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O AUTOR

Jornalista, Professor Doutor em Comunicação pela ECA-USP.


professor do Centro Universitário Instituto Municipal de Ensino
Superior de São Caetano do Sul - SP.

EM QUADRINHOS
Criaiiqas e jovens têin. iia História crn Quadrinhos,
Lim aliado para desenvolvei- o hhbito de leiiura c a
coinpreeiisiio de conteúdos escolares

A málgama de arte, técnica, diver-


timento e atividade comercial,
a História em Quadrinhos con-
grega diferentes atributos (qualidades e de-
leitor, mas também o reconhecimento por
parte dos críticos e pesquisadores. Muitos
são os exemplos de originalidade,
inovação estética ou narrativa, de ousadia
feitos). Como manifestação artística, des- temática e de valor artístico que podem
cende do grafismo elaborado a partir do sé- ser encontrados nos quadrinhos.
culo XVIII na Europa. Suas características Além disso, a História em Quadrinhos,
técnicas foram geradas com o aprimora- como veículo de comunicação, tem. ain-
mento das formas de impressão (os qua- da. outras aplicações, seja como peça de
drinhos são marcadamente, até hoje, uma marketing, seja como instrumento de
forma de comunicação visual impressa) e transmissão de conhecimento e ferramenta
da diversificação da narrativa ficcional. pedagógica. É justamente a possibilidade
Produto criado no seio da indústria de uso das HQs que necessita ser melhor
cultural, a História em Quadrinhos compreendida e explorada por educado-
incorpora a dinâmica (e os vícios) do res, pais e membros de movimentos po-
sistema produtivo. A produção periódica pulares e comunitários. De acordo com.0
e a expectativa de lucro alto conspiram pedagogo Azis Abrahão, ao lado da ins-
contra a qualidade do material. Contudo, truqão formal, rígida, há um aprendizado
a criatividade dos quadrinhistas, dentro e indireto, que também permite a aquisição
na periferia das grandes editoras, consegue de conhecimento e que pode ser realizado
manter não apenas o interesse do público- concomitantemente à instrução direta.
Comunicação & Educação, São Paulo, (22):46 a 51, set./dez.2001

Neste sentido, ressalta Abrahão, a História Mas, então, como explicar a falta de
em Quadrinhos, "como veículo de apren- interesse pela leitura também presente no
dizagem para as crianças, não só é capaz caso de estudantes vindos de extratos mais
de atingir uma finalidade instrutiva (ensi- altos da sociedade, que têm poder aquisi-
no direto ou central), pela apresentação dos tivo e podem frequentar escolas particu-
mais diversos assuntos e noções. Mais do lares pagas?
que isto, e principalmente, consegue pre- O fato de o hábito da leitura ter dimi-
encher uma finalidade educativa (ensino nuído nas últimas décadas pode ser credi-
concomitante), por um desenvolvimento tado a um fator cultural: o brasileiro não
[que produz], de ordem psicopedagógica, está sendo instigado a ler ou por causa da
isto é, dos processos mentais e do interesse censura nos anos 70, ou devido à falta de
pela leitura"'. Apresentar o potencial di- incentivo por parte das escolas e dos pais,
dático-pedagógico dos quadrinhos é, por- pelo número reduzido de bibliotecas ou
tanto, o objetivo deste texto. até mesmo pela violência, que retira os
jovens de classe média das ruas e impede
INCENTIVO A LEITURA sua incursão pelas bancas de jornal, onde
encontram material que pode abrir as por-
O desinteressepela leitura por parte das tas para a leitura, a exemplo da História
novas gerações tem sido explicado, de for- em Quadrinhos.
ma generalizada e até mesmo precon- O preconceito existente contra os qua-
ceituosa, como conseqüência dos meios drinhos por parte de pais e educadores fe-
visuais e audiovisuais. Imputa-se a ojeriza cha a possibilidade de utilizar este veículo
pelos textos à televisão e, mais recen- de comunicação para incentivar a leitura.
temente, ao videogame e à Internet. E nem
mesmo a História em Quadrinhos passa A crianqa que não lê nem
incólume à ação de teóricos e educadores História em Quadrinhos
que procuram entender as causas da tampouco se sentirá disposta a
rejeição à palavra escrita e impressa por
parte dos jovens. enfrentar textos didáticos,
No caso específico do Brasil, há diver- literários e informativos.
sos processos que desencadeiam o desin-
teresse pela leitura, sejam de ordem eco- A utilização de quadrinhos pode ser de
nômico-social (a parcela mais pobre da grande valia para iniciar o jovem no ca-
população não tem poder aquisitivo para minho que leva à consolidação do hábito
adquirir livros, jornais e revistas), sejam e do prazer de ler.
de ordem política (o Estado é responsável Azis Abrahão considera que a História
pela situação calamitosa, crônica e persis- em Quadrinhos, denominada por ele lite-
tente do ensino público que, além de não ratura em quadrinhos, agrada as crianças,
incentivar o aluno a criar o hábito da lei- uma vez que atende a sua necessidade de
tura, ainda é ineficiente). crescimento mental. Na sua opinião, as

