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Chesterton Para Principiantes: Newman e o

Sentido Ilativo

Para se compreender o sistema filosófico de Chesterton, a sua fenomenologia,


a sua epistemologia, o seu argumento ontológico para a existência de Deus, é
fundamental conhecer a hermenêutica de John Henry Newman (1801 - 1890).

- A CRIANÇA

Um dos mais importantes temas dos sermões de Newman foi a fé e a


obediência a Deus. Newman chamou a atenção para a necessidade de uma
atitude semelhante à de uma criança, de simplicidade e confiança, que lhe
permite o acolhimento e a reverência perante os contos de fadas. Newman
afirma que a mente de uma criança nos dá o tom do que deve ser a atitude em
igreja: a criança distingue o bem do mal, mas não adopta a postura orgulhosa
do livre-espírito. Ela tenta aprender com os outros, não se coloca na posição de
ser ela a medida de todas as coisas, da verdade. Isso torna as crianças mais
receptivas à fé, porque “Cristo assim o quis, que nós alcançássemos a
verdade, não pela especulação engenhosa, pelo raciocínio ou investigação
particular, mas pelo ensino.”

- A RAZÃO IMPLÍCITA

Newman opôs-se ao entendimento da razão defendida pelo iluminismo, uma


noção minimalista de razão, que se coloca na posição de julgar toda a verdade
exigindo sempre a evidência científica, contrapondo que a fé em Deus é
possível sem uma evidência formal. De facto, Newman defende que muitas
verdades são implícitas. Muitas vezes uma pessoa não consegue explicar o
que ela sabe ser verdade, mas tal não diminui a veracidade das suas
afirmações.
Um inglês pode nunca ter viajado até ao mar, mas está absolutamente certo
que a Inglaterra é uma ilha. O que o conhecimento tem de implícito é
geralmente a sua natureza mais forte. Newman não dava um valor absoluto à
argumentação: “Muitos homens vivem e morrem por um dogma, mas ninguém
se deixa tornar um mártir por uma afirmação…Ninguém morre pelas suas
conjecturas: morre por realidades.”

Por vezes não conseguimos explicar bem porque razão suspeitamos da virtude
de uma pessoa ou porque razão confiamos noutra que mal conhecemos. É um
processo mental que passa de ponto para ponto por algum indício subtil, pela
mera probabilidade, por uma associação de ideias, por se guiar por uma lei de
experiência prévia, pelo testemunho de outros, pela impressão popular
expressa em provérbios, por uma memória longínqua.

Como sublinhou Newman, trata-se de uma atitude muito semelhante à do


alpinista que progride na sua ascensão por meio de uma mirada rápida, uma
mão ágil, um pé firme, sentido mais do que sabendo ele próprio como trepa
num penhasco vertical liso, mais pelo que adquiriu pela prática do que por
qualquer regra isolada, não deixando rasto atrás de si e incapaz de ter jeito
para ensinar a outros.

Pela peneira da razão implícita, o resultado da experiência pode dirigir-nos a


conclusões. Por oposição a esta análise espontânea da experiência, a razão
explícita é a análise de todo este movimento espontâneo de interpretação da
experiência, por meio da cadeia de causalidade e da lógica convencional. É
este tipo de análise que permite compreender o tipo de racionalidade presente
na maioria dos julgamentos que fazemos na nossa vida diária: “Todo o homem
possui uma razão mas nem todo o homem pode dar uma razão”.

- A CONVERGÊNCIA DE PROBABILIDADES
A convergência de probabilidades é um conceito que resulta da nossa
experiência pessoal, empírica ou reflectida, e da comunicação de outros. Mas
nós não aceitamos como válida a comunicação de qualquer um. Nós fazemos
um juízo sobre as pessoas, baseados em muitas das suas características, do
modo como usam a palavra, do modo como se comportam relativamente a
outros. Nenhum item por si, nesta avaliação, é suficiente para podermos definir
a pessoa ou como a avaliamos, mas é a convergência das várias impressões
que temos sobre a pessoa que nos faz construir o quadro geral que formamos
dela.

