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TRATADO
TEOLÓGICO-POLÍTICO
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Tradução, introdução e notas de Diogo PiresAurélio

3.ª edição, integralmente revista

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Título: Tratado Teológico-Político
3.' edição
Autor: Baruch de Espinosa
Edição:Imprensa Nacional-Casa da Moeda
Concepçãográfica: Departamento Editorial da INCM
Revisão do texto: Levi Condinho
Tiragem: 950 exemplares
Data de impressão:Outubro de 2004
ISBN: 972-27-1336-1
Depósito legal: 215 831/04
IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA
LISBOA
2004
!
NOTA À PRESENTE EDIÇÃO
r,
1

A presente versão da tradução portuguesa do TratadoTeoló-


gico-Político altera profundamente a anterior, editada pela Im-
prensa Nacional-Casa da Moeda, em 1988, e pela Martins Fon-
tes, no Brasil, em 2003. Semelhante alteração poderá surpreender
numa tradução que, ao tempo em que surgiu pela primeira vez,
já se propunha, tal como vem explicitamente afirmado na intro-
dução, apresentar-se o mais fiel possível ao texto espinosano.
Esse propósito mantém-se, todavia , inalterável. Foi, de resto,
graças a ele que se tomou necessário, quinze anos depois, rever
· da primeira à última linha as várias centenas de páginas do Tra-
tado. O que Walter Benjamin afirma , no conhecido ensaio sobre
r!
«A tarefa do tradutor », poderá, de algum modo, explicar este
aparente paradoxo: «ao contrário da palavra do escritor, que
sobrevive na sua própria língua, a melhor das traduções tem
por destino integrar-se no desenvolvimento da sua e perecer
quando ela se renovar » 1. As alterações agora introduzidas cons-
tituem, pois, uma nova tentativa de ir ao encontro do mesmo
texto, um texto que, por continuar vivo, ainda que numa língua
morta, condena as suas versões em outras línguas, ainda que
vivas, a um perecimento a prazo mais ou menos curto.
Que o texto continua vivo, ninguém, decerto, o negará, pe-
rante o lastro de «teológico-político » que de novo assoma à su-
perfície da modernidade, tão enfaticamente inaugurada, no que
à política diz respeito, por Espinosa, lastro esse que, no seu
recorrente emergir, a confronta com o seu próprio negativo e
exibe à transparência a imbricação de poder e sagrado sobre

1 «La tâche du traducteur », trad . in CEuures, 1, Paris , Gallimard , Folio, 2000,

p . 250.

l 7
cuja denúncia e recalcamento ela se construiu e mantém . Imagi- cativa do trabalho agora realizado destina-se, por isso, ora a
nar o Tratado Teológico-Políticoconfinado à circunstância específica corrigir algum erro entretanto detectado ou assinalado por lei-
e, em muitos aspectos, absolutamente ímpar da Holanda do sé- tor amigo, ora a tentar uma aproximação ainda ma ior ao texto
culo xvn, sem olhar ao que nessa obra se nos impõe como ele- de Espinosa . Se tivesse de apontar, resumidamente, a diferença
mento matricial da política quando pensada à luz da liberdade entre a presente edição do Tratado Teológico-Político e as que a
individual, é passar simultaneamente ao lado do texto de Espi- precederam, diria que ela reside no compromisso, agora incom-
nosa e do que realmente constitui a modernidade em polític_a. paravelmente mais decidido, com a literalidade, ou melhor, na
Se, de facto, pelo menos nó Ocidente e desdé ·há dois século~, certeza de que traduzir não se resume em dar a compreender,
recusamos esse cruzamento do poder e d~ religião que transfi- muito menos em interpretar e isolar o sentido, corno se este
gura a lei em mandamento e o discurso político em teologia/ é_· · alguma vez se desse isolado, mas sim em «dizer quase a mesma
principalmente porque Espinosa, como já alguém disse, ·sé nos coisa», como quer Umberto Eco 3, refazer na língua do tradutor
antecipou a ir espreitar por detrás do espelho, a indagar natu- a o continuum discursivo que faz do texto original um corpo vivo
reza da imagem que qualquer sociedade tem de si própria e da a respirar por sob a letra morta. «Traduzir é encenar», diz Henri
sua lei ou ordem interna, concluindo que ela não é senão isso Meschonnic 4 . A tradução do ITP, para justificar cabalmente esse
mesmo, ou seja, uma simples imagem que a perspectiva irreme- nome, deveria ser a representação em língua portuguesa do dis-
diavelmente particular de cada um e de cada povo tende a repre- curso espinosano, que o mesmo é dizer, de tudo quanto no ori-
sentar como espaço onde a transcendência irrompe soberana, ginal latino se repercute corno ideia ou afecto, ritmo ou respira-
de modo a que a potência do legislador se cubra de legitimi- ção, mente ou corpo.
dade inquestionável. Semelhante desígnio de literalidade esteve na origem e é a
Perante um texto assim, o tradutor é corno que impelido a razão principal da revisão, bastante profunda, que aqui tem lu-
recuperar a vitalidade que a cada momento emana das suas gar. O leitor mais familiarizado com a obra de Espinosa conhe-
palavras. Vitalidade do sentido, certamente, mas vitalidade, so- ce, decerto, a diversidade de opções com que se debatem os
bretudo, do que nele é recomeço, eco latente do começo. Louis tradutores. Abandonado, há já algum tempo, o modelo de tra-
Althusser explicita, a propósito desse outro alicerce da moder- dução como simples via de acesso ao sentido, o corpo a corpo
nidade que é Maquiavel, a diferença que há entre o verdadeiro com o original impõe-se como método obrigatório, mas levanta,
começo e uma simples novidade: «A novidade pode não residir aqui e ali, algumas questões de difícil solução. O vocabulário
senão à superfície das coisas e não afectar senão um aspecto jurídico-político é uma delas, entre outras razões pela dificulda-
das coisas, passando com o momento que a produziu. O come- de que há de encontrar para os termos usados por Espinosa,
ço, pelo contrário, está, se assim podemos falar, enraizado na comuns no seu tempo, uma equivalência satisfatória na rede de
essência de uma coisa, visto ser o começo dessa coisa: ele afecta conceitos e nomes de que se faz o pensamento e a prática polí-
todas as suas determinações e não passa com o instante, dura tica de hoje em dia, pelo menos no mundo ocidental, rede essa
com a própria coisa.» 2 É por isso que a tradução é sempre um que apenas há pouco mais de dois séculos começou a implantar-
regresso à nascente, ao original que a cada nova leitura se reve- -se. A dificuldade não é de mera transposição terminológica de
la mais actual e, por isso mesmo, já distante da tradução em uma língua para outra: é, sobretudo, de transposição do uni-
que, tempos atrás, o julgávamos ter aprisionado. verso político de Seiscentos para aquele em que se situa a reali-
No essencial, a tradução que proponho nesta nova edição dade que nos é dado viver. O que ocorreu, de facto, na sequência
segue os critérios já adaptados na primeira. Uma parte signifi-

3 Dire Q11asiLa Stessa Cosa, Esperienze di traduzione, Milano, Bompiani,


2
Écrits Philosophiqueset Politiques,tome 11, Paris, Éditions Stock/IMEC, 1997, 2003.
p. 46. 4 Poétiq11edu traduire, Paris, Éditions Verdier, 1999, p. 394.

8 9
da Revolução Francesa foi a definição de um novo jogo de con- veiculem um significado diferente do que possuem no texto ori-
ceitos e a fixação, sob o ponto de vista semântico, de uma série ginal? Ou como reconstituir a constelação de vocábulos por que
de termos, alguns deles já utilizados antes, mas que passam então estava disperso um significado que nas línguas de hoje se aloja
a apresentar, nas diversas línguas, uma significação por vezes em uma única palavra, clara e precisa? Será lícito traduzir impe-
bem diferente da que tinham no universo monolinguístico da rium por Estado, conforme vêm fazendo as traduções mais re-
cultura seiscentista 5. Quando falamos de república, não pensa- centes, e não usar Estado para traduzir a respublicaou a societas
mos o mesmo que Espinosa quand? fala de respublica;a socie- civilis? É certo que há boas razões para semelhante opção e é,
dade civil, depois de Hegel, é uma coisa · diferente da societas de resto, a que adoptamos aqui a maioria das vezes. Mas há
civilis dos juristas de dois séculos antes; : o ·Estado não çorres- trechos em que imperium aparece claramente, à semelhança do
ponde exactamente, nem à cives, nem à réspublica;o povo não :~ . . que ainda hoje acontece, a significar o mando ou o domínio
o mesmo que a multitudo, a plebs ou o vulgus; a cidad_e nãç, _é a sobre algo, como, por exemplo, as paixões. Pode, neste caso, o
cives nem a urbs; etc., etc. O problema ·reside, pois,· em fazer as tradutor levar a coerência a um ponto tal que caísse na infideli-
línguas actuais dizerem uma realidade «que lá não mora», como dade ao autor? Penso que seria incompreensível um tão extre-
diria Vitorino Nemésio. mado excesso de zelo. Não conheço, aliás, nenhum exemplo em
Ao longo dos séculos, a solução adoptada pela maioria dos que se tenha levado o afã de uniformizar as correspondências
tradutores foi a de transpor para o tempo e a língua em que vocabulares tão longe que, uma vez por outra, não se recue
traduziam o sentido que lhes pareceu estar por detrás da formu- perante a evidência de que é impossível, sem violentar o texto,
lação original. Uma tal solução, na tentativa de tornar o autor fazer o significado que hoje em dia possui determinado con-
legível aqui e agora, arrisca-se, porém, a perdê-lo totalmente de junto de vocábulos retroagir sobre um passado onde cada um ·
vista, porquanto leva a rasurar tudo quanto se imagina ser ana- deles se integrava, do ponto de vista semântico, em conjuntos
cronismo, ambiguidade, imprecisão, experimentação de concei- diferentes. Traduzir, em casos assim, é também não abolir hesi-
tos e flutuação terminológica, em resumo, tudo quanto é real- tações e flutuações conceptuais ou vocabulares, nem impor ao
H!['.-' mente escrita em acto. Num texto como o TratadoTeológico-Político, discurso de ontem uma ordem que só conhecemos hoje e que,
escrito numa altura em que os alicerces da conceptualização nessa medida, não deve tomar-se por universal.
moderna do político estão ainda por consolidar, semelhante risco Boa parte deste elenco de problemas sobre tradução é hoje
não é de somenos. tema de pesquisa e debates no seio da comunidade científica, a
As traduções mais recentes ensaiam, por tudo isto, uma isto acrescendo, no que a Espinosa diz respeito, a profunda re-
aproximação o mais estreita possível ao texto, nele descobrindo, visão, ainda não terminada e muito menos pacificada, que tem
não raro, inflexões e tonalidades de que as anteriores, preo- vindo a processar-se, ao longo das últimas duas décadas, nos
cupadas sobretudo com a recuperação do sentido, dificilmente estudos sobre a sua filosofia --política. Ao carácter irremediavel-
poderiam suspeitar. Aquilo que tentei fazer nesta nova versão mente precário de toda a tradução, vem, por isso, no caso pre-
vai nesse sentido e depara-se, por conseguinte, com as dificul- sente, aliar-se a necessidade de adoptar, algumas vezes, solu-
dades inerentes. Como dizer, por exemplo, algo que se confi- ções insuficientemente abonadas, ou mesmo sem abonação. Não
gura como problema na língua de partida numa língua onde vejo, todavia, outro modo de ultrapassar anteriores soluções,
esse problema já não existe? Como evitar que as palavras não 1: porventura abonadas, mas que me parecem insatisfatórias no
> estado actual da investigação sobre esta matéria.
1
1
Mantém-se, entretanto, na íntegra, com uma ou outra cor-
recção de pormenor, o texto introdutório que já acompanhava a
5
Veja-se, a este propósito, o que diz Paolo Cristofolini, «Le parole-chiave
primeira edição. Acredito que, no essencial, a sua actualidade
dei Trattato Político e !e traduzioni modeme », in Pina Totaro (a cura di), Spino- permanece, pese embora a mencionada revisão por que passam
ziana, Ricerce di terminologia filosofica e critica testuale, Firenze, Leo S. Olschki os estudos espinosistas em geral e a filosofia política de Espi -
Editores, 1997, pp . 22-38. nosa em particular. Não faria, por isso, grande sentido refazê-

10 11
-lo, tanto mais que uma boa parte dos temas que aí abordo
foram por mim retomados em publicações ulteriores 6, para as
quais remeto o leitor eventualmente intere ssado.

Lisboa, 7 de Outubro de 2003

NOTA A EDIÇÃO BRASILEIRA

(,
..
~
O Tratado Telógico-Políticoé a principal das obras que Espi-
nosa publicou em vida. O seu intento, expressamente afirmado
no subtítulo, é demonstrar que a liberdade de pensamento cons-
titui um dispositivo essencial para a manutenção da paz no inte-
rior dos Estados. Longe, porém, de limitar esse intento a um
simples enunciado estratégico, estabelecendo empiricamente, atra-
vés de factos históricos ou do seu tempo, uma relação de causa-
-efeito entre liberdade e paz, Espinosa elabora aquela que é a
primeira e, porventura, a mais profunda reflexão alguma vez
r~..
publicada sobre a democracia, regime que designa como o «mais
natural e o que mais se aproxima da liberdade que a natureza
concede a cada um».
Durante séculos, o escândalo que semelhante proclamação
representou aos olhos de todas as ortodoxias foi enorme. Mes-
K mo em nossos dias, se a encararmos em toda a sua dimensão,
f' não é ainda absolutamente seguro que já o tenha deixado de
ser. E por uma simples razão: Espinosa inscreve a liberdade no
.
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âmago da natureza humana, para demonstrar que só a partir
dela é possível pensar e executar uma política para os homens
;•
'· tal como eles são realmente, invertendo assim a convicção se-
cular e comummente arreigada segundo a qual a política se ali-
cerça numa verdade que teria de se impor aos homens e que
determinaria o limite até onde eles podem ser livres. Ao arre-
1
1 pio do contratualismo, que encara toda a política como uma forma
de reprimir o «estado de natureza » e vê no Estado uma garan-
tia do não-retomo deste, Espinosa apresenta a democracia como
uma forma de realização da própria natureza humana, porquan-
to as instituições políticas aí aparecem como realização objectiva
6
Ver, especialmente, Imaginação e Poder, Lisboa, Edições Colibri, 2000; da liberdade que está inscrita na essência de cada indivíduo :
A Vontade de Sistema, Lisboa, Edições Cosmo s, 1998. «o fim do Estado é, realmente, a liberdade ».

i 12 13
Como se tal não bastasse, como se a tese qu e acabamos de rigid o por Marilen a de Souza Ch aui, na Un iversidade de São
resumir não fosse já suficientemente deva stadora para os co- Paulo , onde veio a surgir a iniciativa de propor à Editora Mar -
nhecidos estereótipos do «bom governo » e do «bom príncipe », tins Fonte s a sua reimpressão, inclu sive porqu e a obra se encon-
a linguagem utilizada neste livro é de um desassombro raro na trava já esgotada no mercado. No momento da sua publicação
história da filosofia, ao ponto de fazer, por vezes, lembrar as no Brasil, é-me grato recordar quão estimulante foi essa expe-
invectivas de um Nietzsche que estivesse a braços com outro riência de leccionar para estudiosos de Espinosa em quem a li-
tipo de dogmas . Já houve quem lhe chamasse um manifesto . berdade de pensar e a naturalidade da crítica se sentiam, espi-
E o é, sem dúvida. Um manifesto á favor · da ·democracia; um nosanamente, como «ideia » do grupo . Devo, porém, uma palavra
manifesto contra a tirania, a super:stição : ~ todas . é\S.outras for- especial de agradecimento a Homero Santiago, que colocou todo
mas de escravizar os indivíduos, . ou seja·, de os fazer alienar, o seu interesse e saber r:testa reimpressão da tradução portu -
sujeitando-os pelo medo de castigos, nesta ou na oU:tra vida, a· guesa do Tratado Teológico-Político . Quanto às insuficiências que
leis que violentam a sua verdadeira natureza e, nessa · rttedida, o leitor, com certeza, aqui vai encontrar, essas, são todas da
lhes vedam o caminho para a felicidade e a plena realização de minha responsabilidade.
si mesmos. O Tratado Teológico-Político,porém, não se esgota
nesse manifesto erguido contra o império da tristeza, do res- Lisboa, 31 de Agosto de 2002
sentimento e do ódio. Ele é também, na designação com que se
lhe referem alguns contemporâneos de Espinosa, um «Tratado
das Escrituras», um livro em que a Bíblia é apresentada como
reflexo da imaginação dos Hebreus e em que a formação das

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instituições sócio-políticas do «povo eleito» se revela como um
processo histórico transfigurado em obra de um Deus soberano
e zeloso do seu império e dos seus súbditos.
A maioria dos intérpretes desta obra tem sublinhado, a meu
ver excessivamente, a enorme distância que vai do alegado es-
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.?
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boço que ela apresentaria do pensamento político do autor à
formulação clara e definitiva com que este aparece, depois, no
Tratado Político. Semelhante leitura tem, decerto, alguma base de
sustentação. Mas é, no mínimo, redutora e ignora por completo
a originalidade com que no Teológico-Políticose recorre ao texto
bíblico a título de paradigma de todo o fenómeno político, des-
vendando a paradoxal dimensão dos seus fundamentos, desig-
nadamente na versão democrática, onde a obediência só faz sen- /
tido se for destinada a produzir a liberdade. Talvez em mais
nenhuma obra, com excepção dessa outra fulguração do génio
que é O Príncipe, de Maquiavel, se ilumine com tanta lucidez a
essência do político.
A tradução agora apresentada foi feita e teve a sua pri-
meira edição há mais de uma década (Lisboa, INCM, 1988), numa
altura, portanto, em que os estudos sobre o pensamento político
de Espinosa eram bem mais raros do que são hoje. Anos depois,
tive o privilégio de colaborar com o Grupo de Estudos Espino-
sanos, da Associação de Estudos Filosóficos do Século XVII, di -

14 15

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ABREVIATURAS
UTILIZADAS NA INTRODUÇÃO E NAS NOTAS

l:'1 TRE - Tratadoda Reformado Entendimento, Opera, vol. n


~j PM - PensamentosMetafísicas

(~ E-
TTP -
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Ética,Opera,vol. 11
TratadoTeológico-Político,
Opera,vol. m
TratadoPolítico,Opera, vol. Ili
CG - Compêndiode Gramáticada Língua Hebraica,Opera,vol. r
'
A tradução dos trechos de qualquer destas obras, bem como a da Cor-
respondência(Opera,vol. rv), a seguir citados, são da nossa responsabilidade.
A edição utilizada foi a das Opera,lm Auftrag der HeidelbergAkademieder
Wissenschaften, herausgegeben von Carl Gebhardt, Carl Winters Universitaets-
buchhandlung, Heidelberg , 1925, 4 vols .
As obras de Descartes, também referidas com frequência, são citadas a
partir da edição de Charles Adam e Paul Tannery, Paris, 1897-1909, 12 vols.
(abreviatura AT).

!
-
ABERTURA

' E DEUS ESTAVA NO MUNDO

1
Recapitulação da Ética

Este livro trata de religião e política, conforme sugere o


título, o índice das matérias e a interminável contestação de· que
foi alvo durante séculos. Uma tal evidência não _esgota, porém,
. ~;
~
o seu conteúdo, nem esclarece grandemente o alcance dos seus
enunciados. Pelo contrário, talvez não andemos longe da verda-
i:: de se a considerarmos responsável por toda uma longa cadeia
~ Yt de interpretações do espinosismo 1 que tomam o Tratado Teoló-
gico-Políticocomo uma espécie de parêntesis, um sobressalto mo-
mentâneo que teria levado o filósofo a descer da mansarda onde
há anos elabora, na frieza intemporal do «more geometrico», o
seu sistema metafísico, à realidade conflitual das seitas religio-
sas e políticas que se degladiam no tempo. Como adiante vere-
mos, e como tem sido abundantemente sublinhado no último
meio século, a imagem não poderia ser mais equívoca e redu-
tora . Ninguém, a bem dizer, já hoje contesta que a religião e a

1 Utilizamos aqui a grafia Espinosae, por conseguinte, espinosanoe espino-

sismo. Há, de facto, algumas razões a favor da versão Spinoza, a começar pela
maneira como o autor assinou por diversas vezes, mas a origem castelhana
do apelido, realçada por filólogos como Leite de Vasconcelos e C. Michaelis de
Vasconcelos, aconselha a que se prefira a transcrição com s e com E inicial
(cf. Carvalho, 1930, ed. 1978, pp. 367-368). Quanto ao nome Baruch, que na
J versão latina aparece como Benedictus, julgamos ser de manter a versão he-
braica, tal como faz, no artigo citado, o mesmo Joaquim de Carvalho, muito
embora , anos mais tarde, na sua tradução da I parte da Ética, tenha cedido à
f tentação de o aportuguesar, escrevendo Bento de Espinosa .

21
política de que se fala aqui estão intimam ente conectada s com a sobr e a etern a impo ssibilid ade d e pensar a assimetria entr e a
filo sofia demon strada na Ética. E, no entanto, dizer isto ainda lei dos deuses e a lei dos hom ens, na medida em que isso equi -
não é tudo. Porque o Tratado Teológico-Políticonão é apenas uma J valeria à aniquilação da própr ia lei como ord em absoluta ; ma s
obra que tenha subjacente a concepção da realidade reivindica- trágico ainda porque nele se protagoniza o paradoxo da opinião
da pelo autor ou que para ela remeta, como teria irremediavel - que se ignora como tal, tornando assim inexorável a guerra pela
mente de acontecer: é, sim, a primeira e, em muitos aspectos, verdade, que o mesmo é dizer, as cruzadas pela fé.
definitiva explanação do sistema espinosano, a tentativa progra-
mada de recuperar o que a racionalidade em moldes «georrtétri- ·
1 Espinosa retoma este paradoxo em toda a amplitude das
suas consequências teóricas e práticas. A tese fundamental é a
cos » insinuava como desordem _ou seryidão a.Iesgatar pela li- de que filosofia e religião devem estar separadas, e nisto parece
berdade intelectual, sem suspeitar .que ..é precisamente aí que se- ' repetir o gesto de tantos dos seus contemporâneos, como Gali-
decide toda a gama de possibilidades de interacção dessa~ par- leu ou Descartes, que pagam a liberdade de especulação teórica
tículas do todo que são os homens. · ao preço de deixar intacta a ordem prática e jurar a inocência
Como se justifica que um livro assim tenha estado tanto tem- das suas descobertas face à Bíblia e a tudo o que sob os auspí -
po condenado ao estatuto de simples manifesto, erudito embo- cios desta se de termina socialmente . Mas a separação que o Tra-
ra e de efeitos reconhecidamente demolidores, mas de qualquer tado defende não é de natureza estratégica, é de natureza polí-
modo fora da problemática filosófica? A explicação só pode ser tica. Como tal, a análise de Espinosa não pode passar à margem
uma: é que o Tratadocomete a ousadia inédita de chamar a si o do Livro em que se fundamentam as leis. Pelo contrário, se a
privilégio de julgar na sua globalidade o mundo constituído e o Bíblia é a principal fonte de legitimação do poder, e se o poder
mundo a constituir, sem se deter face à região habitualmente se destina a garantir a segurança e a paz entre os indivíduos, ·
considerada inacessível e que ele detecta como o fulcro em tomo há que explicar por que razão estes se combatem em nome da
do qual gira toda a questão da ordem prática, a região do sa- mesma Bíblia, tornando assi_m ineficaz a suposta legitimação . Só
grado. Projecto de uma filosofia sem resíduos, este livro teria depois disto é que se podem sugerir outros fundamentos do
.. também de ser um livro sobre o Livro, um «tratado sobre a poder, os quais implicam, já o veremos, a separação dos domí-
Escritura», como lhe chamam os contemporâneos, uma escalpeli- nios do saber e da fé como condição para a paz e a unidade
zação literal daquilo que todos consideram o Verbo feito carne . dos Estados. ·
Carne dilacerada, acrescente-se, pela infinda guerra que se trava Mas vejamos, antes de mais, as primeiras notícias que nos
entre os seus intérpretes. E acaso poderia ser de outro modo? falam desta obra. Nos princípios do Verão de 1665, Espinosa
Encarnar é sair da intemporalidade em que se pressupõe o Verbo tem praticamente pronta a m parte da Ética. Acaba de se curar
divino e manifestar-se no plano da extensão, das partes extra par- de mais um ataque de hemoptise crónica, o livro vai adiantado,
tes. Dizer o Verbo feito carne é dizer o verbo divino, o corpo mas revela-se mais difícil do que o autor contava. É por esta
múltiplo da palavra transfigurado em corpos de leis que por altura que as cartas amiúde trocadas com os amigos indiciam
natureza se ajustam às circunstâncias de espaço e tempo sem uma inflexão no seu trabalho. De Londres, H . Oldenburg e
deixar cada um deles de reivindicar o estatuto de universali- R. Boyle dão-lhe conta da perseverança com que os membros
dade e intemporalidade que assiste apenas ao Verbo primitivo. da Royal Society, de que o primeiro é secretário, prosseguem a
Esse o equívoco das interpretações, dos comentários pretensa- título individual experiências científicas - «uns sobre a mecânica,
mente destinados a reconstituir a verdade de uma palavra au- a hidrostática, outros sobre a anatomia, a mecânica ou outras
sente e condenados, de facto, a reparti-la em vez de repeti-la, a matérias» -, apesar de a situação política impedir que mante-
representá -la sempre em corpos diferentes . É trágico o destino nham reuniões públicas. Depois de anunciar para muito breve o
deste texto que as religiões - o judaísmo, o cristianismo, o isla- pequeno tratado que Boyle compôs para criticar «a origem das
mismo - invocam a título de fundamento da lei e que na reali- formas e das qualidades, tal como ela é apresentada pela Escola
dade se constitui com essa mesma lei e por isso se esgota em e seus professores », Oldenburg lança, ainda na mesma carta,
cada uma dessas invocações! Trágico porque se desenha por esta invectiva a Espinosa : «Quanto a vós, vejo que filosofais

22 23
r menos do que teologizais (se assim me posso exprimir), visto tado: «l. º - os preconceitos dos teólogos; sei, com efeito, que
que ocupais os vossos pensamentos com os anjos, a profecia e são sobretudo eles que impedem os homens de se consagrarem
os milagres; mas com certeza que o fazeis filosoficamente e, seja com todo o ânimo à filosofia e esforço-me, portanto, por de-
j" como for, estou seguro de que a obra será digna de vós e dese- nunciar esses preconceitos e desembaraçar deles os espíritos mais
1
jo vivamente conhecê-la.» Segue-se um parágrafo com algumas esclarecidos; 2.0 - a opinião que tem de mim o vulgo, que não
reflexões a propósito da guerra entre a Inglaterra e a Holanda pára de me acusar de ateísmo, colocando-me na obrigação de
(«mas porquê a gente queixar-se? Enquanto houver homens _ha- combater o mais possível essa opinião; 3.0 - a liberdade de fi-
verá vícios; todavia, o rnál não é eterno ·e ôs ·melhores podem losofar e de dizer o que sentimos , que eu quero defender por
combatê-lo») e Oldenburg toma: às -novíq.ades científicas que dia ti
.todos os meios, pois ela é suprimida pela excessiva autoridade
a dia ocorrem no seu meio (Corrrspondêncía,carta XXIX). e petulância dos demagogos» (idem, ibidem).
A esta carta Espinosa responde ·num estado de · espírjtà . que . A conexão entre as duas partes deste texto escapará em de-
manifestamente não sintoniza com o do seu · interlocutor, pois o - finitivo a Oldenburg, corno, até há muito pouco tempo, à gene-
que neste é preocupação transitória representa para aquele exac- ralidade dos leitores do TTP. Por isso, na carta seguinte, o seu
tamente o núcleo da sua reflexão . É o célebre texto em que o interesse vai direito ao problema da conformidade das partes
autor refere as razões que o levaram a compor um «tratado com o todo a que Espinosa aludira, pedindo-lhe instantemente
sobre a Escritura». De tão minuciosamente explicitadas, essas que lhe transmita a sua ideia sobre o assun to. Quanto a um
razões ofuscaram boa parte dos intérpretes, que não só as des- «Tratado de Escritura», o sábio inglês confessa, muito cortes-
ligam do contexto em que vêm como, inclusivamente, as tomam mente, compreender as razões que levam o seu correspondente
por um enunciado das demonstrações a fazer no livro, quando, a ter de se explicar sobre tal assunto, mas não lhe atribui grande .
afinal, elas referem apenas o seu pretexto e os objectivos pre- importância e muito menos suspeita que ele venha a ser o lugar
\t ,,t
tendidos. Convirá, por isso, que nos detenhamos, ainda uma privilegiado de explicitação e solução original do problema do
1-,u-
, vez, sobre a carta na sua globalidade. A forma como começa é, acordo entre as partes e o todo. O que, de resto, se compreen-
desde logo, um desvio algo forçado no diálogo com Oldenburg: de. Em boa verdade, o tema explicitamente anunciado por Espi-
«fico feliz por saber que, na vossa Sociedade, os filósofos se nosa deveria constituir, já em 1665, aos olhos do mundo culto
preocupam, não só com eles próprios, mas também com o seu um problema ultrapassado. Sem querer antecipar o que sobre o
país. Vou esperar, para conhecer os seus trabalhos mais recen- assunto se dirá mais adiante, lembrarei apenas que a doutrina
tes, que os beligerantes fiquem saciados de sangue e façam uma da reivindicação do poder temporal face ao Papado, desenvol-
trégua para recobrar forças» (idem, carta xxx). Aparentemente, a vida a partir dos inícios do século XIV, tinha minado os alicerces
frase confirmaria a observação algo irónica de Oldenburg a pro- da representação medieval do «império» cristão, abrindo, sob a
pósito do alegado «desvio teológico» de Espinosa. O que se passa inspiração do averroísmo, o caminho à autonomia do político,
é, na realidade, o contrário. Se os seus correspondentes se como se pode ver pelas obras de Marsílio de Pádua e Guilher-
alheiam da guerra para filosofar, Espinosa não se alheia da filo- me Occam. Mais tarde, na própria Inglaterra de onde Olden-
sofia para «teologizar» nem para pensar a guerra: «Estas per- burg escreve, Giordano Bruno publicara, em 1584, esse diálogo
turbações não me provocam o riso, nem tão-pouco as lágrimas; . demolidor contra os aristotélicos de Oxford que tem por título
levam-me é a filosofar e a conhecer melhor a natureza humana. La cena de le ceneri e Ónde-se pode ler: «se os deuses se tivessem
Porque eu julgo não ter o direito de me divertir à custa da dignado ensinar-nos a teoria das coisas da natureza corno nos
natureza, e muito menos de me queixar, quando penso que os ensinaram a prática das coisas morais, vergar-me-ia antes de
homens, como os outros seres, não são senão uma parte da mais perante a fé nas suas revelações, em vez de me guiar pela
natureza e eu ignoro como cada uma destas partes convém com certeza das minhas próprias razões e sentimentos. Porém, como
o todo e lhe está conforme, e como, por outro lado, cada parte qualquer um podé ver com toda a clareza, nos livros divinos
se liga com as outras.» Só depois disto e na sua sequência di- postos ao serviço do nosso intelecto não são tratadas demons-
recta é que surgem os motivos que justificam a feitura do Tra- trações e especulações relacionadas com as coisas naturais, como

l
24
i 25
11 1985, pp. 23-31). «Esforçou-se mais do que seria necessário para
i\1 se fossem livros de filosofia; o que aí se ordena, através de leis
e para ajudar o nosso entendimento e os nossos sentimentos, é se libertar de toda a superstição - comenta, por sua vez, Lam-
a prática das acções morais» (Bruno, ed. 1984, p. 103). Galileu, bert van Velthuisen -; querendo prevenir-se contra ela, precipi-
1: por seu turno, não diz outra coisa : «Se em todos os casos em tou-se no pólo oposto; querendo evitar o pecado da superstição,
acabou por rejeitar toda a religião » (carta incluída na Correspon-
ll que as obras não concordam com o verbo considerarmos a Sa-
dência de B. Espinosa , com o n. 0 XLII). E, em 1674, na livre e
grada Escritura como secundária, isto em nada a prejudicará,
IJ florescente república por mais de uma vez invocada no livro,
pois ela está muitas vezes adaptada à opinião do vulgo e atri-
r- bui frequentemente a Deus qualidades que são de todo em todo . um decreto promulgado pelas Cortes da Holanda proibia a cir-
i!
,J erróneas» (cit. irt Préposiét, 1967, p.157f E ·güem poderia então culação do ITP, juntamente com outras obras , entre elas as duas
ignorar o Leviathan, que fora publicado ~m 1650.-e ·que dedicava traduções, em holandês e em latim, do Leviathan.
:1i metade das suas páginas, mais precisamente, as terceira e qqá!'{a · Tal proibição não impedirá que algumas edições continuem
l,1
,1.
partes, à discussão do tema bíblico ri.a perspectiva de _urhá _r_econ-_ a surgir, sob os títulos mais diversos. Chegar á, no entanto, para
tl sideração do poder em termos adequados ao avanço .das ciên- ir rarefazendo o contacto, quer com esta, quer com as restantes
'I' cias? A curiosidade que a obra anunciada por Espinosa pudesse, obras do autor, que vão sair a público logo após a sua morte.
lil ainda assim, despertar, não vinha, por conseguinte, da matéria, Boa parte do que a seguir se foi dizendo e, durante séculos,
'I
l'I' mas quando muito do tratamento que o autor lhe iria imprimir. julgando sobre ele tem como fonte quase exclusiva o Diction-
li Quanto à compreensão que Oldenburg manifestava pelo projecto, naire historiquee critique de Pierre Bayle, publicado em 1696, que
IJI essa partia da convicção igualmente fundada de que, se em ter- lhe dedica um longo artigo e o classifica com uma fórmula que
1 mos teóricos o problema parecia solucionado, em termos prá- fará fortuna: «ele foi um ateu de sistema» (Bayle, ed. 1983, p. 21)..
ticos a realidade era bem diferente e legitimava, a título de de- A própria Enciclopédie,no texto dedicado a Espinosa, limitar-se-á
fesa circunstancial, qualquer escrito a reivindicar o separar de a transcrever o início do artigo de Bayle e a remeter para a pa-
águas entre teologia e ciência, já enunciado mas evidentemente lavra «ateísmo» (cf. Préposiet, pp. 128-129, nota). E quando não
longe de ser aceite. Aquilo que Oldenburg fica a aguardar é, é o ateu que se reverbera, surge em seu lugar uma persona-
pois, um texto de natureza táctica, original embora, um texto a gem ainda mais distante, admirada embora, qual seja o Espi-
remeter para os domínios da retórica e nunca para os da heu- nosa invocado na Alemanha por Jacobi e outros «filósofos da
rística. É aqui que surge o primeiro equívoco, aquele que ditará religião» que procuram no autor da Ética «novos meios para
lf: - t-
os destinos da interpretação. O livro vem a público em 1670, conciliar a discursividade da linguagem com o conhecimento
com as precauções que as circunstâncias exigiam, isto é, anóni- intuitivo do ser, a liberdade do indivíduo com a totalidade do
mo e com falsas indicações sobre o impressor e a respectiva absoluto» (Zac, 1980, p . 239). É o mito do orientalismo de Espi-
cidade. É um cuidado inútil, como o próprio Espinosa rapida- nosa, de que o próprio Hegel se faz eco (ed. 1954, pp. 254, 276
mente terá percebido, uma vez que, em Novembro do ano se- e 293) e que transparece na expressão entusiástica com que Scho-
guinte, já revela a Leibniz a intenção de lhe enviar um exemplar penhauer se refere a ele e a Giordano Bruno: «para génios deste
no caso de ainda o não conhecer (carta XLVI).Tinham, entretan- tipo, a verdadeira pátria eram as margens do Ganges!» (cit. in
to, começado a surgir as primeiras críticas, vindas algumas de Hulin, p. 139).
sectores os mais liberais que nem por isso poupavam o autor. Tudo isto, por ass im dizer, já pertence hoje à pré-história
1 «Não me lembro de alguma vez ter lido um livro mais pestilen- do espinosismo, se por espinosismo entendermos o movimento
cial» (cit. in Moreau, 1982, p. 9), comenta Philip van Limborch, de reposição do sentido dos textos em parâmetros aceitáveis à
o pastor que, não obstante a severidade aqui demonstrada, ·virá luz, quer da sua leitura e do respectivo confronto, quer do con-
a divulgar, em 1687, o ExemplarVitae Humanae,de Uriel da Costa, texto intelectual em que eles circularam ainda em vida do autor
r
r,, e se indignara, já em 1662, pelo excessivo poder de que gozam e que permite determinar, com relativa certeza , o significado
na Holanda as sinagogas sobre os seus fiéis, acusando-as de dos conceitos a que recorrem. Se compulsarmos a imensa biblio-
Vi·
1., constituírem verdadeiros Estados dentro do Estado (v. Aurélio, grafia sobre o assunto, veremos que ela esteve, as mais das

26 27

l
1
:iI 1 vezes, prejudicada pela opção que julgou ter de fazer entre o blicar - o que não chegar á a fazer pelas circunstância s adv ersas
l 1i
autor da Ética e o autor dos tratados que versam sobre matéria
política . Só muito recentemente, no prosseguimento aliás de al-
qu e lh e surgiram . Tudo quanto lhe acrescentou entretanto, se
virmos bem, não é muito do ponto de vista inicialmente reivin -
i guns estudos pioneiros como os de Gioele Solari (1927, ed . 1974, dicad o pelo autor, nem sequer respeita já esse mesmo ponto de
pp. 195-294) e os de Leo Strauss (1930, ed. 1965), se removeram vista, posto que nas duas últimas partes se trata da servidão e
;il
" os preconceitos antimetafísica na interpretação da doutrina polí- da liberdade humanas, ou seja, se consideram as afecções ou
tica e a investigação inflectiu num sentido em que já não é pos- _ paixões passivas e activas, não como linhas e superfícies, à se-
sível continuar a· ver ·em Espinosa apenas · o anti-hobbesiano pre - melhança do que acontecera na rn parte , mas como coisas boas
cursor dos Estados democráticos. A _pouco .é pouco, foi-se ou más, que salvam ou deitam a perder os homens, que se to-
tornando evidente a estreita inter .dependência entre os vá:r_ios. ' mam, em suma, no plano da exfstência quando antes tinham
livros e tanto o Tratado Teológico-Políticocomo o Tratado_Polftlco _ sido tomadas como puras essências . Isto mesmo ressalta Vítor
assumiram o verdadeiro papel de elementos irripreséindívels no - Goldschmidt, para daí retirar a conclusão de que, a partir do
sistema. Todavia, se esta mudança revolucionou, de facto, o en- meio da Ética, se dá uma ruptura que é caracterizada pela emer-
tendimento do espinosismo, já o mesmo se não poderá dizer, gência do «eu empírico » e que se bifurca em dois sentidos : o da
pelo menos com a mesma certeza e alcance, em relação à leitura ' moral , desenvolvido nas duas últimas partes do livro, e o da
propriamente dita dos tratados políticos, em particular do TTP. política, que surgirá só depois no Tratado Político (Goldschmidt,
Repen sou-se, é verdade, a doutrina nele compendiada. Mas foi 1978, pp. 105-122).
um pouco como se, em reconhecimento dá coerência do autor, Esta hipótese contém um elemento importante para aquilo
se presumisse que os seus conceitos filosóficos já então elabora- que estamos a dizer, qual seja o de que, na altura de passar à'
dos constituíam necessariamente a retaguarda e preenchiam as moralidade e à política, Espinosa muda de «ponto de vista »,
entrelinhas dos estudos sobre a Bíblia e a política. Ora, o que substituindo a dedução sub specie aeternitatis pela historicidade
se aqui pretende, ainda que inscrito na mesma perspectiva, é do eu empírico. Porém , a complementaridade que ela parece
um pouco diferente. Resumindo em duas palavras, o que se pro- sugerir entre os dois grandes blocos da obra assim delineados
cura evidenciar é que o TTP não é um anexo, coerente embora, levar -nos-ia a paradoxos insolúveis. Na verdade, ao presumirem -
mas sim uma formulação do sistema, formulação esta onde os -se, e com razão, as três primeiras partes da Ética como um
conceitos vão subsumir, em simultâneo, a realidade e as suas todo, somos obrigados a assumi-las como uma ontologia sem
versões anteriores, o mundo e a Escritura, os seres e os sabe- resíduos problemáticos, o que significa que a substância, os atri -
res, refundindo-os numa totalidade que não aparece em mais butos e os modos aí se conjugam teoricamente, esgotando todo
nenhuma das obras de Espinosa. o discurso filosófico sobre o ser e os seres . Nem outra coisa se
Posta a questão nestes termos, poderia pensar-se que estamos poderia, aliás, deduzir do necessitarismo aí consignado, que de-
a sugerir uma reavaliação de toda a obra de Espinosa . O que fine a substância como produção (actuosa),mas inscreve a genea-
de facto se passa é bastante mais simples e vem , aliás, ao en- logia das suas produções (os modos) na moldura de uma razão
contro de alguns problemas decisivos que se levantam face à que no limite ignora o acidente. Como teorizar, então, no inte-
mencionada interrupção na feitura da Ética. Se não, vejamos. rior desse quadro, a existência concreta dos modos finitos, que
Em 1665, na carta já citada, o filósofo dá praticamente por ter- por essência estão também in fieri mas não podem conhecer a
minada a m parte da obra. No essencial, poderíamos dizer que globalidade das suas conexões com o todo, que o mesmo é di-
estava concluída a ontologia espinosana. Deus ou a natureza, a zer, a globalidade de sentido da sua acção? Eis o que nos leva
alma ou a ideia do corpo, as afecções ou as relações de mera a duv idar da referida complementaridade, por muito que o pró-
concomitância entre o pensamento e a extensão tinham sido de - prio autor a pudesse presumir no momento em que tenta publi -
duzidas e concatenadas segundo o método dos geómetras, num car os cinco livros da Ética.
conjunto a que, aparentemente, nada mais havia a acrescentar. Há, com certeza , uma ruptura e não apenas uma interrup -
No entanto, só dez anos depois Espinosa faz menção de a pu- ção nesse momento da obra . Mas é uma r uptura cujo alcance se

28 29
!
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11
1 '1
' 1
tem de considerar como reinvestindo a metafísica de Espinosa
de uma nova problemática e, só nessa medida, de um novo
«ponto de vista». É precisamente esta a operação que tem lugar
suspensão, pela qual se pode definir a política, emerge como
algo de incompaginável na produção genético-dedutiva dos se-
res, tal como ela ficara assente desde as primeiras páginas da
1,,
no Tratado Teológico-Político,obra que está omissa na hipótese Ética, obrigando a um recomeço. Hobbes apercebera-se deste
1,", mesmo problema e concluíra pela impossibilidade de um dis-
li 1 aventada por Goldschmidt e que, a ser tida em conta, a poderia
1·11 aprofundar e responder até a algumas interrogações por ela dei- curso exacto e fundado sobre a natureza, isto é, de uma ciência
1
física, contrariamente à política, que por originar-se em princí-
l',i xadas. Talvez só Antonio Negri (1982, pp. 155-185), e com pressu-
postos diferent!;!s, tenha, até hoje, sublinhado a verdadeira di-· pios determinados pelo homem - as leis resultantes do con-
1, mensão metafísica de uma ol?ra que, não _obstaI}t~, quase toda a trato - se poderia deduzir racionalmente 2 . Mas a Espinosa uma
gente reconhece como ocasião ~e viragem no espinosismo. A seµ. '- tal compartimentação pareceria sempre suspeita ou insuficiente,
i,. tempo se discutirá esta questão. Para -já, e· ainda a propós~to · do na medida em que implicava abdicar do postulado da raciona-
11·
' 1
verdadeiro lugar do Tratado Teológico 7Políticono conjunto- do sis~ lidade do real. Daí que, ao passar à abordagem do político,
tema, mencionarei apenas uma divergência: Negri, com efeito, tenha de repensar a metafísica e a física de modo a que elas
li'
!11
toma este livro como um local de passagem, um salto obriga- abarquem o ser na sua plenitude e os seres na plenitude das
'i
tório em direcção ao que chama «segunda fundação» da filoso- suas inter-relações . Para tanto, é necessário confrontar-se com a
~ fia de Espinosa, onde a política se tomaria «a alma da metafí- matriz para a qual remete toda a política, se mais não for a
~ ,sica» e a imaginação conquistaria um estatuto ontológico através título de exemplaridade, confrontar-se, em suma, com o discurso
~ ··.da «constituição do real pelo homem»; aqui, pelo contrário, dá- por excelência que é o discurso da lei: a Sagrada Escritura. Será

~
-se por adquirido que a substituição de alguns conceitos verifi- este o objecto explícito do ITP.
~~
cada em obras subsequentes e contemporânea, aliás, das anota- A partir daqui, o binómio servidão-liberdade tomar-se-á o
ções acrescentadas pelo autor ao Tratado Teológico-Políticonão problema de Espinosa: servidão encarada como impotência face
invalida o que já estava dito nem o altera no fundamental. à natureza e face aos outros para reger a própria vida, como se
pode ver pela singular coincidência entre as primeiras linhas dos
prefácios do Tratado Teológico-Políticoe da IV parte da Ética; li-
2 berdade que é autonomia, independência perante a fortuna, e
que se aponta como ideal ditado pela razão. O ideal, repare-se,
A estrutura do TrP
não é aqui uma ideia de que se possa fazer decorrer a realida-
de política. Se assim fosse, esta deveria surgir na continuação
Resumindo, os dados são estes: no momento em que a filo- directa das primeiras partes da Ética e apareceria apenas como
sofia de Espinosa passa da metafísica e da física para o que hoje um hobbismo metafísicamente legitimado. Em vez disso, o que
designaríamos por antropologia, o sistema oscila nos seus fun- há de mais original no projecto espinosano é precisamente o
damentos, confrontado que fica com a questão, por ele próprio considerar a política como uma instância que pode garantir as
equacionada na carta a Oldenburg, de saber como as partes se condições para o homem se libertar, para a razão se exprimir, e
conjugam (conveniant) entre si e com o todo. Da necessidade não como uma instância produtora da liberdade e tradutora da
com que o todo (a substância) actua e se autoproduz à contin- razão. Vê-lo-emos mais adiante. Por ora, interessa apenas pôr
gência com que as suas manifestações modais, os diversos se-
em evidência o programa que, mais do que estar subjacente, é
..
I'.'
res, se fazem ou desfazem no jogo que opõe as diferentes capa-
cidades de preservação (conatus), o mundo não se esgota, pois
há ainda a realidade dos homens, os quais, sem deixarem de
ser igualmente modos finitos, se autopropõem no entanto fins, 2 Em boa verdade, e se bem que esta conclusão prevaleça, a natureza e a

isto é, têm a possibilidade de suspender, ainda que precaria- classificação das ciências será objecto de oscilações de obra para obra, ao longo
de quase toda a vida do autor do Leviathan (cf. Aurélio, 1985, b, pp . 481-482).
mente, o que a lei de constituição dos modos lhes dita. Esta

31
30

!
'O,'.

de senvolvido de uma forma explícita ao longo do TratadoTeoló- precur sor da mod erna exege se bíblica, tal como esta viria, doi s
gico-Político. séculos mai s tarde, a ser feita, inclusivamente por ortodoxia s
À primeira vista, nada disto transparece na obra . Percor - religiosas das mais intransigentes . Mas o que está em causa no
rendo as suas páginas segundo a leitura tradicional, deparamos Tratado não é propriamente a verdade ou falsidade deste ou
unicamente com treze capítulos sobre problemas teológicos e es- daquele aspecto da Escritura. Isso fora a discussão em que se
criturais, dois a reivindicar a separação entre a fé e a razão e enredara o Renascimento e que Galileu repetirá tragicamente.
cinco, finalmente, sobre política, onde se faz ~. 9-efesa da liber- Se Espinosa convoca a Bíblia, não é tanto a título de saber como
dade de pensamento e de expressão e se assegura que ela em a título de poder, não é como tutela da ciência mas sim como
nada prejudica o Estado. É necessário,. pç,rtànto, · procurar uma tutela da obediência. Porque se o objectivo é situar a realidade
nova distribuição dos temas que vá -~lém do. _seu enunciado no _· dos homens no âmbito da realidade total, há que remover os
índice e contemple o verdadeiro conteúdo dqs célpítulos." . _ ~ alicerces em que está fundada a lei, integrar as narrativas bíbli-
Assim, nos três primeiros, poderemos ler, através da análi- cas no quadro mais amplo do discurso pelo qual se constituem
se do conceito de profecia e da função profética, uma reformu- as sociedades e ver até que ponto essas narrativas são intrinse-
lação do problema do conhecimento. Nos três seguintes, em que camente extraordinárias, na medida em que, para instaurar a
se fala da lei divina, das cerimónias e dos milagres, é toda a ordem moral e a ordem civil, têm de corrigir a ordem natural
ontologia espinosana que apjirece refeita, mediante o reconheci- dos humanos que é o conflito. Passar ao lado desta questão é
mento de uma fractura irremediável entre o natural e o artifi- limitar-se a questionar a autenticidade deste ou daquele legisla-
cial e a tentativa de os conjugar no sistema. Entra-se então na dor, exercício que é comum a todos quantos tentam apenas res-
questão da Bíblia: primeiro, o método de interpretação (cap. vu); guardar a possibilidade da livre investigação científica, como
em seguida, a análise do Antigo (caps. vm-x) e do Novo Tes- Galileu, ou reservar para o Príncipe o que a tradição confere ao
tamento (cap. x1); depois, o conteúdo global de todo o Livro Papa, como Thomas Hobbes . O problema de Espinosa não é
i.
(caps. XII-XIII); e, finalmente, os limites do saber aí apurado e a saber quem tem o direito de legislar, é saber o que é o direito
necessidade de o não tomar por filosofia (caps. XIV-XV). A termi- e o que é a lei. E a lei é palavra, como a língua hebraica deixa
nar, vêm os capítulos expressamente dedicados à política . Esque- transparecer ao tomá-las por sinónimos. A Bíblia, palavra de
matizando, a distribuição seria a seguinte: Deus, é Deus feito lei. A questão, portanto, é compreender como
o Deus sive natura, este Deus que é a natureza exprimindo-se na
Caps. 1-m: o conhecimento. infinidade dos seus atributos e modos, se desdobra em palavra-
Caps. IV-vi:o ser e os seres. -lei humana.
Caps. vu-xv: o saber,ou o Livro. Na Ética, consumando-se embora a recusa da transcendên-
Caps. xv1-xx: o poder. cia através da afirmação da unicidade da substância absoluta-
mente infinita e da constituição dos modos como expressões da
É esta a leitura que a seguir se propõe. Estranhar-se-á, tal- infinidade dos seus atributos, o sistema compreendia a reali-
vez, que o Livro ocupe, ainda assim, boa parte da obra . Assim dade dos seres e do pensamento mas deixava por determinar a
acontece, de facto . E porquê? Urna explicação fácil, tentadora constituição específica dos agrupamentos humanos . Mesmo as
mesmo, consistiria em ver aí o tributo pago por Espinosa às duas partes que o autor lhe acrescentará, muito depois, contem-
suas origens judaicas, de sangue e formação, uma espécie de plam apenas a possibilidade de libertação individual pela razão,
tardio ajuste de contas com a Sinagoga ou, o que seria mais ou seja, pelo conhecimento do verdadeiro lugar de cada um no
exacto, uma irrupção torrencial do saber bíblico durante anos concerto da totalidade. A política era apenas indirectamente aflo-
recalcado sob o jogo dos axiomas e deduções. Não falta quem rada, parecendo não se atribuir qualquer estatuto especial à rea-
leve a interpretação por esse caminho . De uma forma ou de lidade constituída mediante a imaginação humana ou remeten-
outra, é mesmo essa a imagem consagrada do Tratado Teológico- do -a para a lei da formação de todos os outros modos. Ora, a
-Político,ainda quando ele é tomado, e justificadamente, como o política, sem ser propriamente uma ruptura na ordem da totali-

32 33
dade, pelo menos como a entende Espinosa, que nesse aspecto
reivindica absoluta divergência com Hobbes, define-se no en-
tanto como tentativa de limitar e orientar a produção e consti-
tuição da natureza, afirmando-se como uma modalidade dife-
rente na ordem dos seres. Não basta, por isso, uma simples
delimitação dos campos, uma partilha da autoridade entre fé e
razão, teologia e política, consubstanciada no pacto de não-
..;,•
-agressão até aí reiv-indicado pelo-saber e pelo -poder face à igrejà.
É preciso rever a autoridade, . reler a :Bíblia, reins.crevê-la no cir- I.
·e
cuito de produção da substânçi"a e dos modos rescrever :assim ·,
A VERDADE E AS OPINIÕES
a ontologia de maneira a entender como : ~<convêmentre _si~> - es-
sas partes do todo que são os homens. É esse o projecto do
Tratado Teológico-Político.
1
Conhecer

,.1
... Ler a Bíblia significa, antes de mais, identificar os conheci-
mentos que aí se nos oferecem. Trata-se de profecias ou revela-
ções, como diz a tradição e Espinosa não vai contra. O proble- ·
ma está em saber o que é a profecia e se a sua definição legitima
i:r.r:
·. o posicionamento que habitualmente se lhe atribui na esfera dos
saberes. É daqui que parte o Tratado Teológico-Político.
Este começo, repare-se, não difere grandemente daquele que
tantas vezes os comentadores sublinharam na Ética,e só na apa-
rência ele remete para o cogito cartesiano. No princípio, o que
há, uma vez mais, não é o cogito, é Deus: «Profecia ou Revela-
ção é o conhecimento certo de alguma coisa revelada por Deus
aos homens» (infra, p. 133). A divergência com Descartes a tal
respeito é uma constante de toda a obra de Espinosa. E por
razões que M. Guéroult (1968, p. 34) enuncia assim: «o cogito
não pode ser o ponto de partida da ciência. Longe de pôr termo
à dúvida, ele torna-a inelutável. Separando Deus e o nosso enten-
dimento, torna as nossas ideias inadequadas, sendo a própria
ideia de um tal entendimento separado inadequada e ligada a
todos os fantasmas da imaginação: criação, livre arbítrio divino
e humano, etc. O processo da sua instituição, identificando o eu
sou com a inteligência que se descobre como essência do eu,
liga de facto o ser pensante à forma do pensar, o que equivale,
quer se queira quer não, a constituir a coisa pela reflexão sobre
a coisa, quando, na realidade, é a coisa, o eu sou, que, pelo seu
ser determinado, envolve e toma possível o conhecimento refle-
xivo do que ela é, quer dizer, do eu sou pensante».Espinosa parte

34 35
i
de Deu s. Mas este partir e este Deus não têm nada de uma A ser as sim, todavia, corno garantir a verda de de defini-
autobiografia que passasse a escrito e à teoria o abandono da ções que contemplam coisas existentes fora do entendimento,
Sinagoga pelo judeu excomungado . Deus é a substância única e cuja verdade não se esgota, por conseguinte, no princípio da
absolutamente infinita, o horizonte de ser onde os seres estão sua possibilidade? O processo, segundo Espinosa, é ainda e sem-
irremediavelmente instalados e de onde se não sai por qualquer pre o mesmo que se verifica nas matemáticas e em particular na
via, criacionista ou emanatista . Por isso, o cogito, concebido na Geometria . Há, com efeito, certas noções (notiones communes),
sua solidão supostamente . fundadora da ciência, jamais poderá como a de causa e efeito, que se dão no entendimento da mes-
ser urna ideia clara e distinta . Recortá-,lo na · p·aisagem substan- ma forma que as ideias matemáticas. Urna delas, a substância,
cial através de urna distinção tllllÍlériça ·~làtivarnente aos outros definindo-se como causa de si, não pode ser pensada senão corno
seres é ainda trabalhar com noções · gerais, fruto da irnaginaçã _o.: existente e como absolutamente infinita, pelo que tanto a exten-
Uma ideia verdadeira deverá ser, não apena~ a:designação ·_e~acta são corno o pensamento têm nela o seu princípio e a sua razão
de urna coisa, a sua definição nominal, ainda que esta seja im- de ser (cf. infra, pp. 56-61). Melhor dizendo, são seus atributos .
portante para não nos perdermos no labirinto das palavras, mas Em consequência, as ideias que se deduzem adequadamente a
também a tradução da sua essência, ou seja, a sua definição real. partir da noção de substância, quer se refiram à ordem das es-
Definir urna coisa é indicar a sua possibilidade intrínseca, a es- sências quer à ordem dos existentes, reproduzem objectivarnen-
trutura essencial que permite pensá-la corno verdadeira. «Para te o seu referente, ou seja, são verdadeiros . E porque a infini-
que urna definição se possa considerar corno perfeita deverá ex- dade da substância exige que a concebamos como única, a
plicar a essência íntima da coisa» (TRE, § 95). O entendimento racionalidade do universo exprimir-se-á tanto através das es-
não é, de resto, outra coisa senão esta potência do verdadeiro sências objectivas, as ideias adequadas, corno através das essên-
que produz essências objectivas segundo leis que regulam a sua cias formais, as coisas, ambas se correspondendo na medida em
{/ i;7
1-
actividade espontânea . Nisto reside a sua diferença relativamente que correspondem ambas ao processo expressivo da substância
à imaginação, que é associação passiva e fortuita de percepções, na diversidade dos seus atributos. As ideias adequadas estão,
reflexo do encontro casual dos corpos. Se urna ideia contém, pois, ligadas entre si pelas mesmas conexões necessárias que li-
portanto, uma essência objectiva, isto é, se não envolve contra- gam as coisas. É por essa razão que o entendimento «envolve a
dição, se ela é pensável, então ela é um produto do entendi- certeza, quer dizer, sabe que as coisas são formalmente corno
mento e, nessa medida, é intrinsecamente verdadeira. E não há nele estão contidas objectivamente» (TRE, § 108). A verdade é
necessidade de se tentar depois urna sua validação extrínseca, já critério de si mesma, repete Espinosa várias vezes.
que, «se a verdade não requer nenhum sinal, bas tando possuir Para o que vimos dizendo, é de somenos importância a enu-
as essências objectivas das coisas ou, se se prefere, as ideias, meração dos graus de conhecimento que Espinosa enuncia de
para suprimir toda a dúvida, segue-se que o método que pretende forma diferente de livro para livro (três no Curto Tratado:opi-
que se procure o sinal da verdade posteriormente à aquisição nião, crença verdadeira, conhecimento claro; quatro no Tratado
das ideias não é o verdadeiro» (TRE, § 36). Duvidar das ma- da Reformado Entendimento: por ouvir dizer, por experiência vaga,
temáticas, corno faz Descartes, até se demonstrar a veracidade por raciocínio e por intuição; novamente três na Ética:imagina-
de Deus, será, portanto, um absurdo, visto que toda a reali- ção, razão e saber intuitivo). Com mais ou menos variações, a
dade dos seres matemáticos se esgota na sua possibilidade intrín- classificação é clássica e tradicionaimente oscilante entre a for-
seca concebida segW1do o entendimento, que o mesmo é dizer, mulação platónica do livro VI da República (eikasia,pistis, dianoia e
na sua verdade. Da mesma forma, procurar a validação de urna noesis) e a aristotélica do De Anima (aistesis,doxa, epistemee naus).
ideia pela experiência também não faz sentido : «a forma do Qualquer destes esquemas, ainda que pressuponha sempre urna
pensamento verdadeiro deve residir nesse mesmo pensamento, ascensão progressiva, desde a simples suposição até à intuição
sem fazer apelo a outros. E não reconhece um objecto exterior exacta, é todavia atravessado por um corte que instaura a sepa-
ao pensamento corno causa; deve, sim, depender da potência e ração mais ou menos rígida entre, por um lado, conhecimento
da própria natureza do entendimento» (TRE, § 71). claro e, por outro, conhecimento confuso. O que é importante

j 36 37
notar, no que a Espinosa se refere, é que esses dois tipos de nosa limitar a certeza nas profecias, tanto da parte dos crentes
conhecimento não se distinguem entre si apenas pelo diferente como da parte dos próprios profetas, a uma simples «certeza
grau de verdade e de certeza subjectiva que os acompanha. Tudo •: moral», quer dizer, a uma certeza que, em última instância, não
isso são meras consequências daquilo que verdadeiramente os ,, está racionalmente fundada? Não serão os profetas homens que
separa e que é a sua diferente origem, o seu diferente modo de se caracterizam pela vivacidade de imaginação, e não precisará
produção, já que «as ideias claras e distintas que nós formamos o seu testemunho de um sinal para que neles acreditem? A solu-
parecem derivar unicamente da necessidade da nossa natureza ção desta passagem é decisiva para a compreensão de todo o
e <?-ependem apenas . e em absolut~ da nossa potência, enq{ianto . Tratado e não admira que a ela se tenham votado inúmeros co-

r,..
as ideias confusas se formam · muitas :':lezes independentemente 1,·.
.. mentários. Tentemos, resumidamente, ver os tipos de explica-
de nós» (TRE, § 108). Ou seja; aquelas formam-se pelà activi- ção que têm sido apresentados.
dade do entendimento, que por definição .se processa _segundo
um encadeado lógico e, por isso, elas são verdadeiras; · estas·; , a) Uma primeira explicação consiste em assinalar uma total
pelo contrário, resultam da passividade do entendimento, da ._,,ioontradição entre a Ética e o Tratado Teológico-Político,entre o
associação fortuita de percepções. O próprio entendimento, Deus sive natura e este Deus personalizado que deteria a ciência
repare-se, não é mais do que esta actividade que se manifesta e a comunicava fragmentariamente aos homens. Ter-se-ia, afinal,
f~t~ num encadeado de ideias verdadeiras, pelo que não há sequer Espinosa reconciliado com a tradição judaico-cristã, heterodoxa-
nele lugar para o erro. Fora dessa actividade, desse conatus, não ff·:mente embora? Impossível, já que toda a correspondência da
há nada que se possa identificar com uma faculdade à maneira i altura e mesmo posterior no-lo apresentam fiel à doutrina da
escolástica ou de Descartes. A alma humana é simplesmente um ;i,Ética. É isto que condena ao fracasso a tentativa feita por V. Bro-
complexo de ideias que correspondem às modificações do modo . chard (1926, pp. 332-370, cit. in Préposiet, 1967, p. 57) no sen-
finito que é o corpo de um homem, melhor dizendo, toda a :, tido de encontrar a hipotética síntese que traduziria o Deus espe-
alma é a ideia de um corpo. O Tratado Teológico-Político é, a este ,,l cffico de Espinosa: um «Jeová melhorado» que estaria presente
propósito, de uma coerência que escapou a alguns tradutores e nas duas principais obras do autor. Bem vistas as coisas, não só
intérpretes: jamais, ao longo das suas páginas, encontramos o não houve conversão, como inclusivamente os termos que aqui
termo anima, e mesmo spiritus, quando aparece, ·é em citação. nos aparecem a definir a profecia são o menos espinosanos e o
O que vemos é o termo mens, que tem na sua raiz indo-europeia mais ortodoxos possível.
o verbo men (pensar) e por isso traduz melhor, enquanto for-
ma verbal, a actividade do entendimento, ou então o termo b) Explicação bem mais subtil e fecunda é a que dá Leo
animus, quando se trata de referir a acção e a força da vontade. Strauss (1952, pp. 142-201). O autor de Perseguiçãoe Arte de Escre-
Mas eis que abrimos de novo o livro no seu início e a con- ver, detectando embora a contradição, fá-la depender de um
tradição, agora que esboçámos em linhas gerais a gnosiologia propósito deliberado de Espinosa que remeteria o Tratado Teoló-
de Espinosa, aparece ainda mais flagrante. Para quem estava à gico-Políticopara um género literário totalmente estranho ao que
espera de um manifesto avassalador da Bíblia e da religião, como encontramos na produção científica e filosófica moderna. Esta-
pretenderia qualquer libertino da época, para quem, além disso, mos, em resumo, na opinião de Strauss, perante um texto esoté-
tivesse visto no prefácio a crença em coisas extraordinárias ser rico onde as contradições constituem um elemento estratégico
liminarmente explicada pelo medo, nada mais decepcionante do com dois objectivos: dissimular aos olhos do não iniciado a rup-
que este enunciado inteiramente fiel à mais estrita ortodoxia: tura implícita com o sistema de crenças dominante; evidenciar,
«profecia ou revelação é o conhecimento certo de alguma coisa para aquele cuja condição de iniciado não pode deixar de notar
revelado por Deus aos homens». Não é só a emergência de um essas contradições, a ausência de verdade em que se estrutura
Deus estranho ao Deus sive natura o que nos espanta: é sobre- o dito sistema. Como se justifica uma tal estratégia?
tudo a classificação de «certo» que se atribui ao conhecimento Em primeiro lugar, por razões de circunstância, tendo em
por ele comunicado . Certo, a que título? Não virá depois Espi- conta o ambiente de suspeição que subsiste, mesmo na libérri-

38 39
il'Il ma Holanda a que se acolhem os perseguidos pelas várias orto- que intui a superioridade da vida segundo a razão e a sua incom-
doxias encostadas ao poder temporal, e bem assim as limitações patibilidade com uma revelação insuficiente e contraditória, colo-
em matéria de interpretação da Bíblia, que inibem até os cír- cando assim aqueles que a perfilham numa perigosa posição de
culos de cristãos reformadores, presumíveis destinatários da exterioridade em relação à ordem política. Neste caso, para esca-
obra, entre os quais talvez houvesse dúvidas quanto a preten- par à perseguição,o filósofo inventa uma nova arte de escrever,um
sas interpretações infalíveis mas não uma receptividade espon- sistema de simulações e dissimulações destinado a acobertar a
tânea para mensagem tão radical corno aquela que o Tratado verdade nas dobras da opinião. Arte de prudência, pois, que
veiculava. · · · · · recupera o modelo platónico do diálogo - a forma mais fre-
Em segundo lugar, por.que a forl!lação do jovem Baruch se quente do texto esotérico - para comunicar uma verdade outra
tinha processado no interior -da : comunidade judaica de -Ames- que não a que as opiniões expressas reivindicam. Mas arte tam-
terdão, tanto a nível familiar coino a nível de · escolé,i;Orà, no bém de lidar com -as antinomias, arte que tem no seu cerne a
pensamento judaico, corno no pensamento islâmico, a- rilosofia tensão entre a filosofia e a religião ou a política e que, por não
quer-se inextricavelmente ligada à lei e assume-se como comen- poder anular essa tensão, reproduz os discursos triviais sobre o
tário no interior de uma ordem que regula tanto os comporta- mundo e a cidade ao mesmo tempo que, subterraneamente, insi-
mentos, morais e sociais, como os pensamentos. A teocracia nua a sua desordem, a sua ausência de logos. Ler um texto eso-
molda o judaísmo e subsiste, muito para lá da destruição do térico traduz-se, pois, em identificar as contradições que o po-
Estado hebreu, entre as comunidades que se organizam na diás- voam como sinais a indicar sempre um outro sentido 4 •
pora, à semelhança do que acontece com os Estados islâmicos Contudo, a explicação de Strauss não se fica por razões de
1
'1
referidos no TTP como paradigma do autoritarismo 3 • Em tais ordem estratégica. Para ele, o esoterismo, mais do que estrata- ·
condições, todo o filósofo que se quer fiel é também um teó- gema, é consequência necessária da situação da verdade face à
·1
n;i_vf logo que tem por ofício tornar racionalmente pensável o dis- opinião. Vivendo na cidade, e quer se pretenda ou não legisla-
.
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curso da lei. Porém, o discurso da lei resiste, por definição, a
qualquer racionalidade. Se a lei se justificasse pela razão, tornar-se-
dor, o filósofo está sujeito à lei e esta apresenta-se-lhe como
algo inabarcável pela razão, pois o que a constitui como lei é
-ia transparente e, como tal, dispensável. A lei regula o mundo precisamente a violência, o corte que instaura, enquanto impe-
!1 das opiniões e a opinião, como diz Strauss, «é o elemento da rativo, na racionalidade do real. O lugar da filosofia encontra-
1
sociedade». Consequentemente, o filósofo sente-se dividido entre -se, então, deslocado do mundo das ideias para o mundo das
um projecto de vida segundo a lei e um projecto de vida se- opiniões; o diálogo impõe-se como ponto de encontro entre a
gundo a razão. Em última instância o dilema é insuperável, mas razão e o que lhe escapa, entre a verdade e as doxas, entre o
na prática suscitará dois tipos de solução: um, que leva o filó- filósofo e o seu público; a arte de escrever, mesmo quando não
sofo a «sair da caverna» e a voltar à cidade, projectando-se no se exprime formalmente no género dialógico, é sempre opera-
legislador por excelência - Moisés ou Maomé - e projectando
neste a actividade filosófica que o tenta, como se pode ver pela
imagem que Maimónides apresenta do fundador do Estado he-
4 Anteriormente a Strauss, já outros autores se tinham debruçado sobre
breu, em tudo decalcada do «rei-filósofo» da República; outro,
este processo da emergência das heterodoxias. Abraham Geiger, por exem-
plo, interpreta o Mngen We Tsinah, do célebre rabino Leão de Módena, como
uma tentativa de fazer passar uma opinião herética juntando-lhe a sua refuta-
3
Os problemas levantados por esta situação das comunidades judaicas ção em termos ortodoxos. No entanto, Carl Gebbart, editor de Espinosa e de
na Holanda, que chegam a lamentar o não existir inquisiçãoem matériade fé e Uriel da Costa, vê simplesmente aí um testemunho da situação existencial dos
se tornam, por isso, suspeitas de querer 11s11rpar jurisdição,como escreve Lim- marranos, em cuja «consciência o catolicismo e o judaísmo não estavam uni-
borch em 1662, foram a tal ponto sentidos pela municipalidade de Amester- dos mas manifestavam-se como susceptíveis de se unirem: neste combate in-
dão que esta se vê obrigada a encomendar a Hugo Grotius um projecto de terior, a consciência do marrano ficava dividida» (Introdução a Die Schriften
revisão do direito de asilo (cf. Aurélio, 1985, p. 31). Todo o processo de Uriel des Urielda Costa, 1922, pp. XIX-XXVI, parcialmente traduzida e reproduzida em
da Costa é sintomático a este respeito. Osier, 1980, pp. 135-141).

40 41
!
I;
1
ção de despistagem de uns e orientação de outros, mediante a atravessar o terreno que outros filósofos deixavam ao adversá-
calculada disposição do argumento e das personagens ou das rio, ao passo que na Ética poderia simular que lhe passava ao
simples opiniões contraditórias . lado, minando-lhe os fundamentos sem sequer o mencionar. Com
Estamos, portanto, em face de uma autêntica teoria do texto efeito, pelo menos até final da mencionada m parte, o sujeito da
filosófico, que o autor aplica, tanto na ·leitura de Espinosa como enunciação é na Ética um sujeito universal, ou seja, é o entendi-
na de Maquiavel (cf. Strauss, 1958), e que tem a virtude de evi- mento puro que se constitui reconstituindo a história da eterni-
denciar a estreita cumplicidade entre filosofia e política. Atra- dade da substância de que é atributo. Como produção do enten-
vés desta via otiginal, Leo Strauss é levado; ·no ensaio Hów to· dimento, o seu conteúdo é totalmente racional e verdadeiro e
. Treali_se.(1948(: .reproduzido in
Study Spinoza's Theologico-Poli.tical nela se revela o sentido de tudo . No entanto, dizer o sentido
Strauss, 1952, pp. 142-201), a sublinhar a necessidade de ler · O · de tudo é dizer também a insensatez das opiniões e estas, para-
Tratado à luz da metafísica espinosãna, nãó obstante ela -e~tai aí doxalmente, revelam-se com uma certa capacidade de determi-
velada e ter, portanto, de se submeter o texto ao ·mesino ·critério · nar o real no mundo da política. Porque há qualquer coisa de
de interpretação a que ele próprio submete a Escritura, ou seja, positivo na imaginação, como Espinosa repete constantemente 5,
tomá-lo como um texto veiculador de várias mensagens, adap- em particular nesta passagem que é da maior importância para
tado a vários públicos e susceptível de vários níveis de leitura. o que tentamos mostrar: «nada do que uma ideia falsa tem de
Basicamente, poderíamos identificar três: um, que corresponde positivo é suprimido pela presença do verdadeiro enquanto ver-
à ortodoxia, reproduz a opinião dominante sobre as Escrituras; dadeiro» (E, IV, prop. l, dem. e esc.). É necessário, pois, para
outro, que corresponderia à opinião dos círculos dissidentes, os levar a ontologia até às suas últimas consequências, explicitar
cristãos reformadores ou evangélicos, vê na Bíblia unicamente a esta positividade que é a potência criadora da imaginação. O que
..
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doutrina da caridade e da justiça; um terceiro, enfim, que cor-
responderia à verdadeira convicção de Espinosa, reduz a mensa-
acarreta, como é óbvio, consequências políticas, mas não aque-
las - convirá frisá-lo desde já - que habitualmente se lhe atri-
h gem bíblica a um produto da imaginação e à apresentação de buem. Referir a potência da imaginação não equivale a negá-la
u• um projecto que alguns comentadores, na esteira de Strauss, ou subsumi-la em racionalidade. Muito pelo contrário, e dado
pretendem que seria revolucionário e destinado a mobilizar esses que aquilo que a imaginação tem de positivo não é suprimido
cristãos que recusam submeter-se ao poder eclesiástico em ma- pela presença do verdadeiro, o projecto político de Espinosa está
téria religiosa mas que cingem a ética a uma exigência indivi- longe de se poder aproximar do ideal do filósofo-rei ou sequer
dual sem horizontes políticos (Negri, 1982, p. 194; Tosel, 1984, do ideal do povo-filósofo-rei como o reivindicará Rousseau; é,
pp. 94-99). Não sendo aqui o lugar para uma análise da arte de sim, e tão-só, a tentativa de garantir que essa potência da ima-
escreverassim delineada, limitar-nos-emos a expor algumas ques- ginação não esmague ou impeça a potência da razão de se ma-
tões que a sua aplicação ao TTP suscita. nifestar. E este objectivo, porque se destina à República e não a
Antes de mais, é de perguntar se este livro é realmente um
exemplo de esoterismo. Se Espinosa assim o quis, o seu intuito,
à primeira vista, foi completamente gorado, já que o livro pro-
5 Veja-se, por exemplo, o escólio da prop . 35 da Ética,u: «quando olhamos
vocou logo o maior escândalo e veio, como dissemos, a ser proi-
bido pouco depois. Além disso, e por muita inovação que o o Sol, imaginamos que ele está afastado de nós aproximadamente 200 pés;
este erro não consiste, aliás, no facto de, ao imaginarmos assim o Sol, ignorar-
Tratado contenha, o mais radical das suas formulações - recusa mos a sua verdadeira distância e a causa dessa imaginação. Porque, mais tarde,
da transcendência, do finalismo e da moralidade entendida como ainda que saibamos que o Sol está afastado de nós mais de seiscentas vezes o
obediência - estava já nas três primeiras partes da Ética, as quais diâmetro da Terra, não deixaremos de imaginar que ele está perto de nós .
circulavam, claramente expostas «à maneira dos geómetras», por Não imaginamos, com efeito, o Sol assim tão próximo por ignorarmos a sua
vários círculos da inteligência europeia muito antes de o TTP verdadeira distância, mas porque a afecção do nosso corpo envolve a essência
do Sol na medida apenas em que por ela é afectado .» Quer dizer, a imagina-
ser publicado. Dir-se-á, e com razão, que o problema, aqui, era ção não explica, mas envolve, à sua maneira, a essência do imaginado (cf. De-
mais melindroso, porquanto o autor tinha obrigatoriamente de leuze, 1968, p. 135).

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42 43
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iniciados, é claro e preciso, apresenta-se sem subterfúgios e com teólogo s, quer eles recorram à razão ou a condenem . Mas, de
conhecimento dos riscos que implica, tenha ou não sido apadri - um ponto de vista filosófico, perguntar-se -á sempre onde está o
nhado por Jean de Witt, como alguns historiadores pretendem. conhecimento verdadeiro. E, de facto, Espinosa, se por um lado
Supor outros níveis de leitura no Tratado, outras mensagens que condena aqueles para quem a sabedoria está na lei, isto é, na
estariam latentes, é levar a interpretação da filosofia política de vontade absoluta e incompreensível de Deus, conforme sugere
Espinosa para margens que parecem, pelo menos, pouco segu- Calvino, não condena menos, por outro lado, aqueles que ten-
ras, como a seu tempo tentarei mostrar. tam abrir espaço para a razão, como o já citado Maimónides ou
São Tomás de Aquino, subordinando a vontade de Deus à sua
c) Há, no entanto, uma outra expli_ca5ão p~ra incoerências inteligência e legitimando assim a compossibilidade e a concor-
como as que se detectam entre .algumas passagens .do Tratado.e . dância da filosofia e da teologia. É, de resto, para estes que a
a doutrina da Ética (cf. Zac, 1965, ·p. 27, Deleuze~ 1%8, p. ·47, sua crítica se mostra, paradoxalmente, mais implacável. E há
Corsi, 1978, p. 65). Basta que, em vez de se tornar o texto 1:omo- razões para isso, como passaremos a ver.
um entrelaçamento de mensagens cifradas, o consideremos apenas A doutrina expressa por Maimónides no Guia dos Perplexos
como conjunto de enunciados que remetem horizontalmente uns guia daqueles que hesitam entre uma e outra verdade, é prati-
para os outros e dessa interpenetração recolhem todo o sentido camente copiada da filosofia árabe, em particular da de A ver-
possível. Vejamos, a esta luz, a questão de onde partíramos. róis, que lhe dedicara já uma obra com o título sintomático de
Tínhamos dito que aquilo que constituía problema era a certeza Acordo da Religiãoe da Filosofia,Exame Críticoe Solução.Nesse livro,
imputada por Espinosa ao conhecimento profético. Ora, se repa- cuja edição se fazia acompanhar de um outro em que se deter-
rarmos no cap. vrr, onde se enuncia o método de interpretação minava «o método de ensinar os dogmas da religião à generali-
da Bíblia, concluiremos que o autor, ao definir assim a profecia, dade dos homens de maneira a fazer desaparecer as seitas e
está a reproduzir o sentido do texto bíblico e não a analisar o evitar conflitos entre razão e fé», A verróis enuncia assim, logo
seu conteúdo ou a sua verdade. A regra básica daquele método a princípio, o seu intuito: «examinar, do ponto de vista da especula-
consiste em não aceitar como ensinamento da Escritura nada ção religiosa,se o estudo da filosofia e das ciências lógicas é per-
que não possa extrair-se com total certeza da mesma Escritura. mi tido ou proibido pela lei religiosa ou se é por ela determi-
Trata-se, pois, de um trabalho unicamente de exegeta, que se nado, quer a título meritório, quer a título obrigatório» (cit. in
socorre dos instrumentos disponíveis - o conhecimento da língua Gauthier, 1909, p. 46, subi . nosso). O pano de fundo é, por-
e da história - com o objectivo de evidenciar o carácter não tanto, ainda a mesma concepção teocrática, segundo a qual Deus
filosófico do texto analisado. Conforme ele próprio sintetiza, dá ordens e as ordens exprimem-se por palavras, pelo que os
«mostrámos que a Escritura não ensina questões filosóficas, mas homens só o podem conhecer ouvindo os seus porta-vozes- os
apenas a piedade, e que tudo quanto ela contém está adaptado profetas - ou o seu eco explicitado na tradição. São as ordens
à compreensão e às opiniões preconcebidas do vulgo. Quem, de Deus que ins tauram a existência do bem e do mal, os quais
por conseguinte, a quiser adaptar à filosofia tem de atribuir fal- equivalem, por conseguinte, a acções permitidas ou proibidas e
samente aos profetas muitas coisas que eles nem por sonhos não a entidades ontológicas, a ideais que a razão pudesse de-
pensaram e de interpretar mal o seu pensamento. Quem, pelo duzir. Porque esta, se foi dada ao homem, é simplesmente para
contrário, faz da razão e da filosofia a serva da teologia tem de ele descortinar o que lhe é útil ou prejudicial, o que lhe traz
admitir como coisas divinas preconceitos do vulgo de tempos prazer ou desprazer no plano da existência material.
antigos, deixando que estes o ceguem e lhe inundem a mente. Acontece que a revelação cessou com Maomé e está limi-
Assim, um com a razão, o outro sem ela, hão-de ensandecer os tada ao Alcorão, ao passo que as acções humanas possíveis são
dois.» (Infra, p. 315.) ilimitadas. É precisamente nessa assimetria entre o código e os
Extremados, porém, que estão os campos, o problema sub- actos a julgar que reside todo o campo de actuação do filósofo-
siste. De um ponto de vista político, não é, evidentemente, des- -legislador: deduzir, por .um raciocínio analógico, cuja premissa
"" maior será uma ordem expressa no Alcorão, a qualidade moral
tituído de importância sublinhar o infundado das pretensões dos •.-..

