora de ver os limites na dinâmica industrial dentro dos
quadros traçados por esta herança.
A nossa industrialização, como o diz bem Ferreira Lima, não seguiu o modelo clássico,
ou seja, de uma passagem gradual da economia artesanal para o sistema capitalista.137 Pelo
contrário, surge como movimento que se sobrepõe a uma infra-estrutura já constituída, com uma
tecnologia e maquinaria predeterminadas não pelo nível de desenvolvimento industrial local, mas
pelo das economias dominantes. Assim, enquanto nas economies do centro assistimos a uma
maturação progressiva, com passagem do artesanato para a pequena indústria e indústria de
produção de massa, o Brasil produzia desde o início com máquinas importadas das economias
dominantes, sem ter por base o amadurecimento tecnológico nem o desenvolvimento introvertido
local e regional correspondentes.138
Do ponto de vista das economias subdesenvolvidas, este desenvolvimento industrial
parece, pois, invertido: o topo da pirâmide é constituído antes da base, pelo próprio fato de esta base
se encontrar nas economias dominantes.
Hirschman vê neste fato uma das razões da falta de efeito dinamizador desta forma de
industrialização: "O fato de este processo se dar por seqüências ou estágios é responsável não
somente pela facilidade com que pode ser constituído, mas também pela falta de treino em inovação
136
Claudio Haddad, “Crescimento do Produto Real Brasileiro, 1900-1947”, Revista Brasileira de
Economia, jan. /mar., 1975.
137
Heitor Ferreira Lima, op. cit., p. 409.
138
Benetti exprime-o pelo conceito de “salto tecnológico”. “A mudança da base técnica da
produção no sistema produtivo dependente realiza-se através da incorporação na acumulação
de técnicas produzidas nos países desenvolvidos”. Assim, a economia subdesenvolvida vê-se
“obrigada a absorver técnicas criadas noutro lugar, em função de outros imperativos que os
ditados pelas exigências e condições particulares do seu crescimento” (Carlo Benetti,
L'accumulation dans les pays capitalistes sous-développés, Paris, Anthropos, 1974, pp. 172 e
174).
115
tecnológica e pelas resistências tanto a investimentos induzidos como a exportação que estão a ser
encontrados”.139
Assim, a existência de uma industrialização mais avançada reduz a tendência local a
desenvolver investimentos que constituíssem uma base correspondente ao grau de industrialização
atingido. Isto não quer dizer que a base interna não se constitui, mas que ela se constitui com atraso
— de certa forma, trata-se de um processo de industrialização que procede de cima para baixo —,
que provoca a manutenção da decalagem permanente entre o desenvolvimento industrial das
economias do centro e o do Brasil.140
Para além da questão mal posta sobre o caráter industrializante ou não do imperialismo,
vemos pois que este último contribui, por um lado, para manter dentro do país uma estrutura que
não favorece nem a integração econômica nem a passagem para uma industrialização autodinâmica,
mas que fornece por outro lado os meios desta industrialização. A forma particular, desequilibrada e
dependente desta estrutura industrial explica-se por esta dupla determinação.
O caráter "invertido" do processo de industrialização brasileiro — a empresa instalada
resulta da importação de equipamento moderno e não de um amadurecimento de pequenas empresas
— explica em grande parte a extrema concentração industrial e o seu complemento, a
multiplicidade de empresas de dimensões particularmente reduzidas (menos de cinco operários)
provisoriamente sobrevivendo nos bolsões de demanda não-ocupados pela indústria concentrada.
"No que concerne à dimensão dos estabelecimentos", escrevem Villela e Suzigan, "o
censo de 1940 revela que a indústria era ainda muito atomizada, apesar de se constatar a existência
de um número razoável de grandes estabelecimentos. Assim, 85 estabelecimentos industriais, ou
seja, 0,2 por cento do total, empregavam 159 627 pessoas, o que representava nada menos de 16,6
por cento do total do emprego industrial. A maior parte dos estabelecimentos que existiam (56,4 por
cento) empregavam apenas 7,9 por cento do emprego industrial, o que dá uma média de 2,8 pessoas
por estabelecimento".