1. Apud MOYA. Álvaro de. Shazam! 3. ed. São Paulo: Perspectiva (Debates, 26). 1977. p. 147
Aplicações da História em Quadrinhos

crianças "pouco entendem da literatura utilizam HQs são: quadrinhos com exces-
produzida para elas. O desinteresse que so de texto e imagens muito chamativas
nutrem, por qualquer gênero de leitura, em detrimento do conteúdo. Ela adverte
que não seja de quadrinhos, pode ser ex- que "há livros que, apenas para vender
plicado pela falta de familiarização com mais, inserem alguns elementos de qua-
certas noções abstratas da linguagem co- drinhos (balões ou onomatopéias) em ve-
mum, particularmente da linguagem es- lhas imagens conhecidas". Pondera, ain-
crita, pela dificuldade experimentada na da, a respeito de a disciplina ser afeita ou
análise de seu vocabulário e do sistema não à quadrinização: em matérias das
de imagens e idéias, pelo defeituoso apren- Ciências Humanas (Geografia, História,
dizado da leitura, pela limitação de seus Sociologia), "quando a quadrinização é
quadros e experiências e t ~ . " ~ . mal feita, a imagem pode transmitir figu-
A História em Quadrinhos, ao falar ras deturpadas, gerar estereótipos,
diretamente ao imaginário da criança, conotações ideológicas, ou seja, interpre-
preenche suas expectativas e a prepara para tações errôneas dos acontecimento^"^ .
a leitura de outras obras. A experiência de Contudo, a linguagem característica dos
folhear as páginas de uma revista de quadrinhos e os elementos de sua semân-
quadrinhos pode gerar e perpetuar o gosto tica, quando bem utilizados, podem ser
pelo livro impresso, independente de seu aliados do ensino. A união de texto e de-
conteúdo. Além disso, o aprendizado por senho consegue tornar mais claros, para a
meio do uso de quadrinhos, como será visto criança, conceitos que continuariam abs-
a seguir, é mais proveitoso. tratos se confinados unicamente à palavra.
Na visão de Azis Abrahão, texto e ilustra-
ção "se ajustam e se testam, na identifica-
ção de seus significados e de suas rela-
Os quadrinhos vêm sendo utilizados ções, naquela necessária integração de
com sucesso em livros didáticos há três matéria e forma, que tão bem atende aos
décadas. Artistas e pedagogos unem-se princípios atuais da Pedagogia, baseados
para aproveitar as possibilidades técni- no caráter sincrético e globalizador do
cas, narrativas e expressivas dos quadri- pensamento da criançav5.
nhos no que tange à disseminação mais Da mesma forma, a sequencialidade (a
eficiente de conhecimento. maneira como se articula a narrativa
No entanto, Sonia Bibe Luyten obser- quadrinhográfica, com uma vinheta su-
va que, pelo caráter comercial de muitos cedendo a outra, em ordem lógica, mas
livros didáticos, ocorrem distorções. Se- fragmentada temporalmente, o que exi-
gundo a pesquisadora de quadrinhos3, os ge participação e perspicácia da parte do
erros mais comuns nas obras didáticas que leitor para preencher os momentos não