44 45
de actos que não vêm ali mencionados . Por isso é que o trat ado zão, sabe que é lou cu ra tenta r expor a lei ao comum do s ho-
de Averróis se apresenta com o objectivo de demonstrar que a mens com outro s argumento s que não sejam os oratórios ou
actividade especulativa deriva de uma ordem, está na lei e, uma retóricos . Em conclus ão, para garantir a paz no Estado, há que
vez que a lei é verdadeira, quem filosofar pelo caminho correc- actuar em duas frentes : primeiro, conceder a liberdade de pen -
to não pode chegar a conclusões que contradigam a religião. samento só aos filósofos, visto não haver per igo de eles chega -
Dir-se-á que a lei, a uma primeira leitura, se apresenta frequen- rem a conclusões contrárias à lei quando utilizam, de facto, ver-
temente desajustada à razão. Conflito aparente, responde Aver- dadeiras demonstrações; segundo, proibir que se use a filosofia
róis. Sempre que ele surge, impõe-se o trabalho da interpretà- na catequização, uma vez que é esse o processo que vulgar-
ção, que não é mais do que .a procura da unidade da ideia por mente usam os teólogos para, voluntária ou involuntariamente,
sob a diversidade dos símhQÍo·s, É que o Verbo de Deus não ' amotinarem as massas .
disse as coisas tal como elas são', -além do mais porque -~ maio- Toda esta problemática coincide, no essencial, com a do Tra-
!J.
1
ria dos homens seria incapaz de entender o seu verdadeiro sen- tado Teológico-Político. A situação política na Holanda do tempo
tido, que só é dado aos «homens de demonstração ». Aos ou- de Espinosa não é, como se sabe, a teocracia, mas tão-pouco o
tros, Deus fez o favor de lhes dar figuras e símbolos. era, curiosamente, aquela em que Averróis escreve o seu livro .
Subjacente a esta original teoria do acordo entre teologia e Ambos se confessam, aliás, gratos para com os poderes razoá-
filosofia está ainda uma classificação dos argumentos que re- veis a que estão sujeitos, mas ambos revelam ter .consciência do
l:
l'I monta ao Organon aristotélico e que recebe o principal impulso carácter excepcional e precário de uma tal situação . De quálquer
da estrita ligação, visível em quase todo o pensamento árabe, modo, é importante ter em conta que a proximidade entre os
111
entre a filosofia e a jurisprudência. Em primeiro lugar, há os dois autores não vai muito além. Pode mesmo dizer-se que a ·
i) argumentos demonstrativos, que partem dos primeiros princí- solução achada por Averróis vai ser o primeiro alvo no livro de
~j pios da razão para chegar a uma conclusão que participe da Espinosa, ainda que por interposta pessoa. E essa pessoa, como
1 certeza das premissas de onde foi extraída : são o instrumento já vimos, é Maimónides, que assenta toda a sua doutrina da
·:f li1
da filosofia e da ciência. Há, depois, os argumentos dialécticos, profecia e da interpretação da Bíblia sobre a concepção aver-
que partem de premissas aceites por todos ou pela maior parte roísta . É que esta doutrina, para legitimar a dedução por via
T• 1
e que produzem uma demonstração aproximada, destinando-se, racional da correcta interpretação dos textos da Bíblia ou do
pelo probabilismo dos seus princípios, unicamente à discussão e Corão, tinha implicitamente de promover o profeta a um esta-
à procura da certeza. Há, finalmente, os argumentos oratórios, tuto, sublimado embora, de filósofo, identificação que Espinosa
que partem de premissas adaptadas à compreensão, às paixões rejeita por completo e considera mesmo a principal raiz de to-
e, em suma, às circunstâncias do auditório. Os espíritos filosófi- dos os males que aquela se destinava a resolver. Trata-se, não
cos ou científicos só se deixam convencer por argumentos de- apenas de uma oposição no domínio dos projectos políticos,
monstrativos; o vulgo, por seu turno, só se convence por argu- como, sobretudo, de uma oposição no domínio da teoria do
mentos oratórios. Mas tanto uns como outros, comenta A verróis, conhecimento . Maimónides, com efeito, assume integralmente a
são espíritos saudáveis e compatíveis numa sociedade bem geri- tese averroísta da passividade do entendimento humano, por
da . Só os teólogos, que pretendem alimentar conflitos e sedi- ele rotulado de pura receptividade individualizada sob a acção
ções através de argumentos dialécticos, é que são espíritos doen- do intelecto agente, único, universal e separado, à semelhança do
tios . O seu mal consiste em expor como se fossem ambíguas que acontece com o aparecimento dos corpos por efeito da luz
certas passagens da lei que para o vulgo são absolutamente cla- do sol. De acordo com a mesma tese, o comum dos homens
ras, impondo-lhe como versão fidedigna interpretações que, na interpreta a profecia como tradução do espírito divino, o qual
melhor das hipóteses, são meramente prováveis. Por um lado, sopra onde quer, como diz o Evangelho, indiferente às caracte -
eles não possuem a capacidade de demonstrar ; por outro, não rísticas de origem dos mensageiros escolhidos . Maimónides,
deixam os argumentos oratórios produzir o seu efeito persua- porém, na sequência da tradição árabe, extrai daí uma conclusão
sivo junto do público . Quem, pelo contrário, está dentro da ra- exactamente oposta: porque tal como a luz ilumina os corpos

46 47
], mas não altera a natureza destes, assim o intelecto agente produz de conflitos ao pretender chamar a si a última palavra sobre
todas as questões. Porém, a perspectiva gnos iológica e ontoló -
I' conhecimentos que estão na proporção das qualidades naturais
dos intelectos humanos: «se esta emanação do intelecto (agente) se
projecta apenas na faculdade racional [... ], temos a classe dos sá-
gica em que Espinosa se coloca ditará dive rgências sem conta
relativamente a Maimónides. Desde logo, porque nada há de
bios, que se dedicam à especulação. Mas se tal emanação se .pi:o- mais estranho à sua concepção do que a ideia de um intelecto
1, passivo. Depois, e na sequência disto, porque a profecia não é
jecta ao mesmo tempo nas duas faculdades, ou seja, na racional e
na imaginativa [ ... ], e se a imaginativa foi originariamente criada um conhecimento adequado, porquanto a verdade é critério de
em toda a sua per-feição, temos a classe dos ·profetas. Se, enfim; a si mesma, e os profetas, como a Bíblia refere frequentemente,
emanação se projecta soment~ na faculdade imaginativa e a fa- precisavam de um sinal para se certificarem da revelação . Em
!(I culdade racional está em de~vantagém, seja pela sua constitui- ' último lugar, porque as próprias Escrituras dizem que os profe-
ção originária, seja pela posterior falta d_e· exercício, temos . a êlasse tas não eram filósofos nem possuíam um conhecimento exacto
dos homens de Estado, dos que fazem as leis, dos àdivinhos, de Deus, já que lhe atribuíam, inclusivamente Moisés, qualida-
dos áugures e daqueles que têm sonhos verdadeiros» (Maimó- des humanas e até divergentes de situação para situação. Con-
111
nides, Guide des Égarés, trad. de Munk, Paris, 1856-1866, 3 vols., cluindo, «a profecia nunca fez os profetas mais sábios, antes os
111 deixou com as suas opiniões preconcebidas, razão pela qual não
cit. in Gauthier, 1909, p. 135).
1:.:i
Sobre este fundo predominantemente árabe, Maimónides somos obrigados a dar-lhes crédito em matérias puramen te es-
limitar-se-á a frisar, por um lado, que a profecia é sempre um peculativas» (infra, p. 155).
dom de Deus, pelo que as qualidades naturais e o seu exercício
'I' não bastam para haver profeta; por outro lado, que a profecia é
sempre repetição, glosa da lei que jamais inova no essencial. 2
Quanto ao resto, manterá o papel decisivo da imaginação no Imaginar
1
l profeta, juntando-lhe no entanto a necessidade de uma razão
J t
disciplinada. Isto porque a revelação, tal como o sonho, se dá À primeira vista, dir-se-ia que esta crítica de Espinosa a Mai-
'.:·ri de preferência durante o sono, quando os sentidos estão em mónides vinha destinada apenas a repor o texto bíblico nos
repouso; ora, como a experiência mostra, são as preocupações devidos limites. Os seus efeitos, porém, sobrepõem-se a toda e
da vigília o que se repercute no sonho; se a revelação versa qualquer vontade de moderação que eventualmente se de tectas-
sobre a verdade, a essência de Deus e das coisas, é natural que se no livro. Na verdade, retirar ao profeta o carácter de deten-
ela só se possa dar em quem ande preocupado em disciplinar a tor de uma certeza inamovível e reduzi-lo a simples homem de
mente nessas matérias e seja dotado de efectiva capacidade de imaginação e muita virtude acarreta consequências: primeiro,
demonstração. Quando assim acontece, então a imaginação pode insere o discurso profético na categoria dos discursos que Mai-
chegar a representar as verdades como se elas lhe adviessem mónides considera feitos de argumentos oratórios ou poéticos,
pelos sentidos, identificando-se assim o intelecto passivo e indi- quer dizer, toma-o como fruto das circuns tâncias; segundo, obri-
vidual com o intelecto agente universal: é a ciência intuitiva, a ga a reelaborar a teoria da revelação à luz da teoria das ideias
ciência que define a profecia e eleva o profeta à categoria de inadequadas do primeiro género de conhecimento, o qual só
filósofo acabado, como aconteceu com Moisés, que protagoniza nos dá das coisas o seu efeito sobre o nosso próprio corpo;
em plenitude, segundo Maimónides, este modelo, porquanto foi terceiro, reabre criticamente a história de Israel - e é esse o
o único que «viu» as essências directamente, sem alegorias e tema do cap. m do ITP -, já porque lhe retira a exclusividade
durante a vigília. do dom profético, já porque reduz a sua vocação de povo eleito
Uma parte não descurável desta caracterização, como se pode a um dado momento histórico em que as circunstâncias mate-
ver, é recuperada por Espinosa, que possui o Guia entre os li- riais propiciaram a fundação e a prosperidade do Estado. Elei-
vros da sua biblioteca particular. Também para ele, a política tos, de facto, são todos os povos a quem e enquanto acontecem
decorre num plano diferente do da filosofia e a teologia é fonte tais benesses.
3

48 49
11•1

ir
!1
A inserção de tais conclusões neste preciso local do Tratado
não é de somenos importância. A nosso ver, ela é fundamental,
não apresenta Deus como cau sa de si próp rio nem capta ne-
nhum dos seus atributos essenciais: é apenas um registo de im-
l't podendo mesmo estranhar-se que alguns comentadores não ve- pressões, índice de contactos dos homens com os seus iguais e
jam neste cap. rn senão uma hipotética repetição, quiçá enxerta- com as circunstâncias de lugar e tempo . Pior ainda, porque a
da a despropósito, do texto redigido pelo autor em sua própria imagináção ignora sempre a sua verdadeira causa, a Bíblia
defesa no momento em que é expulso da comunidade judaica, a apresenta-se corno teoria da natureza e verdadeira ciência. Esta
27 de Julho de 1656 6 • Com efeito, se virmos, como habitual- «ciência» da Bíblia, porém, na medida em que toma os efeitos
mente se .faz, nos seis primeiros capítulos-· do Tratado apenas a
,por causas, confunde o seu objecto com um sujeito autónomo,
redefinição de conceitos I?,eCE:?Ssária:
para a -~álise da Escritura 'julga que fala de Deus e fala tão-só dos homens, projecta, en-
que a seguir se iniciará, naçla é mais estranho .do que .esta sú-
fim, numa ordem transcendente aquilo que é apenas sintoma da
bita e extemporânea irrupção da polítita. a propósito çla nação
hebraica. Se, pelo contrário, atentarmos na íntima relàção que
;sua própria situação real. Todas as controvérs ias que se geram
;,, ~u respeito não passam de uma consequência necessária de
1111
1
existe, como temos vindo a frisar, entre os vários graus de co-
nhecimento e as disciplinas que são abordadas no TTP - filo-
> entender por linguagem de ciência o que nela são apenas
'l~eróglifos», sinais intrinsecamente equívocos que se desdobram
•·1 sofia, teologia e política-, o referido capítulo aparecer-nos-á
1
1.1. ~re o ser e o não-ser e nunca exprimem a unicidade àa subs-
1
como conclusão necessária dos dois anteriores. O profeta, sus-
t í 1jlJ,; tenta Espinosa, não é um homem de demonstração, é um ho- ~cia nem o saber sem sujeito da totalidade. Daí o assimila-
'I mem de imaginação. Ora, a imaginação é o domínio da simples ~- .--seos sinais em que se consolida a imaginação ao discurso
1h lei; daí também a pressuposição de um fundo misterioso que
11 afecção, das paixões, dos efeitos ocasionais, que não envolvem
1
o conhecimento exacto da sua causa e, por isso, são alvo de estaria sempre subjacente, visto ser impossível fixar o seu
11
1,
urna fé, não de uma certeza racional. A inflexão que Espinosa ti.do por natureza flutuante; daí, em suma, o mecanismo ine-
,,{t...
S:
1Jtente às controvérsias teológicas entre as diversas seitas, todas
~ic: '11 suscita na teoria formulada por A verróis e Maimónides reside,
''. ,: 1
em última instância, em deslocar a cumplicidade que aqueles ,iJ:làs reclamando o exclusivo da verdade e apodando as outras
'vi, d fdesuperstição, sem se darem conta de que é exactamente essa
/.!,·. pretendiam haver entre teologia e razão para uma cumplicidade
1 entre teologia e política. E não se trata apenas de urna cumplici- ;~ação de um sentido único no interior da equivocidade que
r
1
dade empírica e historicamente detectável; trata-se, sobretudo, jfls torna a todas equivalentes e as remete para o mesmo espaço
de urna cumplicidade de natureza, já que ambas são forjadas a ~ superstição.
partir de ideias inadequadas, o que torna ainda mais difícil o Ú• Espinosa pretende identificar este espaço através da identifi-
estabelecimento de um programa político que determine a sua tJ~ação do texto aonde todas as seitas vão beber. Identificando-o,
separação e coloque o poder num ponto geometricamente equi- caracteriza-o como fruto das circunstâncias, vestígio da interac-
distante de todos os saberes, adequados ou inadequados. ção dos homens entre si e com o meio. Para qualquer livre-
Mas o cap. III do Tratado, além da conclusão da sua parte fpensador ou libertino erudito, a única conclusão a extrair daqui
gnosiológica, é também a passagem para a revisão da metafísica seria rotular os profetas e os teólogos de impostores apostados
que se inaugura no cap. rv. Está assente que a imaginação, co- . . em enganar as massas. Foi assim que muitos interpretaram Espi-
nhecimento inadequado, não é ignorância absoluta nem corres- :,; ·nosa, sobretudo quando o pretenderam combater, amalgamando-
ponde a um puro nada: é simplesmente urna ideia que não pode '"° nessa vaga, mais social que filosófica, que se reflecte na litera-
exprimir adequadamente a sua causa e ignora essa mesma insu- tura sobre os «três impostores» (cf. Aurélio, 1985, pp. 29-30).
ficiência. A Bíblia, por exemplo, que é discurso da imaginação, Mas Espinosa não cai numa denúncia pura e simples dos produ-
tos da imaginação. O problema é, de facto, um pouco mais com-
plexo do que o julgará o iluminismo e seus avatares. Uma vez
6
Sobre os termos desta expulsão, vide Méchoulan, 1980, pp . 127-134, e mais, se atendermos à teoria do conhecimento do primeiro gé-
bem assim o já clássico mas controverso livro de Revah (1959). nero, veremos que a imaginação envolve sempre a causa dos

50 -· 51
li\,111 efeitos que se dá em representação, ainda que seja inadequada- ções que se produzem no atributo pensamento ; por seu turno, o
mente, ou seja, sem perceber a necessidade do nexo causal; além , ·entendimento de cada indivíduo é um elemento constitutivo
1.
disso , o acaso em que decorre o jogo de influências entre os desse modo que é o entendimento infinito e que não significa
f!
1
corpos origina, por vezes, o encontro entre dois ou mais que
convêm entre si, dando lugar na imaginação à representação
outra coisa senão a totalidade das mentes finitas, ou melhor, a
totalidade das ideias adequadas. Assim sendo, não existe ne-
:11 dessa conveniência. Por último, quando na imaginação se repre- nhum projecto de constituição da natureza ou de Deus, por-
1.,
'r. I' senta o efeito de um corpo sobre . outro e há uma relação .de quanto o próprio lugar onde vulgarmente se supõe um tal pro-
1i: conveniência ·entre eles os dois·, a represehtação, ainda que não , jecto está, ele mesmo, em constituição, é uma consequência da
L:[1
seja uma ideia adequada porque não_traduz . à natureza intrínse- i' pura actividade da substância e não um atributo pelo qual esta
11
ca e necessária dessa relação, propicia, no entanto, a fot:maç·ão se possa definir. Deus não é inteligência ou vontade a decidir
1\
I
l'I da respectiva noçãocomum, isto e, torna : po~sível a passag~m _ao ;segundo um plano que seria acessível ao homem por qualquer
'11' segundo género de conhecimento: · · · · · -- - j género de conhecimento. Ao recusar a transcendência de um
11· '

'1p.1'1 De acordo com a gnosiologia aqui implicada, poderíamos ;princípio das coisas, seja qual for a versão em que este se apre-
1 '
dizer que a profecia está para a filosofia como a ideia do vulgo {sente, Espinosa está a recusar também todo e qualquer finalismo
,il'~ sobre a distância a que se encontra o Sol está para a astrono- , em função do qual a natureza se modifique e organize.
111
mia. E sendo falso que o Sol esteja a 200 pés, é, todavia, verda- Nesta perspectiva, a certeza que vimos atribuída ao conhe-
deiro que nós o vemos a essa distância. Toda a vida prática, cimento profético no início do ITP é susceptível de uma inter-
!!1:
afinal, está comandada por este segundo tipo de verdades. Será, pretação que talvez a ponha a salvo de alegadas contradições.
i,11 portanto, um erro supor que ela decorre em função de uma 'Evidentemente, Espinosa quer, antes de tudo, caracterizar a re-
i1l1 racionalidade que reproduziria o entendimento divino ou de uma •;~elação segundo os próprios termos da Escritura, para os quais
ordem de valores abstractos. Querendo libertar da contingência 'busca o sentido sem curar da sua verdade. Mas isto não oferece
,~
,,11
;1 a política, insuflando-lhe um plano racional, uma tal operação uma explicação cabal, visto que, no mesmo capítulo, poucos pará -
'I
cai precisamente naquilo em que reside a insuficiência da imagi- . grafos adiante, o autor limita a certeza do conhecimento profético
nação, ou seja, nos vícios do finalismo. O homem pode, é certo, a uma «certeza moral ». Contradição entre o primeiro enunciado
Ili chegar ainda a atingir um conhecimento de outro género, onde {e os seguintes? Julgamos não ter de se ir tão longe. O que a
a relação entre a essência do todo e as essências singulares se ' este propósito vem na Bíblia é que nem os profetas nem o povo
lhe oferece, já não através de noçõescomuns, como aquelas com •if_ possuíam uma certeza intelectual da profecia, visto exigirem si-
que opera o raciocínio científico, que são sempre mais ou menos 1 nais para poderem acreditar numa mensagem que não se lhes
gerais visto traduzirem aquilo em que dois ou mais corpos con- t· apresentava como evidente por si mesma . Contudo, da parte
vêm, mas através de uma intuição em que se capta a própria 1ido autor da revelação, esta é obviamente um conhecimento certo,
essência desta relação de conveniência como se de uma coisa , · uma vez que, se à ordem das coisas corresponde a ordem das
singular se tratasse. Porém, este grau de conhecimento repre- ideias, terá de existir uma ideia adequada das matérias que cons-
senta unicamente um acréscimo de compreensão mediante o qual ,tam da profecia, ideia que, por definição, integra o entendimento
o homem se torna «livre», isto é, se conhece a si próprio en- :infinito. O que acontece é que os chamados intérpretes e men-
quanto modo da natureza divina, não se tratando, portanto, de sageiros da palavra de Deus a não reproduzem adequadamente
urna qualquer passagem a um plano da realidade em que os e, por conseguinte, ela não se faz acompanhar aí de uma verda-
anteriores fossem negados. Com efeito, sejam do segundo ou deira certeza. Captando a totalidade no plano passional, no plano
do terceiro género, as ideias adequadas revelam Deus como das situações fortuitas, os profetas projectam a potência da natu-
substância infinita que infinitamente se constitui, ou seja, se reza para fora de si mesma e tomam-na por uma vontade abso-
modifica segundo a infinidade dos seus atributos. O próprio luta e um entendimento infinito, o mesmo é dizer como um
entendimento divino não é mais do que urna dessas modifica- legislador omnisciente que, se quiser, é capaz de obstar à possi-

52 53
bilid ade de acasos ruino sos. Discurso equi vocado , a palav r a do
prof eta não re vela Deus, revela -se ante s a si mesma como atr a-
vessada pelo medo : a Bíblia é o registo deste trabalho da ima -
ginação a braços com a contrariedade , da virtude, como diria
Maquiavel, às voltas com a fortuna .

II
O MUNDO COMO NATUREZA E INSTITUIÇÃO

1
O ser e os seres

Contrariamente ao que supõem o povo e os profetas, Deus


·~ não dá ordens, Deus é a ordem, o ser necessário da totalidade
!j , constituída por uma infinidade de atributos de que o homem só
i' pode conhecer aqueles que nele próprio se exprimem: o pensa -
mer:i.toe a extensão. Já vimos como esta ordem se hipostasia em
•i lei no discurso da imaginação . Trata-se agora de a reconduzir à
\i sua verdade ontológica, reescrevendo assim no plano da razão
o que a profecia apresenta no plano da opinião . É este o objec-
i; tivo dos caps. IV, v e VI do Tratado Teológico-Político.Poderá, tal-
1
: :vez, observar-se que não existe qualquer ruptura no texto, cuja
continuidade é garantida pelo respeito do princípio da interpre-
i. lação da Escritura pela Escritura, muito embora no último des-
;;'jtes capítulos o próprio autor confesse que considera preferível
,,. recorrer a argumentos baseados na «luz natural», visto o pro-
blema da natureza e da pretensa violação das suas leis pelo
milagre ser puramente filosófico . É, no entanto , evidente que o
· que passou a estar aqui em causa, continuando em parte a ser
ainda o significado do texto bíblico, é também já a busca de um
1 enquadramento em que se lhe garanta um mínimo de coerência,
por forma a que os vários enunciados se não anulem entre si.
Por isso mesmo, e sem que o Tratado passe bruscamente a expor
segundo a ordem da razão, esta vê-se obrigatoriamente impli-
cada. O que nem sequer repugna à teoria do conhecimento atrás
aludida, já que, como vimos, há situações em que a imaginação
torna possível a formação de «noções comuns » e a passagem ao
conhecimento do segundo género .

.,
54 55
J!1'1 A questão, a partir daqui, é saber o que há de verdade por suas eventuais propriedades a esta se substituam (TRE, § 95).
detrás desta palavra repleta de ambiguidades que é a lei, se Não se deve, por exemplo, definir o círculo como uma figura
rijli:: queremos compreender o significado que ela assume em cada em que todas as rectas tiradas do centro para a circunferência
w1,
1
um dos enunciados onde surge, explícita ou implicitamente, nas são iguais, mas sim como «a figura que descreve uma linha com
.,,1
;!1
Escrituras . E a primeira ambiguidade da lei reside na sua apli- uma extremidade fixa e a outra móvel, definição que compreen -
:1
q· cação por analogia às coisas naturais. Porque, em termos jurídi- de claramente a causa próxima» (TRE, § 96). Dito de outro modo,
!\: cos, uma lei restringe por definição o campo de actuação da- toda a definição deverá evidenciar a génese do definido, expli-
1
queles a quem abrange e que, nessa medida, têm a possibilid?de citando assim o seu processo de constituição, a sua essência, e
ili de actuar fora do campo assim delimitado; pelo contrário, aqui- não apenas os seus aspectos superficiais. Simples questão de mé-
pi:; lo a que chamamos leis da .naturê'.?a esgota todo o campo de todo, dir-se-á. De maneira alguma. Se partimos do princípio de
que tudo é inteligível, então a ordem do ser e a ordem do
'lii ·possíveis ocorrências, apresentand6-se como uma necéssidade
conhecer correspondem-se em absoluto e uma coisa não é mais
irrevogável. Numa filosofia que postule a transcend.ênêia . de
\Í,1, Deus, a analogia será relativa, porquanto a ·criação se àpresênta do que a tradução ontológica da sua definição. No caso do cír-
1
sempre como um acto de vontade do criador, ou seja, como um culo, isto implica que o tenhamos de entender sob dois aspectos
1t,1
i
de entre a infinidade de mundos possíveis à luz da sua inteli- ' complementares: o movimento da linha e a figura que daí re-
ili1,
gência e da sua omnipotência. Numa tal concepção, a natureza sulta. Abstractamente, nós poderíamos distinguir uma e outra
i!ll coisa, mas na realidade elas são ambas o mesmo, visto a figura
:11,,
1 procede e é assim porque Deus quer, e a possibilidade do mila-
1!11'1 gre está, desde sempre, em aberto; pela mesma razão, os funda- não ser mais do que a descrição do movimento nem poder con-
Ji ~I
1 mentos da ciência física repousam tanto na inteligência divina, ceber-se sem ele. Universalizando o exemp lo, uma coisa é si 7
'.ll,,1 que torna impossível a produção do contraditório, como na divi- multaneamente a sua produção e a estrutura que esta assume.
•• Toda a natureza tem de considerar-se em simultâneo como in
1111 ~ na perfeição, que nos impede de julgar que o criador nos engane
quando conhecemos clara e distintamente a sua obra. É este, fieri e como factum, estruturação e estrutura, naturante e natu-
11:1 como se sabe, o raciocínio de Descartes nas Meditações. Para Es- rada, para falar como Espinosa. Porque, tal como o círculo, a
·111 ~ pinosa, porém, definir Deus pela sua perfeição, ou pela sua in- linha é também a figura assumida pelo movimento de um ponto
tt. ,11~ e, se passarmos às três dimensões, a esfera é a figura do movi-
·,1 teligência e vontade, é não dizer nada, porque é ficar-se pela
~ teologia e a teologia está sempre atravessada pela imaginação, mento de rotação de um semicírculo em torno do seu eixo.
1

~ pois se limita a atribuir em grau eminente ao criador tudo quanto Movimento e repouso constituem assim os dois modos imedia-
de positivo julga haver nas criaturas, ou a poupá-lo a tudo o tos da extensão. Mas como definir a própria extensão? Aqui,
que de negativo nestas observa. Quer pela via da teologia posi- passamos a um outro nível, porquanto a noção de extensão se
tiva, quer pela via da teologia negativa, não saímos de um pro- compreende por si mesma e o seu conceito exclui uma causali-
cedimento analógico, em definitivo escorado no antropomorfismo. dade exterior, ou melhor, ela é, enquanto atributo de Deus, causa
Voltemos, pois, um pouco atrás. Para definir uma coisa 7, há de si mesma: «uma vez dada a sua definição, não há mais lugar
que explicitar a sua essência íntima, evitando que algumas das para perguntarmos se ela existe» (TRE, § 97). Na medida em
que é causa de si, a extensão consiste apenas nesta actividade

7
Neste parágrafo e nos seguintes, onde se trata de apresentar um esbo-
ço da metafísica de Espinosa, seguimos de perto a ordem de exposição adop-
tada no primeiro capítulo da obra de Matheron (1969, pp. 9-24}, muito em- e mais concretamente sobre a sua modulação no interior da língua hebraica, o
bora não nos pareça adequada a versão que o autor apresenta da actividade ensaio de Marilena de Sousa Chaui (1983, pp . 10-98) traz algumas sugestões
da substância e dos modos, em particular a assimilação que faz do conatus a inovadoras. Por ser incomportável neste texto, não referimos aqui as dificul-
uma espécie de projecto orientador dessa actividade . Uma análise mais desen- dades inerentes ao sistema metafísico de Espinosa, a que aludimos noutro local
volvida do assunto poderá encontrar-se em Guéroult (1 e 11).Sobre as possí- (Aurélio, 1983) e que o mais recente livro de Alquié (1981) explora exaustiva e
veis raízes judaicas da concepção espinosista da substância (Deus sive natura), criticamente .

56 57

!
·.r que se produz ao produzir as figuras que assume e não em
qualquer receptáculo espacial aonde se alojassem os corpos . Por
que se modifica o atributo pensamento correspondem essências
objectivas em todos os outros atributos. Se é sempre a mesma
isso mesmo, entre a extensão e os seus modos, os corpos parti - substância a actuar de uma infinidade de maneiras, então o que
culares, não há qualquer desnível: o efeito não emana da causa, se passa num atributo passa-se em qualquer dos outros. De resto,
pois a causa é imanente aos efeitos que produz . aquilo que constitui cada atributo não é mais do que essa mes-
A natureza, porém, não se esgota na extensão, como quer o ma infinidade de essências que ele envolve, necessária e eterna-
1 j'.
materialismo. A natureza é pura actividade a desenrolar-se se- mente, enquanto atributo da substância infinita. Dir-se-á que as
gundo uma ·infinidade de processos e a ·sua ·essência residé pre..: envolve indistintamente, o que é verdade embora só até certo
cisamente nestes processos s~gun_do os _quais e.l~ se estrutura ou ponto. Porque se na realidade elas não existem separadas umas
se determina. Aquilo a que Espinosa · chama «natureza naturant-e» das outras, o fasto é que tem de haver entre elas uma distin-
não é mais do que essa actividade, ou s·ubstantia actuosq, :êuja ção, sob pena de não poderem ser individualmente pensadas,
definição encerra unicamente a infinita série ·dos séus registos coisa que, como já vimos, e por definição, não acontece . Ora, a
ou atributos. Por sua vez, as estruturas que tal actividade assu- única maneira de distinguir as essências é do ponto de vista
me em cada um dos atributos são a mesma natureza enquanto formal, não do ponto de vista numérico. Quer dizer, as essên-
«natureza naturada», ou seja, os modos. Ora, se a substância é cias de modo constituem os atributos enquanto graus da potên-
eterna e infinita, se não podemos pensar que a actividade cesse cia da substância que em todos eles se exprime e definem-se,
ou se autolimite, então as suas modificações são também eter- por isso, como partes intensivas e não como partes extensivas.
l
nas e infinitas, visto que na sua definição entra a causa que lhes A interpretação de Deleuze é, sob este aspecto, clara e coerente :
., é imanente, a qual, como dissemos, só pode pensar-se como eter-
na e infinita. E é assim, tanto para o entendimento divino ou
«cada qualidade substancial (atributo) tem uma quantidade
modal-intensiva, em si mesma infinita, que se divide actualmente
ideia de Deus, modificação imediata da substância sob o atribu- numa infinidade de modos intrínsecos» (Deleuze, 1968, p. 81).
to pensamento, como para o movimento e repouso, em que se Só assim se podem pensar as essências de modo como realmen-
estrutura imediatamente a actividade sob o atributo extensão, te distintas, ainda que não actualmente separadas, e só assim
como, além disso, para a Jacies totius universi, o sistema de leis elas possuem uma realidade que não é meramente lógica, um
que regulam a estruturação mediata dos modos no atributo ex- estatuto que não é o de simples possíveis com tendência para a
tensão e certamente também no atributo pensamento, embora existência . O «mundo dos possíveis», se é que ainda o podere-
Espinosa não lhe faça alusão expressa. mos designar assim em Espinosa, é um mundo actual e essen-
Todavia, se a actividade substancial é sempre concebida na cialmente necessário.
eternidade e na infinitude, como pensar a diversidade dos se- Bem diferente do estatuto das essências de modo é o dos
res, dos indivíduos cuja existência é afectada pela duração? Como modos que lhes correspondem. Entre um e outro não há, repare-
representar, enfim, a particularidade no seio da totalidade? Por -se, qualquer continuidade, pois a essência nunca é razão ou
um lado, a existência em si mesma, enquanto pura actividade, causa da existência. A causa de um modo é sempre outro modo
não conhece limites; por outro lado, as essências singulares, na já dado no mesmo atributo. Não é o possível que se realiza,
medida em que são inteligíveis, são intrinsecamente possíveis, por força de um qualquer direito ou exigência intrínseca, quan-
mas podem não ter correspondência em qualquer coisa actual- do encontra uma oportunidade ou um contexto propício; são as
mente existente. Como compreender então os modos finitos? An- coisas que, ao conjugarem-se numa entidade de que passam a
tes de mais, convirá notar a distinção que Espinosa faz entre constituir as partes, protagonizam como extensivo um grau de
modo e essência de modo. Com efeito, dizer que uma coisa é potência, uma essência que lhes é e continuará exterior . A es-
pensável equivale a dizer que existe uma ideia no entendimento sência de modo, enquanto pura intensidade, está eternamente
infinito e que existe objectivamente a essência correspondente a contida no atributo, indiferente à existência ou não do modo
essa ideia, uma vez que seria absurdo uma ideia de nada. Expli- que lhe corresponde. Este, na medida em que é formado por
citando melhor, e em termos espinosanos, a todas as ideias em partes extra partes, existe apenas quando um outro ou outros o

58 59
1..1'1~;
.!/[.l.' da óptica , enqu anto Espinosa o pensa no contexto de uma antro-
provocam e ocasionam como agregado de coisas que convêm
llII'
1 entre si e cuja relação corresponde a uma essência, da mesma pologia, corno se poderá verificar até pelo facto de ele só apa-
h,l!f
1111·1
forma que deixará de existir quando esse conjunto se desagre- recer na Ili parte da Ética, não obstante ser postulado como prin -
gar e as suas partes entrarem em composições diferentes. E isto cípio universal. Na sua formulação cartesiana, o conatus aparec ia

ti
1111
1
·r!Ii'
i dá-se em todos os atributos, pois a existência a título de partes
extra partes não é exclusiva da extensão: tal como um conjunto
assimilado a uma propriedade de partículas «absolutamente du-
ras» e realmente distintas umas das outras para poderem ser
de partes de matéria, ao protagonizarem uma dada proporção pensadas corno elementos constitutivos da luz: «quando eu digo
1l1·1 de movimento e repouso, isto é; ao protagonizarem uma essên- que estas bolinhas (as partículas luminosas) fazem um esforço
•;!.
,1,1.: cia, constituem um corpo çompostó, _assim _t~mbém no pensa- (conatus), ou que têm tendência para se afastarem dos centros
~'i
\i)!
mento uma essência é protagonizada ·por um conjunto da· ideias
que correspondem a um conjunto · de corpos. E o' mesmo .se -pas-
em torno dos quais elas giram, não quero dizer que se lhes
deva atribuir qualquer pensamento de onde proceda essa inclina-
!1,·.l:!1 sa nos restantes atributos. -·
l :~li
ção, mas simplesmente que elas estão de tal maneira situadas e
O que define os modos é, por conseguinte, a entificação de dispostas a moverem-se que se afastariam de facto se não fos-
111 \:r uma proporção, de uma essência que, em si mesma, é uma dada ' sem retidas por uma qualquer outra causa» (Princípios, art. 56).
\ 11t
relação entre partes. Os seres individuais afirmam-se afirmando É, portanto, a necessidade de pensar o absolutamente simples
l' 1'!
essa proporção, isto é, evitando até onde puderem a desagre- corno partícula realmente distinta e «absolutamente dura», abrin-
1 gação das suas partes: «cada coisa esforça-se, tanto quanto de- do assim urna brecha no princípio da infinita divisibilidade da
1111
pende de si, por perseverar no seu ser» (E, rn, prop. 6). Para se matéria, que modela esta formulação do conatus. Mas em Espi-
1[1!1 entender este «esforço» (conatus), deve, antes de mais, recordar-se nosa, se há, de facto, referência a corporasimplicíssima, estes só
i!~lt
a proposição que vem na Ética imediatamente a seguir: «o es- abstractamente, e não substancialmente, se distinguem uns dos
forço pelo qual cada coisa procura perseverar no seu ser não é ·outros (E, 1, 15, esc.). Um corpo, repetimos, é por essência urna
senão a essência actual dessa mesma coisa». Note-se que não há equação de movimen to e repouso que se dá num agrupamento
aqui qualquer vestígio de uma potência de tipo aristotélico, pois de partes. Impossível, portanto, pensar-se, nesta perspectiva, uma
o conatus não se situa no limiar de uma coisa para outra coisa, partícula realmente existindo sem ser, ipso facto, ·um ser plural.
:ti nem é a passagem de um terminus a quo para um terminus ad Impossível em suma, pensar o conatus num corpus simplicissimus,
1 quem. Mais uma vez, o que está aqui implicado é a teoria espi- t que para Espinosa é pura abstracção, simples instrumento de
l·\, nosana da definição, a qual, como dissemos, equivale a uma teoria análise para a ciência dos corpos reais.
II da produção do definido. Uma coisa é sempre um sistema de Chegados aqui, o problema adquire urna outra amplitude e,

li partes que traduz extensivamente uma certa equação de repouso


e movimento. Por essência, ela é esta mesma equação. Dizer
, digamos mesmo, uma outra pertinência em relaçãq ao Tratado
Teológico-Político,permitindo-nos surpreender em à.cto a recapi-

1
I"
que as partes se conjugam no corpo, ou seja, que convêm entre
si, é o mesmo que dizer que elas compõem um determinado
grau de intensidade da substância. Nessa medida, existir não
tulação da Ética a que aludimos a princípio. E não é só porque
a teoria do conatus surge apenas na III parte da Ética, quer dizer,
num momento coincidente com aquele em que a epistolografia
significa senão esforçar-se por perseverar na existência, tal corno nos permite situar o início da preparação do Tratado. É, sobre-
Ir
a esfera não é mais do que a rotação do semicírculo em torno tudo, pela origem que somos obrigados a atribuir-lhe e pelas
y, do eixo. Um corpo é tão-só a versão ontológica de urna defini- consequências que assume no sistema. Na verdade, sendo im-
1,
ção. More geometrico,como devem ser todas as definições. pensável na solidão de um corpúsculo, o conatus, pelo qual em
1~1 Mas o conatus, tal corno Espinosa o concebe, além de não se última instância se definem todas as coisas, faz com que o esta-
confundir com a potência aristotélica, também se não confunde tuto de um corpo se tome impensável fora do contexto em que
com a versão mecanicista que dele apresenta Descartes, toda ela está inserido. O seu modelo de actuação não deve, portanto,
decalcada no princípio da inércia. Muito resumidamente, a dife- procurar-se no princípio da inércia, que só faz sentido no domí-
rença está em que Descartes pensa o conatus sob o paradigma nio dos corpos tornados em abstracto e é, por isso mesmo, ape-

60 61

!
J'l,t:;!.
lij.'I nas um caso particular do conatus. Aí, o contacto entre corpos nado a evitar a guerra, ou seja, a limitar e orientar o incre-
I!,
1.llii
1 ou entre partículas é sempre assimilado a um choque cujo efeito mento dos impulsos: é por dedução a partir dela que se chega
' f1.~ I
.J/
..
1 ,1
.'.,·. se traduzirá por uma alteração de rota, tal como o teoriza Des- ao contrato. A oposição, portanto, antes de ser protagonizada
,1l;1, por soberano e súbditos, é-o no interior de cada indivíduo pelas
1 ,,.1 : cartes e como ele aparece ainda na 11 parte da Ética. Pelo contrá-
:i.. •. ,J.
/1, .1
• ' fi.Jlj
'.1 rio, quando se passa à análise das paixões, o contacto é pen- pulsões contrárias do direito e da lei, do instinto e da razão .
.. ' ' 1111 sado diferentemente, obrigando a uma reformulação de toda a Hobbes, no entanto, faz todo este percurso mediante a ca-
1<•, 1,~i
1 teoria dos corpos que virá relegar a que fora explanada anterior- tegoria de movimento e deixa o conatus como exclusivo dos seres
~ ; dotados de sensação. Através da distinção entre movimentos vi-
1

lJj~I mente para o. domínio · das grandezas ·geométricas, ou seja, dàs

,,. \~:~; corpos considerados em abstracto. Nessa altura, porém, já só a


designação de conatus coinci.4~ c.om á que utilizaboa parte -dos -.
tais, como a circulação do sangue, e movimentosvoluntários,como
o andar, a natureza fica ainda dividida e o conatuscontinua uma

~ Ilfi pensadores da época. A tomada em consideração do espec1fica- das várias espécies de movimento, se bem que já não o dos
mente humano fez alterar os alicerces de · toda a metaffsfca espi- t corpos absolutamente simples de Descartes . Espinosa, por seu
I J'.'

i~,
tr nosana pela incorporação de um modelo de conatus que se tra-
duz como reacção das partes internas de um corpo a uma pressão
; turno, irá incorporar o modelo hobbesiano mas fazendo-o dar
um novo passo, isto é, tomando o conatus elemento universal e,
(:: ~:~f, exercida em sentido contrário na superfície do mesmo corpo. : em última instância, constitutivo de toda a realidade. Mais adian-
i . te veremos as consequências deste salto no que diz respeito à

l
Manifestamente, a concepção hobbesiana começava a influenciar
1 1 Espinosa. Como se poderá ler logo no cap. 1 do Leviathan, «causa .teoria do contrato. Por ora, importará apenas frisar que o «es-
1 1~ da sensação é o corpo exterior, ou o objecto que pressiona o ~rçar-se quanto de si dependa por perseverar no ser» é a lei de
1 :f órgão próprio de cada sensação [ ... ]. Esta pressão, propagada todos os seres, uma vez que todos eles são, por essência, um
para o interior, por intermédio dos nervos assim como de ou- equilíbrio, uma equação que traduz um grau de potência. Ser
1
tras fibras ou membranas, até ao cérebro e ao coração, provoca :,uma coisa é fazer tudo o que está em poder dessa mesma coisa,
aí uma resistência, uma contrapressão, um esforço (conatus) do l que o mesmo é dizer, tudo o que decorre necessariamente da
coração para se livrar dela». . ~~a definição. Ser substância, causa de si, é ser potência abso-
Hobbes, que se quer o Galileu da política, universaliza as · luta, actividade pura: o poder de Deus, ou seja, da natureza, é
categorias da mecânica, alarga o seu campo de aplicação, até aí ~-~m limites. O ser dos modos, porém, só faz sentido na confli-
restrito à extensão, e transpõe as fronteiras entre espírito e corpo t' tualidade, porquanto a sua afirmação equivale à afirmação do
que a Descartes apareciam ainda como invioláveis. O seu intuito ' equilíbrio que cada um deles actualiza e a negar tudo o que o

~li é apresentar o mecanismo do contrato como um obstáculo, uma


pressão exercida sobre a potência destruidora das paixões huma-
~;perturba ou tenta suprimir: a pacificação dos seres seria a sua
aniquilação na paisagem indistinta e indeterminada de uma acti-
~ vidade pura que não se configurasse em modificações, paisa-

1
nas. Para tanto, e para que esta pressão não surja como oriunda
da vontade arbitrária do soberano, solução incompatível com . gem, de resto, impensável na medida em que o pensamento se
,1 uma teoria que postula a igualdade original de todos os mem- , ,;.nos oferece sob a forma de ideias determinadas que convêm ou
bros do corpo político, tem de pressupor uma oposição entre não entre si, que formam ou não sistemas coerentes e a que
~1 direito natural - liberdade de fazer ou deixar de fazer uma -corresponde forçosamente alguma coisa, porque o nada não se

~-~1 coisa - e lei natural - que determina aquilo que se deve fazer
(Leviathan,cap. XIV, pp. 116-117). Pelo primeiro, o homem é livre
deixa pensar.

de fazer tudo quanto lhe dita a sua natureza, colocando a socie-


dade em risco de se reduzir a um caos, na medida em que, 2
contrariamente ao que sucede com os outros agregados animais, As leis da natureza e as leis humanas
os desejos do homem crescem na proporção da sua satisfação,
tornando assim a luta de conatus individuais uma luta de morte. Uma tal concepção, inspirada embora na análise do compor-
Mas pela lei da natureza, o homem está racionalmente determi- tamento passional, coloca alguns problemas quando se trata de

62 63
compreender depois as relações entre os homen s. Espinosa re- Podemos então passar a uma outra definição da lei, sem
fere-os logo no início do cap. 1v, onde se fala especificamente renunciar à coerência do sistema, e tomá-la agora como «uma
da lei. Com efeito, tomada em sentido absoluto, lei é só «aquela regra de vida que o homem prescreve a si mesmo ou aos ou-
que deriva necessariamente da própria natureza, ou da definição tros em função de algum fim» (infra, p. 180). A ordem da possi-
da coisa » (infra, p. 179). Porquê distinguir então as leis da natu- bilidade, se bem que só faça sentido como representação de-
reza das leis dos homens, se também estes «estão determinados rivada da definição do entendimento finito, sobrepõe-se, desta
por leis universais da natureza a existir e a agir de uma certa ·inova perspectiva, à ordem necessária afirmada ontologicamen-
maneira » (idem,.ibidem)?Por três razões, diz o autor. . te, de tal modo que podemos, ao invés do que antes se fez,
,.passar a considerar que só por analogia a lei se aplica às coisas
Primeiro, se o homem :é parte d_a natureza · é parte da po- ... , naturais. Contudo, ainda aqui, a análise se bifurca. Porque se a
tência desta, pelo que as leis_que derivam da necessidàd _é :da
natureza humana podem considerar-se como ·depen~e _ndo cJa
Jeié sempre promulgada em função de uma finalidade, haverá
'.íantasespécies de leis quantos os objectivos para que a vida
potência da mente humana; segundo, porque · nós devemos defi-
,, nir e explicar as coisas pelas suas causas próximas, não servindo
:~uinana possa apontar. Do ponto de vista da razão, a finalida-
só poderá ser uma, o verdadeiro conhecimento de si mesmo
de nada tecer considerações gerais sobre o encadeamento das
,quanto modo de ser da substância absolutamente infinita, ou
causas para formarmos e ordenarmos o nosso pensamento so- ":a,aquilo que Espinosa chama, na Ética, o amor intelectualisDei
bre coisas particulares; terceiro, porque nós ignoramos esse ..que, como se dirá no Tratado, aumenta na proporção dos nos-
mesmo encadeamento geral das coisas, sendo preferível e até conhecimentos sobre a natureza. Quão longe está, no entan-
necessárioconsiderá-las, na prática (ad usum vitae), como possí- >J a maioria dos homens de conhecer e buscar uma tal finali-
veis. Trata-se, como se poderá verificar, de razões de ordem e, e quão longe eles estão, por conseguinte, de conhecer o
diferente. A primeira é metafísica e pretende mostrar que não dadeiro sentido das leis! Onde a sua vida decorre é no plano
há solução de continuidade entre as leis naturais e as leis huma- paixões e interesses, e a única forma de os fazer obedecer é
nas; a segunda é de ordem epistemológica e visa justificar o ·estir as leis de uma outra finalidade, prometendo a quem as
porem-se entre parêntesis as considerações metafísicas na aná- rvar aquilo que ele mais deseja e a quem lhes desobedecer
lise efectiva e particularizada das relações entre os homens; a ilo que ele mais teme. Desejos, temores: é este o binómio
terceira, finalmente, é mista e surge como que a resumir as duas e se acoberta por detrás das leis humanas e é por ele que
anteriores . É que, se o entendimento humano não domina a 'éntramos no domínio da política. Quanto à lei que visa o «co-
complexidade total das conexões entre as coisas, a qual só se dá .ecimento e amor de Deus», Espinosa chama-lhe divina mas
na complexidade do entendimento infinito, então a suposição :-, 1beque só raros se regem por ela e reconhecem tal finalidade.
da possibilidade não é apenas uma simples questão metodoló- 1~· Entre esta lei divina e a lei humana, a diferença é abissal,
gica, é também uma necessidade em se tratando de analisar o centrariamente ao que se poderia inferir de algumas interpreta-
comportamento dos homens, dado que o existir e o agir destes ;. 'ções do espinosismo. A lei divina é universal e tanto se refere
1· se processa todo ele na ausência de um domínio total das situa- ,. ao homem isolado como aos homens em sociedade; dispensa a
ções. Daí a exigência, reiterada ao longo do Tratado, de se enca- ), fé nas narrativas históricas, porque se alimenta de noções co-
,:1
rar a história, a política, a religião, o humano, em suma, não de ;l ·muns, certas e conhecidas por si mesmo, as únicas com que se
·1· alcança a verdade de Deus e das cois,as; não obriga a cerimó-
um ponto de vista negativo, ou seja, como insuficiência quando
!.1 comparado com uma actuação que se processasse mediante um . nias ou a quaisquer ritos instituídos, pálidas imagens do bem
entendimento infinito (negatividade que levaria sempre, de uma que em si mesmas nada significam .r;i.empodem aumentar a perfei-
l forma ou de outra, a considerá-lo como produto de uma falta ção do entendimento; visa, enfim, o sumo bem (summum bonum)
original), mas sim como positividade em consonância com a e não os simples bens. Pelo contrário, a lei humana é sempre
essência dos homens e com o seu sempre relativo domínio das particular, «regional», referindo-se a um grupo de homens num
possíveis conexões entre as coisas. determinado tempo e situação, e nunca à humanidade ou a um

64 65

!
r, indivíduo isolado; vive da fé e da imaginação, pois desconhece pois, sujeitos às paixões e ao que as circunst âncias lhes ditam.
a verdadeira finalidade da vida; implica cerimónias e rituais, Paraos ensinar, só por meio de parábolas e por recurso à imagi-
para suprir a falta de um conhecimento intelectual das coisas; tl ' nação, caminhos que podem levar à observância de uma regra de
visa os bens, ou seja, e em termos políticos, «a segurança do indi- vida, mas não ao conhecimento da verdadeira razão dessa regra .
víduo e da colectividade» (infra, p. 181) e não o bem supremo. O saber que vem na Bíblia fica, assim, arredado do conheci-
Todo o desfasamento entre o saber da Bíblia e o verda- ; menta por ideias adequadas. Uma leitura de Espinosa com pres-
deiro conhecimento provém desta confusão sistemáticé). enti;e a .supostos iluministas concluiria daqui a necessidade de corrigir o
lei divina e · a · lei humana e evidencia-se · lõgo na primeira narra- vulgo, propagar conhecimentos e levar as instituições a traduzir
tiva do Génesis. Deus rev:ela ao prii;neiro homem as consequên- ?a verdade da natureza, ou seja, a adequar-se à verdadeira fina-
cias que sofrerá se comer o fruto i>roibido, mas não lhe revela lidade da vida humana. A análise do Tratado,porém, inibe uma
que tais consequências se seguirão neçéssariamente; .ou . seja, que
tal interpretação. Não é por acaso que, no cap. v, destinado a
é a própria natureza da acção que as iinplica:. É, pois, -por defi-
emonstrar o «equívoco» das cerimónias, se nos depara um pri-
ciência de conhecimento que o primeiro homem imagina tratar-
. .eiro esboço da teoria política . Nem por acaso nem por mera
-se de urna lei à maneira humana, que não envolve qualquer
'mtecipação na ordem argumentativa. É que todo o imaginário
necessidade intrínseca. A partir daí, o campo está aberto à ima-
·.u~ aí se manifesta, toda a simbologia que nas cerimónias se
ginação, e a imaginação vai alastrar por toda «a lei e os profe-
· \ilterializa, constitui o principal cimento das instituições, a tra-
tas», confundindo Deus com um rei, a necessidade com a possi-
bilidade, a ciência com a obediência, a busca do bem supremo .ução do elo invisível que consolida a unidade e a dinâmica do
através do entendimento com a busca de simples bens através ado. Se os homens pudessem viver apenas segundo os dita-
de rituais e cerimónias. Ao imaginar-se Deus como um rei, pres- .es da razão, nem as leis nem as cerimónias seriam necessárias,
supõe-se de imediato o entendimento infinito como algo dife- ,que todos veriam imediatamente as vantagens que traz a so-
rente da infinita vontade e emerge como lógica a possibilidade ~dade, quer no plano da segurança contra os inimigos, quer
dos milagres, de acontecimentos extraordinários que se julga de- '- plano interno da entreajuda. Mas, como a experiência mostra
monstrarem a verdadeira potência de Deus, ignorando-se que .contrário, são precisas leis e um poder coercivo que os conte-
essa potência se exprime na ordem da natureza e que a suspen- 'i_liaadentro de urna certa norma. Contê-los apenas pelo medo
são ou interrupção desta seria, pelo contrário, prova de falta de '·perigoso, visto que gera a insubmissão. Por isso é que Moisés
poder. Confundindo, enfim, o bem supremo com os simples bens, ,tegrou a religião no Estado, estendeu a lei a todas as acções
tomam-se as leis destinadas a garantir a estabilidade do Estado Hebreus e transformou a vida da comunidade num perpé-
e as comodidades dos cidadãos (leis políticas) por leis destina- . p ciclo de rituais que mantinham o povo em constante situa-
das à salvação individual. o de obediência. Não por temor, mas na expectativa de maio -
Dir-se-á que isto não se passa senão no Antigo Testamento. bens. E se, mesmo depois do fim do Estado, os Hebreus
E, até certo ponto, é verdade. Cristo prega uma lei universal, ~ntinuararn a observar esses ritos, não foi porque estes tives-
dá a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, pro- semum carácter divino ou necessário: foi simplesmente por cons-
mete recompensas só de natureza espiritual e, se acaso institui "lfituírem um factor de coesão ou, como Espinosa diz, uma marca
cerimónias, é apenas a título de sinais exteriores da Igreja Uni- a hostilidade dos fariseus contra os cristãos. O Estado pereceu
versal que não têm valor moral intrínseco nem são obrigatórios mas a nação hebraica perdura. Os rituais e símbolos deixaram
para um homem que viva isolado ou num Estado aonde a reli- de produzir o seu efeito primitivo, a realidade oscilou por de-
gião cristã seja proibida. Simplesmente, essa lei universal e não l' baixo da imaginação, mas nem por isso esta perdeu a sua efec-
política apresenta-se ainda sob o modelo da relação senhor _-súb- i! tividade. Pelo contrário, ela ecoa ainda na memória e o seu eco
dito. Nem de outra forma poderia ser, porquanto ela se desti- basta para reproduzir a esperança e transformar aos olhos dos
nava a ser pregada a todos os homens e estes, na sua maioria, fiéis a realidade presente num simples contratempo, numa er-
carecem do conhecimento do verdadeiro fim da vida, estando, rância com destino: a reconstituição do Estado.

66 67

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! '!l AS ENCARNAÇÕES DO VERBO
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,. I' . passagem do indicativo ao imperativo
·Í·,~
1
,11.~ onhecimento profético e realidade social são como que um
1 ,.
t''~ co que tem por eixo o que há de positivo na imaginação.
·ele se fecha a primeira parte do Tratado. A desordem apa-
!'úl . das paixões descobre-se ordenada para fins específicos, a
''j ocidade dos símbolos e rituais emerge como constitutiva
114
a outra região ontológica. Nem tudo, porém, ficou expli-
t1 ·•No plano da totalidade, sabemos que a ordem e conexão
i~~~ ·~oisas é a mesma que a ordem e conexão das ideias, já que
ias são expressão da actividade da mesma substância sob

!,~ ,utos diferen tes. É o plano da «lei divina», o qual não dita
. mem outra coisa que não seja afirmar-se em liberdade atra-

~t
~\i
•Jdo conhecimento de Deus, isto é, do conhecimento de si
rio enquanto grau da potência infinita. No entanto, esta lei,
. virtude da sua universalidade, apresenta-se como ideal a
lizar por cada indivíduo e não contempla a formação con-

H
r,1
a dos grupos humanos, a qual é sempre determinada pela
,,cura de bens contingentes e deriva da incapacidade experi -
tada pela maioria em conhecer os verdadeiros fins, que é
r,!, ' 1mo quem diz, a sua verdadeira razão de ser. A contingência,
'' s, define-se exactamente por esta deficiência de conhecimento.
11 medida em que ignora a razão e a necessidade das coisas, o
l·l1 1ómem sente-se ameaçado pelo imprevisível. Porque a imagina -
.\ !ã.oassinala apenas a situação presente do corpo e as afecções
_ue ele recebe do exterior. Mas não indica a sua causa nem a
.relação necessária entre esta e os efeitos, não percebe a natu-

69
~. reza íntima das coisas independentemente do sujeito e é, por Na verdade, identificar a origem das leis e do conhecimen-
"f to profético como actividade da imaginação é insuficiente para
,., isso mesmo, conhecimento inadequado. Indica é o lugar do in-
divíduo no jogo de encontros fortuitos em que decorre a sua caracterizar os modos específicos em que se exterioriza essa ima-
existência, sendo, portanto, intrinsecamente instável. ginação ou as estruturas que se produzem pela sua actividade.
Urna tal precariedade constitui uma ameaça. De facto, se há Em termos alheios a Espinosa, diríamos que se assinalou apenas
corpos que «convêm» com o meu, há outros que lhe são adver- a génese da história. Mas este gesto é ambíguo, porquanto assi-
sos e contrariam a sua sobrevivência. Ora, se o indivíduo se nalar a génese da história pressupõe a saída da história e a
afirma precisamente p"elo perseverarein 5UO esse, é lógico que· o passagem à teoria. Como abarcar pela teoria o que se constitui
~

homem fará tudo quanto esteja erri _.si -par<\. esconjurar o medo pela sua mesma ausência? As respostas à pergunta são conheci-
que a instabilidade lhe provoca. ·Essa a razão por que,: Dª :au- das, tanto nó que respeita à Bíblia como no que respeita à socie-

.. sência de um domínio da totalidade das correlações possíveis


no universo, da totalidade até das relações entre as pàrtes -do
dade. No caso da Bíblia, as interpretações oscilam todas entre
fazê-la coincidir com a razão ou tomá-la como alheia, por ina-
\ seu próprio . corpo, ele forja um sistema de causas e relações . cessível, à mesma razão. No caso da sociedade, o que se passa
llj:j imaginárias. Mas como poderá a imaginação, por natureza con-
tingente, neutralizar o medo? Só imaginando as suas ficções como
' não é muito diferente: ora se pressupõe a lei fundada em ver-
dade e necessidade - jus a justo - ora se considera que ela
;:;,
necessárias, representando como estáveis os produtos da sua ins- deriva de uma vontade que se julga coincidente ou se faz coin-
tabilidade congénita. A imaginação é o mundo dos signos, e . cidir com a vontade divina - jus a jusso. De uma ou de outra
11,1 . forma, não saímos da questão: qual o papel do entendimento
1. estes, se à luz do entendimento se revelam como pura equivoci-
dade aberta ao jogo e à guerra das interpretações, ao nível do ;. face a urna realidade que não reproduz a dedução geométrica
primeiro grau de conhecimento assumem a unívocidade das leis. '.das essências e que se instaura a partir de um conhecimento
Recalcando o seu carácter de meros indicativos de uma situa- inadequado? É este o problema que fará o objecto da segunda
ção, tomam-se imperativos como condição necessária para exer- ~;:metade do Tratado Teológico-Político.
cerem uma função estabilizadora. Toda a Escritura se poderia 'r1 Numa primeira parte (caps. vn-xv), Espinosa estuda a Escri-
resumir nesse trabalho de aprisionamento dos signos através da t tura, averiguando o seu verdadeiro conteúdo à luz do pressu-
sua inscrição em «tábuas de pedra» onde a letra suspende a ':posto já demonstrado de que se trata de conhecimento do pri-
inconstância do imaginário, onde a palavra encarna em lei e se ír.ineiro género e deduzindo a impossibilidade de nela se
separa daqueles que a pronunciaram e aos quais passa a dominar. Jundarnentarqualquer autoridade em matéria especulativa; numa
Discurso sem nenhum sujeito assinalável, palavra impossível ~gunda e última parte, estuda a política, evidenciando os me-
de atribuir aos lábios de alguém, sob pena de a relativizar, f..anismos possíveis de estruturação da sociedade, isto é, os mo-
\
Verbo de Deus, em suma, o registo comum à Bíblia e à lei é um 1jdos como se pode operar a metamorfose da lei impessoal na lei
registo contraditório, pois escapa em última instância a toda e ;do soberano ou vice-versa. Mas tal como para os seis primeiros
•!
qualquer racionalidade, mas nem por isso menos eficiente. Efi- ! capítulos vimos que havia um eixo, constituído pela imaginação,

·iii ciente porque, como vimos, é nele que se funda a constituição · em torno do qual girava o tratamento da revelação e da reali-
dos agregados humanos enquanto processo de reduzir a adver- .idade social, também aqui a Escritura e a política propriamente
1
sidade e exponenciar a aquisição de bens; eficiente ainda por- ; · dita se deixam atravessar por um eixo comum que é a obediên-
que a própria contradição sobre a qual assenta vai modular os j: eia. A Bíblia é a revelação passada à letra; a política é a inseri-
conflitos no seio desses agregados, centrando-os na questão da ' ,;ão dos agregados sociais sob o signo da lei; a obediência é a
legitimidade do poder, ou seja, da coincidência entre a palavra ··,Imaginação estruturada na lei e nos profetas, ou seja, na política
1
do legislador-intérprete e a Palavra que antecede todas as in- e. no Livro Sagrado. Veremos mais em pormenor este novo díp-
terpretações e de onde procedem todas as leis. É aqui que o .}ico em que o problema se desdobra, começando, ainda neste
problema se transfigura no horizonte do Tratado. j. capítulo, pela Escritura e deixando a política para o seguinte.

70 71

i
l :·1•;
11 Jerónimo : «cada frase, sílaba, acento ou ponto nas divinas Escri-
ií:1'k 2
J ;11 f turas está cheio de sentido» 8 •
Lilq
i1,, A letra e o espírito Uma tal necessidade poderá pensar -se em relação à letra, a
llt:1:
qual é possível fixar e em certa medida poupar à contingência.
;' ' Façamos, desde logo, a pergunta: o que é a Escritura? Toda Mas . .. e o espírito do texto? Quanto a este, se o imaginássemos
»11:
a gente diz que é a palavra de Deus, conforme nota Espinosa.
l;t!il Porém, a palavra de Deus, longe de vir estancar as nascentes
acorrentado, corria o risco de se perder com o tempo. Daí o
1) i papel e o peso da tradição. A tradição é precisamente essa ca-
da dúvida, abre-se ela própri? em problemas de toda a espécie . deia que em cada elo refaz o sentido originário. «A cada nova
1.11 Enunciemos alguns. . . . ..
opinião ditada pelas circunstâncias, o sentido do versículo reco-
li,1l r; a) Em que consiste esta p_alavra? Como concebei o. ·v~rbo
meça , e a tradição, longe de impor uma opinião, obriga a
l11'1i•
ri de Deus, que é por definição verdade eterna, çonjugadõ em qual-
reconhecer e a ter em conta a sucessão dos tempos, a diversi-
dade dos lugares, na elaboração do sentido simples» (Osier, 1983,
lf, quer tempo? Que sons ou que figuras poderão traduzir o Infi- p. 49). Não é por acaso que a cultura judaica atribui tanta im-
1 ~·
ir:'' nito? É um milagre, dizem as religiões. Mas o milagre, além de ·, portância à «lei de boca », mais até, segundo alguns autores, do
lij.~ pressupor, na concepção espinosana, que Deus teria de corrigir ; que propriamente à lei escrita. A esta, efectivamente, qualquer
;I~: aquilo que ele próprio criou e suspender as leis necessárias da
natureza, o que demonstraria a impotência e não a potência di-
estrangeiro poderá ter acesso, pelo menos se aprender a língua;
aquela, porém, é vista como o mais autêntico dom de Deus ao
~i vina, deixa o caminho aberto à vã tentativa de encontrar uma • povo eleito, porquanto nela reside a expressão da própria nacio-
1,. explicação racional sempre mais adequada. A revelação de Deus
aos homens constitui, por isso, o princípio e ao mesmo tempo o
. nalidade, essa história viva que a cada instante reactualiza o ·
' significado dos signos escriturísticos, sem deixar alguma vez de
,'OC limite de toda a especulação. A Bíblia é, por assim dizer, a ; se pensar sob o signo da eternidade.
' ..., 11:1
: : '1...
'
\t~"I 1,;,
-~
verdadeira face do «absoluto literário », escrita de urna vez por
todas e, no entanto, a precisar em cada momento de ser re-es-
.,
b) Admitamos então a face temporal da Bíblia, através da

,:l
d crita. Perante o seu texto, só duas atitudes parecem possíveis: a
dos cabalistas e a dos intérpretes. Ou se tem em conta a ver-
dade e a necessidade que o autor da revelação imprime à men-
sagem, ou se considera a contingência dos seus destinatários.
,· qual, desdobrado o texto em corpo e espírito, letra e sentido,
se vai inscrever, sobre a distância infinita que separa os signos
do seu referente inomeável, o ilimitado processo das interpreta-
ções. Cada época pressentirá fatalmente esta distância de ma-
;1:i:
!li Para o cabalista, a mensagem está, no conteúdo e na forma, neira diferente e ver-se-á tentada a ultrapassá-la, removendo o
'~ saturada de verdade, pelo que não há espaço para a contin- sentido dos signos. Não é só a história que dinamiza este pro-
}I! cesso. Conforme diz Peirce, «o significado de uma representa-
gência . Conforme diz Jorge Luís Borges (1955, p. 242), num pa-
11
rágrafo que está longe de ser simples ficção, «os cabalistas ju- ção só pode ser uma outra representação . Na realidade, é ape-
ri
i nas a mesma representação despojada do seu revestimento não
deus pensaram que, na composição do texto absoluto, o valor
"
do acaso podia ser estimado em zero. Partindo dessa ideia pertinente. Mas este revestimento não pode jamais ser totalmente
prodigiosa de um livro impenetrável à contingência, um livro abandonado, pode é ser substituído por um outro mais transpa-
que é engrenagem de desígnios infinitos, foram levados a ope- , ·~ente . Deste modo se produz uma regressão infinita. O inter-
f:i rar na Escritura permutas de palavras, a somar o valor numé- pretante 9 não é, em suma, senão uma outra representação a
rico das letras, a levar em conta a sua forma, a observar as
minúsculas e as maiúsculas, a procurar acrósticos e anagramas,
e a outras subtilezas de que é fácil a gente rir-se . A sua justifi- 8 Sing11lisermones, syllabae, apices, puncta in divinis Scripturis plena sunt
cação, porém, é que nada pode ser contingente na obra de uma sensibus (Comm. in Eph., 3, 6, cit. in Hopfl, vol. 1, p. 66).
inteligência infinita .» A Igreja Católica não pensa, de resto, de 9 Apesar de não pôr em causa a simples aproximação que aqui se pre -
i: outra forma. Veja-se, por exemplo, o que a tal respeito diz São tende fazer, convirá reparar na distinção entre intérprete e interpretantena teo-

73
72
que se entrega o testemunho da verdade e, como representação, de ser decifrado no plano da alegoria: a partir do momento em
tem por seu turno o seu próprio interpretante. Surge, assim, que o judaísmo e o cristianismo, como depois o islamismo, pre -
ouh·a série infinita» (CollectedPapers,1939, cit. in Eco, 1976, p. 58). tendem apresentar a sua doutrina em linguagem filosófica, tudo
O problema maior em relação à Escritura não provém, no quanto a Escritura diz de Deus será lido segundo o método
entanto, desta verdade eternamente diferida que os signos com- alegórico através do qual os Gregos liam os seus poetas. Xenó-
portam e transportam. O desejo do sentido último, projectado, fanes («os Etíopes dizem que os seus deuses são negros e têm o
aliás, especularmente como sentido originário, é de facto o mo- nariz achatado, os Trácios dizem que os seus têm os olhos azuis
tor imóvel das interpretações·, mas isto ,não impede que càda e o cabelo ruivo», DK, 171) e Platão («o ciúme está banido do
uma delas se represente como defu:ritivo a_crisolamento do sen- ; coração dos deuses», Fedro,247, a), entre muitos, já tinham des-
tido. O que acontece é que essa mobilidade no tempo sé ·faz . cortinado um outro sentido por detrás dos mitos, mas é sobre-
acompanhar de equivalen te irradiação ·no espaço, m_ultiplicando ,J.,tudo com o estoicismo e a sua ideia de que o Logos divino é
., as interpretações em cada época ·disponívéis: No ·plàno dia-cró- '·sem paixão (apatheia) que a alegoria se toma um método coe-
'1 nico, o sentido é sempre outro mas refaz sempre o mesmo. rente. Fílon de Alexandria, entre os judeus, e Orígenes, entre
Porém, o mesmo não pode ser pensado a refazer-se ao mesmo ps.cristãos, são alguns dos pensadores que se encarregam de o
tempo de diversas maneiras. Cada seita pretende esgotar a ver- ,corporar no seio das respectivas Igrejas.
dade do texto, afirmando, consequentemente, a impertinência 1 A alegoria surge, antes de mais, corno um recurso defensi-
das que se lhe opõem e negando a sua própria distância em :l~ usado pela razão para se assegurar de que a verdade se não
relação à verdade. É a própria natureza do signo que condena, ,eslocou para o terreno do mito. Mediante este recurso, o texto
afinal, o problema a só ter solução por recurso a um elemento ,lico é supos to ter dois destinatários: aqueles que são capazes ·
exterior à doutrina, ou seja, recorrendo ao poder. A função dos ,e ver para além do sentido imediato a mensagem teorética
Concílios, judeus ou cristãos, como Espinosa sugere, é preci- .e ele esconde e aqueles que se ficam pela superfície . Ao povo,
samente escrever sub specie aeternitatis a temporalidade e con- teria dito como que urna mentira pedagógica, apresentando-
tingência do sentido, imprimir a necessidade da lei à arbitra- ora como colérico ora como bondoso, para o conver ter atra-
riedade congénita dos signos, traduzir, enfim, a verdade em ~ do medo e da esperança (cf. Schwager, 1985, pp. 60-65); os
normatividade. ios, porém, descobrem nesta mentira o intuito que a justifica.
A tarefa não é fácil. Por muitas razões, mas sobretudo por- im sendo, a alegoria estabelece de imediato urna hierarqui-
que a sobreposição de leituras da palavra revelada tem subja- ão pelo saber, a qual tenderá sempre a fazer-se acompanhar
cente a contradição fundamental de um Deus que, uma vez pos- ,,'e uma hierarquização pelo poder. «Ao produzir um sistema de
to a falar, se expõe de imediato ao prolongamento da analogia '· resentações que simultaneamente traduz e legitima a sua or-
que irá atribuir-lhe virtudes e paixões humanas. Falar é sempre í~em, qualquer sociedade instala também 'guardiães' do sistema
pôr algo em comum, e entre o infinito e o finito não há, por ,:'.que dispõem de uma certa técnica de manipulação das repre-
princípio, nada em comum. Por isso, o texto bíblico terá sempre f sentações e símbolos» (Baczko, 1985, p. 299). Já vimos como isto
/i! foi expressamente teorizado por Averróis e é sabido corno, ao
Ili r'longo de toda a Idade Média cristã, a interpretação oficial da
'11 ria de Peirce, que Umberto Eco explicita da seguinte forma: «o interpretante é · Igreja se vê secundada pelo braço secular, rasurando a ferro e
aquilo que assegura a validade do signo mesmo na ausência do intérprete [.. .] .: fogo, que o mesmo é dizer em cruzadas e inquisições, as inter-
A hipótese filológica mais fértil parece ser a que trata o interpretante como . pretações paralelas. Porque a alegoria isentou Deus da cólera,
l' uma outra representaçãoreferidaao mesmo objecto.Por outras palavras, para esta- mas não impede (pelo contrário, até impõe) que a justiça divina
belecer o significado de um significante por meio de outro significante (Peirce
fala, não obstante, em 'signo') é necessário nomear o primeiro significante por
,, passe a fazer-se indirectamente pelas mãos dos homens. O pro-
meio de um outro significante, o qual, por sua vez, conta com outro signifi- . blema, no entanto, permanece : quem detém a legitimidade para
cante que pode ser interpretado por outro significante e assim sucessivamente. executar essa justiça e afirmar a coincidência do sentido que atri-
Temos, assim, um processo de semiose ilimitada»(Eco, 1976, p . 58). bui à revelação com a verdade divina?

74 75
e) É da s guerras em prol do sentido que surge o retorno à ria de São Tomás, que tem em conta os vários níveis de leitura
letra , lugar utópico de paz. O que se dá na Renascença é como l e abre assim a possibilidade de uma reconciliação a prazo entre
que uma generalizada suspeita de que a cadeia de interpreta- · a ciência e a teologia 10• No pólo oposto, formar-se-á a ortodo-
ções vai viciada e é necessário recomeçar do princípio. Erasmo 'Xiade Calvino, para quem «a justiça de Deus é demasiado ele-
proclama: «antigamente, a fé consistia mais em viver do que em vada para poder reduzir-se à natureza humana ou ser compreen-
professar dogmas; entretanto, os dogmas aumentaram e a cari- ,.i-~'. dida pela pequenez do entendimento dos homens» (Calvin, ed.
dade diminuiu, as discussões aqueceram e a caridade esfriou · ·f· 1961, p. 85). Entre uma e outra, entre a confiança na razão e a
(Carta-Prefádo · à -edição das Obras de ·Santo Hilário, cit. in Lecler, ,,:; 'i;ua recusa, entre o dogmatismo e o cepticismo, as possibilida-
.,,.·~ . des de formulação doutrinária esgotam-se, pelo menos no inte-
1955, vol. 1, p. 145). O apelo _é fundamentalmente de natureza
ética, mas traz também UII1 progréima de natureza intelec;tual -~'ti()r do saber bíblico. As tentativas de escap ar a esse círculo e
J,
que se traduz na tentativa de surpreender a verdade ~esse ins- •·p.romover uma «segunda reforma» ficar-se-ão pelo subjectivis-
,1 tante mítico de antes de todas as tradições. ·Em 1527; ele sür- im.o sem consequências dos «cristãos sem Igreja», os quais, como
girá concretizado na obra do dominicano Xantes Pagnini, que fere Kolakowski no exaustivo estudo que lhes dedica, «são
publica então a Veteris et Novi Testamenti Nova Translatio, tradu- exemplo deste desejo de autenticidade que só pode realizar-
' ção da Bíblia do hebraico para latim onde a paixão do literatis- :e num movimento de fuga para fora do mundo . A incon-
mo atinge escrúpulos que tornam por vezes o texto ininteligí- uência da Reforma 'clássica' implantou-a no mundo e permi-
vel. O êxito do empreendimento é, todavia, enorme (cf. Bataillon, -lhe constituir o seu próprio mundo: mas o espírito de
1978, pp. 22-43) e a rudeza do latim que resulta dessa transpo- .tinuação dos anticonfessionalistas era um movimento no va-
sição palavra por palavra, na irrealizável pretensão de neutrali- .o. Afastado efectivamente de toda e qualquer ligação com as ·
zar os sentidos que perverteram a mensagem revelada, em vez 'dades temporais, o contacto da alma ind ividual com o ab-
de prejudicar a edição, promove-a às dimensões de exemplari- uto possibilitava-lhe a 'autenticidade' mas só a preço de uma
dade que os tempos reclamam. ,titude de eremita vivendo em plena cidade . 'A autenticidade
Um século depois, vê-la-ernos na biblioteca de Espinosa. Já o fuga': é esta a fórmula mais geral para resumir esse estilo
antes, Uriel da Costa se socorrera dela para procurar o verda- ológico» (Kolakowski, 1969, p. 66).
deiro sentido da lei na língua original, que não dominava, ao À semelhança da atitude dos cristãos evangélicos, a interpre-
contrário de Espinosa. O catolicismo, por sua vez, reage, in- '.ção da Bíblia intentada por Espinosa constitui um ataque às
cluindo em sucessivos índices, designadamente na Península Ibé- s versões em que se apresenta a relação entre filosofia e fé.
rica (cf. Bataillon, idem, ibidem), essa e outras iniciativas simila- mesmo quem aponte os «cristãos sem igreja» como os inter-
res que lhe parecem (e com que razão!) eivadas de judaísmo, utores a quem o Tratadoia dirigido (Negri, Tosel). O que os
mas também não resistirá à vaga de erudição bíblica. Já antes, ara de Espinosa, porém, é talvez mais do que aquilo que os
em 1517, fora publicada a Poliglotade Alcalá, que trazia justapos- .e. A atitude crítica em relação a todas as formas organizadas
tas versões em hebraico, grego e latim. E em 1572, sucede-lhe a i ~ fé que pretendem submeter os homens, seja invocando a ra-
Poliglotade Anvers, publicada por acção de Arias Montano e sob •; ~o, seja apelando directamente à obediência cega, é, de facto,
os auspícios de Felipe II (só assim se explica o ter vencido as .a· mesma, permitindo o estabelecimento de uma plataforma de
múltiplas resistências), onde se retoma a de Alcalá mas com a ..~ogo. Mas enquanto estes cristãos desvinculados de compro-
particularidade de se lhe acrescentar, à tradução latina que já
trazia - a Vulgata, considerada por sucessivos Concílios como
a única versão inspirada - a tradução de Xantes Pagnini.
10 O método é sempre o da alegoria: «Moyses rudi populo loquebatur,quo-
Todos estes recursos a partir de então disponíveis não alte- T!'m imbecillitatico11descens ilia solum eis proposuit, quae ma11ifeste
sensui appare11t
»
ram, todavia, o tradicional fundo da questão que a Espinosa se (S. Th., 1, q. 68 a. 3). Ou ainda mais claramente : «constat tamenin Scriptura Sacra
·1
depara. Refazem apenas o teatro em que se trava a luta das multa metaplioric e tractata, quae sec1111d11m
planu,n supersticiem litteraeintelligi non
interpretações. A ortodoxia romana reconstituir-se-á sobre a teo- valeant» (Sent., 11, dist . 14 q. 1 a. 1).