A distribuição da potência instalada dá também uma idéia do grau de concentração
industrial: "Se considerarmos apenas os estabelecimentos que dispõem de mais de 1 000 cv de
potência instalada, 192 estabelecimentos (0,8 por cento do total dos estabelecimentos recenseados)
possuíam quase metade do total da potência instalada. Por outro lado, 8 670 estabelecimentos (37,7
por cento dos estabelecimentos que dispõem de força motriz) tinham apenas 1,8 por cento do total
da potência instalada. Notemos ainda que quase metade dos estabelecimentos recenseados não
possuía ou não declarou possuir força motriz instalada".141
Em 1949, a mão-de-obra industrial e a produção eram assim distribuídas:142
139
Albert O. Hirschman, The Political Economy of Import Substituting Industrialization in Latin
America, pp. 31-32.
140
É assim que a indústria siderúrgica, esmagada no início do século XIX, ver-se-á estimulada e
até financiada pelas mesmas economias dominantes no segundo quarto do século XX; a rede de
transportes introvertida encontra-se bloqueada até a Primeira Guerra Mundial em proveito de
eixos de escoamento, mas será estimulada a partir dos anos 1920; a possibilidade de produzir
bens de produção no país torna-se impossível pela concorrência das máquinas inglesas no início
do sécu/o XX, mas será estimulada pelas empresas multinacionais a partir dos anos 1950; o
desenvolvimento tecnológico, que se torna o eixo estratégico de desenvolvimento capitalista no
centro, encontra-se hoje adiado no Brasil. No entanto, a tendência inversa caracteriza a
estrutura das importações, que correspondem em geral ao eixo de desenvolvimento dinâmico
das economias do centro.
141
Villela e Suzigan, op.cit., p. 217.
142
Theotonio dos Santos, El nuevo carácter de la dependencia — La crisis del desarollismo y la
nueva dependencia, Buenos Aires, Amorrortu ed., 1969, p. 33, citando o censo industrial.
116
Assim, constatamos que em São Paulo, em 1949, cerca de 9 por cento das empresas são
responsáveis por mais de 60 por cento da produção industrial. Em 1959 esta porcentagem
ultrapassará 70 por cento da produção industrial.
Assim, fato característico, a concentração industrial aproxima-se da que encontramos
nos Estados Unidos, apesar do nível incomparavelmente mais baixo da produção.143
143
CEPAL, Small-scale Industry in Latin America, U. N., Nova lorque, 1969, pp. 94-95.
144
CEPAL, op. cit.
145
Paul Bairoch, Diagnostic de l’évolution économique du Tiers-Monde — 1900-1968, ed.
Gauthier Villars, 1970, pp. 104-105.
117
Anos Porcentagem
1841 35,7
1861 35,9
1891 34,2
1921 34,0
1951 37,2
1961 37,8
Anos Porcentagem
1947-1949 13,4
1954-1956 24,8
1961-1962 27,0
Anos Porcentagem
1925 35,4
1930 33,9
1940 32,6
1950 30,8
1960 27,1
146
Paul Bairoch, op. cit., p. 108.
147
Ladislau Dowbor, Le mecanisme de la marginalisation au Brésil, SGPIS, Varsóvia, 1974, ver
também “Quienes son las masas”, Trimestre Ideológico, Caracas, Venezuela, Dezembro de
1971.
148
Gavin B. Jones, “Sous-utilisation de la main-d'oeuvre et tendances démographiques en Amérique
Latine", Revue International du Travail, Novembro, 1968..
149
CEPAL, El cambio Social y la politica de desarollo social en América Latina, Nações Unidas,
Nova lorque, 1969, pp. 117-139.
118
150
Fernando Henrique Cardoso, Sociologie du développement en Amerique Latine, Paris,
Anthropos, 1969, p. 100.
151
Paul Bairoch, op. cit., p. 106.
152
Este fenômeno via-se por outro lado favorecido pelas leis relativas ao “produto similar”: para
se proteger o produtor local, proibiu-se a importação de produtos cujo equivalente era já
produzido no país. As firmas instaladas dispunham assim de um monopólio de fato. Por outro
lado, conforme vimos, o perfil da produção industrial evolui para bens sofisticados, que não se
recortam com o perfil de consumo do trabalhador senão marginalmente. A este respeito, ver R.
M. Marini, Sous-développement et révolution en Amérique Latine.
153
Roberto Simonsen, Evolução Industrial do Brasil, São Paulo, 1939; Cia Ed. Nacional, 1975, p.
24.