2. MOYA, Álvaro de. Shazam! op. cit. p.150.


3. BIBE LUYTEN, Sonia M. (org.). Histórias em Quadrinhos - leitura crítica. São Paulo: UCBC Paulinas, 1984.
4. BIBE LUYTEN, Sonia M. (org.). Histórias ... op. cir. p. 88-89.
5. MOYA, Álvaro de. op. cir. p. 143.
C o m u n i c a ç ã o & E d u c a ç á o , São Paulo, (22):46 a 51, set./dez,2001

inoslrados), assume, para Abrahào, "o ca- liso de iniage~isque desenhava, palavras e
i-átei- d e verd;ideiro relato visual ou ações que seriam niais difíceis de sei-em
i rriagístjco, que sugeslivamente se iii tegi-a compreendidas se ficassem liinitadas a
com as riipjdas conotações do texto escri- lextos escritos.
to, niiina perfeita identificaçfio e
entrosarnento das duas formas de lingua-
gerri: a palavra e o dcsenlio. Exalamente
corno convéin ao caráter sincritico e in- A leitura e apenas uma das possibilida-
tuitjvo do pensameiilo infan~il"~. Dessa des de einprego da História em Quadri-
forma, o quiidriiiho teima inais interessante nhos no ensino. Pieri-e Micliel, profes~or
o conteúdo a ser estudado, e inais: exige do Liceu de Corbeil, iia França, destaca
do aluno uma percep~áoinaior do meio 21saplicações dos quadrintios na educaçiÍo.
empregado, a História em Quadrinhos. Para ele trata-se de '-um inateiial que pode
suscitar a reflexãoi a pesqiiisa e a críaçãoV7e
náo iner2unetitea leitura descoiiipromissada.
Temas cla alualidade ou de natureza liis-
tórica, ética o11cientítica podeiii ser dis-
O mesino mecanisino das HQs clue per- cutidos a partir da leitura de uina cleterini-
mite a absorção de temas por parte das nada História em Quadrinhos. A tiirma de
ci-ianqas taiiibém pode sei-usado com eti-
cácia pai-a aprender lingiias eslrangeiras.

O sucesso do emprego de
iimgens e textos an-tic~ilzidoseix n
seqii2nicia não se restringe
apenas às criai~qas.
'.h-.+' -

L.--
v

Um exeinplo pode scr visto na experi-


2iicia d o professor universitário holandCs
Jerocn I<liilk,que collseguillmaior llllên- A Turma da Mônica a HQ de maior
sucesso de publico
cia em poituguês por meio da leitura de
revistas de quadrinhos com os persona-
gens criados yoi- Maui-íciode Soiisu. alunos, ao ulilizai- os cpadi-inhos como
Já o editor-chefe das i-evistas Disney ponto de partida de uiii debale, tem em
1)iiblicadas pela Editoia Abril, Eucljdes máos inatesial para refletir a respeito de
Miyuai.a, formado ein Leii-as pelii USP, jdéias e valoi-es.
ininistra\la auliis de Inglês einpregaiido seu Determinadas edições de quadrinhos
talento de quadrinhista para fixar, com o contêm elementos da ti-adiçiio ou da his-

6 . MOYA.
Aivaro cie. oyi rir p. I 50- I 5 I .
7. MICHEL, Picrr.c. I,n Uande Dessinbc. (,4 Hi\ti>riíirin Q~iadriiihos.)Pai-i.;: Libraii-íc Larous\e. 1976. p. 137.
Aplicações da História em Quadrinhos

tória brasileira, a exemplo de O boi das ção de jogos dramáticos, pode-se con-
aspas de ouro, Adeus, chamigo brasi- seguir um rendimento maior e uma
leiro e Crônicas da Província. Na pri- integração mais espontânea do grupo,
meira história, publicada em 1997 pela com ganhos de eficiência e economia de
editora Escala, de São Paulo, o vetera- tempo na aprendizagem.
no artista Flávio Colin adapta uma len-
da gaúcha. Já a segunda, editada pela No que sc refere ao potencial
Companhia das Letras em 1999, é o re- criador da História em
sultado da pesquisa feita para a tese de
doutorado do quadrinhista André Toral Quadrinhos, uma experiência
sobre a iconografia da Guerra d o produtiva e din21nica foi
Paraguai. E a última, lançada em 1999 conseguida por meio da
pelas editoras Tempo Presente e Via integrac;ão das atividades de
Lettera com apoio cultural da Universi-
dade Federal de Mato Grosso, aborda, redação e desenho.
por meio do roteiro de Wander Antunes
e arte elaborada por Mozart Couto, o Em 1994, a partir da oficina oferecida
coronelismo, a fraude eleitoral e outras durante a exposição "Quadrinhistas e
características típicas da política brasi- cartunistas do ABC", realizada pela Fun-
leira que ainda hoje são praticadas. dação Pró-Memória de São Caetano do
A dramatização é outro recurso pe- Sul, duas professoras (uma de Português
dagógico que, ao lado do debate, pode e outra de Educação Artística) de escola
ser provocado pela História em Quadri- pública da Região desenvolveram um tra-
nhos. Como observa Azis Abrahão, "à balho com alunos de quinta série. O ro-
criança o que importa é brincar, jogar teiro redigido para História em Quadri-
noutras palavras; é de especial impor- nhos foi tarefa mais amena e prazerosa
tância e interesse, para a criança, a ati- para os estudantes e serviu para que a do-
vidade lúdica, em si mesma, pelo seu cente avaliasse a escrita, enquanto a
processo, pela simples ação que desen- finalização do projeto foi feita pela livre
cadeia, pois que o objetivo consciente transposição das palavras em imagens e
ou deliberado do jogo tem sempre cará- em narrativas sequenciais.
ter fictício e fortuito". E salienta que "o
jogo exercita atividades inespecíficas, EDUCAGAO POPULAR
desenvolve capacidades e virtualidades
gerais, sem qualquer objetivo próprio, Finalmente, a História em Quadrinhos
relacionadas com o crescimento físico também tem sua aplicação como prática
e mental da criançaw8.Assim é que, ao pedagógica empregada em movimentos
utilizar a História em Quadrinhos (ela sociais, tenham eles a finalidade de
mesma um objeto de ludicidade) para a conscientizar ou de alfabetizar as parte-
encenação de um tema, para a formula- las mais carentes da população.