'l
L 76 77
missos institucionais concluem pela necessidade de uma interio- los atrás citados e neutralizar assim a poss ibilidade de com -
rização mais ou menos mística e ascética, com reflexos apenas ireensão de uma qualquer terceira via.
no plano da eticidade, Espinosa pretenderá erguer sobre essa i;_· Serrarius, por sua vez, pugna também pela tolerância, dá -se
mesma base um plano de organização política que ponha a salvo '-,m intelectuais de todos os quadrantes judeus e cristãos, e é
as convicções individuais, furtando -as à alçada do poder civil frequência que o vemos servir de mensageiro entre Espi-
ou eclesiástico. ·.osae Oldenburg . Do ponto de vista doutrinal, é um místico
' Os adversários mencionados no ITP são Maimónides e Al- ostado na conversão dos judeus, que vê na obra de Meyer
phakar, dois comentadores judeus que sustentam, o primeiro, a sinal de que a história entrou na sua última fase (cf. Wall,
racionalidade subjacente ,ao .t~xto b_íblico, c9mo já tínhamos re- ,f.199): a filosofia. introduz-se qual prostituta no templo, instala-
ferido, e o segundo, a sua .total ·inscrição nos domínios- de :llm.a e faz-se adorar como o bezerro de oiro. O que Serrarius
fé inacessível ao conhecimento · filosófico. Mais do -que de duas ·L,ve contra o livro de Meyer não é uma simples refutação, é
leituras historicamente verificadas, trata-se âqui de elitas atitu- verdadeira cruzada, indo ao ponto de solicitar aos amigos
des exemplares em cujo âmbito não é difícil enquadrar, por um se lhe juntem. E, de facto, em 1667, quando publica a sua
lado, a tradição católica representada por Santo Agostinho e São ,onsio ad exercitationem paradoxam anonymi cuiusdam, já lhe
Tomás, por outro, a tradição reformista representada por Cal- enta um texto de Comenius, que classifica como «presente
vino. São, de facto, estas as duas grandes linhas de interpreta- te» embora sem lhe mencionar o autor. No conjunto, o vo-
ção em confronto e é perante elas, conforme referem vários é um libelo acusatório todo ele baseado na distinção entre
autores (Strauss, Tosel), que Espinosa vai definir o seu próprio ão humana, comum a todos os homens, mas falível como
método. O que não tem sido notado é que essas linhas de in- tidos, e a luz sobrenatural ou inspiração do Espírito Santo,
terpretação, mais do que uma vaga referência cultural e histó- da apenas aos fiéis e que é fonte de verdade infalível. O prin-
rica, constituem algo de muito próximo do autor, visto serem o fo hermenêutico da Escritura deverá ser, segundo Serrarius,
tema da polémica travada entre dois homens seus conhecidos e ,9 a luz natural, mas o Espírito. Ora, o espírito «sopra onde
que com ele se relacionam, precisamente nos anos em que es- :r», fala de muitas maneiras, as palavras reveladas são uma
creve o Tratado: Louis Meyer e Pierre Serrurier, de seu nome . Portanto, a Escritura deve interpretar-se por si mesma e
latino Petrus Serrarius. .o pela razão. Se há controvérsias a tal respeito, elas provêm
Meyer é um destes «cristãos sem igreja» que professam a damente desta pretensão da filosofia com que Louis Meyer
tolerância religiosa e rejeitam a autoridade em matéria de fé. . quer sanar: só a fé do homem renascido (renatus), e não as
Amigo de Espinosa, virá mais tarde, em 1663, a encarregar-se eculações do homem condenado (damnatus), por muito que
da publicação do seu primeiro livro impresso, os Princípios da se considere o verdadeiro Renatus (Descartes), poderá res-
Filosofiade Descartes,escrito, aliás, a seu pedido, e voltará, em 1belecer a piedade e a paz da cristandade, objectivo a que in-
1670, a encarregar-se da publicação das Opera Postuma, com pre- . amente se devotam o barroquismo dos argumentos e a fé
fácio de Jarig Jelles que Meyer traduz para latim . Em termos
filosóficos, o seu cartesianismo é levado a extremos que ultra-
passam os do próprio autor do Discurso do Método, na medida
ljj em que pretende que a Escritura é perfeitamente inteligível no 3
(:'' quadro da razão natural. É mesmo essa a tese principal do seu Scientia propter potentiam
fül livro PhilosophiaSacraeScripturaeInterpres, editado anonimamente
em 1666 e explicitamente criticado no ITP (cf. infra, anotações , Enquanto isto, Espinosa escreve, desde 1665, o Tratado Teo-
~I ao cap. xv, pp. 316, 319 e 323). Sete anos mais tarde, a obra ,ilógico-Político,conforme se vê pela carta já referida, uma das que
111!! aparecerá apensa a uma edição do Tratado como sendo igual- &rrarius levou a Oldenburg . A polémica, evidentemente, rodeia-
Jv/ mente de Espinosa, o que demonstra, quer as ambiguidades que -o de muito perto, mas ele distancia-se. Qualquer das soluções
rodeiam esta discussão, quer a tendência para a reduzir aos dois em confronto é, afinal, já antiga e circulou por todas as religiões

l
:f.11

1:I
1/ 78 79
•recem misturadas . De qualquer modo, o que interessará aqui
Ui·li
1 '
que se reivindicam do texto bíblico, havendo, por conseguinte,
que a isentar de circunstancionalismos. É esse o motivo que leva ar é que ambas projectam na hermenêutica seiscentista vários
1 .,,. i· seus tópicos mais marcantes . Vejamos alguns.
Espinosa a recuar no tempo e a situar a controvérsia em parâ-
metros de intemporalidade, mediante a invocação de dois no-
11!,.,;.J mes que, sendo embora de figuras históricas, funcionam como a) Valorizaçãoda eloquência.É o traço mais característico do

•:11!
, 'I se fossem de personagens paradigmáticas: Maimónides e Alpha-
kar. Do seu «diálogo» concluir-se-á que o problema não tem
anismo renascentista e podemos encará-lo sob duas pers-
tivas: o estudo das lípguas clássicas, sem o qual se considera
!l; solução de um ponto · de vista · religioso; uma vez que todas · as .til a discussão dos termos filosóficos, e o estudo da retórica
f,'l' religiões e seitas vão for~osamente, _ pela s~a .lógica intrínseca, a jurisprudência de inspiração ciceroniana. Em Zabarella, como
11:, maioria dos mestres paduanos, estes elementos serão tidos
reconstruir o mecanismo de .exclusãô que torna a guerra · irreme-
.,,1
1!1:
·
n,,,,.j
li. diável. Só na exterioridade dessê espaço · polémico em que· todas conta, ainda que destinados apenas a um melhor conheci-
11."
.1 elas convergem é que se pode encontrar uma saída. - o proble- nto da linguagem aristotélica, por forma a expurgá-la do bar-
1 it ma, portanto, não é a reconciliação no interior desta ou daquela mo das traduções existentes. Mas noutros, como em J. Luis
f~,, Igreja, recorrendo a este ou àquele método, à razão ou à fé, ·es,eles redundarão numa recusa do estudo abstracto e uni-
r't11' mas sim a paz civil que garanta a livre expressão de todas as 1 da palavra, ao qual é contraposta a convicção de que cada
,.11
..
l' opiniões, verdadeiras ou falsas. a tem o seu génio próprio e de que, por conseguinte, são
,~·:·
•I
11 ·.. Uma via 'aparentemente plausível para tal programa político regras lógicas que derivam de hábitos linguísticos e não o
1! "í
era a que se poderia deduzir do humanismo renascentista, na ..;rso (cf. Coxito, 1983, p. 69). Contra a tradição veiculada pelas
sua vertente probabilista e mais ou menos céptica . Há, com ,las, onde o modelo de demonstração é procurado nos Ana-
efeito, nesse humanismo que vem de Petrarca e do seu distancia- ,9 de Aristóteles, os humanistas vão impor a ideia de que a

mento face à sofisticada lógica dos escolásticos de Paris e de ca se tem de aplicar a questões práticas e de interesse pú-
Oxford, «os bárbaros britânicos», mais do que um elemento a o, devendo, por isso, revestir-se de adornos retóricos para
repercutir-se neste problema. Resumindo a controvérsia às suas lhor ensinar, persuadir e impressionar agradavelmente os
posições extremas - já que não podemos ver em pormenor toda · tes ou leitores . É o que proclama abertamente, entre ou-
a rede complicada em que se embaraça a gnosiologia renascen- ,s,Lorenzo Valla (cf . Vasoli, pp. 412-434), que subordina a
tista (cf. Gilbert, 1963, Vasoli, 1968, Coxito, 1980 e 1983) na sua à retórica, os Analíticos aos Tópicos e à oratória de Cícero
tentativa de encontrar uma teoria do método que seja em si- tiliano.
multâneo coerente e fecunda, uma ars demonstrandi que se des-
dobre em verdadeira ars inveniendi- diríamos que estão em jogo b) Tentativa de unificaçãodo método. Também aqui as diver-
duas atitudes que são outras tantas tentativas para superar os das são inúmeras, quer no que respeita ao conceito de ciên-
impasses da Escolástica: uma, de natureza pragmática, que tende , quer às vias para a sua formulação, mas o facto é que tanto
a diluir a filosofia numa arte de expor e argumentar; outra, de pstotélicos como humanistas procuram, a partir de postulados
natureza mais teórica, que pretende reactivar o aristotelismo, ~erentes, encontrar uma coerência na exposição dos saberes,
1
acentuando o carácter «instrumental» da lógica, mas ressalvan- '1t.indaquando esta se constrói sobre o critério da utilidade, o
do sempre a diferença entre a linguagem universal da ciência, ,gual se arrisca ao probabilismo e ao cepticismo. Se é verdade
independente da forma e do idioma em que se exprime, e a ) que a metodologia renascentista, na sua vertente mais huma-
linguagem «civil», que é limitada aos problemas éticos e políti- ·rusta, centra preferencialmente a atenção na p rocura de argu-
cos e que recorre à dialéctica e à retórica como seus processos '!_mentos, à qual reduz a inventio, não é menos verdade que a
naturais de expressão. Evidentemente, e muito embora se en- outra face da dialéctica, isto é, a ordenação dos argumentos (judi-
contrem casos em que uma e outra destas atitudes se desenham cium) também lhe não é estranha, como se poderá verificar, por
111 com nitidez - por exemplo, Mario Nizolio para a primeira, Ja- . ~xemplo, em Rodolfo Agrícola . Em última análise, «qualquer tipo
copo Zabarella para a segunda -, a maior parte das vezes elas ' de doutrina ou de ciência tem sempre de se expressar em pala-
4
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111

1ll 80 81
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vras mediante orationes, as quais, diver gindo embora no s seus J11.a5,isto é, em função d a arte de constr uir; toda a especulação,
objectivos, se destinam sempre a tornar convincente a própria ·· $um.a, foi criada com vista a urna qualquer acção ou traba -
verdade. Todavia, esta 'disposição ' do discurso depende, natu- .Q» (De corpore, r, r, 1, 6, in Op. Log., ed. Frankfurt, vol. r, p. 6,
ralmente, da arte retórica, tal como a inventio depende da habi- .,.,t. in Gargani, p . 40). Esta dimensão instrumentalista não im-
lidade do dialéctico . Por conseguinte, as duas artes devem coope- "'.01,no entanto, concessões à contingência, já que todo o saber
rar, em todas as ocasiões, para a perfeita elaboração do discurso r? no plano da necessidade. Simplesmente , uma tal necessi-
filosófico ou científico » (cf. Vasoli, p. 160). ,e não é ontológica mas tão -só formal. A ciência é o domí-
Escusado será dizer que o modelo de ciência aq~ pre~ente ., ~ apreensão da experiência que se nos oferece sensorial -
é o modelo platónico, visíve1 também em Aristóteles, de urna '·· .te através do seu registo e modulação em conceitos, os quais
ciência já feita para a q~l é neces~ário procurar os argumentos :rrreproduzem a essência dos seres, como na lógica aristoté-
demonstrativos. Mesmo num _PierrÉ:!de la Ramée, que àtribtli ao ~ .ou ainda nos tratados alquimistas : são apenas termos
estagirita a origem da separaçã"o entre .uma lógica d_o saber çien- -~encionais que se conectam em estruturas lógico-linguísticas
tífico e outra do discurso vulgar e das matérias em ·que se -pro- ( Gargani, pp. 38-51 e 88-93).
cura apenas a persuasão, contrapondo-lhe que se podem conhe- ·;·A ciência faz-se, pois, em dois tempos, no entender de Za-
cer todas as coisas, necessárias e contingentes , pela mesma lógica, Ua: o da resolutio, em que se procede a uma análise dos
a pesquisa ou inventio é apenas um recurso prévio à ciência pro- ,()s da experiência imediata «com o objectivo de seleccionar
priamente dita. Ciência, para ele, é a exposição, a doutrina, o les aspectos dos fenómenos empíricos que possam ligar-se
ensinamento. Longe de conceber qualquer diversidade de mé- .do nexos necessários dentro dos esquemas e construções
todos, o que Ramée tenta é organizar as noções no seio das -·cas próprias do aparato formal da metodologia científica »
várias disciplinas sob a mesma aurea catena,quer se trate da retó- :gani,p. 42); e a compositio,pela qual se produz a demons-
rica de Cícero, da história natural de Plínio, ou da história hu - lp da neces sidade do nexo entre os fenómenos. É neste se-
mana, a qual sujeita ao mesmo método quando escreve o Liber '.do tempo que surge a ciência propriamente dita, pese em-
de moribus veterum Gallorum ou o Liber de Caesarismilitia. A tese â a importância do primeiro que lhe é, de alguma forma,
fundamental é a de que todas as artes foram inventadas antes ,idiário. Em conformidade, o método aparece explicitamente
do silogismo e que este serve apenas para as ensinar . O ensino, dado ao silogismo 11. Por outro lado, e não obstante a rei-
porém, deve seguir sempre idêntica via: tal como a mesma vista picada distinção entre «método » e «ordem », a invenção que
vê o mutável e o imutável, assim a mesma lógica pode conhecer •;rirneiro supõe ficará adstrita à descoberta e modulação das
11dades formais e dos argumentos, distante, por conseguinte,
todas as coisas, sejam elas necessárias ou contingentes.
Diferente desta é a perspectiva dos paduanos, em particular natureza, a qual se oferece confusamente ao conhecimento e
a de Zabarella, que gozará de enorme prestígio na Holanda dos '· cisa de ser transposta para o plano artefactual em que de-
princípios do século xvu. Diferente em dois sentidos: em pri- a ciência . Diferente da doutrina de Vala ou de Agrícola, a
meiro lugar, porque o seu conceito de ciência permanece, no . 1ncepção de Zabarella a este respeito não será menos diferente
essencial, aristotélico, reivindicando como seu objecto exclusivo .~a que propõe Francis Bacon, aos olhos de quem «a invenção
o universal e necessário; em segundo lugar, porque a sua ver - Jo discurso e dos argumentos não é propriamente urna inven-
/1
1, são do método se aparta da simples ardo, com a qual habitual- ~o: porque inventar é descobrir aquilo que não sabemos e não
li; mente se confundia, para se afirmar como um processo autóno- ~ftetomar ou recolher aquilo que já conhecemos; e o uso desta
mo de pesquisa que conduz do conhecido ao desconhecido. Uma . invenção não con siste senão em extrair do conhecimento aquilo
e outra destas diferenças conjugar-se-ão num corpo de doutrina
que, insistindo embora na tendência humanista para perspectivar
d o saber em função do homem, o desvincula, todavia, da simples 11 «Nihil aliud videtur esse metllod11s quem syllogismus, et deftnitio methodi a
'I arte retórica . Na verdade, também para Zabarella, «a ciência iltftnitione syllogismi non differt» (Zabarella, De Methodis, UI, 3, Op. Log., ed . Frank-
1
1
existe em função da potência, o teorema em função dos proble- furt, p. 226).
1

1
82 83
1

1
os textos sagrados 12 . Nizolio, por seu turn o, irá ainda
que pode servir para a finalidade que tomamos em considera- longe, ao estabelecer a teologia como única ciência com
ção » (The Advancement of Learning, ed. de 1905, p. 115, cit . in '6nalidade exclusivamente teor ética, que se deve apartar das
Gil, p. 432). Se Bacon desconhece a importância da formulação ~ metafísicas, a seu ver sempre supérfluas, à semelhan-
das estratégias cognitivas, da criação e combinação de mecanis- que fazem todas as outras ciências, a começar pela mate-
mos formais produtores de ciência, Zabarella, por seu turno, e a física, que são ciências não só teoréticas mas também
não chega a estabelecer uma articulação entre a necessidade do :as e cuja função se não esgota no conhecimento, e a aca-
registo artificial da ciência e a contingência dos objectos. sensorial- ética, a política e a «economia », que são práticas mas
mente dados. As oscilações ·em que s·e· enreda Hobbes, na en- ' quanto ciências, são também contemplativas e teoréticas
cruzilhada destas duas tendências: ao -classificar os diversos sabe- ·a~li, pp. 623-624).
res (reduzindo, no limite , o carripo: do cognoscível ao arl~faétual,
mormente a geometria e a política, e · remetendo . as ·_o_utras _ciên-. ,
cias para o estatuto de prováveis), testemunha exemplarmente
as insuficiências das várias metodologias em confronto.
método em Espinosa
c) Delimitação dos campos disciplinares. Trata-se de um ideal problema das metodologias renascentistas é, obviamente,
que é, no fundo, aristotélico, mas que na Renascença aparecerá mais vasto, mas julgamos que o que ficou dito é suficien-
em ruptura com o aristotelismo. Tanto na Metafísica (A, 9, 992b, evidenciar os principais veios de uma tradição que de-
18-33), como nos Segundos Analíticos (I, 2, 165b, 1-2), Aristóteles na Ética e no Tratado Teológico-Político,onde vai ser alvo
insurge-se, efectivamente, contra os «pitagóricos», que identifi- . a reformulação enquadrada já em novos pressupostos.
cam a filosofia com as ciências matemáticas, «embora declarem t.-se, em resumo, de eximir a análise escriturística de Espi-
que tais ciências devem ser estudadas com vista a finalidades }ao quadro restrito da discussão, teológica por um lado,
bem diversas». Para o estagirita, cada disciplina tem os seus .ta por outro, a que habitualmente andou associada.
princípios (archai), a partir dos quais se operam as demonstra- ~tes de mais, aquela tradição permite-nos compreender o
ções (cf. Gil, pp . 389-437). O humanismo de Quinhentos reagirá \ 1 amento do problema do literalismo. Com efeito, o intuito

contra a amálgama disciplinar provocada pela disseminação de :,travessa a interpretação bíblica no Tratadonão é já a sim-
questionários aristotélicos e platónicos por todos os domínios recuperação de um texto na sua versão original, como acon-
do saber, mas o que genericamente lhe contrapõe é uma divisão na erudição da Reforma cristã ou na oposição à tradição
das disciplinas em função das respectivas finalidades. O que de ica por parte de alguns judeus: é, sim, a historicização desse
Aristóteles prevalece é, ainda e sempre, a associação da ciência .o texto, quer dizer, o seu enquadramento num sistema de
ao ensino e não será para admirar que uma das mais coerentes ÜS convencionais historicamente produzidos, no seio do qual
e polémicas defesas desta separação dos diversos ramos do sa- e se torna significativo. Situar o ITP na dependência directa
ber apareça no Proemium reformandaeParisiensis Academiae, diri- quilo a que Bataillon chamou o «biblismo» renascentista seria
li, gido, em 1562, por Pierre de la Ramée a Carlos IX. A reforma {_equívoco, pois enquanto este vê no texto uma instância fun-
da universidade que aí se reclama vai toda ela impregnada de dara, Espinosa equaciona dialecticamente a questão, partindo
um saber voltado para a prática, tal como o defendem humanis- exterioridade do texto - a língua em que ele está escrito e a
tas como Vives ou Nizolio, e assimila, em relação à teologia, as iedade que o produziu e sob ele se moldou - para passar

l:
·1!
teses de reformadores como Erasmo, para quem a religião se
devia apartar das especulações filosóficas dos Gregos. É um pro-
k,... jecto destinado a formar juristas que não conheçam apenas o
12 «In christianaetheologiaescholis paganasaepius quam christianaphilosophia
''I direito canónico, médicos que não se fiquem pela discussão de
,.,, , ,mditur» - queixa-se Ramée (cit. in Vasoli, p. 510).
Galeno, teólogos que deixem as sofisticações filosóficas pela lei-
..
85
84
depois à investigação dos objectivos nele inscritos e da sua in- Tratado toda e qualquer transcendência. Para se compreender o
terferência na história . Assim se explica a importância que o autor seu sentido, é necessário saber se os livros de que dispomos
do Tratadoatribui à elaboração de uma Gramática do Hebraico, são originais ou cópias; no caso de serem cópias, se trazem ou
projecto que deixará incompleto mas que em seu entender se não erros de transcrição e se estes foram deliberados ou invo-
justifica por serem «numerosos os .que escreveram a Gramática luntários; é necessário, além disso, apurar quando e por quem
da Escritura, mas nenhum ter escrito a Gramática da língua he - foram escritos, determinar a sua proveniência ou inspiração, etc.,
braica» (CG, cap. vn). etc. É a chamada crítica externa dos documentos. Mas esta, só
Filologia · e -história surgem, portanto, como eleméntos · im- por si, não basta. Por muito longe que possa ir, há-de sempre
prescindíveis para a comprt:ensão ,do .texto .l:>íblico.Parte-se, por confrontar-se, não apenas com a escassez dos materiais necessá-
um lado, do pressuposto j~ aludid"o de que se deve ll_l.tei:ptetar rios, como também com a própria natureza dos textos que ve-
a Escritura pela Escritura e, · por outro . lado, da . evi9-ência de ' nham a apurar-se. É aqui que Espinosa introduz uma inovação,
que não estamos perante um livro ·como, por ·exemplo, ó de ao afirmar que «o método de interpretar a Escritura não difere
Euclides, onde o sentido é transparente e imediatamente apreen- do método de interpretar a natureza [ ... ] Na realidade, assim
sível, não carecendo, portanto, de interpretação. Porém, a opa- ·como o método para interpretar a natureza consiste essencial-
cidade da Escritura não deriva dos ensinamentos religiosos que : JJ1ente em descrever a história da mesma natureza e concluir
ela propicia, o que implicava ser a religião só para os sábios, Jiaí,como dados certos, as definições das coisas naturais, tam-
nem das ideias filosóficas sobre Deus e o homem que suposta- :'bémpara interpretar a Escritura é necessário elaborar a sua his-
mente contém, visto não se tratar de uma súmula de metafísica ,ria autêntica e, depois, concluir daí, como se fossem dados e
e visto as próprias revelações serem interpretadas pelos profe- · dpios certos, o pensamento dos seus autores como legítima
tas para o povo. Donde virá, então, a dificuldade em estabele- equência.» (infra, p. 222).
cer o autêntico sentido da Escritura? Espinosa sustenta que ela Por história entende-se aqui a recolha de factos prévia à
reside unicamente na língua em que está escrito o Antigo Testa- pectiva articulação numa teoria. Já Aristóteles recomendava
mento e que era falada pelos autores do Novo, os quais, por .e se começasse por aquilo que é mais conhecido por natureza
isso mesmo, ao escrever, «hebraízam». E são várias as razões :Física,1, 1, 184a, 16-18). Mas «o mais conhecido para nós», nesta
que apresenta: primeiro, a restante literatura hebraica perdeu-se pção que é a de Espinosa como era já a de Zabarella ou de
com o tempo, enclausurando assim a leitura da Bíblia no seu .obbes, significa apenas o objecto indiferenciado que se nos
próprio universo; segundo, a linguagem oral dos Judeus trans- ' ª resenta pela sensação. A história do texto não é, por isso, a
formou-se em contacto com outras culturas, sobretudo a partir ve da sua leitura, é apenas a base para encontrar os princí-
da diáspora, tornando quase impossível restabelecer a norma ·-- a partir dos quais se deve deduzir ·o pensamento dos auto-
vigente ao tempo da redacção dos Testamentos; terceiro, os acon- )'es. Como se encontram esses princípios? «Da mesma forma que,
tecimentos ali mencionados foram, a maior parte das vezes, · estudar as coisas naturais procuramos, primeiro que tudo,
descritos muito depois de se terem verificado, o que lhes per- . '.aquelas que são absolutamente universais e comuns a toda a
mite aparecer com uma aura mítica quando transpostos para um 'natureza, tais como o movimento, o repouso e as respectivas
horizonte cultural diferente e onde se perde o sentido que pos- Jeise regras, que a mesma natureza observa sempre e segundo
suíam para quem os presenciou; quarto, o corpus escriturístico 88 quais age continuamente, passando-se depois gradualmente a
hoje em dia disponível é o resultado de uma selecção feita pe- outras coisas menos universais, também na história da Escritura
los rabinos com intuitos bem definidos. 'é preciso, antes de tudo, procurar aquilo que é mais universal e
A tarefa da interpretação destina-se, pois, a tentar refazer a . 'constitui a base e o fundamento de toda ela, aquilo, enfim, que
história do texto através da história da língua hebraica e da · todos os profetas recomendam como doutrina eterna e da maior
história dos que o escreveram, dos que o seleccionaram e da- utilidade para qualquer mortal» (infra, p . 226).
queles a quem foi primeiramente dirigido. Tal como acontece a A exigência de um primeiro princípio a partir do qual se
Deus na filosofia da Ética, também à sua Palavra se recusa no ' ·deduzam outros menos universais coloca-nos, de imediato, face

86 87

r
ao problema do mos geometricus e da sua aplicação generalizada indício claro da sua diferença em relação a Descartes. Este, com
a todos os domínios do saber . Diga-se de passagem, uma tal efeito, acedendo embora a reescrever, segundo o método da
exigência lança adicionalmente uma suspeita sobre a interpre- síntese, as Meditações, que na primeira versão constituíam um
tação frequentemente apresentada dos seis primeiros capítulos ~ exemplo do método analítico, mantém até ao fim que o verda-
do Tratado. De facto, como é que se pode ler aí uma definição . deiro processo de investigação é, na metafísica, a análise, dada
dos conceitos a utilizar depois na exegese bíblica - profecia, lei, a dificuldade de conceber as suas primeiras noções, as quais,
milagre, etc. - se o método explicitamente apontado a essa exe- .«se bem que não sejam por natureza menos claras que aquelas
gese refere como ponto de partida aquilo que «todo~ os profe- ,que se têm em consideração na geometria [... ], só são perfeita-
tas recomendam como q.ou_trina et~ma»? A única coisa que pode ~ente compreendidas por aqueles que estiverem extremamente
extrair-se desses capítulo~ é .uma ...inversão da tese dg :que · ·tudo atentos e procurarem afastar o espírito, tanto quanto possível,
se contém no saber bíblico, · substituindo-a pela tese de que a .do comércio com os sentidos» (AT, VII, p. 157). É de notar que
Bíblia se contém no saber da totalidade. Contudo, se- a natureza análise cartesiana se supõe a si mesma como uma ruptura com
1silogismo aristotélico, apresentando-se como um modelo ex-
não pode ser interpretada à luz dos enunciados da Escritura,
tão-pouco esta o pode ser à luz dos princípios com que inter- ;iessamente inspirado nas matemáticas. Além disso, trata-se de
pretamos a natureza no seu todo - metafísica - ou a natureza modelo que pretende afastar a própria geometria de Eucli-
em qualquer dos seus atributos - física e gnosiologia. Há que !ês, em seu entender estática e não genética, substituindo-a pela
encontrar, a partir daquilo que vem explícito na Bíblia, os prin- .etria analítica, a qual considera as figuras, no plano ou no
cípios adequados à sua interpretação, procedendo de acordo com aço, pela sua génese a partir do ponto. Como sugere Descar-
o método de investigar a verdade, este, sim, universal. ., ainda no mesmo texto, em resposta aos que lhe solicitam ·
Sobre o método, convirá ainda frisar que não se trata aqui exposição «sintética» das Meditações,sé os antigos usaram a
de simples ordem expositiva. Julgar o mos geometricus como um .tese, não foi por desconhecerem a análise, mas «porque a
tributo pago por Espinosa a uma espécie de moda do seu tem- em tão alta consideração que a reservavam só para si
po (Negri, p. 276) ou assimilá-lo às analogias entre matemática o um segredo importante» (AT, vn, pp. 156-157). O método
e filosofia tão vulgares no platonismo e no panteísmo renascentis- .dequado será, portanto, para Descartes como para Malebran-
tas, seria fechar os olhos por sobre páginas e páginas em que o ' ou Louis Meyer, aquele que procede de intuição em intui-
autor da Ética o reivindica a título de verdadeira ars inveniendi , produzindo pela adição sucessiva de intuições particulares
e instrumento de progresso filosófico e científico. É claro que a Intuição do todo.
polémica a este propósito, travada ao longo do século XVII, está A atitude cartesiana face ao método implica duas teses fun-
cheia de equívocos e muitas vezes não passa de mera disputa .entais na ordem metafísica: primeiro, a distinção entre ma-
verbal, tão ambíguas são as noções de análise e síntese no pen- 'a e espírito, de modo a assegurar a possibilidade do enca-
samento da época . A «contaminação» entre os dois procedimen- .ento das intuições independentemente dos dados sensoriais
tos metodológicos é, efectivamente, a prática usual. Basta dizer, da dúvida que estes geram; segundo, que entre a ideia e o
por exemplo, que Descartes atribui à síntese exactamente as feeu correlato ontológico haja uma relação de causalidade, a fim
mesmas características anteriormente compreendidas na análise, . , que à realidade objectiva que há na ideia corresponda uma
assumindo mesmo a reformulação destas categorias (Regras, rv, realidade formal no ideatum que é sua causa. Entre as ideias, tal
í como entre as coisas e as ideias, pressupõe-se assim um nexo
AT, x, p. 375; Discurso do Método, cap. II, AT, v1, p. 17), enquanto
a Lógicade Port-Royal imputa à análise as funções vulgarmente causal que estava de todo em todo ausente na escolástica tradi-
distribuídas pela análise e a síntese (cf. Angelis, p. 406). Mas donal, pesem embora alguns afloramentos da questão em Sua-
isto não invalida que Espinosa, ao mencionar tão enfaticamente rez (cf. Angelis, pp. 414-427). É mesmo esta a principal objecção
no título da Ética o método que vai utilizar, não esteja a frisar ·.queàs Meditaçõeslevanta Caterus. Com efeito, diz este, «a reali-
uma demarcação que está longe de ser de pormenor, pois faz dade objectiva é uma pura denominação; actualmente, ela não é
nada. Ora, a influência que uma causa produz é real e actual; o
11l 1
parte integrante do sistema metafísico e é, simultaneamente, um
,111·1

' 1 89
88
.\l1i1
que actualmente não é nada não a pode receber e, portanto, Lat., 1v, cf. Guéroult, idem, p. 482), como verdadeiro processo
não pode depender nem proceder de nenhuma verdadeira causa de aquisição de ideias adequadas. A geome tria analítica, fosse
[... ]. Há, por conseguinte, ideias, mas não há causas das ideias» qual fosse o grau de compreensão que Espinosa dela tinha, se-
(Primeiras Objecções,AT, vu, pp. 92-93). Ao que Descartes res- ria sempre recusada por suspeita de trabalhar sobre a ilusão do
ponde, retomando a argumentação já aduzida na m meditação, discreto, isto é, dos números, que são produ tos da imaginação,
que as ideias, primeiro, não são um puro nada e têm, portanto,
de possuir um qualquer tipo de realidade; segundo, esta r~ali-
'º passo que a geometria euclidiana, a partir da compreensão
' ~a propriedade fundamental comum a todos os corpos, conhece
dade tem de ter uma ·causa; e i:etceiro, podendo embora as ideias intuitivamente todas as formas possíveis que o movimento en-
ser causa de outras ideias, .este p'r_ocesso não poderá ir até ao ;,ridra a priori e apresenta os seus objectos como estruturação e
infinito, devendo chegar-se a wna primeira ideia cuja cài;i.sa: con- · :omo estruturas desse movimento.
" tenha formalmente toda a realidade cjú.e se encontra obJect_iva- De uma maneira geral, os intérpretes do Teológico-Político
mente e por representação nas ideias. "Só àssirri se garante -que o se demoram nesta questão, limitando-se a repetir o que
uma ideia seja ideia disto e não daquilo . Mas, para tanto, é ,inosa diz no cap . vn, aparentemente sem repararem no pro-
necessário estender a causalidade eficiente, já admitida no do- a que se levanta. Efectivamente, como conceber que o mé-
mínio da extensão, ao donúnio do pensamento e ao domínio da o apresentado como produtor da verdade se aplique a um
relação entre a ideia e o ideatum. .to que, nos capítulos anteriores, fora exilado para os domí-
Em Espinosa, este último aspecto é liminarmente recusado. da imaginação? O mos geometricus é reivindicado na Ética
A ideia e o seu correlato têm a mesma dimensão ontológica, rquea ordem das ideias é a mesma que a ordem das coisas.
não porque este seja causa daquela, mas porque ambos são ex- ém, as ideias da Bíblia, a doutrina dos profetas, são ideias
pressão da mesma substância modificada em atributos distintos. s, fruto da passividade em que o homem está face a um
Além disso, o processo de causalidade que Descartes admitia do de coisas de que o entendimento não descortina os ver-
entre as ideias mas de forma ainda limitada, uma vez que teria eiros nexos causais . Como poderá, então, falar-se ainda de
sempre de se deter num limiar de passagem ao nível ontológico ordem geométrica das ficções?
(de outra forma, como se poderia demonstrar a existência de A solução deste problema passa pela já atrás referida positi-
Deus?), surge-nos em Espinosa levado às suas últimas conse- - .ade da imaginação e constitui um ponto decisivo para a com-
quências: a estrutura causal verificada no atributo extensão nsão do pensamento de Espinosa. Uma ideia da imagina-
verifica-se também e identicamente no atributo pensamento. '~p, recorde-se, é inadequada na medida em que resulta da
Assim sendo, o método não poderá partir da intuição de uma 'vidade do sujeito face a outro ou outros seres que o afec-
primeira natureza singular para uma outra e assim sucessiva- . Enquanto tal, ela traduz apenas o estado de um corpo afec-
mente, num prolongamento linear e pontual, analítico, portanto, do por outro ou outros, mas não exprime a essência deste ou
mas sim da intuição prévia da totalidade, que toma possível a tes. Por conseguinte, a sua função não é o conhecimento, a
das partes no todo e a do todo nas partes (cf. Guéroult, 1968, ordem não é a do verdadeiro ou falso e só quando a corn-
'I

.~
vol. 11, p . 485). Ou seja, é a imanência da causa ao efeito que ,aramos com esta é que a poderemos entender como privação.
assegura a realidade deste e, por isso mesmo, o método terá de si mesma, ela insere-se no domínio do ser: «as imaginações
ser genético para traduzir a realidade das ideias e das coisas r,da.mente, consideradas em si mesmas, não contêm nada de er -
enquanto modificações da substância única. ' JÓneo; melhor dizendo, a mente não está em erro porque ima-
1 Mais do que genético, ou sintético, dever-se-ia chamar-lhe ·pa, mas unicamente enquanto a consideramos como privada
~1 1 euclidiano. Porque é, de facto, este método onde as definições
exibem a produção dos seus objectos, método que fora refor-
;~ ideia que exclui a existência das coisas que ela imagina pre-
:sentes» (E, rr, prop. xvn, esc.).
mulado pelos matemáticos de Oxford, em particular por Henry · Porém, a positividade da imaginação pode encarar-se de
:ri Savile, que aparece a Espinosa, na sequência directa de Hobbes " outros ângulos. Primeiro, as ideias adequadas não erradicam as
e da sua Examinatio et ernendatiomathematicaehodiernae(1660, Op. ,. ideias confusas que imaginamos: o saber de astronomia não faz

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com que o Sol deixe de aparec er a uma distância e de uma fuétodoque se segue na ciência, pro longando assim a ciência do
dimensão que não correspondem à realidade . Segundo, embora -~ puma espécie de ciência da ficção (cf. Galichet, p. 10).
o sujeito se comporte passivamente no processo imaginativo, se i. Esta última «ciên cia», que tem por objecto a imaginação, não
os corpos que agem sobre o seu se «compuserem» com ele, isto -~: esgota na sua identificação como algo distinto do conheci-
é, se não contribuírem para a sua decomposição, o contacto au- -\nto adequado das coisas, nem anula a emergência de ideias
menta a sua potencialidade e é por isso que Espinosa fala de ~dequadas. Conhecer o homem é reconhecer a sua essencial
paixõesalegres,nas quais, por oposição às paixões tristes, _se experi- ·.tude, o que, na metafísica espinosana, equivalerá a reconhecê-
menta um sentimento de acréscimo das · potencialidades próprias. como um certo grau de potência do entendimento infinito
Terceiro, porque quanto :m~i9r é a_compl~~dade de um corpo, também e simultaneamente como um certo grau de impo-
ou seja, a sua capacidade de entrai em contacto com ou:tros·cor- .cia.O modo finito, ao contrário da essência de modo, que se
pos, mais habilitada estará à. tnente : para cheg _ar . a .atingir as ~a directamente por Deus e só formalmente se distingue no
noções das propriedades comuns a esses corpos e passar âssim ·or do atributo como um grau de intensidade, é sempre
ao segundo género de conhecimento. Em resumo, a imaginação ·.cado por causas exteriores e realiza-se pela afirmação de
é parte integrante do homem, elemento constitutivo da sua es- agregado de partes interactuantes entre si e com outras en-
sência enquanto modo finito. Porque se o homem possuísse uni- tdes que exogenamente a influenciam. Enquanto parte do en-
camente ideias adequadas, o seu entendimento coincidiria com . · -ento infinito, o entendimento humano é pura actividade.
o entendimento infinito, o seu ser diluir-se-ia na totalidade: afir- , se o homem se definisse apenas por ele, não possuiria
mar-se como indivíduo é precisamente demarcar-se, já da totali- .o ideias adequadas e, em última instância, identificar-se-ia _
dade, já da infinidade dos outros seres. Enquanto parte do en- Deus, já que, se uma ideia adequada se explica por outra
tendimento infinito, o entendimento humano é actividade pura ia adequada, e assim sucessivamente, possuir o conhecimento
cujo horizonte seria a coincidência com o todo de que faz parte. dadeiro de uma coisa equivaleria a ser entendimento infi-
Atingir, porém, este horizonte era negar-se como individuali- ). Por isso, o conhecer-se adequadamente como indivíduo iro-
dade. A sua essência, por conseguinte, reside tanto na presença .ta reconhecer-se como um conjunto de ideias adequadas a
como na ausência de ideias adequadas. de um conjunto de ideias inadequadas. Por muito que o
A ser assim, no entanto, como explicar que Espinosa intente, .em possa progredir no conhecimento de si e das coisas, a
quer na Ética, quer sobretudo no Tratado Teológico-Político,supri- condição impor-lhe-á sempre, não apenas a ausência de inú-
mir a ilusão teológica? Por uma razão muito simples. Como se as ideias verdadeiras, mas também a presença de inúmeras
diz no apêndice à I parte da Ética, texto a vários títulos notável ·fas confusas em que se exprime o maior ou menor grau de
sobre a génese das ilusões, estas derivam, não só do facto de ividade da sua mente.
«todos os homens nasce(re)m sem nenhum conhecimento das , Este aspecto do espinosismo ajuda a compreender algumas
causas das coisas», mas também de eles «ag(ir)em sempre em es decisivas, e muitas vezes elididas, do ITP . Antes de mais,
vista de um fim». Por isso, e ainda que as ideias da imaginação ;ele transpõe os dogmas universais que, no cap. XIV, Espinosa
nunca derivem da actividade do entendimento, dado resulta- eduz do ensinamento dos profetas para um estatuto que de
rem dos encontros acidentais entre os corpos, há um certo tipo ,rma alguma se pode assimilar ao de uma moral provisória ou
de imaginação através do qual o homem tenta organizar essa ,,:-'e mensagem contemporizadora com as limitações dos cristãos
contingência em função do que lhe é útil. No fundo, é sempre o reformadores. Com efeito, denunciar a ilusão teológica não sig-
lí .1 ,nifica abolir a ilusão, o que seria um projecto absurdo num ser
l·'i temor ou a esperança, quer dizer, a situação real do ser huma-
i) no perante os outros seres, que se traduz na imaginação. Toda- ·'finito, já pela constituição ontológica deste, já pela natureza ir-
1i, remediável da sua actuação, que se processa na ignorância das
via, porque é destinada à preservação do ser, essa tradução pode
t:!1•'i~ revestir a forma de um projecto e modular-se num sistema de causas e sempre em vista de um fim, em vista de algo que ele
representações coerentes, exactamente como acontece ao enten- rotula como útil à preservação de si mesmo. Recusando a ilusão
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'1 de um Deus soberano e juiz, ilusão que inverte a natureza das
dimento. Daí o ser possível aplicar à ilusão teológica o mesmo
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coisas ao pôr como causa aquilo que é mero efeito da condição se dil uir na indi stinção do todo. Supom os não andar muito longe
humana, o indivíduo nem por isso deixa d e actuar segundo da verdade se dissermo s que é este o pecado capital de inter -
determinados «valores », tais como a justiça , que lhe são racio- pretações , como a de Negri, tendentes a ver em Espinosa o filó-
nalmente ditados pela procura do útil próprio. Só assim se ex- sofo da revoluç ão radical e da libertação do homem de toda e
plica esta irredutível duplicidade que atravessa todo o Tratado e qualquer dependência. Tudo quanto lemos no Tratado vai num
se desdobra em denúncia da imaginação presente na Bíblia e outro sentido . Ele aponta , sim, para uma denúncia da ilusão
em dedução de uma outra orc!em imaginativa: «cada um e&tá teológica, porque sabe que esta «inverte a natureza » em função
obrigado a adaptar estes dogmas da fé ·a sua capacidade de do interesse de alguns. Mas exorcizar uma tal ilusão, apontando
compreensão e interpretá-los como Ul,eparecer ·que é mais fácil o homem em vez de Deus como sujeito do seu discurso e desalo-
aceitá-los sem reticências e de ânimo plellamente convict(J)>. (t'nfra, jando -a da ordem da verdade para a ordem da obediência - o
p. 313). . . . . . . _ .: _ que implica a separação entre teologia e filosofia - , não leva à
É paradoxal esta convicção, que obriga o homem a aceitar supressão da passividade nem da obediência : leva é à sua dedu-
sem reticências dogmas que ele sabe adaptados à sua mentali- ção com base em outras premissas. A partir de agora, o homem
dade! Será necessário levar aqui Espinosa à letra ou, como al- sabe que é o autor desses dogmas, que reduziu, portanto, o seu
guns intérpretes fazem, limitarmo -nos a assinalar a contradição, grau de impotência e passividade, mas não alterou o seu campo
seja para criticar a insuficiência do sistema, seja para lhe em- de actuação nem a sua condição finita. Ele sabe que «as ideias
prestar intuitos estratégicos sub-reptícios? Em nosso entender, inadequadas e confusas derivam umas das outras com a mesma
mais do que necessário , é ser imprescindível aceitar as formula - necessidade que as ideias adequadas » (E, n, prop. 36), razão
ções do Tratado tal como elas se apresentam, sob pena de se pela qual a teologia se organiza num sistema coerente e sobre ~
ignorar o seu projecto de uma metafísica do ser humano na sua posto à filosofia, e tem, por isso mesmo, de organizar diferen-
essencial finitude. Dissemos a princípio que não bastava ler o temente a actividade da imaginação, de forma a deduzir a obe-
TTP à luz da Ética. É necessário agora, com François Galichet diência da noção de justiça em vez de a deduzir de qualquer
(1972, p. 18), dizer algo mais: «a Ética reenvia para o Tratado ordem transcendente . É esse o trabalho da política .
como para a sua verdade (no sentido hegeliano) ». Sem esta du-
plicidade de razão e fé, ideias adequadas e ideias inadequadas,
conhecimento das causas necessárias e actuação em busca do útil,
a qual obriga a uma organização da contingência que o entendi-
mento sabe paralela ao discurso da verdade, o ser humano fi-
cará incompreensível.
Mas porquê, então, a denúncia da ilusão teológica, porquê
escrever o Tratado Teológico-Político?
Não estará aí a negação do
conhecimento do terceiro género, da libertação do homem com
,;li a qual termina a Ética? De forma alguma. É mesmo necessário
não ler o TTP como um momento de passagem em direcção a
essa finalidade redentora em que o homem seria pura activi-
dade liberta da dominação, já das diversas potestades, já do
temor das circunstâncias. Conhecer adequadamente o homem é
ter a noção do que nele é passividade e fonte de conhecimento
~,if.• confuso, sendo que interpretar de outra forma o conhecimento
1
1·_.1
do terceiro género suporia que o indivíduo negasse a condição
que lhe é essencial e não apenas acidental, que o mesmo é di-
·11 zer, que o indivíduo negasse a sua própria individualidade para

l
J 94 95
IV
AS TÁBUAS DA LEI
..

1
A ficção do contrato

De alguma forma, o Tratado Teológico-Políticoé também o


que se poderia chamar um «tratado da reforma da imaginação».
O seu intuito em relação à Escritura é arredá-la do domúúo da
· ciência para a situar no domúúo da efabulação, género literário
· que é universal na medida em que é comum a todos os povos
, (as outras nações também tiveram profetas, refere Espinosa,
; citando a Bíblia), mas que, em vez de explicar a natureza pela
universalidade de um saber sem sujeito, traz, pelo contrário, as
' µiarcas das diversas situações particulares aonde emerge. A Es-
. tritura é imaginação, conhecimento que indica a multiplicidade
causal em que o indivíduo está inserido, mas que não exprime
o seu exacto lugar na série de modificações em que se estrutura
,:r a actividade substancial.
Vimos como esta confusão que caracteriza o conhecimento
do primeiro género se desenvolve depois discursivamente se-
gundo uma ordem semelhante à do conhecimento verdadeiro,
não obstante as suas premissas e, por conseguinte, as várias ideias
daí deduzidas serem inadequadas. E vimos como Espinosa, pa-
!, radoxalmente, ensaia nos últimos dois capítulos dedicados ao
exame da Escritura uma espécie de ficção alternativa, deduzindo
da ideia de um Deus, que tem tanto de semelhante ao Deus
bíblico quanto de diferente do Deus sive natura da Ética, dogmas
:1( de fé em que se possa basear todo e qualquer posicionamento
l''I religioso possível. Ou seja, a Bíblia revela-se ainda susceptível
'/, de uma certa universalidade transversal à particularidade que

'iil 97
os seus enunciados denunciam . Não, obviamente, a universali- A primeira consequência do exercício deste direito natural é
dade da ciência, já que o seu conteúdo, além de inadequado, é o conflito, uma vez que o esforço para perseverar no próprio
incoerente nas diversas formulações teóricas e práticas que assu- ser só conhece os limites do próprio poder, ou seja, não cede
me. Trata-se tão-só de uma universalidade expressa pelo objec- senão perante um poder maior. O direito natural apresenta-se
tivo único de todas essas formulações - a obediência - e por assim como uma instância de luta em que o acréscimo da potên-
isso é que os referidos dogmas são ajustáveis à mentalidade de cia de um indivíduo se faz sempre à custa da redução da po-
cada um, permanecendo dogmas de fé enquanto deles se ~on- tência ou da destruição de outro . Para a natureza na sua totali-
cluir a prática da justiça e da caridade, · ou seja, a sujeição a dade, isto é irrelevante e corresponde até à «ordem normal das
Deus. A separação entre · filosofia : e teologia, -entre razão e fé, coisas», ao processo de actualização da potência infinita na di-
não pode, pois, entender-se cpmo ·uma qualquer reivindic:iéfÇão versidade conflitual dos conatus individuais. O problema é de
de carácter estratégico no fundo, ela é a tradução . da duplici- «cada um » e, de resto, coloca-se apenas aos seres humanos, visto
dade radical do indivíduo, que por essêncfa e t.irn:modo dâ in- só eles compreenderem o paradoxo implícito neste direito à vida
finita actividade da substância mas por condição está sujeito à ' que é, simultaneamente, risco de vida.
acção da infinidade de modos que com ele interferem. Impossi- Ainda aqui, deve, porém, notar-se que não saímos da or-
bilitado de se afirmar como actividade pura, sob pena de se dem natural, regida sempre pelo mesmo princípio. Se os ho-
negar como indivíduo realmente existente, o homem vê-se im- mens constituem excepção a tal respeito é unicamente por se-
pregnado por uma multidão de ideias que são outros fantos rem, por natureza, um misto de razão e paixões, ou melhor,
registos da sua passividade perante o meio. Pode, é certo, corrigi- porque são natural~ente dominados pelas pa ixões mas podem
-las pela actividade do entendimento, mas só até certo ponto. . atingir o nível da racionalidade. Regra geral, atingem-no tarde,
Mesmo os que atingem o terceiro grau de conhecimento, a li- i ..se é que chegam a atingi-lo. De nascença, e durante largo tem-
_.[
bertação de que trata a v parte da Ética e que reduz a sujeição ,po, estão todos dominados exclusivamente pelas paixões: «Nem
passional, jamais ultrapassam um certo limiar. O que os distin- t odos, com efeito, estão naturalmente determinados a agir se-
gue é o reconhecimento desta dúplice condição do indivíduo, : gundo as regras e as leis da razão; pelo contrário, todos nas-
porquanto a identificação da paixão e da imaginação é já afir- i cem a ignorar tudo e, antes que possam conhecer a verdadeira
mação da actividade do entendimento e, nessa medida, liberta- regra de vida e adquirir o hábito da virtude, vai-se a maior
ção. Porém, a mesma actividade que os liberta identifica-os como ~ parte da vida, ainda quando tenham sido bem educados. E, toda-
condicionados e sujeitos aos «afectos». A verdadeira ciência é a . via, eles têm entretanto de viver e conservar-se, tanto quanto
que sabe dos próprios limites que tenta ultrapassar. , depende de si, isto é, pelo impulso apenas do apetite, já que a
A filosofia política de Espinosa assenta nesta mesma dupli- , natureza não lhes deu mais nada e lhes negou a potência actual
cidade. O seu ponto de · partida é, com efeito, o direito natural de viver segundo a recta razão; nessa medida, são tanto obri-
interpretado nos termos da metafísica, onde o indivíduo apare- gados a viver de acordo com as leis da mente sã como um gato
ce como um grau de realização da potência da natureza . A natu - é obrigado a viver segundo as leis da natureza do leão» (infra,
reza exprime-se em todos os seres, mas cada ser exprime-a de p. 326). Como organizar então urna sociedade que não seja um
seu modo e nisto consiste a sua individuação. Ora, se a actua- conjunto utópico de sábios? Como preservar a condição huma-
ção da natureza, na medida em que é substância única, não co- na, se esta é dominada por paixões que, no limite, a podem
nhece limites e tem, por conseguinte, direito a tudo, cada um , destruir, e se a razão, podendo sugerir o que é necessário para
dos modos terá, por sua vez, direito a tudo quanto se estende garantir a vida, não possui sobre os homens influência bastante?
a sua potência. Nem outra coisa é o ser dos modos senão esta Esta é a questão política.
afirmação de uma parte do poder da natureza, afirmação que Aparentemente, não haveria qualquer saída. Desvinculado o
ti implica fazer tudo pela autopreservação: é a «lei da vida». Ho- direito natural de uma instância racional, fosse ela a inteligência
mens ou peixes, todos estão, deste ponto de vista, nas mesmas ou a vontade divinas, ou ainda urna lei universal abstracta como
condições, pois todos participam do mesmo poder da natureza. aquela que funda o cosmopolitismo dos estóicos, dir-se-ia que o

l
i 98 99
estado de natureza se tornava insuperável. E, de facto , assim rem ete p ara disp ositivos exógeno s; pelo contrár io, e porque a
acontece, como sublinha Espinosa ao esclarecer a sua diferença ficção do contrato organiza as paixões em função da conserva -
face a Hobbes . Há, portanto, que analisar a uma outra luz o ção da vida mas não as suprime, o Estado enquanto garante da
contratualismo que surge no ITP e que, coerentemente, desapa- segurança é, por essência, a superfície de refracção dos conatus
recerá no TratadoPolítico. Por outras palavras, é preciso situar a individuais. A energia que o anima é ainda a da natureza, quer
política de Espinosa no campo estrito das paixões, que são, como dizer, o esforço para perseverar na existência e, por isso, ele é
vimos, o denominador comum da natureza humana. Até po!que intrinsecamente violento : qualquer que seja a sua génese ou dis-
«uma paixão não pode ser cóntrariàda · bü suprimida a não ser curso legitimador, o Estado forja-se sempre no domínio da imagi-
por uma paixão contrária e mais forte -que a paixão a contrariar » nação, projectando-se como potência extrínsecamente exercida
(E, rv, prop. 7). · sobre o agregado e, nessa medida, neutralizando os efeitos des-
Posto que a sociedade existe, os seus mecanismos .consti_tuti- truidores contidos nas potências individuais obrigadas a coexis-
vos devem procurar-se na natureza . Porque ·esta, · se· não obriga tirem. Tal como o Deus soberano da Bíblia, o Estado é um efeito
a viver segundo a razão, obriga, no entanto, a viver. Ora, é que se representa como causa autonomizada e geradora do
precisamente este desejo de vida que leva a procurar a seguran- medo para corrigir o desequilíbrio produzido pelo exercício do
ça. Longe de ser o resultado de um cálculo dedutivo, como em ! direito natural na comunidade. E tal como acontece com a reli-
Hobbes, o contrato é apenas o recurso naturalmente encontrado gião - que o entendimento descobre ser fruto de uma ilusão
para a preservação do ser humano. Como, de resto, poderia ser mas que não pode suprimir de todo sem suprimir a sujeição a
de outra forma, se «é uma lei universal da natureza humana Deus, isto é, a prática da justiça, sendo assim instado apenas a
que ninguém despreze o que julga ser bom, a não ser na es- ajustar os dogmas da fé de modo a reduzir até onde for possível
perança de um bem maior ou por receio de um maior dano » . o grau de passividade que implicam - também perante o Estado
(infra, p . 328)? Se os homens cedem, pois, uma parte ou a tota- · a razão permanece impotente, limitando-se a identificar o seu
lidade do seu direito natural, é porque, ainda aí, estão a afir- estatuto como imaginação e a reconhecer nas diferentes formas
mar a vontade de existir e a rejeitar um bem por amor de outro, que ele assume diferentes graus de submissão dos indivíduos .
sempre movidos pela paixão do medo ou da esperança. Porque a razão, já se disse, aponta para o verdadeiro fim
O problema, todavia, permanece. Uma sociedade só faz sen- do homem - o conhecimento da sua condição como modo fi-
tido no pressuposto de uma certa constância e as paixões são, nito da substância infinita - conhecimento este que nem todos
por definição, inconstantes. Um Estado legitima-se na base de procuram, ao passo que todos buscam a preservação de si mes-
um sistema universal de enunciados e a imaginação é sempre mos. Claro que o verdadeiro fim não é incompatível com a au-
particularizada. É, aliás, esse o motivo que leva Hobbes a fun- topreservação. Se todos conhecessem o verdadeiro fim da vida
damentar o Leviatã como instância racional destinada a subor- humana , conheceriam também as vantagens da entreajuda e o
dinar e a corrigir os efeitos nefastos das paixões. Para Espinosa, acréscimo de potência que advém ao agregado se actuar de for-
porém, o contrato, sendo igualmente um artifício, uma institui- ma organizada. Não é por acaso que Espinosa diz que o sábio é
ção humana, não deixa de ser mero registo da situação real do o melhor dos cidadãos : se ele conhece as vantagens do viver
homem, fruto das paixões do medo e da esperança. Dito de em sociedade, não actua por medo ou interesse imediato mas
outro modo, o contrato não resulta de uma ideia adequada dos persegue ainda a mesma finalidade, regido embora por outros
verdadeiros fins do homem, tal como os enuncia a razão, mas motivos. O problema é que, antes de mais, esse cidadão ideal
sim de uma ideia inadequada que se organiza à semelhança das não passa disso mesmo, isto é, de um ideal de cidadão, visto a
ideias verdadeiras . A prova está em que a cedência do direito componente afectiva dos indivíduos jamais se anular. E depois,
natural não teria , em qualquer caso, consequências se não fosse se todos actuassem em função do verdadeiro fim, o Estado se-
seguida de uma actuação política secundada por recursos per - ria desnecessário, dado que a colaboração mútua e a prática da
suasivos . Tanto na sua génese como na sua actualização perma- justiça decorreriam como um corolário do amor intellectualis Dei.
. nente, o equilíbrio passional que uma sociedade representa nunca Mas são as paixões , não a razão , que dominam os homens, as

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·,i,i .,,:. ideias da imaginação impregnam -lhe a mente e é no campo da movimento ilusório um equilíbrio que a razão ratifica como van-
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imaginação que vão emergir os mecanismos de «emenda » das tajoso. Pensar de outra forma a política espinosana, associando -
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•~, paixões . -a a um contratualismo estereotipado, é negar-lhe os seus mais
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!'11 Na verdade, em que consiste esta componente passiva ou importantes esteios metafísicas .
passional do ser humano senão em «sermos uma parte da natu- É este um dos pontos decisivos na interpretação do Tratado
\ 11·1!1 reza que não pode conceber-se por si mesma e sem as outras » Teológico -Políticoe convirá analisar um pouco mais em pormenor
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(E, 1v, prop . 2)? Mais do que utópica, a construção do Estado o seu alcance. Na verdade a abordagem do tema feita pelo au -
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assente na ideia , de uma autonomia ·radical do indivíduo resul- tor, a partir do cap . XVI, utiliza os conceitos jurídicos já traba-
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r,H taria ontologicamente impos~ível, ~a vez _que, conforme a Ética lhados, quer por Grotius, quer por Hobbes, conforme sublinha
'I diz na proposição seguinte, . «é .impôssível que o homem não ·seja Matheron (1984), mas arrasta-os para um campo de significação
l uma parte da natureza e evité receber · outras .modifica_ções além que extravasa os limites que possuíam em qualquer daqueles
daquelas que podem compreender-se unicamente p·elã sua -pró- autores e se ajusta no interior do sistema de Espinosa. Muito
pria natureza e de que ele é causa adequada». Uma tal interde- ·' sucintamente, Grotius distingue, a par da categoria geral do
pendência, porém, se na totalidade se apresenta como lei neces- direito como qualidade daquilo que se pode fazer sem injustiça,
sária de realização da potência infinita, ao nível dos indivíduos um direito subjectivo, traduzido em faculdades individuais, e
traduz-se numa ameaça à sua subsistência . Mas nem sempre. Os um direito objectivo, que se identifica com a lei. O direito sub-
efeitos de um corpo em outro corpo, representando-se embora jectivo apresenta-se, ora como propriedade (o direito à própria
em ideias que são confusas na medida em que indicam apenas o pessoa, por exemplo), ora como poder (o direito a decidir as
estado em que fica o primeiro corpo, tanto podem revelar-se próprias acções), ora, finalmente, e em síntese das duas alíneas
positivas, fazendo-se acompanhar de sentimentos de alegria, , anteriores, como simples direito que cada um tem a exigir o
como negativas, fazendo-se então acompanhar de tristeza. Tudo ' que lhe é devido. Por sua vez, a lei ou direito objectivo expri-
depende de haver ou não «conveniência» entre os corpos em me-se tanto no instinto de conservação como naquilo a que Gro-
contacto: se houver, o seu grau de potência sente-se reforçado; tius chama o instinto (appetitus)de sociedade, que virá a tomar-
se não houver, o contacto torna-se obstáculo ao conatus e reduz -se a pedra angular de todo o articulado jurídico do De Jure
o ser do corpo mais fraco . Já referimos como o acaso destes . • Belli ac Pacis. G. Gurvich caracteriza-o assim: «segundo Grotius,
contactos, proporcionando, entre outras, relações de «conve- o indivíduo, mesmo no estado de natureza, está sempre ligado
niência», se tornava também a condição necessária para que a a um todo social. A sua posição é decididamente a de um anti-
razão chegasse à formulação das noções comuns. Mas antes, e à -individualista. O seu ponto de partida não são os elementos
margem deste conhecimento do segundo género, é o próprio componentes mas o todo, não são os indivíduos mas o cosmos
desejo de sobrevivência, a lei da natureza, portanto, que dita a social, a natura societatis [... ]. Com Aristóteles, afirma que o ho-
procura de encontros «convenientes» e o seu prolongamento, ao mem é por essência animal político e que a sua qualidade pre-
mesmo tempo que sugere a fuga de contactos de onde saia re- dominante é o appetitus societatis, sendo impossível imaginar o
duzida a própria potência . Obedecer, sendo iniludivelmente indivíduo fora dos liames que o ligam ao todo» (Gurvich, 1932,
manifestação de passividade e dos limites da potência indivi - pp. 176-177) . É claro que o instinto individual de conservação
dual, sendo, em suma, paixão, pode, nesta perspectiva , não ser dita a sua lei, mas esta é apenas uma lei moral, sem significado
forçosamente uma paixão triste. E a razão, que identifica esse propriamente jurídico, que Grotius interpreta, à maneira dos
estado como resultante de um conhecimento confuso, não pode estóicos, como uma espécie de racionalidade subjacente ao uni-
deixar de reconhecer que através dele se cumprem fins necessá- verso e a cada ser, e que «teria sempre cabimento, mesmo que
ij, rios . É por isso que a obediência poderá estar de acordo com a concordássemos que Deus não existia ou que os assuntos huma-
recta razão, e é mesmo nestes termos que Espinosa caracteriza nos não eram objecto dos seus cuidados» (De Jure Belli ac Pacis,
o contrato. Não porque os homens sejam racionalmente levados Prol., § 11). O mesmo se passa, em certos casos, no plano das
a efectivá-lo, mas porque as paixões desencadearam no seu relações entre vários indivíduos, onde o instinto de sociedade

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1
também implica algumas leis sem transposição jurídica, como, em plenitude e reconhecendo a cada um o direito a tudo ex-
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ri ,; 1
por exemplo, o reconhecimento a manifestar por um benfeitor . cepto a não sobreviv er, contém em gérmen a mútua destruição
il Mas o direito objectivo propriamente dito só começa quando através do conflito, torna-se um preceito da razão os homens
estamos perante obrigações que correspondem ao direito sub- esforçarem-se pela paz. Hobbes acrescenta: «desta lei fundamental
jectivo de outrem: o respeito pela propriedade alheia, a fideli- da natureza [... ] deriva uma segunda, a saber , que o homem se
'L
,-! dade às promessas e a reparação dos danos causados. disponha, quando outros estiverem igualmente dispostos, a re-
'i A lei natural é, portanto ! no entender de Grotius, _um _siste- nunciar ao seu direito a qualquer coisa, em benefício da paz e
" l
ma de intérlimitações dos direitos subjéétivos dos vários indiví- da sua própria defesa». Há, pois, obrigação de respeitar os con-
~i!J 1
duos, racionalizando assim .a acti~~da-de dáconjunto. Qual a ori- tratos, porque eles estão racionalmente justificados, ainda que
gem desses direitos subjectivos oü «faculdades»? Para Grótius, esta racionalidade tome como premissa o instinto de conserva-
só pode ser Deus, que criou à natureza human<1.;dot~do~a de . : ção. Quem transfere um direito deixa, logicamente, de o pos-
corpo e alma, corpo de que cada um fiéa ·proprietário e -alma suir. A não ser - e aqui, Hobbes coloca novamente reservas a
que é livre, isto é, que tem o poder de orientar como quiser as ~Grotius - que o contrato ponha a minha vida em perigo, coisa
respectivas acções. A propriedade do corpo é inalienável; a de } que ninguém pode realmente querer, ou que haja a suspeita de
orientar as acções, pelo contrário, é alienável, tal como a pro- ,; que o segundo contratante não tem a intenção de cumprir, como
priedade dos bens materiais, que Deus terá doado à humani- acontece com a maioria dos contratos no estado de natureza, os
dade e esta repartiu depois entre os seus primitivos elementos, :.quais são nulos por não haver qualquer motivo para acreditar
ficando em herança aos sucessores . É neste espaço de direitos !que alguém, sem um poder que obrigue, irá respeitar o prome- .
alienáveis que se abre a possibilidade de estabelecer contratos, tido. Mas, ainda aí, se houver autêntica reciprocidade, eles são,
aos quais o direito objectivo oferece um quadro adequado onde JÍ,araHobbes, absolutamente válidos: se alguém, para se livrar
a razão vai buscar as bases do direito positivo que regulamenta de um ladrão que o ameaça de morte, lhe prometer qualquer
o instinto de sociedade. coisa, fica obrigado a honrar o compromisso, mesmo quando já
Sobre esta matriz de jusnaturalismo clássico, Hobbes vai esteja em condições de segurança que lhe permitiriam não cum-
operar a mais significativa ruptura ao reduzir todas as inclina- prir (cf., sobre toda esta questão, Leviathan, cap. xrv, p. 126).
ções ao instinto de conservação, fundamentando neste, quer os :- O contratualismo de Espinosa, desenvolvido no cap . XVI do
direitos subjectivos, quer o direito objectivo. A alienação da li- \T'fP,parte do mesmo pressuposto de Grotius de que o direito
berdade ou de qualquer bem passa então a ter como único móbil ~patural objectivo são as leis segundo as quais os indivíduos exis-
a preservação do próprio ser; consequentemente, ninguém está tem e agem; reduz depois, com Hobbes, todas as inclinações ao
i
1 1, por natureza obrigado a respeitar os direitos alheios, uma vez instinto de conservação; e faz, finalmente, contra Hobbes, coin-
que se recusa a existência de qualquer instinto de sociedade. Se . cidir o direito e a lei natural. Vejamos como se processa esta
\ limitações há para o instinto de conservação, elas só podem de-
rivar dele mesmo, na medida em que recusa ao indivíduo, por
reviravolta e as consequências que acarreta . Concordando com
Grotius, Espinosa aceita que há leis inscritas na natureza dos
~ definição, o direito de não fazer tudo para continuar na exis- homens. Tais leis, porém, não as considera como leis morais,
1 tência. Daí o artificialismo dos contratos, sempre baseados num mas sim como leis físicas, a que se subordina a actuação de
1i cálculo de benefícios e numa transacção ou «transferência mú- todos os indivíduos. Depois, uma vez mais secundando Gro-
!"
tua » de direitos subjectivos. Na verdade, como Hobbes refere , tius, Espinosa aceita que a fonte dos direitos subjectivos é Deus.
1 /; ao longo do cap. XIV do Leviathan, há uma distinção a fazer entre No entanto, recusa que tenha sido por uma qualquer dádiva
1 l•'J
o direito natural, «liberdade que cada um tem de usar o seu divina que esses direitos passaram a assistir aos homens, como
poder, como quiser, para preservar a sua própria natureza», e a pensa Grotius: são direitos de cada um, é verdade, mas porque
1f;
,,
lei natural, que é «um preceito ou regra encontrada pela razão
que proíbe ao homem fazer aquilo que for destrutivo para a
cada um é uma modificação do Deus sive natura, não sendo os
direitos subjectivos de Deus mais do que a soma dos direitos
11
sua vida ». Ora, como o simples direito natural, agora assumido subjectivos de todos os indivíduos . Por outras palavras, não

.,1
·~ 104 105
houve transferência, há imanência e, por isso mesmo, esses direi - pelo meno s nes te particular, irrelevante. Que significado pode ,
tos são de natureza física e não moral, já que não derivam de na realidade, ter uma transferência de direitos concebida como
Deus mas são de Deus. Só assim se explica que Espinosa consi - uma transferênc ia de poder? Não ficará cada indivíduo idêntico
dere que os homens são, a este respeito, não só iguais entre si, a si mesmo após o contrato? Não será este apenas uma manifes-
mas também iguais a qualquer outro ser. O direito de cada um tação da sua vontade em ordem a um benefício considerado
equivale à sua potência, o que implica, de acordo agora com útil? Não terá esta vontade a cada instante de ser reactivada,
Hobbes, que a natureza não prescreve o respeito pelos . direitos seja pela permanência da esperança de uma vantagem, seja pelo
:I! alheios. Porém, se a lei da natureza · é que cada um faça tudo .medo de um prejuízo? Se assim é, a irreversibilidade do con-
ri'
quanto estiver ao seu alcance para. se manter, então cada um trato não passa de pura ficção, cedência imaginária de poderes
faz sempre tudo quanto pode e·I? orderp. a essa finalidade _deêor- cujos efeitos são reais mas cessam assim que deixamos de acre-
rente da definição do seu próprio ser. A _hipótese .-~~ alg1::1érn ditar na sua causa. O soberano possui, de facto, o direito de
não querer fazer urna coisa que tem o direito de fazer está, determinar as acções dos súbditos, só porque e enquanto tem
pois, liminarmente afastada: se não quer é porque realmente não poder sobre as suas vontades, poder este que não lhe adveio
pode, visto não existir na natureza meio-termo entre o necessá- de um imaginário contrato social, mas de um consentimento que
rio e o impossível (cf. Matheron, 1984, pp. 77-78). '~le terá a cada instante de «renegociar», isto é, de reactivar
As implicações destas premissas sobre o contratualisrno são pela esperança e o medo que consiga incutir . Tanto faz serem
flagrantes. Espinosa explicita-as de uma forma que diríamos quase ·c0'ntratos no plano interno como no plano externo, a sua essên-
intempestiva: «um pacto não pode ter qualquer força a não ser _da é sempre a de um ritual em que se esconde uma correlação .
em função da sua utilidade [... ] desaparecida esta, no mesmo iéie interesses e uma correlação de força s . Soberano e súbditos,
instante o pacto é abolido e fica sem eficácia. É por isso uma ·\dizendo actuar em conformidade com o contrato, actuam de
insensatez uma pessoa pedir a outra que jure para todo o sem- !facto em conformidade com a respectiva potência. Assim que a
pre, sem, ao mesmo tempo, tentar fazer com que a ruptura desse Ptorrelação mudar de sinal, ou que as paixões mudarem de rumo,
pacto traga ao que o romper mais desvantagens que vantagens, :desaparecendo, por exemplo, o medo ao soberano, cada um sen-
o que deve certamente ter lugar, sobretudo, quando se institui tir-se-á juridicamente independente e apto a celebrar novos
uma república.» (lnfra, p. 329.) E Espinosa pega no exemplo do · contratos em que se exprima a nova situação. E nem sequer se
ladrão, em nítida réplica ao Leviathan,para lhe atribuir uma con- p,;i.ssaaqui para o plano de uma qualquer racionalidade que
clusão exactamente oposta à de Hobbes: ninguém está obrigado ·Jienuncie o carácter destas correlações, sempre «violentas» por-
a respeitar compromissos que deixaram de ser necessários; não , que sempre passionais e fundadas numa tensão entre duas ou
há, em suma, lei natural para além do direito natural. Mais ainda, tttais forças. No domínio estritamente político, as formas de
1 ninguém efectivamente cumpre um contrato se dele não conti- ' ,poder mantêm-se ou sucedem-se em função apenas da sua capa-
1
'l: nuar a esperar qualquer benefício, ainda que seja outro que não
1. ' tjdade de dominação, que o mesmo é dizer, da sua capacidade
o contratado, nem tiver medo de represálias pela negligência. para arrancar, a bem ou a mal, aos subordinados a reiteração
Com efeito, e dado que o direito natural coincide com a potên- de um contrato imaginário que os confirma como subordinados.
cia, se um contrato é transferência mútua de direitos, é também La Boétie viu correctamente que esta situação era insuportável
transferência de potência ou poder; a partir do momento em e incompreensível numa perspec tiva racional: o que parece não
que alguém tem o poder de fazer algo que o contrato lhe proíbe ter visto é que ela decorre integralmente num outro campo, que
é porque tem também novamente o direito de o fazer. ela indica uma situação de que não exprime a verdadeira causa,
Posta nestes termos, a questão altera-se radicalmente e, a
que ela é, em suma, pura imaginação a trabalhar e a moldar a
~
l
bem dizer, já nem sequer se deveria falar de contrato. Espinosa
1 realidade, gerando correlações de força que podem mudar por-
assume essa consequência no Tratado Político, razão por que al-
i' que têm origem passional, mas que nem por isso são menos
guns intérpretes vêem no TTP vestígios de um pensamento po-
mobilizadoras e eficazes.
lítico ainda em maturação. Se repararmos, porém, a alteração é,

107
b 106

i
2 libertos da ilu são e da super stição, capazes, portanto, de equa -
O Estado ideal cionar racionalmente e pôr em prática um plano de convivência .
O pressuposto desta interpretação é, evidentemente, a dialéctica
Atente-se, por um instante ainda, nesta rasura produzida que se estabelece entre a razão e as paixões, associando-se estas
sobre o significado do contrato, que depois de o ligar à natu- ao estado de natureza e aquela à progressiva correcção dos afec-
reza, o faz coincidir integralmente com ela, esvaziando-o do seu tos. No entanto, isto não explica, ou explica com dificuldade, a
conteúdo tradicional e deixando-o a pairar como um signifiqmte . já aludida distinção reivindicada por Espinosa relativamente a
sem lastro ·de que Se pode prescindir' rn.al acabe o confronto ; Hobbes, segundo a qual o estado civil não seria mais do que a
com as teses de Grotius t;?· Hobbes.' Çom tqda -a nitidez, espelha- ; continuação do estado de natureza por outros meios 13. Dir-se-á,
-se aqui a concepção política de ·Má.quiavel, a quem Esp~osa vê ' talvez, que a conclusão a extrair é que o Estado verdadeira-
como autor accutissimus. No Tratado Pólitico, onde · se prÕcec:l.ea mente livre será sempre impossível, o que até certo ponto é
um análise das várias formas de · governo ou · regimes, -acentuar- :verdade, mas nesse caso recairá sobre muitas passagens a sus-
-se-á ainda mais este carácter realista que leva o autor a insur- 1ita de serem também de um filósofo que «diz bem da natu-
gir-se contra os filósofos que passam o tempo a dizer bem da ·eza que não existe e mal da que existe». Sem contar com a
«natureza humana que não existe e mal daquela que existe» (TP, .evidência de que falar de um Estado livre no sentido de um
cap. 1). Mas no Teológico-Políticoa questão já é clara: em política, ;~tado de cidadãos que eliminaram a superstição e a imagina-
trata-se da «comum natureza humana», ou do «vulgo», sempre '~ão é falar de uma coisa que, além de desnecessária, seria con-
dominado por paixões. No estado de natureza, esta situação ~aditória com a natureza humana tal como Espinosa a define.
apresenta-se como um desequilíbrio. Porém, a sua correcção em 'J'or muita especulação que se possa tecer em torno do que seria
sociedade não significa uma qualquer recusa do passional: o · democracia que ficou por descrever no Tratado Político, não
contrato é ainda, e unicamente, afirmação da vontade de sobre- arece que a possamos imaginar como uma negação de tudo
vivência e segurança, desviada embora do rumo cego que a con- -quanto aí se diz sobre os dois outros tipos de regime - a mo -
duziria à própria negação. Por isso, os mecanismos políticos, na . rquia e a aristocracia - e sobre a política em geral.
medida em que visam a segurança que a «comum natureza hu- Voltemos, então, ao ponto de partida. O problema que re-
mana» deseja, estão intrinsecamente limitados aos recursos dessa i,{erimos era o da constituição de um Estado que, além da segu-
natureza: a correcção da força ou potência dos indivíduos, tànça, garantisse também a diversidade, correspondendo assim
maioritariamente dominados por paixões, só pode fazer-se pela verdadeira natureza dos indivíduos, os quais, se têm todos
força. O medo da morte resultante das forças em desordem ;emcomum o serem modos da substância infinita e afirmarem-
neutraliza-se pelo medo de uma força organizada . t~se como potência que tende a perseverar, têm também algo de
Através deste mecanismo, o Estado estabelece artificialmente específico que diferencia cada um de todos os outros. Essa dife-
um equilíbrio e garante a coexistência, cumprindo assim o seu ..rença baseia-se, como sabemos, no grau de potência, ou melhor,
objectivo essencial que é a segurança e a sobrevivência que por · na proporção de potência e impotência, de actividade e passivi-
natureza todos desejam. Um tal objectivo é, por assim dizer, dade, que cada um actualiza. Nos seres humanos, isto significa,
um objectivo mínimo. Repõe a igualdade ontológica dos indiví- :' a par das desiguais capacidades do corpo, um nível desigual de
duos enquanto parte da mesma natureza, mas não atende à sua
individualidade, isto é, à sua diferença. Está, portanto, longe
de corresponder ao ideal do «Estado mais conforme à natu-
reza». Para que este se realize, é necessário que à 9arantia de 13 «Quantum ad Politicam specta t, discrimen inter me et hobbesium, de

segurança se acrescente a garantia da diversidade. E disso que quo interrogas, in hoc consistit, quod ego naturale jus semper sartum tectum
conservo, quodque Supremo Magistratui in qualibet Urbe non plus in subdi-
:.1 tratam os últimos capítulos do TTP. tus iuris, quam iuxta mensuram potes tatis, qua subditum superat, competere
!j, Com extrema frequência, o Estado livre ou democrático re- statuo, quod in statu Naturali semper locum habet » (Correspondência, ed. Geb .,
ferido por Espinosa foi entendido como um Estado de homens vol. IV, pp. 238-239).

1
108 109
.1
!
sujeição às paixões e de libertação racional. É da natureza dos .,,. Só nessa medida ele é conforme à natur eza, garantindo a segu -
homens estarem sempre sujeitos a um certo grau de ilusão e ,~: 'rança e ao mesmo tempo a diversidade.
conhecimentos confusos, mas é também da sua natureza a pos- ,,,.. Poderá pensar-se, ainda aqui, que essa é tarefa da razão,
sibilidade de conhecimentos adequados em que se traduz a -~{_:.parquanto a verdadeira identificação do ser humano como modo
maior ou menor actividade do entendimento. A discussão em })~ ilinito leva a reconhecer o inelutável quociente de paixões que o
torno do Estado reside em saber se ele radica nesta actividade ··i.. '41travessam e aconselha uma atitude de tolerância . De que meios,
racional que chegaria . a deduzir as re_gré!S_de coexistência e con- .porém, se serviria a razão para tutelar a diversidade? O sábio,
tenção das paixões. Para Espinosa, :essa dedução é possível mas evidentemente, conhece em si mesmo as vantagens do viver em
inacessível à maioria e, por · conseguinte, sem pertinência polí- :sociedade, onde é tanto maior a possibilidade de se aperfeiçoar
tica. A única coisa que é comum a todos é a componente passio- · cionalmente quanto menor a adversidade das coisas . O pro-
nal e a busca de segurança, e é aí que tem de .·esboçar-se a ·,)ema é que, para o sábio actuar politicamente, ou espera que
ordenação da polis, ordenação exclusivamente virada para de- outros atinjam idêntico domínio sobre as paixões ou renega
terminados bens e comodidades e não para o verdadeiro bem , ràzão e assume-se como violência. A história ilustra abundan-
1
que a razão aponta. Não se trata de dois objectivos contrários, _ente este dilema.
já que o verdadeiro bem inclui os outros bens necessários e, E, entretanto, os regimes não se equivalem, o que significa
por isso, o sábio se comporta como o melhor dos cidadãos, mas eles são sempre passíveis de aperfeiçoamento. Ao nível de
trata-se de dois objectivos que apelam para diferentes recursos. indivíduo, ou seja, no plano particular, o aperfeiçoamento
Vimos como o mecanismo que garante a segurança se cons- por um progressivo acréscimo de conhecimentos adequa-
trói numa base de força ou de paixões contrapostas. Aparente- ·;,reduzindo, portanto, a percentagem de passividade e co-
mente, tudo indicaria que o mecanismo capaz de garantir a di- . entos confusos na sua mente. Ao nível do Estado, cujo
versidade teria de se construir com base na anulação da força, so decorre integralmente na ausência de um conhecirnen-
de modo a que a razão se pudesse livremente exercitar. O Esta- do verdadeiro bem, o aperfeiçoamento só pode dar-se me-
do, porém, é sempre força e violência, sob pena de não garantir .te alterações no mecanismo passional. Já a própria consti -
o seu primeiro objectivo que é a segurança. A única variação • ião do Estado, a política num grau elementar, é conquista da
possível a este respeito só é pensável em termos de maior ou iência através do medo: é o medo da morte que transfor-
menor mediação da força. No limite, poderemos supor um Es- a vontade de viver em vontade de obedecer, é o medo de
tado em que todos sejam legisladores e intérpretes da lei, que o potência superior que reactualiza permanentemente os efei-
mesmo é dizer, cúmplices na definição dos actos sobre os quais .s do contrato, essa alienação de direitos que mais não é do
poderá recair a violência estatal. O que não podemos é supor ,e a transposição imaginária de uma tensão real entre sobera-
um Estado constituído apenas por cidadãos com um domínio iO e súbditos. Nem sempre, porém, é necessário que os cida-
das paixões suficiente para se guiarem pela razão. Porque o . os obedeçam por medo: podem também fazê-lo na esperança
objectivo do Estado não é tornar os homens mais racionais, mas ·.ie um maior bem. Dito de outro modo, e seguindo a análise de
unicamente fazer com que a mente e o corpo possam exercitar ,Corsi (pp. 33-59), a correcção dos afectos é susceptível de um
as suas funções em segurança. Entre a ordem da verdade e a ' alonamento em que, sem se passar o limiar que separa as
ordem prática, vai um abismo cuja pretensa transposição é pura aixões e a razão, se pode, no entanto, ir reduzindo o nível de
e desnecessária violência. E tanto se poderá transpô-lo através ,.,.coacção e incrementando, em contrapartida, uma maior adesão.
da repressão das opiniões, modulando a polis segundo o registo :Uma coisa é obedecer para não ser punido, outra é obedecer
da unívocidade, como, em sentido oposto, através da abolição -tcom o intuito de alcançar algum benefício . O que se substitui é
do Estado e da alegada conversão da ordem prática e passional apenas a paixão do medo pela paixão da esperança, mas é inegável
em transcendência sem mediação. O objectivo do Estado é, pois, 0
que um Estado fundado nesta última garante uma participação
a liberdade (cf. infra, p. 385), mas uma liberdade entendida como ··dos cidadãos que é, não só mais elevada, como também qualita-
salvaguarda do sábio e do ignorante, da razão e das paixões. . tivamente superior. A superioridade da democracia assenta, pois,

110 111
quer nos fins que realiza e que traduzem a diver sidade natural
dos indivíduos, quer nos recursos passionais que utili za.
Em certo sentido, a redução da coacção chegaria, no limite,
a anular a própria obediência , atingindo-se então a democracia
plena, regime em que cada um não obedeceria senão a si mes-
mo. Espinosa apresenta, inclusivamente, no cap. xvll do TTP,
um exemplo histórico desta democracia ideal, que é significa-
tivo a vários · títulos : Trata-sé da narrativa bíblica onde se ·des-
creve a fundação do primeiro Est~do heb,reu: saídos do Egipto,
V
desvinculados de qualquer. júrisdição, os Judeus decidem :trans- ' O TEXTO E A TRADUÇÃO
ferir todo o seu direito, não para qualquer mortal; mas unica-
mente para Deus. A interpretação espinosanà remete-nos, óbvia-
mente, já para o facto de não haver intermediários neste sistema,
já para a natureza deste Deus com quem se contrata: se todos O Tratado Teológico-Políticoestá longe de poder considerar-
são partes de Deus, transferir para Deus o seu direito equivale e,literariamente exemplar, mesmo se reduzirmos o universo
a não o alienar. Mas o que é significativo é que, por um lado, a ~mparação ao que é normal no latim da Escolástica. A sua
ocorrência é vivida pelos Hebreus como se fosse um verdadeiro e, a maioria das vezes, é estereotipada; o vocabulário é
contrato, o que significa que o Estado é, ainda aí, fundado ima- ,ido e frequentemente contaminado por neologismos trazi-
ginariamente, sem que os seus membros vejam na autonomia .das línguas modernas ou do hebraico; as copulativas e ad-
assim esboçada senão a ausência de mediadores entre eles e .tivas surgem como recurso extremo e repetitivo a ordenar
Deus; por outro lado, se repararmos no desfecho da mesma ~-" transposição da doutrina para um idioma de que o au-
narrativa, verificaremos que os seus intervenientes se revelam ~qio domina a imensa gama de virtualidades. O rigor dedu- .
incapazes dessa autonomia : assim que ouvem directamente de ,; porém, não conhece brechas e, como se isso não bastasse,
Deus a lei, ficam aterrados e confiam-se à protecção de Moisés, runda o impressionante lastro experiencial que se lhe acres-
o qual passou de imediato a mediador entre Deus e os Hebreus, , e que denota uma observação atenta da realidade política
isto é, a «intérprete» das leis. A natureza dos homens, ou, pelo ia, designadamente a holandesa, caldeada em madura re-
menos, a natureza comum dos homens, capaz embora de ante- _ão sobre o destino do povo hebreu. Só assim se explica a
ver a libertação total, fica, todavia, tolhida pela paixão do medo . .eza das metáforas e aproximações surpreendentes e a vee-
e muda o curso do seu instinto de sobrevivência, entregando as .cia de alguns adjectivos ditados pelo contexto histórico, onde
tábuas da lei nas mãos do líder (cf. infra, p. 345). .revela um Espinosa completamente diferente daquele a que
Por impossibilidade absoluta da democracia? Nem tanto. · habituara a sobriedade do mos geometricuse que, fora deste
Apenas por impossibilidade desta democracia absoluta que as- , não encontraremos senão em alguns dos escólios da Ética.
soma como ideal e se projecta para lá da própria polí tica na Quer o ambiente que o rodeia, quer a atitude do autor,
medida em que pressupõe cidadãos com um domínio extremo ,,o ditar a história do TTP. Dele ficaram, além da editio prin-
das paixões, o que está longe de se verificar na realidade co- ' mais quatro edições antigas . Aquela apareceu anónima em
mum. O Estado ideal que Espinosa reivindica é outro e conhece . esterdão, no ano de 1670, escondendo inclusivamente o ver-
os limites que se põem à acção política. Assim como não pode deiro nome do editor e o lugar da edição. Até finais da dé -
fazer dos homens sábios, também não pode impedir que cada . a, viria a conhecer mais três edições em quarto e uma en1
um deles se aperfeiçoe na sabedoria. É por isso que a sua cons- ··avo. Esta última traz, além do livro de Espinosa, o já men-
tituição ressalva a diversidade, acautelando a livre expressão de õnado de L. Meyer sobre o mesmo assunto, e sai em 1674.
doutos e ignorantes. Mais do que isto, a razão não lhe pode exi- .. ibre ela se abaterá, no mesmo ano, uma proibição das Cortes
gir, até porque seria inútil. a Holanda, que abrangia também o Leviathan, traduzido para

112 113
,1
~ ;.;'.;
,' 1'1·~ o holandês em 1667 e para latim em 1668. A sua difusão far-se-á, Tirando aspectos destes, recusámo -nos sempre a desfigurar
entretanto, em sucessivas edições com os mais diversos títulos e o original, poupando-o à desnecessária intromissão de interpre-
nomes de autor (cf. Boscherini, 1984, pp. xxrv-xxxv). A versão tações que, mesmo quando ajustadas, pudessem ser remetidas
que aparece nas várias edições das «obras completas» publica- para as notas que vêm no fim. Estamos mesmo convictos de
das no século xrx, desde a de H. E. G. Paulus (lena, 1802-1803) que, sempre que tal foi tentado (exemplo flagrante: traduzir o
até à de Van Vloten e Land (Haia, 1882), estão baseadas numa título da obra por Tratado das Autoridades Teológicae Política), se
ou noutra destas _edições. Só a .de Gel:?hardt (4 vols., Heidelberg, restringiu sem vantagens o campo de significação de enuncia-
1924) se baseará na edição princeps, dos que, traduzidos à letra, não só continuam a entender-se
Dado as características .que refetimos, ô texto colOCé\algwis claramente, corno além disso evitam as malhas sempre duvido-
,. problemas ao estabelecerem-sé . critérios para a st1a tradução.
A demonstrá-lo, aí estão as experiências · realizadas · em outras
sas da univocidade.
Outra dificuldade com que deparámos reside na tradução
das inúmeras citações bíblicas que povoam o TTP. Recorrer às
línguas. Submetermo-nos a um literalismo abstinente em maté-
versões da Escritura disponíveis em língua portuguesa era im-
ria de interpretação seria condenar a reconhecida pobreza do
possível: primeiro, porque em mais do que uma das passagens
latim do Tratado a sobreviver pobremente, ainda por cima num
citadas a referência não é exacta, seja por erro na transcrição
contexto cultural diferente daquele a que foi destinado e que o
tipográfica, seja por culpa do autor; segundo, porque a fonte de
entendia como código de fácil e relativamente comum decifra- Espinosa é, para o Antigo Testamento, o texto em hebraico san-
ção. Entregarmo-nos, pelo contrário, à tentação de evidenciar cionado pela tradição rabínica, como se vê até pela diferente de-
um pensamento que manifestamente extravasa da magreza de signação de alguns livros, e, para o Novo Testamento, urna outra
recursos literários era me ter por caminhos escorregadios onde versão que não a Vulgata, provavelmente a de Xantes Pagnini;
alguns soçobraram. em terceiro lugar, porque mesmo face à Vulgata as traduções
A solução aqui adaptada, nesta primeira versão da obra em correntes, talvez no intuito de tornar a Bíblia acessível ou de a
português, teve por intuito reconstituir tanto o pensar como o ajustar à interpretação oficial desta ou daquela Igreja, estão por
sentir do autor, na medida e nos limites em que tal desígnio vezes longe de corresponder ao texto de São Jerónimo. Decidi-
fosse realizável no interior de uma outra língua e de uma outra mos, por isso, traduzir, pura e simplesmente, as citações tal como
época. Para tanto, foi necessário, antes de mais, partir do prin- Espinosa as apresenta em latim, respeitando as referências e as
cípio de que as fugas ao texto através de circunlóquios, frequen- abreviaturas de cada um dos livros, salvo em casos de mani-
tes em algumas traduções anteriores, derivam de uma interpreta- festo lapso já anteriormente detectado por outros tradutores ou
ção que se quer sobrepor ao original ou, na melhor das hipóteses, por nós agora apurado, sem a pretensão de ir mais além numa
de limitações intrínsecas ao idioma em que foram feitas. A pro- tarefa que estaria fora do nosso alcance e do nosso propósito
ximidade do latim a que está o português facilita essa tarefa, esgotar. Não cremos, aliás, que algo de muito importante para
sobretudo num momento em que a revitalização dos estudos a compreensão do TTP passasse por aí.
r· espinosistas começa a permitir a descoberta de Espinosa por Vão no mesmo sentido as notas alusivas a cada capítulo que
1' debaixo das sucessivas camadas ideológicas que, de algum inserimos no final deste volume. Rejeitando o desafio de uma
I· modo, o haviam desfigurado. A fidelidade ao texto constituiu, erudição que, por infindável, se converteria em vertigem, tentá-
pois, a nossa primeira preocupação, sem desistir, no entanto, de mos sobretudo que elas fossem um complemento daquilo que
o dar a ler, aqui e agora. Não fomos, por exemplo, ao extremo nesta introdução ficou dito. Mais do que a localização exacta de
de respeitar a pontuação, ou melhor, a sua escassez. Se não se todos os exemplos bíblicos e a reconstrução de quantas contro-
trata de obra com propósitos literários, para quê manter a apre- vérsias historicamente verificadas se reflectem no Tratado, inte-
sentação que ela tem no latim, onde os parágrafos se prolon- ressou-nos situar a posição de Espinosa no contexto filosófico e
gam por dezenas de páginas porque destinados a um tipo de cultural que é o seu, não ignorando, todavia, as profundas im-
leitura que, manifestamente, já não é o de hoje? plicações teológicas aí em jogo. Se o desejar, o leitor encontrar:S

114 115
na já citada versão italiana, da autoria de António Droetto e
Emília Boscherini, um manancial de informações até hoje in-
superado.
Resta acrescentar que a tradução foi feita a partir da edição
crítica de Gebhardt (Spinoza, Opera, m, pp. 3-267), cuja pagina-
ção é aqui reproduzida nas margens, entre parênteses rectos.
As 39 anotações atribuídas ao autor, que vêm no final daquela
edição (pp. 251-267), aparecem · aqui em rodapé, com a numera- BIBLIOGRAFIA
ção de Gebhardt mas nas páginas a _que diz.em. respeito, ficando
a par das notas que já constavam da edição princeps. Estas -últi-
mas vão assinaladas por um p-onto a ·negro •, enquaptà para
aquelas utilizamos o asterisco*. Além das obras referenciadas, tanto na introdução como nas notas ao
Refira-se ainda que tais anotações resultam de uma recolha texto de Espinosa, incluímos aqui algumas outras às quais o presente trabalho
se fica também a dever. Para uma consideração mais exaustiva dos estudos
feita por Gebhardt a partir de várias proveniências: o manuscrito
sobre o autor, vide Jean Préposiet, BibliographieSpinoziste,Paris, 1973, ou ainda
autógrafo de Espinosa, com apenas 5 anotações apostas pelo autor o livro de H. G. Hubbeling, a seguir citado, que inclui abundantes dados bi-
nas margens do texto; a cópia de Marchand, com 36 anotações;
bliográficos (pp. 122-150).
a ·de Von Murr, de que só se conhece a edição feita posterior-
mente, em 1802, e que tem 33 anotações; as cópias da tradução F., Le rationalismede Spinoza,Paris, PUF, 1981.
ALQUJli,
holandesa, uma anónima e duas de Monikhoff, com 34 anota- ANGEUS,E. de, «li metodo geometrico da Cartesio a Spinosa», Giornaledella
ções, a que se acrescenta a biografia de Espinosa da autoria de Filosofia,n.0 18, pp. 393-427.
AsKÉNAZI,
J., e AsKtiNAZJ-GERSON, Abrégéde Gram-
J., Introdução e notas a SPINOZA,
J. Colerus 14; e a tradução francesa de Saint-Glain, publicada em
maire Hébraíque,Paris, Vrin, 1968.
Leiden, logo em 1678, com 31 anotações e com o título La clef du AuRliLIO,D. P., «O Deus dos Atributos», Análise, vol. 1,
0
n. l, Lisboa, 1984,
sanctuaire. A autenticidade destas anotações é diversa e, em al-
pp. 49-70. 0
guns casos, problemática, se não duvidosa. Traduzimo-las tal --, «Uriel da Costa: o discurso da vítima», Análise, vol. 11,n. 1, Lisboa, 1985,
como se apresentam na edição de Gebhardt, embora sem repro- pp. 5-53. 0

duzir as frases em hebraico e em siríaco, que estão, aliás, nor- --, «O mos geometricusde Thomas Hobbes», Cultura, História,Filosofia,n. 5,
malmente seguidas de tradução latina, procedimento este que Lisboa, 1985 (b), pp. 465-486.
adaptámos também em relação ao resto da obra. A tradução AUVRAY, P., RichardSimon, Paris, PUF, 1974.
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dos acrescentos em francês ou em holandês que aparecem nas Nacional-Casa da Moeda, 1985, vol. 5, pp. 296-332.
,1
anotações vai entre parênteses rectos. BATAILLON, M., Érasme et /'Espagne, 1937, trad . ut. Erasmo y Espafta, Madrid,
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--, «Sul concetto spinoziano di mens», in E. G. Boscherini e A. Crapulli,
1
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1
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Per hoc cognoscimusquod in Deo


manemus,et Deus manet in nobis,quod
de Spiritu suo dedit nobis.
joão, Epístola I, cap . IV, 13.