119
Anos Porcentagem
1907 16
1914 20
1920 33
1938 43
O grau de concentração é bastante evidente e São Paulo passará a empregar, nos anos
sessenta, mais de 50 por cento da mão-de-obra industrial do país. Esta concentração concerne ao
Estado de São Paulo, que cobre uma região de quase 250 mil quilômetros quadrados. Mas
constatamos o peso da própria cidade de São Paulo: assim, o "Grande São Paulo", ou seja, a cidade
e os arredores industriais, assumia um peso excepcional se considerarmos a imensidão do país:155
A potência de uma cidade que produz 16 por cento do rendimento nacional e contribui
para um terço do rendimento criado pelo setor secundário é notável, e vemos a dinâmica da
polarização regional estudada anteriormente criar força. Para apreciar a importancia do fenômeno,
lembremos que nos anos 1940 e 1950 São Paulo torna-se a cidade que mais cresce no mundo.
Mahon salienta que, com um crescimento da população de 426 por cento durante o período 1940-
1970, São Paulo ultrapassa de longe as cidades que tiveram as taxas de crescimento mais elevadas:
154
Joseph Mahon, Formation et situation actuelle de la classe ouvrière du Grand S. Paulo, IEDES,
Paris, 1973, p 21.
155
Joseph Mahon, op. cit., p. 23.
120
México conheceu no decorrer deste período um aumento de 300 por cento, Tóquio 210 por cento e
Buenos Aires 138 por cento.156
"O Estado de São Paulo", escreve Mahon, "representa 2,91 por cento do Brasil, mas
abriga 19 por cento da população total. Produz 33,5 por cento do rendimento interno e participa em
56 por cento do valor da produção industrial... Estamos, pois, em face de um imenso país onde uma
região relativamente pequena cresceu de tal modo que polariza hoje as principais atividades do país,
sobretudo no plano industrial".157
Assistimos assim a um movimento simultâneo de desenvolvimento e de concentração.
Isto significa que, apesar do seu nível adiantado de desenvolvimento, esta indústria não tende a
espraiar-se para o interior do país para, a partir de um "pólo de desenvolvimento", dinamizar regiões
cada vez mais amplas. Pelo contrário, tende a reforçar as desigualdades herdadas.
No entanto, é preciso tomar o cuidado de não pensar que este eixo dinâmico se
desenvolve enquanto o interior do país estagna, com a formação de uma economia de "enclave"
desligada do resto do país: o próprio desenvolvimento do eixo dinâmico implica o reforço dos laços
com o resto do interior do país.
Se a produção se encontra extremamente concentrada, a rede comercial estende-se
rapidamente e é a concorrência dos produtos de São Paulo que enfraquece a produção da Bahia e
impede o aparecimento de indústrias noutras regiões. "O papel crescente da industrialização na vida
econômica do país", escreve P. Geiger, "manifestou-se no decorrer da Segunda Guerra Mundial. É
marcado pela importância que tomam as indústrias de base e de bens de consumo, sob forma de
usinas destinadas a fornecer não só para o mercado local ou regional, mas para o conjunto do país; e
esta evolução foi tornada possível pelo estabelecimento de uma rede de transportes, essencialmente
rodoviária, destinada a cobrir e a integrar a totalidade do território nacional. Assim, o processo
moderno de industrialização revela em certa medida formas contraditórias: por um lado, reforça as
tendências para a regionalização; por outro lado, reforça a concentração das atividades no plano
nacional".158
O conteúdo destas "formas contraditórias" é evidentemente a divisão do trabalho dentro
do país, que permite à região dominante reforçar a sua rede de comercialização de produtos
manufaturados, por um lado, e escoar os produtos regionais para a metrópole nacional, por outro
lado.159
Reencontramos, pois, a potência a que F. Perroux chama "dinâmica da desigualdade",
constituída por "encadeamentos tipicos de seqüências que admitem essencialmente a dominação
crescente e irreversível de uma unidade ou de uma zona relativamente a todas as outras".160
156
Ibid., p. 6.
157
Joseph Mahon, op. cit., p. 6.
158
Pedro Pinhas Geiger, Les villes à fonction industrielle et la régionalisation du Brésil, CNRS,
Paris, 1971, p. 12.