É esta fenomenologia que usamos sobre nós próprios, sobre os nossos amigos
e os nossos familiares, sobre as pessoas que nos são apresentadas ou que
entrevistamos, sobre o próprio mundo, que nos fazem retirar ilações sobre nós,
sobre os outros e sobre Deus. 

Nós justificamos a adesão às certezas da vida não por inferência, mas pela
razão implícita, mesmo que para tal não tenhamos provas irrefutáveis. Os
exemplos que Newman dá são prolíficos: temos a certeza que o nosso “eu” não
é o único ser existente; que existe um mundo externo; que existe um sistema
constituído por partes e por um todo; que existe um universo regulado por leis;
que o futuro é determinado pelo passado; que existem cidades chamadas
Lisboa, Paris ou Londres, mesmo que nós nunca lá tenhamos estado; que
Paris ou Londres devem estar hoje mais ou menos como estavam ontem
quando lá estivemos, a menos que uma catástrofe tenha entretanto ocorrido. 

Sabemos que isto é verdade por uma convergência de motivos: o testemunho


de outros, o nosso senso comum ou sensatez, o modo como sentimos que é o
desenrolar natural das coisas, para que tenham consistência e congruência e
sejam absolutamente distintas dos sonhos.

E formamos esta opinião por uma convergência de probabilidades.


Como dizia Chesterton, “um elefante ter uma tromba pode ser coincidência,
mas todos os elefantes terem tromba é uma conspiração”. É evidente que são
as opiniões que formamos sobre as coisas e as pessoas que conduzem às
decisões mais importantes da nossa vida.

Trata-se de um processo muito semelhante ao utilizado ao analisar um


acontecimento histórico ou a investigação de um homicídio. Obviamente que os
acontecimentos históricos, tal como um crime determinado, não podem ser
reproduzidos porque já ocorreram. Isto distingue-os dos fenómenos científicos
que são reprodutíveis, porque a criação está em desenvolvimento, sempre a
ocorrer repetidamente.

Então chegamos à explicação histórica e ao revelar dos meandros do crime,


não com uma prova irrefutável, que seria voltar a presenciar o crime ou o
acontecimento histórico, tantas vezes quantas o sistema no-lo exigisse, mas
antes com base numa série de indícios indirectos: o local da batalha, o número
de mortos, o benefício do vencedor, as mudanças políticas e geo-estratégicas,
o testemunho pessoal, o cadáver, a arma do crime, o motivo e a oportunidade,
etc. É a convergência e consistência destas provas indirectas que nos apontam
a solução.

Newman dizia que relativamente ao problema da existência de Deus,


deveríamos usar o mesmo tipo de processo com a mesma honestidade, porque
ele é inteiramente racional. A relação entre este raciocínio multiforme e
complexo, na análise no julgamento das coisas concretas da vida, e o
silogismo lógico que lida com conceitos mais ou menos abstratos, assemelha-
se à relação entre uma pintura ou fotografia e um mero esboço. 

A mente chega a uma conclusão inevitável por meio de premissas múltiplas


apenas prováveis, por meio de objecções superadas, neutralizando teorias
contrárias, por dificuldades progressivamente ultrapassadas, excepções que
confirmam a regra, correlações antes negligenciadas numa verdade revelada,
num processo lento e de fim incerto, que subitamente se ilumina e desemboca
numa conclusão clara e inevitável. A esse processo que usamos para retirar
essas ilações, desde a convergência de probabilidades até à conclusão, seja
no que concerne à investigação histórica, à investigação criminal ou à
ontologia, Newman chamou o sentido ilativo.
- O SENTIDO ILATIVO

Newman defendeu a racionalidade da “fé simples”. Chamou-lhe a faculdade


ilativa ou senso implícito. Trata-se de um modo de raciocínio com uma
dimensão inconsciente e implícita; vai das coisas concretas para a conclusão e
não de proposições para proposições, como a inferência formal ou lógica.