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PREFÁCIO 1 [51

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Se os hom~essem, em todas as circunstâncias,decidir pelo
,·, ~o, ou se a~e lhes mostrassesemprefaoorázzel,jamais seriam
vítimas de alguma s"persticãq, Mas, como se encontramfrequentemente
perante tais dificuldades que não sabem que decisão hão-de tomar, e
como os incertosbenefíciosdafortuna que desenfreadamentecobiçamos
fazem oscilar,a maioria das vezes, entre a esperançae o medo, estão
sempre prontos a acreditarseja no que for: se têm dúvidas, deixam-se
.' levar com a maior das facilidades para aqui ou para ali; se hesitam,
sobressaltadospela esperançae pelo medo em simultâneo,ainda é pior;
porém, se estão confiantes,ficam inchadosde orgulho e presunção.Jul-
go que toda a gente sabeque é assim, não obstanteeu estar convictode
que a maioriados homens se ignoram a si próprios.Não há, com efeito,
ninguém que tenha vivido entre os homens que não se tenha dadoconta
de que a maior parte deles,se estão em maré de prosperidade,por mais
ignorantes que sejam, ostentam uma tal sabedoriaque até se sentem
ofendidosse alguém lhes quiser dar um conselho.Todavia,se estão na
adversidade,já não sabem para onde se virar, suplicam o conselhode
' quem quer que seja e não há nada que se lhes diga, por mais frívolo,
· absurdoou vazio, que elesnão sigam. Depois,semprepor motivosinsig-
··, nificantes,voltam de novo a esperarmelhoresdias ou a temer desgraças
ainda piores.Se vêem acontecer,quando estãocom medo, qualquercoisa
que lhesJaz lembrar um bem ou um mal por que já passaram,julgam
que é o prenúnciode uma saídafeliz ou infeliz e chamam-lhe,por isso,
um presságiofavorável ou funesto, apesarde já se terem enganadocen-
tenas de vezes. Se vêem, pasmados,algo de insólito, crêem que se trata
de um prodígioque indica a cólerados deuses ou do Númen supremo,
pelo que não a aplacarcom sacrifíciose promessasconstitui um crime
aos olhos desteshomens submergidosna superstiçãoe adversáriosda re-
ligião, que inventam mil e uma coisa e interpretama natureza da ma-
neira mais extravagante,como se toda ela ensandecessecom eles. Tanto

125
lt:
assim é que a quem nós vemos ser escravos de toda a espéciede supers- · .~ó e na mesma superstição.É precisamente porque o vulgo permane~e
_
tições são sobretudoos que desejam sem moderaçãoos bens incertos. i::.·,st'!!:Elf
na mesma misé~iaq~!:.3le nunca est~ ~uito tempo t,:~nquil(!
·~;e só lhe agr.aqao C/J:! _e e novidadee O_lJ.liLJilllda.JJJlQ_.Q..engru:wu, wco.11.s-
Todos eles, designadamentequando correm perigo e não conseguempor
si própriossalvar-se,imploram o auxílio divino com promessase lágri- r f;,ídaesta que tem sido a causa de inumeráveis tumultos e guerras
mas de mulher, chamamcega à razão (porque não pode indicar-lhesum l tt,irozes. Na verdade(como se prova pelo que já dissemose como Cúrcio
caminho certo para as coisas vãs que eles desejam) e vã à sabedoria ~bem observou, no liv. 1v, cap. x), não há nada mais eficaz ~:,,
humana; em contrapartida,os delírios da imaginação,os sonhos. e as J~e a superstição para governar a multidão. Por isso é que esta e ~~ '
extravagânciasinfantis, parecem~lhes respostasdivinas. Até julgam que ~e: ilmente levada,a pretexto da religião,ora a adoraros reis como se ~s,.i-,
Deus sente aversãopelossá~ios_e_que às_seus decretosnão estão inscritos
na mente, mas sim nas entranhas dos ãnimais, ou que são os-·l~uéos;os
insensatos,as aves, quem por instínto ou sopro divino os revela. A que
ra todo o género humano. &:
semdeuses,ora a execrá-lose a detestá-loscomose fossem uma peste·,..,#"
vé:'
.,, Para evitar este mal houve sempre o c dadode rodeara religiãode
ponto o~ ensandeceos homens! · · -- - · to e aparato,fosse ela verdadeiraou fasa 3, de modo a que se reves- (71
(61
2
O 'rJ!!!!!!}J
é, pois, a causa que origina, conserva e alimenta a su- da maiorgravidadee fosse sempre escrupulosamenteobservadapor
perstição.Se, além do que já dissemos, alguém ainda quiser exemplos os. Entre os Turcos, isto foi tão bem sucedido que até o simples
concretos,veja-seAlexandre, que só começoua convocar,supersticiosa- tir eles consideramcrime, ocupandoo juízo de cada um com tan-
mente, os adivinhosquando,às portas de Susa, temeu pela primeira vez preconceitosque não deixam mais lugar na mente para a recta ra-
a sorte (vide Q. Cúrcio,liv. v, § 7); assim que venceu Dario, desistiu ., nem sequerpara duvidar.
logo de consultar os adivinhos e arúspices, até ao momento em que, 1,r Se, efectivamente,o grande segr_edo do regime\monár'4yico l e aqui-
uma vez mais aterradopela adversidade,abandonadopelos Bactrianos, .que acima de tudo lhe interessa é manter os homens enganadose
atacadopelos Citas e imobilizadodevido a uma ferida, recaiu (comodiz çar, sob o especiosonome de religião,o medo em que devem ser
o mesmo Q. Cúrcio, liv. VII, § 7) na superstição, esse logro das , tidos, paraque combatampela servidãocomosefosse ela salvaçãoe
mentes humanas, e mandou Aristandro, a quem confiara a sua '.itemque não é vergon a, mas a maior das honras,dar o sangue e
credulidade, explorar por meio de sacrifícios a evolução dos ma,1'elavaidadede um só homem, em contrapartida,numa lfu?úbll-
acontecimentos. Poderíamosacrescentar muitos outros exemplos que . seria impossível conceberou tentar algo de mais infeliz, uma
provam com toda a clarezao mesmo: os homens só se deixam dominar que repugnaem absolutoà liberdadecomum sufocarcom preconcei-
pela superstiçãoenquanto têm medo; tÕdasessas coisas que alguma vez ,. ou coarctarde algum modo o livre discernimentode cadaum. E, no
foram inutilmente objectode culto religiosonão são mais do quefantas- · diz respeitoaos conflitos desencadeadosa pretexto da religião,eles
mas e delíriosde um llnimo triste e amedrontado;finalmente, era quan- _:rgemunicamenteporque se estabeec m lei o t r' s es eculat'-
do o Estado se encontrava em maiores dificuldades que os adivinhos - e porque as opiniõessão consideradascrime e, como tal, condenadas.
detinham o maior poder sobre a plebe e eram mais temidos pelos seus ~ seus defensorese prosélitossão, por isso, imolados,não ao bem pú-
reis. Mas como tudo isto, ao que presumo, é suficientemente conhecido ico, mas apenas ao ódio e à crueldadedos adversários.Se, à luz do
de todos, não insistirei mais no assunto. ireito estatal, os factos fossem incrimináveis mas as palavrasfossem
Se esta é a causa da superstição, há que concluir, primeiro, que :punes, tais sediçõesnão poderiamatribuir-se qualquerespéciede di-
todos os homens lhe estão naturalmente sujeitos (digam o que disserem 'to, nem as controvérsiasse converteriamem sedições5• E já que nos
os que julgam que ela deriva do facto de os mortais terem todos uma :oube em sorte esta rara felicidade de viver numa república onde se
qualquer ideia, mais ou menos confusa, da divindade);em segundo lu- cede a cada um inteira liberdadede julgar e de prestar culto a Deus
gar, que ela deve ser extremamente variável e inconstante, como todas sua maneira, e onde não há nada que se consideremais caro e mais
as ilusões da mente e os acessosde furor; e, por último, que só a espe- lloceque a liberdade,pareceu-meque não seria tarefaingrata ou inútil
rança, o ódio, a cólerae a fraude podem fazer com que subsista, pois ostrar que esta liberdadenão só pode conceder-sesem prejuízopara a
não provém da razão, mas unicamente da paixão, e da paixão mais piedade e a paz da república,como, inclusivamente, ela não pode ser
~t eficiente.Daí que seja tãofácil os homens acabaremvítimas de supersti- ..abolida sem se abolir,ao mesmo tempo, a paz da repúblicae a piedade.

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çõesde toda a espéciequanto é difícil conseguir que eles persistam numa r Foi sobretudoisto o que decididemonstrarneste tratado. Para tanto,foi

126 127
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necessário,antes de mais, apontar os principais preconceitosacercada
religião,isto é, os vestígiosda antiga servidão,bem comoaquelesque se
natureza, são esses, supre111a iniquidade,que passampor possuir a luz
divina. Certamenteque, se eles tivessem uma centelhaque fosse da luz
referemao direito do soberano,visto haver muitos que se esforçam,com divina, não tolejariam com tanta soberba,aprenderiama honrar a Deus
1
111;
descaradoatrevimento, por lho usurpar em grande parte e por, a pre- e distinguir-se-iam dos outros pelo amor, da mesmaforma que agorase
texto da religião,pôr contraele o ânimo das multidões, submetidoainda , ~ distinguem pelo ódio. Nem perseguiriamcom tanta animosidadeos que
:ri:1
1
à superstiçãodos gentios,para que tudo caia de novo na servidão.Direi, [ 71ãopartilham das suas opiniões; pelo contrário,sentiriam piedadedeles
lf \
a seguir, em breves palavras, qual a ordem por que são apres_entad9s ,.\.I(se é, de facto, a salvaçãoalheiae não a própriafortuna que os preo-
·!:/
1 estes assuntos;· aiites, porém, vou ·expor ris razões que me levaram a Í:'. cupa). Além disso, se realmentetivessemalguma luz divina, ela ver-sé-
11)1 escrever. . ·, -ia pela sua doutrina. Confesso,porém, que embora possam ter uma
111
[8) Inúmeras vezesfiquei espantadopor ver homensque se orgullu!rtide . insuperáveladmiraçãopelosprofundíssimosmistériosda Escritura,_nunca
iJ1
·,
professara religiãocristã, ou seja, o amor, a alegria,a paz, a continên- ·,os vejo ensinar senãoas especulaçõesdos aristotélicosou dos platónicos.
cia e a lealdade para com todos, combaterem-secom tal ferÕcidadêe ·ãque adaptaramaquela6, ainda assim não parecessemadeptosdos pa-
manifestaremquotidianamenteuns para com os outros um ódio tão exa- ;gãos.!jão lhes bastavajá ensandeceremcom os Gregos,quiseram tam-
cerbadoque é maisfácil reconhecera sua fé por estes do que por aqueles m que os profetas delirassemcom eles. o que mostra claramentel/.!:!e
sentimentos. De facto, há muito já que as coisaschegarama um ponto m por sonhos7 eles..vêe.n:La..divindade da Escriturae que quanto mais
tal que é quase impossívelsaber se alguém é cristão, turco, judeu ou !' losamente admiramos se ts mistérios ma· onstram que o que sen- ~
pagão,a não ser pelo aspectoexterior do corpoe pelo vestuário,ou por ifjmi por ela não é tanto é o · - . Isto, aliás, resulta claro& /
frequentar esta ou aquela igreja, ou, finalmente, porque é adepto desta •
4
facto e a maior parte eles supor comofundamento (paracompreen-t;>'o
ou daquelaopiniãoe costumajurar pelaspalavrasdeste ou daquelemes- e encontraro verdadeirosentidoda Escritura)que ela é sempreverda-
tre. Quanto ao resto, todos levam a mesma vida. Assim, procurandoa ·ra e divina. Aquilo que só se deveriaestabelecera partir da sua com- . r! õJ-
causadeste mal, concluíque ele se deve, sem sombrade dúvida, aofacto 'eensãoe exame rigorosoe que atmvés dela mesma.sem necessidade%~~~
de a religião consistir para o vulgo em consideraros ministérios da lquer artifício humano, aprenderíamosmuito melhpr. é o que eles ~IV'
Igreja como dignidades,os seus ofícios como benefícios,e em cumular m liminarmente como regrada sua interpretação.
de honras os pastores. Com efeito, assim que começouna Igreja este Reflectindo sobre tudo isto - a saber,que a luz natural é, não só
abuso, imediatamentese apoderoudos piores homens um enorme desejo ' prezada, mas até condenadapor muitos comofonte de impiedade;que
de exerceremos sagradosofícios, o amor de propagara divina religião invenções humanas passampor documentosdivinos e a crendicepor
transformou-seem sórdidaavareza e ambição,e o própriotemplo dege- .; que as controvérsiasdosfilósofossão discutidasna Igreja e no Sena-
nerouem teatro ondejá não se veneravamdoutoresda Igrejamas orado- com as maioresexaltações,originandoos ódiose discórdiasmais vio-
res, os quais, em vez de querereminstruir o povo, queriamera arrebatar . tos, quefacilmentearrastamos homensparasublevaçõese tantosoutros
a sua admiraçãoe censurarpublicamenteos dissidentes,não ensinando · les que seria longo descreveraqui - decidi seriamenteempreender
senãocoisasnovas e insólitaspara deixaremo vulgo maravilhado.Daí o mnovo e inteiramentelivre exame da Escritura,não afirmandonem
terem surgido grandes contendas, invejas e ódio que nem o correr do ' ·mitindo como sua doutrina nada que dela não ressalte com toda a
tempofoi capaz de acalmar. !Jlreza . Com esta precaução,elaboreiu~ara interpretaros Li-
1 Não admira, pois, que da antiga religiãonãoficasse nada a não ser 'S Sagradose, uma vez na possedele,comeceipor perguntar,antes de
.! Q, ulto externo (com que o vulgo mais pareceadular a Deus que adorá- is, o que é a profecia,como se revelou Deus aos profetas,por que
1•.• ~.,,.r-o-~) e a fé esteja reduzida a crendicee preconceitos.E que preconceitos ,ramestes escolhidos por ele, isto é, sefoi por terem pensamentossubli-
', ~ ,x estes, que de racionais§nsforma"'ii')oshomens em bestas,que impedem ,ntesacercada naturezae de Deus ou em virtude a enas da sua piedade.
IJ por completoque cada um ;ulgue livremente e distinga o verdadeirodo c.t>--olvidas estas questões,facilmentepude concluirque a autori a e os ~ ~
[f falso, parecendoexpressamenteinventados para apagarem definitivo a •. '~feta~só.tem algum peso no QUediz resp:itoà vida práticae à .v~rda- ~
il luz do entendimento!A piedade,ó Deus imortal, e a religiãoconsistem ;~ra virtude. Quanto ao resto, pouco nos interessamas suas opiniões.
em mistérios absurdos,e são os que desprezamem absolutoa razão, os - Conhecidoisto, indagueidepoispor que motivo se chamouaos He-
que têm aversão e rejeitamo entendimento como coisacorrompidapor !breusos eleitos de Deus. E comovisse quefoi apenasporqueDeus esco-

128 129
lheu para eles uma certa região do mundo onde pudessem viver em Como,além disso, a maneirade ser dos homens é bastante diversificada,
1101segurançae comodidade,concluí que as leis reveladaspor Deus a Moi- e como uns preferemesta, outros aquela opinião,inspirandoa uns sen-
sés não eram senão o direito do singular Estado hebraicoe, por conse- timentos religiososo que a outros só provocariso, concluoser necessário
guinte, ninguém a não ser os Hebreus lhe estavasujeito. Mesmo eles, só deixar a cada um a liberdade de julgar e o poder de interpretaros fun -
enquantodurasse o referidoEstado. Depois, para saber se se podia con- damentos dafé de ncordocom a sua maneirade ser, e n~o. s~ ajU!EI,.!_ da
cluir da Escritura que o entendimento humano está por natureza cor- jt.d-e _ninf51:'éf!l
~-n_ão ser pela5-suas ~fões, conformeforem piedosasou
rompido,fui investigar se a religião católica8, ou seja, a lei divi_na ímpias, pois assim todos poderão obedecer a Deus de livre e inteira von-
reveladaa todo o género·humano pelos profefas·e pelos apóstolos,seria tade e dar valor apenas à justiça e à caridade.
diferentedaquelaque a luz natural tamb~m-ensina;e, em seguida, se os Após evidenciara liberdadeque a lei divina reveladaconcedea cada
milagresacontecemao arrepioda ordem natural e provam a exist~nciàe um, passo a um outro aspecto da questão, a saber, que essa mesma
a providênciade Deus de maneira ·mais certa e mais.cltmi_qo que_.as liberdadepode e além disso deve ser concedida,sem lesar a paz da repú-
' •
coisasque entendemosclarae distintamente pelassuas causasprimeiras. blica e o direito das autoridadessoberanas,e que, pelo contrário,não
Mas, como não encontrasse,naquilo que a Escritura expressamenteen- '?. pode ser suprimida sem graves riscos para a paz e em detrimento de
sina, nada que não estivessede acordocom o entendimento ou que lhe toda a república.Para demonstrareste ponto, começo,porém, pelo direi-
repugnasse,e como, por outro lado, visse que os profetas só ensinaram to natural do indivíduo, que vai até onde for o seu desejo e a sua
coisasextremamentesimplesque qualquerum poderiaperceber,além de potência, sem que alguém esteja, com base em tal direito, obrigadoa
as ornamentaremcom o estilo e confirmaremcom argumentos que me- viver de acordocom a maneirade ser de outrem e sendo, pelo contrário,
lhor pudessem incitar o ânimo da multidão à devoçãopara com Deus, 'cadaum o responsávelpela sua própria liberdade.A seguir, mostro que,
fiquei completamentepersuadidode que a Escritura deixa a razão em em realidade,ninguém renuncia a esse direito, a não ser que transfira
absolutaliberdadee não tem nada em comum com a filosofia, assentan- para outrem o poder de se defender,e que, necessariamente,aquelepara
do, pelo contrário, cada uma delas nas suas próprias bases. E para o ·. quem cada um transferiu o direito de viver de acordo com a sua ma-
demonstrar apodicticamentee resolver a questão por completo, mostro ,;; neira de ser, junto com o poder de se defender,possui este direitonatu-
qual o método a seguir na interpretaçãoda Escritura e bem assim que f ral de modo absoluto.A partir daqui, mostro que os que detêm o poder
todo o conhecimento,sobre esta ou sobre as coisas espirituais, se deve ,; soberanotêm direito a tudo o que estiver em seu poder e são os únicos
extrair dela mesma e não daquilo que conhecemospela luz natural. ,,:'garantesdo direito e da liberdade,ao passo que os outros devemJazer
Passo em seguidaa analisaros preconceitosque surgem pelofacto tudo de acordoapenas com o que eles determinam.Todavia,como nin-
de o vulgo (sujeito à superstiçãoe preterindoas relíquiasdo passadoà ( guémpode privar-se a um ponto tal do seu poder de se defenderque
própriaeternidade)adoraros livros da Escrituraem vez do próprio ver- .~.deixe de ser homem, concluo daí que ninguém pode ser absolutamente
bo de Deus. Depois, mostro que o verbo de Deus reveladonão consiste ':-.'privadodo seu direito natural e que os súbditos mantêm, comoque por
em determinadonúmero de livros, mas num conceitosimples da mente ; um direito da natureza, certas coisas que não lhes podem ser retiradas
divina reveladaaos profetas:obedecera Deus de plena vontade, prati- ,' semgrave perigopara o Estadoe que lhes são tacitamenteconcedidasou
cando a justiça e a caridade.E provo que esta doutrina é ensinada na · por eles expressamenteestipuladascom aquelesque detêm a soberania.
Escrituraconsoantea capacidadede compreensãoe as opiniõesdaqueles Posto isto, passo à repúblicados Hebreus,que descrevoem porme-
i
a quem os profetase os apóstoloscostumavampregareste verbo de Deus, nor, para mostrarpor que razãoe por ordemde quem a religiãocomeçou
1 de modo a que os homens o pudessem aceitar de plena vontade e sem a terforça de lei, bem como outras coisasque, de caminho,me pareciam
qualquerrepugnância. dignas de registo. Em seguida,mostro que os que detêm o podersobera-
Uma vez apresentadosos fundamentos da fé, concluo,finalmente, no são os garantes e os intérpretes, não só do direito civil, mas também
1:
que o conhecimentoreveladonão tem outra finalidade senão a obediên- do direito sagrado,e que só eles possuem o direito de discerniro que é
t cia e que, tanto pelafinalidade como pelosfundamentos e pelo método, justo e o que é injusto, o que é piedoso e o que é ímpio, concluindo,
ele é completamentediferentedo conhecimentonatural, não tendo nada enfim, que a melhor maneirade poderemmanter essedireito e conservar 1121
em comum com este, pois cada um deles ocupa o seu reino sem que isso o Estado em segurançaé consentirem que cada um pense aquilo que

i:
I•
1111repugneao outro e sem que algum tenha de se considerarsubordinado9• quiser e diga aquilo que pensa.

11
130 131
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"
o\_p_.~P~')..,:.s
É isto, leitor filósofo,que deixo aqui à tua apreciação,na esperança
de não ser mal acolhido,tendo em conta a importânciae utilidade do
tema, quer da totalidadeda obra, quer de cada um dos capítulos. Tinha
ainda mais coisasa acrescentar,mas não queroque este prefáciose trans-
forme num volume, sobretudo porque julgo que o essencial é sobeja-
mente conhecido dos filósofos. Quanto aos outros, não tento sequer
recomendar-lhese?te tratado, pois nada me _le!Jaa esperar que ele,.por
qualquerrazão, lhes possa agradar. Sei, efectivamente,quão arreigados CAPITULOI
(15]
estão na mente os preconceitosque o íinimo abraçoucomo se de piedade
se tratasse;sei, além disso, quê é -impossível libertaro vulgo ita.supers- DA PROFECIA
tição como do medo; e sei, finalmente, que a. constância_do vulgo é _
obstinaçãoe que não é a razão que o rege, mas a tendênciapara louvar
ou vituperar que o arrebata.Não convido, portanto, o vulgo, nem aque-
les que se debatemcom os mesmos afectos,a leremeste livro. Prefiroque
o desprezem a que me molestem interpretando-operversamente, como , •,Profecia ou Revelação é o conhecimento certo de alguma
costumamJazer sempre, não aproveitandoeles nem deixando que apro- revelada por Deus aos homens. O profeta, por conseguin-
veitem os que poderiamfilosofar mais livremente se a tanto os não im- "é o que interpreta as coisas que Deus revela para aqueles
pedisse o julgarem que a razão deve ser serva da teologia:porque, a delas não podem ter um conhecimento certo e que, por
estes, estou confianteque a obra será de extrema utilidade10. só pela fé as podem abraçar. Em hebraico, efectivamente,
E, posto que a muitos talvez falte o vagar ou o ânimo para ler _éta diz-se nabi *, quer dizer, orador e intérprete, mas na
tudo, vejo-me obrigadoa prevenir, aqui como no fim deste tratado, que titura é sempre tomado por intérprete de Deus, como se in-
não escrevi nada que de bom grado não submeta ao exame e apreciação ,. (do cap. vn, 1, do P.xodo,onde Deus diz a Moisés: eis que te
das autoridadessoberanasda minha pátria: se elas acharemque algo do ftituo Deus do Faraó,e Aarão,teu irmão,seráo teu profeta.É como
que eu digo vai contra as leis da pátria ou é prejudicial ao interesse ·lissesse: já que Aarão, ao interpretar para o Faraó as palavras
comum, retiro o que disse. Sei que sou homem e podereiter errado;mas tu pronuncias, faz de profeta, então tu serás como que o
pus todo o empenhopara não errar e, sobretudo,para não escrevernada do Faraó, ou seja, aquele que faz as vezes de Deus .
que não estejaem conformidadeabsolutacom as leis da pátria, a piedade ..Sobre os profetas, trataremos no capítulo seguinte. Aqui,
e os bons costumes. ,~-se-á da profecia, sendo que, pela definição apresentada,
fode chamar profecia ao conhecimento natural, pois o que

" AnotaçãoI. Quando a terceira letra do radical das palavras pertence ao


o das que chamamos quiescentes é habitualmente suprimida e, em seu
r, dobra-se a segunda. Assim, de Killah, suprimida a quiescente he, obtém-
. K.olelle Kol; de nibba obtém-se nobeb, donde niv sepataim,palavra ou discur-
,; de baza vem bazaz ou buz (shagag, shug, mishgeh vêm de shagah;hamam de
· ·h; belial, bala/, de balah). R. Salomon Jarchi interpretou, portanto, muito
a palavra 11abi,não tendo razão Ibn Ezra, que sem possuir um conheci-
.to tão exacto da língua hebraica o critica. Deve, além disso, notar-se que
vra nebuah, profecia, é um termo geral e aplica-se a todos os modos de
:etizar, ao passo que as outras palavras têm um sentido mais específico e
rpµcam -sesó a este ou àquele género de profecia, como creio ser do conheci-
.. to dos eruditos .

132 133
nós conhecemos pela luz natural depende exclusivamente do afirmar que a natureza da mente, concebida assim, é a primeira
conhecimento de Deus e dos seus eternos decretos. Na verda- causa da revelação divina. Porque tudo o que conhecemos clara
de, como este conhecimento natural é comum a todos os ho- e distintamente é a ideia de Deus (conforme indicámos) e a
mens, visto depender de fundamentos comuns a todos, não é natureza quem no-lo dita, decerto não por palavras , mas de uma
tido em grande conta pelo vulgo, o qual está sempre ansioso forma ainda mais excelente e adequada à natureza da mente,
por cois_as raras e alheias à sua natureza, ao mesmo tempo que como, sem dúvida, experimentou por si mesmo todo aquele que
despreza os dons naturais e, por isso, quando fala de _co~eci- provou da certeza do entendimento. Mas, como o meu intuito
mento profético, pretende qué esteja· excluído o natural. Contu- , principal é falar apenas daquilo que diz respeito só à Escritura,
do, o conhecimento natur~ tem tant9 direito como qualquer outro : o pouco que disse sobre a luz natural é suficiente. Passo, por-
a chamar-se divino, porquanto _.nos é como que ditado pela natu- tanto, às outras causas e meios pelos quais Deus revela aos ho-
reza divina, na medida em que nós participamos dela .1, pelos e f mens o 3-ue ultrapassa os l~mites d~ conhecimento natural ~ até
decretos de Deus, não diferindo do conhecimento à que tôdos ·· o que nao o ultrapassa (p01s nada rmpede que Deus comuruque
chamam divino senão porque este se estende para lá dos limites de modo diferente aos homens aquilo mesmo que conhecemos
daquele e porque as leis da natureza, consideradas em si mes- _pela luz natural). Disto, trat~rei mais em pormenor.
mas, não podem ser a sua causa. Mas no que toca à certeza que •t No entanto, tudo quanto pode dizer-se a tal respeito deve
(16J o conhecimento natural envolve e à fonte de que deriva (a saber, -sertirado exclusivamente das Escrituras. Que podemos nós, com
Deus), em nada fica atrás do conhecimento profético 2. A menos ·,feito, dizer de coisas que excedem os limites do nosso enten-
que alguém pretenda pensar, ou antes, sonhar que os profetas imento, a não ser aquilo que os próprios profetas, oralmente
tiveram, de facto, um corpo humano mas não uma mente 3 u por escrito, nos transmitiram? E, como hoje em dia não te-
humana e que, nesse caso, as suas sensações e a sua consciência .os, que eu saiba, nenhum profeta 4, só nos resta abrir os sa-
eram de uma natureza completamente diferente das nossas. . :àdos volumes que eles nos deixaram. Mas com a precaução
No entanto, muito embora seja divina a ciência natural, os e não afirmar sobre tais assuntos, nem atribuir aos profetas,
seus divulgadores não podem ser considerados profetas*. Com da que eles não tenham claramente ditado. E, aqui, deve so-
efeito, aquilo que eles ensinam pode ser percebido e abraçado l,.; '
,retudo notar-se que os Judeus nunca mencionam nem procuram
pelos restantes homens com a mesma certeza e ao mesmo nível !a.scausas intermédias ou particulares, remetendo sempre para
que eles, e sem ser apenas pela fé. . us, seja por religião, por piedade ou, como costuma dizer o
Visto, pois, que a nossa mente, só pelo facto de conter em {Ulgo, por devoção. Se, por exemplo, ganharam dinheiro num (171
si objectivamente a natureza de Deus e dela participar, tem a .egócio, dizem que lhe foi oferecido por Deus; se desejam que
potência de formar certas noções que explicam a natureza das _ .guma coisa aconteça, dizem que foi Deus que lhes predispôs o
·1~ coisas e nos ensinam a conduzir na vida, podemos com razão
r1: ,.ooração; e se pensam qualquer coisa, dizem que foi Deus que
l1
11 )Jtadisse. Por conseguinte, nem tudo o que a Escritura diz que
Deus disse a alguém deve ser tido por profecia e conhecimento
-.:1·_.··.

n * Anotação II. Quer dizer, intérpretes de Deus. O intérprete de Dêus é, com spbrenatural, mas só o que a Escritura diz expressamente, ou
11''
~ efeito, aquele que interpreta os decretos divinos que lhe foram revelados para ,_'J_ue se deduz das circunstâncias da narrativa, ter sido profecia
outros a quem o não foram e que, para os aceitarem, têm de se apoiar exclu- ou revelação.
:r..
'·.·1 sivamente na autoridade do profeta. Porque se os homens que escutam os , Se folhearmos os sagrados volumes, verificaremos que tudo
1~ profetas se tornassem profetas, como se tornam filósofos os que ouvem os
o que Deus revelou aos profetas foi revelado, ou por palavras,
li
iih! filósofos, então o profeta não seria um intérprete dos decretos divinos, pois
quem o ouvia não se apoiava no seu testemunho e autoridade, mas sin1 na ou por figuras, ou de ambos os modos, quer dizer, por pala-

,
íl
1•
revelação divina e no testemunho interior. Acontece exactamente o mesmo
com os soberanos, os quais são os intérpretes do direito do seu Estado por-
que as leis por eles promulgadas dependem exclusivamente da sua autoridade
e baseiam-se apenas no seu testemunho.
l·vras e figuras. As palavras, tal como as figuras, ou foram ver-
' dadeiras e exteriores à imaginação do profeta que as ouvia ou
via, ou foram imaginárias, porque a imaginação do profeta,

r 1
135
134
li
me smo quando acordado, estava predi spo sta de modo a que Escritura (Deut., cap. v, 4) diz expressamente: Deus falou con-
lhe parecesse ouvir palavras ou ver alguma coisa com toda a vosco face a face, isto é, tal como dois homen s, habitualmente,
clareza 5 . trocam ideia s entre si através dos respectivos corpos. Parece,
Deus revelou a Moisés com uma voz verdadeira as leis que , pois, ser mais conforme com a Escritura dizer-se que Deus criou
queria prescrever aos Hebreus, tal corno consta do fxodo, cap. xxv, •fuma voz por meio da qual ele próprio revelou o Decálogo.
22, onde diz: e aí te esperarei,e falarei contigo daquelaparte do propi- i Quanto ao motivo por que as palavras e os argumentos diferem
ciatório6 que está entre dois qw;rubins. O que mostra que Deus se de um livro para o outro, veja-se o cap . VIII.
serviu de t.irria verdadeira voz, já . que Moisés, sempre que que- ,,. Mas nem mesmo assim se elimina por completo a dificulda-
ria, encontrava ali Deus ·pronto p~ra lhe -falar. E só esta voz, de, posto que não parece lá muito razoável admitir que uma
pela qual foi anunciada a lei, :foi uma . verdadeira voz, ·cqriforme 'coisa criada, que depende de Deus como qualquer outra, pu-
mostrarei adiante. · .desse, por si mesma, exprimir ou explicar a essência ou a exis-
. -
Poder-se-ia supor que fosse verdadeira a voz com que Deus ..tência de Deus, fosse real ou verbalmente, e declarar na pri-
chamou Samuel, pois em Samuel, ,, cap. m, último versículo 7, eira pessoa: eu sou Jeová teu Deus, etc. É certo que , quando
afirma-se: e Deus apareceude novo a Samuel em Silo, porque em Silo 'lguém diz com a boca eu entendi, ninguém vai julgar que foi a
Deus se manifestou a Samuel pela sua palavra. É corno se dissesse ·-ca que entendeu mas sim a mente do homem que o afirma.
que a aparição de Deus a Samuel consistiu apenas em que Deus :orno, porém, a boca pertence à sua natureza, e como aquele a
se lhe manifestou pela palavra, ou, dito de outro modo, não foi em isso é dito já conhecia a natureza do entendimento, facil-
senão o facto de Samuel ouvir Deus a falar. No entanto, porque ente este compreende, por analogia consigo, a ideia do ho-
somos obrigados a distinguir a profecia de Moisés da dos res- .em que fala. Mas aqueles que anteriormente não conheciam
tantes profetas, é necessário dizer que essa voz ouvida por Sa- e Deus senão o nome e que desejavam falar-lhe para se certi-
muel era imaginária. O que pode também concluir-se do facto ,;·:arem da sua existência, não vejo como pôde este seu desejo
de ser parecida com a voz de Heli, que Samuel costumava ou- satisfeito por meio de urna criatura (que não tem com Deus
vir frequentemente e podia, portanto, imaginar com facilidade. ais relação do que as outras coisas criadas, nem pertence à
De facto, três vezes Deus o chamou e três vezes ele julgou que .tureza divina) que dissesse eu sou Deus. Eu pergunto: se Deus
[181 era Heli quem o chamava. ·- ·cesse os lábios de Moisés (mas porquê de Moisés? até de um
A voz que Abimelec escutou foi imaginária. Com efeito, diz- tU'.alqueranimal) para pronunciarem aquelas palavras e a dize-
-se no Génesis, cap. xx, 6: e Deus disse-lhe em sonhos, etc. Não foi, eu sou Deus, compreenderiam eles assim a existência de Deus? [191
portanto, quando estava acordado, mas só em sonhos (ou seja, Por outro lado, a Escritura parece indicar peremp toriamen-
na altura em que a imaginação está naturalmente mais apta a que o próprio Deus falou (descendo, para tanto, do céu ao
imaginar coisas que não existem) que pôde imaginar a vontade .onte Sinai) e que, não só os Judeus o ouviram falar, como até
de Deus. magnatas o viram (fxodo, cap . xx1v). E a lei revelada a Moi-
As palavras do Decálogo, na opinião de alguns judeus, não ·:éés, à qual não era lícito acrescentar ou suprimir fosse o que
foram proferidas por Deus . Segundo eles, os Israelitas ouviram ·~osse e que constituía o direito da pátria, jamais ordena que
só um estrépito, sem que nenhuma palavra tivesse sido proferi- , creditemos que Deus é incorpóreo ou que não tem qualquer
t"'' da, e entretanto apreenderam, mentalmente apenas, as leis do magem ou figura: o que diz é que Deus existe, que se deve
JI'
JÍ Decálogo. Eu próprio assim acreditei durante algum tempo, por ácreditar nele e só a ele adorar, proibindo, para que eles não se
1·~ ver que as palavras do Decálogo são diferentes no fxodo e no /desviassem do seu culto, que lhe atribuíssem ou que dele fizes-
:a Deuteronómio,donde parece resultar (já que Deus só falou uma ·,em qualquer imagem. Na verdade, como eles não tinham visto
'ti vez) que o Decálogo não pretende ensinar as próprias palavras ia imagem de Deus, não podiam fazer nenhuma que o represen-
t~ de Deus, mas apenas o seu significado. Todavia, se não quiser- ·.tasse, pois todas quantas fizessem representariam necessaria-
Ir, mos forçar a Escritura, é absolutamente necessário admitir-se tnente uma outra coisa criada que já tivessem visto. Assim, quan-
que os Israelitas ouviram uma verdadeira voz. Na verdade, a do adorassem a Deus por meio dessa imagem, pensariam, não

1 I
,, 136 137
em Deus, mas naquilo que ela de facto representava, prestando- zer, não por autênticas palavras nem verdadeira voz). No en-
-lhe o culto e as honras que só a Deus são devidas. Além disso, tanto, a Moisés não (me revelo) assim: a ele falo bocaa bocae numa
a Escritura indica claramente que Deus tem uma figura e que visiío, mas não por enigmas, e ele o'lhapara a imagem de Deus 8, isto
:.• Moisés a observava quando ouvia Deus a falar embora não che - é olha para mim e fala comigo como se fosse com um amigo e
gasse a ver Deus senão de costas. Não tenho, por conseguinte, l' ;ão cheio de medo, conforme vem no P.xodo,cap. XXXIII, 11. É,
/·j . dúvida que se esconde aqui algum mistério, do qual a seguir portanto, evidente, que os outros profetas não ouviram uma voz
falaremos mais longamente . Agora, passarei a apresentar as pas- autêntica, o que é também confirmado no Deuteronómio,cap. XXXIV,
sagens da Escritura que indicam os meios pelos quais Deus re- 10, onde se diz: e não houve (literalmente, não se levantou) em
velou aos homens os seus decreteis_. ..Israel nenhum profeta como Moisés, que conheceu Deus face a face;
Que houve revelação só por imagens, está claro pelo Jiv. 1 conheceu, entenda-se, só pela voz, dado que nem o próprio
dos Paralipómenos, cap. xx1, ortde Deus mostra a · David a sua -,Moisés tinha visto alguma vez a face de Deus (P.xodo,cap. xxxm).
cólera por meio de um anjo que empunha . uma . espaâà. o mes- Tirando estes, não encontro na Sagrada Escritura quaisquer
mo acontece com Balaão. E, embora Maimónides e alguns ou- .tros meios pelos quais Deus se tenha comunicado aos homens
tros pretendam que esta história e todas as que contam a apari- , por conseguinte, como atrás demonstrámos, mais nenhum é
ção de um anjo (por exemplo, a de Manué, a de Abraão quando .e admitir ou supor. E embora se compreenda que Deus pode,
tencionava imolar o filho, etc.) aconteceram em sonhos, pois nin- dúvida, comunicar-se aos homens imediatamente, pois co-
ijff,,' guém poderia, de olhos abertos, ver um anjo, estão, com certe- l'1JUCaa sua essência à nossa mente sem precisar de qualquer
~~ d za, a falar de cor. A única coisa que eles procuraram foi extor- ia corporal, todavia, para que um homem percebesse só pela
quir à Escritura as frivolidades aristotélicas e as suas próprias te certas coisas que não estão contidas nos primeiros princí- i211
invenções, o que a mim me parece a coisa mais ridícula. Em ·os do nosso conhecimento, nem deles se podem deduzir, a
contrapartida, foi por imagens não reais e dependentes apenas a mente teria de ser necessariamente superior e, de longe,
da imaginação do profeta que Deus revelou a José o seu futuro · perfeita que a mente humana . Por isso, não creio que al-
poder. .ém tenha atingido tanta perfeição, a não ser Cristo 9, a quem
r201 Por imagens e ao mesmo tempo por palavras revelou Deus ,, preceitos divinos que conduzem os homens à salvação foram
a Josué que havia de combater pelos Hebreus, mostrando-lhe ·elados imediatamente, sem palavras nem visões. Deus ma-
por um anjo com uma espada, qual chefe militar, o que também '"estou-se, portanto, aos apóstolos através da mente de Cristo,
lhe tinha revelado por palavras e que ele tinha ouvido do anjo. imo outrora a Moisés por meio de uma voz que vinha do ar.
Também a Isaías (conforme se narra no cap. VI) foi anunciado .,,assim, à voz de Cristo, tal como àquela que Moisés ouvia,
por figuras que a providência de Deus abandonava o povo, pois ,ode chamar-se a voz de Deus. Neste sentido, podemos tam-
imaginou o Deus três vezes santo num trono altíssimo e os Is- ém dizer que a sabedoria divina, isto é, a sabedoria que é
raelitas manchados pela imundície dos pecados, como que meti- perior à do homem, assumiu em Cristo a natureza humana e
dos em esterco, muito longe, por conseguinte, de Deus. Com- 'Cristo foi o caminho da salvação.
preendeu assim o miserável que era o estado presente do povo, Devo, no entanto, advertir aqui que me abstenho de falar
ao passo que as suas calamidades futuras lhe foram reveladas do que certas Igrejas afirmam sobre Cristo - e nem sequer para
por palavras como que pronunciadas por Deus. Poderia acres- 'o negar-, po is confesso com toda a franqueza que não com-
centar, a exemplo deste, muitos outros casos tirados da Sagrada . preendo. Tudo o que até agora afirmei são conjecturas a partir
Escritura, mas julgo que isto é suficientemente conhecido. · da própria Escritura. E em parte alguma eu li que Deus apare-
Tudo isto, aliás, vem ainda mais claramente confirmado num ceu a Cristo, ou que lhe falou, mas sim que Deus foi revelado
texto dos Números (cap. XII, 6 e 7) que reza assim: se alguém de por Cristo aos apóstolos, que Cristo é o caminho da salvação e,
entre vós for profeta de Deus, revelar-me-ei a ele numa visão (isto é, · finalmente, que a lei antiga foi transmitida por um anjo e não
por figuras e hieróglifos, enquanto da profecia de Moisés diz directamente por Deus, etc. Por conseguinte, enquanto Moisés
que é uma visão sem hieróglifos); falar-lhe-ei em sonhos (quer <li- · falava com Deus face a face, tal como um homem fala habitual-

138 139
mente com um companheiro (isto é, por meio dos seus dois consome. Além disso, na medida em que a palavra ruagh signi -
corpos) Cristo comunicou com Deus de mente para mente. fica ânimo, serve para exprimir todas as paixões e até os dotes
Está, portanto, assente que ninguém, além de Cristo, rece- anímicos, como espírito elevado para significar soberba, espírito
beu qualquer revelação de Deus sem o recurso à imaginação, submisso para significar humildade, espírito mau, para significar
quer dizer, a palavras ou imagens, e que, para profetizar, não é ódio e melancolia, espíritobom, para benignidade, espíritode ciúme,
necessário ser dotado de uma mente mais perfeita, mas sim de espírito (ou apetite) de fornicação,espírito de sabedoria,de prudência,
uma imaginação mais viva, conforme mostrarei com mais clé;1re- de coragem,isto é (porque em hebraico se usam mais frequente-
za no capítulo seguinte. É preciso, agora; averiguar o que nas ' mente os substantivos que os adjectivos), um ânimo sábio, pru-
Sagradas Escrituras se entende por _espírito : de Deus infundido dente, forte, ou virtude da sabedoria, da prudência, da cora-
nos profetas, ou seja, o que . q1.,1etdizer os profetas falarem pe lo gem, espírito de benevolência,etc.
espírito de Deus. Para investigar isto, é necessário, antes d~ m.ais, 6 - A própria mente, ou a alma, como no Eclesiastes,cap. III, [231
perguntar o que significa a palavta hebraica ruagh, vuigarmên te 19: o espírito (ou a alma) é o mesmo em todos, e o espíritovolta-se
traduzida por espírito. para Deus.
Ruagh, em sentido próprio, significa, como se sabe, vento, 7 - Finalmente, significa as partes do mundo (em virtude
mas emprega-se muitas vezes para significar várias outras coisas, · dos ventos 10 que delas sopram) e ainda os lados de qualquer
as quais, todavia, derivam daquela. É, com efeito, tomada por: ,coisa correspondentes a essas partes. Ver Ezequiel, caps. xxxvn,
1 - Hálito, como no salmo cxxxv, 17: e tão-poucoexiste espí- -9; XLII, 16, 17, 18, 19, etc. 11 .
-'.
rito na súa boca. É de notar, por outro lado, que uma coisa é referida a Deus
2 - Ânimo ou respiração, como em Samuel, 1, cap. xxx, 12: e ·e se chama coisa de Deus:
[221 voltou-lhe o espírito, isto é, respirou. 1- Porque pertence à sua natureza e é corno que parte dele,
3 - Coragem, força, como em Josué, cap. II , 11: e não se en- .tal como quando dizemos a potência de Deus ou os olhosde Deus.
controu depois espíritoem nenhum homem; idem em Ezequiel, cap. II, 2 - Porque está em poder de Deus e age segundo a sua
2: e veio a mim o espírito(ou força) que me fez levantar sobre os meus _vontade: assim, a Escritura chama aos céus céus de Deus, por
própriospés. serem o seu carro e o seu domicílio, à Assíria flagelo de Deus,
4 - Virtude, aptidão, como em Job, cap. XXXII, 8: certamente, :a Nabucodonosor servo de Deus, etc.
o próprioespíritoestá no homem,ou seja, a ciência não deve procurar- 3 - Porque lhe é dedicada, corno o templo de Deus, o naza-
-se unicamente nos velhos, já que eu verifico que ela depende reno de Deus, o pão de Deus, etc.
da virtude e da capacidade singular do homem; idem nos Núme- ~ 4 - Porque é transmitida pelos profetas mas não revelada
• ros, cap. XXVII, 18: o homem, em quem está o Espírito. ~-pela luz natural, como é o caso da lei de Moisés, que é designa-
f: 5 - Intenção, como nos Números, cap. XIV, 24: porquefoi outro da por lei de Deus.
1
il o seu espírito, quer dizer, uma outra intenção, uma outra ideia; 5 - Para exprimir uma coisa no grau superlativo, tal como
idem nos Provérbios,cap. 1, 23: eu vos direi o meu espírito (isto é, a montes de Deus, ou seja, montes altíssimos, um sono de Deus, isto
minha ideia). Neste mesmo sentido, emprega-se para significar é, profundíssimo. É neste sentido que se deve explicar Amós,
a vontade, a decisão, o apetite e a impetuosidade, como em ·. cap. 1v, 11, onde o próprio Deus fala do seguinte modo: Eu
Ezequiel,cap. 1, 12: iam para onde tinham o espírito (ou vontade) de destruí-vos como a destruiçãode Deus (destruiu) Sodomae Gomorra,
ir; idem em Isaías, cap . XXX, 1: e parafundir a fusão e não do meu quer dizer, à semelhança dessa memorável destruição; não pode,
espírito;e no cap. XXJX, 10: porque Deus derramousobreeles o espírito efectivamente, explicar-se de outro modo, urna vez que é o pró-
(isto é, os apetites) de dormir;e no livro dos Juízes, cap. vm, 3: mi- prio Deus quem fala. Da mesma forma, a ciência natural de Sa-
l tigou-seentão o seu espírito,ou ímpeto; idem nos Provérbios,cap. XVI, lomão é designada por ciência de Deus, ou seja, divina, fora do
1. 32: quem domina o seu espírito (ou apetite) mais do que quem toma comum. Nos Salmos, fala-se também de cedros de Deus para ex-
uma cidade;e no cap. xxv, 28: o homem que não domina o seu espí- .J primir a sua insólita grandeza. E em Samuel, liv. 1, cap. x,, 7,
rito; idem em Isaías,cap. XXXIII, 11: o vosso espírito é um fogo que vos para significar um medo particularmente grande, diz-se um medo

140 141
de Deus abateu-se sobre o povo. Neste sentido, tudo o que ia além do comum, tal como no Êxodo, cap. XXXI, 3: e enchê-lo-ei(a Betsa-
da capacidade de compreensão dos Jud eus e tudo aquilo de que, bel) do espírito de Deus, ou seja (como explica a própria Escritu-
na altura, ignoravam as causas naturais era habitualmente atri - ra), de engenho e arte acima do que cabe em sorte ao comum
buído a Deus. Assim, à tempestade chamavam repreensãode Deus, dos homens. E em Isaías, cap. x1, 2: repousarásobreele o espíritode
e aos trovões e relâmpagos flechas de Deus, porque julgavam que Deus, quer dizer, conforme o próprio profeta explica, e à seme-
Deus tinha os ventos encarcerados em cavernas a que chama- lhança do que acontece frequentemente nos textos sagrados, a
vam as forjas de Deus, não d~vergindo dos pagãos sob . este .as- vjrtude da sabedoria, da prudência, da fortaleza, etc. Igualmen-
pecto, a não ser por julgarem que era Deus e não Eolo o admi- te, à melancolia de Saul chama-se um espírito maligno de Deus,
nistrador dos ventos. Pela mesma .-razão .ainda, aos milagres isto é, uma melancolia profundíssima: foram, de facto, os cria- 12s1
chamam obras de Deus, quer dizer, obras estupendas, un:ia : vez dos de Saul que o convenceram a chamar para junto de si wn
[241 que todas as coisas naturais , são obras de Deus e só .p~la po_tên- músico que o divertisse tocando cítara, o que mostra que, não
cia divina existem e agem. E, portanto, neste sentido que o sal- obstante chamarem à melancolia de Saul melancolia de Deus, a
mista chama potências de Deus aos milagres do Egipto, porque tinham por melancolia natural .
abriram aos Hebreus, numa situação de extremo perigo em que ~: O espírito de Deus significa, ainda, a própria mente do ho-
estes já não esperavam nada de parecido, uma via de salvação, mem, como em Job, cap. xxvn, 3: e o espíritode Deus no meu nariz,
deixando-os extremamente maravilhados. -por alusão à passagem do Génesis em que Deus insufla a alma
Dado, pois, que às obras insólitas da natureza se chama obras da vida no nariz do homem. Assim, Ezequiel, profetizando aos
de Deus e às árvores de altura descomunal árvores de Deus, ~ortos, diz (cap. XXXVIl, 14): dar-vos-eio meu espíritoe vivereis,ou
não nos devemos admirar que no Génesis se chame filhos de ~ja, restituir-vos-ei a vida. No mesmo sentido, afirma-se em
Deus aos homens de estatura elevada e com muita força, ainda fob, cap. XXXIV, 14: se ele (Deus) quiser, recolheráo seu espírito(isto
que sejam ímpios, ladrões e devassos. Porque os antigos, não só · · a mente que nos deu) e a sua alma. É deste modo que se deve
os judeus mas também os gentios, costumavam referir a Deus .bém entender o Génesis, cap. VI, 3: nunca mais o meu espírito
tudo aquilo em que alguém excedia os demais. Quando o Faraó iocinará (ou discernirá) no homem, porque ele é carne;ou seja, a
ouviu a interpretação do sonho, disse que a mente dos deuses artir de agora, o homem agirá segundo as decisões da carne e
estava em José, do mesmo modo que Nabucodonosor disse a ;nãoda mente que eu lhe dei para que discernisse o bem. Do mes-
Daniel que este possuía a mente dos deuses santos. E, até entre mo modo, no salmo u, 12, 13: cria em mim, ó Deus, um coração
os latinos, não há nada mais frequente, uma vez que de uma ''·ro e renova em mim um espírito (um apetite) decente(moderado),
coisa feita com arte eles dizem que foi fabricada por mão divina, 'o me afastes do teu olhar nem tires de mim a ideia da tua santidade.
o que, se quiséssemos traduzir para hebraico, deveria dizer-se, :como acreditavam que a única fonte dos pecados era a carne,
como muito bem sabem os hebraizantes, fabricadapela mão de Deus. quanto a mente só aconselhava o bem, o salmista invoca o
Com estes elementos, podem facilmente entender-se e expli- auxílio de Deus contra o apetite carnal, ao passo que para a
car-se as passagens da Escritura em que se menciona o espírito : mente, que Deus santo lhe deu, só pede que lha conserve . Ora,
de Deus. De facto, o espírito de Deus, o espírito de Jeová,em algu- assim como a Escritura costuma pintar Deus à semelhança do
mas dessas passagens, não significa outra coisa que um vento homem e, dada a ignorância do vulgo, atribuir-lhe mente, âni -
fortíssimo, extremamente seco e funesto, como em Isaías, cap. XL, .,-mo, afectos, até mesmo um corpo e um hálito, assim também
7: o vento de Jeovásoprousobre ele, isto é, vento extremamente seco ;-utiliza muitas vezes espírito de Deus por mente, quer dizer, por
e funesto. E no Génesis, cap. 1, 2: e o vento de Deus (ou vento ânimo, afecto, força e hálito da boca de Deus . Assim, Isaías, no
fortíssimo) movia-se sobre a água. A mesma expressão significa .cap. XL, 13, diz : quem dispôs o espírito de Deus (ou a mente)? Quer
ainda grande ânimo. Assim, o ânimo de Gedeão e o de Sansão dizer, quem, a não ser o próprio Deus, determinou que a mente
designam-se, nos textos sagrados, espírito de Deus, isto é, ânimo , divina quisesse algo? E no cap. LXIII, 10: e encheramde amargurae
cheio de audácia e pronto para tudo. Da mesma maneira, chama- , de tristeza o espírito da sua santidade. É por isso que espírito de
-se espírito ou virtude de Deus a toda a virtude ou força acima Deus se costuma traduzir por lei de Moisés, dado que, de al-

142 143
1 1
,1
,1'1 l26J gum modo , esta exprime a mente de Deus, conforme diz o pró- (desde a primeira vez que vim junto de vós para pregar a cólera
,;J prio Isaías, no mesmo capítulo, vers. 11: onde está (o) que pôs no de Deus e a sentença por ele proferida contra vós) jamaisfalei às
1 ,:,

:· meio deles o espírito da sua santidade (?), isto é, a lei de Moisés, escondidas,desde que ela foi (proferida) eu compareci(como confir-
lr
1
i,1j; como resulta de todo o contexto da frase. E em Nehemias,cap. IX, mou no cap. vn), mas agora sou um mensageiro da alegria envia-
20: deste-lheso espírito, a tua mente boa, para os tornares inteligentes. do pela misericórdia de Deus para cantar a vossa restauração.
f ~'i Fala, com efeito, do tempo da lei, a que também alude aquela Pode, também, como eu disse, entender-se por mente de Deus
passagem do Deut., cap. IV, 6, ~mde Moisés diz: porqut:ela (a lei) revelada na lei, quer dizer, que ele agora os vem avisar tam-
é a vossa ciência é a vossa prudência, etc.· O mesmo se passa no bém por determinação da lei (Levítico, cap . XIX, 17). Por isso ele
salmo CXLm, 10: a tua mente boa cond~tzir-me~á -pela pla.nície, isto é, os adverte nas mesmas condições e do mesmo modo que Moisés
a tua mente, que nos foi revelada, conduzir-me-á peló _reêto costumava fazer. E termina predizendo-lhes a restauração, como
caminho. · também fez Moisés. Contudo, a primeira explicação parece-me
l;i Mas espírito de Deus, como dissemos, significa também háiito mais ajustada.
de Deus, que a Escritura, à semelhança do que faz com a mente, Dito isto, para voltar, finalmente, ao que nos interessa, fi-
o ânimo e o corpo, impropriamente atribui a Deus, como acon- cam claras estas frases da Escritura: o profeta teve o espírito de
tece no salmo xxxm, 6; significa ainda a potência, a força ou Deus, Deus infunde o seu espíritonos homens, os homensestãorepletos
virtude de Deus, como em Job, cap. xxx111, 4: o espírito de Deus do espírito de Deus e do espírito santo, etc. Na verdade, elas signi-
fez-me, quer dizer, a sua virtude, a sua potência ou, se quiser- ficam apenas que os profetas eram dotados .. de uma virtude
mos, o seu decreto. E o salmista, falando poeticamente, diz ainda singular e acima do comum e cultivavam a piedade com exímia
que por ordem de Deus foram feitos os céus e pelo espírito ou perseverança. Depois, percebiam a mente e a intenção de Deus.
sopro da sua boca (isto é, pelo seu decreto, pronunciado como Demonstrámos, com efeito, que espírito em hebraico tanto pode
que só por um sopro) se criou todo o seu exército. O mesmo significar a mente como a intenção e que, por tal motivo, a pró-
acontece no salmo cxxx1x,7: aonde irei (que esteja) fora do teu pria lei, na medida em que exprimia a mente de Deus, era de-
espírito, ou para onde fugirei (que fique) fora do teu alcance, quer signada por mente ou espírito de Deus. Por idêntico motivo, a
dizer, como é evidente pelas passagens em que o próprio sal- imaginação dos profetas podia designar-se por mente de Deus,
mista desenvolve depois esta ideia, aonde posso eu ir que es- uma vez que por ela eram revelados os decretos divinos, e po-
cape à tua potência e à tua presença? dia dizer-se que os profetas tinham a mente de Deus. E embora
Finalmente, espírito de Deus emprega-se nas Escrituras para a mente de Deus e os seus eternos juízos estejam igualmente
exprimir os afectos do ânimo divino, a sua bondade e misericór- inscritos na nossa mente e, por conseguinte, também nós com-
dia, como em Miqueias, cap. II, 7: acasodiminuiu o espírito de Deus preendamos (para falar como a Escritura) a mente de Deus, no
(quer dizer, a sua misericórdia)? São estas (desventuras) as suas entanto, como o conhecimento natural é comum a todos, já não
obras? Igualmente em Zacarias,cap. IV, 6: não por meio de um exér- possui, conforme dissemos, o mesmo valor aos olhos dos ho-
cito, nem pela força, mas apenas pelo meu espírito, ou seja, apenas
pela minha misericórdia. É neste sentido que penso dever enten-
der-se também o vers . 12 do cap. v11do mesmo profeta: e endu-
• Anotação Ili. Embora alguns homens possuam certos dons que a natu -
receramo seu coraçãocomo um rochedo,para não obedeceremà lei e aos reza recusa aos outros, não se diz, contudo, que eles excedem a natureza hu-
mandamentosque Deus, através dos primeirosprofetas,lhes enviou do mana, a menos que esses dons sejam tais que não possam compreender -se a
,r. seu espírito (isto é, da sua misericórdia). Diz, no mesmo sentido, partir da definição da mesma natureza. Por exemplo, uma altura de gigante é
Ageu, cap. u, 5: o meu espírito (ou a minha graça) permaneceentre rara, mas, apesar disso, é humana. Pouquíssimos são os que conseguem im-
(271 vós, não tenhais medo. Quanto ao que diz Isaías- e agora me en-
provisar poemas e, no entanto, isso é humano [há até quem o faça com a
maior das facilidades]. Ou imaginar certas coisas de olhos abertos com tanta
viou o Senhor Deus e o seu espírito (cap. XLVIll, 16) - tanto pode 1
vivacidade como se elas estivessem mesmo na frente . Porém, se existisse al-
entender-se por ânimo e misericórdia de Deus como ainda pela guém que tivesse um outro meio de compreend er e outros fundamentos para
sua mente revelada na lei. Com efeito, ele diz: desde o princípio o conhecimento, esse sim, ultrapassaria os limites da natureza humana.

144 145
mens, em particular do s Hebreus, que se gabavam de serem Ou de Miqueias ver Deu s sentado, enquanto Daniel o vê como
superiores a todos e costumavam ter desprezo por todos e, con- um ancião vestido de bran co e Ezequiel como uma chama; de
sequentemente, pela ciência que a todos é comum . Por último, os discípulos de Cristo terem visto o espírito santo como uma
dizia-se que os profetas tinham o espírito de Deus porque os pomba que des cia e os apóstolos o verem como línguas de fogo;
homens ignoravam as causas do conhecimento profético e, por ou, finalmente, de Paulo, antes da conversão, ter visto uma gran- (291
isso, admiravam-no e atribuíam-no a Deus, como faziam com de luz. Tudo isso está, com efeito, plenamente de acordo com
12s1 qualquer outro prodígio, charp.ando-lhe conhecimento de Deus. as imaginações vulgares sobre Deus e os espíritos.
Pode -se, pofa, afirmar agora sem quaisquer reticências que Por último, e porque a imaginação é vaga e inconstante, a
os profetas não perceberath a revelação divina senão através da profecia não parava muito tempo nos profetas, além de não ser
imaginação, isto é, mediante palavras .ou imagens, as qu~üs ·ora frequente mas extremamente rara, isto é, só se dava em pou-
eram verdadeiras, ora imaginárias. Com efeito, se µªo en~on - quíssimos homens e, mesmo nestes, só muito raramente. Assim
j
tramos na Escritura outros meios além destes, também não nos sendo, temos de ver agora onde é que pôde originar-se a cer-
1
11•;',
"!Jll é lícito, como já mostrámos, estar a inventá-los. No que toca, teza dos profetas a respeito de coisas que percebiam apenas pela
porém, às leis da natureza segundo as quais tal aconteceu, con- . imaginação e não pelos princípios certos da mente . Porém, tudo
fesso que as ignoro. Poderia, evidentemente, dizer, como ou- i: quanto acerca disso se pode dizer tem de ser extraído da Escri-
tros, que aconteceu pela potência de Deus, mas isso teria ar de ; tura, visto não possuirmos , como já disse, uma verdadeira ciên-
conversa fiada. Seria o mesmo que querer explicar a forma de 1:eia de tais assuntos, isto é, não os podermos explicar pelas suas
qualquer coisa singular por um termo transcendental 12 . De fac- • causas primeiras . Mostrarei no próximo capítulo o que a Escri- .
to, tudo é feito pela potência de Deus e, além disso, como a · tura ensina sobre a certeza dos profetas, uma vez que é deles
potência da natureza ·não é senão a própria potência de Deus, tratar.
nós não compreenderemos esta enquanto ignorarmos as causas
naturais. É, portanto, insensato recorrer a ela quando ignora-
mos a causa natural de qualquer coisa, que o mesmo é dizer, a
própria potência de Deus. Verdadeiramente, nem sequer é pre-
ciso saber agora qual a causa do conhecimento profético, uma
vez que tentamos aqui analisar, como já observei, apenas os
ensinamentos das Escrituras, para deles extrairmos, como se se
tratasse de dados naturais, as nossas conclusões. Quanto às cau-
sas de tais ensinamentos, essas não nos interessam 13•
Tendo, portanto, os profetas percebido por meio da imagi-
nação o que Deus lhes revelou, não restam dúvidas de que eles
poderiam ter percebido muitas coisas que excedem os limites
do entendimento, pois com palavras e imagens se podem com-
por muitas mais ideias do que só com os princípios e as noções
em que se baseia todo o nosso conhecimento natural 14 .
É, além disso, evidente a razão por que os profetas percebe-
ram e ensinaram quase tudo por parábolas e enigmas e exprimi-
ram sob forma corpórea tudo o que é espiritual : é que, assim,
as coisas adequam-se melhor à natureza da imaginação. E já não
é para admirar o facto de as Escrituras ou os profetas falarem
tão imprópria e obscuramente do espírito ou da mente de Deus,
como nos Números, cap. XI, 17, nos Reis, liv . I, cap. xxu, 2, etc.

146 147
CAPITULO II [29]

DOS PROFETAS

Do capítulo anterior, como já referimos, resulta que os pro-


fetas não foram dotados de uma mente mais perfeita mas sim
de uma potência de imaginar mais viva, conforme as narrativas
da Escritura abundantemente ensinam. Consta, com efeito, que
Salomão era superior aos outros pela sabedoria e não por um
dom profético. Da mesma forma, homens de grande prudência, ·
como Heman, Darda, Kalchol, não foram profetas, e homens
rústicos e alheios a qualquer ciência, ou até mulherzinhas corno
Agar, serva de Abraão, receberam, pelo contrário, o dom pro-
fético. O que está, aliás, de acordo com a experiência e a razão:
os que sobressaem pela imaginação são menos aptos para com-
preender as coisas de maneira puramente intelectual; em con-
trapartida, os que sobressaem mais pelo intelecto e o cultivam
superiormente possuem uma potência de imaginar mais tempe-
rada, mais regrada e como que a refreiam; ainda assim não se
misture com o intelecto. Estão, ·portanto, no caminho errado
aqueles que procuram a sabedoria e o conhecimento, quer das
coisas naturais, quer das espirituais, nos livros dos profetas. E é
isso que eu me proponho demonstrar aqui desenvolvidamente,
já que tanto a época, como a filosofia e o próprio argumento do
livro o exigem, pouco me importando que a superstição desate
aos gritos, ela que odeia acima de tudo os que cultivam a ver- [301
<ladeira ciência e a verdadeira vida. Porque as coisas, infeliz-
mente, chegaram a um ponto que homens que confessam aber-
tamente não ter a mínima ideia de Deus nem o conhecer senão
pelas coisas criadas (das quais ignoram as causas) não se enver-
gonham de acusar de ateísmo os filósofos.
Indo por partes, mostrarei que as profecias variam em fun-
ção, quer da imaginação e do temperamento de cada profeta,

149
1/
quer das opiniões de que eles estavam imbuídos; mostrarei, além um profeta (isto é, um falso profeta) for induzido em erro e pronun-
disso, que a profecia nunca tornou os profetas mais sábios, con- ciar uma palavra,fui eu, vosso Deus, que enganei esse profeta. E Mi-
forme a seguir explicarei desenvolvidamente. Antes, porém, te- queias (veja-se Reis, liv. 1, cap. xx11,23) exprime a mesma opinião
nho de tratar aqui da certeza dos profetas, já porque ela tem a sobre os profetas de Acab.
ver com o terna deste capítulo, já porque é de alguma utilidade Embora isto pareça mostrar que a profecia e a revelação
para o que pretendemos demonstrar.
eram coisas bastante duvidosas, havia nelas, contudo, e corno
Urna vez que a simples i~aginação não envolve por natu- dissemos, muito de certeza. Deus, efectivamente, nunca engana
reza, como acontece com toda a ideia· dará e distinta, uma cer- os piedosos e os eleitos; pelo contrário, como reza o ditado an-
teza, sendo necessário, para estarmó~ certos -das coisas que ima- tigo (ver Samuel, liv. 1, cap. XXIV, 14), e como se vê pela história
ginamos, acrescentar-lhe algo maís, a saber, o raciocínio; resulta de Abigael e pe la sua oração, Deus serve-se dos piedosos corno
que a profecia não implica em si mesma urna c~rtezél_,.:pois .de- instrumentos da sua piedade e dos ímpios como executores e
pende, como já mostrámos, apenas da imaginação. Daí que os
intermediários da sua cólera. No já citado caso de Miqueias,
profetas não tivessem a cer teza da revelação de Deus através
verifica-se isto mesmo com toda a clareza: apesar de Deus ter
da própria revelação, mas sim através de um qualquer sinal 1,
decidido enganar Acab por meio dos profetas, serviu-se unica-
como aconteceu com Abraão (ver Génesis, cap. xv, 8), que, de-
mente de falsos profetas, revelando a verdade das coisas a um
pois de ouvir a promessa de Deus, rogou um sinal. Decerto ele
que era piedoso, sem o proibir de a predizer. No entanto, tal
acreditava em Deus e não foi, portanto, para ter fé que pediu o
sinal, mas para ter a certeza de que era Deus quem lhe fazia tal corno eu disse, a certeza do profeta era apenas moral, pois nin-
promessa. O mesmo acontece, mais claramente ainda, com Ge- guém pode justificar-se perante Deus nem orgulhar-se de ser o
deão, que se dirige a Deus nestes termos: faz-me um sinal (para instrumento da divina piedade, corno ensina a Escritura e corno
que eu saiba) que és tu que falas comigo Uuízes, cap. v1, 17). Tam- resulta da própria natureza das coisas. Até David, cuja piedade
bém a Moisés Deus diz: que isto (seja) para ti um sinal de que eu te é abundantemen te confirmada na Escritura, é seduzido pela có-
enviei. Ezequias, que desde há muito sabia que Isaías era profe- lera de Deus pa ra fazer o recenseamento do povo 3.
ta, pediu-lhe um sinal da profecia em que este anunciava que Toda a certeza dos profetas se fundamentava, por conse-
ele se havia de curar. Isto mostra que os profetas tinham sem- guinte, nestes três elementos: 1.0 no imaginarem as coisas revela-
pre um qualquer sinal através do qual se certificavam das coisas das de forma extremamente viva, da mesma forma que nós cos-
que profeticarnente imaginavam. Moisés, inclusivamente, adver- tumamos ser afectados pelos objectos durante a vigília; 2.0 no
te-os (Deuteronómio,cap. xvm, último versículo) para que exijam sinal; 3.0 por último, e acima de tudo, no terem o ânimo voltado
do profeta um sinal, isto é, o prenúncio de um acontecimento unicamente para a justiça e o bem. Apesar de a Escritura nem
·11 futuro. Deste ponto de vista, a profecia é, portanto, inferior ao sempre mencionar o sinal, é de crer que os profetas o tiveram
1. conhecimento natural, que não precisa de nenhum sinal urna vez sempre, pois ela não costuma (como já foi observado por mui-
que, pela sua própria natureza, já implica uma certeza. Com efei- tos) descrever todas as condições e circunstâncias, pressupondo,
to, esta certeza profética não era, evidentemente, urna certeza pelo contrário, certas coisas como já conhecidas. Podemos até (321
matemática, mas apenas mora l, conforme consta também da pró- admitir que os profetas que não profetizassem nada de novo,
l3IJ pria Escritura. Moisés (Deut., cap. XIII) avisa que, se algum pro- mas apenas o que estava já contido na Lei de Moisés, não precisa-
feta quiser ensinar novos deuses, deve ser condenado à morte, vam de sinal, uma vez que eram confirmados pela Lei. Por exem-
mesmo que confirme a sua doutrina por meio de sinais e mila- plo: a profecia de Jeremias sobre a devastação de Jerusalém era
gres, pois, corno acrescenta ainda Moisés, Deus também faz sinais confirmada pelas profecias de outros profetas e pelas ameaças
e milagres para tentar o povo 2 . E Cristo fez a mesma advertên- da Lei, não precisando, portanto, de um sinal; mas Ananias,
cia aos discípulos, como se pode ver em Mateus, cap. XXJV, 24. que profetizava, ao contrário de todos os profetas, a restaura-
Também Ezequiel (cap. XVJ, 9) ensina claramente que Deus engana ção da cidade para daí a pouco, tinha necessidade de um sinal,
por vezes os homens com falsas revelações, pois diz: e quando pois, de outra forma, seria obrigado a duvidar da sua profecia

150 1 r;1
até que a ocorrência das coisas por ele preditas a confirmasse mento musical e não conseguiu perceber a mente de Deus en-
(ver Jeremias,cap. xxvm, 9). quanto não se deleitou com a música desse instrumento: só en-
Visto, pois, que a certeza que os profetas obtinham pelos tão predisse a Jeroboão e aos seus companheiros boas notícias,
sinais não era matemática (ou seja, resultante da necessidade da coisa que antes não podia acontecer porque estava irado contra
percepção da coisa percebida ou vista), mas apenas moral, e como o rei. Quem está irado contra alguém é capaz de imaginar ma-
os sinais não se destinavam senão a persuadir o profeta, resulta les a seu respeito, não coisas boas. Mas os que pretendem que
que eles eram dados conforme . as opiniões e a capacidade ele Deus não se revela aos irados e aos tristes estão, de facto, a
cada um, de "ta} maneira que o sinal .que "tornava um profeta sonhar, porque Deus revelou a Moisés, que estava irado contra
certo da sua profecia podia não co1,wencer . minimamente um o Faraó, a terrível matança dos primogénitos (f.xodo,cap. rr, 8), e
outro que estivesse imbuído de .opiniões _diferentes. Por fssp,· os isto sem a ajuda de nenhum instrumento musical. Da mesma for-
sinais variavam consoante o profeta. A própria revelaç_ã~, como ma, Deus revelou-se a Caim quando este estava furioso. A Eze-
~
já dissemos, variava de profeta para profeta; ein função do seu quiel, impaciente de ira, foi revelada a desgraça e a obstinação
temperamento, da sua imaginação e das opiniões que anterior- dos Judeus (Ezequiel,cap. III, 14); Jeremias, acabrunhado e inva-
mente perfilhava. Em função do temperamento, ela variava as- dido por um enorme tédio pela vida, profetizou as calamidades
sim: se o profeta era alegre, revelavam-se-lhe as vitórias, a paz dos Judeus, de tal maneira que Josias não o quis consultar, pre-
e tudo o que é motivo de alegria para os homens, visto as pes- ferindo uma mulher contemporânea dele, que estava, pelo seu
soas com esse temperamento costumarem imaginar com frequên- engenho feminino, mais apta a revelar-lhe a misericórdia de Deus
cia semelhantes coisas; se, pelo contrário, ele era tristonho, re- (Paralipómenos, liv. u, cap. xxxrv). Miqueias, por seu turno, ja-
velavam-se-lhe as guerras, os suplícios e todos os males; em mais profetizou algo de bom para Acab, embora outros, verda-
suma, conforme ele fosse bondoso, afável, irascível, severo, etc., deiros profetas, o tenham feito (como consta do liv. 1 dos Reis,
assim estaria mais apto para estas que para aquelas revelações. cap. xx), e durante toda a sua vida só lhe anunciou males (Reis,
Em função da imaginação também se verificavam diferenças, tais liv. r, cap. XXII, 8, e, de maneira ainda mais clara, Paralipómenos,
como: se o profeta era requintado, requintado era também o liv. rr, cap. XVII, 7). Conforme o seu temperamento, assim os pro-
estilo em que apreendia a mente de Deus; se, pelo contrário, fetas estavam, portanto, mais aptos para estas ou para aquelas
era confuso, apreendia-a confusamente. Outro tanto acontece com revelações.
as revelações por imagens: se o profeta era um rústico, apare- Depois, o estilo da profecia variava segundo a eloquência
ciam-lhe bois e vacas; se era soldado, apareciam-lhe chefes e exér- de cada profeta. As profecias de Ezequiel e de Amós não são
citos; se era, enfim, um homem da corte, o que lhe aparecia era elegantes como as de Isaías e de Naum, e estão escritas num
o trono real e coisas semelhantes. Por último, a profecia variava estilo mais rude. Se alguém que domine a língua hebraica o
conforme a diversidade de opiniões dos profetas: aos Magos quiser verificar com mais atenção, compare os capítulos de vários
(ver Mateus, cap. n), que acreditavam nas frivolidades da astro- profetas que versam o mesmo tema e· notará uma grande discre-
logia, o nascimento de Cristo foi anunciado pela aparição de ' pância no estilo. Compare, por exemplo, o cap. 1 do homem da
1331uma estrela surgida no Oriente; aos áugures de Nabucodonosor corte que é Isaías (do vers. 11 até ao 20) com o cap. v do cam- 1341
i
(ver Ezequiel,cap. XXI, 26) a destruição de Jerusalém foi revelada ponês Amós (do vers. 21 até ao 24). Compare depois a ordem e
! nas vísceras dos animais, revelação que o rei tivera também pelos os argumentos da profecia que Jeremias escreveu (cap. xux) con-
oráculos e pela direcção das setas disparadas para o ar. E aos tra Edom com a ordem e os argumentos de Abdias. Compare
profetas que acreditavam que os homens agem por livre escolha ainda os caps. XL, 19-20, e XLIV, a partir do vers. 8 de Isaías com
e pela própria potência, Deus revelava-se como indiferente e os caps. vrn, 6, e XIII, 2, de Oseias. E assim por diante. Correcta-
desconhecedor das futuras acções humanas. Mas já demonstrare- mente analisados, todos estes exemplos mostram que Deus não
mos tudo isto, ponto por ponto e com base na Escritura. possui nenhum estilo peculiar de falar e que, conforme a erudi-
O primeiro ponto está patente no caso de Eliseu (Reis, liv. n, ção e a capacidade do profeta, assim ele é elegante, lacónico,
cap. m, 15), o qual, para profetizar a Jeroboão, pediu um instru- severo, rude, prolixo e obscuro.