159
A este propósito é interessante ver os efeitos da industrialização de São Paulo e da abertura dos
eixos de comunicação para o interior do Brasil. Na região de Bragança (Pará, no extremo norte
do país) a indústria local de juta (sacaria, etc.), rudimentar mas essencial para a integração
econômica local, foi arruinada pelos produtos trazidos de São Paulo pelo novo eixo de
comunicação. No quadro de desequilíbrio que predomina no Brasil, a abertura de estradas
como a Belém-Brasília ou outras resulta não numa difusão do progresso para o interior, mas
essencialmente na drenagem de mão-de-obra e de produtos locais, estes em troca dos bens
manufaturados do Centro-Sul, refoçando a “especialização desigual”.
160
Francois Perroux, L'économie du XX siècle, PUF, Paris, 1961, 2ª ed., p. 36. Note-se que
Perroux, ao concluir que “as regiões de crescimento e desenvolvimento deveriam (o que não é o
caso, acrescenta Perroux) ajudar as regiões menos favorecidas”, passa de uma análise correta
a remédios estéreis: o problema não é ajudar, pois a ajuda seria absorvida na mesma dinâmica.
Trata-se de romper o encadeamento dominância-dependência que liga as economias periféricas
121
O processo de industrialização parece pois restringir, e não alargar, o seu próprio espaço
de desenvolvimento, já limitado pela herança das fases precedentes e pelos efeitos da
industrialização sobre a orientação do setor agricola extrovertido. Dotado de uma fraca capacidade
própria de arrastamento e reforçando por outro lado a polarização interna e a orientação da
agricultura, este processo não levou às transformações esperadas, e compreende-se o espanto de
Hirschman: "O fato de a industrialização baseada na substituição de importações se ter acomodado
com relativa facilidade ao contexto político e social existente é provavelmente responsável pela
decepção generalizada com o processo. Esperava-se da industrialização que ela mudasse a ordem
social e tudo o que ela fez foi fornecer manufaturas.”161
Simultaneamente tornado possível e deformado pela dinâmica das economias
dominantes, este processo de industrialização não se encontra bloqueado, mas orientado num
sentido que o impede de responder às necessidades fundamentais da população. É o processo
histórico que constitui toda a diferença entre o crescimento e o desenvolvimento.162
Não será pois necessária nenhuma "maldade intrínseca" do imperialismo para cortar o
caminho do setor "nacional" da indústria orientado em função de um mercado popular: presa entre a
herança colonial da qual é fruto e as exigências técnicas de uma industrialização moderna, a
indústria nacional tomará a iniciativa de liquidar a própria casa e procurará alcancar a dinâmica
mais coerente do "setor moderno" ligado ao mercado sofisticado interno e ao mercado exterior.
americanos nos mercados externos e isto deixava à manufatura apenas uma alternativa: produção de
bens mais finos".164
Claramente discutido já nesta época, o problema da orientação da produção têxtil iria
levar a medidas concretas ainda antes da crise de 1929: "Enfrentando um mercado de bens de
qualidade inferior saturado, algumas empresas, sob a direção dos 'elementos mais empreendedores',
começaram a orientar-se para a produção de bens de melhor qualidade''.165 Mecanismo típico de
adaptação da produção à estrutura da renda, as empresas, presas entre a fraqueza do mercado
popular e a dominação do mercado sofisticado pelos produtos estrangeiros, buscavam uma saída. 166
Notando esta evolução, jornais da época felicitavam-se da melhoria no gosto do
consumidor brasileiro, quando se tratava de uma modificação do perfil da produção e, em
conseqüência, de outros consumidores. Em 1928, a associacão das manufaturas têxteis criou uma
escola para elevar o nível de conhecimentos técnicos dos trabalhadores, a fim de responder aos
novos problemas técnicos colocados pela produção de tecidos de qualidade superior.
Com a chegada de Vargas ao poder em 1930, os industriais conseguiram ocupar dois
postos-chave: o Banco do Brasil era confiado a Manuel Guilherme da Silveira e o departamento da
indústria do Ministério do Trabalho era confiado a Jorge Street, ambos do setor têxtil da indústria; a
partir daí os capitalistas do setor puderam contar com outro tipo de proteção.