Um homem alcança a certeza através deste sexto sentido, o sentido ilativo,


“uma palavra cara para uma coisa comum”, a possibilidade de conhecer o
desconhecido a partir das nossas experiências concretas: a beleza natural, as
exigências da consciência (o sentido de culpa, as dores do remorso, a busca
do perdão), a noção da contingência da vida, a paz transmitida por uma criança
dormindo, a honra prestada a quem sacrificou a sua vida pelos outros, a beleza
fascinante da Air in G String de J S Bach ou do Canon em D maior de
Pachelbel, a beleza e angústia dos sonetos de Camões “Mudam-se os Tempos
Mudam-se as Vontades” ou “Alma Minha  Gentil que te Partiste”, ou, na
verdade, de qualquer coisa bela criada, e chegar à conclusão de que tem que
existir uma realidade transcendente subjacente a tudo, Aquele a quem
chamamos ou conhecemos como Deus.

O homem alcança a certeza por meio desta capacidade de retirar


ilações. Illatio em latim significa levar-nos a ou transportar-nos para uma
conclusão mais larga e firme do que as premissas. É o mesmo processo de
descobrir uma direcção na ausência de sol e de instrumentos, como o fazem os
índios: não é algo fácil de explicar. Por exemplo, nos climas setentrionais, os
ramos das árvores são mais longos no lado sul, o musgo está ausente no lado
norte dos troncos das árvores...é um acumular de pequenas coisas que ao
serem correlacionadas nos colocam na direcção certa. Como quem monta um
puzzle.

Indicam-nos a direcção certa. Isto é o núcleo do sentido ilativo.

O silogismo, que usa a razão explícita ou inferência lógica, seria como um


grosso cabo de cobre. O sentido ilativo que usa a razão implícita e reúne
princípios, factos, testemunhos, experiências, registos, seria como uma cabo
formado por múltiplos pequenos fios de cobre. O primeiro simboliza a
demonstração matemática, o segundo a demonstração moral. Newman
expressa bem a essência da mente inglesa: a ânsia pelo mundo platónico das
ideias e das realidades invisíveis e a necessidade de factos precisos, gravados
e verificados.

Um céptico pode argumentar que equivale a um salto de fé, mas não se trata
de um salto porque o parecer favorável à fé tem uma dimensão cumulativa e de
tensão interna; trata-se mais de crescer para uma convicção e não tanto de cair
nela. A evidência da doutrina revelada baseia-se num agregar de
probabilidades e não na argumentação hábil sobre cada uma delas. Newman
usou o exemplo do polígono desenhado no círculo. À medida que o número de
lados aumenta ele tende a parecer-se com o círculo. Nunca é o círculo mas a
mente ignora a diferença e compreende-o como tal. Assim é, e só pode ser, o
nosso conhecimento de Deus: não uma completude mas uma propedêutica.

Ora, a fé é um acto pessoal pelo qual uma pessoa apreende as verdades


religiosas a partir dos testemunhos de outros. Um “espírito de criança” é a
condição necessária para acreditar. Sem humildade é impossível acreditar em
Deus, porque a pessoa define o seu próprio universo e fecha-se a qualquer
realidade sobrenatural. O orgulho encerra uma pessoa numa esfera limitada de
racionalidade; é a pedra de toque do mundo pós-kantiano.  É o "enfiar o
universo dentro da cabeça", do lógico de Chesterton.

É necessário que o homem se deixe amar por Deus, aceitando com humildade
a revelação de Deus, com a mesma atitude da criança que não supõe existir
uma razão válida para que um adulto da sua confiança a engane ou lhe faça
mal. O argumento moral para a existência de Deus, sumariamente descartado
em Kant, reaparece em Newman. Swinburne afirmaria sobre a convergência de
probabilidades: "se colocarmos dez baldes furados, uns dentro dos outros,
teremos um contentor capaz de conter a água." Esse é o princípio físico da
matéria.

Newman, ao regressar a Inglaterra após uma viagem em que esteve


gravemente doente compôs “Conduz, Luz Gentil” em que suplica humildemente
uma condução transcendente: “Embora conduzido outrora pelo orgulho/
Protegei os meus pés/ Eu não peço para ver o horizonte/ Um passo apenas
basta”.

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