152 153
As representações prof éticas e os sinais hieroglíficos, embo - lugar ond e ainda o pod eriam encontr ar, o que mostra que não
ra significa ssem o mesmo, eram, contudo, diferentes: a glória tinh am entendido correct amente a revelação de Deus .
de Deus abandonando o templo não se apresenta a Isaías da Não é necessário mo strar mai s profusamente esta matéria,
mesma forma que a Ezequiel. Os rabinos, é verdade, preten - pois não há nada que a Escritura explicite com mais clareza qu e
dem que uma e outra representação foram absolutamente idên- o facto de Deus ter concedido a um profeta o dom de profeti-
ticas, não obstante Ezequiel, como rústico que era, ter ficado zar em grau muito mais elevado que a outro . Mostrarei, toda -
extremamente admirado e faze~, por isso, a sua descrição co.rn via, com mais atenção e pormenor, que as profecias ou repre -
todos os pormenores. Mas isto é pura inv·enção , a menos que sentações variavam segundo as opiniões perfilhadas pelos profetas
eles tenham tido uma tradição segu~& sobre .o· assunto, o que eu e que estes tiveram opiniões diferentes, até mesmo opostas, além
,_não acredito. Porque Isaías vê s~rafins _de seis asas e Eze_guíel de preconceitos diversos (falo de coisas meramente especulati-
vê animais de quatro . Isaías vê Deus vestido e senf_a~o n~ vas, pois quanto à probidade e aos bons costumes há que pen-
trono real, Ezequiel vê-o corno uma chama. Ambos o viram, sem sar doutra maneira). De facto, julgo ser esta a questão mais
importante, já que é a partir daí que vou concluir que a profecia
dúvida, mas conforme cada um costumava imaginá-lo.
As representações variavam, além disso, não só pelo modo, nunca fez os profetas mais sáb ios, antes os deixou com as suas
mas também pela nitidez: as de Zacarias, como ele próprio narra, opiniões preconcebidas, razão pela qual não somos obrigados a
eram obscuras de mais para que as pudesse compreender sem dar -lhes crédito em matérias puramente especu lativas.
explicação; porém, as de Daniel, nem mesmo explicadas pude- É, de facto, surpreendente a facilidade com que toda a gente
ram ser entendidas pelo próprio profeta. Não pela dificuldade se persuadiu de que os profetas sabiam tudo quanto o entendi-
do assunto revelado (tratava-se apenas de coisas humanas, não mento humano pode atingir, e como se julga preferível, apesar ·
excedendo, portanto, os limites da humana capacidade a não de certas passagens da Escritura dizerem claramente que eles
ignoravam algumas coisas, confessar que não se entende a Es-
ser por pertencerem ao futuro), mas unicamente porque a ima-
critura nessas passagens a admitir que os profetas ignoraram
ginação de Daniel não tinha a mesma capacidade de profetizar
algo. Ou então, as pessoas esforçam-se por torturar as palavras
quando ele estava acordado e quando sonhava, como se vê pelo
da Escritura a ver se as obrigam a dizer o que, manifestamente,
facto de ter ficado, mal começou a revelação, tão aterrado que
elas não querem dizer. É claro que, se fosse lícito qualquer des-
quase desesperou das suas forças. Foi, portanto, pela debilida-
tes dois processos, ficaria em causa toda a Escritura; debalde
de da sua imaginação e das suas forças que as coisas se lhe
tentaríamos, com efeito, mostrar alguma coisa a partir dela, se
representaram tão obscuras e não as pôde compreender mesmo
fosse lícito colocar passagens que são meridianamente claras entre
depois de explicadas . Convém aqui notar-se que as palavras as obscuras e impenetráveis ou interpretá-las arbitrariamente.
ouvidas por Daniel (mostrámo-lo mais acima) foram só imagi- Por exemplo, não há coisa mais óbvia na Escritura que o facto
nárias ; não admira, pois, estando ele perturbado nesse rnomen- de Josué, e porventura também o autor que escreveu a sua his-
(351 to, que tenha imaginado tão confusa e obscuramente todas aque-
tória, julgarem que o Sol se movia em torno da Terra, que esta,
las palavras que não conseguiu depois entender nada do que por seu turno, estava parada e que o Sol permaneceu imóvel (361
imaginara. Quanto àqueles que dizem que Deus não quis fazer por um instante . Há, todavia, muitos que, por não quererem
l
1
uma revelação clara a Daniel, parece que não leram as palavras admitir que se possa dar qualquer mudança nos céus, explicam
1
do anjo , o qual disse expressamente (cap . x, 14) que vinha para esta passagem de tal maneira que ela não parece dizer nada de
'l fazer compreender a Daniel o que aconteceriaao seu povo nos dias futu -
1 semelhante; outros, que aprenderam a filosofar de forma mais
• ros. As coisas ficaram, portanto, obscuras porque na altura não correcta e sabem que a Terra se move ao passo que o Sol está
havia ninguém com suficientes dotes de imaginação para que parado, ou melhor, não se move à volta da Terra, tentam com
elas lhe pudessem ser reveladas de modo mais claro. Finalmente, todas as suas forças extorquir isto da Escritura, por mais que
os profetas a quem foi revelado que Deus iria arrebatar Elias ela diga abertamente o contrário 4. Realmente, admiro-os. Acaso,
queriam convencer Eliseu de que ele fora levado para um outro pergunto eu, seremos obrigados a acreditar que um soldado

154 155
como Josué dominava a astronomia? E que não pôde ter-lhe do que é humano se lhes deve considerar estranho. Também a
sido revelado um milagre? Ou que a luz do Sol não pôde ter Noé foi revelado, de acordo com a sua compreensão, que Deus
estado mais tempo que de costume no horizonte, sem que Josué destruiria o género humano, pois ele julgava que o mundo não
soubesse a razão disso? Qualquer destas interpretações me pa- era habitado para além da Palestina. Coisas deste género e até
rece, evidentemente, ridícula. Prefiro, portanto, dizer aberta- outras de maior importância podem ter sido, e foram mesmo,
mente que Josué ignorou a verdadeira razão por que se demo- ignoradas pelos profetas sem prejuízo da sua piedade. Efectiva-
rou mais a luz do _dia e que ele. e toda a _m_ultidão que estava.à mente, eles não ensinaram nada de original a respeito dos atri-
sua volta julgavam que o Sol dava _diariamente uma volta em butos· divinos; pelo contrário, sustentaram opiniões sobre Deus
torno da Terra e tinha parado, naquele · dia, por uns instantes, absolutamente vulgares, às quais adaptaram as respectivas reve-
acreditando ser esta a razãó d~ ser daquele q_ia mais :longo, lações, corno mostrarei através de muitos exemplos da Escri-
sem reparar que a excessiva quantidade de gelo qúe, naqu~e tura, a fim de que o leitor veja facilmente que não é tanto pela
momento, havia na atmosfera (ver Josué, cap. x, 11), podia ter excelência e superioridade do engenho que os profetas são lou-
originado uma refracção maior do que era habitual, ou qual- vados e recordados, mas sim pela piedade e constância de ânimo.
quer outro fenómeno semelhante que não investigaremos agora. Adão, o primeiro a quem Deus foi revelado, ignorou que
De igual modo, o sinal de retrogradação da sombra foi re- Deus está em toda a parte e é omnisciente, pois escondeu-se e
velado a Isaías de maneira adequada à sua compreensão, ou tentou desculpar-se do seu pecado perante Deus como se fosse
seja, pela retrogradação do Sol, pois também ele julgava que o perante outro homem. Porque também a ele Deus foi revelado
Sol se move e que a Terra está parada. E nem por sonhos lhe de acordo com a sua compreensão, quer dizer, como alguém
passaram alguma vez pela cabeça os parélios 5• Mas nós pode- que não está em toda a parte e que desconhece, tanto o pecado
mos afirmá-lo sem qualquer escrúpulo, porque o sinal podia efec- de Adão, como o lugar onde este se esconde. De facto, ouviu,
tivamente verificar-se e ser anunciado por Isaías ao Rei, se bem ou pareceu-lhe ouvir, Deus andar pelo jardim a chamá-lo, a per-
que o profeta ignorasse a sua verdadeira causa. O mesmo se guntar-lhe onde estava e, depois, ao vê-lo envergonhado, a que-
pode dizer da obra de Salomão, se, de facto, ela foi revelada rer saber se tinha · comido o fruto da árvore proibida. Adão,
por Deus, isto é, que todas as suas medidas lhe foram revela- por conseguinte, não conhecia nenhum outro atributo de Deus
das de maneira adequada à sua compreensão e às suas opiniões. senão o ter sido ele o autor de todas as coisas.
Com efeito, não sendo nós obrigados a acreditar que Salomão Também a Caim Deus foi revelado de maneira adequada à
li
fi era matemático, é lícito afirmar que ele ignorava a proporção sua compreensão, a saber, como ignorante das coisas humanas;
entre o perímetro e o diâmetro de um círculo, julgando, como nem, de resto, era necessário, para se arrepender do seu peca-
qualquer dos operários, que era de 3 para 1. Porque, se é lícito do, ter um conhecimento mais elevado de Deus. A Labão Deus
dizer que nós não compreendemos aquele texto do liv. I dos revelou-se como o Deus de Abraão, porque ele acreditava que
Reis, cap. VII, 23, muito francamente, não sei o que podemos com- cada nação possuía o seu deus particular (Génesis,cap. XXXI, 29).
preender da Escritura, já que nessa passagem apenas se descreve E mesmo Abraão ignorou que Deus está em toda a parte e co-
a construção numa perspectiva estritamente histórica. E se fosse nhece antecipadamente todas as coisas: com efeito, ao ouvir a
lícito fingir que a Escritura era de outra opinião mas que, por sentença contra os habitantes de Sodoma, pediu a Deus que não [381
(371 qualquer motivo desconhecido, quis descrevê-la assim, isso não a executasse antes de saber se todos seriam merecedores da-
seria senão uma completa inversão de toda a Escritura: quem quele suplício. Talvez- diz ele (Génesis, cap . XVIII, 24) - se encon-
quer que fosse poderia, com igual direito, dizer outro tanto de trem nessa cidade cinquenta justos. Deus, aliás, não lhe foi reve-
todas as passagens e tudo o que de absurdo e mau a malícia lado de outro modo, já que fala assim na imaginação de Abraão:
humana pode escogitar seria licitamente defensável e perpetrá- descereiagora,para ver se actuaramconformea gravidadeda queixa que
vel a coberto da autoridade da Escritura . Pelo contrário, no que me chegou ou, se assim não for, que (o) saiba. Inclusivamente, o
nós defendemos não há nada de ímpio, pois Salomão, Isaías, testemunho divino sobre Abraão (Génesis, cap. xvm, 19) refere
Josué, etc., apesar de profetas, foram contudo homens e nada apenas a sua obediência e os conselhos que dava aos criados

156 157
para que fossem justos e bons, mas não que ele tivesse pensa- 2) e introdu ziu -lhe os gérmene s 6 da naturez a, possuindo, por
mentos sublimes acerca de Deus . isso, o supremo direito e a suprema potência sobre todas as coi-
Tão-pouco Moisés percebeu bem que Deus é omnisciente e sas, e que (ver Deut., cap. x, 14-15) por este seu direito e po-
que todas as acções humanas são dirigidas unicamente pelo seu tência escolheu só para si a nação hebraica e uma determinada
decreto, pois apesar de Deus lhe ter dito (lxodo, cap. m, 18) que região do mundo (Deut., cap. 1v, 19, a cap. xxxu, 8-9), abando-
os Israelitas lhe haviam de obedecer, põe isso em dúvida e re- nando as outras nações e regiões ao cuidado dos outros deuses
plica (txodo, cap. rv, 1): e se eles não acreditam em mim e rJãom_e seus substitutos. Daí a razão por que se lhe chamava Deus de
obedecem?Deus, pot conseguinte, ·também a· ele foi revelado como Israel e Deus de Jerusalém (ver Parai., liv. II, cap. XXXII, 19), en-
indiferente e desconhecedor das fuhitas · acções -humanas. Com quanto aos outros se chamava deuses das restantes nações.
efeito, deu-lhe dois sinais e disse .-(lxodo, cap. 1v, 8): se; po~ µcaso, Era igualmente por este motivo que os Judeus acreditavam
não acreditarem no primeiro sinal, acreditarãoao menos no.último; que aquela região que Deus tinha escolhido para si requeria um
mas se nem sequer neste acreditarem,foma (então) úm póucõ de ágüa culto especial e completamente diferente do culto das outras
do rio, etc. regiões, não podendo sequer ser ali tolerado qualquer culto a
Sem dúvida que, se alguém quiser analisar sem preconceitos outros deuses e próprio de outras regiões. Na verdade, acredi-
as declarações de Moisés, verá claramente que a opinião que ele tavam que aquelas gentes conduzidas pelo rei da Assíria para as
fazia de Deus era que se tratava de um ser que sempre existiu, terras dos Hebreus haviam sido devoradas pelos leões por igno-
existe e existirá. Essa a razão por que o designa pelo nome de rarem o culto dos deuses desta terra (ver Reis, liv . n, cap. xvu,
Jeová,que em hebraico exprime estes três tempos do verbo exis- 25-26, etc.). Por isso, Jacob, na opinião de lbn Ezra 7, quando
tir. Mas, quanto à sua natureza, não ensinou nada a não ser que quis tomar à pátria, disse aos filhos para se prepararem para
ele é misericordioso, benevolente, etc., e, acima de tudo, ciu- um novo culto e abandonarem os deuses estrangeiros, isto é, o
mento, como consta de várias passagens do Pentateuco. Acredi- culto dos deuses daquela terra 8 onde estavam na altura (Géne-
tou e ensinou, além disso, que este ser é de tal modo diferente sis, cap. XXXV, 2-3). De igual modo David, para dizer a Saul que
de todos os outros que seria impossível exprimi-lo pela imagem tinha sido obrigado, em virtude da perseguição dele, a viver
de qualquer coisa visível e que nem sequer pode ser visto, não longe da pátria, diz que o excluíram da herança de Deus e o obri-
tanto porque isso fosse contraditório como por incapacidade garam a prestar culto a outros deuses (Samuel, liv. I, cap . XXVI,
humana. Acreditou que Deus, no que respeita à potência, é sin- 19). Moisés, enfim, acreditou que este ser, ou seja, Deus tinha o
gular e único, concedendo embora que existam seres que (certa- seu domicílio nos céus (Deut., cap. XXXIII, 27), opinião muito fre-
mente por ordem e mandato divino) fazem as vezes dele, isto quente entre os gentios.
é, seres a quem Deus concedeu autoridade, direito e potência Se repararmos agora nas revelações a Moisés, verificamos
para dirigir nações, providenciar e cuidar delas. Ensinou, contu- que elas estavam ajustadas a estas suas opiniões. Na verdade, [40J
[391 do, que este ser a quem eram obrigados a prestar culto era o como ele acreditava que a natureza de Deus estava sujeita aos
Deus soberano e supremo, ou (para usar a expressão dos He- condicionalismos que referimos, a saber, a 'misericórdia, a bene-
breus) o Deus dos deuses. Daí o dizer no cântico do f.xodo volência, etc., Deus revelou-se-lhe de acordo com tal opinião e
(cap. xv, 11): qual de entre os deuses é semelhantea ti, Jeová?E Jetro sob estes atributos (ver txodo, cap. xx1v, 6-7, onde se descreve
(cap. xvm, 11): agora reconheçoque Jeováé maior que todos os deuses, de que modo Deus apareceu a Moisés; e Decálogo,4 e 5). Segui-
ou seja, sou obrigado a concordar com Moisés que Jeová é maior damente, no cap. xxxm, 18, conta ·-se que Moisés pediu a Deus
que todos os deuses e que a sua potência é singular. É, no en- que o deixasse vê-lo; mas como Moisés, como já foi dito, não
tanto, duvidoso que Moisés acreditasse realmente que estes en- tinha qualquer imagem de Deus formada no cérebro, e dado
tes que faziam as vezes de Deus tinham sido por ele criados, que Deus, consoante já mostrei, só se revela aos profetas de
uma vez que, tanto quanto sei, não diz nada sobre a sua criação acordo com a disposição da imaginação deles, não lhe apareceu
e o seu princípio. Além disso, ensinou que este ser fez com que sob nenhuma imagem. E isto aconteceu, note-se, porque repug-
este mundo visível passasse do caos à ordem (ver Génesis,cap. I, nava à imaginação de Moisés, já que outros profetas garantem

158 159
que viram Deus, tais como Isaías, Ezequiel, Daniel, etc. Este o seus preceitos e prom eteu-lhes largos benefícios se acaso os ob-
motivo por que Deus responde a Moisés: não poderás ver a minha servassem. Ensinou-os, portanto, como os pai s costumam ensi-
face. Mas como Moisés acreditava que Deus era visível, isto é, nar os meninos ainda privados do uso da razão. Donde, é certo
que da parte da natureza divina isso não implicaria qualquer que eles ignoravam a excelência da virtude e a verdadeira feli-
contradição (de contrário, não pediria semelhante coisa), Deus cidade. Jonas julgou que fugia do olhar de Deus, o que parece
acrescentou: porque ninguém que me veja viverá. Dá, portanto, uma mostrar que também ele acreditava que Deus confiara o cuidado
razão consentânea com a opinião . de Mqisés . .Não diz que . isso . das terras além da fudeia a outras potências que o substituíam.
implicaria uma contradição na natureza divina, como, na reali- No Antigo Testamento, não há ninguém que tenha falado
dade, implica, mas apenas que hão pode ·acontecer em virtude de Deus de uma maneira mais racional que Salomão, que foi,
da fraqueza humana. De igual inod.o, para revelar a Moisés qúe · pela luz natural, superior a todos os seus contemporâneos. Por
os Israelitas, ao adorarem um bezerr<;>,se tinha.m. to.rnàdó .~eme: isso ele se julgou acima da Lei (visto que esta foi dada apenas
lhantes às outras nações, Deus afirma (cap. xxxm, 2-3) que vai aos que carecem da razão e dos ensinamentos do entendimento
enviar um anjo, isto é, um ser que cuidasse dos Israelitas em natural) e não ligou aos preceitos que diziam respeito ao Rei, os
substituição do ser supremo, pois não quer ·continuar no meio quais eram principalmente três (ver Deut., cap. xvn, 16, 17); pior
deles. Assim, já nada restava a Moisés para se convencer de do que isso, violou-os por completo (embora, aqui, tenha feito
que os Israelitas eram mais amados por Deus que as restantes mal e actuado de forma indigna de um filósofo, pois se entregou
nações, as quais Deus também tinha entregue aos cuidados de à sensualidade) e ensinou que todos os bens da fortuna são coi-
outros entes, ou seja, de anjos 9 , conforme consta do vers. 16 sas vãs para os mortais (ver Eclesiastes),que os homens não pos-
do mesmo capítulo. Finalmente, porque se cria que Deus mo- suem nada de mais valor que o intelecto e que o maior suplício
rava nos céus, Deus era revelado como que a descer do céu com que podem ser punidos é a loucura (Provérbios,cap. XVI, 22).
sobre a montanha, e Moisés, para lhe falar, também subia à mon- Mas voltemos aos profetas, cujas divergências de opinião
tanha, coisa que seria desnecessária se ele pudesse imaginar com nos tínhamos também proposto assinalar. Os rabinos que nos
igual facilidade que Deus está em toda a parte. legaram os livros dos profetas (os que ainda subsistem) acha-
Os Israelitas não conheceram quase nada acerca de Deus, ram as afirmações de Ezequiel tão contraditórias com as de
i embora ele se lhes tenha revelado, como abundantemente de- Moisés (como consta do Tratado do Sabat, cap. 1, fl. 13, p. 2) que
li monstraram, poucos dias depois, ao prestarem as honras e o estiveram quase a decidir não aceitar o livro dele entre os ca-
il
1~ culto que lhe era devido a um bezerro e ao acreditarem serem nónicos. E tê-lo-iam mesmo excluído se um certo Ananias não
deuses como este que os tinham tirado do Egipto. Nem é de se encarregasse de o explicar, coisa que, segundo se diz, conse-
[4IJ crer que homens habituados às superstições dos Egípcios, rudes guiu com enorme esforço e dificuldade (conforme ali se conta).
e alquebrados pela mais miserável escravidão, tenham pensado Como é que o fez? Não se sabe bem. Teria escrito um comentá- [421
algo de são acerca de Deus, ou que Moisés lhes tenha ensinado rio que se perdeu, talvez, ou mudou as palavras e as frases de
mais do que uma norma de vida, não certamente na qualidade Ezequiel (tal foi a audácia!) e rescreveu-as à sua maneira? Fosse
de filósofo, de maneira a que fossem coagidos pela liberdade como fosse, o cap. xvrn, pelo menos, não parece estar de acordo
de ânimo a viver bem, mas na qualidade de legislador, de ma- com o vers. 7 do cap. xxxrv do f.xodo, nem com o vers . 18 do
neira a que o fizessem pelo império da Lei. Por isso, a razão do cap. XXXII de Jeremias,etc.
viver bem 10, isto é, a verdadeira vida, o culto e o amor de Samuel acreditava que Deus, quando tinha decretado algu-
1 Deus, foi para eles mais uma escravidão que uma verdadeira ma coisa, não mais voltava atrás (Samuel, liv. 1, cap. xv, 29),
liberdade, uma graça ou um dom de Deus. De facto, Moisés porquanto diz a Saul, arrependido do seu pecado e querendo
mandou-os amar a Deus e observar a sua Lei de forma a mos- adorar a Deus e pedir-lhe perdão, que Deus não alteraria a sen-
trarem-se reconhecidos pelos benefícios que ele lhes tinha feito tença pronunciada contra ele. A Jeremias, pelo contrário, foi
1
1
(tais como, a libertação do cativeiro do Egipto, etc.); além disso,
aterrorizou-os com ameaças para o caso de transgredirem os
revelado (vide cap . XVII, 8-10) que Deus, apesar de já ter decre-
tado algo de mau ou algo de bom para uma nação, arrepende-

160 161
-se do seu decreto caso os homens, depois de pronunciada tal pormenores da mesma revelação, é totalmente irrelevante para
sentença, mudem para melhor ou para pior . Joel, por seu turno, nós. Sobre isso, acredite, pois, cada um no que lhe parecer mais
ensinou que Deus não se arrepende senão do mal (vide cap. ll, consentâneo com a sua razão.
13, do seu livro). Finalmente, no Génesis, cap. N, 7, consta com Quanto aos argumentos com que Deus demonstra a Job a
toda a clareza que o homem pode vencer as tentações do peca- sua omnipotência, se é rea lmente verdade que eles foram reve-
do e agir bem, pois é o que é dito a Caim, o qual, todavia, lados a Job e que o autor tenta narrar uma história e não (como
conforme consta da própria Escritura e de Josefo, nunca as ven- alguns crêem) ilustrar os seus próprios conceitos, outro tanto se
ceu. O mesmo se pode · concluir · com a· maior evidência d·o capí- deve dizer, ou seja, que eles foram aduzidos de maneira acessí-
tulo de Jeremiasatrás citado, que diz _que Deus se arrepende da vel a Job e para o convencerem apenas a ele, não se tratando,
sentença proferida contra ou a favor dos homens na medida · em portanto, de argumentos universais, aptos a convencer toda a
que estes desejem mudar os se~s costumes e a sua -maneira de gente. Outra coisa não se deve também julgar dos argumentos
viver. Em contrapartida, não há nada que Paüló mais - aberfa- com que Cristo convence os fariseus de contumácia e ignorância
4 ' ' Fii
... ~,i mente ensine que a ideia de que os homens não possuem ne- e exorta os discípulos à verdadeira vida, visto que ele os adap-

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nhum domínio sobre as tentações da carne a não ser por uma
especial vocação e graça de Deus. Veja-se a Epístolaaos Romanos,
cap. IX, a partir do vers. 10, etc., e a maneira como, no cap. m, 5,
e cap. VI, 19, onde atribui a justiça a Deus, ele se corrige dizendo
tou às opiniões e aos princípios de cada um. Quando, por exem-
plo, ele disse aos fariseus (Mateus, cap . xn, 26): e, se Satanás
lançafora Satanás, está dividido contra si mesmo;de que modo subsis-
tiria, então, o seu reino? quis apenas convencer os fariseus com
1 que fala à maneira dos homens e devido à fraqueza da carne. base nos princípios deles, e não ensinar que há demónios ou
1ti um qualquer reino dos demónios. Igualmente, quando diz aos
':i
., Pelo que expusemos, está mais que evidente aquilo que nos
discípulos (Mateus, XVIII, 10): cuidado, não desprezeisuma só destas
tínhamos proposto mostrar, a saber, que Deus adaptou as reve-
t~ crianças, pois eu vos digo que os seus anjos nos céus, etc., quer so-
lações à compreensão e às opiniões dos profetas, que estes po-
diam ignorar, e ignoraram realmente, as coisas que respeitam mente ensinar que não sejam soberbos e não desprezem nin-
só à especulação e não à caridade ou à vida prática e tiveram guém, e não as outras coisas que estão contidas nos seus argu-
opiniões divergentes. É, pois, escusado esperar deles um conhe- ' mentos mas que ele invoca apenas para melhor persuadir os
cimento das coisas naturais e espirituais. Em conclusão, apenas discípulos. O mesmo, enfim, há que dizer absolutamente dos
somos obrigados a acreditar nos profetas quando se trata da- argumentos e dos sinais dos apóstolos. Não é necessário, de
quilo que é a finalidade e a substância da revelação; quanto ao resto, alongar-me aqui sobre esse assunto, porque se fosse a
resto, cada um é livre de acreditar conforme lhe aprouver. PQl' enumerar todas as passagens da Escritura que foram escritas
exemplo: a revelação a Caim ensina-nos apenas que Deus o e~or- unicamente a pensar numa pessoa ou adaptadas à compreensão
(43] tou à verdadeira vida. É aí somente que reside o objectivo e a de alguém, e que são defendidas, não sem graves prejuízos para (441

substância da revelação, e não em ensinar a liberdade da vonta- a filosofia, como se fossem ensinamentos divinos, afastar-me-ia
de ou coisas filosóficas. Por isso, embora a liberdade da vonta- muito da concisão a que me proponho. Aquelas, poucas e de
de esteja nitidamente contida nos termos e nas razões daquela interesse geral, que referi são o bastante . O leitor, se tiver curio-
admoestação, é, todavia, lícito admitirmos o contrário, visto es- sidade, que examine por si as restantes. Na verdade, muito
ses termos e essas razões estarem adaptadas exclusivamente à embora só o que vimos sobre os profetas e a profecia esteja
compreensão de Caim. Do mesmo modo, a revelação de Mi- directamente relacionado com o meu objectivo - separar a filo-
queias pretende apenas ensinar que Deus lhe revelou o verda- sofia da teologia -, contudo, uma vez que abordei esta questão
deiro resultado do combate de Acab contra Aram, pelo que não em termos gerais, será conveniente averiguar ainda se porven-
somos obrigados a acreditar mais do que isso; tudo quanto vem, tura o dom da profecia foi reservado apenas aos Hebreus ou se
para além disso, nesta revelação, ou seja, o que aí é dito sobre ele foi comum a todas as nações, e bem assim o que deve pen-
o verdadeiro e o falso espírito de Deus, sobre o exército celeste sar-se da vocação dos Hebreus. É o que vamos ver no capítulo
que está à direita e à esquerda de Deus, e bem assim os outros seguinte.

162 163
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11
CAPITULO III [441
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DA VOCAÇÃO DOS HEBREUS
' .,. ;:1 E SE O DOM DA PROFECIA TERÁ SIDO
UM PRIVILÉGIO EXCLUSIVAMENTE SEU
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A verdadeira felicidade e beatitude de cada um consiste


unicamente na fruição do bem e não na glória de ser o único a
fruir, enquanto os outros são excluídos; quem, na verdade, se
' ':julga mais feliz porque as coisas lhe correm bem só a si, e não
;r- àos outros, ou porque é mais feliz e mais afortunado que os
'#'"'·' li · outros , ignora a verdadeira felicidade e beatitude 1 . Porque a
l~=i , alegria que assim experimenta, se não é infantil, não resulta de
outra coisa que não seja a inveja e a má vontade. Exemplifican-
:·do: a verdadeira felicidade e beatitude de um homem consiste
: apenas na sabedoria e no conhecimento da verdade e não em
ser mais sábio do que os outros ou no facto de eles não possuí-
rem o verdadeiro conhecimento, pois isto não acrescenta abso-
' lutamente nada à sua sabedoria, que o mesmo é dizer, à sua
verdadeira felicidade. Quem, por conseguinte, se regozija por
· tal facto, regozija-se com o mal dos outros, é invejoso e mau e
,não conhece nem a verdadeira sabedoria nem a tranquilidade
.,1da verdadeira vida. Assim sendo, quando a Escritura, para exor-
. tar os Hebreus a obedecerem à lei, diz que Deus os escolheu de
entre as outras nações (Deut., cap. x, 15), que está perto deles e
não dos outros (Deut., 1v, 4-7), que só a eles ditou leis justas
·· (ibid., 8), que, em suma, só a eles se deu a conhecer, desprezan-
do os outros (ibid., 32), etc., está apenas a falar à compreensão
dos Hebreus, os quais, como vimos no capítulo anterior e como
também testemunha Moisés (Deut., 1x, 6, 7), não conheciam a [451
verdadeira beatitude. Com efeito, eles não teriam sido menos
felizes se Deus tivesse chamado todos igualmente à salvação;
nem Deus lhes teria sido menos propício se tivesse estado tam-

165
lil
11
; iJ1
bém perto dos outro s; n em as leis seriam menos justas, ou eles
seriam menos sábio s, se elas fosse m pr escritas a todo s; n em os
mesmo que di zer que tu do é ordenad o por d ecreto e pelo go-
vern o d e Deus 3 . Segu idamente, visto qu e a potência de toda s
milagre s ev idenciariam menos a potência de Deu s se tive ssem as coisas naturai s não é outr a coisa sen ão a própri a potência de
,,,
,1, sido feitos em atenção tamb ém às outras nações; nem, finalmen- Deu s, pela qu al tudo é produzido e determinado , segue-se que
,,1 te, os Hebreus seriam menos obrigados a prestar culto a Deus todos os bens que o homem - ele próprio parte da natureza -
;jl se ele tivesse prodigalizado todos esses dons a todos por igual. adquire e que lhe são úteis para a conservação do seu ser, as-
Quanto ao que Deus diz a Salo!llão (Reis, liv. r, cap. Ili, 12), que sim como tudo o que a natureza lhe oferece sem ele fazer nada,
,, ninguém no futuro seria tão sábio comºo ·ele, parece tratar-se é-lhe, de facto , oferecido unicamente pela potência divina, quer
' apenas de um modo de falar -para ~aduzir a exímia sabedoria; ela actue por meio da natureza humana, quer por meio de coi-
,1 seja como for, não se pode ·çle· maneira alguma acreditai; que sas exteriores a esta. Assim sendo, podemos chamar auxílio in-
Deus tenha prometido a Salomão, para o fazer mais _f~liz, que terno de Deus a tudo quanto a natureza humana, apenas com a
não concederia a ninguém, depois dele, uma tão grande sabe- . 1 sua própria potência, pode fazer para conservar o seu ser, e
li! doria, uma vez que isso não acrescentaria nada à inteligência de auxílio externo a tudo aquilo que resulta em seu benefício a
''.
1
Salomão, nem o prudente Rei agradeceria menos a Deus um tão partir da potência de causas exteriores. Donde se segue tam-
grande benefício se acaso Deus lhe tivesse dito que daria a to- bém facilmente o que deve entender-se por eleição divina . Como,
dos igual sabedoria. efectivamente, ninguém faz nada que não esteja de acordo com
Quando dizemos que Moisés, nas passagens do Pentateuco a ordem predeterminada da natureza, quer dizer, com o gover-
ffi1'
:1 atrás citadas, falou de modo a ser entendido pelos Hebreus, no e o eterno decreto de Deus, resulta que ninguém escolhe
não queremos negar que Deus só a eles prescreveu essas leis do , para si determinada regra de vida, nem faz seja o que for, a
Pentateuco, ou que só a eles tenha falado, ou, enfim, que os não ser por especial vocação de Deus 4, que escolhe este e não
Hebreus não tenham visto coisas tão admiráveis como a nenhu- outros para determinada obra ou para determinada regra de
ma outra nação foi dado ver; o que pretendemos dizer é ape- vida. Finalmente, por fortuna entendo apenas o governo de Deus
nas que Moisés quis, desse modo e, sobretudo, com esses argu- na medida em que dirige as coisas humanas por causas exterio-
mentos, admoestar os Hebreus, adaptando-se à sua mentalidade res e inopinadas.
infantil para melhor os vincular ao culto de Deus. Quisemos, Feitos estes esclarecimentos, voltemos ao nosso tema e veja-
além disso, mostrar que os Hebreus não foram superiores às :mos por que motivo se disse da nação hebraica que ela tinha
outras nações, nem pela sua ciência nem pela sua piedade, mas ; ·sido eleita por Deus de entre as outras nações . Para o mostrar,
por uma outra razão. Quer dizer, os Hebreus (para falar, como procedo corno se segue.
a Escritura, em termos que eles percebam), apesar de terem sido Tudo o que honestamente desejamos tem sobretudo a ver
muitas vezes admoestados, não foram preferidos por Deus aos : com três objectivos : conhecer as coisas pelas suas causas primei-
!'-1
demais para a verdadeira vida nem para altas especulações: foi ; ras; dominar as paixões, ou seja, adquirir o hábito da virtude;
para uma coisa completamente diferente, a qual vou agora expor. enfim, viver em segurança e de boa saúde . Os meios que ser-
Antes de começar, quero ainda explicar em poucas pa lavras ,., vem directamente para se alcançar o primeiro e o segundo des-
o que entendo aqui por governo 2 de Deus, por auxílio ext erno tes objectivos, e que podem considerar-se como causas próxi-
ou interno de Deus, por escolha divina e, finalmente, por fortuna. mas e eficientes, estão contidos na própria natureza humana, de
Por governo de Deus, entendo a ordem fixa e imutável da na- maneira que a sua aquisição depende apenas da nossa potência,
tureza, ou seja, o encadeamento das coisas naturais. Já atrás • ' ou seja, das leis da natureza humana . Por esta razão, é obri -
[461 dissemos, e demonstrámos algures, que as leis universais da gatório reconhecer que tais dons não são específicos de nenhu- [471
natureza, segundo as quais todas as coisas são feitas e determina- ma nação, pois foram sempre comuns a todo o género humano .
das, não são outra coisa senão os eternos decretos de Deus, os A menos que se queira imaginar que a natureza procriou ou -
quais implicam sempre eterna verdade e nec essidade . Dizer, trora diversos géneros de homens! Porém, os meios que servem
portanto, que tudo acontece segundo as leis da natureza é o para viver em segurança e para a conservação do corpo resi -

166 167
~íl!
J,i
J.11 dem sobretudo nas coisas exteriores a nós e, por isso, chamam- foram preferidos aos outros . Tão -pouco o foram no que res-
~·I -se dons da fortuna, porquanto dependem em boa parte do peita à virtude ou à verdadeira vida , pois também nesta maté-

~t
governo das causas exteriores, o qual nós ignoramos. Sob este ria foram iguais às outras gentes e muito poucos foram eleitos .
aspecto, poder-se-á dizer que o insensato é quase tão feliz ou A sua vocação e eleição consiste, pois, só na prosperidade tem-

~~
infeliz como o que é prudente. No entanto, para viver em segu- poral do seu Estado e dos seus haveres. Nem vemos que Deus
,,!.
rança e evitar os ataques de outros homens, ou até das feras, o tenha prometido mais alguma coisa aos Patriarcas* e aos seus
11 governo e a vigilância por parte do homem podem ajudar m_ui- sucessores; pelo contrário, nada na Lei se promete aos Hebreus
i. to. Ora, tanto a razão · como a ·experiência · ensinam que não há em troca da obediência senão a contínua prosperidade do Esta-
) processo mais seguro para ·atingir t~is ·fins do que fundar uma do e os outros bens desta vida, da mesma forma que, pela de-

~~!
sociedade com leis fixas, ocupai' uma determinada regi~o ºdo sobediência e pela ruptura do pacto, se ameaça com a ruína do
~ ,. mundo e congregar as forças de todos para for_IlJ.âr _c~mo gue Estado e com as piores adversidades. O que não admira, pois o
um só corpo, o corpo da sociedade 5• Acontece que, para cons- fim de qualquer sociedade ou Estado (como resulta de tudo
• t,
tituir e manter uma sociedade, se requer um talento e uma vigi- quanto dissemos e como vamos seguidamente mostrar mais em
lância fora do comum. Por isso, a sociedade é tanto mais segura, pormenor) é viver em segurança e em comodidade. Um Estado,
mais estável e menos sujeita aos azares da fortuna 6 quanto mais porém, não pode subsistir sem leis a que todos estejam sujeitos;
sensato e vigilante for quem a funda e quem a governa; pelo porque se todos os membros de uma sociedade quiserem pres-
contrário, quanto mais ela é formada por homens rudes, mais ' cindir das leis, acto contínuo dissolvem a sociedade e destroem
ela está à mercê da fortuna e menos ela é estável. Se, mesmo o Estado. À sociedade dos Hebreus, por conseguinte, não po-
assim, subsistir por muito tempo, será devido, não ao seu pró- dia ter sido prometida outra coisa pela constante observância
prio governo, mas a um governo alheio. E se superar grandes das leis senão a segurança e as comodidades da vida **; em con-
perigos e as coisas lhe correrem de feição, não pode senão trapartida, pela desobediência, nenhum castigo lhe podia ser
maravilhar-se com o governo de Deus e adorá-lo (isto é, adorar anunciado com maior certeza do que a ruína do Estado e os
a Deus na medida em que ele age mediante causas exteriores males que em regra daí advêm, bem como os outros que a ruína
desconhecidas e não pela natureza e a mente do homem), visto específica do seu Estado implicaria. Mas quanto a estes não é
que só lhe acontecem coisas absolutamente inesperadas e im- necessário, por agora, alongar-me mais. Acrescentarei apenas isto:
pensáveis, que podem, realmente, ser tidas por milagre. as leis do Antigo Testamento não foram reveladas e prescritas
As nações, por conseguinte, só se distinguem urnas das ou- ' senão aos Judeus. Com efeito, uma vez que Deus os escolheu só

í tras pela organização social e pelas leis sob as quais vivem e


pelas quais são governadas; assim, a nação hebraica foi escolhi-
da por Deus, não pela sua inteligência ou serenidade, mas sim
pela organização social e pela fortuna que lhe propiciou um Es-
a eles para constituir uma sociedade singular e um Estado, for-
çosamente eles tinham também de possuir leis singulares.
Quanto às outras nações, não é seguro se Deus também lhes
prescreveu leis peculiares e se revelou por profecias aos seus
tado e lho conservou por tantos anos. Isto consta com toda a legisladores, isto é, sob aqueles atributos com que os profetas o
clareza da própria Escritura: se a folhearmos, mesmo ao de leve, costumavam imaginar. Mas, pelo menos, consta da própria Es-
ver-se-á claramente que os Hebreus só são superiores às outras critura que houve outras nações que, seguindo o governo exter-
nações pela f?~ma feliz corno geriram os seus assunt~s _no _res- no de Deus, tiveram também um Estado e leis peculiares. Para
peitan!~ ~ s~g~_ra.~~ __de vid~!....~uperando assim enorlll~~_peri-
gos, tudo graças unicamente ao auxílio externo de Deus; mas
l48J ·quanto ao -resto~ fÕrãm -iguais aos outros e Deus foi igualmente • Anotação IV. Conta-se, no cap . xv do Génesis, que Deus disse a Abraão
propício a todos. Com efeito, no que toca à inteligência, é óbvio que seria o seu defensor e lhe daria uma ampla remuneração; ao que Abraão
(corno mostrámos no capítulo anterior) que as ideias que eles respondeu que já nada de importante esperava para si, porquanto não tinha
filhos e estava já em idade avançada.
tinham sobre Deus e sobre a natureza eram absolutamente vul- •• Anotação V. Que para a vida eterna não basta observar os mandamen-
gares. Não foi, portanto, no que respeita à inteligência que eles tos do Antigo Testamento, é evidente pelo que lemos em Marcos, cap. x, 21.

168 169
o demonstrar, citarei só duas passagens : no Génesis, cap. xrv, 18, virtude, isto é, à felicidade, como já dissemos e mostrámos pela
19, 20, conta-se que Melquisedeque foi rei de Jerusalém e pontí- própria razão, Deus é de igual modo propício a todos, como
(491 fice do Deus altíssimo, que abençoou Abraão como competia ao também está bastante explícito na Escritura. Diz, efectivamente,
pontífice e, por último, que Abraão, o dilecto de Deus, lhe deu o salmista (salmo CXLV, 18): Deus está próximo de todos aquelesque
a décima parte de todos os seus bens. Tudo isto demonstra que o chamam, de todos os que verdadeiramenteo chamam.E, ainda no
Deus, ainda antes de fundar a nação israelita, já havia estabele- mesmo salmo, no vers. 9: Deus é benigno para todos e a sua mi-
cido reis e pontífices, em Jerusalém, e lhes prescrevera . rituais e sericórdia (é) sobre todas as coisas que ele fez. No salmo XXXIII, 15,
leis. Se o fez atr-avés-de profécias, quanto a isso, não há, como diz-se claramente que Deus deu a todos a mesma inteligência,
já disse, dados suficientes. ,Mas est01:1persuadido de que Abraão, nos seguintes termos: aquele que forma do mesmo modo o coração
pelo menos enquanto aí viveu, · viveu religiosamente .segundo deles. O coração era, de facto, tido pelos Hebreus como a sede
essas leis, pois Deus não lhe recomendou qualquer r-ito especial da alma e da inteligência, conforme julgo ser do conhecimento
e, todavia, diz-se no Génesis, cap. XXV[, s,·que .ele õoservõu o de todos 8• Consta, além disso, do cap. xxvm, 28, de Job, que
culto, os preceitos, as instituições e as leis de Deus, pelo que é Deus prescreveu a todo o género humano 9 esta lei que manda
forçoso admitirmos que esse culto, preceitos, instituições e leis adorá-lo e abster-se de más acções, isto é, fazer o bem, e é por
eram os do rei Melquisedeque. Malaquias (cap. 1, 10, 11) faz, isso que Job, sendo embora um gentio, foi de todos o mais
por seu turno, a seguinte interpelação aos Judeus: quem de entre aceite por Deus, pois a todos excedeu em piedade e religio-
vós fechará as portas (do templo) para que não seja em vão que se sidade. Por último, no cap . w, 2, de Jonas, vê-se claramente que
acende o Jogo no meu altar? A minha felicidadenão está em vós, etc., · não é só para com os Judeus, é para com todos que Deus é
porque desde o nascer até ao pôr-do-sol,o meu nome é grande entre as propício, misericordioso, magnânimo, cheio de benevolência e
Ílli,:
JI, naçõese em toda a parte me oferecemperfume e ablaçõespuras; pois o pesaroso do mal. Diz, efectivamente, Jonas: já tinha decididofugir
meu nome é grande entre as nações,diz o deus dos exércitos.Ora, uma . de Tarso, pois sabia (pelas palavras de Moisés, lxodo, cap. XXXN, 6)
vez que tais palavras não podem interpretar-se, a não ser força- que tu és um Deus propício,misericordioso,etc., e por isso perdoa-
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damente, noutro tempo que não seja o presente, está mais que
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,ria aos Ninivitas, que eram pagãos.
provado que os Judeus, àquela altura, não eram preferidos por
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Deus às outras nações; que, inclusivamente, Deus se dava a co-
i Conclui-se, pois (urna vez que Deus é igualmente propício
para todos e que os Hebreus não foram escolhidos por Deus
1, , ·
nhecer com mais milagres a estas do que aos Judeus, os quais, .senão no que diz respeito à sociedade e ao Estado), que um
sem milagres, tinham então reconquistado em parte o seu Estado; ;judeu, considerado isoladamente e à margem da sociedade e do
'111! e, finalmente, que as nações tinham ritos e cerimónias que as ~ Estado, não possui qualquer dom divino a mais do que os ou-
.li tomavam aceites por Deus. r.tros, nem existe qualquer diferença entre ele e um pagão. Donde,
1
Deixo, porém, esta questão, visto que para o meu propósito · se é verdade que Deus a todos é igualmente propício, benigno,
fiil era suficiente mostrar que a eleição dos Judeus não tinha a ver etc., e que a função dos profetas não foi tanto ensinar as leis
senão com a liberdade e a felicidade temporal, quer dizer, com específicas da pátria corno ensinar a verdadeira virtude e ins-
'1·
ílr o Estado, com o modo e os meios através dos quais eles o con- truir nela os homens, é evidente que todas as nações tiveram
seguiram, e bem assim com as leis, na medida em que eram profetas e que o dom da profecia não foi privilégio exclusivo
1'
necessárias para a estabilidade desse Estado particular, e com a dos Judeus. É o que diz também a história, tanto a profana,
i
; maneira, enfim, como estas foram reveladas. Quanto às outras como a sagrada. Naturalmente, as narrativas sagradas do Anti-
1, coisas, aquelas em que consiste a verdadeira felicidade do ho- go Testamento não referem que outras nações tivessem tantos [511
mem, eles foram iguais aos outros. Assim, quando se diz na ,profetas como os Hebreus, ou até que algum profeta gentio te-
[50J Escritura (Deut., cap. N, 7) que nenhuma nação tem deuses tão , nha sido expressamente enviado por Deus às nações, mas isso
perto de si como Deus está dos Judeus, há que entender que ·, 'não tem qualquer importância, visto que os Hebreus procura-
isto se refere apenas ao Estado 7 e àquele tempo em que lhes vam narrar unicamente a sua própria história e não a das outras
aconteceram tantos milagres, etc. No que toca à inteligência e à nações. Basta o facto de encontrarmos no Antigo Testamento

170 171
homens pagãos e não circuncidados, tais como Noé, Henoc, olhos abertos.Finalmente, depois de ter por ordem de Deus aben-
Abimeleque, Balaão, etc., que profetizaram, e de os profetas çoado os Hebreus, como costumava, começou a profetizar para
hebreus terem sido enviados a muitas outras nações que não os outros povos e a predizer o seu futuro . Tudo isto mostra
apenas a sua. Ezequiel profetizou a todas as nações conhecidas que ele sempre foi profeta ou, pelo menos, que profetizou mui-
do seu tempo; Obadias não foi adivinho senão para os Idumeus, tas vezes e que (note-se ainda) possuía aquilo que, acima de
e Jonas sobretudo para os Ninivitas. Isaías não anuncia e chora tudo, dava aos profetas a certeza da verdade da profecia: um
as desgraças nem canta a restauração só dos Judeus, mas tam- ânimo voltado exclusivamente para a justiça e para o bem. Com
bém de outros povos. Diz, eféctivamente,- no cap. xv1, 9: por· isso efeito, ele não abençoava ou amaldiçoava quem queria, como
chorareisobreJazer;e, no cap_.XJX, pr:ofetiza _primeiro as desgraças julgava Balac, mas só aqueles a quem Deus queria abençoar ou
do Egipto e depois a sua i;estauração (vide, no mesmo.- capítulo, amaldiçoar. Por isso responde a Balac: ainda que Balac me desse
vers. 19, 20, 21, 25), ou seja, que Deus · lhes enviará um sâlvador tanto ouro e prata que chegassepara encher a sua casa, não poderia
que os libertará, que Deus se lhes dará a conheéer e,· finalm~nte, · l transgredir o veredicto de Deus para fazer o bem ou o mal à minha
que os Egípcios prestarão culto a Deus com sacrifícios e oferen- vontade; o que Deus disser, eu o direi. Quanto ao facto de Deus se
das, razão por que chama a esta nação o povo egípcio abençoado ter irado contra ele durante a viagem, isso aconteceu também a
por Deus, tudo coisas que são, realmente, dignas de nota. Jere- Moisés, quando ia, mandado por Deus, ao Egipto (fxodo, cap. rv,
mias, enfim, é considerado profeta, não apenas do povo hebreu, 24); quanto a receber dinheiro por profetizar, Samuel fazia o
mas de todos os povos (ver Jeremias,cap. 1, 5), pois chora tam- lmesmo (ver Samuel, liv. 1, cap. IX, 7, 8); e se pecou em alguma
bém quando anuncia as desgraças das nações e prediz a sua coisa (sobre isto, ver Pedro, Epístola II, cap. 11, 15, 16, e Judas,
restauração. Diz, efectivamente (cap. XLVIII, 31), o profeta, refe- ), ninguém é tão justo que aja semprebem e nunca peque(ver Ecles.,
rindo-se aos Moabitas: por isso lamentarei por Moab, gritarei por :ap. v11, 20). E, com certeza, as suas orações devem ter sido
toda a Moab, etc.; e no vers. 36, por isso o meu coraçãorufará como mpre de alto valor aos olhos de Deus e o seu poder de amaldi-
tamborespor causade Moab; por fim, anuncia a sua restauração, tal r enorme, já que tantas vezes na Escritura, para testemunhar
como a dos Egípcios, a dos Amonitas e a dos Elamitas. É, por- ;' grande misericórdia de Deus para com os Israelitas, sé observa
tanto, evidente que os outros povos tiveram também, como os ue Deus não quis atender a Balaão e converteu em bênção a
Judeus, os seus profetas e que estes profetizaram, tanto para ldição (Deut., XXIII, 6; Josué, xx1v, 10; Nehem.ias, xm, 2). Tinha,
eles como para os próprios Judeus. r conseguinte, grande aceitação junto de Deus, pois as ora-
Embora a Escritura mencione apenas Balaão, a quem foi re- -s dos ímpios, tal como as suas maldições, em nada afectam (531
velado o futuro dos Judeus e das outras nações, não é de crer, 1 us. E, se este homem, sendo um verdadeiro profeta, é, toda-
contudo, que Balaão tenha profetizado só nessa ocasião; de resto, ' designado por Josué como adivinho ou áugure (cap. xm, 22),
essa mesma narrativa refere que ele se distinguira, desde há claro que este nome era também utilizado no bom sentido e
muito, pela profecia e por outros dons divinos. Na realidade, e aqueles a quem os gentios costumavam chamar áugures e
quando o manda vir junto de si, Balac afirma (Números, cap. xxrr, ,divinhos eram verdadeiros profetas, ao passo que aqueles a
1521 6): porque eu sei que aquele a quem abençoaresserá bendito e aquele a uem a Escritura muitas vezes acusa e condena eram falsos adi-
quem amaldiçoaresserá maldito. Ele possuía, portanto, aquela mes- os que enganavam os pagãos como os falsos profetas enga-
ma virtude que Deus concedeu (Génesis, cap. xn, 3) a Abraão. .vam os Judeus, conforme também consta de outras passagens
Além disso, Balaão, como alguém habituado às profecias, res- Escritura. A conclusão, portanto, é que o dom da profecia
ponde aos que lhe foram enviados que terão de esperar até que o foi exclusivo dos Hebreus, mas comum a todas as nações.
a vontade de Deus se lhe revele. E quando profetizava, isto é, ' ,;'' Porém, os fariseus sustentam acerrimamente o contrário, a
quando interpretava o verdadeiro pensamento de Deus, costu- r, que este dom divino foi exclusivo da sua nação, ao passo
mava dizer a respeito de si o seguinte: palavradaqueleque ouve as ,e as outras adivinhariam os acontecimentos futuros por não sei
palavrasde Deus e conhecea ciência (ou a mente e a presciência) do .evirtude diabólica (as coisas que inventa a superstição!). A prin-
Altíssimo, que vê a visão do Omnipotente, que cai por terra mas de pal citação que eles vão buscar ao Antigo Testamento para
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t j, 172 173
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confirmar, pela autoridad e deste, a sua opin ião é aquel a pÍssa - J
nos caps. m, 9, e 1v, 15, diz que tod os, ou seja, Jude\fs gen tios,
gem do P.xodo, xxxur, 16, ond e Moisés diz a Deu s: de que modo se est ão igua lment e sujeitos ao peca do , mas qu e não hf p ecado
reconhecerá que eu e o teu povo achámos graça diante dos teus olhos? sem m an damento e sem lei. Por aqui se vê , com toda · a evidên -
Certamente quandofores connosco e eu e o teu povoformos separados de cia, qu e a lei foi rev elad a a todo s sem di stinção (cortforme já
todos os povos que existem à superfí.cie da terra. Como dis se, é daqui tính amos mostrado pelo cap . xxvu1, 28, de Job) e que t~dos viv e-
que eles pretendem inferir que Moisés pediu a Deus que pre s- ram sob o seu domínio , ou seja, sob o domínio da lei que con-
tasse assistência aos Judeus, que se lhes revelasse prof _etica~en- cerne unicamente a verdadeira virtude e n ão daquela que é es-
te e que não concedesse esta graça a nenhuma outra nação. Mas tabelecida em função da constituição de cada Estado particular
é claro que seria ridículo . Moisés · i,nvejar a_.assistência de Deus e se adapta à índole de apenas uma nação . Paulo conclui, por
aos gentios ou atrever-se . a .pedfr a Deus semelharHe ·coisa . fim, qu e, sendo Deu s o Deus de todas as nações, quer dizer,
O que acontece é que Moisés , ·conhecendo o carácter e Õ ârúmo _ igualm ente propício a toda s elas, e uma vez que toda s estavam
insubmisso da sua nação, vê com toda a clareza qüe só ·com , de igual modo submetidas à lei e ao pecado, a todas Deus en-
grandes milagres e com o especial auxílio externo de Deus é viou o seu Cristo para que as libertasse da servidão d a lei e
que eles poderiam levar a bom termo a obra iniciada . Sem este para que não mais fizessem o bem por imperativo da lei mas
auxílio, pereceriam irremediavelmente. E assim, para que ficasse por inquebrantável decreto da vontade. Paulo ensina, pois, exac-
claro que Deus queria defendê -los, Moisés pediu a Deus esse tamente aquilo que nós pretendemos. Daí que, quando ele diz
auxílio externo singular . Diz, com efeito, no cap . XXXN, 9: se achei que só aos Judeus foram confiadasas palavrasde Deus, seja necessá -
graça a teus olhos, Senhor, rogo-te que o Senhor caminhe no meio de rio entender que só a eles foram confiadas as leis por escrito,
nós, pois este povo é insubmisso, etc. A razão por que pede a Deus enquanto às outras nações o foram por revelação interior; ou
um auxílio externo especial é, pois, porque o povo é insubmis- . então dizer (já que ele tenta rejeitar uma objecção que só os
so. E o que mostra ainda com mais clareza que Moisés não pe- Judeus podiam lançar) que Paulo responde de acordo com a
diu outra · coisa senão esse mesmo auxílio é a própria resposta capacidade de compreensão e as opiniões então aceites pelos
de Deus: eis que estabeleçouma aliança- diz, efectivamente, logo •Judeus. Recorde-se que, para en sinar aquilo que em parte vira e
a seguir, vers. 10 do mesmo capítulo - e farei perante todo o teu em par te ouvira, ele se fazia grego entre os Gregos e judeu entre
l54J povo prodígioscomo nunca foram feitos em toda a terra ou em qualquer .os Judeus.
nação, etc. Donde, Moisés está a tratar aqui unicamente da elei- Falta só responder aos argumentos daqueles que querem
ção dos Hebreus, como eu ,a expliquei, e não pede qualquer ,persuadir-se de que a eleição dos Hebreus não foi transitória e (551
outra coisa a Deus. m função unicamente do Estado, mas sim eterna . Dizem eles
Mas há na Epístola de Paulo aos Romanos um outro texto que Jque os Judeus, após a destruição do Estado, sobreviveram to-
me impressiona ainda mais, e que vem no cap. III, 1, 2, onde ··pos estes anos, como estamos vendo, espalhados por toda a
Paulo parece ensinar algo diferente daquilo que nós estamos a Jparte e separados de todas as nações, coisa que não aconteceu
dizer : qual é, pois - diz ele-, a superioridadedo Judeu? Ou qual é lcom nenhuma outra nação. Dizem ainda que a Sagrada Escritu -
a utilidade da circuncisão? É enorme, seja de que ponto de vista for, e : ra parece ensinar, em muitas passagens, que Deus fez dos Ju-
antes de mais, porque lhe foram confiadas as palavras de Deus. No :;deus os seus eleitos para todo o sempre e, deste modo, tendo
entanto, se repararmos na doutrina que Paulo quer acima de 'embora perdido o Estado, continuam a ser os eleitos de Deus.
tudo ensinar, não encontramos nada que repugne ao que nós \:As passagens que do seu ponto de vista demonstrariam com
,1
diz emos ; pelo contrário, ele ensina o mesmo que nós aqui ensi- toda a clareza esta eleição para toda a eternidade são principal-
li: 10
namos . Na verdade , ele diz no vers . 29 do mesmo capítulo _mente as seguintes:
,i que Deus é Deus dos Judeu s e dos gentios e no cap . n, 25, 26, 1 - Jeremias,cap . XXXI, 36, onde o profeta garante que a se-
1.
acrescenta: se o circuncidado se afasta da lei, a circuncisãoreduzir-se- mente de Israel continuará a ser para todo o sempre o povo de
-á a simples prepúcio; se, pelo contrário, o não circuncidadoobservao ·Deus, comparando os Judeus com a ordem fixa dos céus e da
que a lei manda, o seu prepúcio será tido como circuncisão.Depois, natureza.

174 175
2 - Ezequiel, cap . .xx, 32, etc., onde, ao que parece, se pre- universal 11, como consta igualmente de Sofonias,cap. m, 10, 11,
tende que mesmo que os Judeus queiram deliberadamente aban- não sendo de admitir a este respeito qualquer diferença entre
donar o culto de Deus este os recolherá de todas as regiões por Judeus e gentios, nem havendo, portanto, qualquer outra elei-
onde se dispersaram e os conduzirá ao deserto dos povos, tal ção peculiar a não ser aquela de que já falámos. E se os profe-
como conduziu os seus pais aos desertos do Egipto, e daí, final- tas, a propósito desta eleição que concerne só a verdadeira vir-
mente, depois de os ter apartado dos rebeldes e insubmissos, tude, falaram de muitas coisas, tais como sacrifícios e outras
vai conduzi-los à montanha da sua santidade, onde toda a fa- cerimónias, da reedificação do Templo e da Cidade, etc., foi
mília de Israel "lhe prestará culto. . porque quiseram, de acordo com o que era costume e com a
Há ainda outras passagens, alé~ destas, ,:que costumam ser natureza da profecia, explicar por meio dessas imagens coisas
citadas, especialmente pelos .fariseus, mas penso que responde- espirituais, de modo a indicarem simultaneamente aos Judeus,
rei de forma satisfatória a todas ·elas se ·responder a ~tas âuas, de quem eram profetas, que deviam esperar, no tempo de Ciro,
coisa que farei sem grande dificuldade depois de ter demons- 1a restauração do Estado e do Templo.
trado, com base na própria Escritura, que Deus não elegeu os Hoje em dia, portanto, os Judeus não possuem absoluta-
Hebreus para sempre, mas unicamente nas mesmas condições mente nenhuma razão para se considerarem acima das outras
em que antes elegera os Cananeus, os quais também tiveram, · nações. O facto de terem subsistido, durante tantos anos, dis-
como já explicámos, pontífices que prestavam culto religioso a persos e sem um Estado, não é para admirar, visto que se apar-
Deus e, não obstante, Deus rejeitou-os em virtude da sua luxú- taram de tal modo de todas as nações que atraíram sobre si o
ria, indolência e falso culto. De facto, Moisés (Levítico, cap. XVIII, , ódio de todas elas, não apenas pelos ritos exteriores, que são
27, 28) avisa os Israelitas para que não se conspurquem com diferentes dos das outras nações, mas também pelo sinal da cir-
incestos, como os Cananeus, para que a terra os não vomite ~cisão, que conservam religiosamente 12. A experiência, deres-
como vomitou os povos que habitavam naquela região. E no to, tem ensinado que o ódio das nações contribui imenso para a
Deuteronómio,VIII, 19, 20, ameaça-os mesmo, em palavras absolu- ·coesão dos Judeus. Quando outrora o rei de Espanha os obri-
tamente explícitas, com a ruma total. Diz assim: hoje vos garanto gou a abraçar a religião do reino ou exilarem-se, a maior parte
que haveis de perecerabsolutamente;tal como os povos que Deus faz deles adaptou a religião dos papas . E como foram concedidos
perecerna vossa presença,assim perecereisvós. -~os que se converteram todos os privilégios dos naturais de
Como estas, encontram-se várias outras passagens na Lei Espanha e os consideraram dignos de todas as honras, imediata-
que indicam expressamente que Deus não tinha escolhido a na- ··mente se integraram, de tal maneira que, pouco tempo depois,
ção hebraica incondicionalmente e para todo o sempre. Assim, não restava deles o mínimo vestígio ou recordação. Porém,
se os profetas lhes anunciaram uma nova e eterna aliança de .àqueles a quem o rei de Portugal obrigou a aceitarem a religião
conhecimento, amor e graça de Deus, não é difícil compreender do seu país aconteceu exactamente o contrário: apesar de conver-
(561 que ela foi prometida só aos piedosos. Com efeito, no mesmo 'tidos, continuaram a viver separados dos outros, uma vez que
capítulo de Ezequiel que há pouco citámos, diz-se expressamente lhes tinham sido vetados todos os cargos honoríficos 13• (571

que Deus apartará do meio deles os rebeldes e os insubmissos Quanto ao sinal da circuncisão, considero-o também tão
'!' e, em Sofonias, cap. Ili, 12, 13, que Deus destruirá os soberbos e importante a este respeito que estou persuadido de que, só por
deixará incólumes os pobres. Dado, pois, que esta eleição diz si, ele chegaria para manter para sempre unida esta nação. In-
respeito à verdadeira virtude, não é de supor que ela tenha clusive, se os fundamentos da sua religião lhes não enfraqueces-
,1
1
sido prometida apenas aos homens piedosos de entre os Judeus . sem o ânimo, estaria absolutamente convencido de que, um dia,
,;
e excluísse todos os outros; o que temos é de aceitar plenamen- chegada a ocasião - de tal maneira são instáveis as coisas hu-
te que os verdadeiros profetas pagãos - que todas as nações ,••i ,manas - eles hão-de reconstituir de novo o seu Estado e Deus
tiveram, conforme mostrámos - prometeram também a mesma de novo os há-de eleger . Temos um notável exemplo disto mes-
aliança aos fiéis das suas nações e com ela os consolaram. Don- mo nos Chineses, os quais usam religiosamente na cabeça aque-
de, esta eterna aliança de conhecimento e de amor de Deus é la espécie de rabicho com que se distinguem de todos os outros

176 177
e, deste modo, sobreviveram tantos milénios que superam de
longe em antiguidade todas as demais nações. É verdade que
nem sempre mantiveram o Estado, mas acabaram sempre por
recuperá-lo e vão, sem dúvida, recuperá-lo de novo, assim que
o ânimo dos Tártaros começar a enfraquecer por força da indo-
lência e da vida luxuosa.
Em suma, se alguém insiste que os Judeus, por este 04 aqu~le
motivo, serão os ·eleitos de Deus para sempre, não serei eu a
CAPITIJLO IV [57]
opor-me, desde que fique bem claro _que esta · eleição, transitória
ou eterna, se não refere, n~quilp que tem de peculiar, sénão ·ao DA LEI DIVINA
Estado e aos bens materiais (pois só por isto se pode ·distinguir
uma nação da outra); no que toca, porém, à inteligêncfa.-e à ver-
dadeira virtude, nenhuma nação se distingue de outra nem Deus
escolhe esta de preferência àquela em função de · tais critérios. A palavra «lei», tomada em sentido absoluto, significa aquilo
em conformidade com o qual cada indivíduo, ou todos, ou al-
guns de uma mesma espécie, agem de uma certa e determinada
maneira. A lei depende, ou da necessidade da natureza, ou da
decisão do homem. A lei que depende da necessidade da natu-
íjteza é aq~e_la_que de~iva necessariamente da própri_a_natureza
· bu da defiruçao da cmsa; a que depende de uma decISao huma-
na, e à qual se chamaria com mais propriedade direito, é aquela
..,ue os homens, para viver mais segura e comodamente, ou por
outro motivo qualquer, prescrevem a si mesmos e aos outros .
.Que, por exemplo, todos os corpos, quando encontram outros
mais pequenos, percam tanto movimento quanto o que lhes
·transmitem, é uma lei universal dos corpos que decorre da ne- 1ss1
.cessidade da natureza. De igual modo, que um homem, quando
se lembra de uma coisa, imediatamente se lembre de outra que
lhe é parecida ou de que se tinha apercebido em simultâneo
com a primeira, é ainda uma lei que decorre necessariamente
. da natureza humana . Porém, que os homens cedam ou sejam
obrigados a ceder uma parte do direito que têm por natureza e
se limitem a viver segundo uma certa regra, isso depende da
·.decisão humana. E embora eu sustente sem qualquer reserva
que todas as coisas são determinadas por leis universais da na-
tureza a existir e a agir de uma certa e determinada maneira,
ainda assim, afirmo que estas leis dependem de decisão dos
homens:
1 - Porque o homem, na medida em que é parte da natu-
• reza, constitui uma parte da potência desta; assim, tudo aquilo
que procede da necessidade da natureza humana, isto é, da pró-
pria natureza enquanto a concebemos como determinada pela

178 179
natureza humana, deriva, necessariamente embora , da humana devido porque teme o patíbulo age por imposição alheia e coa-
potência . Daí o poder perfeitamente dizer-se que a fixação des- . gido pelo mal, não podendo dizer-se que seja justo; mas aquele
tas leis depende da decisão do homem, visto ela depender prin- que dá a cada um o que lhe é devido por conhecer a verda-
cipalmente da potência da mente humana, mas de tal modo que '.'deira razão das leis e a sua necessidade age de ânimo constante,
esta, na medida em que percebe as coisas sob o prisma do ver- ~por sua próp r ia decisão e não por decisão de outrem, mere-
dadeiro e do falso, pode conceber-se com toda a clareza sem cendo por isso que lhe chamem justo 2 • Foi o que Paulo, segundo
tais leis, ainda que não o possa sem uma lei necessária, no ~en- creio, quis também ensinar quando disse que os que viviam sub-
tido em que há pouco a definimos. ·ugados pela lei não podiam ser justificados pela lei: a justiça,
2 - Em segundo lugar; eu disse . qt1e estas -leis dependem da com efeito, tal como é vulgarmente definida, é a constante e
decisão do homem porque devemos definir e explicar às coisas perpétua vontade de dar a cada um o que lhe é devido. Igual-
pelas suas causas próximas,e também porque urna . consideração _ - ente Salomão diz nos Provérbios, cap. XXI, 15, que o justo se
universal sobre o destino e o encadeamentó das càusàs não -ser- legra quando chega a hora do julgamento, mas os injustos
ve de nada quando se trata de formar e de ordenar os nossos emem.
pensamentos acerca de coisas particulares. A isto acresce o facto Não sendo, portanto, a lei outra coisa que uma regra de
de ignorarmos completamente a própria coordenação e concate- ida que os homens ·prescrevem a si mesmos ou a outros com
nação das coisas, isto é, de que modo elas estão realmente or- .eterminada finalidade, parece que a devemos distinguir em
denadas e concatenadas, tornando-se, por isso mesmo, preferí- ~umana e divina. Por lei humana, entendo uma regra de vida
vel e até necessário, na prática, considerá-las como possíveis. e serve unicamente para manter a segurança do indivíduo e
Isto, quanto à lei em sentido absoluto. colectividade; por lei divina, entendo uma regra que diz res-
No entanto, corno a palavra «lei» parece aplicar-se rnetafori- ito apenas ao soberano bem, isto é, ao verdadeiro conheci-
carnente às coisas naturais, e visto que, de costume, só se en- _ento e amor de Deus 3 . A razão por que chamo divina uma
tende por lei uma ordem que os homens tanto podem executar lei tem a ver com a natureza do sumo bem, que vou expor
como desrespeitar, até porque ela coarcta a potência humana poucas palavras e tão claramente quanto puder.
dentro de certos limites para lá dos quais esta ainda se estende Dado que o entendimento é a melhor parte do nosso ser,
e, por outro lado, não impõe nada que exceda as suas forças, ma-se evidente que, se queremos realmente procurar o que
convirá defini-la mais especificamente, a saber, corno urna regra 1 .os é útil, devemos acima de tudo esforçar-nos por aperfeiçoar
de vida que o homem prescreve a si mesmo ou aos outros em to quanto possível o entendimento, já que é na sua perfeição
função de algum fim. Dado, porém, que a verdadeira finalidade .. e deve consis _tir o nosso bem supremo. Além disso, como todo
[59J das leis não costuma ser clara senão para um pequeno número, nosso conhecimento, e bem assim a certeza que afasta efecti-
ao passo que a maioria dos homens é praticamente incapaz de a amente todà a dúvida, dependem apenas do conhecimento de
perceber e rege a sua vida por tudo menos pela razão, os legis- us, já porque sem Deus nada pode ser nem ser concebido, já
ladores, para que todos estivessem igualmente coarctados, esta- porque podemos duvidar de tudo enquanto não tivermos de [601
beleceram sabiamente uma outra finalidade bem distinta daque- Deus uma ideia clara e distinta, segue-se que o nosso supremo
la que deriva necessariamente da natureza das leis, prometendo bem e a nossa perfeição dependem exclusivamente do conheci-
l aos que respeitam as leis aquilo de que o vulgo mais gosta e
ameaçando, pelo contrário, os que as violam com aquilo que ele
..Qtento de Deus, etc. Depois, como sem Deus nada pode existir
·Jnem ser concebido, é evidente que tudo o que existe na natu-
mais teme 1. Procuraram assim conter o vulgo, tanto quanto pos- .reza implica e exprime a ideia de Deus na proporção da sua
sível, como um cavalo pelo freio . Por isso é que se considera a essência e da sua perfeição. Por conseguinte, quanto mais co-
lei, antes de mais, uma maneira de viver imposta a alguns ho- ' nhecemos as coisas naturais maior e mais perfeito conhecimento
..
1
mens pelo poder de outros e, consequentemente, diz-se daque- : adquirimos de Deus; ou seja Uá que conhecer o efeito pela causa
les que observam as leis que eles vivem sob a lei e parecem não é outra coisa que conhecer alguma propriedade da causa),
seus escravos. É certo que quem dá a cada um o que lhe é · quanto mais conhecemos as coisas naturais, mais perfeitamente

180 181
conhecemos a essência de Deus (que é causa de todas as coi - nada de mais importante que o entendimento e a mente sã to-
sas). Sendo assim, todo o nosso conhecimento, isto é, o nosso rnarão isto, com certeza, por uma verdade inabalável. Ficou,
bem supremo, não só está dependente do conhecimento de Deus, portanto, explicado em que consiste essencialmente a lei divina,
i corno até consiste absolutamente nele. É o que se pode também bem corno o que são as leis humanas, a saber, todas aquelas
deduzir do facto de a perfeição do homem aumentar ou dimi- que visam um outro fim, excepto se tiverem sido sancionadas
nuir em função da natureza e da perfeição da coisa que ele mais por revelação, uma vez que, a partir deste ponto de vista, as
ama: assim, o mais perfeito e o que mais participa da suprema coisas atribuem-se também, corno já demonstrámos, a Deus: é
felicidade · é, necessatiâmente, áquele que ama acima de tudo o nesse sentido que a lei de Moisés, embora não seja universal e
conhecimento intelectual d~ Deus, ól! seja, qQser absolutamente esteja sobretudo adaptada à maneira de ser e à conservação de
perfeito, e que nele se deleita, mais que em qualquer outra coisa. um determinado povo, pode designar-se por lei de Deus ou lei
O nosso supremo bem e a nossa felicidade resumern'-$e; pois, divina, porquanto acreditamos que ela foi sancionada pela luz
no conhecimento e amor de Deus. Os meios que requer e-ssa profética.
finalidade de todas as acções humanas, isto é, o próprio Deus Se atentarmos agora na natureza da lei divina natural, tal
na medida em que a ideia dele está em nós, podem designar-se corno a explicámos, veremos o seguinte: primeiro, que ela é
por ordens de Deus, urna vez que nos são de alguma forma universal, isto é, comum a todos os homens, uma vez que a
prescritos por ele enquanto existente na nossa mente. Por isso, deduzimos da natureza humana universal; segundo, que não
a regra de vida que concerne essa finalidade chama-se, e muito n:,xige que acreditemos em relatos históricos, quaisquer que eles
bem, lei divina. Quais são, porém, esses meios, qual a regra de i sejam, visto que, se esta lei divina natural se conhece tendo em
vida que essa finalidade impõe? E como deduzir dela os funda- consideração apenas a natureza humana, é evidente que a pode-
mentos da melhor república e as regras de convivência entre os i ~emos conceber tanto em Adão como em qua lquer outro ho-
homens? Tais questões pertencem à ética universal. Aqui, conti- mem, tanto num homem que vive entre os outros homens corno
nuarei a tratar apenas da lei divina em geral 4 • hum homem que leva uma vida solitária. A fé nos relatos histó-
Sendo o amor de Deus a suprema felicidade, a beatitude, o . ricos, por maior que seja o seu grau de certeza, não nos pode
fim último e o objectivo de todas as acções do homem, só se- dar o conhecimento nem, consequentemente, o amor de Deus.
gue a lei divina quem procura amar a Deus, não por temer o .Porque o amor de Deus nasce do seu conhecimento e o conhe-
castigo nem por amor de qualquer outra coisa, sejam prazeres, cimento de Deus deve extrair-se de noções comuns, certas e
fama, etc., mas apenas porque conhece a Deus, ou seja, porque ,nhecidas por si mesmas, estando, portanto, a fé nos relatos
sabe que o conhecimento e o amor de Deus são o bem supre- históricos muito longe de constituir um requisito necessário para
[61J mo. Toda a lei divina se resume, portanto, neste preceito: amar podermos ~lcançar o nosso bem supremo. Contudo, e se bem
a Deus como supremo bem, isto é, e como já dissemos, sem ser que a fé nos relatos históricos não possa proporcionar-nos o
por receio de algum suplício ou castigo, nem por amor de qual- conhecimento e o amor de Deus, não negamos que a sua leitura
quer outra coisa de que desejaríamos gozar. O que a ideia de 1;~ bastante útil em função da vida em sociedade. De facto, quanto [621
Deus prescreve é que Deus é o nosso bem supremo ou, por ' ·mais observarmos e conhecermos as condições e os costumes
outras palavras, que o conhecimento e o amor de Deus são o dos homens (e a melhor forma de os conhecer é através das
11 fim último para o qual devem estar orientadas todas as nossas ~suas acções), mais cautelosamente viveremos entre eles e me-
1
'k acções. O homem carnal, todavia, não pode compreender estas : lhor saberemos adaptar as nossas acções e a nossa vida à sua
1 coisas, que lhe parecem vãs porque tem de Deus um conheci- ''maneira de ser, pelo menos até onde isso for razoável. Em ter-
mento por demais insuficiente e porque não encontra nesse su- ' ' ceiro lugar, vemos que esta lei divina natural não exige cerimó -
t: premo bem nada em que possa tocar, comer ou, enfim, que te-
nha relação com a carne, sua principal fonte de prazer, dado
. nias, isto é, acções que em si mesmas são indiferentes e só por
éonvenção se consideram boas, ou que simbolizam um bem ne-
11
que um tal bem é de natureza meramente especulativa 5 e inte- . cessário à salvação, ou ainda, se se preferir, acções cuja razão
lectual. Mas aqueles que reconhecerem que não possuem em si de ser ultrapassa a capacidade de compreensão humana. A luz

182 183
natural , com efeito, não exig e nada que essa mesma luz não lo que antes chamámos entendim ento de Deus. Deste modo,
atinja, mas apenas aquilo que ela nos pode com toda a clareza dizer a respeito de Deus que ele quis e deciçliu, desde toda a
indicar como um bem, ou seja, como um meio de chegar à nos- eternidade, que os três ângulos de um triângulo fossem iguais a
sa beatitude. Ora, as coisas que são boas só por mandamento e dois rectos, ou dizer que ele entende esta mesma verdade, equi-
convenção, ou porque simbolizam algum bem, não podem con- vale a dizer a mesma coisa 6. Donde se segue que as afirmações
tribuir para a perfeição do nosso entendimento e não passam e as negações formuladas por Deus envolvem sempre uma ne-
de meras sombras, não se podendo contar entre as acções que cessidade, ou seja, uma verdade eterna.
são como que a prole · ou os frutos do entendimento e de uma , Se, por exemplo, Deus disse a Adão que não queria que ele
mente sã. Não é necessário, .aqui, :a_presen!é!-r .isto mais desen- comesse do fruto da árvore da ciência do bem e do mal, seria
volvidamente. Em quarto e último lugar, vemos que a mais alta contraditório e, por conseguinte, impossível que Adão comesse,
recompensa pela lei divina consíste nela mesma, isto -é, ein co- üma vez que o decreto divino deveria envolver eterna necessi-
nhecer a Deus e amá-lo como seres verdadeiramente ' livres, -·de i dade e verdade. Como, porém , a Escritura narra que Deus proi-
ânimo íntegro e perseverante; o castigo, pelo contrário, consiste .biu Adão e que, mesmo assim, ele comeu, temos forçosamente
na privação destes bens e na servidão da carne, isto é, na in- de admitir que Deus só revelou a Adão o mal que necessaria-
constância e na instabilidade de ânimo. mente lhe aconteceria se ele comesse e não a necessidade com
Posto isto, convirá agora investigarmos o seguinte: primeiro, 1 1
que esse mal viria a seguir. Por isso é que Adão entendeu essa
se pela luz natural podemos conceber Deus como um legislador ' ·.revelação, não como uma verdade eterna e necessária, mas como
ou como um príncipe que prescreve leis aos homens; segundo, a lei, isto é, como algo instituído a que se seguiria um pré-
t
o que é que a Sagrada Escritura ensina a respeito dessa luz e :mio ou um castigo, não pela necessidade e pela natureza da
dessa lei natural; terceiro, com que finalidade foram outrora acção perpetrada, mas unicamente pelo capricho e pela autori-
instituídas as cerimónias religiosas; quarto, para que serve, en- fdade absoluta de um príncipe . Assim, só na perspectiva de Adão
fim, conhecer a história sagrada e acreditar nela. Os dois pri- ,e
j -
em virtude da sua falta de conhecimento é que essa revelação
meiros pontos serão tratados neste capítulo; os dois últimos fi- :foi uma lei e Deus surgiu como legislador ou príncipe. Por esta
carão para o seguinte. .mesma razão, isto é, por falta de conhecimento, o Decálogo foi
A resposta à primeira destas questões deduz-se facilmente ·jumà lei só na perspectiva dos Hebreus, já que, não conhecendo
da natureza da vontade de Deus, a qual não se distingue do eles a existência de Deus como uma verdade eterna, tinham de
entendimento divino a não ser na perspectiva da nossa razão. tomar por uma lei aquilo que lhes foi revelado no Decálogo, a
Quer dizer, a vontade de Deus e o seu entendimento são, na
realidade, uma só e a mesma coisa, distinguindo-se apenas do
. ,saber, que Deus existe e só a ele se deve adorar. Porque se
'
.
!Deus lhes tivesse falado directamente, sem recorrer a meios
ponto de vista das ideias que nós fazemos a respeito do enten- !corporais de espécie nenhuma, não o teriam entendido como
dimento divino. Assim, por exemplo, quando atendemos só a .:urna lei, mas sim como uma verdade eterna.
que a natureza do triângulo está contida desde toda a eternida- . O que dizemos de Adão e dos Israelitas deve igualmente
de na natureza de Deus como uma verdade eterna, dizemos j;dizer-se de todos os profetas que escreveram leis em nome de [641
que Deus tem a ideia do triângulo, ou seja, que entende a natu- · Deus, pois também eles não perceberam os decretos divinos de
[631 reza do triângulo. Mas se atendermos depois a que a natureza maneira adequada, quer dizer, como verdades eternas. Do pró-
do triângulo está contida na natureza divina, por necessidade prio Moisés, por exemplo, deve dizer-se que ele percebeu por
apenas dessa natureza e não da essência e da natureza do triân- revelação, ou concluiu dos princípios que lhe foram revelados, a
gulo, e inclusivamente, que a necessidade da essência e das pro- forma como o povo de Israel melhor se poderia agregar numa
priedades do triângulo, enquanto concebidas também como ver- determinada região do mundo e formar totalmente uma socie-
dades eternas, dependem exclusivamente da necessidade da dade ou constituir um Estado, e bem assim a melhor maneira
natureza e do entendimento divino, não da natureza do triân- de compelir aquele povo à obediência. Mas ele não percebeu,
gulo, nessa altura, chamamos vontade ou decreto de Deus àqui- nem lhe tinha sido revelado, que essa maneira era a melhor e

184 185
que da obediência comum do povo naquela região seguir-se-ia Mas àqueles a quem era dado conhecer os mistérios do s céus, é
necessariamente o objectivo que perseguiam. Não percebeu, em claro que ensinou essas mesmas coisas como verdades eternas e
suma, qualquer destas coisas como verdade eterna, mas sim como não as prescreveu corno leis, e por isso os libertou da servidão
um preceito e como algo de instituído, prescrevendo-as como da lei ao mesmo tempo que a confirmava, estabelecia e inscre-
leis de Deus . Daí que os Hebreus imaginassem Deus como um via no mais fundo dos seus corações. É isto que Pau lo parece
chefe, um legislador, um rei, misericordioso, justo, etc., quando, indicar em algumas passagens, como seja na Epístolaaos Roma-
afinal, tudo isso são atributos que pertencem apenas à nature~a nos, caps. vu, 6, e III, 28. Todavia, nem mesmo ele quer falar
humana e devem s·er inteiramente dissociados da natureza divina. abertamente; pelo contrário, e conforme diz nos caps. m, 5, e VI,
Isto aplica-se, repito, unicamente il,OS profetas, que em nome 19, da mesma Epístola, fala à maneira humana, e reconhece-o
de Deus escreveram leis, não ~ Cristo. Porque embora : Cristo expressamente, quando chama a Deus justo, sendo com certeza
pareça também ter prescrito leis · em nome de Deus, _deve -afir- também por causa da fraqueza da carne que lhe atribui a mise-
mar-se que ele teve uma percepção verdadeira: e adequàda das ., ricórdia, a graça, a cólera, etc., e que adapta as suas palavras à
coisas: Cristo, com efeito, não foi tanto um profeta como a boca maneira de ser da plebe, isto é, conforme ele próprio diz na
de Deus 7 . Através da mente de Cristo (conforme demonstrá- Epístolaaos Coríntíos,1, cap. rn, 1, 2, dos homens carnais . A prova
mos no cap. 1) Deus revelou, tal como já anteriormente o tinha está em que, no cap. IX, 18, da Epístola aos Romanos, ele ensina
feito através dos anjos, isto é, de urna voz criada, de visões, sem margem para dúvidas, primeiro, que a cólera de Deus e a
etc., certas coisas ao género humano. Seria, por isso, tão contrá- ,, sua misericórdia não dependem das obras dos homens mas ape-
rio à razão admitir que Deus adaptou as suas revelações às opi- , nas do chamamento de Deus, isto é, da sua vontade; segundo,
niões de Cristo quanto supor que antes ele as tinha adaptado às que ninguém se toma justo pelas obras da lei mas apenas pela
opiniões dos anjos, isto é, de uma voz criada e de visões, para fé (ver Epístola aos Romanos, cap. m, 28), não entendendo por
comunicar aos profetas as coisas que tinha a revelar. Maior ab- ,· esta, com certeza, senão o pleno assentimento da vontade; por
surdo que este seria impensável, tanto mais que Cristo foi en- ·.último, que ninguém será feliz se não tiver em si a mente de
viado para ensinar, não só aos Judeus, mas a todo o género '. Cristo (ver Epístolaaos Romanos, cap. vm, 9), através da qual per-
humano, pelo que não bastaria que ele tivesse a mente adapta- . 1cebe efectivamente as leis de Deus corno verdades eternas . Con-
da apenas às opiniões dos Judeus, era preciso que a adaptasse Lcluírnos, portanto, que Deus só é descrito corno legislador ou
também às opiniões e aos princípios universalmente reconheci- 1:. corno príncipe e apelidado de justo, misericordioso, etc., em vir-
dos por todo o género humano, ou seja, às noções comuns e . tude da maneira de entender do vulgo e pela sua falta de co-
verdadeiras. Por conseguinte, se Deus se revelou a Cristo ou à nhecimentos. Na realidade, Deus age e dirige todas as coisas
sua mente, de maneira imediata e não por palavras e imagens unicamente pela necessidade da sua natureza e perfeição; os seus
corno se tinha revelado aos profetas, a única coisa que podemos decretos, enfim, e as suas volições são verdades eternas e irn-
concluir daí é que Cristo percebeu ou entendeu verdadeiramente :' plicam sempre uma necessidade. Era isto o que eu pretendia
as coisas reveladas. Com efeito, diz-se que entendemos uma coisa explicar e demonstrar em primeiro lugar.
JII
quando a percebemos pela mente, sem imagens nem palavras. Passemos agora ao segundo ponto, percorramos as páginas
!651 Sendo assim, Cristo percebeu verdadeira e adequadamente as sagradas e vejamos o que elas ensinam a respeito da luz natural (661

t coisas reveladas e, portanto, se alguma vez as prescreveu como


leis, foi por causa da ignorância e da obstinação do povo. Fez,
~, e dessa lei divina. O primeiro texto que aí encontramos é preci-
1: sarnente a história do primeiro homem, onde se conta que Deus
r
1•·
neste particular, as vezes de Deus, adaptando-se à maneira de
ser do povo e, por isso mesmo, se bem que falasse um pouco
ordenou a Adão que não comesse do fruto da árvore da ciência
do bem e do mal, o que parece significar que Deus ordenou a
1 mais claramente do que os outros profetas, ensinou as coisas Adão que fizesse e procurasse o bem pelo bem e não por ser
reveladas de forma obscura e muitas vezes por parábolas, espe- contrário ao mal, isto é, que procurasse o bem por amor do
cialmente quando se dirigia àqueles a quem ainda não era dado bem e não por receio do mal. Quem, com efeito, faz o bem,
entender o reino dos céus (veja-se Mateus, cap. xrn, 10, etc .). corno já mostrámos, porque o conhece e ama, age livremente e

186 187
de ânimo perseverante ; quem, todavia, o faz por recear o mal, a seguir, nos vers. 16 e 17) é porque o entendimento dá dírecta-
age servilmente e coagido pelo mal, vivendo, portanto, às or- mente a duraçãodos dias • e indirectamenteriquezas e honra: os seus
dens de oµtrem. Só este preceito dado por Deus a Adão já con- caminhos (os que a ciência indica) sãoamenos e todasas suas veredas
tém em si, por conseguinte, toda a lei divina natural e concorda são pacíficas.Só os sábios, portanto, segundo Salomão, vivem de
inteiramente com o que manda a luz natural. Nem seria difícil, ânimo pacífico e perseverante, não corno os ímpios, cujo ânimo
de resto, explicar com base em tal fundamento toda esta histó- flutua entre paixões contrárias e que, por conseguinte, corno diz
ria ou parábola .dq primeiro homem. Não quero, porém, fazê- Isaías, cap. LVU, 20, não têm paz nem sossego. Finalmente, nestes
-lo, já porque não estou absolutamente êérto de que a minh ·a Provérbios de Salomão, deve sobretudo notar-se o que vem no
explicação estaria de acordei ·com a intenção do autor, já porque cap. rr e que confirma com meridiana clareza a nossa tese. Come-
a maioria não concorda que ·esta ·histór~a seja uma pará'l:lolà ·e ça assim o vers. 3 desse capítulo: porque se invocaresa prudência e
admite que se trata de uma narração pura · e simples. · te fizeres arauto da inteligência,etc., então conheceráso temor de Deus
ll1 1
Será, então, preferível citar outras passagens da Escritura, e encontrarás a sua ciência (ou antes, o amor, já que o termo Jadah
principalmente as que foram ditadas por aquele que falava ba- significa tanto uma coisa como outra). Porque (N. B.) Deus dá a
seado na luz natural, em que superou todos os sábios do seu sabedoria, da sua boca (emana) a ciência e a prudência. Por estas
'I
tempo, e cujas palavras o povo acolheu com tanto respeito como palavras, ele indica com toda a clareza, primeiro, que só a sabe-
as dos profetas: estou a pensar em Salomão, de quem os Livros doria, isto é, o entendimento, nos ensina a temer a Deus com
1 Sagrados exaltam menos a profecia e a piedade que a prudência sabedoria, que o mesmo é dizer, a cultivar a verdadeira reli-
11 e a sabedoria. Salomão, nos seus Provérbios, chama ao entendi- gião; segundo, que a sabedoria e a ciência brotam da boca de
mento humano a fonte da verdade ira vida e faz consistir o in- Deus e que é Deus quem as concede, como também já mostrá-
fortúnio exclusivamente na insensatez. Diz ele (cap. xvr, 22): 1 mos, ou seja, que o nosso entendimento e ciência dependem
o entendimento(é) parao seu dono • uma fonte de vida e o suplício dos exclusivamente da ideia ou conhecimento de Deus, ideia onde
insensatos é a sua insensatez8 . Note-se que por vida, em sentido têm a sua origem e na qual atingem a sua perfeição. A seguir,
absoluto, entende-se em hebraico a verdadeira vida, como se no vers. 9, Salomão ensina explicitamente que esta ciência con-
vê no Deuteronómio,cap. xxx, 19. Por conseguinte, o fruto do en- tém, e por isso dela se deduzem, a verdadeira ética e a verda-
tendimento consiste unicamente na verdadeira vida e o suplício deira política: então compreenderása justiça e o juízo, os caminhos
consiste em ser privado dele, o que está perfeitamente de acordo certos (e) toda a boa vereda. Não contente com isto, diz ainda:
com o que dissemos em quarto lugar a respeito da lei divina quando a ciênciaentrar no teu coraçãoe a sabedoriate for suave, então !681
natural. Mas o mesmo sábio ensina também explicitamente que a tua providência• • há-de vigiar-tee a prudência guardar-te-á.Tudo
i
só essa fonte da vida, isto é, só o entendimento, como já disse- isto concorda inteiramente com a ciência natural, que ensina a
!'' mos, prescreve leis aos sábios, uma vez que afirma no cap. XIII, ética e a verdadeira virtude depois de adquirirmos o conheci-
., (671 14: a lei do prudente (é) fonte da vida, ou seja, como se pode ver
mento das coisas e saborearmos a superioridade da ciência. Por
no texto acima citado, é o entendimento. Além disso, no cap. III,
isso, a felicidade e a tranquilidade de quem cultiva o entendi-
13, ensina por palavras bem explícitas que o entendimento dá
mento natural, de acordo ainda com Salomão, não dependem
ao homem a beatitude e a felicidade e bem assim a verdadeira
do império da fortuna (isto é, do auxílio externo de Deus), mas
tranquilidade de ânimo: feliz o homem que encontrou a ciência e o
sim e principalmente da sua própria virtude interior (isto é, do
[ filho do homem que descobriuo entendimento. E a razão (como se vê
auxílio interno de Deus), pois é através da vigilância, da activi-
1 dade e dos bons conselhos, que melhor se conservam.

• Hebraísmo. Quem possui uma coisa ou a contém na sua natureza diz-


-se dono dessa coisa; assim, o pássaro diz-se em hebraico o dono das asas
porque tem asas; por sua vez, o dono do entendimento d iz-se intel igente • Hebraísmo, que não significa senão a vida.
1 porque tem entendimento . • • «Mezina » significa exactamente pensamento, deliberação e vigilância.