Por um lado, os fabricantes obtinham a proibição da importação de novas máquinas
entre 1931 e 1937, facilitando assim o controle do parque industrial. Esta medida provocou longos
debates, já que os produtores invocavam como justificação os limites do mercado interno e
apresentavam a medida como um instrumento de luta contra a superprodução, quando a necessidade
de tecidos ao nível nacional estava longe de ser satisfeita. Na realidade, os fabricantes conseguiram
manter o parque de maquinaria e a capacidade de produção aquém mesmo das exigências da
procura solvável e trabalhavam freqüentemente em três turnos, aproveitando o efeito monopolístico.
Por outro lado, fato insuficientemente sublinhado, os produtores pressionaram
efetivamente Vargas, a partir de um determinado período, para obter o estabelecimento do salário
mínimo, uma das soluções que viam para reforçar o mercado popular, para o qual produziam ainda
em grande parte. É evidente que tais pedidos não iam sem oposição dentro dos organismos
patronais. No entanto, o fato é que os produtores mais potentes conseguiram concretizar o seu
pedido.167
A limitação do parque de maquinaria e a expansão "horizontal" da procura solvável
constituíam medidas complementares. No decorrer dos anos 30 a limitação das importações de
164
Stanley Stein, op. cit., p. 108, citando o relatório de L.S. Garry, Textile Markets in Brazil,
Washington, 1920.
165
Stanley Stein, op. cit., p. 117.
166
Lembremos que é a lógica do lucro que determina o comportamento dos diversos setores, e não
a sua nacionalidade. Uma proporção crescente de capitalistas brasileiros agarrava-se ao setor
moderno montando produtos estrangeiros ou produzindo para as empresas estrangeiras
instaladas no Brasil no quadro da subcontratação. O resultado é a extensão no Brasil de uma
classe de capitalistas industriais cuja sobrevivência econômica depende da integração da
economia na nova divisão internacional capitalista do trabalho. Reencontramos aqui, num
escalão superior, o caráter principal da dependência neocolonial.
167
“De todas as panacéias contra a superprodução que a associação dos produtores téxteis
sustentou desde meados de 1936 até meados de 1940, o regime de Vargas transformou apenas
uma em decreto. No dia 15 de maio de 1940, uma escala de salário mínimo, variando segundo
as regiões e limitada aos trabalhadores industriais, tornou-se lei” (Stein, op. cit., p. 163). Uma
série de outros fatores entrou na instituição do salário mínimo; o que nos interessa aqui é o fato
de os produtores terem participado no movimento, dando como justificação a necessidade de
expandir o mercado interno.
123
têxteis estrangeiros tinha facilitado as incursões na esfera do mercado sofisticado onde uma
demanda preexistente permanecia insatisfeita e constituía um sursis para a indústria nacional.
Com a guerra, um novo sursis para esta indústria aparecerá na possibilidade de
exportar:168
BRASIL — EXPORTAÇÃO DE TECIDOS DE ALGODÃO
168
Stanley Stein. op. cit., p. 194, dados selecionados do apêndice IV.
169
Stanley Stein, op. cit., p. 177.
124
170
Maria da Conceição Tavares, The Growth and Decline of Import Substitution in Brazil, CEPAL,
1964, p. 17.
171
Para um excelente desenvolvimento deste prohlema, que resulta evidentemente da herança
colonial e do caráter dicotômico do mercado brasileiro, ver Jorge Miglioli, A Policy of
Development for Underdeveloped Countries (tese de doutoramento), SGPIS; Varsóvia, 1968, pp.
48 e segs.
172
Stanley Stein op.cit., p.182.
125
173
Stanley Stein op. cit., p. 183.
174
Por outro lado, implicando este tipo de industrialização, conforme vimos, uma capacidade
própria de “arrastamento” ou de dinamização extremamente reduzida, em particular pela
tecnologia elevada que utiliza, pelo conseqüente número reduzido de empregos criados e pela
fraqueza do fluxo de rendimentos que daí resulta, o próprio desenvolvimento do mercado
popular se vê adiado.
175
No plano da luta de classes este fato tem conseqüências essenciais: com efeito, significa que o
proletariado urbano e rural no Brasil não enfrenta dois inimigos, a burguesia imperialista que
“bloquearia o desenvolvimento industrial e o desenvolvimento do proletariado”, por um lado, e
a burguesia nacional interessada na libertação nacional não-socialista, por outro lado. A
libertação nacional e a revolução socialista, única forma de pôr em questão as relações de
produção simultaneamente nacionais e mundiais, constituem em consequência um só e mesmo
processo.