8. MOYA, Álvaro de. op. cit. p. 153.


Comunicaçào & Educação,São Paulo, (22):46 a 51, set./dez.2001

Nesse sentido, o jornalista e educador da imagem, de sua relação com outros


popular peruano Juan Acevedo Fernándes mecanismos de percepção do ser humano
de Paredes conceitua: "Se falarmos de e trabalhar estes conhecimentos na pers-
quadrinhos populares, é evidente que nos pectiva da educação p ~ p u l a r " ' ~ .
movemos no quadro da educação O emprego da História em
libertadora, de um processo de transfor- Quadrinhos no processo de aprendizado
mação social em que o povo seja cada vez é, portanto, um manancial rico para os
mais dono de seu próprio destinow9. educadores. Como foi observado ao longo
Acevedo formulou um projeto para uti- deste texto, são várias as possibilidades
lizar a História em Quadrinhos na organi- encontradas nos quadrinhos que podem
zação de um programa de alfabetização ser aplicadas na educação, com o intuito
visual, com vistas a capacitar as pessoas a de transmitir conhecimentos, despertar o
não apenas entender as imagens, mas tam- interesse e criar o hábito da leitura
bém a se servirem delas para a comunica- sistemática, conscientizar, fomentar
ção, para se expressarem. Este projeto já atitudes críticas, desenvolver a aptidão
foi executado em diversas comunidades artística e a criatividade, seja em
de vários países latino-americanos e eu- estudantes ou em movimentos populares.
ropeus. O educador peruano afirma que Basta apenas que educadores e pais
"o projeto dos quadrinhos populares tem percam o preconceito ainda existente em
interessantes tarefas: dirigido à organiza- relação aos quadrinhos e passem a consi-
ção do movimento, alentando o intercâm- derar este meio de expressão artística
bio e a integração dos povos, deve atentar como forte aliado na formação dos jovens,
também para a investigação da linguagem especificamente, e do povo em geral.

Resumo: Considerada erroneamente apenas (Comic strip applications)


um entretenimento descompromissado ou
subliteraturainfantil, a História em Quadrinhos Abstract: Wrongly considered simply as
possui qualidades que seus críticos nem des- uncommittedentertainment or sub-literaturefor
confiam. A utilização dos quadrinhos no pro- children, the Comic Strip has qualities that its
cesso de aprendizagem, por exemplo, é um critics never even thought of.To use the comic
recurso viável, necessário e importante, que, strip in the learning process, for example, is a
entretanto, tem sido pouco explorado. Apre- viable, necessary and important resource that
sentar os recursos didático-pedagógicosdos has been poorly explored. Thus, this text aims
quadrinhos é, portanto, o objetivo deste texto. at presenting the teaching and learning
resources the comic strip has.
Palavras-chave: História em Quadrinhos,
educação, aprendizado, recursos didático- Key words: Comic Strip, education, learning,
pedagógicos teaching-learning resources

9. ACEVEDO, Juan. Como fazer Histórias em Quadrinhos. São Paulo: Global, 1990. p. 195.
10. ACEVEDO, Juan. op. rir. p. 195.

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