188 189
~ Finalmente, não se deve esquecer aquela passagem de Paulo
• que se encontra no cap. r da Epístolaaos Romanose que diz assim
(de acordo com a tradução de Tremellius 9 do texto siríaco): as
coisas de Deus escondidasdesde a fundação do mundo são descobertas
pelo entendimentonas suas criaturas,bem como a sua virtude e a sua
i
divindade,que é eterna,de modo que não têm desculpa.Tais palavras
mostram claramente que cada u!ll pode compreender a v_irtud~
de Deus e a súa ·eterna divindade pela luz· natural, luz esta com
que pode igualmente saber : e deduzt~ as coisas· que deve pro- CAPlnn.o V (69]

curar e aquelas que deve evit_ar; Paulo conclui, -pois, q~ nin-


·1•DA RAZÃO PELA QUAL FORAM INSTITUÍDAS AS CERIMÓNIAS
guém tem desculpa e que nem a· ignorância pode _f?e.ràlegàda,
.~; E DA FÉ NAS NARRATIVAS HISTÓRICAS, OU SEJA,
ao contrário do que aconteceria se estivesse a 'falar dá. luz sobre- POR QUE MOTIVO E A QUEM É QUE ELA É NECESSÁRIA
natural, ou da paixão que Cristo padeceu na carne, ou da res-
surreição, etc. E acrescenta, um pouco mais adiante, no vers. 24:
~~: por esta razão, Deus entregou-osàs imundas concupiscênciasdos seus
corações,etc., descrevendo, até ao fim do capítulo, os vícios da No capítulo anterior, mostrámos como a lei divina, que toma
iiJ;.[i ignorância, os quais apresenta como castigos da mesma igno- 1ós homens verdadeiramente felizes e ensina a verdadeira vida,
rância, em inteira conformidade com o já citado provérbio de :! universal; além disso, deduzimo-la da natureza humana, de .
Salomão (cap. XVI, 22): e o suplício dos insensatosé a sua insensatez. aneira que ela deve considerar-se inata 1 e como que inscrita
Não é de estranhar, pois, que Paulo diga que os que fazem o mente do homem. As cerimónias, porém, pelo menos aque-
mal não têm desculpa. Cada um colhe conforme o que semeou: s que se encontram no Antigo Testamento, foram instituídas
do mal, outros males virão necessariamente 10, se não for corri- •xclusivamente para os Hebreus e adaptadas de tal modo ao
gido com sabedoria; o bem, pelo contrário, atrai o bem, quando Estado que a maior parte delas só podia ser celebrada pela
acompanhado de perseverança. Em conclusão, a Escritura elogia iedade em conjunto e não por um indivíduo isoladamente.
sem quaisquer reticências a luz natural e a lei divina natural. ,, portanto, evidente que elas não pertencem à lei divina nem
Dou assim por encerradas as questões que me tinha proposto o-pouco adiantam seja o que for para a beatitude ou para a
abordar neste capítulo. de, dizendo unicamente respeito à eleição dos Hebreus, isto
fé (por aquilo que mostrámos no cap. III), à contingente 2 felici-
,_ade do corpo e do Estado, pelo que não podiam ter qualquer
·~plicação a não ser enquanto durasse o Estado. Se, por conse-
iil' 'gttinte, essas cerimónias estavam no Antigo Testamento ligadas
.. à lei de Deus, era unicamente por terem sido instituídas por
11
~revelação ou com base em princípios revelados. Contudo, uma
'vez que a razão, por mais sólida que seja, pouco valor tem para
11
-~o comum dos teólogos, convirá aqui confirmar também pela
·'1 ·' autoridade da Escritura o que acabámos de dizer, para mostrar
• depois, de maneira ainda mais nítida, porquê e como serviam
..as cerimónias para a manutenção e a defesa do Estado dos
Judeus .
L De tudo quanto Isaías ensina, a coisa mais clara é que a lei
} de Deus, em sentido absoluto, significa aquela lei universal que
consiste na verdadeira regra de vida e não em quaisquer ceri-

190 191
mornas. De facto, no cap. 1, 10, o profeta apela ao seu povo ~ respeito apenas ao interesse da república e do Estado; por -
para que oiça da sua boca a lei divina, da qual exclui toda a ~~ !quese ela significasse um ensinamento moral que contemplasse,
espécie de sacrifício e festas e só então é que ensina a própria i:..iíão só o interesse da república, mas também a tranquilidade e
lei (ver vers . 16 e 17), que resume, aliás, a muito poucos precei- ~!~~ verdadeira beatitude de cada um, Moisés não teria conde-
tos: a purificação da vontade, a prática, ou seja, o hábito das " --do só a acção exterior, mas até o próprio assentimento de
virtudes, que o mesmo é dizer 9-as boas acções e, finalmente, _a ~lllrimo, como fez Cristo, o qual deixou apenas ensinamentos uni-
ajuda prestada ào ·pobre. Não menos li..trrünoso é o testemunho - ,rsais (ver Mat., cap . v, 28) e, por isso mesmo, a recompensa
que se encontra no salmo :XL,- 7, 9, :c;,nde o ..salmista se dirige e promete é espiritual e não corporal como a de Moisés.
[70J assim a Deus: não quiseste sacrifício · nem oferenda,perfuraste-71'!-e
:ós Cristo, como já disse, foi enviado, não para manter um Es-
ouvidos·, não pediste holocaustonem· ablaçãopelo pecado;_quis seguir_a do e instituir leis, mas apenas para ensinar a lei universal. 1111
tua vontade, ó meu Deus, porque a tua lei está nás ·minhas entranhâs. inde, facilmente se compreende, Cristo não revogou de for-
i Chama, portanto, lei de Deus só àquela que está inscrita nas alguma a lei de Moisés, porquanto não pretendeu introduzir
entranhas ou na mente e exclui dela as cerimónias; estas, com república quaisquer leis novas, nem procurou senão dar ensi-
Jr: efeito, são boas só por convenção e não por natureza, pelo que entos morais e separá-los das leis da república . E isto, so-
não estão inscritas nas mentes. Há ainda outras passagens na tudo por causa da ignorância dos fariseus, que pensavam que
Escritura que confirmam o mesmo, porém as duas que citei são ·er em beatitude significava defender o direito da república,
suficientes. . seja, a lei de Moisés, quando esta, conforme dissemos, só
') Quanto ao facto de as cerimónias em nada contribuírem para _. tia em função da república e servia não tanto para ensinar
a beatitude e, pelo contrário, dizerem apenas respeito ao con- ' o para coagir os Hebreus.
tingente interesse do Estado, ele consta igualmente da Escri- Mas voltemos ao assunto que nos ocupa e citemos outras
tura, a qual não promete senão comodidades e prazeres corpo- agens da Escritura que pelas cerimónias não prometem nada
rais pela observância das cerimónias, e só pela observância da o ser vantagens materiais e que só pela lei divina universal
lei divina universal promete a beatitude . Na verdade, nos cinco etem a beatitude. De entre todos os profetas, nenhum en-
livros que vulgarmente se atribuem a Moisés, não se promete, u isto com mais clareza que Isaías, o qual, no capítulo LVIll,
como já dissemos, outra coisa para além dessa felicidade transi- ter condenado a hipocrisia, recomenda a liberdade e a ca-
tória, quer dizer, honras ou fama, vitórias, riquezas, prazeres e -ade para consigo mesmo e para com o próximo, prometendo
saúde. E muito embora esses cinco livros contenham, além das compensação o seguinte : então a tua luz há-de romper corno
cerimónias, muitos preceitos morais, todavia, estes não vêm in- aurora, a tua saúdefloresceráimediatamente,a tua justiça irá na
cluídos a título de ensinamentos morais universais para todos frente e a glória de Deus agregar-se-á a ti •. A seguir, recomen-
os homens, mas como ordens adequadas à compreensão e à . também o sábado, prometendo aos que o observarem: deleitar-
maneira de ser exclusivamente da nação hebraica, visando ape- e-ás então com Deus • • e far-te-ei cavalgar sobre os píncaros da
nas, por isto mesmo, a prosperidade do seu Estado 3 • Moisés, rra • • •, dar-te-ei a comer a herançade Jacob,teu pai, como disse a
por exemplo, não ensina os Judeus, como um doutor ou como 'a de Jeová. Vemos, portanto, que o profeta promete, a troco
um profeta, a não matar e a não roubar: ordena-lhes como um ia liberdade e da caridade, mente sã ein corpo são, além da
legislador e como um príncipe. Nem prova pela razão aquilo .ória de Deus depois da morte; porém, a troco das cerimónias,
que ensina; pelo contrário, quando dá ordens anuncia também
1 as sanções e estas, como a experiência abundantemente demons-
1
'i tra, podem e devem variar conforme a índole própria de cada
nação. Da mesma forma, a ordem para não cometer adultério • Hebraísmo que significa a hora da morte; ser agregadoao seu povo signi-
1/
morrer (ver Gen., cap. XLIX, 29, 33).
• • Quer dizer , deleitar-se honestamente, como também se diz em fla-
engo, «met Godt/en met eere».
• Express ão que significa a percepç ão. • • • Significa domínio, como quando se seg ura um cavalo pelo freio.

o n?
mais não promete que a segurança e a prosperidade do Estado µs não ficaram mais sujeitos à lei de Moisés do que estavam
e o bem-estar do corpo. Nos salmos xv e xxrv, não se faz qual- .tesde ser fundada a sua sociedade e a sua república. Ora,
quer menção das cerimónias, mas só dos ensinamentos morais, guanto eles viveram no meio de outras gentes, antes da saída
sem dúvida porque aí se trata unicamente da beatitude e por ~ Egipto, não tiveram quaisquer leis particulares, estando su-
ser esta a única coisa que aí se tem em vista, ainda que seja em .tosapenas ao direito natural e, claro, ao direito da república
termos de parábola. Com efeito, por monte de Deus, por ten- que viviam, na medida em que este não ia contra a lei divi-
das divinas e _por oc~pação destas é eyi~ente que se entende ;natural. Dir-se-á que os patriarcas ofereciam sacrifícios a Deus,
aqui a beatitude ·e a tranquilidade _de ânimo, e não o monte de julgo que o faziam só para melhor incutir a devoção no seu
(72]
Jerusalém ou o tabernáculo de Mo"isés: Porque estes lo~ais ..z:ião o, assim habituado desde a infância. É que todos os ho-
eram habitados por ninguém e-· só os d~ tribo de Levi õs ..àdmi- ., desde os tempos de Enós, estavam habituados a oferecer [73]
nistravam. Além disso, todas as sentenças ele Salomão ~que citei - - ·ucios para melhor se sentirem inclinados à devoção. Os pa-
no capítulo anterior só prometem a verdadeira beatitude em ·cas, por conseguinte, ofereceram sacrifícios a Deus, não por
recompensa pelo entendimento e a sabedoria, porquanto só atra- ºência a qualquer direito divino ou por conhecerem os fun-
f vés desta se compreende o temor de Deus e se alcança a ciência
de Deus.
_entos universais da lei divina, mas simplesmente porque era
me naquele tempo. E se acaso o fizeram por ordem de
o Em relação ao facto de os Hebreus, uma vez destruído o .ém, essa ordem não traduzia senão o direito da república
t
seu Estado, não serem mais obrigados a observar as cerimó- .e viviam e ao qual também estavam sujeitos, como já aqui e
nias, isso está claro em Jeremias, o qual, quando vê e prediz ém no cap. m, ao falar de Melquisedeque , tínhamos visto.
que a cidade será em breve devastada, diz o seguinte: Deus só . Penso ter assim confirmado pela autoridade da Escritura a
ama aquelesque sabem e compreendemque ele exerce no mundo a mi- opinião. Resta agora mostrar como e em que medida as
sericórdia,o julgamento e a justiça;por isso, no futuro, só os que conhe- .ónias serviam para manter e consolidar o Estado dos He-
ceram isto é que serão julgados dignos de louvor (ver cap. rx, 23). s. Mostrá-lo-ei o mais sucintamente possível e com base em
É quase como se dissesse que, depois da destruição da cidade, dpios universais.
Deus já não exige dos Judeus nada de especial e pede-lhes sim- A sociedade é uma coisa extremamente útil e até absoluta-
plesmente que observem a lei natural, a que estão sujeitos to- te necessária, não só porque nos protege dos inimigos, mas
dos os mortais. No Novo Testamento, isto vem também plena- bém porque nos poupa a muitos esforços; de facto, se os
mente confirmado, visto que, como dissemos, não se encontram ens não quisessem entreajudar-se, faltar-lhes-ia tempo e arte
aí senão ensinamentos morais, por cujo cumprimento se prome- ·a, na medida do possível, se sustentarem e conservarem. Nem
te o reino dos céus; as cerimónias, pelo contrário, foram aban- os são igualmente aptos para tudo e ninguém seria capaz de
donadas pelos apóstolos a partir do momento em que o Evan- ,rrer a tudo aquilo de que um homem só necessita imprescin-
gelho começou a ser pregado também a outras gentes, sujeitas Nelrnente. Por outras palavras, ninguém teria as forças e o
às leis de uma outra república. E se os fariseus, depois de per- po necessário se fosse obrigado a lavrar, semear, ceifar, co-
1 dido o Estado 4, conservaram pelo menos a maior parte delas, ir, tecer, costurar e fazer sozinho tudo o mais que é preciso
foi mais por animosidade contra os cristãos do que para agra- a o sustento, não falando já nas artes e ciências, que são
l'j' J dar a Deus. De facto, após a primeira destruição da cidade, · bém sumamente necessárias à perfeição da natureza humana
quando foram levados cativos para Babilónia, como na altura à sua beatitude 5 . Veja-se como aqueles que vivem na barbárie
·!: j não estavam, que eu saiba, divididos em seitas, negligenciaram
logo as cerimónias, abandonaram por completo a própria lei de
sem organização política levam uma vida miserável, quase de
·mais, e mesmo esse pouco que têm, por miserável e rude
"l Moisés, esqueceram o direito da sua pátria como algo de intei- .e seja, só o conseguem através da cooperação mútua, seja ela
ramente supérfluo e começaram a misturar-se com as outras llal for.
nações, conforme consta sobejamente em Esdras e Neemias. ~ Se os homens fossem por natureza constituídos de modo a
É, portanto, evidente que, após a dissolução do Estado, os Ju- )que não desejassem senão o que a recta razão indica, com certe-
1
!
194 195
za que a sociedade não necessitaria de quaisquer leis, bastando .bmissão à au toridade de outrem, mas ao seu próprio consenso.
apenas fornecer aos homens os verdadeiros ensinamentos morais . quando é só um a deter o poder absoluto, acontece o con-
para que, espontaneamente e de inteira e livre vontade, fizessem :ário; aí, todos executam as ordens do poder submetendo-se à
aquilo que é verdadeiramente útil. Quão diferente, porém, é a .toridade de um só e, por isso, se não tiverem · sido, desde o
constituição da natureza humana! Todos procuram o que lhes é incípio, educados de maneira a estarem sempre dependentes
útil, mas não pelo ditame da recta razão, antes arrastados pela ' palavra daquele que manda, será muito difícil a este, em
concupiscência e as paixões (sem terem em conta o futuro QU qu~- o de necess idade, instituir leis novas e tirar ao povo a liber-
quer outra coisa) · julgam úteis · as coisas · qüe desejam. Dé\í que e depois de lha ter concedido urna vez 8.
[74J nenhuma sociedade possa subsistir sem o poder e a _ força, nem, l Feitas estas considerações de ordem geral, passemos agor a
por conseguinte, sem leis que moderem e coíbam a concüpiscêh- ·epública dos Hebreus. Quando estes saíram do Egipto, deixa-
cia e os desenfreados impulsos dos homens 6 • A nat~eza huma- '. de estar sujeitos ao direito de uma outra nação, pelo que
. .
na, p(?rérn, não tolera ser totalmente coagida ·e,· corno diz -· "
- - Séneca, era lícito promulgar novas leis a seu bel-prazer, isto é, cons- [751
;11

il o Trágico, os poderes violentos ninguém os aguenta por muito ir um novo ordenamento jurídico, estabelecer um ·Estado no
'Iil tempo, os moderados, pelo contrário, perduram. Na verdade, al onde quisessém e ocupar as terras que lhes apetecesse .
,J,' quando os homens agem apenas por medo, fazem o que detes- tudo, não havia nada para que estiy:essem roenos aptas que
l,11
!111
tam e não se importam com a utilidade nem com a necessidade ta determinar ~s regras do ' direito· e _manter colegialmente ~
daquilo que devem fazer, procurando unicamente não pôr a ca- aer. Eram quase todos de natureza rude e estavam alquebra-
beça em risco ou expor-se ao suplício. Por outro lado, é impos- .Ja penosa escravidª9,..Par iss~ . o poder teve d€ ficar nas
sível que não se alegrem com o mal e os danos daquele que os de um só, que mandasse nos outros e os coagisse pela
1, ~j
tem o poder, ainda que isto signifique também o seu próprio :ça e que, finalmente, lhes prescrevesse leis e, de futuro, as
mal, e que não lhe desejem e causem todos os danos que pude- ·rpretasse. Mas Moisés conseguiu facilmente manter este poder,
rem. Porque §lguilo que os homen~ !ll-~nQs.fillP-~ _ é estar su!>- s ,era superior aos outros por uma virtude 9 divina e persua-
metidos aos seus semelhantes e ser dirigidos por eles. E não há o povo de que a ossuía, a resentando-lhe numerosos tes-
nada, enfim, mais difícil que tirar-lhes a liberdade depois de os ver xodo, cap. xrv, último versículo, e cap. xrx,
t,.:.--- -:-'
lha ter concedido. te modo, através desta virtude que o distinguia, ele instituiu
~ OSegue-se daqui, em primeiro lugar, que o poder, ou está ireito divino e prescreveu-o ao povo, tendo, no entanto, o
colegialmente nas mãos de toda a sociedade, se isto for possí- ·or cuidado a fim de que este cumprisse a sua obrigação, não
vel, de modo a que cada um obedeça a si mesmo e ninguém ao to por medo, mas de livre vontade. Foram sobretudo duas
seu semelhante; ou então, se estiver nas mãos de uns tantos ou razões que o obrigaram a agir assim: o carácter insubmisso
até de um só, este terá de possuir algo de superior ao que é ' povo (que não suporta ser obrigado unicamente pela força)
comum na natureza humana ou ao menos tentar com todas as 1jl ameaça de guerra, onde, para se ter êxito, é mais necessário
suas forças persuadir disso o vulgo 7• Em segundo lugar, as leis, Ortar os soldados que aterrorizá-los com castigos e ameaças,
qualquer que seja o Estado, devem ser inst ituídas de forma a ·· ,is assim cada um deles procurará antes brilhar pela virtude e
que os homens se sintam constrangidos, não tanto pelo medo , grandeza de ânimo que evitar simplesmente o suplício.
como pela esperança de algum bem que desejem acima de tudo. Foi por esta razão que Moisés, por virtude e mandato divi-
Só assim é que cada um cumprirá de boa vontade a sua obriga- , introduziu a religião na república, a fim de que o povo cum-
ção . Por último, visto que a obediência consiste em executar isse o seu dever, não tanto por medo, corno por devoção.
,, ordens devido apenas à autoridade de quem manda, segue-se i , ém disso, aliciou-os com benefícios, prometeu-lhes, em nome
11 que ela não tem qualquer lugar numa sociedade em que o poder .e Deus, inúmeras coisas para o futuro e não promulgou leis
t
está nas mãos de todos e onde as leis estão sancionadas pelo ., cessivamente severas, corno concordará qualquer pessoa que
consentimento comum: aí, quer aumente, quer diminua o número estude, sobretudo se reparar nas circunstâncias que eram re-
das leis, o povo continua igualmente livre, pois não actua por ueridas para condenar qualquer réu. Por último, para que o

196 197
povo, incapaz de ser juridicamente autónomo, estives se depen-
dente da palavra daquele que detinha o poder, não permitiu
'

ij·:
..io
,
, ',·também dos princípios do Novo Testamento, e talvez até mostrá-
com mais testemunhos evidentes, prefiro, no entanto, deixar
que estes homens, acostumados à escravidão, fizessem fosse o l,',ssa questão porque estou com ~ressa de abordar outras. Passo,
que fosse a seu bel-prazer. De facto, o povo não podia fazer }l,ois, ao que decidi tratar em segundo lugar neste capítulo: a
nada sem que, ao mesmo tempo, não fosse obrigado a lembrar- " uem e por que razão é necessária a fé nas narrativas históricas
-se da lei e a executar ordens que dependiam apenas do arbí- intidas nos Livros Sagrados . Para in~estigar este assunto atra-
i. ·és da luz natural, parece ter de se proceder como se segue.
trio do que mandava. Não podia lavrar, semear ou ceifar à von-
tade, mas só ·de · acordo com ·um certo · é · determinado preceito Se alguém quer persuadir ou dissuadir os homens de algu-
coisa que não é conhecida por si mesma, deverá, para eles a
da lei; nem sequer podia ,comer alguma coisa, · vestir-se, cortar o
itarem, deduzi-la a partir daquilo que eles já admitem e con-
cabelo ou a barba, divertir-se .oú fazer fosse o que fosse . a: não
( e
ser de acordo com as ordens indicações prescritas rias_l~is. E_não
t~cê-los pela experiência ou pela 'razão, isto é, com base em
'".tos cuja ocorrência natural é experimentada pelos sentidos,
era só isto. Até por cima das portas, nas mãos e entre os olhos
com base em axiomas do entendimento conhecidos por si.
'"''
ff r
fu ~, eram obrigados a ter certos sinais que continuamente os cha -
,rém, se a experiência não for de modo a compreender-se ela-
.
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Ji
[76] massem à obediência. O objectivo das cerimónias foi, portanto,
fazer com que os homens não fizessem nada por sua própria
e distintamente, ainda que convença alguém, não conseguirá (77]
,;.:
gir-lhe o entendimento nem dissipar-lhe as dúvidas da mes-
deliberação, mas tudo a mando de outrem, e reconhecessem, maneira que se as coisas que se querem ensinar são deduzi-
por contínuas acções e meditações, que não eram donos de si apenas de axiomas intelectuais, isto é, da virtude apenas do
mesmos e estavam, pelo contrário, inteiramente submetidos ao lecto e da ordem das percepções, sobretudo quando se trata
direito de outrem. : uma coisa espiritual e que de modo nenhum é abrangida
De tudo quanto dissemos, resulta com meridiana clareza que i os sentidos. A verdade é que, para deduzir algo a partir
os rituais nada adiantam para a beatitude e que os do Antigo ·.camente de noções intelectuais, se requer muitas vezes um
Testamento, até mesmo toda a lei de Moisés, têm unicamente .go encadeamento de percepções, além de uma extrema pru-
em vista o Estado dos Hebreus e, por conseguinte, os bens da, perspicácia e a maior contenção, tudo coisas que é raro
materiais. Quanto às cerimónias dos cristãos, tais como, o bap- rvar-se nos homens, razão pela qual eles preferem ser ensi-
tismo, a ceia dominical, as festas, as orações públicas e outras os pela experiência a ter de deduzir todas as suas percep-
semelhantes, que são e sempre foram comuns a todo o cristia- s de um pequeno número de axiomas e encadeá-las umas
nismo, se de facto elas foram alguma vez instituídas por Cristo ' ~ outras. Assim, se alguém quiser ensinar uma doutrina a toda
ou pelos apóstolos (o que, para mim, não está ainda bem escla- a nação, para não dizer a todo o género humano, e quiser
recido), foram-no apenas a título de sinais exteriores da Igreja ir entendido por todos e em todos os pormenores, terá de a
universal e não como coisas que contribuam para a beatitude ou Anonstrar unicamente pela experiência e adaptar os seus argu-
que tenham em si mesmas algo de santificante. Por isso, muito .entos e as definições das coisas a ensinar à compreensão da
embora estas cerimónias não tenham sido instituídas em função tebe, que constitui a maior parte do género humano, em vez
de um Estado, foram-no contudo em função de toda a socie- ·os encadear e de apresentar as definições que melhor servi-
dade; consequentemente, quem viva isolado não está de forma para esse efeito . Caso contrário, escreverá unicamente para
alguma obrigado a elas. Além disso, quem viver num Estado , sábios, quer dizer, não poderá ser entendido senão por um
onde a religião cristã é interdita está obrigado a abster-se dessas º.
ero de homens proporcionalmente muito reduzido 1 Ora,
cerimónias e, no entanto, pode ainda assim viver em beatitude. , mo toda ·a Escritura foi revelada, primeiro, para uso de toda
Temos um exemplo disto no reino do Japão, onde a religião a nação e, depois, para todo o género humano, o seu con-
cristã é interdita e os Holandeses que aí vivem são obrigados, iído deve estar, necessariamente, adaptado à compreensão da
por determinação da Companhia das Índias Orientais, a absterem- .ebe e comprovar-se apenas pela experiência.
-se de todo o culto externo. Não tenciono recorrer a outra auto- Vejamos melhor esta questão. O que a Escritura quer en- ·
ridade para o confirmar. E embora não fosse difícil deduzi-lo i8inar de natureza apenas especulativa é, essencialmente, o se-

198 199
:,Ili'
li''
j:
1
1 guinte: existe um Deus, ou seja, um ser que fez, dirige e susten- tâncias e parte s da doutrina quantas as que deveriam extrair-se
.,;J
ta todas as coisas com suma sabedoria, que cuida dos homens, de tantas e tão diversas histórias? Eu, pelo menos, não consigo
ou melhor, daqueles que vivem piedosa e honestamente, já que , convencer-me de que os homens que nos deixaram a Escritura,
aos outros ele os castiga com numerosos suplícios e os aparta r tal como nós a temos, fossem assim tão dotados que pudessem
dos bons. Tudo isto a Escritura comprova apenas pela experiên- seguir uma tal demonstração, e muito menos de que a doutrina
cia, quer dizer, pelas histórias que narra, sem apresentar qual- da Escritura só possa compreender-se depois de ouvir contar as
quer definiçã _o d~stas .coisas e -adaptando .todas as palavras - e altercações de Isaac, os conselhos de Aquitofel a Absalão, a
todos os argumentos à compreensão do vulgo. E embora a ex- guerra civil dos Judeus e dos Israelitas, e coisas parecidas que
periência não possa fornec~r de tais éoisas nehhurn conh~cirµ_en- .. vêm nas crónicas. Quando não, para os primeiros J~deus, os
to claro, nem ensinar o que é. Deus e de -que forma ~le conserva .· que viveram no tempo de Moisés, a doutrina não seria tão fácil
e dirige todas as coisas e cuida dos homens, ela ·pode contudo ~ de demonstrar através de histórias como para aqueles que vive- (791
instruir e esclarecer os homens o suficiente para lhes imprimir :,tam no tempo de Esdras. Mas, sobre isto, já falaremos mais em
(7BJ no ânimo a obediência e a devoção. Assim sendo, creio que pormenor.
resulta claro a quem e por que razão é necessária a fé nas histó- O vulgo, por conseguinte, só tem de conhecer as histórias
rias que vêm nos Livros Sagrados. É, com efeito, evidente, pelo 1;que melhor possam incutir-lhe no ânimo a obediência e apieda-
que acabei de mostrar, que o conhecimento e a fé nessas histó- ll de. Mas, o vulgo não é suficientemente apto para julgar sobre
rias são extremamente necessários ao vulgo, cuja compleição é estas matérias, pois gosta mais das narrativas e do lado insólito
incapaz de perceber as coisas clara e distintamente 11. Por outro · e inesperado das coisas do que propriamente da doutrina das
lado, quem não acredita nessas histórias porque não crê que ,_histórias. Daí que, além da leitura destas, precise ainda de pas-
Deus exista e providencie pelas coisas e pelos homens é um ímpio. iftores
,. ou ministros da Igreja que o ensinem de maneira adequa-
Porém, aquele que as ignora e todavia conhece pela luz natural :da à sua débil compleição.
que Deus existe e tudo o mais que já dissemos, e que possui, Não nos afastemos, porém, do nosso intento e concluamos
além disso, a verdadeira regra de vida, esse é inteiramente feliz, aquilo que pretendíamos, antes de mais, demonstrar, a saber,
muito mais até do que o vulgo, pois além de opiniões verdadei- . que a fé nas histórias, quaisquer que elas sejam, não tem a ver
ras tem, acima de tudo, um conceito claro e distinto. É, por com a lei divina, não conduz, só por si, os homens à beatitude,
último, evidente que todo aquele que ignora estas histórias da ) nem possui qualquer utilidade a não ser em função da doutrina,
Escritura e não conhece nada pela luz natural, se não é ímpio :única razão por que certas histórias podem ser consideradas mais
ou insubmisso, é, com certeza, desumano, quase um animal, e :'importantes que outras . As narrativas que vêm no Antigo e no
não possui nenhum dom de Deus. ri' Novo Testamento são, por conseguinte, mais importantes que as
Note-se que, ao dizermos aqui ser extremamente necessário narrativas profanas, e são entre elas mais importantes umas que
o vulgo conhecer as histórias da Escritura, não nos referimos ao as outras, conforme as opiniões mais ou menos salutares que
conhecimento de absolutamente todas as histórias que vêm na delas se extraírem. Porque se alguém ler as histórias da Escri-
Sagrada Escritura, mas apenas das principais, daquelas que, só tura Sagrada e tiver fé em todas elas, sem contudo atender à dou-
por si, mostram com a maior evidência a doutrina que referi- trina que a mesma Escritura tenta por esse meio ensinar, nem
mos atrás e são as que melhor podem mover os ânimos dos corrigir a sua vida, é a mesma coisa que ler o Alcorão, poemas
homens. Se todas as histórias da Escritura fossem necessárias dramáticos ou mesmo crónicas triviais com aquela atenção com
para provar a sua doutrina, e se não se pudesse chegar a uma que o vulgo costuma lê-las. Pelo contrário, e corno já dissemos,
conclusão sem primeiro as tornar a todas em consideração, nesse aquele que ignora totalmente essas narrativas mas tem opiniões
caso, a demonstração e a conclusão dessa doutrina estariam aci- salutares e uma verdadeira regra de vida, esse possui em abso-
ma da compreensão e das forças, não só do vulgo, mas de todo luto a beatitude e tem em si, realmente, o espírito de Cristo.
o homem. Quem, efectivamente, poderia atender ao mesmo Os Judeus, todavia, julgam precisamente o oposto. Para eles,
tempo a um tão grande número de narrativas, a tantas circuns- as opiniões verdadeiras e uma verdadeira regra de vida em nada

200 ?n1
adiantarão para a beatitude enquanto os homens as abraçarem
só pela luz natural e não como ensinamentos revelados profeti-
camente a Moisés. Maimónides ousa afirmá-lo abertamente, por
estas palavras (Reis, cap. vm, lei 11): todo aqueleque recebeuos sete
[80J preceitos·, e os cumpriu diligentemente,esse é um dos homens piedosos
das nações e herdeiro do mundo de amanhã, na condição,porém de os
ter aceite e cumprido porque Deus os prescreveuna lei e nos revelou
através de Moisés que eles·tinham siâo anteriormentedadosaosfilhos de
CAPÍTIJLO VI [81)
Noé; porque, se os tiver cumprido_~evado~penaspela.razão, não se in-
clui entre os piedososnem entre as sábiosdas nações.A estas palavras DOS MILAGRES
de Maimónides, R. Joseph 12, filho de Sh_em Tob, acrescentà, no
seu livro Kebod Elohim, ou seja, Glória de Deus, quê ainda que
Aristóteles (que ele j~lga ter escrito o supra-sumo da ética e
considera superior a todos) não tivesse omitido nada daquilo
Da mesma forma que chamam divina à ciência que ultrapas-
que respeita à verdadeira ética e que também defende na sua
Etica, mesmo tendo cumprido zelosamente tudo isso, de nada sa a capacidade de compreensão humana, assim também a uma
lhe adiantou para a salvação, pois não assumiu os princípios que . obra cuja causa o vulgo desconhece os homens costumam cha-
ensina como verdades divinas profeticamente reveladas, mas t, mar divina ou de Deus. O vulgo, com efeito, pensa que a provi-
apenas como imperativo da razão. Mas tudo isto é ficção sem ,; dência e o poder de Deus nunca se manifestam tão claramente
qualquer fundamento, nem na razão, nem na autoridade da Es- e.como quando vê acontecer algo de insólito e contrário à opi-
critura, como creio ser evidente para quem quer que o tenha nião que habitualmente faz da natureza, em especial se resultar
lido atentamente. Para refutar coisas destas, basta mencioná-las. em seu proveito ou vantagem. Além disso, julga que não existe
1
Tão-pouco está no meu propósito refutar aqui a opinião dos . prova mais clara da existência de Deus que o facto de a nature-
1
que pretendem que a luz natural não pode ensinar nada de útil za, ao que ele supõe, não manter a sua própria ordem, razão
no que respeita à verdadeira salvação. Quem a si mesmo não pela qual crê que todos aqueles que explicam ou tentam com-
reconhece uma réstia de razão nada pode provar pela razão. preender as coisas e os milagres por causas naturais negam Deus
E se eles se vangloriam de possuir algo de superior à razão, ou, pelo menos, a sua providência. Por outras palavras, pensa
isso não passa de pura ficção, de longe inferior à razão, como já que Deus está inactivo quando a natureza age de acordo com a
foi suficientemente evidenciado pelo seu modo habitual de vi- · prdem normal e que, por seu turno, a potência da natureza e as
verem. Mas sobre isto não é preciso falar mais abertamente . causas naturais ficam inactivas quando Deus age. Imagina, as-
Acrescentarei apenas que não se pode conhecer ninguém a sim, duas potências numericamente distintas uma da outra: a
r. não ser pelas suas obras. Por isso, quem produzir em abundân- potência de Deus e a potência das coisas naturais, se bem que
cia frutos como a caridade, a alegria, a paz, a paciência, a bene- esta última seja de certo modo determinada por Deus ou por
volência, a bondade, a fé, a afabilidade e a temperança, aos · , ~le criada, como pensa hoje em dia a maior parte das pessoas.
quais, como diz Paulo, na Epístola aos Gálatas, cap. v, 22, a lei Se lhe perguntarem o que entende por essas potências, ou o
não se opõe, esse, quer seja instruído só pela razão ou só pela
que entende por Deus e por natureza, decerto nada sabe; quan-
Escritura, é realmente instruído por Deus e absolutamente feliz.
do muito, imagina a potência de Deus como o poder de uma
E é tudo quanto tinha decidido tratar a respeito da lei divina .
majestade régia e a da natureza como uma força e um impulso 1.
O vulgo chama, portanto, milagres ou obras de Deus aos
factos insólitos da natureza e, em parte por devoção, em parte
• Os Judeus pensam que Deus deu sete mandamentos a Noé, os únicos
a que estariam sujeitas todas as nações, mas que teria dado muitos mais ao
pelo desejo de contrariar os que cultivam as ciências da natu-
povo hebreu, a fim de o tomar superior aos outros em beatitude . reza, prefere ignorar as causas naturais das coisas e anseia por

202 203
w;1·
i} ouvir falar só do que mais ignora e que, por isso mesmo, m , que tudo aquilo que Deus quer ou determina envolve ne-
:1•.
i1!:
.1
·11• admira. Isto, porque a única maneira de ele adorar a Deus sidade e verdade eternas. Mostrámos, com efeito, que, uma
,1, que o entendimento divino se não distingue da sua von-
J,J atribuir tudo ao seu poder e à sua vontade é elidindo as causas ·
naturais e imaginando coisas estranhas ao curso da natureza: e, é igual dizer que Deus quer uma coisa ou que ele a en-
J, Nunca ele admira tanto a potência divina como quando imagina ·.de.Sendo assim, com a mesma necessidade com que da na-
1J, a potência da natureza como que subjugada por Deus. A ori~ eza e perfeição de Deus resulta que ele entende uma coisa
gem disto parece remontar aos antigos Judeus, os quais, para ~como ela é, resulta também que ele a quer como ela é. Dado,
li.iiJ convencer os gentios ·de então, que adoravam deuses visíveis:.s, itém, que não há nada que seja necessariamente verdadeiro a
1:/' tais como, o Sol, a Lua, a T~na, a: Água, o Ar, etc., e mostrar,,: .o ser por decreto divino, segue-se claramente que as leis uni-
[82] -lhes que esses deuses eram _fra.cos i inconstantes OU· mutáveis 1· :rsais da natureza são meros decretos de Deus que resultam [831
submetidos à autoridade do Deus invisível,
. narravam . os·seu '1,necessidade e da perfeição da natureza divina. Se, por con-
i~ milagres, tentando assim demonstrar também- que . toda a natu~ . te, acontecesse na natureza algo que repugnasse às suas
reza era dirigida em seu benefício exclusivo pelo poder do Deu, ! ' universais, repugnaria, necessária e igualmente, ao decreto,
11:
i.·
-~
.
1!,, que adoravam. E, de facto, isto agradou de tal maneira ads , entendimento e à natureza de Deus; ou, se alguém susten-
"I
homens que, até hoje, ainda não pararam de inventar milagre e que Deus faz alguma coisa contrária às leis da natureza,
para fazer crer que Deus os ama a eles mais do que a tudo e. ·a também obrigado a sustentar que Deus age contra a sua
'li resto e que são a causa final por que Deus criou e rege conti.!,.
nuamente todas as coisas. Do que não se arroga a insensatez dp
1 pria natureza, e não há nada mais absurdo. Poderíamos ainda
onstrá-lo facilmente pelo facto de a potência da natureza
1 vulgo, que não tem de Deus nem da natureza um só conceitq .~ a própria potência e virtude de Deus e de a potência divina
correcto, que confunde as resoluções de Deus com as dos ho- , 'ir, por sua vez, exactamente o mesmo que a essência de Deus,
mens e que imagina, enfim, a natureza de tal modo limitada · . s prefiro, por enquanto, omitir este aspecto 2 .
que acredita ser o homem a sua parte principal! .· ; Na natureza ·, portanto, não acontece nada que seja contrá-
Já descrevi com bastante pormenor as opiniões e preconcei- l às suas leis universais, ou até que não esteja de acordo ou
tos do vulgo sobre a natureza e os milagres, mas, para apresen- ' .e não seja uma consequência delas. Com efeito, tudo o que é
tar metodicamente o assunto, mostrarei a seguir: 1. que nad~ ~
0

ito é feito pela vontade e o eterno decreto de Deus, que o


;I'
1' acontece que seja contrário à natureza e que esta mantém uma :
ordem eterna, fixa e imutável, e bem assim o que deve enten"'.,;
der-se por milagre; 2.0 que não se pode conhecer pelos milagres
esmo é dizer, conforme já mostrámos, tudo o que é feito é
'ito segundo leis e regras que implicam eterna verdade e ne-
1 '
;essidade. A natureza observa sempre leis e regras que impli-
nem a essência, nem a existência, nem, por conseguinte, a pro- i
etema verdade e necessidade, se bem que não as conheça-
vidência de Deus, ao passo que pela ordem fixa e imutável da
' natureza podemos conhecer tudo isso muito melhor; 3.0 mostra- ',.
rei ainda, através de alguns exemplos tirados da Escritura, que 1 1
os a todas e, por conseguinte, observa também uma ordem
f'"'-a e imutável. Nem há qualquer razão válida que nos leve a
esta não entende pelos decretos e ordens de Deus e, conse- ·p.tribuir à natureza uma potência e uma virtude limitadas e a
quentemente, pela sua providência outra coisa senão a própria concluir que as suas leis se aplicam unicamente a certas coisas e
ordem da natureza, que deriva necessariamente das suas leis i,não a todas. Porque se a virtude e a potência da natureza são
eternas; 4. 0 por último, tratarei do modo como interpretar os ,-as próprias virtude e potência divinas, se as leis e regras da
milagres da Escritura e daquilo a que na sua descrição se deverá ·· natureza são os próprios decretos de Deus, então temos absolu-
prestar especial atenção. São estes os pontos principais relativa- tamente de admitir que a potência da natureza é infinita e que
mente ao tema do presente capítulo e que julgo serem da maior
importância para os objectivos de toda esta obra.
No que toca ao primeiro ponto, mostra-se facilmente a par· • Por natureza , não entendo aqui só a matéria e as suas afecções, mas
tir do que demonstrámos no cap . IV acerca da lei divina, a sa- toda uma infinidade de outras coisas.

204 205

!
"' ti

,.1
!~ as suas leis são tão amplas que se estendem a tudo o que é Visto que a existência de Deus não é conhecida por si mes-
!~ r concebido pelo próprio entendimento divino. De outro modo
teríamos de admitir que Deus criou uma natureza de tal manei-
ma*, ela deve necessar iamente deduzir-se de noções cuja ver-
. dade seja tão firme e inabalável que não possa haver nem con-
ra impotente e que as suas leis e regras são tão ineficazes que ,. ceber-se uma potência capaz de as alterar. Pelo menos a partir
11,i1,:·1:1,1
'
ele se vê frequentemente obrigado a vir de novo em seu auxílio do momento em que delas concluímos a existência de Deus, es-
se quer que ela se conserve e que as coisas se passem conforme ,sas noções devem aparecer-nos como tal, se queremos que a
•I deseja, o que presumo . ser completamente contrário à razão. . conclusão esteja a salvo de qualquer risco de dúvida. Porque se
1'
A partir, .pois~ do facto de nada . acontecer na natureza que ,as pudéssemos conceber como alteráveis por alguma potência,
não dependa das suas leis,: de estas ·se estenderem a tudo o que 'qualquer que ela fosse, então duvidaríamos da sua verdade e,
o entendimento divino concebe 'e de, .finalmente, a n~tureza consequentemente, também da nossa conclusão, isto é, da exis-
manter uma ordem fixa e imutável, restµfa .cl~i:o. qt.Íe·.a: palavra . tência de Deus, e jamais poderíamos estar certos de alguma coisa.
«milagre» só pode ser entendida relativamente às opiniões hu- Por outro lado, só sabemos se uma coisa está de acordo ou
(84] manas e não significa senão um facto cuja causa natural não po- 'l contradiz a natureza se demonstrarmos que ela está de acordo
demos explicar (ou, pelo menos quem escreve ou narra o mila- QU contradiz estes princípios. Assim, se fosse concebível que al-
gre não pode explicar) por analogia com outra coisa que ocorre Jguma potência (qualquer que ela fosse) fizesse na natureza algo 1ss1
:1
'.í
habitualmente. Poderia certamente dizer que um milagre é algo )que à natureza repugnasse, isso repugnaria a essas noções pri-
de que não podemos explicar a causa pelos princípios das coisas meiras e teríamos, portanto, de o rejeitar como absurdo ou du-
naturais conhecidos pela luz natural. Mas visto que os milagres vidar das noções primeiras (como acabámos de mostrar) e, con-
foram feitos de acordo com a compreensão do vulgo, o qual :,sequentemente, de Deus e de tudo quanto percebemos, seja de
ignorava totalmente os princípios das coisas naturais, não há !que modo for. Longe, pois, de demonstrarem a existência de
dúvida de que aquilo que os antigos consideravam milagre era Deus, os milagres, se por isto entendermos um facto que repug-
o que não podiam explicar da maneira como o vulgo habitual- a à ordem natural, fariam com que dela duvidássemos; pelo
mente explica as coisas naturais, isto é, recorrendo à memória contrário, sem eles, podemos estar absolutamente certos dela,
para se recordar de uma coisa semelhante que ele costuma ima- porquanto sabemos que tudo segue a ordem certa e imutável
ginar sem se admirar. Na verdade, o vulgo julga que et\tende da natureza. ·
Suponhamos, porém, que o milagre é aquilo que não pode
bem uma coisa quando não fica admirado com ela. qs antigos,
ser explicado por causas naturais, definição que pode entender-
e. quase todos os homens até aos nossos dias, avaliaram os mi-
-se de duas maneiras, seja que tem causas naturais mas elas es-
lagres unicamente por este critério, e não há dúvida de que nas
Sagradas Escrituras se descrevem como milíigres muitos factos
cujas causas podem facilmente explicar-se pelos princípios que
se conhecem das coisas naturais, conforme já indicámos mais , * Anotação VI. Duvidamos da existência de Deus e, consequentemente, du-
vidamos de tudo, enquanto dele tivermos, não uma ideia clara e distinta, mas
acima, no capítulo n, quando falámos da paragem do Sol que se apenas uma ideia confusa . Porque assim como aquele que não conhece cor-
verificou no tempo · de Josué e do seu retrocesso no tempo de rectamente a natureza do triângulo ignora que os seus três ângulos são iguais
Acaz. Trataremos, daqui a pouco, mais em pormenor deste as- a dois rectos, também o que concebe a natureza divina confusamente não vê
pecto, ou seja, da interpretação dos milagres, de que prometi que nela está incluída a existência. Ora, para que a natureza de Deus possa ser
por nós concebida clara e distintamente, é necessário ter em conta certas no-
falar no presente capítulo . Por agora, é tempo de passar ao se- ções muito simples a que chamamos comuns e encadear nelas aquilo que
gundo ponto e mostrar que não se pode entender, através dos pertence à natureza divina. Só então se nos tomará claro, primeiro, que Deus
milagres, nem a essência, nem a existência, nem a providência existe necessariamente e está em toda a parte; segundo, e em simultâneo, que
de Deus, e que tudo isso pode compreender-se muito melhor tudo o que nós concebemos envolve em si a natureza de Deus e é concebido
pela ordem fixa e imutável da natureza. Para o demonstrar, por ela; por último, que é verdadeiro tudo o que nós concebemos adequada-
mente. Mas, sobre isto, veja-se o prólogo do livro intitulado Princípios de Filo-
procedo como se segue. sofia Demonstrados segundo o Método Geométrico.

206 207
!
capam ao entendimento humano, seja que não admite outra causa todas essas causas juntas, mas superior em muito à de cada uma
senão Deus, isto é, a vontade divina. Dado que tudo o que é em particular. Visto, porém, que as leis da natureza (como já
produzido por causas naturais é produzido também graças ape- mostrámos) se estendem ao infinito e são concebidas por nós
nas à potência e à vontade de Deus, chega-se necessariamente à sob uma certa espécie de eternidade, e visto que a natureza
conclusão de que um milagre, quer tenha ou não causas natu- ,, procede de acordo com elas numa ordem certa e imutável, tais
rais, é um facto que não pode explicar-se pela causa, isto é, que leis indicam-nos, de algum modo, a infinidade, a eternidade e a
ultrapassa a compreensão humana. Todavia, a partir de um fa~to '..'imutabilidade de Deus. Concluímos, pois, que pelos milagres não
ou de qualquer coisa que ultra.passa a nossa compreensão, nada t podemos conhecer Deus, nem a sua existência e a sua providên-

podemos conhecer. Com efeito, tud9 o que __conhecemos clara e ·;eia, ao passo que da ordem fixa e imutável da natureza as po-
distintamente deve ser conhec _ido, ou por si, ou por qu·alquer ( demos deduzir muito melhor.
outra coisa que se conhece por ·si mesma clara e distintamente. Quando falo, nesta conclusão, de milagre, não entendo por
,1n, Donde, pelo milagre, isto é, por um facto qüé ultràpàssa a nos- 'il5to senão um facto que ultrapassa ou é suposto ultrapassar a
'I
sa compreensão, não podemos entender nem a essência, nem a 'compreensão humana, pois, se supuséssemos que ele destrói ou
l!1i n existência, nem seja o que for de Deus e da natureza. Pelo con- '.interrompe a ordem da natureza, ou repugna às suas leis, não
1

,1 trário, uma vez que todas as coisas estão, como sabemos, deter- ·sónão poderia, como já dissemos, fornecer qualquer conheci-
',li., minadas e prescritas por D~us, que as operações da natureza 1mento de Deus, como até suprimiria o que dele temos natural-
são consequências da essência de Deus e que as leis da natureza mente, fazendo-nos duvidar de Deus e de tudo o mais. Nem
:11,1 correspondem a eternos decretos e vontades de Deus, temos tão-pouco estabeleço aqui qualquer distinção entre um facto an-
i'
absolutamente de concluir que se conhece tanto melhor Deus e ~atural e um facto sobrenatural 4, isto é, um facto que, como
a sua vontade quanto melhor conhecemos as coisas naturais 3 e f~lguns dizem, apesar de não contrariar a natureza, não pode,
mais claramente entendemos de que modo elas dependem da p.oentanto, ser produzido ou efectuado por ela. Na verdade,
sua causa primeira e operam segundo as eternas leis da natu- ~orno o milagre não se efectua fora da natureza mas sim na
reza . Daí que, em relação ao nosso entendimento, há muito mais :própria natureza, ainda que o tenhamos por sobrenatural, é ne-
razão para chamar obras de Deus e atribuir à sua vontade aqui- ·cessário que ele interrompa a ordem da natureza, a qual, por
lo que entendemos clara e distintamente do que aquilo que de hutro lado, nós concebemos como fixa e imutável em virtude
todo em todo ignoramos, muito embora preencha a imaginação .dos decretos de Deus. Portanto, qualquer coisa que se produ-
dos homens e os arrebate de admiração. Na verdade, só as obras zisse na natureza e que não fosse consequência das suas leis
[861 da natureza que entendemos clara e distintamente oferecem de /tepugnaria necessariamente à ordem que Deus estabeleceu para
Deus o conhecimento mais sublime e indicam sem sombra de ,,toda a eternidade mediante as leis universais da natureza e, (87]
dúvida a sua vontade e os seus decretos. Estão, portanto, a 'portanto, seria contrário à natureza e às suas leis. Consequente-
brincar os que invocam a vontade de Deus sempre que não sa- inente, acreditar nisso far-nos-ia duvidar de tudo e conduziria
bem explicar uma coisa. Que maneira mais ridícula de confessar ao ateísmo 5. Julgo ter assim demonstrado o que havia proposto
a ignorância! i;no segundo ponto, e com argumentos bastante sólidos, de onde
Além disso, ainda que pudéssemos tirar alguma conclusão ,;;podemos uma vez mais concluir que o milagre, contra a natureza
dos milagres, nem assim se poderia de forma alguma concluir a ou acima da natureza, é simplesmente um absurdo. Por essa
existência de Deus. De facto, sendo o milagre uma obra limita- , razão, nos Livros Sagrados, não pode entender-se por milagre
da e que nunca exprime senão uma certa e limitada potência, .é . senão um facto natural que ultrapassa ou é suposto ultrapassar
li evidente que de um tal efeito não podemos concluir a existência
de uma causa cuja potência seja infinita; no máximo, de uma
1
a compreensão humana .
Antes de passar ao terceiro ponto, convém primeiro confir-
lj causa cuja potência seja maior. E digo «no máximo», porque do mar pela autoridade da Escritura a nossa afirmação de que não
concurso de muitas causas em simultâneo . pode obter-se tam- podemos conhecer Deus pelos milagres. Embora a Escritura em
:1 bém um efeito cuja força e potência seja inferior à potência de , parte alguma o ensine abertamente, é, contudo, fácil deduzi-lo,
8

208 209
antes de mais, do facto de Moisés (Deut., cap . xrn) prescrever aos Israelitas sinais de si para que soubessem que ele era Deus,
que condenem à morte o profeta sedutor, ainda que ele faça não se conclui daí que os milagres ensinem realmente isso, mas
milagres. Diz Moisés: e (mesmo que) apareçao sinal e o prodígio apenas que os Judeus possuíam opiniões tais que podiam facil-
que ele te anunciou, etc., não queiras (ainda assim) acreditarnas pa- mente deixar-se convencer por aqueles milagres . Já atrás, no
lavras desse profeta, etc., porque o Senhor vosso Deus vos tenta, etc. capítulo 11, tínhamos com efeito deixado claro que os argumen-
Que esse profeta seja (portanto) condenadoà morte, etc . Donde se ' tos proféticos, isto é, os argumentos com base na revelação, não
segue, com toda a clareza, que os milagres podem ser feitos ; se obtêm a partir de noções universais e comuns, mas sim a
por falsos profetas e que os homens, se não estiverem munidos
do verdadeiro conhecimento . e amor de D.~us, tão facilmente
· partir dos preconceitos, mesmo que sejam absurdos, e das opi-
'biões daqueles a quem é feita a revelação ou a quem o Espírito
podem, pelos milagres, acreditar nos falsos deuses cOino :no Santo quer convencer, conforme explicámos por variadíssimos
verdadeiro. Moisés, com efeito, àcrescerita: pois que·Jeov.á,vosso ~emplos e, inclusive, pelo testemunho de Paulo, que era grego
Deus, vos tenta, para saber se porventura o amais com todá o vosso · tre os Gregos e judeu entre os Judeus 7 . Porque, embora tais
coração e todo o vosso ânimo. Por outro lado, os Israelitas, com · •
1
agres pudessem convencer os Egípcios e os Judeus com base
tantos milagres, nunca conseguiram formar uma ideia correcta
.os seus preconceitos, não lhes podiam fornecer uma ideia e
de Deus, como atesta a própria experiência. De facto, quando
conhecimento verdadeiro de Deus; podiam apenas fazer com
se persuadiram de que Moisés os abandonara, pediram a Arão
.ue admitissem existir uma divindade mais potente que tudo
divindades visíveis, e foi um vitelo, que vergonha!, a ideia que
.9.uilo que eles conheciam e que zelava pe los Hebreus, a quem
ao cabo de tantos milagres eles formaram de Deus. Asaf, apesar
iessa altura as coisas corriam pelo melhor e acima até do que
de ter ouvido contar tantos milagres, duvidou da providência
~<leriam esperar, mais do que por quaisquer outros, mas não
de Deus e ter-se-ia afastado do verdadeiro caminho se não
tivesse, enfim, compreendido a verdadeira beatitude (ver sal- · e Deus cuida igualmente de todos, pois isto só a Filosofia o
mo Lxxm). Até Salomão, no tempo do qual os Judeus estavam . e ensinar. Daí que os Judeus e todos aqueles que conhece-
no auge da prosperidade, suspeita que tudo aconteceu por acaso 'ap:i.a providência divina apenas pela desigualdade de condi-
(ver Eclesiastes,caps. III, 19, 20, 21, e IX, 2, 3, etc.). Enfim, para ;ões e pela desigual fortuna dos homens se tenham persuadido
[881 quase todos os profetas foi urna questão extremamente obscura
que os Judeus eram mais amados por Deus do que os ou-
saber como a ordem da natureza e os acontecimentos humanos s, muito embora não fossem superiores a eles na verdadeira
poderiam conciliar-se com a ideia que faziam da providência de ·rfeição humana, como já mostrámos no capítulo m.
Deus, enquanto para os filósofos, que tentam compreender as Passo, pois, í:1ºterceiro ponto, para demonstréµ" pela Escri- [891

coisas, não por milagres, mas por conceitos claros, foi sempre a que os decretos e mandamentos de Deus e, por conseguinte,
bastante evidente, em particular para os que baseiam a verda- .sua providência, não são senão a ordem da natureza. Ou seja,
deira felicidade apenas na virtude e na tranquilidade de ânimo, ~ando a Escritura diz que isto ou aquilo foi feito por Deus ou
que não pretendem que a natureza lhes obedeça e procuram, 'pela sua vontade deve-se entender simplesmente que foi feito
em vez disso, obedecer-lhe, que sabem que Deus dirige a natu- segundo as leis e a ordem da natureza, e não, como crê o vul-
reza conforme exigem as suas leis universais e não as leis parti- go, que a natureza deixou por um momento de agir ou que a
culares dá natureza humana e que, por isso mesmo, zela não só !Ua ordem foi por algum témpo interrompida 8 • A Escritura,
pelo género humano mas por toda a natureza. Portanto, consta porém, não ensina directamente o que não concerne à sua dou-
também da própria Escritura que os milagres não fornecem o i trina, pois o seu intuito não é Qá o mostrámos a propósito da
verdadeiro conhecimento de Deus nem ensinam claramente a · lei divina) ensinar as coisas pelas causas naturais, nem ensinar
sua providência 6 . coisas meramente especulativas. Por esta razão, o que pretende-
Quanto ao facto de a Escritura repetir frequentemente que mos aqui provar deverá extrair-se como uma consequência de
Deus fez prodígios para se dar a conhecer aos homens, como certas histórias da Escritura que, por acaso, vêm narradas com
no P.xodo,cap . x, 2, onde se diz que iludiu os Egípcios e deu mais pormenores e circunstâncias. Apresentarei algumas delas .

210 211
Em Samuel, liv. r, cap . IX, 15, 16, conta-se que Deus revelou rem causas naturais. Por exemplo, para que os Egípcios fossem
a Samuel que lhe enviaria Saul. Contudo, Deus não enviou Saul infestados pela lepra, foi necessário que Moisés espalhasse cinza
a Samuel como os homens costumam enviar alguém a outra pes- , pelo ar (f.xodo, cap. IX, 10). De igual modo os gafanhotos, foi
soa, pois este envio por parte de Deus não foi senão a própria graças a uma ordem natural de Deus, ou seja, graças ao vento
ordem da natureza. Saul procurava (como se conta no capítulo · de Leste que soprou durante todo um dia e uma noite, que
citado) as jumentas gue tinha perdido e, quando já estava deci- ;. )· invadiram a terra dos Egípcios, tal como depois a deixaram gra-
dido a voltar a casa sem elas, foi ter, a conselho do seu _criado, ll ças a um vento fortíssimo que soprou de Oeste (f.xodo, cap. x,
com o profetã Samuel ·para quê este lhe dissesse onde as pode- ~1 14, 19). E foi ainda por uma ordem semelhante de Deus que o
ria encontrar. Não consta; ·em . parfí:- alguma · da narração, que mar abriu caminho aos Judeus (P.xodo,cap. XIV, 21), isto é, devi-
Saul tenha recebido outra ordem ·de Deus, além desta da: natu- t do ao Euro, que soprou fortemente durante toda uma noite.
reza, para ir ter com Samuel. Nó salmo · cv, 24, diz_-se:·que ·De_us _ Eliseu, para reanimar aquele menino que julgavam já morto, teve
alterou o ânimo dos Egípcios para que odi·assem os ·Israelifas. :;de se deitar algumas vezes sobre ele, até que, primeiro, reaque-
Ora, uma tal alteração foi também inteiramente natural, como ceu e, depois, abriu finalmente os olhos (Reis, liv. II, cap. N, 34,
se pode ver no cap. r do f.xodo, onde se refere a razão, e não \35). Da mesma forma, no Evangelho de João, cap. rx, contam-se
li'· era assim tão pouca, que levou os Egípcios a reduzir os Israeli- algumas circunstâncias de que Cristo se serviu para curar o cego.
i[r tas à escravidão. No Génesis, cap. IX, 13, Deus diz a Noé que B, como estas, há muitas mais passagens na Escritura que mos-
11

fará aparecer o arco-íris nas nuvens. Mas esta acção divina tam- Mamtodas que os milagres requerem algo mais do que aquilo a
bém não é mais do que a refracção e reflexão que sofrem os · e chamam uma ordem absoluta de Deus. É necessário, por-
raios solares nas gotas de água. No salmo CXLVII, 18, chama-se o .to, aceitar que, embora as suas circunstâncias e causas natu-
verbo de Deus à acção natural do vento e do calor que liquefaz is nem sempre e nem todas estejam descritas, sem elas os mi-
a geada e a neve, e no vers . 15 chama-se sentença e verbo de gres não acontecem . E isto vê-se também pelo f.xodo, cap. XIV,
Deus ao vento e ao frio; o vento e o fogo são ainda, no salmo crv, ', onde apenas se relata que, a um simples gesto de Moisés, o
•· • 4, designados por enviados e ministros de Deus. E para além ar se encapelou de novo, sem se fazer qualquer alusão ao
destas, há muitas outras passagens do mesmo género na Escri- .to. Todavia, no Cântico, cap. xv, 10, diz-se que tal aconteceu
tura que indicam com toda a clareza que decreto, mandamento, • ;rque Deus soprou com o seu vento (isto é, com um vento
sentença e palavra de Deus não são outra coisa além da acção e 1
rtíssimo): é que, omitindo-se na história esta circunstância, o
[90J a ordem da natureza. É, portanto, inegável que todos os factos , "agre parece ainda maior 9 . (91]
narrados na Escritura aconteceram naturalmente; e se ela os atri- · Haverá talvez, quem insista que há muitos milagres na Es-
bui a Deus é porque o intuito da Escritura, como já vimos, não ' itura que não parecem de forma alguma poder explicar-se por
é ensinar as coisas pelas causas naturais, mas unicamente narrar 'ausas naturais, como, por exemplo, que os pecados dos ho-
aquelas que são pasto abundante para a imaginação, e isto se- .ens e as suas orações podem acarretar o mau tempo ou a fer-
gundo o método e o estilo mais adequados para despertar a idade da terra, ou que a fé pode curar os cegos e outros
admiração por tais coisas e, consequentemente, incutir a piedade ,' ftctos do mesmo tipo narrados na Bíblia. Julgo, porém, que já
I: no ânimo do vulgo . , 1pondi a isto. Efectivamente, mostrei que a Escritura não en-
:I
· O encontrarem-se nos Livros Sagrados algumas coisas de as coisas pelas suas causas próximas; conta-as pela ordem e
i que desconhecemos as causas e que parecem ocorrer fora, senão :óm aquelas frases que mais incentivam os homens, e principal-
d mesmo contra a ordem da natureza não deve constituir qual- ente a plebe, à devoção. Por este motivo, ela fala com bastan-
quer obstáculo a que acreditemos que tudo o que na realidade 1 impropriedade de Deus e das coisas, uma vez que não pre-
.1
p acontece acontece naturalmente . Isto confirma-se também pelo
facto de se observarem nos milagres várias circunstâncias que, .
de convencer a razão mas impressionar e ocupar a fantasia e
,imagínação dos homens. Se a Escritura narrasse a devastação
apesar de nem sempre virem narradas, sobretudo quando são · um Estado como fazem habitualmente os historiadores polí-
descritas em estilo poético, mostram claramente que eles reque- ·cos 10, a plebe não ficaria nada comovida; pelo contrário, des-

212 213
• li
1.1
~il
\

:{1,1 crevendo tudo poeticament e e atribuindo tudo a Deus, como sofos qu e escreveram sobre a história da natureza 11, se não
1,,i
1
:\ 11
costuma fazer, ela comove-se imenso. Assim, quando a Escri- considerasse que era supérfluo. Citarei apena s um, tirado da
·r tura diz que a terra é estéril devido aos pecados dos hom ens, Sagrada Escritura, e o leitor que ajuíze dos outros .
1:,
: ou que os cegos são curados pela fé, não devemos ficar mais No tempo de Josué, conforme já dissemos, os Hebreus acre-

il
ij:1
impressionados do que quando ela afirma que Deus, por causa
dos pecados dos homens, se irrita, fica triste, arrepende-se do
bem prometido ou que já fez, .oµ até . q~e . Deus se recorda, ao
ver um sinal, daquilo que prometeu, e tantas outras coisas que
ditavam, como o vulgo, que o Sol se movia segundo o chamado
,movimento diurno, ao passo que a Terra estava em repouso,
-adaptando a esta opinião preconcebida o milagre que lhes acon-
teceu durante o combate contra aqueles cinco reis. Não se limi-
estão ditas de forma poétita ou s_ão -relatadas em conformidade taram, pois, a contar que esse dia tinha sido mais longo que o
com as opiniões e preconceitos do escritor. Concluímos, pór isso, abitual: acrescentaram que o Sol e a Lua tinham parado, ou
que tudo o que na Escritura se diz ter de facto acontecido acon- ''"eja, que tinham interrompido o seu movimento, coisa que nessa
teceu necessariamente, como tudo acontece, segundo as leis da ltura lhes podia ser de grande utilidade para convencer os
natureza; e se lá se encontrar alguma coisa da qual se possa ~ntios, que adoravam o Sol, e para lhes provar pela própria
apodicticamente provar que repugna às leis da natureza , ou que xperiência que o Sol estava sob o poder de uma outra divin-
não pode ser consequência delas, nesse caso, devemos ter por ade, a um gesto da qual ele era obrigado a alterar a sua ar-
absolutamente certo que foi um acrescento feito aos Livros Sagra- .em natural. Assim, em parte por religião, em parte por opi-
dos por homens sacrílegos. Tudo o que é contrário à natureza é 'ão preconcebida, pensaram e contaram uma coisa totalmente
contrário à razão; e o que é contrário à razão é absurdo e deve, 'erente daquilo que podia realmente ter acontecido.
por conseguinte, ser rejeitado. Para interpretar os milagres da Escritura e perceber pela
Resta ainda fazer algumas breves observações sobre a inter- úa narração o modo como as coisas se passaram de facto, é
pretação dos milagres, ou melhor, recapitular, uma vez que o .ecessário conhecer as opiniões daqueles que em primeira mão
essencial já foi dito, e ilustrar com um ou outro exemplo, con- s narraram 12 e no-los deixaram por escrito, distinguindo-as
forme prometi fazer neste quarto ponto. E quero fazê-lo, ainda ·-aquilo que se lhes representou nos sentidos; doutra forma,
assim, não vá alguém, interpretando mal um milagre, suspeitar onfundimos as suas opiniões e juízos com o próprio milagre,
que encontrou na Escritura alguma coisa que repugne à luz 'Orno realmente aconteceu. E não é só por isso que importa co-
natural. íhecer essas opiniões; é também para não se confundir as coisas
1
É muito raro os homens contarem simplesmente uma coisa L .ue de facto se verificaram com coisas imaginárias que não fo-
t
r
tal como ela aconteceu, sem acrescentarem nada de sua opinião. senão representações profé ticas. Na Escritura, efectivamen-
[92J Por outro lado, sempre que eles vêem ou ouvem algo de novo, . , narram-se muitas coisas como reais, e acreditava-se que o [931
I;
se não tiverem o maior cuidado com os seus preconceitos, ficam _fossem, muito embora não passassem de visões e coisas imagi-
de tal maneira preocupados que percebem uma coisa completa- bárias. Diz-se que Deus (o Ser supremo) desceu do céu (fxodo,
1 mente diferente daquilo que vêem ou ouvem acontecer, em es- €ap. XIX, 18, e Deut ., cap . v, 19) e que o monte Sinai fumegava
! pecial quando é algo que ultrapassa a compreensão do narrador
ou daquele que o escuta, e mais ainda se têm interesse em que
jporque Deus tinha descido sobre ele circundado de fogo, ou
.~ue Elias subiu ao céu num carro de fogo puxado por cavalos
1 essa coisa aconteça de determinada maneira. Este o motivo por •igualmente de fogo, tudo coisas que seguramente não foram
que, nas suas crónicas e histórias, os homens contam mais as senão representações adaptadas às opiniões daqueles que no-las
suas opiniões que os próprios factos, e um só e mesmo caso é transmitiram tal como elas se lhes representaram, isto é, como
descrito por dois homens com opiniões diversas de forma tão , realidades. Quem quer que saiba alguma coisa mais do que o
diferente que parecem estar a falar de casos distintos . Muitas . · VUigo sabe que Deus não tem direita nem esquerda, que não se
vezes, até nem é muito difícil investigar , só pelas histórias, as 'move nem permanece imóvel, que não está num determinado
'' opiniões do cronista ou do historiador. Poderia citar aqui, em lugar mas que é absolutamente infinito e contém em si todas as
abono disto, muitos exemplos, tanto de cronistas como de filó- 1 perfeições . Isto, repito, sabem-no os que julgam as coisas por
1

1 214 215
percepções do puro entendimento e não conforme a imaginação dos de dizer dos Judeus e que é escusado referir aqui uma por
é afectada pelos sentidos externos, como costuma fazer o vulgo, µma . Quero apenas fazer notar, genericamente , que os Hebreus
o qual imagina, por isso mesmo, um Deus com corpo e com não usavam tais expressões só como ornamentos literários, ma s
poder régio, cujo trono estaria assente na abóbada celeste, por também e sobretudo para falarem com devoção. Por isso é que
cima das estrelas, que julga estarem a uma pequena distância da se encontra nos Livros Sagrados bendizer a Deus por maldizer(Reis,
Terra. É a estas opiniões e a outras semelhantes que está adap- liv. 1, cap. XXI, 10, e Job, cap. u, 9), e por isso também eles atri-
tado, como dissemos, um gran~e número de casos da fa;critura, : buíam tudo a Deus, de tal modo que a Escritura não parece
que não devém, por conseguinte, ser "tidos· como reais pelos fi- '. narrar senão milagres, mesmo quando fala das coisas mais natu-
lósofos 13• : _ : rais, conforme alguns exemplos que já apresentámos. Há, por-
Importa, finalmente, para entender os milagres tal com~ ·.eles . tanto, que admitir que a Escritura, quando diz que Deus endu-
aconteceram, conhecer as expressões . e as figura~ · d~ ~rétórj .ca _ " receu o coração do Faraó, quer significar apenas que o Faraó se
1
utilizadas pelos Hebreus. Quem não tiver isto em devida conta obstinou; quando diz que Deus abriu as janelas do céu, quer di-
acrescentará à Escritura muitos milagres que os seus autores y:er que a chuva caiu em abundância; e assim por diante. Se ti-
nunca pensaram narrar e, deste modo, ignorará totalmente, não ·vermos isto em conta, e bem assim o facto de muitas coisas
só as coisas e os milagres tal como ocorreram de facto, mas rradas de forma excessivamente breve, sem quaisquer porme-
também o pensamento dos autores dos sagrados códices. Por :nores e como que truncadas, não encontraremos na Escritura
exemplo, Zacarias, falando de uma guerra futura, diz no cap. xrv, ,isa alguma que possa demonstrar-se que repugna à luz natu-
7: e será um dia único, um dia que só Deus conhece(pois não será) ··al. Pelo contrário, muita coisa que é tida por extremamente
nem dia nem noite, mas à tarde surgirá a luz. Com estas palavras, ·,bscura poderá, com um mínimo de reflexão, compreender-se e
parece que está a predizer um grande milagre e, no entanto, ele .- .terpretar-se facilmente. E, com isto, julgo ter mostrado com
quer dizer apenas que o combate estará indeciso durante todo "ciente clareza aquilo que tinha prometido.
o dia, que só Deus sabe o seu desfecho e que à tarde alcançam a Mas antes de dar por terminado este capítulo, há ainda uma
vitória. Era com frases destas, efectivamente, que os profetas cos- dvertência que quero fazer: segui aqui, no que se refere aos
tumavam predizer e escrever as vitórias e as derrotas das nações. µagres, um método inteiramente diferente do que tinha usado
Do mesmo modo, vemos Isaías descrever assim, no cap. xm, a tratar da profecia. Sobre esta, com efeito, não afirmei senão [951
[941 destruição de Babilónia: porque as estrelas e os astros do céu não · _uilo que pude concluir de fundamentos revelados nos Livros
mais iluminarãocom a sua luz, o Sol escurecer-se-á ao nascer e a Lua 1 gradas, ao passo que neste capítulo o principal foi extraído
não propagaráo esplendorda sua claridade.Presumo que ninguém, enas de princípios conhecidos pela luz natural. E fi-lo propo-
com certeza, acredita que isto tenha acontecido aquando da 'tadamente. Porque da profecia, na medida em que ela ultra-
devastação daquele império, tal como ninguém acredita no que sa a compreensão humana e é uma questão meramente teo-
11 o profeta acrescenta logo a seguir: por isso farei tremer os céus, e a -gica, nada poderia afirmar e nem sequer poderia saber em
\I'
Terraafastar-se-ádo seu lugar. O mesmo Isaías (cap. xLvm, penúlti- 9ue é que ela consiste essencialmente a não ser a partir de prin-
mo versículo), para dizer aos Judeus que voltariam sãos e sal- ~pios revelados. Fui, por isso, obrigado a fazer a história da
vos da Babilónia para Jerusalém e que não passariam sede du- · •rofecia e a extrair dela alguns dogmas que me dessem a co-
rante o caminho, diz: e não sofreramsede, ele conduziu-osatravés dos 1 .. ecer, na medida do possível, a sua natureza e as suas proprie-
desertose para elesfez brotar a água do rochedo,partiu o rochedoe as dades. A respeito dos milagres, porém, uma vez que o objecto
águas jorraram. Com estas palavras, note-se, quer simplesmente da nossa investigação (saber se se pode aceitar que algo aconte-
dizer que os Judeus encontrariam no deserto, corno aconteceu, na natureza que repugne às suas leis ou que delas não possa
fontes em que saciariam a sede . Não consta, efectivamente, que • ~erivar) é inteiramente filosófico, não se requeria nada de se-
lhes tenham acontecido milagres semelhantes quando foram elhante; achei até preferível resolver esta questão com base
autorizados por Ciro a partir para Jerusalém. E como estas há · Jmprincípios conhecidos pela luz natural, porquanto são os que
nos Livros Sagrados inúmeras expressões, que são simples mo- :tnelhor conhecemos . E digo que achei preferível, porque tam-

216 217
j
bém podia resolvê-lo facilmente por meio de dogm.as e princí- que seja a título de ensinamentos necessários para a salvação.
pios extraídos unicamente da Escritura, conforme vou aqui mos- Julgo, pelo contrário, que os profetas partilhavam desta nossa
trar em poucas palavras, a fim de que fique claro para todos. opinião sobre os milagres, acerca dos quais, por conseguinte,
Sobre a natureza em geral, a Escritura afirma em algumas cada um é livre de julgar como sentir que é melhor para abra-
passagens que ela mantém uma ordem fixa e imutável, como çar sem reservas a religião e o culto prestado a Deus. É, de
no salmo CXLVIII, 6, e em Jeremias, cap . xxxr, 35, 36. O Filósofo, resto, o que pensa Josefa, quando escreve na conclusão do liv. u
além disso, no seu Eclesiastes,cap . 1, 10, ensina clarame _nte que das Antiguidades: Que ninguém fique incréduloperantea palavrami-
nada de novo · acontece na nátureza · e,· n:os vers. 11 e 12, ao lagre, se para os homens antigos e isentos de qualquermalícia uma via
explicar esta afirmação, diz · que, erilpOFa algumas vezes aconte- de salvaçãose abriu através do mar,fosse por vontadede Deus ou fosse
ça algo que parece novo, na r~alidade não é, pois acontec~i.r já espontaneamente,já que tambémpara aquelesque outroraestiveramcom
em séculos passados e dos quais não resta qualquer memória. Alexandre, rei da Macedónia,o mar de Panft1iase abriu e, não havendo
Como ele próprio diz, das coisas antigas não subsiste boje qüal- outro caminho,deu-lhes passagem, pois Deus queriadestruir, por inter-
quer recordação, da mesma forma que a posteridade não guar- médio deles, o impériodos Persas.É isto o que confessamtodos os que
dará nenhuma das coisas do nosso tempo. Mais à frente, no 'relataramosfeitos de Alexandre,de modo que, sobreo assunto, cadaum
cap. m, 11, diz que Deus ordenou tudo da melhor maneira e a pense como quiser. São estas as palavras de Josefa e o juízo que
seu tempo e, no vers. 14, diz saber que tudo o que Deus faz \faz acerca da fé nos milagres .
permanecerá para a eternidade, sem que se lhe possa tirar ou
,.I;
, acrescentar seja o que for. Tudo isto ensina claramente que a
natureza observa uma ordem fixa e imutável, que Deus foi sem-
li:
r, pre o mesmo em todos os séculos por nós conhecidos ou desco-
nhecidos, que as leis da natureza são tão perfeitas e fecundas
~,.s;1,u.1n1i'' que nada se lhes pode acrescentar ou subtrair e que, finalmente,
~t:ís:,tY-~111
1j! os milagres só por ignorância dos homens surgem como algo
de novo . É isto o que a Escritura expressamente ensina. Em
,!11
parte alguma, pelo contrário, ela ensina que algo aconteça na
11 [961 natureza que repugne às suas leis ou que não possa derivar delas,

pelo que também não devem atribuir-se-lhe tais ficções. A isto
acresce que os milagres requerem (como já mostrámos) causas e
circunstâncias e não são consequência de um não sei que poder

,,
1:
real ficticiamente atribuído a Deus pelo vulgo, mas sim do po-
der e do decreto divinos, isto é (como também mostrámos pela
própria Escritura), das leis da natureza e da sua ordem, e que,
ft,
finalmente, os milagres podem ser feitos também por imposto-
fJ res, conforme se tem de admitir pelo cap. XIII do Deuteronómioe
pelo cap. XXIV, 24, de Mateus.
1ti Daqui se conclui que os milagres foram, obviamente, fenó-
.1
li menos naturais e devem, por conseguinte, ser explicados de for-
1 ma a não parecerem algo de novo (para usar o termo de Salo-
" mão) ou contra a natureza, mas sim, o mais aproximado possível
Ili
das coisas naturais. Foi para que todos o pudessem fazer com
facilidade que apresentei algumas regras extraídas unicamente
da Escritura. Mas embora afirme que esta os ensina, não penso

218 219

!
CAPITULO VII (97]

DA INTERPRETAÇÃO DA ESCRITURA

'· ,.
Toda a gente diz que a Sagrada Escritura é a palavra de
us que ensina aos homens a verdadeira beatitude ou o cami-
}j1 ; • .o da salvação: na prática , porém, o que se verifica é comple··
1' ente diferente. Não há, com efeito, nada com que o vulgo
1'
ueça estar menos preocupado do que em viver segundo os
l. . sinamentos da Sagrada Escritura . É ver como andam quase
·~os a fazer passar por palavra de Deus as suas próprias in-
enções e não procuram outra coisa que não seja, a pretexto da
,l!ligião, coagir os outros para que pensem como eles. Boa parte,
· usive, dos teólogos estão preocupados é em saber como ex-
,rquir dos Livros Sagrados as suas próprias fantasias e capri-
l _ios, corroborando-as com a autoridade divina. Nem há mes-
!·· 10 nada que eles façam com menos escrúpulos e com maior

1
eridade que a interpretação da Escritura, ou seja, da mente
.o Espírito Santo; e se alguma coisa os aflige, não é o receio de
' .tribuir ao Espírito Santo algum erro e afastarem-se do cami-
1
,, o da salvação, mas sim poderem ser apanhados em erro pe -
tJQS outros e, deste modo, verem a sua própria autoridade cal-
1
!âda aos pés dos adversários e serem alvo de escárnio. Porque
os homens fossem sinceros quando falam da Escritura, te-
uma regra de vida completamente diferente: as suas men-
tes não andariam agitadas com tanta discórdia, não se comba-
·teriam uns aos outros com tanto ódio, nem manifestariam um
tão cego e temerário desejo de interpretar a Escritura e de in-
'Ventar na religião coisas novas . Pelo contrário, não ousariam
abraçar como doutrina da Escritura senão o que ela ensina com
1a maior clareza e, finalmente, esses sacrílegos que não hesita-
; ram em adulterar a Escritura em inúmeras passagens guardar -

221
j
-se-iam de cometer tamanho crime e afastar iam dela as sacrí- 1, · cutir com tant a segurança as coisas que ultrap assam a nossa com-
legas mãos 1 . preensãocomo aquelas que conhecemos pela luz natural.
Porém, a ambição e o crime adquiriram tal poder que fa- ·· No entanto, e para que fique claro que esta via é, não só a
zem a religião consistir menos em obedecer aos ensinamentos _ correcta, mas também a única, além de estar em conformidade
do Espírito Santo que em defender humanas fantasias e, pior ~ ,com o método de interpretação da natureza, é preciso notar
ainda, em vez de se traduzir pela propagação da caridade, se Jque a Escritura trata frequentemente de coisas que não podem
traduza pela disseminação das _discórdias e do ódio mais encar- 'xle<iuzir-se dos princípios conhecidos pela luz natural. Com efeito,
niçado entre Ós homens, disfarçado de zeío divino e fervor ar- 'eta compõe-se em boa parte de histórias e revelações; ora, as
dente. E a estes males acresce ainda :a superstição, que os e~sina ÍJ;ústórias contêm principalmente milagres, isto é (como mostrá- (991

a desprezar a natureza e a razãÓ e a a_qmirar e veneraf :apenas .os no capítulo anterior) descrições de factos insólitos da natu-
(98] O que as contradiz a ambas, pelo que não ~ de espantar se eles - ·êzaadaptados às opiniões e à mentalidade dos historiadores
se empenham assim tanto, para admirarem e venerarem ainda as escreveram; as revelações, por seu turno, estão também
mais a Escritura, em explicá-la de modo que pareça contradizer daptadas às opiniões dos profetas, como mostrámos no capítu-
por completo a natureza e a razão. É por isso que eles sonham - n, e ultrapassam realmente a compreensão humana. Qaí que o
que nos Livros Sagrados se escondem mistérios profundíssimos, inhecimento de todas estas coisas, ou seja, de quase tudo o
e nisto, quer dizer, na investigação destes absurdos, se afadi- .e vem na Escritura, deva extrair-se unicamente da própria
gam, desprezando 0utras coisas úteis. E tudo quanto inventam ' ·tura, do mesmo modo que o conhecimento da natureza se
neste seu delírio atribuem ao Espírito Santo e tentam defender e extrair da própria natureza.
com toda a veemência e paixão . Os homens, de facto, são as- No que respeita aos ensinamentos morais que também vêm
sim: aquilo que concebem pelo puro entendimento defendem-no -, Bíblia, embora eles possam demonstrar-se com base em no-
só pelo entendimento e a razão; pelo contrário, aquilo que opi- comuns, não se pode, todavia, a partir destas noções, de-
.onstrar que ela os ensina, pois tal só poderá afirmar -se com
nam por força dos afectos é com estes que o defendem. Ora,
se na Escritura. Além disso, se queremos, sem preconceitos,
para sair de tais confusões, libertarmos a mente dos preconcei-
.edarar a divindade da Escritura, terá de, com base exclusiva-
tos dos teólogos e não abraçarmos temerariamente invenções
te nela, ser-nos evidente que ela ensina verdadeiros ensina-
humanas como se fossem ensinamentos divinos, temos de abor-
ntos morais. Só assim poderá demonstrar-se a sua divinda-
dar e discutir o verdadeiro método para interpretar a Escritu-
.e,porquanto, já o explicámos, a certeza dos profetas se baseava
ra 2 • Enquanto o ignorarmos, nada poderemos saber ao certo 1rincipalmente no facto de eles terem o ânimo predisposto para
sobre o que a Escritura, ou seja, o Espírito Santo, quer ensinar.
justiça e a bondade. Nessa medida, para que possamos acre-
Muito resumidamente, o método de interpretar a Escritura
'tar neles é preciso que isto seja evidente também para nós.
não difere do método de interpretar a natureza; concorda até ; os milagres, contudo, não se pode deduzir a divindade de
inteiramente com ele 3. Na realidade, assim como o método para ' ·Deus, como já demonstrámos, e nem vale a pena acrescentar
interpretar a natureza consiste essencialmente em descrever a que eles podiam também ser feitos por um falso profeta . Por
história da mesma natureza e concluir daí, como dados certos, conseguinte, a divindade da Escritura deve concluir-se unica-
as definições das coisas naturais, também para interpretar a Es- 1 / mente do facto de ela ensinar a verdadeira virtude. Mas isto só
critura é necessário elaborar a sua história autêntica e, depois, ' da Escritura se pode concluir . E se acaso o não pudesse, então,
concluir daí, como se fossem dados e princípios certos, o pensa- , só por enorme preconceito se aceitaria a Escritura e se afirmaria
mento dos seus autores como legítima consequência. Deste a sua divindade. Todo o conhecimento sobre a Escritura deve,
modo, quer dizer, se na interpretação da Escritura e na discus- portanto, extrair-se unicamente dela mesma .
são do seu conteúdo não se admitirem outros princípios nem Por último, a Escritura não dá definições das coisas de que
outros dados além dos que se podem extrair dela mesma e da ' fala, da mesma forma que a natureza também as não dá. Por
sua história, proceder -se-á sem perigo de errar e poder-se-á dis- isso, tal como temos de concluir as definições das coisas natu-

222 223
rais a partir das diversas acções da natureza, assim também é pios e os fundamentos tirados da história da Escritura. Se, pelo
necessário extraí-las das diversas narrações que a Escritura apre- _}contrário, víssemos que essas frases, interpretadas literalmente,
senta de cada facto. Donde, a regra universal a seguir na sua r;repugnavam aos princípios tirados da Escritura, ainda que elas
interpretação é a de não lhe atribuir outros ensinamentos para
além daqueles que tenhamos claramente reconhecido pela sua ~··
r· concordassem totalmente com a razão, teríamos de admitir uma
º1i 0 utra interpretação (isto é, uma interpretação metafórica). Por-
fanto, para saber se Moisés acreditou ou não que Deus era fogo,
história. Mas vejamos agora como deve ser essa história e o
que ela deve acima de tudo n~rrar. Assim: i de modo algum se pode deduzi-lo do facto de essa opinião con-
1 - Ela deve incluir a natureza e as propriedades da língua "-yir ou repugnar à razão, mas unicamente a partir de outras afir- [1011
em que foram escritos os lívros da ·Escritura :-e· em que os seus mações de Moisés . Ora, uma vez que ele ensina com toda a
[1001 autores falavam habitualmente. -Só assiqi se poderá, corri :efeito, . clareza, em numerosas passagens, que Deus não tem qualquer
examinar todos os. sentidos que cada frase .pode _ter -çl~ acor_do !parecença com as coisas visíveis que existem nos céus, na terra
com o uso corrente da língua. E uma vez que todos os autores, u na água, tem de se concluir que, ou esta, ou então todas
tanto os do Antigo como os do Novo Testamento, foram He- jquelas, devem ser entendidas em sentido metafórico. Todavia,
breus, é evidente que a história da língua hebraica é necessária . mo é necessário afastarmo-nos o menos possível do sentido
para se compreenderem, não só os livros do primeiro, que fo- ·teral, temos primeiro de saber se esta afirmação «Deus é fogo»
ram escritos nessa língua, mas também os do segundo, os quais, :dmite um outro sentido que não o literal, isto é, se a palavra
embora tenham sido divulgados noutros idiomas, no entanto, fogo» significa outra coisa além de fogo natural. Porque se não
hebraízam. · verificasse, a partir da língua usual, que ela ·tinha outro sig-
2 - Deve coligir as afirmações contidas em cada livro e 'ficado, não poderíamos também interpretar a frase de outra ·
reduzi-las aos pontos principais, por forma a encontrarem-se fa- ,nna, muito embora esta repugne à razão. Pelo contrário, to-
cilmente todas as que se referem ao mesmo assunto. Em segui- ;ttasas outras, ainda quando consentâneas com a razão, teriam
da, deve registar todas as que são ambíguas ou obscuras ou r;l.ese lhe adaptar. E se nem isto a língua usual permitisse, en-
_
que parecem contradizer-se entre si. Considero, para este efeito, ão essas frases seriam incompatíveis e, por conseguinte, have-
que uma afirmação é clara ou obscura conforme a facilidade ou .iia que suspender qualquer juízo sobre elas. No entanto, como
dificuldade com que se tira o seu sentido pelo contexto e não '.palavra «fogo» se usa também para significar cólera e ciúme
conforme a facilidade ou dificuldade com que se apreende a ~-verJob, cap. XXXI, 12), é fácil conciliar as afirmações de Moisés
sua verdade pela razão. Trata-se apenas do sentido e não da concluir que estas duas expressões «Deus é fogo» e «Deus é
verdade das frases. Assim, quando estamos a investigar o sen- dumento», são uma só e a mesma afirmação. Além disso, e urna
tido da Escritura, há que evitar a todo o custo deixarrno-nos !Vez que Moisés ensina claramente que Deus é ciumento e em
influenciar pelo nosso raciocínio (para já não falar dos nossos ,parte nenhuma ensina que ele está imune de paixões ou afec-
preconceitos), porquanto ele assenta nos princípios do conheci- ções de ânimo, temos forçosamente de concluir que Moisés acre-
mento natural. Para não se confundir o verdadeiro sentido com .ditava nisto ou que, pelo menos, quis ensiná-lo, por muito que
a verdade das coisas, devemos investigá-lo com base unicamente .repugne à nossa razão 4 • De facto, não é lícito, corno já mostrá-
na língua usual ou num raciocínio que não admita outro funda- mos, forçar o sentido da Escritura para o ajustar aos impera-
mento senão a Escritura. Darei um exemplo para que tudo isto i ti vos da nossa razão e às nossas opiniões preconcebidas: o co-
se perceba melhor. As afirmações de Moisés segundo as quais . nhecimento dos livros da Bíblia tem de extrair-se todo ele
«Deus é fogo», ou «Deus é ciumento», resultam claríssimas quan- ,, unicamente dos livros da Bíblia.
do atendemos apenas ao significado das palavras, e por isso eu 3 - Por último, a história da Escritura deve descrever as
as coloco entre os enunciados claros, muito embora elas sejam circunstâncias de todos os livros dos profetas de quem chegou
do mais obscuro no que toca à verdade e à razão. Mesmo quan- notícia até nós, ou seja, a vida, os costumes e as intenções do
do o seu sentido literal repugna à luz natural, devemos mantê- , autor de cada livro, quem era ele, em que ocasião, em que época,
-lo, a não ser que esteja em flagrante contradição com os princí- , para quem e, finalmente, em que língua escreveu . Depois, a sorte

224 225
I
que cada livro conheceu: como foi originalmente acolhido, a que deve ser adorado , que ele olha por todos e ama sobretudo aque -
mãos foi parar, quantas versõe s diferentes teve, a conselho de les que o adoram e amam o próximo como a si mesmos, etc .
quem foi incluído entre os Livros Sagrados e, enfim, de que Tais ensinamentos e outros do mesmo género, sublinho, estão
modo foram reunidos num único corpo todos os livros agora de tal maneira claros e explícitos em toda a Escritura que não
universalmente reconhecidos como sagrados . Tudo isto, subli- houve jamais alguém que duvidasse do sentido que ela lhes atri-
nho, deve estar incluído na história da Escritura. Na verdade, bui. Mas quanto a saber o que é Deus, como vê ele todas as
11021para saber quais as afirmações proferidas como leis . e q~ais as ' coisas e por elas providencia, isso e outras coisas parecidas a 11031
que o são como ensinamenfos matais, · importa conhecer a vida, Escritura não o ensina explicitamente e a título de doutrina eter-
os costumes e as intenções .do éll..!tor,além de qu_e podemos ex- na; pelo contrário, os próprios profetas, como já mostrámos, não
plicar as palavras de alguém tanto. .
mais facilmente qu_?lhtome- ' estão de acordo sobre tais questões, pelo que não existe nada
lhor conhecermos o seu talento e a sua rnaneint · de ser. Pepois, . que deva a seu respeito ser tido por doutrina do Espírito Santo,
para não confundir os ensinamentos etérrios com- àqueles que 'ainda que isso possa muito bem determinar-se pela luz natural.
poderiam ser válidos apenas por um determinado tempo e para Uma vez suficientemente conhecida a doutrina universal da
um reduzido número de pessoas, importa também saber em que 'Escritura, deve-se passar depois a outros assuntos que, sendo
ocasião, em que época e para que nação ou século foram escri- hora menos universais, se referem contudo aos aspectos prá-
tos todos esses ensinamentos. Finalmente, é importante conhe- ticos da vida e derivam, qual riacho, daquela doutrina univer-
cer todas as outras circunstâncias que referimos, de modo a sa- W, como são todos os actos particulares e exteriores de verda-
ber, não só a autoridade de cada livro, mas também se ele deira virtude, que só podem praticar-se numa dada ocasião. Tudo .
poderá ter sido, ou não, conspurcado por mãos que o adultera- que encontrarmos de obscuro ou ambíguo na Escritura acerca
ram, se acaso lhe introduziram erros e se estes foram corrigi- stes deverá ser esclarecido e determinado com base na dou-
dos por homens competentes o bastante e dignos de crédito. . a universal da mesma Escritura; se encontrarmos passagens
Tudo isto é absolutamente necessário saber-se, a fim de que "ntraditórias entre si, teremos de ver em que altura, em que
não aceitemos, arrebatados por um cego impulso, seja o que for oca, ou para quem é que elas foram escritas. Por exemplo,
que nos propõem, mas unicamente o que é certo e indubitável. uando Cristo diz felizes os que choramporque serãoconsolados,não
Obtida assim a história da Escritura e firmemente decididos hemos, só por este texto, a quem é que se refere; mas como
a não admitir como doutrina dos profetas senão o que se de- .e ensina mais à frente que não nos preocuparemos senão com
preende dessa mesma história, ou o que dela se deduz com a reino de Deus e a sua justiça, a qual nos recomenda como
maior clareza, é agora altura de nos cingirmos à investigação ndo o sumo bem (Mateus, cap. VI, 33), segue-se que por «aque-
da mente dos profetas e do Espírito Santo. Mas para isso é que choram» ele entende unicamente os que choram o reino
também necessário um método e uma ordem semelhante à que .e Deus e a sua justiça desprezada pelos homens, visto que só
usamos na interpretação da natureza a partir da sua história. -.ur isso pode chorar quem não ama senão o reino de Deus, isto
Com efeito, da mesma forma que ao estudar as coisas naturais ,1é, a equidade, e despreza por completo todos os outros favores
procuramos, primeiro que tudo, aquelas que são maximamente 'da fortuna. O mesmo se passa quando ele diz mas àquele que te
universais e comuns a toda a natureza, tais como o movimento, 1
ate na face direita oferece-lhetambém a outra, etc. Se Cristo impu-
o repouso e as respectivas leis e regras, que a mesma natureza 'f&esse isto aos juízes enquanto legislador, destruiria com tal pre-
observa sempre e segundo as quais age continuamente, passan- i ceito a lei de Moisés, coisa contra a qual ele próprio se insurge
do-se depois gradualmente a outras coisas menos universais, ifabertamente (Mateus, cap. v, 17); portanto, temos de ver quem é
assim também na história da Escritura é preciso, primeiro, pro- ,que disse isto, a quem o disse e em que altura. Quem o disse
curar aquilo que é mais universal e constitui a base e o funda- foi Cristo, que não instituía leis como se fosse um legislador,
mento de toda ela e que todos os profetas recomendam como as ensinava como um mestre, pois queria corrigir, não tanto
doutrina eterna e da maior utilidade para qualquer mortal. Por ~ acções exteriores, quanto a disposição interior. Disse-o a ho-
exemplo, que existe um Deus único e omnipotente, que só ele , mens oprimidos que viviam num Estado corrupto, onde a jus -

226 227
..-
tiça era totalmente desprezada e cuja ruína ele via iminente. Ora, Escritura, o que é a profecia ou revelação e em que consiste
isto mesmo que Cristo aqui ensina quando está iminente a ruína essencialmente; depois, o que é um milagre; e assim por diante,
da cidade, vemos também Jeremias ensiná-lo na altura da pri- até às coisas mais comuns. Daí, passamos às opiniões de cada
meira destruição da cidade, numa época bastante parec ida (ver profeta; destas, por sua vez, passamos ao sentido de cada reve-
Lamentações, cap. UI, letras Tet e Yod). Por conseguinte, se os pro- lação ou profecia, de cada narrativa e de cada milagre. Quanto [IOSJ
[1041 fetas ensinaram isto só em tempos de opressão sem que tenha, às precauções a tomar para não confundir o pensamento dos
em parte alguma, sido proclamado como uma lei, se, por outro profetas e dos historiadores com o do Espírito Santo e com a
lado, Moisés · (que nãó escreveú numa época de opressão, mà.s, verdade, já falámos disso na devida altura e apresentámos mui-
repare-se, trabalhou para : instituir ' ~ma bo.a. república), muito tos exemplos. Não há, portanto, necessidade de voltar ao as-
embora condenasse também a _.vingança e o ódio ao p.róximo, sunto. Deve, todavia, notar-se, no que toca ao sentido das re-
ordenou, no entanto, que se pagasse olho por olho, :,egue-se ,velações, que este método só ensina a investigar aquilo que os
com toda a clareza, a partir apenas dos próprios princípios · da · profetas realmente viram ou ouviram, não o que eles quiseram
Escritura, que este ensinamento de Cristo e de Jeremias para se ' _significar ou representar com aqueles sinais hieroglíficos. Sobre
tolerarem as injúrias e se perdoar tudo aos ímpios só tem cabi- 'isto, podemos apenas conjecturar, mas não deduzir com certeza
mento onde a justiça é desprezada e em épocas de opressão, dos fundamentos da Escritura.
jamais numa boa república. Porque numa boa república, onde a Apresentámos assim a regra para interpretar a Escritura e
justiça é defendida, quem quiser ser tido por justo deve exigir ;demonstrámos, ao mesmo tempo, ser esta a única via e a mais
que as injúrias sejam julgadas (ver Levit., cap. XIII, 1), não por µrta para investigar o seu verdadeiro sentido. Admito que es-
vingança (Levit., cap. XJX, 17, 18), mas por desejo de defender a teja mais seguro de qual é esse sentido alguém que tenha rece-
justiça e as leis da pátria e para que os maus não lucrem com o ido, se acaso existe alguém assim, a genuína tradição ou a ver-
serem maus 5. Tudo isto, aliás, concorda plenamente com a razão dadeira explicação dos próprios profetas, como pretendem os
natural. Poderia citar muitos outros exemplos do mesmo género, 'ariseus, ou então aqueles que têm um Pontífice que é infalível
mas julgo que estes chegam para explicar a minha ideia e a utili- la interpretar a Escritura, corno alardeiam os católicos romanos 6•
dade deste método, única preocupação que tenho de momento. iMas como não podemos estar certos, nem dessa tradição, nem
Até aqui, ensinámos apenas como se devem analisar as afir- da autoridade do Papa, também não se pode fundamentar qual-
mações da Escritura a respeito da vida prática e que são, por quer certeza sobre tais bases. Esta, com efeito, era negada pelos
- isso mesmo, as mais fáceis de analisar; de facto, nunca houve '· ais antigos cristãos, aquela, pelas mais antigas seitas dos Ju-
realmente controvérsia sobre elas entre os autores da Bíblia. Já deus. E se repararmos depois na cronologia (para já não falar
quanto às restantes, as que são unicamente especulativas, elas ! de outras coisas), que os fariseus receberam dos seus rabinos e
não podem analisar-se com a mesma facilidade. Para estas, o através da qual eles fazem remontar a tradição até Moisés, ve-
;•írn caminho é mais estreito, pois em matérias especulativas (como rificamos que ela é falsa, como demonstro noutro local. Donde,
. : 1i1'1 já mostrámos) os profetas estavam em desacordo entre si e as · uma tal tradição deve ter-se como absolutamente suspeita. E em-
narrações estão em boa parte adaptadas aos preconceitos das bora sejamos obrigados pelo nosso método a supor como isenta
respectivas épocas . Daí que não seja lícito deduzir ou explicar o de corrupção uma tradição judia, a saber, o significado das pala-
pensamento de um profeta a partir de passagens mais claras de ,vras da língua hebraica que deles recebemos, mesmo assim duvi-
um outro, a menos que conste com toda a evidência que eles damos daquela, ainda que não duvidemos minimamente desta.
sustentaram uma só e a mesma opinião. Vou, por isso, expor iDe facto, é impossível que alguma vez tenha havido alguém que
agora muito rapidamente o modo como podemos, em casos visse interesse em alterar o significado de uma palavra, embora
destes, conhecer o pensamento dos profetas pela história da seja frequente isso acontecer com o sentido das frases. Até por-
Escritura. que é muito difícil: quem tentasse alterar o significado de uma
Também aqui, devemos começar pelo mais universal, averi- , palavra teria simultaneamente de explicar, de acordo com a
guando, em primeiro lugar, pelas afirmações, as mais claras da maneira de ser e a mentalidade de cada um, todos os autores

228 229
que escreveram na mesma língua e que empregaram essa pala- expresso em termos conhecidíssimos, é, todavi a, bastante obs-
vra na sua acepção tradicional, ou então, teria de os falsificar curo e totalmente incompreensível.
com a maior cautela. Além disso, a língua é mantida quer pelo A isto, ou seja, ao facto de não dispormos de uma história
vulgo quer pelos sábios, enquanto o sentido das frases e os li- completa do hebraico, acresce ainda a própria constituição e
vros só os sábios os mantêm. É fácil, pois, conceber que os sá- natureza desta língua, fonte de tantas ambiguidades que é im-
bios tenham podido alterar ou corromper o significado de uma possível encontrar um método * que permita determinar com se- [1071
[1061 frase de um qualquer livro raríssimo que estivesse em seu podrr , gurança o verdadeiro sentido de todas as frases da Escritura.
· De facto, para além dos factores de ambiguidade comuns a to-
mas não o significado das paiavras. Além de que, se alguém
das as línguas, existem alguns que só se dão nesta e que estão
quisesse alterar o significado - correhte d.e uma palayra, dificil-
na origem de muitas ambiguidades. Vale a pena referi-los aqui .
mente poderia depois respeitar essa aHeração sempre 'l·l!é: fa-
Em primeiro lugar, a ambiguidade e a obscuridade das fra-
lasse ou escrevesse . Por estas e ·outras razõ_es'. é fácil_~credi!ar
i ses na Bíblia derivam muitas vezes do facto de as letras pro-
que nunca passou pela cabeça de ninguém corromper uma língua.
O que acontece com frequência é corromper-se o pensamento
Lnunciadas com o mesmo órgão se tornarem umas pelas outras.
Os Hebreus dividem as letras do alfabeto em cinco grupos, con-
de um autor, alterando-lhe as frases ou interpretando-as mal.
soante os cinco órgãos da boca que servem para as pronunciar:
Posto que o nosso método (baseado na regra de que o co-
lábios, língua, dentes, palato e garganta. Assim, por exemplo, as
nhecimento da Escritura deve extrair-se apenas da Escritura) é
r ieh·as Aleph, Jeth, Ayin e He chamam-se guturais e, tanto quanto
o único e o verdadeiro, tudo quanto ele não nos puder oferecer ,a.hemos, empregam-se indiscriminadamente umas pelas outras.
para chegarmos ao completo conhecimento da Escritura há que Assim, El, que significa para, toma-se muitas vezes por al, que
desistir de o atingir. Vejamos, então, que tipo de dificuldades -.ignifica sobre,e vice-versa. Daí que todas as partes da propo-
apresenta este método e o que é que lhe falta para que possa 1,içãose tomem muitas vezes ambíguas ou como sons sem qual-
levar até ao conhecimento total e certo dos Sagrados Códices. quer significado.
A primeira grande dificuldade deste método deriva de ele exi- ·, Uma segunda causa da ambiguidade das frases reside na
gir um conhecimento total da língua hebraica. Onde é que se ~ultiplicidade de significados que têm as conjunções e os advér-
pode adquirir agora esse conhecimento? Os que falavam antiga- bios. Por exemplo, vau é indistintamente uma conjuntiva ou uma
mente o hebraico não legaram nada à posteridade sobre os disjuntiva, significando e, mas, porque, no entanto e então. Ki tem
fundamentos e o ensino dessa língua. A nós, pelo menos, não Jete ou oito significados: porque, apesar de, se, quando, como, que,
chegou absolutamente nada: nem um Dicionário, nem uma Gra- mbustão,etc. E acontece o mesmo com quase todas as partículas.
~-
mática 7, nem uma Retórica. A nação hebraica perdeu todas as Uma terceira fonte de muitas ambiguidades é que os ver-
.1 suas glórias e pergaminhos (o que não admira, depois de ter ' bos no indicativo não têm nem presente, nem pretérito imper-
sofrido tantos desastres e perseguições) e não conservou senão feito ou mais-que-perfeito, nem futuro perfeito, nem outros tem-
uns poucos fragmentos da língua e de uns tantos livros. Com o pos que são frequentes nas demais línguas; no imperativo e no
andar dos tempos, quase todos os nomes de frutos, pássaros, infinitivo, então, faltam todos os tempos excepto o presente; no
peixes e de muitas outras coisas se perderam. O significado de . conjuntivo faltam mesmo todos. E embora toda esta ausência
muitos substantivos e verbos que surgem na Bíblia é totalmente ' de tempos e de modos pudesse suprir-se, até com suma elegân-
desconhecido ou discutível. Além disso, falta-nos sobretudo a cia, mediante certas regras deduzidas dos princípios da língua,
fraseologia desta língua, porquanto as frases e expressões idio- a verdade é que os escritores mais antigos as negligenciaram
máticas dos Judeus foram quase por completo varridas da me- por completo, usando indiscriminadamente o futuro pelo pre-
t mória dos homens pela acção devastadora do tempo. Assim, e
ao contrário do que seria nosso desejo, não podemos averiguar
sempre todos os sentidos que uma frase pode ter na língua cor- • Anotação VII. Quer dizer, para nós, que não estamos acostumados a esta
1 rente, além de que deparamos com muitas cujo sentido, embora língua e ignoramos a sua fraseologia .