126
exprime pela queda de Perón e de Vargas e por uma colaboração mais estreita com o
imperialismo".176
Em 1954, o ministro do Trabalho, João Goulart, exige um aumento de 100 por cento no
salário mínimo. Os militares exigem o seu afastamento e em seguida a demissão de Vargas, no dia
24 de agosto de 1954. Vargas suicida-se, totalmente isolado.
Café Filho, novo presidente encarregado de terminar a gestão de Vargas, abole através
da Instrução 113 da SUMOC (Superintendência da Moeda e do Crédito) qualquer restrição sobre as
operações cambiais das empresas estrangeiras que se instalam no Brasil. A entrada de capital
estrangeiro aumenta, em conseqüência:177
176
Pierre Salama, Le procès du sous-développement, Maspéro, Paris, 1972, p. 20.
177
Werner Baer. Industrialization and Economic Development in Brazil., Yale, 1965, p. 107.
127
178
Heitor Ferreira Lima, op. cit., p. 401.
179
Heitor Ferreira Lima, op. cit., p. 402.
128
Constatamos por um lado que o setor de maquinaria e automóveis recebeu 53,9% dos
investimentos, a siderurgia e metalurgia, química e indústria farmacêutica complementando os três
quartos dos investimentos. Trata-se, em particular, no caso da indústria automobilística de
investimentos destinados ao consumo de luxo. Os investimentos estrangeiros, nota Ferreira Lima,
"deixaram de lado os velhos setores da indústria ligeira, como os tecidos, a indústria alimentar e
outros".180
A indústria ligada ao mercado sofisticado, que tinha conhecido um surto importante nos
anos 1920, mas com a transferência para o Brasil de uma parte apenas do processo produtivo, toma,
pois, as rédeas do desenvolvimento industrial, e o setor "tradicional", cujo desenvolvimento havia
sido particularmente favorecido pelos transtornos das relações com o capitalismo dominante na
sucessão de crises que caracteriza o período 1913-1945, deixa-se absorver na dinâmica mais potente
das multinacionais.
O setor tradicional, ligado ao consumo popular, que assegurava 85,4 por cento da
produção industrial nacional em 1919, vê a sue parte reduzida para 70,4 por cento em 1949 e para
49,5 por cento em 1961.181 O setor têxtil, que representava 27 por cento da produção industrial em
1919, representava 18,6 por cento em 1949 e 13,4 por cento em 1961; a indústria alimentar passava
de 32,9 por cento a 32,0 e a 20,5 por cento no decorrer do mesmo período.
A indústria mecânica, química e farmacêutica implantava-se solidamente e a indústria
de base, atrasada apesar dos esforços de Vargas, desenvolve-se rapidamente sob a pressão das
necessidades das empresas multinacionais que se instalam no país.182
A política de Juscelino Kubitschek, presidente que sucedeu a Café Filho e governou o
Brasil entre 1956 e 1960, foi uma política de abertura total para o investimento estrangeiro.183 Com
180
Ibid., p. 404.
181
Milton Santos, Brazil: an Underdeveloped and Industrialized Country, Toronto, Janeiro, 1973. Se
a reconversão que Millton Santos quer ilustrar nos parece historicamente verdadeira, notemos
que estes dados são demasiado globais para constituir mais do que uma aproximação do
fenômeno. A evolução da produção têxtil, por exemplo, não nos dá a qualidade produzida nem o
mercado consumidor a que se destina, apesar de constituir um índice, já que o setor era
tradicionalmente ligado às necessidades populares.
182
A política econômica do setor estatal continua muito importante; no entanto, os investimentos
que realiza deslocam-se para as necessidades do novo ciclo. É assim que o Estado empreende
gigantescas obras para desenvolver a rede de estradas para responder às necessidades da nova
locomotiva da economia brasileira, a indústria automobilística.
129
183
A este propósito, ver as numerosas análises do “Plano de Metas” do governo de Juscelino.
130
Conclusão
ANEXOS
132
Anexo I
Relação de Produção
no Campo:
ALGUNS EXEMPLOS
Espírito Santo
Minas Gerais
221
Ver, em particular, “Reprodução das relações de produção na agricultura", página 214 e
seguintes.