230 231
sente e pelo pretérito, o pretérito pelo futuro, ou ainda o indi- demos. Quem quiser, pois, interpretar a Escritura sem qualquer
cativo pelo imperativo e pelo conjuntivo, o que ocasionou inú- preconce ito, tem de desconfiar deles e examinar tudo de novo.
meras anfibologias. Voltando ao nosso tema, pode facilmente imaginar-se como
Além destes três factores de ambiguidade no hebraico, há desta constituição e natureza da língua hebraica devem surgir 11091
ainda a assinalar mais dois, qual deles o mais grave. O primeiro tantas ambiguidades que é impossível haver um método capaz
é não haver vogais. O segundo é que os Hebreus não usavam de as esclarecer todas. Na realidade, não é de esperar que atra -
r1os1nenhuns sinais, nem para separar as orações, nem para a s~a vés do cotejo das frases (única via, já o demonstrámos, para
expressividade · e ·inteligibilidade. E se bem que a falta destes seleccionar o verdadeiro sentido de entre os muitos que uma
,ij'li dois elementos - as vogais :e os sinais_- costume agora colmatar- qualquer frase pode ter na corrente língua), se consiga fazê-lo
-se através de pontos e acentos, · não podemos, contudo, fiar- cabalmente. Já porque esse cotejo só por mero acaso poderá
-nos, visto eles terem sido inven"tados e· instituídos por .homens esclarecer alguma frase, pois nenhum profeta escreveu com o
de uma época posterior, a cuja autoridade nãó se deve - atribuir intuito expresso de explicar as palavras de um outro, ou mesmo
nenhuma importância 8• Os antigos, como se confirma por nu- as suas; já porque não podemos inferir o pensamento de um
merosos testemunhos, escreveram sem pontos (quer dizer, sem profeta, ou apóstolo, etc., a partir do de um outro, excepto no
vogais e sem acentos). Os que vieram depois é que os acrescen- que se refere à vida prática, como ficou demonstrado de forma
taram, de acordo com a sua interpretação da Bíblia. Por conse- evidente. Nunca quando eles falam de assuntos especulativos,
guinte, os pontos e acentos que temos agora são meras inter- -ou quando narram milagres ou descrevem acontecimentos. Po-
pretações dos modernos e não merecem mais crédito nem deria mostrar com vários exemplos isto mesmo, ou seja, que há
possuem mais autoridade que as outras explicações dos autores. muitas frases inexplicáveis na Sagrada Escritura, mas, para já,
Os que ignoram isto não sabem como desculpar o autor da Epís- prefiro deixar esta questão, passando a outros aspectos que ain-
tola aos Hebreus por ter interpretado, no cap. x1, 21, o texto do da não tratei, ou melhor, a outras dificuldades que este verda-
Génesis, cap. XLVII, 31, de forma muito diversa da que se tem no deiro método de interpretar a Escritura apresenta, ou aquilo
texto hebraico pontuado, como se o apóstolo devesse aprender , ~m que ele é insuficiente.
o sentido da Escritura com aqueles que a pontuaram. Para mim, · Uma dificuldade deste método provém do facto de ele exi-
é evidente que estes é que são os culpados. E para que todos ·.gir a história de todas as vicissitudes por que passaram todos
vejam que é assim e que esta divergência se deve unicamente à os livros da Escritura, a maior parte das quais nos são desco-
falta de vogais, apresentarei aqui as duas interpretações. Aque- . nhecidas . De muitos desses livros, com efeito, ignoramos com-
les que pontuaram o texto interpretaram assim: e Israel inclinou- pletamente quem foi o autor ou, se se preferir, quem os escre-
-se sobre, ou (mudando Ayin em Aleph, isto é, numa letra do veu, ou então temos dúvidas, como demonstrarei mais adiante.
mesmo órgão) para a cabeceirado leito; o autor da Epístola, po- Depois , também não sabemos em que ocasião e em que época
rém, interpreta: e Israel inclinou-se sobre o cabo do cajado, lendo ,.-esses livros, de que ignoramos os autores, foram escritos. Des-
mate onde os outros lêem mita, palavras cuja diferença reside ' conhecemos a que mãos foram parar, em que exemplares surgi-
apenas nas vogais . Ora, como naquela narrativa se fala apenas ' ram tantas variantes, ou até se não haveria ainda mais em outros
da velhice de Jacob e não, como acontece no capítulo seguinte, exemplares. E, no entanto, é da maior importância conhecer-se
da sua doença, parece mais verosímil que o historiador tivesse . tudo isto, conforme em devido tempo indiquei sucintamente,
em mente que Jacob se inclinou sobre o cabo do cajado, como embora tenha então omitido, de propósito, certas considerações
os velhos de idade muito avançada precisam de fazer para se que é agora altura de fazer.
apoiarem, e não para a cabeceira do leito, tanto mais que, as- Se lemos um livro onde vêm coisas inacreditáveis ou incom-
sim, não é necessário supor nenhuma substituição de letras. Com preensíveis, ou um livro escrito em termos extremamente obs-
este exemplo, não quis apenas conciliar esta passagem da Epís- curos, e não sabemos quem é o autor, em que época e em que
tola aos Hebreus com o texto do Génesis, mas sobretudo mostrar a ocasião foi escrito, debalde tentaremos saber ao certo o seu
pouca confiança que é de ter nos pontos e nos acentos mo- : verdadeiro sentido . Porque, se ignoramos tudo isso, não pode-

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~

mos de maneira nenhuma saber qual foi ou qual poderia ser a Job, não sabemos ao certo em que língua foi escri to. Ibn Ezra,
11101intenção do autor; pelo contrário, se o conhecermos exactamente, nos seus comentários, afirma que ele foi traduzido para hebraico 11111
organizaremos os nossos pensamentos de forma a não sermos de uma outra língua, residindo aí a causa da sua obscuridade.
assaltados por qualquer preconceito, quer dizer, a não atribuir Quanto aos livros apócrifos 10, não digo nada , uma vez que a
ao autor ou àquele em nome de quem ele escreveu nem mais sua autoridade é de natureza muito diferente.
nem menos do que aquilo que é justo e a não pensar coisas São estas as dificuldades deste método de interpre tação da
diferentes das que o autor poderia ter em mente ou do que a Escritura com base no que possamos obter da sua própria histó-
sua época e as circunstâncias iinpunham· 9·• ··Penso que isto é evi- ria, dificuldades que eu tinha prometido enunciar e que consi-
dente para todos. De facto, qcpntece_ muitas .:vezes lermos histó- dero tão grandes que não tenho dúvidas em afirmar que, em
rias semelhantes em diversos _livros e fazermos a seu .respeito muitas passagens, ou ignoramos ou pomo-nos a adivinhar sem
um juízo muito diferente, em virtude · "das diferentes _opiniões qualquer certeza o sentido da Escritura. E, todavia, convém su-
que temos dos autores. Recordo-me de ter lido outrorã ·em qtial- . blinhar uma vez mais, todas estas dificuldades podem apenas
quer livro que um homem, de nome Orlando Furioso, costu- impedir que compreendamos o pensamento dos profetas no que
mava andar pelos ares numa espécie de monstro alado, sobre- se refere a coisas ininteligíveis e que não sejam senão imaginá-
voando todas as regiões que lhe apetecia, massacrando sozinho ' ,veis, mas de forma alguma no que se refere a coisas que é pos-
uma enorme quantidade de homens e de gigantes, assim como sível compreender pelo entendimento e das quais podemos fa-
outras fantasias do género · que são completamente incompreen- ':cilmente formar um conceito claro*. Porque as ··coisas que pela
síveis do ponto de vista do entendimento. Tinha, no entanto, sua natureza se percebem com facilidade nunca poderão ser di-
lido em Ovídio uma história muito parecida sobre Perseu, e uma itas de forma tão obscura que não se percebam facilmente, con-
outra, ainda, nos livros dos Juízes e dos Reis sobre Sansão (o qual, 1forme diz o ditado: «a bom entendedor, meia palavra basta ».
sozinho e sem armas, massacrou milhares de homens) e sobre \:Euclides, que só escreveu coisas extremamente simples e inteli-
Elias, que voava pelos ares e chegou, por fim, ao céu num carro f~veis, pode facilmente ser explicado a toda a gente e em qual -
de fogo puxado por cavalos de fogo. Todas estas histórias, :quer língua. Nem é preciso, para apreendermos o seu pensa-
repito, são muito parecidas e, no entanto, fazemos de cada uma '.mento e ficarmos certos do seu verdadeiro sentido, ter um
delas um juízo muito diferente: o primeiro autor não pretendeu
}onhecimento completo da língua em que ele escreveu : basta
escrever senão frivolidades; o segundo escreveu sobre factos
políticos; o terceiro, enfim, sobre coisas sagradas. E o único mo-
b conhecimento vulgar e quase infantil. É igualmente desne-
~ssário conhecer a vida do autor, os seus propósitos e hábitos,
tivo que nos leva a pensar assim é a opinião que temos dos
•;i:n que língua, para quem, e quando escreveu, o destino que
respectivos autores. É, pois, evidente que a informação sobre os
~eve o livro, as suas variantes ou, finalmente, como ·e por de-
autores que escreveram coisas obscuras ou ininteligíveis é abso-
lutamente necessária se queremos interpretar os seus escritos.
E pelas mesmas razões, para se poder determinar quais são as
autênticas de entre as várias versões de histórias obscuras, é * Anotação VIII. Por coisas perceptíveis não entendo só as que se demons-
._,tram rigorosamente, mas também as que estamos habituados a aceitar por
preciso saber em que exemplares foram encontradas essas versões torça de uma certeza moral e a ouvir sem surpresa, ainda que não possam ser
e se, porventura, não se encontrariam outras em outros homens . demonstradas. As proposições de Euclides podem ser percebidas por qualquer
de maior autoridade. ,, ~soa, ainda antes de serem demonstradas . O mesmo se passa com as histó-
Uma última dificuldade que apresenta a interpretação de rias, tanto as que se referem ao futuro como as que se referem ao passado,
l certos livros da Escritura segundo este método reside em não os desde que não excedam a credibilidade humana, e bem assim com as regras

i termos na língua em que originalmente foram escritos. O Evan-


gelho segundo Mateus, e certamente também a Epístolaaos Hebreus,
·do dire ito, as instituições e os costumes, que considero perceptíveis e claras,
· embora não possam demonstrar-se matematicament e. Chamo, pelo contrá -
rio, imperceptíveis aos sinais hieroglíficos e às histórias que parecem exceder
f foram, de acordo com a opinião comum, escritos em hebraico e,
no entanto, o respectivo texto já não existe. Quanto ao Livro de •
os limites da credibilidade; entre estas, porém, há algumas que podem ser
estudadas pelo nosso método de forma a percebermos a ideia do autor.
;j,
234 235
il
r,
liberaçã o de quem foi reconhecido. E o que se di z de Euclides pelo contr ário, são apenas simpl es conj ectur as. Comp aremo-las,
diz -se de quantos escreveram sobre coisas que são por natureza se se qui ser, com as ex plicações daquele s que confessam inge-
perceptíveis, donde resulta que nós podemos compreender fa- nuamente que não possuem outra luz além da natural e ver-se-á
cilmente a Escritura e estar certos do seu verdadeiro significa- que são perfeitamente similares, isto é, humanas, maduramente
do, no que concerne a ensinamentos morais, a partir dos dados pensada s e só com muito trabalho encontradas. Quando eles
históricos que é possível obter sobre ela. Os ensinamentos da .dizem, pois, que a luz natural é insuficient e, isso é falso: pri-
verdadeira piedade exprimem-se, com efeito, por palavras as meiro, e conforme demonstrámos, porque nenhuma dificuldade
mais correntes, porquanto são· extremamente comuns, simples e de interpretação da Escritura provém da fraqueza da luz natu-
fáceis de entender . Ora, ~e ~ verda?eira Siilvação e a beatitude ral, mas unicamente da preguiça, para não dizer da malícia dos
consistem na verdadeira tranquilidade de ânimo, e se nós só homens que negligenciaram a história da Escritura enquanto ain-
descansamos verdadeiramente naquilo que entendem~s .cÓin toda da a podiam fazer; segundo, porque essa luz sobrenatural, como,
a clareza, é evidente que podemos sem dúvida atingir -o conieú- se não estou em erro, todos reconhecerão, é um dom divino
do da Escritura no que toca às coisas salutares e necessárias iconcedido exclusivamente aos fiéis. Ora, os profetas e· os após-
para a beatitude. Nessa medida, também não temos de nos in- tolos costumavam pregar, não apenas aos fiéis, mas sobretudo
quietar quanto ao resto, já que, não o podendo a maioria das aos infiéis e aos ímpios, prova de que estes estavam aptos a
vezes abraçar pela razão e pelo intelecto, ele é mais um proble- ~ntender o seu pensamento. Se assim não fosse, os profetas e [1131
[1121 ma de curiosidade que de utilidade. .os apóstolos deveriam pregar às criancinhas e não a homens
Com isto, creio ter apresentado o verdadeiro método de in- Ídotados de razão, da mesma forma que teria sido em vão Moi-
terpretar a Escritura e explicado suficientemente a minha opinião sés prescrever leis se elas só pudessem ser entendidas pelos fiéis,
sobre o assunto. Não duvido, aliás, de que todos vejam que ue não necessitam de nenhuma lei. Por isso, os que exigem
este método não exige qualquer luz para além da luz natural. uma luz sobrenatural para entender o pensamento dos profetas
Na verdade, a natureza e a virtude desta luz consistem princi- \e dos apóstolos parecem é estar carecidos da luz natural. Longe
palmente em deduzir e concluir, como legítimas consequências, e mim julgá-los, pois, possuidores de um qualquer dom divino
as coisas obscuras das que são conhecidas ou dadas como co- ~brenatural.
nhecidas, que é tudo quanto requer este nosso método. E, con- Maimónides foi de parecer completamente diferente . Segun-
cordando embora que ele não é suficiente para investigar com 'êlo ele, cada passagem da Escritura admite vários e até opostos
certeza tudo o que vem na Bíblia, tal não se deve, contudo, a /sentidos, sendo impossível saber ao certo qual o verdadeiro se
defeitos que tenha, mas sim ao facto de o caminho que ele en- não soubermos que essa passagem, tal como a interpretamos,
sina como verdadeiro e recto jamais ter sido cultivado nem tri- . não contém nada que não esteja de acordo com a razão ou que
lhado pelos homens, tomando-se, assim, com o passar do tempo, a esta repugne. Porque se notarmos que o seu sentido literal
particularmente árduo e quase impraticável, como resulta clara- xepugna à razão, mesmo que pareça claro, ele julga que deve-
mente das próprias dificuldades que apontei. mos interpretá-la de outra forma, .·consoante vem indicado, sem
Resta-nos agora examinar as opiniões daqueles que discor- margem para dúvidas, no cap. xxv, parte rr, do livro More Nebu-
dam de nós . Em primeiro lugar, a dos que sustentam que a luz chim. Diz Mairnónides : Sabei que o motivo por que evitamos dizer
natural não tem capacidade para interpretar a Escritura e que, que o mundo existe desde todaa eternidade não são os textos que vêm
para o fazer, é absolutamente necessária a luz sobrenatural. na Escritura sobrea criaçãodo mundo. Na verdade, nem os textos que
1
Quanto ao que seja esta luz para além da natural, remeto a ques- ensinam que o mundo foi criadosão em maior número que aquelesque
tão para eles. Pela minha parte, só posso conjecturar que pre- ensinam que Deus tem corpo, nem os acessos à explicaçãodos textos
tenderam, em termos mais obscuros, confessar as dúvidas que sobreesta matériada criaçãodo mundo nos estão vedadosou proibidos,
também eles nutriam, na maioria dos casos, quanto ao verda- uma vez que poderíamos tê-los explicado, como fizemos quando rejeitá-
deiro sentido da Escritura. Se, de facto, repararmos nas suas mos a corporeidade em Deus. É possível até que issofosse muito mais
... explicações , veremos que não têm nada de sobrenatural; muito fácil de Jazer e que resultasse mais cómodo explicá-los e sustentar a

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~

eternidadedo mundo do que explicara Escriturade modoa rejeitarque e uma nova espécie de sacerdotes ou de pontífices, aos quais o
o Deus bendito tenha um corpo. Há, porém, duas razõesque me levam vulgo estaria mais tentado a ridicularizar que a venerar. E em-
a não o fazer e a não acreditar nisso (isto é, que o mundo seja bora o nosso método exija o conhecimento do hebraico, estudo
eterno): primeiro,porque se demonstra claramenteque Deus não tem a que o vulgo também não pode dedicar-se, nada de parecido
corpo,sendo,portanto,necessárioexplicartodas as passagenscujo senti- se nos poderá objectar, uma vez que o comum dos Judeus e
do literal contradizesta demonstração,visto elas, nesse caso, terem ne- dos gentios, a quem outrora pregaram e para quem escreveram
cessariamenteuma explicação (diferente da literal). Pelo contrárjo, os profetas e os apóstolos, entendia a língua em que estes se
· [1141 não há nenhuniademonstraçãoque mostre que o··mundo seja eterno;por exprimiam e através dela percebia também o pensamento dos [1151
isso, não é necessárioviolentar as Escrit-!frase explicá-laspor causa de profetas, embora não percebesse as razões das coisas que eles
uma opinião aparente,podendo· _nós,·por qualquer razão conviti_cenle, pregavam e que, de acordo com Maimónides, teriam também de
preferiraquelaque lhe é contrária.Segundo, porque acreditar·que Deus saber para compreenderem o pensamento dos profetas. O nosso
é incorpóreonão repugna aos fundamentos da lei,· etc.,·ao-passo que método não exige, portanto, que o vulgo se atenha obrigatoria-
acreditarna eternidadedo mundo, como Aristóteles, destróia lei a par- mente ao testemunho dos intérpretes. Aliás, o exemplo que eu
tir do seu fundamento. dou é o de um povo calejado na língua dos profetas e dos após-
São estas as palávras de Maimónides, das quais se conclui, tolos; Maimónides, em contrapartida, não apresenta nenhum
evidentemente, o que há pouco dissemos: se, de facto, se lhe povo que conheça as razões das coisas e que, através delas,
apreenda o pensamento dos profetas. E no que se refere ao
;; .. demonstrasse pela razão que o mundo era eterno, ele nã~ hesi-
taria em forçar a Escritura e explicá-la de modo a que esta pa- vulgo em nossos dias, já demonstrámos que tudo quanto é pre-
recesse ensinar isso mesmo. Ficaria, assim, imediatamente se- ciso para a salvação, mesmo ignorando as suas razões, pode
guro de que ela, apesar de em toda a parte dizer abertam~nte J facilmente ser compreendido em qualquer língua, visto serem
o contrário, tinha pretendido ensinar a eternidade do mundo. coisas comuns ·e usuais . É nessa compreensão, e não no teste-
Deste modo, não poderia estar seguro do verdadeiro sentido munho dos intérpretes, que o vulgo confia 11• Quanto ao restQ,
da Escritura, por mais claro que este fosse, enquanto pudesse o vulgo e os sábios estão na mesma situação. · ·'.
duvidar da verdade do que ela diz ou enquanto esta verdade Mas voltemos à tese de Maimónides e examinemo-la com
não lhe surgisse como evidente. Porque, enquanto não é evi- mais atenção. Em primeiro lugar, ele supõe que os profetas es- ·.
dente a verdade de uma coisa, não sabemos se ela concorda . tão de acordo entre si e a respeito de tudo e que foram todos
com a razão ou se a contradiz e, por conseguinte, ignoramos • grandes filósofos e grandes teólogos. Diz, com efeito, qae eles
também se o sentido literal é verdadeiro ou falso. Mas se uma concluíam a partir da verdade das coisas e isto, como nós mos-
tal posição fosse verdadeira, eu concordaria em absoluto que trámos no cap. 11, é falso. Supõe, em seguida, que o sentido da
precisávamos, para interpretar a Escritura, de uma outra luz além Escritura não se pode determinar a partir da própria Escritura,
da natural. De facto, quase nada do que nela se encontra é de- uma vez que a verdade das coisas não se determina pela pró-
duzível dos princípios conhecidos pela luz natural, conforme já pria Escritura (ela não demonstra nada, nem ensina as coisas de
demonstrámos, pelo que, com base na força desta luz, não po- que fala por definições e pelas suas causas primeiras). Donde,
demos provar a verdade de quanto vem na Escritura, nem, por segundo Maimónides, nem mesmo o verdadeiro sentido da Es~
conseguinte, qual o seu verdadeiro sentido e o seu pensamento. critura poderá determinar-se com base nela própria, pelo que
Para isso, seria necessária uma outra luz. não deve deduzir-se daí. Também isto, no entanto, é falso, como
Depois, se esta tese fosse verdadeira, então o vulgo, que a resulta do presente capítulo, onde já demonstrámos, pela razão
maioria das vezes ignora as demonstrações ou não tem vagar e por exemplos, que o sentido da Escritura se determina atra-
para elas, nada poderia admitir a respeito da Escritura a não vés unicamente da Escritura e só dela própria deve deduzir-se,
ser pela autoridade e o testemunho daqueles que filosofam, mesmo quando fala de coisas conhecidas pela luz natural. Su-
devendo, por isso, supor que os filósofos não podem errar na põe, finalmente, Maimónides que é lícito explicar e forçar as
sua interpretação; seria, afinal, uma nova autoridade eclesiástica palavras da Escritura de acordo com as nossas opiniões precon-

238 239
- ...
cebidas, torcer e negar o sentido literal, ainda quando ele é
claro e bem explícito, mudá-lo num outro qualquer . Um tal abuso
blico em direito privado. Mas o que se passa com a religião é
muito diferente . Porque na medida em que ela consiste menos
da liberdade, além de ser diametralmente oposto ao que de- em acções exteriores que na simplicidade e na autenticidade de
monstrámos neste e em outros capítulos, não há ninguém que ânimo, não está submetida a nenhum direito nem a qualquer
não veja que é excessivo e temerário. autoridade pública. A simplicidade e a autenticidade não se in-
Mas, seja, concedamos-lhe essa grande liberdade. O que é fundem nos homens por imperativo legal ou por meio da auto-
que adianta? Nada, seguramente. Porque tudo o que _é inde- ridade pública, e ninguém pode ser coagido, pela força ou pelas
monstrável, e que con·stitui a maior parte da Escritura, não pÕde leis, a atingir a beatitude. Para isso, requere-se a advertência
[1161 investigar-se dessa maneira, . nem 'e_xplicar::-~ .ou interpretar-se fraterna e piedosa, a boa educação e, acima de tudo, o juízo [1171
seguindo essa regra. Em contrapartfda, seguindo o nosso méto- livre e pessoal. E, se a cada um assiste o soberano direito de
do, podemos explicar muitas coisas deste género -e . djscuti-las pensar livremente, mesmo em matéria religiosa, não podendo
com segurança, tal como já demonstrámos pela razão ·e· com lac- · - 1 sequer conceber-se alguém que renuncie a esse direito, então
tos. No que se refere, porém, àquilo que é por natureza com- todos são igualmente possuidores do soberano direito e da so-
preensível, o seu sentido tira-se facilmente, como também mos- berana autoridade de julgar acerca da religião e, consequente-
trámos, só pelo contexto das frases. Por isso, o método de mente, de a explicarem e interpretarem para si próprios. Com
Maimónides é de todo em todo inútil. Além de que suprime efeito, a única razão por que os magistrados possuem autori-
cõmpletamente qualquer certeza sobre o sentido da Escritura dade soberana para interpretar as leis e o juízo supremo sobre
que o vulgo, através de uma leitura sincera, ou qualquer pes- assuntos públicos é precisamente o tratar-se de direito público.
soa, através de um método diferente, possa alcançar. Rejeita- .Pela mesma razão, cada um possui soberana autoridade de ex-
mos esta tese, por ser prejudicial, inútil e absurda. plicar a religião e de ju lgar nessa matéria, uma vez que isso
No que toca à tradição dos fariseus, já dissemos anterior- ·pertence ao direito de cada um. Longe, portanto, de se poder
mente que ela não é coerente consigo mesma; e quanto à auto- , deduzir da autoridade do pontífice dos Hebreus para interpre-
ridade dos pontífices romanos, ela precisaria de uma prova muito tar as leis da pátria a autoridade do pontífice romano para in-
mais evidente: é a única razão por que a recuso 12. Porque se •terpretar a religião, é, pelo contrário, mais fácil concluir daí que
ela se deduzisse da Escritura com a mesma certeza com que ··esta autoridade pertence inteiramente a cada indivíduo. E por
antigamente os pontífices dos Judeus a podiam deduzir, eu nem aqui também se pode ver que o nosso método de interpretação
1

sequer me importaria com o facto de ter havido entre os roma- da Escritura é o melhor. Se, de facto, cada um possui plena
nos pontífices hereges e ímpios. Também entre os pontífices he- ;autoridade para interpretar a Escritura, a norma para essa in-
breus houve outrora hereges e ímpios que ocuparam o pon- -terpretação só pode ser a luz natural comum a todos e não uma
tificado por meios sinistros e que, no entanto, tinham nas suas qualquer luz acima da natureza, ou uma qualquer autoridade
mãos, por imperativo da Escritura, o soberano poder de interpre- :iexterna. Além disso, tal norma não deve ser tão difícil que só
tar a Lei (ver Deut., caps. xvn, 11, 12, e XXXIII, 10; Malaq., cap. n, 1
filósofos muito argutos a possam seguir; deve, sim, estar em
18). Mas como os pontífices romanos não apresentam nenhuma , consonância com a índole e a capacidade do comum dos ho-
prova deste género, a sua autoridade permanece bastante sus- . mens. É como demonstrámos, o que acontece com o nosso mé-
peita. E para que ninguém fique a pensar, levado pelo exemplo todo. Vimos, com efeito, que as dificuldades que ele agora apre-
do pontífice dos Hebreus, que a religião católica precisa também r \ senta não ·resultam da sua natureza, mas sim da negligência dos
de um pontífice, convém notar que as leis de Moisés, por cons- homens.
tituírem o direito público da Pátria, necessitavam absolutamente,
para se manter, de urna qualquer autoridade pública. Se, efecti-
vamente, cada um tivesse a liberdade de interpretar à sua von-
tade os direitos públicos, nenhum Estado poderia sobreviver,
dissolvendo-se imediatamente e transformando-se o direito pú-

240 241
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1; CAPITULO VIII [117)

'~ ONDE SE DEMONSTRA QUE O PENTATEUCO,


i ASSIM COMO OS LIVROS DE JOSUÉ, DOS JUÍZES,
DE RUTE, DE SAMUEL E DOS REIS, NÃO SÃO AUTÓGRAFOS
E, EM SEGUIDA, SE AVERIGUA SE ESTES LIVROS FORAM
,I ESCRITOS POR V ÁRIAS PESSOAS OU POR UMA SÓ
E QUEM TERÁ SIDO

No capítulo anterior, abordámos os fundamentos e os prin-


cípios do conhecimento das Escrituras e demonstrámos que eles
·;,' consistem unicamente na história rigorosa das mesmas Escri-
: turas 1. Esta, porém, apesar de absolutamente necessária, foi
negligenciada pelos antigos ou, se acaso a escreveram ou transmi-
tiram, acabou por ser vítima das injúrias do tempo. Consequen-
, temente, uma boa parte dos fundamentos e princípios deste co-
nhecimento desapareceu. Mas ainda isto seria tolerável, se os 111s1
' que vieram depois se tivessem mantido adentro dos justos limi-
tes e transmitido de boa fé aos seus sucessores o pouco que
tinham recebido ou encontrado, sem acrescentarem inovações
extraídas da sua própria cabeça. Assim, a história da Escritura
ficou não só incompleta como também incorrecta, o que signifi-
ca que os fundamentos do seu conhecimento, além de serem
insuficientes para que a partir daí ela se possa reconstituir na
íntegra, são também falsos. É meu intuito corrigi-los e pôr ter-
mo aos habituais preconceitos da teologia. Receio, no entanto,
ter lançado mão a este empreendimento um pouco tarde. As
• coisas chegaram a um ponto que os homens já não admitem ser
• corrigidos a esse respeito, defendendo obstinadamente aquilo
que abraçaram como se fosse a religião. Nem, aparentemente,
resta algum lugar para a razão, a não ser aos olhos de um nú-
mero muito restrito, se comparados com os outros, de tal ma-
neira os preconceitos invadiram a mente dos homens. Apesar

243
J:!'.11:1 ,,
1111: disso, vou tentar. E não desistirei, porquanto não há razão para 4 - No Génesis, cap . xn, 6, onde se conta que Abraão per-
desesperar por completo. corria a terra dos Cananeus, o historiador acrescenta que o
:.ili.' Expondo por ordem, começarei pe los preconceitos relativos Cananeu estava então naquelaterra, excluindo assim, nitidamente, o
i: -;
. l·11
aos verdadeiros autores dos livros sagrados e, antes de mais, tempo em que escreve. Por conseguinte, tais palavras devem ter
'.,:1,f;.'.:1 ao autor do Pentateuco, que quase toda a gente acreditou ser sido escritas depois da morte de Moisés e numa altura em que
i,:t' Moisés. Os fariseus, inclusive, defendiam isto com tanta obsti-
nação que tinham por herege quem sustentasse um p~nto de
os Cananeus tinham sido expulsos e já não possuíam aquelas
terras . É a leitura que faz Ibn Ezra, ao comentar esta passagem:
i'f'i vista diferente. Esta a -razão pôr que Ibn Ezra, homem de uma
índole mais aberta e de não .medíóçre -eru<;lição, que foi o pri-
e o Cananeu estava então naquela terra: parece que Canaã (neto de
Noé) ocupou a terra do Cananeuque anteriormenteestava na posse de
meiro, daqueles que eu li, que .-se apercebeu desse preconceito, outro; se assim não for, há aqui um mistério, e quem o compreender,
111.r não ousou explicar claramente á sua ideia, indicando-a apenas cale-se. Quer dizer, se Canaã invadiu esse território, o sentido
1.l'í
L em termos assaz obscuros, os quais não hesitarei erri êlarifícar será o Cananeu já estava então naquela terra, coisa que não acon-
• aqui, de modo a expor a questão com toda a evidência . São . tecia antes, quando ela era habitada por uma outra nação. Mas,
estas as palavras de lbn Ezra, no seu comentário ao Deuteronó- ~ Canaã foi o primeiro a cultivá-la, como se conclui do cap. x
1~"1
;.-t·J;
P: mio: Paralá do Jordão,etc.; posto que compreendaso mistériodos doze; do Génesis, então o texto exclui o tempo presente, isto é, o do
e Moisés escreveutambém a lei; e o Cananeu estava então na terra;será escritor e, por conseguinte, não é Moisés, no tempo do qual os
·t~ reveladono monte de Deus; eis então o seu leito, um leito de ferro; Cananeus possuíam ainda aquele território. E é este o mistério
então conhecerása verdade.Por estas escassas palavras, indica e ao que lbn Ezra recomenda que deve ser silenciado.
mesmo tempo prova que não foi Moisés quem escreveu o Penta- 5-No Génesis,cap . xxn, 14, o monte Morya é denominado• ü201
leuco, mas alguém que viveu muito depois, e finalmente que o ' monte de Deus, nome que seguramente não tinha antes de ter
livro que Moisés escreveu era um outro. sido escolhido para a edificação do templo; ora, tal escolha não
Para o demonstrar, lbn Ezra faz as seguintes observações: 1-fora ainda feita no tempo de Moisés. Este, com efeito, não in-
1 - O próprio prefácio do Deuteronómio não pode ter sido . dica nenhum local escolhido por Deus e, pelo contrário, anuncia
[119] escrito por Moisés, o qual não atravessou o Jordão. que Deus escolherá, um dia, um lugar a que se dará o nome de
2 - Todo o livro de Moisés foi transcrito com toda a niti- Deus.
dez na superfície de um único altar (ver Deuteronómio,cap. XXVII, 6 - Finalmente, no cap. 111do Deuteronómio , intercalam-se na
e Josué, cap. vm, 37), que pela descrição dos rabinos era feito de 'descrição relativa a Og, rei de Basan, as seguintes palavras: ape-
doze pedras apenas; donde se conclui que o livro de Moisés era : nas Og, rei de Basan, sobreviveude entre os gigantes•, e eis que o seu
muito menos extenso que o Pentateuco.Foi isto que o autor quis, leito era um leito de ferro, certamenteaquele (leito) de nove côvadosde
a meu ver, significar por mistério dos doze, a menos que enten- comprimento que está em Rabat, dos filhos de Amon, etc. Este parên-
desse, talvez, aquelas doze maldições que vêm no supracitado tesis indica com toda a clareza que quem escreveu estes livros
capítulo do Deuteronómioe pensasse que não estavam transcritas viveu muito depois de Moisés. Com efeito, a sua maneira de
no livro da Lei, devido ao facto de Moisés, além da transcrição falar é de quem conta coisas muito antigas e, para se fazer acre-
da lei, ordenar ainda aos Levitas que recitassem essas maldi- ditar, menciona vestígios delas; porque é evidente que esse leito
ções para obrigar o povo, sob juramento, a observar a mesma
lei. Ou então referia-se ao último capítulo do Deuteronómio,so- ,
bre a morte de Moisés, o qual consta de doze versículos. Mas
não é necessário estarmos aqui a examinar mais em pormenor • Anotação IX. Pelo historiador, e não por Abraão . Com efeito, aquele diz
estas e outras conjecturas. que ao lugar que hoje se chama será reveladono monte de Deus chamava Abraão
Deus providenciará.
3 - Diz-se no Deut., cap. XXXI, 9: e Moisés escreveua lei, pala- • N. B.: em hebraico, rephaimsignifica condenados e parece ser também,
vras que não podem ser de Moisés, mas sim de um outro autor ' segundo os Paralip6me11os , ,, cap . xx, um nome próprio . Julgo, por isso, que
que descreve os feitos e os escritos dele . neste caso se refere a uma família.

244 245
,., ~

só foi encontrado no tempo de David, que conquistou aque la 2 - Deve-se também notar que nesta narrativa não se conta
' cidade, conforme se narra em Samuel, liv. II, cap. XII, 30. Mas apenas como Moisés morreu e foi enterrado, e o luto de trinta
não só aí. Um pouco mais à frente, o mesmo historiador inter- dias que os Hebreus fizeram. Diz-se também que, comparado
cala o seguinte às palavras de Moisés: Jair,filho de Manassés, to- com todos os profetas que viveram depois, ele a todos excede.
mou conta de toda a jurisdição de Argob, até aos confins dos gessuritas Nunca existiu - diz o narrador - em Israel um profetacomo Moi-
e dos macatitas,e deu a esses lugares,junto com Basan,o seu nome, os sés, a quem Deus conheceucara a cara. Tal testemunho não pode,
quais se chamam ainda hoje povoadosde Jair. Isto, repito, açresc~nta evidentemente, ser do próprio Moisés, nem de alguém que te-
o historiador pata explicar as· palavras · de Moisés que acabara nha vivido logo a seguir a ele, mas de alguém que viveu muitos
de transcrever: e o resto de:Galaade :todo-o Basan;reino de Og, dei-o séculos depois, principalmente, porque o historiador fala no pre-
à semitribo de Manassés, toda -a jurisdição de Argob e todo ti BEZsah,a térito: nunca existiu um profeta, etc . E a respeito da sepultura,
que se chama terra dos Gigantes. Os Hebreus contemporâneos deste __ diz que ninguém, até hoje, soube dela.
autor sabiam, sem dúvida, o que · eram os pávo~dos -d·e Jair: da 3 - Por outro lado, certos locais não estão indicados pelos
tribo de Judá, mas não os conheciam pelo nome de jurisdição nomes que tinham em vida de Moisés mas por outros que só
de Argob nem de terra dos Gigantes; por isso ele teve de ex- ~ais tarde lhes foram dados. Diz-se, por exemplo, que Abraão
plicar quais eram esses lugares que outrora se chamavam assim perseguiu os inimigos até Dan (Gén., xrv, 14), nome que só foi
e, ·simultaneamente, dizer a razão por que eram, nesse tempo, dado a esta cidade muito depois da morte de Josué (ver Juízes,
conhecidos pelo nome de Jair, sendo este embora da tribo de çap. XVIII, 29).
Judá e não de Manassés (ver Paralip., r, cap. II, 21 e 22). 4 - Por vezes, as narrativas estendem-se para lá do tempo
Fica assim explicada a opinião de Ibn Ezra, bem como as ~m que viveu Moisés. No P.xodo,cap. xv,, 34, conta-se que os ·
filhos de Israel comeram maná durante quarenta anos, até che-
passagens do Pentateuco que ele cita para a confirmar. Porém,
Ibn Ezra não referiu tudo, nem sequer o principal, pois há ou-
garem a uma terra habitada, nos confins de Canaã, ou seja, até [1221
'~quele tempo de que fala o livro de Josué, cap. v, 10. Da mesma
tras coisas, e de maior importância, a notar nestes livros. Assim:
forma, no Génesis, cap. XXXVI, 31, afirma-se: estes são os reis que
[1211 1 - Quem os escreveu, não só fala de Moisés na tercei ra
reinaram em Edom antes que um rei reinassesobreos filhos de Israel.
pessoa, como, além disso, lhe faz muitas referências, tais como:
~qui, o historiador fala certamente dos reis que tiveram os Idu-
Deusfalou com Moisés;Deus falava com Moisés caraa cara;Moisés era
!tt\eus antes de David os submeter * e instalar guarnições na pró-
1' o mais humilde de todos os homens (Números, cap. xn, 3); Moisés
•!li.'lt
fria Idumeia (ver Samuel, n, cap. VIII,14). :
enfureceu-secom os chefes do exército (Números, cap. xxxr, 14); Moi- Por tudo isto, é meridianamente claro que o Pentateuco não
sés, homem divino (Deuter., cap. xxxIII, 1); Moisés, servo de Deus, foi escrito por Moisés, mas por alguém que viveu muitos sé-
morreu; nunca surgiu em Israel profeta como Moisés; etc. Pelo con- ·_ÇUlosdepois dele 2 . Se se quiser, atente-se ainda nos livros que
trário, no Deuteronómio,onde se transcreve a lei que Moisés es- Moisés escreveu e que são citados no Pentateuco.Ver-se-á, por
crevera e explicara ao povo, o mesmo Moisés fala e narra os
seus feitos na primeira pessoa. Por exemplo: Deus falou-me (Deu-
ter., cap. 11, 1, 17, etc.), pedi a Deus, etc. Só que, no fim do livro,
depois de citar as palavras de Moisés, o historiador retoma de • Anotação X. Desde esse tempo até ao reinado de Jorão, altura em que se
· tornaram independentes (Reis, II, cap. vm, 20), os Idumeus não tiveram reis,
novo a narração na terceira pessoa, dizendo como ele apresen-
mas em seu lugar tinham governadores designados pelos Judeus (ver Reis, 1,
tou por escrito esta lei (que tinha explicado) ao povo, como o , cap. xxn, 48); por isso, o governador da ldumeia era designado por rei (Reis, II,
advertiu uma última vez e como, finalmente, terminou os seus cap. m, 9). Terá, no entanto, o último deles começado a reinar antes de Saul se
dias. Tudo isto, a maneira de falar, os testemunhos e o próprio ter torn ado rei, ou a Escritura, neste capítulo do Génesis,quer apenas apresen-
tar os nomes dos reis que morreram sem conhecer a derrota? Não se sabe .
contexto de toda a história, chegam para nos persuadir inteira-
Além disso, é pura ficção querer incluir na lista dos reis dos Hebreus a Moisés,
mente de que estes livros não foram escritos pelo próprio Moi- que instituiu, por inspiração divina, um Estado absolutamente distinto da mo-
sés, mas sim por um outro. 1narquia .

246 247
- •
eles mesmos, que são diferentes do Pentateuco. Em primeiro lu-
gar, consta do P.xodo,cap. xv11,14, que Moi sés descreveu por
preferiu · corromper a Escritura a confessar a sua ignorância, tra-
duzindo a frase do livro de Josué, cap. xx1v,26 - e Josué escreveu
ordem de Deus a guerra contra Amalec; no mesmo capítulo não estas palavras no livro da lei de Deus - do seguinte modo em cal-
consta, porém, em que livro o fez. Ora, nos Números, cap . XXI, deu : e Josué escreveu estas palavrase guardou-ascom o livro da lei de
14, cita-se um certo livro, que se chamava das guerras de Deus, no Deus. O que é que se há-de fazer com quem não vê senão o que
qual vinha, sem dúvida, a descrição desta guerra contra Ama- lhe apraz? Que outra coisa será isto, pergunto, senão a negação
lec, bem como de todas as expedições que, segundo o autor do da própria Escritura e a invenção de uma nova, fruto da sua
Pentateuco,nos · Números, cap. XXXlll,2,· declara terem sido descri- própria cabeça? Pela nossa parte, concluímos que esse livro da
tas por Moisés. Fala-se ainda, no f."!-odo,c~p. xxrv, 4, 7, de um · Jei de Deus que Moisés escreveu não era o Pentateucomas um
outro livro chamado o livro d_opacto ·, que Moisés leu . diante outro completamente diferente que o autor do Pentateuco inse-
dos Israelitas quando concluíram o prlmeiro pacto .com 'Deus. riu a dado passo na sua obra, como se deduz, quer do que
Mas este livro, ou esta epístola, continha rriuito póucà -coisa:· as acabámos de dizer, quer daquilo que se segue . De facto, quan-
leis ou mandamentos de Deus que se descrevem do vers. 22 do do, na já citada passagem do Deuteronómio,se refere que Moisés
cap. xx até ao cap. xx1v do f.xodo, como toda a gente reconhe- ~screveu o livro da lei, o historiador acrescenta que ele o entre-
cerá se ler o dito capítulo com um mínimo de sensatez e de ou aos sacerdotes e que, além disso, lhes ordenou que o les-
imparcialidade. Aí se conta, efectivamente, que Moisés, assim em a todo o povo em determinadas ocasiões, o que mostra
que conheceu a opinião do povo sobre o pacto a estabelecer ue esse livro era muito mais pequeno que o Pentateuco, pois
com Deus, escreveu imediatamente as palavras e os mandamen- ·a ser integralmente lido numa só assembleia e de forma a
tos divinos e, de madrugada, terminadas cer tas cerimónias, leu ue todos o compreendessem. Por outro lado, não se deve perder
a toda a assembleia as condições do pacto; e que, feita a leitura vista que, de todos os livros escritos por Moisés, só este do
e, com certeza, após toda a plebe ter compreendido essas con- ,gundo pacto e o Cântico (que ele também escreveu, mais tarde,
dições, o povo se comprometeu por unanimidade. Donde, já pelo àra que todo o povo o decorasse) é que ele mandou guardar e
pouco tempo que levou a ser escrito, já pelo teor do pacto, esse ,nservar religiosamente. Porque pelo primeiro pacto ele obri-
livro não devia conter senão aquele reduzido número de coisas ara apenas os que ali estavam presentes, ao passo que pelo
que acabei de mencionar . do obrigava também os descendentes (ver Deut., cap. XXIX,
Consta, enfim, que Moisés, no quadragésimo ano após a 15), razão pela qual Moisés ordenou que o livro deste segun-
saída do Egipto, explicou todas as leis que havia promulgado .o pacto fosse religiosamente conservado pelos séculos futuros,
(Deut., cap. 1, 5), obrigou de novo o povo a submeter-se-lhes como o Cântico, que se refere essencialmente aos séculos
(123] (Deut., cap. XXIX, 14) e escreveu, enfim, um livro onde vinham <louros . Assim, como não consta que Moisés tenha escrito
as leis assim explicadas e este novo 3 pacto (Deut., cap. XXXI, 9). utros livros, nem mandado conservar religiosamente para a 11241
O livro chamou-se livro da lei de Deus e, mais tarde, Josué teridade senão o livrinho da lei e o Cântico, e dado, enfim,
acrescentou-lhe a descrição do pacto pelo qual, no seu tempo, o ue há várias passagens no Pentateuco que não podem ter sido
povo se comprometeu uma vez mais e que foi o terceiro que ritas por Moisés, conclui-se que ninguém poderá afirmar com
firmaram com Deus Uosué, cap. xx1v, 25 e 26). Todavia, como mínimo de fundamento que Moisés é o autor do Pentateuco.
não possuímos nenhum livro que contenha este pacto de Moisés ·elo contrário, tal afirmação é absolutamente contra a razão.
juntamente com o de Josué, temos forçosamente de admitir que Haverá talvez quem pergunte se Moisés não teria, além
esse livro se perdeu, a menos que se queira endoidecer com o . esses dois trechos, posto por escrito também as leis, aquando
1i; parafrasta caldeu Jonatan 4 e distorcer livremente as palavras e eram reveladas pe la primeira vez, isto é, se ao longo de
da Escritura. Este, com efeito, perante a mesma dificuldade, ,uarenta anos ele não escreveu nenhuma das leis que promul-
ou, para além daquele pequeno número que eu disse estarem
intidas no livro do primeiro pacto. A isto respondo que, ad-
• Sepher, em hebraico , significa, muitas vezes, epístola ou carta. 'tindo embora parecer consentâneo com a razão que Moisés

248 249
- escrevesse as leis no momento--e no local em que acontecia pro -
mulgá-las, nego todavia que só por esse motivo nos seja lícito
Em relação ao livro dos Juízes, acho que nenhuma pessoa
que esteja boa da cabeça se convence de que ele tenha sido
afirmá-lo. Na verdade, já mostrámos antes que, em tais casos, escrito pelos próprios juízes; com efeito, o epílogo de toda a
só podemos afirmar o que consta da própria Escritura ou o que, história que aparece no cap. II mostra, sem margem para dúvi-
a título de legítima consequência, se deduz apenas dos seus fun- das, que todo ele foi escrito por um único historiador. Além
damentos e não do que parece consentâneo com a razão. Até disso, como o seu autor frisa repetidamente que naquele tempo
porque a razão _não no _s obriga _a tanto. É muito possível, coip não havia rei em Israel, está fora de questão que o livro foi
efeito, que o Senado transmitisse ao povo ·por escrito os éditos escrito já depois de os reis terem ocupado o poder.
de Moisés, os quais foram mais tarde : coligídos pelo historiador Quanto aos livros de Samuel, também não há razão para
e inseridos por ordem na biografia de l\1oisés. : . . neles nos demorarmos, já que a história decorre muito depois
Isto, quanto aos cinco livros d_e Moisés .. É agorà . ~!Jura 9e de ele ter vivido. Gostaria apenas de notar, contudo, que este
examinarmos também os outros. Em relação ao livro de Josué, livro também foi escrito muitos séculos depois de Samuel. Na ver-
prova-se por razões semelhantes que ele não é autógrafo. É, com dade, o historiador, no liv. I, cap. IX, 9, faz num parêntesis esta
efeito, outra pessoa que, falando de Josué, diz que a sua fama advertência: antigamente,em Israel,quandoalguém ia consultarDeus,
se estendeu por toda a terra (ver cap. VT, 27), que observou dizia «vamos ao vidente», pois se chamavaentão vidente ao que hoje
chamamosprofeta.
tudo quanto Moisés havia prescrito (ver o último versículo do
Finalmente, os livros dos Reis, conforme consta deles pró-
cap. vm e o cap. XI, 15), que envelheceu e convocou toda a gente
prios, são tirados dos livros dos feitos de Salomão (ver Reis, I,
para uma assembleia e expirou finalmente. Depois, são igual-
cap. XI, 41), das ·crónicas dos reis de Judá (ver cap. XIV, 19, 29,
mente narrados certos factos que ocorreram já depois da sua
do mesmo livro) e das crónicas dos reis de Israel.
morte. Por exemplo, que após ele ter morrido os Israelitas pres-
Em conclusão, todos os livros que recenseámos até aqui são
taram culto a Deus enquanto viveram os velhos que o tinham
apógrafos e as coisas que eles contêm estão narradas como an-
conhecido; e (cap. XVI, 10) que eles (Efraim e Manassés) não ex-
tigas. Se repararmos agora na conexão e no argumento de to-
pulsaram o Cananeu que habitava em Gazer, mas (acrescenta) que o dos esses livros, concluiremos facilmente que eles foram escri-
Cananeu habitou entre os de Efraim até aos dias de hoje, pagando tri- tos por um só e o mesmo historiador, o qual quis escrever a
buto, exactamente o mesmo que se narra no livro dos Juízes, história antiga dos Judeus desde a sua origem mais remota até
cap. I, além de que a expressão até aos dias de hoje mostra bem à primeira destruição da Cidade. De facto, esses livros estão de
que o autor está a narrar uma coisa antiga. Muito parecido com tal maneira interligados que só por aí já se pode ver que não
este é o texto do cap. xv, último versículo, sobre os filhos de contêm senão uma única narração feita por um único historia-
Judá, e a história de Caleb, a partir do vers. 13 do mesmo capí- dor. Mal ele acaba de contar a vida de Moisés, passa logo à
tulo. Também o caso que é relatado no cap. XXII, vers. 10 e se- história de Josué: e aconteceu,após a morte de Moisés,servo de Deus,
[12s1 guintes, das duas tribos e meia que edificaram um altar para lá que Deus disse a Josué, etc. Terminada a narração da morte de
n1
a
do Jordão, parece ter ocorrido já depois da morte de Josué, Josué, começa a história dos juízes, fazendo idêntica transição e [126J
1 porquanto em toda essa história não se faz qualquer menção de a mesma ligação: e aconteceu,após a morte de Josué,que os filhos de
Josué: é o povo sozinho que delibera na questão da guerra, que Israel pediram a Deus, etc. Ao livro dos Juízes liga-se assim, como
envia emissários, que espera a sua resposta e que, finalmente, em apêndice, o de Rute: e aconteceunaquelesdias, quando os Juízes
aprova. Por último, do cap. x, 14, conclui-se claramente que este governavam,haverfome naquelaterra.Ao livro de Rute liga-se, tam-
e
' livro foi escrito muitos séculos depois de Josué, na medida em bém da mesma maneira, o liv. I de Samuel, findo o qual o autor
,1 que nele se garante que nunca houve outro dia comoaquele,nem antes passa ao segundo, pela conexão costumada. Ao II de Samuel,ainda
nem depois, em que Deus obedecesse(assim) a alguém, etc. Se, por- não. acabada a história de David, liga o I dos Reis, e continuando
tanto, Josué escreveu alguma vez um livro, foi com certeza o a narrar a história de David, liga, finalmente, a este, pela mesma
que é citado nesta mesma narrativa, cap. x, 13. conexão, o 11 dos Reis.

250 251
- l 11
~.

O contexto e a ordem dos relatos indicam igualmente tra- não contém apenas o livro da lei de Moisés ou a maior parte
1 i,i tar-se de um só historiador, o qual se impôs a si próprio um dele, acrescentando -se-lhe, além disso, muitos outros dados para
objectivo bem determinado. Começa, efectivamente, por descre- uma mais cabal explicação, sou levado a supor que o livro do
I li
ver a primeira origem da nação hebraica; a seguir, expõe por Deuteronómioé o livro da lei de Deus, escrito, comentado e ex-
I'
·1 ordem em que ocasião e em que épocas Moisés lhe ditou leis e plicado por Esdras que leram então. Já apresentámos, aliás, dois
.1
fez numerosas profecias; depois, conta como os Hebreus invadi- exemplos a provar que neste livro se inserem entre parêntesis
ram a terra p~ome_tida, _de acordo com as _profecias de Moisés muitas coisas com vista a uma melhor explicação, quando anali-
(ver Deut., cap. vn), como, uma vez na posse dela, abandonaram sámos a opinião de Ibn Ezra. E há outros igualmente dignos de
as leis (Deut., cap. xxxr, 16)~ e ·bem ássim os muitos males que __ nota, por exemplo no cap . II, 12: e em Sehir habitaramprimeiro os
isso lhes acarretou (idem, vers: 11}; como, _em seguida, quiseiàm Horitas, mas osfilhos de Esaú expulsaram-nosefizeram-nos desaparecer
I't eleger reis (Deut., cap. XVII, 14), a quem as coisas côrr.eram cj,e
maneira próspera ou infeliz conforme a sua observância das leis
da sua vista e ocuparamo seu lugar, comofez Israel na terra da sua
herança, que Deus lhe deu. Isto, para explicar os vers. 3 e 4 do
(Deut., cap. xxvm, 36 e último), e assim por diante até à ruína mesmo capítulo, ou seja, para dizer que, quando os filhos de
final do Estado, consoante Moisés havia predito. Quanto ao resto, Esaú ocuparam o monte de Sehir que lhes coubera em herança,
!['. tudo o que não serve para confirmar a lei é totalmente silencia- ele não estava desabitado; pelo contrário, invadiram-no e, à se-
do ou então remete-se o leitor para outros historiadores. Todos melhança do que os Israelitas fizeram aos Cananeus após a morte
''I estes livros visam, portanto, um único objectivo, que é ensinar de Moisés, desbarataram e expulsaram de lá os Horitas. Domes-
os ditos e os éditos de Moisés e demonstrá-los através de factos. mo modo, os vers. 6, 7, 8 e 9 do cap. x são um parêntesis acres- .
Considerando, pois, em simultâneo estas três características centado às palavras de Moisés; não há, com efeito, ninguém que
- unidade do tema de todos esses livros, a sua interligação e o não veja que o vers. 8, que começa por naqueletempo Deus sepa-
facto de serem apógrafos, escritos muitos séculos após os factos rou a tribo de Levi, se refere necessariamente ao vers. 5 e não à
que relatam-, conclui-se, como acabámos de dizer, que todos morte de Aarão, que Esdras parece referir aqui unicamente por-
eles foram escritos por um só historiador. Quem foi ele, não o que Moisés, ao narrar a adoração do bezerro pelo povo, tinha
posso provar com a mesma evidência, mas suspeito que tenha di to (vide cap. IX, 20) que rezara a Deus por Aarão. Esdras, aliás,
sido Esdras, e há várias razões de peso para esta minha conjec- explica a seguir que Deus, no tempo a que Moisés se refere,
tura. Com efeito, uma vez que o historiador (que já sabemos elegeu para si a tribo de Levi, mostrando assim a causa da elei-
ter sido só um) prolonga a narrativa até à libertação de Joa- ção e de os Levitas não terem sido chamados a partilhar da
quim e acrescenta, além disso, que se sentou à mesa do rei du- herança; feito isto, retoma o fio da narrativa com as palavras
1' rante toda a vida deste (ou seja, de Joaquim ou de Nabucodo- de Moisés .
nosor, pois o sentido é totalmente ambíguo), não pode ter sido Acresce ainda o prefácio do livro e todas as passagens que 112s1
1127] alguém anterior a Esdras. Ora, a Escritura não menciona nin- falam de Moisés na terceira pessoa, além de muitas outras que
11
guém que se tenha evidenciado nessa altura, a não ser Esdras não podemos ana lisar e que o autor, sem dúvida, acrescentou
(ver Esdras, cap. v11, 10), que aplicasse todo o seu esforço ao ou traduziu por outras pa lavras, para que os homens do seu
11 estudo e comentário da lei de Deus e fosse um escritor experi- tempo mais facilmente compreendessem. Se nós dispuséssemos
"1:, mentado na legislação mosaica (idem, 6). Por esta razão, além do próprio livro da lei de Moisés, não tenho dúvidas de que
:, de Esdras, não vemos ninguém de quem se possa suspeitar ter acharíamos uma grande discrepância, tanto nas palavras como
I•
escrito estes livros. na ordem e na justificação dos preceitos. Na verdade, basta com-
Em segundo lugar, verifica-se por este testemunho a respei- parar o Decálogo deste livro com o Decálogo do P.xodo(onde a
to de Esdras que ele se ·dedicava não só a estudar a lei de Deus sua história está expressamente relatada), para ver que aquele
como também a comentá-la, e em Nehemias, cap. vrn, 9, diz-se em tudo é diferente deste: o quarto mandamento, não só está
ainda que leram o livro da lei de Deus explicadoe aplicaramo enten- formulado de outra maneira, como, além disso, vem apresenta-
dimento e entenderam a Escritura. Como o livro do Deuteronómio do muito mais prolixamente 5. E quanto à justificação que neste

252 253
'i! ·r:
I',li li;1 "
livro é dada, não podia ser mais diferente da que dá o f.xodo.
'lii': Finalmente, a ordem por que é aqui explicitado o décimo man -
damento também não coincide com a do f.xodo.
1111 Julgo, pois, que tais modificações, nestas e noutras passa-
gens, foram feitas, como já disse, por Esdras, uma vez que este
1 ' explicou a lei de Deus aos seus contemporâneos e, por conse-
guinte, é este o livro da lei de Deus comentada e explicada por
\'j ele. Julgo, além disso, que foi este o primeiro de todos os quê
eu disse que ele tinha escrito, suposição ·que se baseia no facto
CAPITULO IX [129]
1 k
1' de este livro conter as leis da Pátria, das quais um povo precisa ONDE SE ANALISAM OUTRAS QUESTÕES
acima de tudo, e também por não estar "ligado ao anterior ·por A RESPEITO AINDA DOS MESMOS LIVROS,
\ nenhuma conjunção, como acontece com todos os demaís; · comê- EM PARTICULAR SE FOI ESDRAS QUEM OS CONCLUIU
çando, em vez disso, por uma oração não subordinada: Estas são E SE AS NOTAS À MARGEM QUE SE ENCONTRAM
NOS CÓDICES HEBRAICOS CONSTITUEM VARIANTES
[,, as palavras de Moisés, etc. Só çl.epois de ter acabado este livro e
ensinado as leis ao povo é que Esdras, penso eu, se pôs a escre-
1
[1 ver toda a história da nação hebraica, isto é, desde a criação do
:J, mundo até à destruição total da Cidade, inserindo depois no
1t:1
i lugar próprio o livro do Deuteronómio.Possivelmente, designou As passagens que citámos para comprovar a nossa posição .
os seus cinco primeiros livros pelo nome de Moisés por ser sobre- sobre este assunto são suficientes para se perceber quanto a
tudo a vida deste o que neles se contém, tomando assim o nome anterior discussão sobre o verdadeiro autor destes livros ajuda
da personagem principal. Pela mesma razão, chamou ao sexto a compreendê-los perfeitamente e como sem essa discussão eles
de Josué, ao sétimo dos Juízes, ao oitavo de Rute, ao nono e pareceriam obscuros para qualquer pessoa . Todavia, além do
talvez também ao décimo de Samuel, ao décimo primeiro e ao autor, há nestes livros outras questões a ter em conta e que a
décimo segundo dos Reis. Se foi realmente Esdras quem deu a superstição comum impede o vulgo de perceber. A principal é
última demão nessa obra e a terminou conforme desejava, é o que Esdras (tomá-lo-ei por autor dos livros a que aludi enquanto
que veremos no capítulo seguinte. ninguém me mostrar outro mais provável) não foi quem deu a
última demão nas narrativas que vêm nesses livros, nem fez
mais que coligir histórias de diversos autores, quando não se
limitou simplesmente a transcrevê-las, deixando-as tal qual à
posteridade, sem as examinar nem ordenar . Que razões o terão
impedido de ultimar com todos os pormenores este seu traba-
lho, (a não ser, talvez, urna morte prematura) não posso adivi-
nhá -lo. Mas, apesar de não dispormos dos escritos dos antigos
historiadores dos Hebreus, o facto resulta mais que evidente
dos escassos fragmentos que possuímos . A história de Eze-
quias, a partir do vers. 17, cap . XVIII, do liv . II dos Reis, é trans-
crita do relato de Isaías, tal como ele se encontrava nas Crónicas
dos Reis de Judá. De facto, toda essa história se pode ler no livro
de Isaías, que estava incluído nas Crónicas dos Reis de Judá (ver
Paralip., n, cap. XXXII, penúltimo versículo) e contada nos mes-
mos termos em que aparece no livro dos Reis, salvo raras excep-

254 255
t
ções *, das quais, aliás, a única coisa que se pode concluir é que falou imediatamente antes*; mas é impossível que ele se refira
existiam diferentes versões do relato de Isaías. A menos que a este tempo de que se tratou imediatamente antes no Génesis.
alguém prefira sonhar com mistérios até a propósito disto ... Com efeito, desde a altura em que José foi levado para o Egipto
Depois, o último capítulo deste livro vem também no último até àquela em que o patriarca Jacob para lá se pôs a caminho
capítulo de Jeremias,39 e 40. E o cap. vn do liv. 11 de Samuel está com toda a sua família podem-se contar, no máximo, vinte e
reproduzido no liv. 1 dos Paralipómenos,cap. XVII, muito embora dois anos: José tinha 17 quando foi vendido pelos seus irmãos e
as palavras, em certas passage1:1s, tenham sido tão extraordina- 30 quando o Faraó o mandou tirar da prisão; se a estes juntar-
riamente mudadas ** que se reconhece cóiri facilidade que estes mos os sete de abundância e os dois de fome, faz ao todo vinte
dois capítulos foram tirados ·de dois exemplares diferentes da e dois anos. Neste lapso de tempo, é impossível alguém pensar
[1301 história de Natan. Finalmente, a· _genealogia dos reis da fdtJ.inéia que tenham acontecido tantas coisas, a saber: que Judá tenha
que vem no Génesis, cap. XXXVI, a partir dó vers. 31,_·ar-a.rece !].OS tido, um atrás do outro, três filhos da única mulher com quem
mesmos termos no liv. 1 dos Paraiipómenos,cap. 1, apesar de se se casou; que o mais velho deles se tenha, assim que a idade
saber que o autor deste livro foi buscar a matéria das suas nar- lho consentiu, casado com Tamar; que, após a morte deste, o
rativas a outros historiadores e não aos doze livros por nós segundo a tenha desposado; que o próprio Judá, depois de lhe
atribuídos a Esdras. É evidente que, se tivéssemos acesso a es- ter morrido também este filho e de ter acontecido tudo isto,
ses historiadores, o assunto esclarecer-se-ia directamente; como tenha tido relações com Tamar, sua nora, ignorando quem ela
não temos, conforme eu disse, só nos resta examinar estas nar- era, re lações de que nasceram dois filhos gémeos, um dos quais,
rativas, ou seja, a sua ordem e o seu encadeamento, as diversas ainda no mesmo lapso de tempo, se tomou pai. Por conseguinte, .
uma vez que não se pode reportar tudo isto ao tempo indicado
repetições e, enfim, a sua discrepância no cômputo dos anos,
no Génesis, temos necessariamente de o reportar a seguir, a um
para assim se poder ajuizar do resto.
outro tempo, de que se tratava imediatamente num outro livro.
Examinemos, pois, estas narrativas, ou, pelo menos, as prin-
Esdras limitou-se a transcrever esta história e a juntá-la às ou-
cipais. Em primeiro lugar, aquela de Judá e Tamar que o narra-
tras sem sequer a examinar.
dor, no cap. XXXVIII do Génesis, começa assim a contar: Aconteceu,
Não é só este capítulo, aliás, que temos de reconhecer que foi
porém, naquele tempo, que Judá se afastou dos seus irmãos. O tempo extraído e transcrito de diversos historiadores, mas toda a histó- [131J
aqui mencionado refere-se, necessariamente, a outro de que se ria de José e de Jacob, tão pouca é a sua coerência. No cap. xLvn,
o Génesis conta que Jacob, quando foi levado por José a cumpri-
mentar pela primeira vez o Faraó, tinha 130 anos; se descontar-
* Anotação XI. Por exemplo, no liv. n dos Reis, cap. xvm, 20, lê-se na segun- mos os vinte e dois que ele passou amargurado pela ausência
da pessoa: tu disseste, mas apenas com a boca.No entanto, em Isaías, cap. XXXVI,
5: eu disse,e são palavrasexactas,que para a guerra era precisoprudênciae coragem.
de José, os 17 que este tinha quando foi vendido e, finalmente,
Depois, no vers. 22, lê-se: mas direis talvez,no plural, portanto, quando na versão os sete durante os quais Jacob serviu por causa de Raquel, veri-
de Isaías está no singular. Além disso, no texto de Isaías não se lêem estas .
palavras do vers. 32 do citado capítulo: urna regiãode azeite e de mel, para que
vivam e não morram. E não escuteis Ezequiel.[É por esta razão que eu não tenho
dúvidas de que são supostas palavras.] E, como esta, encontram-se muitas va- * Anotação XIII. Que este texto não se refere a nenhum outro tempo que
riantes entre as quais ninguém saberá alguma vez por qual se deve •optar. • ff
não seja aquele em que José foi vendido, decorre não só do contexto, mas
** Anotação XII. Por exemplo, em Samuel, n, cap . vn, 6, lê-se: vagueei inces- também da própr ia idade de Judá, que tinha en tão, no máximo, 22 anos, se é
santementecom uma tenda e um tabemáculo;nos Paralip6menos,,, cap . xvn, 5: e ia · que é lícito fazer o cálculo a partir da narração anterior. Com efeito, no último
de tenda em tenda e de tabernáculo ..., substituindo mithalek por méohél,ohél por versículo do cap. XXIX do Génesis, aparece que Judá teria nascido dez anos de-
el-ohéle bemishkanpor mirnishkan.Depois, no vers . 10 do referido capítulo de , pois de o patriarca Jacob ter começado a trabalhar para Labão, e José quatro
Samuel, lê-se para o afligir, e nos Paralip6menos,capítulo citado, vers . 9, para o anos mais tarde. Ora, se José, quando foi vendido, tinha 17 anos, Judá teria 21,
esmagar.E há várias outras divergências, de maior importância até, em que SÓ e não mais . Iludem-se, pois, os que acreditam que essa longa ausência de Judá
quem seja cego de todo ou completamente insensato é que não reparará, ao se deu antes de José ser vendido, além de que parecem ter, quanto à divin-
comparar estes capítulos. dade da Escritura, mais preocupações que certezas.

li 256 257
..
ficamos que ele tinha já uma provecta idade, ou seja, 84 anos, contar o que aconteceu a seguir a essa morte, como poderia ele,
quando tomou Lia por esposa. Em contrapartida, Dina tinha se quisesse seguir o fio da sua história, fazer a ligação entre o
apenas 7 * quando foi violada por Siquem, e Simeão e Levi ti- que vem antes e o que aí começa a contar do próprio Josué?*
nham 12 e 11, respectivamente, quando saquearam toda aquela Igualmente os caps. xvn, xvm, etc., do liv. 1 de Samuel são tira-
cidade e passaram à espada todos ·os seus habitantes. Mas não dos de um outro historiador, o qual pensava que David tinha
é preciso analisar aqui tudo o que vem no Pentateuco. Se tiver- começado a frequentar a corte de Saul por um motivo muito
mos em conta a forma confusa e desordenada como nesses cinco diferente daquele que é apresentado no cap. xv1 do mesmo li-
livros todos os preceitos e histórias vêm narrados, baralhando- vro. Efectivamente, a sua opinião não é que Saul tenha chamado
-se os tempos e repetindo:se .muitas _vezes -~- mesma história, David, a conselho dos seus criados, como se relata no cap. XVI,
algumas de maneira diferente, é _.fácil ·verificar que tudo isto · foi mas sim que o pai de David, por mero acaso, o mandou ter
reunido e acumulado confusamente, a fim de ser depois .exàmi- com os irmãos aos acampamentos 2 e que Saul só deu por ele
nado e redigido na devida ordem. E não ·foi ·apenas o qüe vem aquando da sua vitória contra o filisteu Golias, após o que ficou
nestes cinco livros que foi assim coligido; foram também as res- então retido na corte. Suspeito que se passa o mesmo com o 11321
tantes histórias que vão até à destruição da Cidade e que se cap. XXVI deste livro, porquanto o historiador parece contar aí a
encontram nos outros sete livros. Quem é que não vê que, no mesma história que vem no cap. XXN, embora numa outra ver-
cap. rr dos Juízes, a partir do vers. 6, se passa a citar um outro são. Dou, no entanto, este assunto por encerrado e passo a ana-
historiador (que tinha também narrado os feitos de Josué) cujas lisar o cômputo dos anos.
palavras são simplesmente transcritas? Com efeito, depois de o No cap. VI do liv. 1 dos Reis, diz-se que Salomão construiu o
nosso historiador ter relatado, no último capítulo de Josué, a templo no ano 480 após a saída do Egipto. A avaliar, no entan- ·
morte e o enterro deste, e prometer, no cap. 1 dos Juízes, que ia to, pelas narrativas, temos de concluir que foi um número de
anos muito superior. Com efeito:
Moisés governou o povo no deserto 40 anos
• Anotação XIV. Pensar,comoalguns, que Jacob levou oito a dez anos para
ir da Mesopotânúapara Betel,cheira a tolice,salvo o devido respeito para com A Josué, que viveu 110 anos, não se atribui, segundo
Ibn Ezra. Com efeito, quer pelo desejo que certamente tinha de ver os seus a opinião de Josefo e outros hlstoriadores, mais que 26 anos
pais, de idade já muito avançada,quer para cumprir o voto que fizera quando Kusan Risataim subjugou o povo ....................................
. 8 anos
fugira do irmão (ver Gén., cap. xxvm,10, cap. XXXI, 13, e cap. xxxv, 1), Jacob Otoniel, filho de Kenaz, foi juiz **..... 40 anos
apressou-se o mais que pôde, até porque Deus o avisou para que fosse cum- Eglon, rei de Moab, subjugou o povo 18 anos
prir o seu voto (Gén., cap. XXXI,3 e 13) e prometeu-lhe a sua ajuda para o con- Aod e Samgar foram juízes 80 anos
duzir de regresso à Pátria. Se, todavia, acharem que isto são conjecturase não Jabin, rei de Canaã, voltou de novo a subjugar o povo 20 anos
razões, pois bem, concedamos,Jacob demorou oito a dez anos, ou até mais,
se se quiser, para fazer esta curta viagem, levado por um destino pior que o
de Ulisses. O que não poderão negar é que Benjamimnasceu no último ano
dessa viagem, ou seja, aceitandoa sua hipótese,quinze ou desasseisanos depois * Anotação XV. [Isto é, por outras palavras e por ordem diferente daquela
de José. Com efeito, Jacobdespediu-sede Labão tinha José 7 anos. Ora, confor- em que se encontram no livro de Josué.]
me demonstrámos neste mesmo capítulo, entre os 17 anos de José e o mo- •• Anotação XVI. R. Levi ben Gerson e alguns outros crêem que estes qua-
mento em que o próprio patriarca foi ao Egipto não passaram mais que vinte renta anos que a Escritura diz terem decorrido em liberdade se contam a par-
e dois anos. Benjamim,portanto, teria nessa altura, isto é, quando partiu para tir da morte de Josué, incluindo por isso os oito anos que durou a dominação
o Egipto, no máximo, 23 ou 24 anos; ora, segundo consta, nesta precoce idade de Kusan Risataim;da mesma forma, pretendem que os dezoito anos que se
.., ele já tinha netos (compare-seo texto do Génesis,cap. XLVI, 21, com os vers. 38, seguiram se devem incluir no cômputo dos oitenta em que Aod e Samgar
39, 40 do cap. XXVI dos Númerose com os vers. 1 e seguintes do cap. vm, liv. 1 foram juízes. Em resumo, incluem anos de dominação estrangeira entre aque-
dos Paralipómenos) . É que Belah,o primogénito de Benjamim,tinha já dois fi- les que a Escritura confirma terem sido de liberdade para os Hebreus. Mas
lhos, Ared e Nahaman. Isso seria, com certeza, tão estranho à razão como uma vez que a Escritura enumera expressamente os anos de servidão e os
pretender que Dina foi violadaaos 7 anos e outras coisas que deduzimos desta anos de liberdade e conta (cap. 11, 18) que os interesses dos Hebreus prospera-
sequência narrativa. Por aí se vê como as pessoas inábeis, quando tentam re- ram sob os juízes, toma-se evidente que este rabino, homem aliás de grande
solver uma dificuldade,caem noutra e tornam as coisas ainda mais intrincadas. erudição, bem corno os outros que lhe seguem as pisadas, ao tentarem resol-

258 259
••
Seguidamente, o povo esteve em paz 40 anos Elon Zabulonita 10 anos
De pois, esteve submetido aos Madianita s 7 anos Abdan Pira tonita 8 anos
Viveu em liberdade, no tempo de Gedeão 40 anos O povo esteve de novo submetido aos Filisteus ............ 40 anos
Sob o domínio de Abimelec 3 anos Sansão foi juiz * 20 anos
Tola, filho de Pua, foi juiz 23 anos Heli 40 anos
22 anos Mais uma vez, o povo esteve submetido aos Filisteus
O povo foi de novo subjugado pelos Filisteus e Amo- até ser libertado por Samuel .......................................... 20 anos
nitas 18 anos David reinou ............. ............................................ ................ 40 anos
Jefté foi juiz 6 anos Salomão, antes de construir o templo, reinou ................ 4 anos
Absan de Belém 7 anos Tudo somado, faz.... .................................. ........................... 580 anos

E ainda falta aqui acrescentar os anos que se seguiram à [133)


ver semelhantes dificuldades, mais do que explicar a Escritura, estão a corrigi- morte de Josué, durante os quais a república dos Hebreus pros-
-la. O mesmo se passa com os que admitem que a Escritura, quando apre -
senta aquele cômputo geral dos anos, se refere apenas aos períodos durante perou, até ser submetida por Kusan Risataim, e creio que foram
os quais houve um Estado judeu e não aos anos de anarquia [chamam-lhes muitos. De facto, não consigo convencer-me de que, mal se deu
assim por ódio ao Estado Popular] e de servidão, que consideram desafortu- a morte de Josué, todos os que tinham visto os seus prodígios
nados e como que de interregnos. [Dizer que os Hebreus não quiseram assi- morreram de um momento para o outro, nem que os seus des-
nalar nos seus Anais os tempos de . . . do seu Estado, por serem tempos de cendentes deixaram logo de cumprir as leis, passando abrupta-
infelicidade e como que de interregno, ou que rasuraram os anos de domina-
ção, se não é uma calúnia, é uma ficção quimérica e um puro absurdo.] Por- mente da mais alta virtude à mais baixa corrupção e cobardia;
que a Escritura, se passa de facto sob silêncio os períodos de anarquia, não nem, finalmente, de que Kusan Risataim, meu dito, meu feito,
refere menos os anos de servidão que os de liberdade, nem costuma, como os tenha submetido. Cada uma destas coisas leva quase uma
eles imaginam, expurgá-los dos Anais. Dizer, porém, que Esdras [autor destes geração, pelo que não há qualquer dúvida de que a Escritura, no
livros, como fizemos ver] quis incluir no referido cômputo absolutamente todos
cap. rr, 7, 9 e 10 do livro dos Juízes, abrange histórias de muitos
os anos desde a saída do Egipto [até ao quarto ano do reinado de Salomão ],
é algo tão evidente que ninguém que seja versado na Escritura alguma vez o anos que passa sob silêncio.
pôs em dúvida . Porque, mesmo descontando já as palavras do texto, a pró- A isto há ainda que acrescentar os anos em que Samuel foi
pria genealogia de David que é apresentada no fim do livro de Rute e nos juiz e cujo número também não vem na Escritura, bem como os
Paralipómenos, liv . 1, cap. n, dificilmente permitiria chegar a um tão grande anos de reinado de Saul, que eu omiti no cômputo anterior porque
número de anos [isto é, quatrocentos e oitenta]. Nahasson era chefe da tribo
de Judá dois anos após a saída do Egipto (ver Números, cap . vu, 11 e 12) e
não consta da sua história quantos anos ele reinou. No cap. XIII,
morreu, por conseguinte, no deserto [com todos os que, chegados aos 20 anos, 1, do liv. 1 de Samuel, diz-se que foram dois anos, mas não só
estavam em idade militar]; o seu filho Salmon atravessou com Josué o Jordão. esse texto está truncado, como, além disso, se deduz da própria
Ora, este Salrnon, segundo aquela genealogia de David, foi o seu trisavô . [Por- história um número superior. Que o texto está truncado, é coisa
tanto, não é necessário imaginar que este Salmon tivesse, pelo menos, 91 anos
quando foi pai de Bohgar e que este, por sua vez, tivesse outros tantos quan-
do nasceu David. Porque David (admitindo que o ano 4 do reinado de Salo-
i
,.
mão, conforme diz o liv. 1 dos Reis, cap. vi, fosse o 480.0 após a saída do Egip-
to) nasce no ano 366 após a travessia do Jordão .] Se deste total de quatrocentos
e oitenta anos tirarmos os quatro anos do reinado de Salomão, os setenta que
* Anotação XVII. Sansão nasce já depois de os Filisteus terem subjugado os
Hebreus . [É duvidoso se estes vinte anos se devem reportar aos anos de liber-
dade, ou se estão incluídos nos quarenta imediatamente anteriores, durante
1
viveu David e os quarenta passados no deserto, vemos que David nasceu tre- os quais o povo esteve sob o jugo dos Filisteus. Por mim, confesso que acho
1
zentos e sessenta e seis anos após a travessia do Jordão; e [supondo que Sal- mais verosímil e mais provável que os Hebreus tenham recuperado a sua li-
mon, antepassado de David, nasceu mesmo durante a travessia] seria ainda berdade quando os mais importantes Filisteus morreram com Sansão. Por isso,
necessário que [Salmon, Bohgar, Obed e Jesse] o seu pai, o avô, o bisavô e o incluí estes vinte anos de Sansão entre aqueles que durou o jugo dos Filisteus,
trisavô [sucessivamente] tivessem tido os filhos [já no fim da velhice] com a quer porque Sansão nasceu já depois de eles terem subjugado os Hebreus,
idade de 90 anos. [Por conseguinte, se a Escritura não o dissesse expressamente, quer ainda porque no Tratado do Sabbat se menciona um tal livro de Jerusalém,
seria muito difícil contarem-se quatrocentos e oitenta anos entre a saída do onde se diz que Sansão julgou o povo durante quarenta anos; mas a questão
Egipto e o quarto ano do reinado de Salomão .] não está só nestes anos .]