222
CIDA — Comitê lnteramericano de Desenvolvimenio Agrícola, Posse e Uso da Terra e
Desenvolvimento Sócio-Econômico do Setor Agricola, OEA et al., Nova lorque, 1966, pp. 201 e
seguintes (citando um estudo do Serviço Social da Agricultura, 1962).
133
Bahia
223
Júlio Barbosa, Pesquisa sobre os Sistemas de Posse e Uso da Terra, Mocambeiro, Matosinhos —
Minas Gerais (Matosinhos, a zona estudada, situa-se em plena zona dinâmica do país, ao sul de
Belo Horizonte).
224
Maria Brandão, Relações Agrárias em Camaçari (Bahia).
134
Paraíba
Laudelino Medeiros estudou Santa Cruz do Sul, uma zona um pouco a oeste de Porto
Alegre, no Rio Grande do Sul, uma das regiões relativamente ricas do país.227
"Na zona rural de Santa Cruz do Sul utiliza-se pouca mão-de-obra que não seja a
família. Mas entre os tipos encontrados com maior freqüência poderíamos mencionar o agregado...
O agregado encontrado na zona rural da região tem também uma condição de meeiro, já que percebe
uma participação na produção de um certo produto que cultiva, representando a metade da colheita.
Este produto é quase sempre o tabaco. Dispõe de uma pequena terra, onde produz o que deseja para
consumir ou para vender. Como agregado, vive na fazenda e mora numa casa do proprietário,
recebendo deste último uma roça para plantar, da qual retira uma parte da sua subsistência e da sua
família. Tudo o que planta nesta terra lhe pertence. Quando trabalha em terras destinadas às
plantações do patrão, com exceção da terra a meias, recebe um pagamento pelo trabalho. Tem a
possibilidade de fornecer os seus serviços a outros proprietários e deles recebe remuneração. Não
recebe remuneração mensal. Apesar de morar na propriedade, não pode ser classificado como
trabalhador permanente, visto que apenas esporadicamente, ou quando surgem algumas tarefas,
como a preparação das terras e a colheita, pode ser chamado ao trabalho pelo patrão. Em geral não
tem contrato escrito. Os seus deveres e direitos são estabelecidos verbalmente, no início das suas
atividades... Quanto aos membros da família, passa-se o mesmo no que concerne aos trabalhos
realizados para o proprietário da terra. Quando trabalham recebem uma remuneração como
jornaleiros ou como trabalhadores por empreitada. Foram realizadas três entrevistas com agregados,
um dos quais mencionou possuir uma terra de 3/4 de hectare situada no município vizinho de
Venâncio Aires, que ainda não estava registrada no tabelião. Recebeu-a por herança. Os dois outros
agregados dizem não possuir terra própria... O agregado de um modo geral não possui terra própria,
e quando a possui, vem-lhe em geral por herança. Constitui uma pequena fração de terra, que não
225
A pesquisa foi feita na primeira metade de 1963. O dólar valia na época, no mercado
não-oficial, entre 800 e 1.000 cruzeiros. A cotação oficial da época era de 475,1 cruzeiros por
dólar.
226
M. A. Carneiro, Sapé — Paraíba.
227
A parte Sul do Brasil foi colonizada muito tarde e, sendo as pressões dos países vizinhos muito
fortes, foi por razões estratégicas que o governo fixou aí colonos e distribuiu terras, a fim de
assegurar o controle da região. Cf. Nelson Werneck Sodré, História Militar do Brasil, ed.
Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1965.
135
permite ao indivíduo viver da sue exploração, razão pela qual vive na terra de outros na condição de
agregado".228
Reencontramos o mesmo sistema nas mais diversas regiões. Manuel Correia de Andrade
cita situações muito parecidas na região de São Francisco. Não se trata de um "processo de
desintegração da estrutura agrária". Pelo contrário, a polivalência de emprego constitui o "corpo e
alma" do atual sistema de latifúndio: do ponto de vista do proprietário da terra, representa um meio
de selecionar os "bons" trabalhadores, recompensando-os segundo uma certa escala de mérito, e de
tornar toda a ação coletiva dos trabalhadores na fazenda quase impossível.229
Noutros termos, a existência de atividades, por parte dos trabalhadores rurais, cujo
resultado não é a criação de valor de troca (mercadorias), mas a criação de valor de uso (mandioca,
arroz, para consumo próprio), decorre não de um universo pré-capitalista, mas do fato de a terra
estar monopolizada para a produção comercial de bens que não constituem um valor de uso para os
próprios trabalhadores.
Logo, é compreensível que se estabeleça uma ruptura espacial entre o tempo de trabalho
necessário e o tempo dedicado ao sobretrabalho.
É aparente também o fato de que a multiplicidade das relações de produção não decorre
da "transição", mas do fato de as grandes unidades capitalistas exigirem um amplo exército rural de
reserva, tanto mais amplo quanto o trabalho nas unidades capitalistas rurais é eminentemente
sazonal. Buscar modos de produção diferentes ou "transição" nas diversas formas que o proletário
rural utiliza para escapar da fome nos momentos que o latifúndio dele não precisa é esquecer que
por baixo de todas estas formas está o fato fundamental: o próprio latifúndio, com as suas
determinações capitalistas.
E na medida em que na base da situação do trabalhador rural está o "fato" da empresa
agromercantil capitalista, é de se perguntar a que ponto a sua libertação pode dar-se sem a negação
deste fato. É neste sentido que o colocamos, como proletário rural, ao lado dos assalariados
permanentes das empresas latifundiárias, sem menosprezar as diferenças ideológicas que podem
existir entre as diversas camadas.
228
Laudelino Medeiros, Uso e Posse da Terra em Santa Cruz do Sul.
229
Manuel Correia de Andrade, A Terra e o Homem no Nordeste.
136
Anexo II
Dados Estatísticos
POPULAÇÃO DO BRASIL
Fonte: Caio Prado Júnior - História Econômica do Brasil - ed. Brasileira, Rio de Janeiro,1963, pp.
340 e seguintes, Anexo.
137
Períodos Agricultura Indústria Transportes e Comércio Governo Total do População Prod. Total per
comunicações produto capita
1900/02-1910/12 2,31 6,25 - 5,37 - 3,96 2,14 1,74
1910/12-1920/22 3,29 5,65 6,66 3,92 1,66 3,97 2,12 1,75
1920/22-1930/32 3,30 3,51 5,00 3,89 6,40 4,04 2,05 1,95
1930/32-1940/42 2,86 7,20 6,20 5,09 3,96 4,71 2,08 2,56
1940/42-1945/47 2,42 9,18 5,27 6,49 2,36 5,49 2,38 3,02
a) 1910/12-1945/47
b) 1945/47-1965/67
c) 1910/12-1969/71
d) 1910/12-1965/67
Fonte: Claudio Haddad - “Crescimento do produto real brasileiro, 1900-1947” - Revista Brasileira de Economia, janeiro/março, 1975.
138
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155
Biografia
Ladislau Dowbor nasceu na França, em 1941, de pais poloneses que emigraram para o
Brasil depois da Segunda Guerra Mundial. Passou a infância em João Monlevade, onde seu pai era
engenheiro da Belgo-Mineira. Em 1956 radicou-se em São Paulo, onde vive até hoje. Em 1964
viajou para a Suíça, onde se formou em economia política, pela Universidade de Lausanne, pagando
seus estudos como chofer de caminhão, condutor de trem e professor. Voltou ao Brasil em 1968, e
participou ativamente do movimento de oposição ao regime, sendo banido em 1970. Passou 11 anos
no exilio. Durante este período, viveu 2 anos fazendo pesquisa na Argélia, 3 anos na Polônia onde
se doutorou em ciências econômicas pela Escola Central de Planificação e Estatística de Varsóvia, e
2 anos em Portugal, onde foi professor da Universidade de Coimbra. Em 1977, foi nomeado
conselheiro do Ministro do Plano da Guiné-Bissau e, em 1979, Conselheiro Técnico Principal das
Nações Unidas para Planificação do Desenvolvimento, participando de negociações com o Banco
Mundial, F.M.I., COMECON e outros organismos internacionais. A partir de 1979, trabalha como
consultor do Secretário-Geral das Nações Unidas para assuntos de economias em crise. Anistiado,
voltou ao Brasil em 1981, e trabalha atualmente como professor do programa de Estudos
Pós-Graduados em Administração da PUC de São Paulo. E autor de Geografia Econômica da
Guiné-Bissau, A Formação do 3.° Mundo (Coleção Tudo é História, Brasiliense) e de vários outros
trabalhos, em particular sobre as repercussões da crise no Terceiro Mundo.