260 261
..
de que ninguém que tenha os mais elementares rudimentos de de Acab (cap . vm, 16, deste mesmo livro) . E se quiséssemos com-
hebraico pode duvidar. Começa assim: Saul tinha [ ... ] ano quando parar os relatos dos livros dos Parnlipómeno s com os dos livros
se tornou rei, e reinou dois anos sobre Israel.Quem não vê, pois, que dos Reis, encontraríamos muitas outras divergências parecidas
o texto omite o número de anos que Saul tinha quando se tor- que não vale a pena referir aqui, o mesmo acontecendo, por
nou rei? Quanto a termos de admitir, pe la própria história, um maioria de razão, com as invenções dos autores que tentam con-
número maior de anos, também ninguém, creio eu, duvidará. ciliar tais histórias . De facto, os rabinos, deliram completamente.
Com efeito, no cap. xxvn, 7, do mesmo livro, vemos que_David Os comentadores que eu li, ou sonham ou fantasiam e acabam
ficou um ano e quatro meses com os Filisteus, junto dos quais por corromper completamente a própria língua. Por exemplo,
quando se diz no liv. II dos Paralipómenosque Ocozias tinha 42
se refugiou por causa .de .Saul, d_e onde resulta que tudo o resto
anos no momento em que subiu ao trono, imaginam alguns que es-
deveria ter-se passado num intervalo de oito meses, cói:sa que
ses anos são contados a partir do reinado de Onri e não do
ninguém, presumo, admitirá: Pelo menos Josefa, no finàl do sexto
nascimento de Ocozias. Se eles me pudessem demonstrar ter
livro das Antiguidades, corrige assim o texto: Saul reinõu, por-
sido essa a intenção do autor dos livros dos Paralipómenos,eu
tanto, dezoito anos enquanto Samuel era vivo e mais dois após a sua
não hesitaria em afirmar que ele não sabia falar! E, como esta,
morte. Toda esta história do cap . xm está, por outro lado, com- há muitas outras coisas que eles inventam e que, a serem ver-
pletamente em desacordo com as que a precedem. No final do dadeiras, eu diria que os antigos Hebreus ignoravam por com-
cap. vn, conta-se que os Filisteus foram de tal modo desbara- pleto, quer a sua própria língua, quer a ordem a seguir numa
tados pelos Hebreus que, enquanto viveu Samuel, não mais ou- narração, e não reconheceria qualquer critério ou regra a obser-
saram atravessar as fronteiras de Israel; aqui, porém, diz-se que var na interpretação das Escrituras, sendo lícito a cada um ·in-
os Hebreus foram (em vida de Samuel) invadidos pelos Filis- ventar tudo à sua vontade. (135]
teus e reduzidos a tal miséria e pobreza que se viram sem ar- Mas se há alguém que julga que eu estou aqui a generalizar,
[1341 mas para se defenderem e, ainda por cima, sem meios para as e sem bases suficientes, rogo-lhe que nos indique uma qualquer
fabricarem. Teria muito que suar se tentasse conciliar todas es- ordem exacta nesses textos, uma ordem que os historiadores
tas histórias que vêm no liv. I de Samuel, de modo a parecerem pudessem seguir nas cronologias sem perigo de errarem. Peço-
escritas e ordenadas por um único historiador! -lhe, além disso, que, ao interpretar as narrativas e ao tentar
Voltando à minha questão, é, portanto, necessário acrescen- conciliá-las, observe estritamente as frases, os modos de falar, a
tar à soma atrás referida os anos do reinado de Saul. E também disposição e a ligação das proposições, explicando-as de forma
não contei os anos de anarquia dos Hebreus, pois não constam a que possamos, também, seguindo a sua explicação, imitá-las
da Escritura. Em suma, não sei quanto tempo levaram os acon- nos nossos escritos*: se alguém q conseguir, darei imediatamente
tecimentos narrados desde o cap. xvn até ao fim do livro dos a mão à palmatória e tê-lo-ei na conta de um verdadeiro Apolo.
Juízes. De tudo isto resulta claro que nem a contagem exacta De facto, confesso que, apesar de ter investigado durante longo
dos anos consta das narrativas, nem estas estão entre si de tempo, jamais consegui chegar a algo que se parecesse. Acres-
acordo relativamente a uma só, supondo, pelo contrário, várias centarei até que não escrevo aqui nada que não tenha meditado
muito diferentes. Por conseguinte, temos de confessar que tais longamente e, no entanto, embora tenha estado desde a infân-
narrativas foram coligidas a partir de diversos autores, sem que cia imbuído das opiniões comuns sobre a Escritura, foi impossí-
antes tenham sido ordenadas e examinadas. vel não chegar às presentes conclusões 3. Mas não há razão para
A discrepância não parece menor, no que se refere à conta- demorar por mais tempo o leitor com isto, nem para o desafiar
gem dos anos, entre os livros das Crónicas dos Reis de Judá e os para uma tarefa impossível. Se foi necessário desenvolver esta
das Crónicas dos Reis de Israel. Nestas, efectivamente, diz-se que questão, foi só para explicar melhor o meu pensamento. Passo,
Jorão, filho de Acab, subiu ao trono no segundo ano do reina-
do de Jorão, filho de Josafat (Reis, liv. 11, cap. 1, 17), ao passo
que nas Crónicas dos Reis de Judá diz-se que Jorão, filho de Josa- • Anotação XVIII. Aliás, eles corrigem as palavras da Escritura em lugar de
fat, começou a reinar no quinto ano do reinado de Jorão, filho as explicarem.

262 263
111 .,
' portanto, às restantes observações que julgo dever fazer acerca onde levaram a arca, não está mencionado. Da mesma forma,
do destino desses livros. não se pode negar que o vers. 37, cap. xm, do liv. 11 de Samuel
Na verdade, além do que já referimos, é de notar ainda foi alterado e truncado: e Absalãofugiu e foi ter com Ptolomeu,

.,
.!
li"' que esses livros não foram guardados pelas sucessivas gerações filho de Amiud, rei de Gesur, e chorou o seu filho todos os dias, e
i' com o cuidado que era necessário para os preservar de quais- Absalãofugiu e foi para Gesur e aí ficou três anos *. E como estas, já
quer erros. Já os antigos escribas assinalaram algumas versões mencionei anteriormente outras passagens que agora não me

.!
duvidosas, bem como várias passagens truncadas, embora nem ocorrem .
'.; todas. Não discuto agora se esses erros são -de natureza tal qtie Quanto às anotações à margem que se encontram a cada
~.1 levantem embaraços ao leitor. _ Creio, no enta .nto, que eles são passo nos códices hebreus, é impossível alguém duvidar que se
l I' de pouca monta, pelo menos _para -aqiieles que lêem as Escri~~ trata de versões suspeitas, se pensarmos que a maioria delas

t
'i
11:
ras sem preconceitos. E posso · garantir que, acerca dos _ensina-
mentos morais, não encontrei nenhum erro ou discrepância de
versões que os tornassem obscuros ou duvidosos. Porém, a
tem origem na enorme semelhança entre as letras hebraicas, par-
ticularmente entre o Kaf e o Bet, o Yod e o Vau, o Dalet e o Res,
etc. Por exemplo, quando no liv. u de Samuel, cap. v, penúltimo
l maioria dos intérpretes nem sequer nas restantes matérias ad- versículo, se escreve e naquele(tempo) em que ouvires,vem à mar-
mite algum erro. Pelo contrário, garantem que, por uma qual- gem quando ouvires; no livro dos Juízes, cap. xxr, 22, o texto é e
fJ.i, quer providência singular, Deus preservou intacta toda a Bíblia; quando os seus pais e os seus irmãos vierem para junto de nós em
'I, dizem que as variantes são um sinal de mistérios profundíssi- multidão (isto é, muitas vezes), etc., e à margem aparece: para
mos e sustentam o mesmo a respeito dos asteriscos, de que se discutir. Muitas outras provêm também do uso das letras a que
contam vinte e oito a meio de parágrafo; até nas próprias marcas chamamos «quiescentes» e que, a maioria das vezes, não se pro-
em cima das letras asseguram que estão contidos altos arcanos. nunciam, tomando-se indistintamente umas pelas outras. Por
Se o dizem por estupidez e devoção senil, ou por arrogância e exemplo, no Levítico, cap. xxv, 30, está escrito e será confirmadaa
malícia, para se julgar que só eles têm acesso aos divinos arca- casa que está numa cidadeonde não existe muralha,e à margem vem:
nos, não sei; o que sei é que nunca li nos seus livros algo que onde existe muralha, etc.
cheire 4 a mistério, mas unicamente especulações infantis. Li tam- Conquanto, só por si, tudo isto seja suficientemente claro,
(136] bém, e até conheci, alguns impostores cabalistas 5 , cuja insani- convirá responder aos argumentos de certos fariseus que ten-
dade nunca pude admirar o suficiente. tam persuadir-nos de que essas notas à margem foram acres-
Quanto a surgirem, como dissemos, alguns erros, ninguém centadas pelos próprios autores dos Livros Sagrados, ou por
que esteja em seu juízo terá dúvidas, se acaso ler aquele texto sua indicação, para significar algo de misterioso. O primeiro
sobre Saul que vem no liv. r de Samuel, cap. xrn, 1, que já citá-
desses argumentos, que a mim não me diz grande coisa, vão
mos, ou o vers. 2, cap. vr, do liv. n de Samuel: e David levantou-se
buscá-lo à forma como se liam normalmente as Escrituras: se,
e partiu de Judá, com todo o povo que estava consigo,para daí levarem
dizem eles, essas notas foram acrescentadas por causa da multi-
a arca de Deus. Também aqui, não há ninguém que não veja que
plicidade de versões, entre as quais as gerações seguintes não
o local para onde se dirigiram, ou seja, Kitjat Jeharim *, e para
puderam optar, por que motivo prevaleceu então o hábito de

• Anotação XIX. Kirjat Jeharim chama-se também Bahgal Jehuda, o que leva
Kirnchi e outros a suporem que «Bahgale Jehuda», que eu traduzi por do povo • Anotação XX. [Os que se meteram a comentar este texto corrigiram-no
de Judá, era nome de cidade; mas estão enganados, porque a palavra «Bah- assim: e Absalaofugiu e retirou-separaj1111to
de Ptolomeu,filho de Hamihud, rei de
gale» está no plural. Para mais, se compararmos este texto de Samuel com Gesur, onde permaneceutrês anos, e David chorou o seu filho todo o tempo em que
aquele dos Paralipómenos,1, veremos que David não se levantou para partir de ele esteve em Gesur. Mas se é a isso que chamam interpretar, e se é licito usar
Bahgal, mas que foi a Bahgal. Se o autor do Iiv. u de Samuel tivesse querido de uma tal liberdade na exposição da Escritura e alterar assim frases inteiras,
indicar só o local de onde David levou a arca, então, para falar à maneira acrescentando ou suprinúndo qualquer coisa, então, há que dizer que é lícito
hebraica, teria dito assim : e David levantou-see partiu, etc., de Bahgalde Judá e de corromper a Escritura e dar-lhe, como se faz a um pedaço de cera, tantas for-
lá levou a arca de Deus. mas quantas se quiser .]

264 265
1::..'(1!1 l 1371
111 adoptar sempre o sentido indicado à margem? Por que registar, são versões duvidosas, havendo também as que anotam expres-
1i]
dizem, nas anotações o sentido que pretendiam que prevale- sões caídas em desuso, isto é, palavras obsoletas e palavras que
cesse? Não deveriam, pelo contrário, ter escrito os textos como as boas maneiras da época já não consentiam que se lessem em
iil queriam que eles fossem lidos, em vez de anotar à margem o público. Na verdade, os autores antigos, porque não tinham
sentido e a versão que privilegiavam? qualquer malícia, chamavam as coisas pelos nomes próprios, sem
1 'I O segundo argumento, que aparentemente tem algum con- rodeios palacianos. Mas quando passou a reinar a malícia e a
/jl teúdo, é tirado da própria natureza das coisas, na medida em luxúria, aquilo que os antigos diziam sem obscenidade passou a [138]
:l
que os erros não apareceram nos códices por um acto delibera- ser tido por obsceno. Claro que não era razão para mudar a
do mas sim por puro acaso, podendo assjm ocorrer de muitas própria Escritura; atendendo, porém, à fragilidade da plebe,
maneiras. Todavia, nos cinco _livros, a palavra menina; exéep to introduziram o hábito de substi tuir na leitura pública os termos
numa única passagem, é sempré escrita sem a letra He, contraria- que designam o coito e os excrementos por outros mais decen-
mente à regra da gramática, ao passo que nas notas · à margem tes, isto é, por aqueles que puseram nas anotações à margem.
aparece correctamente escrita, de acordo com a regra geral. Será Em suma, qualquer que tenha sido a razão por que se . instituiu
que isto também aconteceu por lapso do escriba? Por que fatali- o costume de ler e interpretar a Escritura segundo as anotações
dade é que pôde acontecer a pena ir sempre apressada, de to- à margem, uma coisa é certa: não foi porque a verdadeira inter-
das as vezes que ocorria esta palavra? Teria sido fácil os gra- pretação tenha forçosamente de se fazer de acordo com elas.
máticos · acrescentarem depois, sem qualquer hesitação, aquela Porque, além de os próprios rabinos, no Ta/mude, se afastarem
letra e corrigir o erro de acordo com as regras. Donde, como frequentemente dos Masoretas e aprovarem outras versões, con-
estas variantes não são fruto do acaso e não foram corrigidos forme demonstrarei daqui a pouco, deparamos nas anotações
erros tão manifestos, eles concluem que é porque tais erros fo- com certas variantes que não parecem muito em conformidade
ram intencionalmente cometidos pelos primitivos escribas, a fim com o uso linguístico. Por exemplo, no liv. 11 de Samuel,.cap. xrv,
!"' de, através deles, significarem alguma coisa. 22, está escrito porque o rei agiu segundo o parecer do seu servo,
A tais argumentos responde-se com facilidade. Quanto àque- construção que é inteiramente correcta e está de acordo com a
~F les que argumentam com o costume que prevaleceu entre eles, do vers. 15 do mesmo capítulo; mas aquela qu~ está na margem
não me vou demorar. Não sei de que é que a superstição os (do teu servo) não concorda com a pessoa do verbo. Assim tam-
lff
poderá ter convencido, mas talvez procedessem assim por con- bém, no último versículo do cap. xv1 desse mesmo livro, está
siderarem ambas as versões igualmente boas ou aceitáveis e, escrito como quando se consulta (quer dizer, é consultada) a pala-
nessa medida, para que nenhuma delas se perdesse, determina- vra de Deus, e à margem acrescenta-se alguém como sujeito do
ram que uma devia ser escrita e a outra lida. Receavam porven- .. , verbo. O que não parece ter sido feito com o devido cuidado,
tura pronunciar um juízo definitivo sobre assunto tão impor- ·-· \: porquanto é usu al nesta língua empregarem-se os verbos impes-
tante, ainda assim não tomando, na incerteza, a versão falsa soais na terceira pessoa do singu lar da voz activa, corno muito
Í•
pela verdadeira, e daí o não quererem dar preferência a nenhu- bem sabem os gramáticos. E encontram-se muitas outras notas
ma delas, coisa que teriam feito se decidissem que se escrevesse assim, que não podem de maneira nenhuma ser preferidas à
e lesse uma só delas, tanto mais que nos Livros Sagrados não versão escrita.
se escreviam notas à margem. Ou talvez isto acontecesse porque No que concerne ao segundo argumento dos fariseus, a res-
pretendiam que certas palavras, apesar de correctamente escri- posta é igualmente fácil por aquilo que acabámos de dizer, isto
tas, fossem todavia lidas de outra maneira, isto é, como esta- é, que os escribas, além das versões duvidosas, anotaram tam-
vam anotadas à margem. E assim instituíram a regra universal bém as palavras obsoletas. É evidente que na língua hebraica,
de que a Bíblia seria lida segundo as anotações marginais. tal como nas outras, muitos termos foram com o tempo caindo
Quanto ao motivo que terá levado os escribas a anotarem à em desuso, tornando-se antiquados e obsoletos, e assim os con-
margem certas palavras como elas deviam expressamente ser li- sideraram os últimos escribas dos livros da Bíblia, os quais, como
das, vou agora dizê-lo. Porque nem todas as notas marginais dissemos, os anotaram todos, para que fossem lidos perante o

266 267
~

povo de acordo com a linguagem da altura . É este o motivo sem problemas , e até acredito, que sim , que nunca houve mais
por que a palavra nahgar aparece sempre anotada, pois antiga- do que duas versões da mesma passagem. E isto por duas ra-
mente ela era comum aos dois géneros e tinha o mesmo signifi- zões, a saber:
cado que o latim juvenis. De igual modo, a capital dos Hebreus 1-A causa que demonstrámos estar na origem da diver-
chamava-se antigamente Jerusaléme não Jerusalaim.Penso que se gência destas variantes não permite que elas sejam mais do que
verifica o mesmo com o pronome que significa ele próprio e ela duas. Mostrámos, com efeito, que o que está na sua origem é
própria,no qual os autores mais. recen tes substituíram o Vau ppr principalmente a semelhança entre certas letras . Por isso, a dú-
[1391 um Yod (alteração frequente em hebraico)" sempre que queriam vida residia quase sempre em saber qual das duas letras devia
significar o género feminino~ ao passo que os -:antigos não costu- escrever-se, se um Bet ou um Kaf, um Yod ou um Vau, um Dalet
mavam distinguir o feminino _do ·masculino desse pronom_~.:se- ou um Res, etc., letras estas que são de uso bastante frequente,
não por vogais. Por outro lado, as formàs · irregulares -de certos podendo acontecer muitas vezes que tanto uma como outra des- [140J
verbos eram umas para os antigos, · outras para os mais recentes sem lugar a um significado aceitável. Depois, a dúvida estava
e, finalmente, os antigos empregavam as letras paragógicas He, também em saber se a sílaba era longa ou breve, uma vez que a
Aleph, Mem, Nun, Tao, Vau, Yod com a elegância específica do seu sua duração se determina por meio daquelas letras a que cha-
tempo. Tudo isto eu poderia ilustrar aqui com muitos exemplos, mámos quiescentes. E acresce ainda o facto de nem todas as
mas não quero enredar o leitor numa leitura fastidiosa. Se al- anotações serem variantes duvidosas: muitas delas, já o disse-
guém quiser saber onde é que eu fui descobrir isto, a minha mos, foram acrescentadas por uma questão de decoro ou para
resposta é que o observei inúmeras vezes nos escritores mais explicar palavras obsoletas e antiquadas.
antigos, ou seja, nos livros da Bíblia, e que os escritores que 2 - A razão pela qual estou persuadido de que não se en-
vieram depois não os quiseram imitar, única razão por que nas contram mais do que duas versões da mesma passagem é o jul-
outras línguas, mesmo as já mortas, deparamos com palavras gar que os escribas encontraram um número muito reduzido de
caídas em desuso. exemp lares, possivelmente não mais que dois ou três. No Trata-
Todavia, insistirá talvez alguém, se eu admito que a maior do dos Escribas (cap. VI), faz-se menção de apenas três, que eles
parte das notas à margem são variantes duvidosas, por que razão supõem terem sido achados no tempo de Esdras porque se quer
1 nunca haverá, para cada passagem, mais do que duas versões? fazer crer que são de Esdras as anotações aí introduzidas. Seja
.•i Por que não, de vez em quando, três ou até mais? Objectar-se- como for, se eles tinham três exemplares, não é difícil conceber
-á, por outro lado, que há coisas no texto que manifestamente que houvesse sempre dois que coincidissem sobre a mesma passa-
repugnam à gramática e que, na anotação, aparecem de maneira gem. Seria realmente para admirar se, em apenas três exempla-
correcta, sendo, portanto, impossível acreditar que os escribas res, se encontrassem três versões da mesma passagem . Mas por
pudessem hesitar e duvidar de qual das duas versões fosse a que fatalidade aconteceu então que depois de Esdras tenha ha-
verdadeira. Mas também a isto é fácil responder. Começando vido uma tal penúria de exemplares? Basta ler o cap. 1 do liv. 1
pela primeira objecção, direi que existiram mais variantes do dos Macabeusou o cap. VII do liv. xn das Antiguidades de Josefa
que aquelas que vêm nos códices de que dispomos. No Talmu- para que deixemos de nos admirar. Parece até um prodígio, após
de, com efeito, encontramos muitas que os Masoretas despreza- tanta e tão longa perseguição, ainda terem podido sobreviver
ram, sendo os dois textos de tal maneira divergentes em inú- esses poucos exemplares. Suponho que ninguém que tenha lido
meras passagens que até mesmo aquele supersticioso editor da com um mínimo de atenção essa história terá dúvidas. Eis as
Bíblia de Bomberg foi obrigado a confessar, no seu prefácio, razões por que não ocorrem nunca mais que duas versões dife-
que não sabia como conciliá-los: quanto a isto - diz ele - não rentes. Estamos, pois, muito longe de poder concluir, pelo facto
sabemoscomorespondera não ser repetindoo que já atrás dissemos,ou de não haver mais do que duas versões de qualquer das
seja, que é costume o Talmudeestar em contradiçãocom os Masoretas. passagens, que a · Bíblia foi propositadamente escrita de forma
Não há, portanto, bases suficientes para se afirmar que nunca incorrecta nas passagens anotadas, de modo a significar algum
houve mais que duas versões da mesma passagem. Mas admito mistério.

268 269
...
Quanto ao segundo argumento, que diz que certas passa-
gens estão tão mal escritas que é impossível duvidar que elas
repugnariam à maneira de escrever de qualquer época e que
deveriam absolutamente ser corrigidas em vez de anotadas, isso
a mim pouco me afecta, visto não ser obrigado a saber que
escrúpulo religioso os levou a não o fazerem. Talvez tenha sido
por uma questão de sinceridade, por quererem transmitir . a Bí-
blia aos vindouros tal como ·a tinham ·encontrado nesse pequeno
CAPITULO X [141]
número de originais, anotando as divergências existentes entre
estes, não como versões duvidosas, _mas como simpie~ varian- ONDE SE EXAMINAM OS RESTANTES LIVROS
tes. Eu próprio só lhes chamei duvidosas porque r~alme!lte se DO ANTIGO TESTAMENTO,
me afiguram quase sempre de tal modo qu·e não sei se se deva TAL COMO SE EXAMINARAM OS ANTERIORES
optar por uma ou por outra.
Finalmente, além destas versões duvidosas, os escribas ano-
[141] taram ainda (deixando um espaço em branco no meio do pará-
grafo) várias passagens truncadas cujo número é assinalado pelos Passo aos outros livros do Antigo Testamento. Sobre os dois
Masoretas, que contam vinte e oito passagens em que, a meio livros dos Paralipómenos,não tenho nada a observar que seja
do parágrafo, está um espaço em branco. Ignoro se este nú- certo e que valha a pena, a não ser que eles foram escritos muito
mero, em sua opinião, encerra também algum mistério. Os fari- tempo depois de Esdras e talvez até depois da reconstrução *
seus, contudo, observam religiosamente a quantidade exacta do do templo por Judas Macabeu. No cap. 1x do liv. 1, efectiva-
espaço. Exemplo disto (para aduzir um) é o que vem no Génesis, mente, o historiador conta quais as famílias que primeiro (isto é,
cap. 1v, 8: E Caim disse a seu irmão Abel ... e aconteceu enquanto no tempo de Esdras) habitaram Jerusalém; depois, no vers. 17,
estavam no campoque Caim, etc. Deixa-se aqui um espaço em bran-
co no local onde esperávamos saber o que Caim tinha dito a
seu irmão. E como este (além dos que já assinalámos) os escri- • Anotação XXI. É aqui que tem origem a suspeita, se é que podemos cha-
bas encontram vinte e oito, muitos dos quais, no entanto, não mar suspeita a uma coisa certa, relativamente à dedução da genealogia do rei
pareceriam truncados se não fosse o espaço em branco neles Jeconias apresentada nos Paralip6menos,liv. 1, cap. m, que se prolonga até aos
intercalado. Mas, sobre isto, já disse o bastante. filhos de Eliohenai, descendentes daquele na décima terceira geração [em li-
nha recta] . Deve notar-se que este Jeconias não tinh a filhos quando foi feito
prisioneiro mas parece que fez [dois] no cárcere, tan to quanto é lícito conjec-
~,. turar pelos nomes que lhes deu. Relativamente aos netos, e conjecturando ainda
pelos seus nomes, parece terem nascido depois que o soltaram. Assim, Pedaia
(que quer dizer «Deus libertou »), de quem se diz neste capítulo ser [pai de
Zorobabel, nasceu] no ano 37 ou 38 do cativeiro de Jeconias, isto é, trinta e
três anos antes de o rei Ciro ter agraciado os Judeus; consequentemente, Zoro-
babel, que Ciro pusera à frente dos Judeus, teria nessa altura, ao que parece,
13 ou 14 anos, no máximo. Achei, no entanto, preferível não falar nisso por
razões que as dificuldades do tempo presente [em que reinam as injúrias e a
superstição] não permitem explicar. Mas, para os leitores avisados, basta men-
cionar o assunto. Quem quiser percorrer com um mínimo de atenção toda
esta descendência de Jeconias apresentada no cap. w do liv. 1 dos Paralip6me-
nos, desde o vers. 17 até final do capítulo, e comparar o texto hebraico com a
versão dita dos Setenta, verá facilmente que esses livros foram divulgados após
a segunda restauração da Cidade por Judas Macabeu, altura em que os des-
cendentes de Jeconias perderam o trono, e não antes.

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- : 111

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1_1t
~.
indica os porteiros,dois dos quais são também referidos em Nehe-
mias, cap. XI, 19. O que mostra que estes livros foram escritos
feito s desse rei (ver Pnralip., liv. 11, cap. XXVI, 22), livro que já
não possuímos. Tudo quanto resta foi, como já mostrámos, tran s-
ili1 muito depois da reedificação da Cidade . Quanto ao resto, não crito das Crónicasdos Reis de Judá e de Israel. Acresce que os rabi-
me consta nada sobre o verdadeiro autor de cada um deles, nos garantem que o profeta profetizou também no reinado de
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nem sobre a respectiva autoridade, interesse e doutrina. Muito Manassés, por quem viria a ser morto, e embora pareça que
ril.
lj,_i/
me admira até que tenham sido admitidos entre os livros sa- estão a contar uma fábula, dá no entanto a impressão de que
grados por aqueles mesmos q?e haviam excluído do c_ânon _o eles crêem que nem todas as suas profecias se conservaram.
livro da Sabedoria;o de Tobias e outrós êónsiderados apócrifos. Depois, as profecias de Jeremias, que se apresentam sob a
forma de relato histórico, são igualmente tiradas e coligidas a
:11, [,

1,,1 Mas a minha intenção não é -impugnar a sua autoridade: uma


vez que todos os aceitam, vou também ~eixá-los tal como _~stão. partir de várias crónicas. Com efeito, além de se amontoarem
lt
:j'
Os Salmos foram igualmente ·reunidos e repartidos por cinco
livros, na época do segundo templo. De facto, -e de acordo côm
confusamente e sem qualquer consideração pelas datas, repetem
a mesma história de diversas maneiras. Assim, por exemplo, no
o testemunho de Fílon, o Judeu, o salmo LXXXVIII foi publicado cap. xxr, expõe-se o motivo da prisão de Jeremias, ou seja, o ter
quando o rei Joaquim ainda estava preso na Babilónia e o sal- profetizado a destruição da Cidade a Sedecias, que o consulta-
(1421 mo LXXXIX quando ele já estava em liberdade: não creio que Fí- ra; interrompida esta história, passa-se, no cap. xxn, a narrar o
!on alguma vez dissesse isto se não fosse uma opinião corrente seu discurso perante Joaquim, que reinou antes de Sedecias, e a
no seu tempo ou se não o tivesse ouvido a outras pessoas dig- sua predição do cativeiro do rei; mais adiante, no cap. XXV apa- (1431
nas de fé. Creio também que os Provérbios de Salomão foram rece a descrição de coisas que foram reveladas ao profeta antes
coligidos na mesma altura ou, pelo menos, no tempo do rei Jo- · disto, quer dizer, no quarto ano do reinado de Joaquim. A se-
sias 1, e isto porque no cap. xxrv, último versículo, se afirma: guir, narram-se as que foram reveladas no primeiro ano deste
Estes são os Provérbiosde Salomão que os homens de Ezequias, rei de mesmo reinado, e assim por diante, numa acumulação de profe-
Judá, transmitiram. Neste caso, porém, não posso deixar em claro cias sem o mínimo sentido das datas, até que, finalmente, no
tr,,,i1·1 a audácia dos rabinos, que queriam excluir este livro, tal como ; cap. xxxvm, volta àquilo que começara a contar no cap. xx1,como
•·Í; 1 o Eclesiastes, do cânon dos Livros Sagrados e guardá-lo junto se estes quinze capítulos fossem apenas um simples parêntesis.
com os outros de que já perdemos o rasto. E de certeza que o Com efeito, a conjunção por que começa o cap. xxxvrn refere-se
teriam mesmo excluído se não deparassem com certas passa- aos vers. 8, 9 e 10 do cap. xx1, além de que se descreve aí a
,,J gens aonde a lei de Moisés é recomendada. Infelizmente, as última prisão de Jeremias de forma muito diferente e se apre-
1' coisas sagradas e as mais excelentes estiveram sujeitas ao crité- senta um motivo para a sua prolongada detenção no átrio do
1
rio deles. Claro que lhes estou grato por terem querido trans- cárcere que é muito distinto do que vem no cap. XXXVII. Donde

flil mitir-nos também esses livros, mas é impossível não me inter-


rogar se o terão feito de boa fé, coisa que, aliás, não pretendo
submeter aqui a um exame rigoroso.
se vê claramente que tudo isto foi recolhido de diversos histo-
riadores. Nem há, de resto, outra razão que o possa explicar.
No que toca, porém, às restantes profecias, que vêm nos outros
1 Passo, portanto, aos livros dos profetas. Examinando-os com capítulos e onde Jeremias fala na primeira pessoa, essas parecem
1 atenção, noto que as profecias que aí se encontram foram coligi- transcritas do volume que o próprio profeta ditou e Baruch escre-
das de outros livros e que nem sempre vêm transcritas segundo veu . De facto, como consta do cap. XXXVI,2, este continha apenas
a ordem pela qual foram pronunciadas ou escritas pelos próprios o que foi revelado a Jeremias desde o tempo de Josias até ao
profetas, além de que não estão lá todas, mas unicamente as quarto ano do reinado de Joaquim, altura em que também co-
que foi possível encontrar aqui ou ali. Tais livros constituem, meça este livro. Do mesmo volume parece ter sido igualmente
portanto, apenas fragmentos das obras dos profetas. Isaías co- transcrito o que vem do cap. XLV, 2, até ao cap. u, 59.
meçou a profetizar no reinado de Osias, conforme diz o narra- Quanto ao livro de Ezequiel, os seus primeiros versículos
dor, logo no primeiro versículo. Porém, não se limitou, durante indicam com toda a clareza tratar-se também de um fragmento
esse tempo, a profetizar, pois além disso descreveu todos os apenas. Quem é que não vê que a conjunção pela qual o livro
10

272 273
f.

começa se refere a coisas já ditas, que ela articula com o que a casado com a sua filha Dina . Mas lbn Ezra, corno já referi mais
seguir se vai dizer? Mas não é só a conjunção, é todo o con- atrás, afirma nos seus comentários a este livro que ele foi tra-
texto da oração que faz pressupor a existência de outros escritos: duzido de urna outra língua para o hebraico, coisa que eu gos-
o trigésimo ano, pelo qual o livro começa, mostra que o profeta taria que tivesse demonstrado com mais clareza, porque então
continua a narrar e não que ele principia, conforme o narrador poderíamos concluir que os gentios também tiveram livros sa-
adverte no parêntesis do vers. 3, onde escreve que a palavra de grados. Assim, deixo a questão em aberto. Imagino, contudo,
Deus fora muitas vezes dirigida a Ezequiel,filho de Buzi, _sacerdotena que Job tenha sido um gentio dotado de grande perseverança
terra dos Caldéus, etc., como se dis·sesse· que as palavras d·e Eze- que experimentou, primeiro, a prosperidade, depois, a adversi-
quiel até aí transcritas -se referí~-a outras revelações an terio- dade, e foi, por fim, extremamente feliz 3 . Ezequiel, no cap. xrv,
res a esse trigésimo ano. Por outro lado, Josefa, no liv. x das 14, menciona-o entre outros. Creio, aliás, que tanto as revira-
Antiguidades, cap. IX, conta que Ezequiel predissera quê Sedecias voltas da fortuna corno a grande perseverança de Job serviram
não veria Babilónia, coisa que não se lê ·no livro quepossuímos a muitos de pretexto para discussões sobre a providência divina,
do profeta, onde se afirma, pelo contrário, no cap. XVII, que ele ou, pelo menos, para o autor deste livro compor um diálogo
seria conduzido como prisioneiro a Babilónia*. cujos conteúdo e estilo não parecem de um homem a definhar
No que respeita a Oseias, não podemos dizer ao certo se miseravelmente entre cinzas, mas de alguém a meditar ociosa-
-·····'· "'
escreveu algo além daquilo que vem no livro que lhe é atri- mente na sua biblioteca. Neste aspecto, concordo com lbn Ezra
buído. Admira-me, no entanto, não termos mais nada de al- que este livro foi traduzido de urna outra língua, até porque
[144] guém que, segundo o testemunho do escritor, profetizou du- faz lembrar a poesia dos gentios: o Pai dos deuses convoca por
rante mais de oitenta e quatro anos. Sabe-se, pelo menos de duas vezes o concílio, e Morno 4, que aqui se chama Satanás,
uma maneira geral, que os que redigiram estes livros não coligi- critica as palavras de Deus com a maior das liberdades, etc.
ram as profecias de todos os profetas, nem coligiram, daqueles Mas isto são meras conjecturas sem confirmação.
que conhecemos, todas as profecias. Com efeito, não possuímos Passo ao livro de Daniel. Este, sem dúvida alguma, contém
absolutamente nada dos profetas que profetizaram no reinado os textos escritos pelo próprio Daniel, a partir da capítulo vm.
de Manassés e que são mencionados em termos gerais no liv. n Ignoro, no entanto, de onde terão sido transcritos os sete pri-
dos Paralipómenos,cap. XXXIII, 10, 18 e 19; nem sequer dispomos meiros capítulos. Pode-se supor, dado que, à excepção do pri- [145
de todas as profecias dos doze profetas 2. De Jonas, por exem- meiro, estão escritos em caldaico, que a sua fonte tenham sido
plo, só as profecias acerca dos Ninivitas são reproduzidas, em- as Crónicas dos Caldeus. Se isto estivesse perfeitamente confir-
bora ele tivesse profetizado também acerca dos Israelitas, como mado, seria uma excelente prova de que a Escritura é sagrada
se pode ver no liv. II dos Reis, cap. XIV, 25. só na medida em que através dela compreendemos as coisas
Sobre o livro de Job e sobre o próprio Job, muita controvér- que nela vêm expressas, e não por compreendermos as pala-
sia houve entre os escritores! Há os que pensam que foi o pró- vras, ou seja, a língua e as frases em que elas estão expressas 5•
prio Moisés quem o escreveu e que toda a história não é senão Ficaria, além disso, provado que todos os livros que ensinam e
urna parábola. É o que ensinam alguns dos rabinos no Talmude, contam coisas excelentes são sagrados, não importando a língua
secundados por Maimónides no seu livro More Nebuchim; outros e a nação em que foram escritos. Podemos, pelo menos, registar
julgaram que se tratava de uma história verdadeira, chegando que estes capítulos foram escritos em caldaico e, no entanto,
alguns deles a pensar que Job tinha vivido no tempo de Jacob e são tão sagrados corno os outros livros da Bíblia.
A este livro de Daniel está de tal forma ligado o liv. 1 de
Esdras, que se vê facilmente que é o mesmo escritor que conti-
nua aqui a narrar a história dos Judeus a partir do primeiro
• Anotação XXII. E por isso ninguém poderia suspeitar que a sua p-rofecia
estivesse em contradição com a de Jeremias, ao passo que, segundo a narra-
cativeiro. E ao livro de Esdras liga-se, sem margem para dúvi-
ção de Josefo, toda a gente suspeitou até ao dia em que, ocorridos os factos, das, o livro de Ester, pois a conjunção pela qual principia não se
viu que ambos tinham profetizado a verdade. pode referir a mais nenhum outro. Nem é de crer que este livro

274 275
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seja o mesmo que Mardoqueu escreveu. De facto, no cap . 1x, 20, Que estes livros não foram escritos nem por Esdras nem
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1'1:1!1
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21 e 22, é uma outra pessoa que conta que o mesmo Mardo- p or Nehemias, vê-se pelo facto de Nehemias, cap. xn, 10, 11, apre-
1 queu tinha escrito cartas, que revela o conteúdo destas e que, s entar a descendência do sumo sacerdote Jesuá até Jadoá, sexto
no vers. 31 do mesmo capítulo, diz que a rainha Ester determi- pontífice, que compareceu diante de Alexandre Magno quando
nara por decreto o modo de celebrar a festa das Sortes (Purim), o Império Persa já estava quase submetido (ver Josefo, Antigui-
decreto esse que foi escrito no livro, isto é (conforme o signifi- dades, liv . xr, cap. vrn), ou, como diz Fílon, o Judeu, no Livro dos
cado da palavra em hebraico), ~um livro que todos conheciam Tempos, o sexto e último sumo pontífice sob o domínio persa.
na altura em qtie isto foi escrito. E este livro, como reconhece No mesmo capítulo de Nehemias,vers. 22, isto vem também com
Ibn Ezra e como qualquer pessoa é o~rigada a·reconhecer, desa- toda a clareza: Os Levitas- diz o historiador - do tempo de Elia-
pareceu, tal como outros. Finalmente, o _historiador, parà .{ria:ís sib, de Jojada,de Jojaname de Jadoá,sobre• o reinadode Darioo Persa
informações acerca de Mardoqueu; remete para a Cróri.icqtj.osRe_is fo ram inscritos; inscritos, obviamente, nas Crónicas. E creio que
da Pérsia. Não resta, portanto, qualquer dúvida de que este li- ninguém vai acreditar que &dras * ou Nehemias tiveram uma tal
vro é do mesmo historiador que escreveu a história de Daniel e longevidade que sobreviveram a catorze reis da Pérsia. Porque
'~ a de Esdras, o mesmo se podendo afirmar do livro de Nehe- entre Ciro, que foi quem primeiro deu autorização aos Judeus
:1 mias *, pois se chama o rr de Esdras. para reconstruírem o Templo, e Dario, décimo quarto e último
Todos estes quatro livros - Daniel, Esdras,Ester e Nehemias- :rei dos Persas, vão, com efeito, mais de duzentos e trinta anos.
li foram segurame n te escritos pelo mesmo historiador. Quem foi Daí que não tenha dúvidas de que estes livros foram escritos
ele, não faço a menor ideia. Todavia, para sabermos onde é que muito depois de Judas Macabeu ter restabelecido o culto do
esse autor, fosse ele quem fosse, teve conhecimento de tais his- Templo, e isto porque, nessa altura, certas pessoas mal intencio-
tórias e de onde talvez tenha transcrito a maior parte, é preciso nadas que pertenciam, com certeza, à seita dos saduceus, divul-
notar que os prefeitos ou príncipes dos Judeus na época do se- gavam falsos livros de Daniel, Esdras e Ester. Os fariseus, que
,'t gundo templo, tal como os reis na época do primeiro, tiveram eu saiba, nunca aceitaram tais livros 6 . E embora se encon trem
,',., escribas ou historiadores que iam escrevendo os anais, isto é, as no livro considerado o rv de Esdras certas fábulas que se lêem
suas crónicas. Estas crónicas ou anais são, a cada passo, citadas igualmente no Talmude, elas não são, contudo, de atribuir aos
nos livros dos Reis; quanto às dos chefes e sacerdotes do segundo
[1461 templo elas vêm citadas, primeiro, no livro de Nehemias, cap. XII,
23, depois no liv. 1 dos Macabeus, cap. xvr, 24. E é certamente
este o livro (ver Ester, cap. rx, 31) de que falávamos há pouco, • A menos que a palavra signifique além de, houve aqui erro do copista,
onde se encontrava o édito de Ester e aqueles escritos de Mar- que escreveu sobre em vez de até.
• Anotação XXIV. Esdras era tio do primeiro sumo pontífice, Josué (Esdras,
doqueu, livro que, conforme dissemos, corroborando Ibn Ezra, rap. vu, 1, e Paralip.,1, cap. v1, 14, 15), e partiu da Babilónia para Jerusalém com
se perdeu. Foi, portanto, daí que se extraiu ou transcreveu, ao Zorobabel (Nehemias, cap . x11,1). Mas, quando viu as coisas dos Judeus compli-
que parece, tudo quanto vem nos livros referidos, visto nenhum cadas, parece que voltou de novo a Babilónia, tal como outros fizeram, de
outro ser citado pelo seu autor nem conhecermos mais nenhum acordo com Nehemias, cap. 1, 2, permanecendo aí até ao reinado de Artaxerxes,
que goze de autoridade publicamente reconhecida. altura em que, obtido o que queria, voltou a Jerusalém. Também Nehemias
partiu para Jerusalém com Zorobabel no tempo de Ciro (ver Esdras,cap. 11,2
e 63, e Nehemias, cap. x, 9, e cap. XII, 1). De facto, os intérpretes não justificam
com nenhum exemplo a tradução da palavra Hathirschatapor legado,sabendo-
-se, em contrapartida, que aos judeus que iam frequentar a corte eram impos-
• Anotação XXIII. O próprio historiador confirma, no cap. 1, 1, que a maior tos novos nomes. Assim, a Daniel chamava-se Baltasar, a Zorobabel chamava-
parte deste livro é transcrita daquele que o próprio Nehemias escreveu. Mas -se Sesbatsar (ver Daniel, cap. 1, 7; Esdras, cap. 1, 8, e cap. v, 14) e a Nehemias
o que se conta desde o cap. vrn até ao cap. xu, 26, bem como os dois últimos Hathirshata . Devido, porém, ao seu oficio, era costume saudarem-no por pro-
versículos deste capítulo, que são inseridos entre parêntesis no meio das pala- cu rador ou governador (ver Nelzemias,cap. v, 14, e cap. XII, 26). [É, pois, seguro
vras de Nehemias, foi indiscutivelmente acrescentado pelo historiador, o qual que Hathirshata é um nome próprio, como Hatselefon, Hatsobeba (Paralip.,1,
viveu depois de Nehemias. ca p. 1v, 3, 8), Halloghes (Nelzemias,cap . x, 25) etc.]

276 277
- •
fariseus, pois, à parte os mais estúpidos, não há entre eles nin-
guém que não esteja convicto de que essas fábulas foram acres-
Logo, não restam dúvidas de que, tanto no livro de Esdras como
no de Nehemias, só nas parcelas é que surgem vários erros.
centadas por um qualquer impostor. Creio mesmo que alguns o Os comentadores, porém, esforçam-se por conciliar estas
fizeram para ridicularizar as tradições aos olhos de todos. Ou contradições evidentes e cada um inventa o que pode, consoante
talvez os livros em questão tenham sido transcritos e divulga- a capacidade e o engenho. E assim, enquanto adoram as letras
dos nessa época para mostrar ao povo que as profecias de Da- e as palavras da Escritura, mais não fazem, como já dissemos,
niel se tinham cumprido, de modo a confirmá-lo na religião e a que expor os autores da Bíblia ao ridículo, parecendo até que [148)
[1471 fazer com que, no meio- de tantás calamidades, não deixasse de eles não sabiam falar nem expor com nexo aquilo que tinham
ter esperança em melhores dia~ _e na :salvação futura. Mas, ape- para dizer. Pior ainda, tudo quanto fazem é obscurecer por com-
sar de estes livros serem tão .recentes'" e novôs, ainda aí .s:1-par:e- pleto a transparência da Escritura: porque se alguma vez fosse
cem muitos erros, os quais se devem, se · não me engan~, à· ex- lícito interpretar as Escrituras à maneira deles, não haveria cer-
cessiva pressa dos copistas. Com efeito, e tal como nos -outros, tamente uma única frase de cujo verdadeiro sentido não pudésse-
'l encontram-se também nesses livros diversas anotações à mar- mos duvidar. Mas não há razão para continuar por mais tempo
gem, das que falávamos no capítulo anterior, além de certas com este assunto. Estou convencido de que, se algum historia-
passagens que só se podem explicar por essa razão, conforme dor quisesse imitar tudo quanto eles atribuem devotamente aos
vou mostrar. Antes, porém, quero prevenir, ainda a propósito autores da Bíblia, eles próprios o cobririam de ridículo. E dado
das versões marginais destes livros, que se aceitássemos, com que consideram ser um blasfemo quem disser que a Escritura
os fariseus, que elas são tão antigas como os próprios autores está por vezes errada, pergunto então que nome lhes hei-de
dos livros, então teríamos necessariamente de confessar que tais chamar a eles, que à Escritura atribuem tudo quanto lhes ape- ·
autores, se é que houve vários, fizeram as anotações porque tece. A eles, que prostituem os historiadores sagrados ao ponto
acharam que as crónicas de onde transcreviam não tinham sido de estes parecerem gaguejar e confundir tudo. A eles, em suma,
'4
;" ,. escritas com o devido rigor e que, apesar de certos erros serem que negam os significados mais claros e evidentes da Escritura.
,1
evidentes, não se atreveram a corrigir os escritos dos antigos e Haverá, efectivamente, alguma coisa mais clara na Escritura que
; dos antepassados. É, de resto, escusado voltar a tratar aqui dessa o facto de Esdras, com os seus companheiros, na «Epístola da
questão mais em pormenor. Passo, portanto, a indicar os erros Genealogia» reproduzida no cap. II do livro que lhe é atribuído,
que não estão anotados à margem. calcularem por grupos o número de todos os que partiram para
No cap. n de Esdras, nem sei dizer quantos terão escapado. Jerusalém, visto que apresenta, não apenas o número dos que
Com efeito, no vers. 64, vem a soma total de todas as pessoas puderam indicar a respectiva genealogia, mas também o daqueles
que ao longo do capítulo se contaram em separado e diz-se que que não o conseguiram? Há alguma dúvida, perante o vers. 5
eram 42 360; ora, se somarmos todas as parcelas, o resultado do cap. VII de Nehemias, de que este se limitou a transcrever
são apenas 29 818; há, portanto, aqui um erro, no total ou nas aquela Epístola? Se assim é, aqueles que explicam essas passa-
• 1
parcelas. O total, no entanto, é de crer que esteja exacto, pois gens de outra maneira estão apenas a negar o verdadeiro signi-
toda a gente o sabia com certeza de cor e o tinha por algo de ficado da Escritura e, por conseguinte, a própria Escritura. Jul-
memorável, o mesmo não se passando com as parcelas. Donde, gam eles que é obra piedosa adaptar as passagens da Escritura
se o erro estivesse no total, qualquer um se teria logo dado umas às outras: ridícula piedade esta, que adapta passagens cla-
conta e facilmente seria corrigido. É o que se confirma pelo facto ras a passagens obscuras, passagens correctas a passagens erra-
de, em Nehemias, cap. VII, onde vem transcrito este capítulo de das, corrompendo assim o que está são com aquilo que está
Esdras a que se chama «Epístola da Genealogia», como se diz podre! Longe de mim, todavia, chamar-lhes blasfemos, uma vez
expressamente no vers. 5, a soma total concordar inteiramente que não o fazem por má intenção e errar é próprio do homem.
com a do livro de Esdras, ao passo que nas parcelas existem Mas voltando ao que ia dizendo, além dos erros que temos
muitas discrepâncias: umas são superiores, outras inferiores às de reconhecer nas contagens da «Epístola da Genealogia», seja
que encontramos em Esdras, e todas juntas perfazem 31 089. em Esdras seja em Nehemias, há ainda outros que se verificam

278 279
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nos próprios nomes das famílias, nas genealogias, nos relatos
históricos e receio que até nas próprias profecias. De facto, a
porém, foi o contrário, isto é, que examinando assim as Escrituras
não se conciliam nem corrompem as passagens claras e autênticas
profecia de Jeremias,cap. XXII, sobre Jeconias não parece de modo com as erradas. E o facto de certas passagens estarem corrom-
algum estar de acordo com a história deste (ver o final do liv. u pidas não é razão para que seja lícito suspeitar de todas elas.
1
1t dos Reis, o livro de Jeremiase os Paralip., liv. ,, cap. rn, 17, 18 e Nunca existiu um livro que não trouxesse erros. Alguma vez
l,
19), nomeadamente as palavras do último versículo daquele ca- alguém suspeitou, lá por isso, que eles estejam errados da pri-
pítulo. Também não vejo por que razão o profeta pôde dizer a meira à última linha? É evidente que não, sobretudo quando a
I! Sedecias, a quem vazaram os olhos logo após ·ter visto matar os . frase é explícita e o pensamento do autor se percebe claramente.
!I [149] seus filhos, tu morrerásem paz, etc. (Jere]!lias,cap_; XXXIV, 5). Se as Terminei assim as observações que pretendia fazer acerca
profecias se devessem interpretar com base nos factos, estes . da história dos livros do Antigo Testamento. A partir daqui, é [t50J
nomes teriam de ser trocados: onde está o de Jecomias d~veha fácil concluir que antes do tempo dos Macabeus não existia qual-
estar o de Sedecias e vice-versa. Mas isto seria excessivàrhente -· quer cânon dos Livros Sagrados * e que aqueles de que actual-
paradoxal, pelo que prefiro deixar a questão como incompreen- mente dispomos foram escolhidos de entre muitos outros pelos
sível, sobretudo porque, se há aqui erro, ele se deve ao histo- fariseus do segundo templo, que instituíram também as fórmu-
riador e não a um defeito dos manuscritos. las para as orações, e só por sua determinação foram adopta-
Quanto aos outros erros de que falei, não creio ser de os dos. Quem, por conseguinte, quiser demonstrar a autoridade
assinalar aqui, porquanto seria extremamente aborrecido para o da Sagrada Escritura terá que demonstrar a autoridade de cada
leitor, sobretudo porque já outros o fizeram. Foi, com efeito, um dos seus livros. E não basta provar que um deles é divino
por causa das contradições óbvias que observou nos relatos ge- para concluir o mesmo de todos os outros, pois, se assim fosse,
nealógicos que R. Salomão 7 foi obrigado a irromper nestes ter- ter-se-ia de admitir ser impossível a assembleia dos fariseus er-
mos (veja-se o seu comentário ao liv. r, cap. VIII, dos Paralipóme- rar nesta escolha dos livros, coisa que ninguém alguma vez de-
. ,;J l ;j nos): Se Esdras (que ele julga ter escrito os Paralipómenos)chama monstrará. A razão que me leva a afirmar que só os fariseus
:e-·( osfilhos de Benjamimpor outros nomes e lhes atribui uma descendência escolheram os livros do Antigo Testamento e os puseram no
diferenteda que vem no Génesis,se indica, enfim, a maioriadas cidades cânon dos livros sagrados é o facto de, no livro de Daniel, últi-
dos Levitas diferentementede Josué, é porque encontrou originais que
divergiam. E um pouco mais à frente: se a descendênciade Gabaãoe
outros é transcritapor duas vezes e de forma diversa, é porque Esdras
" Anotação XXV. A chamada Grande Sinagoga só teve início depois da con-
deparoucom várias Epístolasda Genealogiadiferentesumas das outras,
quista da Ásia pelos Macedónios. A tese de Maimónides, R. Abraão Ben David
seguindo na transcriçãoa versãoapresentadapela maioriados exempla- e outros, segundo a qual os presidentes desse conselho teriam sido Esdras,
res; quando,porém,o número dos que apresentavamuma genealogiaera Daniel, Nehernias, Ageu, Zacarias, etc ., é uma invenção ridícula e sem qual-
igual ao dos que apresentavama outra, ele transcreveas duas. Salomão quer fundamento a não ser na tradição rabírúca, que pretende que o Império
concorda, pois, que esses livros foram transcritos de originais Persa não durou mais de trinta e quatro anos. Nem havia outra forma de pro-
var que os decretos [rejeitados pelos saduceus] desta grande Sinagoga ou Sí-
que não eram nem suficientemente correctos nem suficientemente
nodo, composta apenas por fariseus, tinham sido recebidos directamente da
garantidos. Além disso, os próprios comentadores, na tentativa boca dos profetas, os quais os teriam por sua vez recebido de outros profetas,
de conciliar diversas passagens, muitas vezes não fazem mais e assim até Moisés, que os tinha recebido do próprio Deus e transmitido oral-
do que indicar as causas dos erros. Julgo, enfim, que ninguém mente e não por escrito . Os fariseus acreditam nestas coisas, com a sua habi-
que esteja em seu juízo admitirá que os historiadores sagrados tual obstinação. Mas as pessoas esclarecidas, que conhecem as razões de ser
dos conselhos e dos sínodos, bem como as controvérsias dos fariseus e dos
quisessem deliberadamente escrever de modo a parecer que se
saduceus, poderão facilmente imaginar o motivo por que essa grande sina-
contradizem a cada passo. goga ou conselho foi convocado . O que é certo é que no dito conselho não
Dir-se-á, talvez, que com este argumento eu subverto por havia quaisquer profetas e os decretos dos fariseus, a que eles chamam tradi -
completo a Escritura, uma vez que assim se poderá sempre suspei- ção [em torno dos quais se fez tanto barulho ], colheram a sua autoridade deste
tar que estejam erradas todas as passagens . O que eu mostrei, mesmo conselho.

280 281
mo capítulo, vers. 2, se anunciar a ressurreição dos mortos, a 1
ii
qual os saduceus negavam. De resto, os próprios fariseus dei-
xam isto bem claro no Talmude, quando afirmam, no Tratado do ·
Sabat, cap. rr, fol. 30, p. 2: disse R. Jehuda,a quem chamavamRabi,
que os peritos quiseramescondero livro do Eclesiastes porqueas suas
palavras contradizem as palavras da lei (N. B.: o livro da lei de
Moisés). Por que não o esconderamentão? Porque começasegundo a
lei e segundoa lei termina. Um pouco mais à frente: e também qui~
seram escondero livro dos Provérbios, etc. Finalmente, ainda no CAPITULOXI [151)

mesmo tratado, cap. 1, fol. 13, p. 2: recorda,pela sua benevolência,.


ONDE SE AVERIGUA SE OS APÓSTOLOS ESCREVERAM
aquelehomem de nome Neghunja,filho de Ezequias,pois se não fosse
AS SUAS EPÍSTOLAS NA QUALIDADE DE APÓSTOLOS
ele o livro de Ezequiel teria sido escondidoporque as suas palavras E DE PROFETAS OU NA QUALIDADE DE DOUTORES
contradiziamas palavras da lei, etc. Donde se segue com toda <?-· E SE MOSTRA DEPOIS QUAL A FUNÇÃO DOS APÓSTOLOS
clareza, que os peritos na lei se reuniram em conselho para der.
liberar quais os livros que deveriam ser tidos por sagrados e
quais os que deveriam ser excluídos. Quem, portanto, quiser
estar seguro da autoridade de todos eles, reconstitua por inteiro
esse conselho e indague o critério seguido para cada livro. , Ninguém que leia o Novo Testamento poderá pôr em dúvi-
Seria agora altura de examinar também os livros do Novo .da que os apóstolos foram profetas. Dado, porém, que os pro-
Testamento. No entanto, porque sei que isso já foi feito pot fetas nem sempre falavam a partir de uma revelação, o que era,
homens extremamente conhecedores das ciências e ainda ma~ aliás, bastante raro, como se mostrou no final do cap. I, podemo-
das línguas; porque, além disso, não tenho um conheciment , ! -nos interrogar se os apóstolos escreveram as suas epístolas como
tão exacto da língua grega para me atrever a entrar nesse terre- profetas, com base numa revelação e num mandato expresso,
no; e, enfim, porque não possuímos originais dos livros que fO:. · tal como Moisés, Jeremias e outros, ou a título de simples par-
(151) ram escritos em hebraico, é preferível renunciar a essa tarefa. ; tiçulares ou doutores 1, principalmente porque Paulo, na I Epís-
Chamo, contudo, a atenção para alguns aspectos mais directa- 1 t9laaos Coríntios, cap. XIV, 6, distingue duas maneiras de pregar ,
mente ligados ao meu tema, aspectos estes de que tratarei nos .furta a partir da revelação, outra a partir do conhecimento. Daí,
capítulos seguintes. i:epito, o podermo-nos interrogar se nas epístolas eles profeti-
~ ou ensinam.
1
!
Se atentarmos no estilo, verificamos que o das epístolas é
pluito diferente do da profecia. O~ profetas, com efeito, costu-
, mavam assegurar em toda a parte que falavam por ordem de
Oçus: a~sjm.diz Deu_s, diz o De.us dos exércitos,mandamentode Deus,
"~
, t!tc.; _e isto, -ao que parece, teve lugar não só nos discursos dos
pró-f.etas em público, mas , também nas cartas, que continham
.revelações, como -se vê por aquela · de Elias a Jorão (Paralipó-
~os, liv. 11, cap. xx1., .12), a qu?,l também começa por assim diz
Deus. Nas epístolas dos apóstolos não encontramos nada que
se pareça. Pelo contrário, na I aos Coríntios, cap. vu, 40, Paulo
fala segundo a sua própria opinião. Além disso, em numero -
sas passagens, surgem expressões que denotam incerteza e per-
plexidade, como na Epístola aos Romanos, cap. 111, 28: julgamos,

282 283 .,,


j
-
n
'l:i, pois•; no cap. vm, 18: quanto a mim, julgo, pois; e várias outras sés diz aos Israeli tas (Oeut., cap. xxx1,27) se enquanto eu vivi no
f:' passagens do mesmo género. Por outro lado, encontram-se ex- meio de vós fostes rebeldesà vontade de Deus, muito mais o sereis de-
pressões que estão muito longe da autoridade profética, tais pois de eu morrer, não podemos tomar a frase como se Moisés
como: digo isto, no entanto, como um doente, e não por mandato quisesse convencer pela razão os Israelitas de que após a sua
(I Epístola aos Coríntios, cap. VII, 6); aconselho-vos como homem que, morte se afastariam necessariamente do verdadeiro culto de Deus.
[1s2 1 pela graça de Deus, é fiel (idem, cap. v11, 25); etc. E note-se que Até porque o argumento seria falso, como também se pode de-
sempre que ele diz, no citado capítulo, que tem ou que não tem monstrar pela própria Escritura, pois os Israelitas permanece-
ordem ou mandato de Deus, nurica entende · por isso um pi:ecei~ ram fiéis em vida de Josué e dos Anciãos, tal como depois, em
to ou um mandato que Deus · lhe tenhé! revela .do a ele, mas uni- vida de Samuel, David, Salomão, etc. Aquelas palavras de Moi-
camente os ensinamentos dados _por Cristo aos seus discípulos sés são, portanto, apenas uma expressão moral com que ele pre-
na montanha. · diz, retoricamente e de forma tão viva quanto a podia imagi-
Se, por outro lado, repararmos na forma como' os apõstolôs nar, a futura defecção do povo. E a razão pela qual não digo
apresentam nas suas epístolas a doutrina evangélica, veremos que ele falou em seu próprio n o me, de modo a tornar a sua
que ela é também muito diferente da dos profetas. Os apósto- profecia verosímil aos olhos do povo, e não como profeta, com
los usam sempre o raciocínio 2 , de tal modo que não parecem base numa revelação, é porque no vers . 21 desse -capítulo se
profetizar mas discutir; as profecias, pelo contrário, contêm ape- refere que Deus, por outras pa l avras embora, tinha revelado
nas meros dogmas e decretos, dado que nelas se introduz Deus isto mesmo a Moisés, o qual, evidentemente, não precisava de
como alguém que fala mas que não raciocina e que decide pelo argumentos verosímeis para ficar mais ciente desta profecia e
poder absoluto da sua natureza. Além de que a autoridade do deste decreto divino: precisava, sim, como vimos no cap. 1, que [153]
profeta não é passível de raciocínios, pois quem quer confirmar ela se lhe representasse na imaginação com a maior vivacidade
pela razão os seus próprios dogmas submete-os ao juízo arbitral e, para tal, nada melhor que imaginar como futura a presente
de outrem. É precisamente isso que Paulo, porque raciocina, insubmissão do povo que ele tan tas vezes experimentara. Assim
parece fazer quando afirma, na I Epístola aos Coríntios,cap. x, 15: é que se devem interpretar todos os argumentos de Moisés que
falo-vos como a sábios,julgai vós mesmos o que eu digo. vêm nos cinco livros, ou seja, não como se fossem extraídos dos
Por último, os profetas, como vimos no cap. 1, não perce- escrínios da razão, mas unicamen t e como maneiras de dizer atra-
biam as coisas reveladas por via da luz natural, isto é, racioci- vés das quais ele exprimia mais eficazmente e imaginava com
nando . E se bem que nos cinco livros eles pareçam, às vezes, maior vivacidade as ordens de Deus. Não pretendo, porém,
chegar também a algumas conclusões por ilação, se alguém as excluir em absoluto que os profetas tenham podido argumentar
analisar com atenção verá que de modo algum podem ter-se na a partir de uma revelação; afirmo simplesmente que, quanto mais
conta de argumentos peremptórios. Por exemplo, quando Moi- rigorosa é a sua argumentação, mais o conhecimento que têm
da coisa revelada se aproxima do conhecimento natural. É so-
bretudo por isto que se descobre que os profetas possuem um
conhecimento acima do natural, ou seja, por formularem puros
• Anotação XXVI. Os intérpretes desta passagem traduzem a palavra dogmas, decretos ou sentenças. E por isso é que o maior dos
Àoyi.'Çoµmpor concluo e sustentam que Paulo a utiliza em vez de cruUoy(Çoµm;
na realidade, esta significa em grego o mesmo que «Hashab » em hebraico,
profetas, Moisés, jamais produziu um verdadeiro argumento.
isto é, contar,pensar, julgar, significado que concorda perfeitamente com o texto Já quanto às longas deduções e argumentos de Paulo, como
siríaco. A tradução siríaca, com efeito, (se é que se trata de uma tradução, o as da Epístola aos Romanos, estou, pelo contrário, convencido de
que é duvidoso, pois não conhecemos nem o tradutor nem a data em que que não foram de modo algum escritos por revelação sobrenatu-
terá aparecido, além de que a língua materna dos apóstolos não era senão o ral. Tanto a maneira de falar como a maneira de discutir dos após-
siríaco) traduz assim o texto de Paulo: metraghenanhachil, que Tremellius tra -
duz, e muito bem, por julgamos, portanto. De facto, o substantivo rehgjono,for-
tolos nas epístolas indicam, com toda a clareza, que elas não
mado a partir deste verbo, significa decisão, e corresponde ao hebraico relzg11- foram escritas por revelação e mandato divino, mas apenas pelo
tha, vontade; por isso, q11eremos ou julgamos. seu próprio discernimento natural, e não contêm senão adver-

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tências fraternas à mistura com uma delicadeza que é completa- não afirmar, quando eles vão pregar a qualquer lado, que o
mente alheia à autoridade dos profetas, tal como aquele pedido fazem por ordem de Deus, como afirma dos antigos profetas,
de desculpa de Paulo, na Epístolaaos Romanos, cap . xv, 15: escrevi dever-se-ia concluir que eles pregaram como doutores e não como
em termos um pouco mais agrestes, irmãos. O mesmo se pode, aliás, profetas. Na verdade, esta questão resolve-se facilmente se re-
concluir do facto de não se ler em parte alguma que os apósto- pararmos na diferença entre a vocação dos apóstolos e a dos
los tenham recebido ordens para escrever, mas unicamente para profetas do Antigo Testamento. Estes, com efeito, não foram
pregarem por toda a parte aonde fossem e confirmarem ª$ sua~ chamados a pregar e a profetizar para todas as nações, mas
palavras através de sinais. Porque a stia presença, tal como os unicamente a algumas, precisando por isso de um mandato ex-
sinais, eram absolutamente necessários para converter e confir- presso e singular para cada uma delas. Os apóstolos, pelo con-
11·
mar os gentios na religião, como .o ·próprio Paulo expressamente trário, foram chamados a pregar absolutamente a todos e a con-
'1: indica na Epístola aos Romanos, cap. r, 11: porque - diz-, desejo vertê-los à religião. Por isso, aonde quer que eles fossem,
,I muito ver-vos, para repartir convoscoo dom do Espírito, à fim- de qúe cumpriam o mandato de Cristo e não era necessário, antes de
sejais confirmados. irem, revelar-lhes o que deveriam pregar, porquanto eram dis-
,!.
111 No entanto, objectar-se-á que, a ser assim, poderíamos tam- cípulos de Cristo a quem ele dissera: quando vos entregarem,não
bém concluir que os apóstolos não pregaram como profetas, pois estejaispreocupadoscom o que haveisde dizer nem coma maneiracomo
11
i1j neste ou naquele lugar, quando eles iam pregar não o faziam haveis de falar; porque nesse momento ser-vos-á dadoo que haveis de
ll'•I por um mandato expresso, como outrora os profetas. No Anti- dizer (Mateus, cap. x, 19 e 20).
1: go Testamento, lemos que Jonas foi pregar a Nínive e, ao mes- Em conclusão, os apóstolos só receberam por revelação es- (1551
mo tempo, que ele foi lá expressamente enviado e que lhe foi pecial aquilo que pregaram de viva voz e, ao mesmo tempo,
(154] revelado o que aí devia pregar. O mesmo se passa com Moisés, confirmaram por sinais (veja-se o que demonstrámos no princí-
de quem se conta em pormenor como partiu para o Egipto na pio do cap. n); mas aquilo que eles se limitaram a ensinar, por
qualidade de enviado de Deus e, por outro lado, o que deveria escrito ou de viva voz, sem o confirmarem. por sinais, isso foi
dizer ao povo israelita e ao rei faraó e que sinais devia fazer na dito ou escrito ·por tÕnheci.Jnento (natural, evidentemente). Sobre
frente deles para que o acreditassem. Isaías, Jeremias e Ezequiel isto, veja-se a Epístàla aos CoríntiÓs,cap. xrv, 6. Nem vale a pena
foram expressamente mandados pregar aos Israelitas . Os profe- determo-nos agora no facto de .todas as epístolas começarem
tas, em suma, não pregaram nada que a Escritura não garanta pela confirmação da qualidade de apósto lo, uma vez que, con-
ter sido recebido de Deus. Sobre os apóstolos, porém, não se lê forme demonstrarei daqui a pouco, aos apósto los foi concedida,
nada de parecido no Novo Testamento, a não ser excepcional- não só a virtude de profetizar, mas também a autoridade para
mente quando eles iam pregar aqui ou ali. Pelo contrário, en- ensinar. Admitimos, por isso, que eles escreveram as suas epís-
contramos certas passagens indicando explicitamente que eles tolas na qualidade de apóstolos, sendo essa a razão por que
escolhiam por sua livre iniciativa as localidades aonde pregar, cada um começava o exórdio confirmando essa sua qualidade.
como aquela discussão, que se transformou em discórdia entre Ou, talvez, para mais facilmente cativarem o ânimo dos leitores
Paulo e Barnabé, a qual se pode ver nos Actos, cap. xv, 37, 38, e chamarem a sua atenção, quisessem garantir, antes de mais,
etc. E, muitas vezes, foi em vão que tentaram ir a algum lado, que eles eram aqueles mesmos a quem todos os fiéis conheciam
como diz o mesmo Paulo, na Epístola aos Romanos, cap . 1, 13: pela sua pregação e que tinham demonstrado, por testemunhos
ultimamente, quis muitas vezes ir ter convosco e fui impedido; e no inequívocos, que ensinavam a verdadeira religião e o caminho
cap. xv, 22: por causa disso, fiquei várias vezes impedido de ir ter da salvação. De facto, tudo quanto nessas epístolas eu vejo ser
convosco;e no último capítulo da I Epístolaaos Coríntios, 12: quan- dito da vocação dos apóstolos e do espírito santo e divino que
to a Apolo, meu irmão,pedi-lhe encarecidamentequefosse até junto de possuíam refere-se às pregações que tinham feito, excepto na-
vós com os irmãos, mas ele não tinha nenhuma vontade de ir; mas quelas passagens em que «Espírito de Deus» e «Espírito Santo»
quando ele tiver oportunidade,etc. Donde, já pela maneira de falar significam uma mente sã, feliz e dedicada a Deus, etc., como
e pela discussão entre os apóstolos, já pelo facto de a Escritura explicámos no cap. r. Paulo diz, por exemplo, na J Epístola aos

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Coríntios,cap. vu, 40: mas seráfeliz, em minha opinião,se se mantiver autoridade para ensinar e admoestar pela via que cada um
assim, porquantojulgo também que o Espírito de Deus está em mim. achasse melhor. Paulo refere um e outro destes dons na II Epís-
Por «Espírito de Deus» ele entende, pois, a sua própria mente, tola a Timóteo, cap. ,, 11: no qual fui constituído arauto, apóstoloe
como se vê pelo próprio contexto da frase, a qual significa o doutor dos gentios. E na J Epístola a Timóteo, cap. II, 7: fui consti-
seguinte: uma viúva que não quer voltar a casar-se é, em minha tuído arauto e apóstolo(digo a verdade por Cristo, não minto), doutor
opinião, feliz, porquanto eu decidi viver em celibato e julgo-me dos gentios na fé [N. B.] e na verdade4. Por estas palavras, repito,
feliz. E há outras passagens do mesmo género, que consider.9 Paulo indica claramente a sua dupla qualidade de apóstolo e
supérfluo citar àqui. · douto r . Quanto à autoridade para admoestar quem quer que
-~ Uma vez que tem de se· admitir : que as epístolas dos após- seja e sempre que quiser, ela vem expressa nestes termos da
f tolos foram ditadas unicamente pela luz natural, há que ver ~gora Epístola a Filémon (v. 8): emboratenha a maior liberdadeem Cristo de
como puderam eles, com base apenas nci conhecimento natural, te prescrever o que te convém, no entanto, etc. É de notar que, se
ensinar coisas que não são do domínio deste·. Em . boa -verdaáe, fosse como profeta que Paulo tivesse recebido de Deus o que
se tivermos em conta o que dissemos no cap. vn deste tratado era necessário prescrever a Filémon, e se tivesse de lho prescre-
sobre a interpretação da Escritura, isto não constituirá para nós ver nessa qualidade, não lhe seria lícito trocar por orações aquilo
qualquer dificuldade. Porque muito embora o conteúdo da Bí- que Deus ordenara. É necessário, portanto, entender que ele
[1561 blia ultrapasse frequentemente a nossa compreensão, podemos, fala da liberdade de admoestar que possuía enquanto doutor e
contudo, discorrer sobre ele com segurança, desde que não ad- não enquanto profeta.
mitamos outros princípios além daqueles que se extraem da pró- Todavia, não resulta ainda suficientemente claro que os após- 11s11
pria Escritura. Era também exactamente assim que os apóstolos, tolos pudessem escolher o método de ensinar que cada um de-
a partir do que tinham visto, ouvido e, enfim, obtido por reve-
les considerava o melhor, mas unicamente que, em virtude do
lação, podiam deduzir e concluir muitas coisas e ensiná-las aos
ofício do apostolado, eram não só profetas como também dou-
homens, se assim lhes aprouvesse. Além disso, embora a reli-
tores. Isto, se não quisermos chamar em nosso auxfüo a razão,
gião, tal como era pregada pelos apóstolos, isto é, narrando sim-
segundo a qual quem tem autoridade para ensinar tem também
plesmente a história de Cristo, não seja do domínio da razão, o
autoridade para escolher o método que quiser. Mas será sufi-
seu essencial, que consta sobretudo de ensinamentos morais, como
ciente demonstrar tudo só pela Escritura. Na realidade, vem
toda a doutrina de Cristo*, pode facilmente ser seguido por
com toda a clareza na Escritura que cada um dos apósto los es-
qualquer um mediante apenas a luz natural 3 • Por último , os
apóstolos não precisavam de uma luz sobrenatural para adapta- colheu o seu próprio método, como se vê pelas palavras de Paulo
rem a religião, que antes tinham confirmado por sinais, à com- na Epístola aos Romanos, cap. xv, 20: tendo o cuidadode não pregar
onde o nome de Cristo já era invocado, a fim de não construir sobre

'li
l preensão do comum dos homens e fazê-la facilmente aceitar com
sinceridade por cada um deles. Tão-pouco precisavam de uma fundamentos alheios. Sem dúvida, se todos tivessem seguido o
mesmo método de ensino e fizessem assentar a religião cristã
tal luz para admoestarem os homens. Ora, o objectivo das epís-
l
tolas é precisamente esse: ensinar e admoestar os homens pela no mesmo fundamento, Paulo não teria nenhuma razão para
1 chamar alheios aos fundamentos de outro apóstolo, uma vez
via que cada um dos apóstolos considerou a melhor para os
confirmar na religião. que seriam idênticos aos seus. Mas como efectivamente ele os
Convém aqui lembrar o que dissemos mais acima: os apósto- chama de alheios, é necessário concluir que cada um fundamen-
los tinham recebido, não só o poder de pregar a história de Cristo tava diferentemente a religião e que acontecia aos apóstolos,
como profetas, isto é, confirmando-a por sinais, mas também a quando ensinavam, o mesmo que aos outros doutores, que têm
cada um o seu método particular de ensino e que preferem en-
sinar aqueles que estão ainda completamente rudes e que não
• Anotação XXVII. [A saber, aquela que Jesus Cristo tinha ensinado na começaram a aprender com mais ninguém as línguas, as ciências
montanha e que São Mateus menciona nos caps. v e seguintes.] ou até as matemáticas, de cuja verdade ninguém duvida.

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· ,1111 "
Por outro lado, se lermos as próprias epístolas com um mí-
nimo de atenção, veremos que os apóstolos, estando embora de
J.
acordo quanto à religião em si mesma, divergem imenso sobre
os seus fundamentos. Paulo, para confirmar os homens na reli-
gião e mostrar-lhes que a salvação depende só da graça de Deus,
"li.. 111
ensinou que ninguém pode vangloriar-se das obras, mas apenas
da fé, que ninguém é justificado pelas obras (Epístolaaos Roma-
!li nos, cap. m, 27, 28), e assim por diante, toda: ·a doutrina da pre- ·
CAPITULO XII [158)
destinação. Tiago, pelo contrário, ensi(la -na s.ua -Epístolaque o
homem é justificado pelas obras e _- não apenas pela ·fé (Epístola·de
DO VERDADEIRO ORIGINAL DA LEI DIVINA
Tiago, cap. n, 24), resumindo toda · a doutrina religiosa .a müito E POR QUE RAZÃO SE DESIGNA POR ESCRITURA SAGRADA
pouco e deixando de lado todas aquelas discussões de 'Pãulo s-_- E POR QUE SE CHAMA A PALAVRA DE DEUS.
Por último, não há qualquer dúvida de que esse facto de os ONDE SE MOSTRA, ENFIM, QUE A MESMA ESCRITURA,
apóstolos edificarem a religião sobre alicerces diferentes está na NA MEDIDA EM QUE CONTÉM A PALAVRA DE DEUS,
origem de muitas controvérsias e cismas pelos quais a Igreja CHEGOU ATÉ NÓS INTACTA
foi, desde os tempos dos apóstolos, incessantemente abalada e
com certeza continuará eternamente a sê-lo até ao dia em que a
(1581 religião, finalmente, se aparte das especulações filosóficas e se
reduza àquele pequeno número de dogmas muito simples que Aqueles que consideram os livros da Bíblia, tal como hoje
Cristo ensinou aos seus. Mas isto, os apóstolos não o podiam existem, uma espécie de carta que Deus mandou lá do céu aos
fazer, dado que os homens desconheciam o Evangelho, e por homens vão com certeza exclamar que eu cometi um pecado
isso adaptaram, tanto quanto possível, a sua doutrina à idios- contra o Espírito Santo ao considerar que a palavra de Deus
sincrasia dos homens do seu tempo, ainda assim não ferisse, está errada, truncada, adulterada e incoerente consigo mesma,
pela sua novidade, os ouvidos deles (ver I Epístolaaos Coríntios, que só possuímos alguns fragmentos dela e, finalmente, que o
cap. rx, 19, 20, etc.), e erigiram-na sobre fundamentos os mais original do pacto firmado por Deus com os Judeus se perdeu.
conhecidos e aceites na época. Daí que nenhum dos após tolos Estou, no entanto, seguro de que, se se dispuserem a examinar
tenha filosofado mais do que Pau lo, que foi chamado a pregar o assunto, deixarão logo de protestar. Com efeito, tanto a ra-
aos gentios. Os restantes, que pregaram aos Judeus, isto é, a zão como as declarações dos profetas e dos apóstolos procla-
gente que desprezava a filosofia, adaptaram-se também à sua mam abertamente que o verbo eterno de Deus, o seu pacto e a
idiossincrasia (sobre isto, veja-se a Epístolaaos Gálatas,cap. 11, 11, verdadeira religião estão inscritos pela mão divina no coração
etc.) e ensinaram a religião despojada de especulações filosófi- dos homens, isto é, na mente humana : é esse o verdadeiro do-
cas. Quão feliz seria agora o nosso tempo se a víssemos igual- cumento original de Deus, aquele que ele próprio autenticou com
mente liberta de toda a superstição! o seu selo, quer dizer, com a ideia de si mesmo, essa como que
imagem da sua divindade.
Aos primitivos Judeus, a religião foi dada por escrito, como [1591
uma lei, porque nesse tempo eles eram quase como crianças.
Mais tarde, porém, Moisés (Deut., cap . XXX, 6) e Jeremias (cap. XXXI,
33) pregaram-lhes que viria o tempo em que Deus inscreveria a
sua lei nos seus corações. Nessa medida, só aos Judeus, e espe-
cialmente aos saduceus 1, competia outrora pugnar pela lei es-
crita nas tábuas, não àqueles que a têm inscrita nas suas men-
tes. Quem se dispuser a ter isto em consideração não encontrará

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- '
no que acima ficou dito nada que contradig a a palavra de Deus,
ou seja, a verdadeira religião e a fé, ou que a possa pôr em
de Deus e que ela não está contida em det er minado número de
livros ; por último , que a Escritura, na medida em que ensina o
causa; pelo contrário, verificará que nós a confirmamos, confor - que é necessário para a obediência e a salvação, não pode ser
me ficou demonstrado no final do cap. x. Se assim não fosse, eu corrompida . Por aí se poderá facilmente constatar que não dis-
teria decidido calar -me por completo acerca disto e admitiria semos nada contra a palavra de Deus nem demos alguma vez
até, para evitar todas as dificuldades, que há mistérios profun - lugar à impiedade .
díssimos escondidos nas Escrituras . Mas como foi daqtJ.i qu~ Chama-se sagrado e divino aquilo que se destina ao exercí-
nasceu urna intolerável superstição e bem ·assim outros inconve - cio da piedade e da religião. Uma coisa é sagrada só enquanto
nientes gravíssimos, de que ·já. falei :I?-ºpreâmbulo do cap. vn, os homens a usarem religiosamente; se os homens deixarem de
tive para mim que não deveria .-de modo algum abster-mE: · de ser piedosos, de .imediato ela deixa de ser sagrada; se a utiliza-
analisá-lo, sobretudo porque a religião, não só dispensa orna- rem para perpetrar acções ímpias, então essa mesma coisa que
mentos supersticiosos, corno fica privada do seu própriÕ esplen- antes era sagrada tornar-se-á imunda e profana. Assim, por
dor quando adornada com semelhantes invenções. exemplo, o patriarca Jacob chamou casa de Deus a um determina-
Dirão, no entanto, que, embora a lei divina esteja inscrita do lugar porque aí prestou culto a Deus, que se lhe revelou;
nos corações, a Escritura não deixa ainda assim de ser a palavra porém, o mesmo lugar foi designado pelos profetas como casa
de Deus, pelo que não é mais lícito dizer da Escritura do que da iniquidade (Amós, cap. v, 5, e Oseu, cap . x, 5) porque os Israe-
da palavra de Deus que ela está truncada e falsificada. Mas eu litas, por ordem de Jeroboão, costumavam lá oferecer sacrifícios
receio antes que, de tanto se preocuparem em ser santos, eles aos ídolos. Vejamos um outro exemplo que mostra isto com toda
convertam a religião em superstição e comecem até a adorar a clareza. As palavras só possuem determinado significado em
., ' simulacrós e imagens, isto é, papel e tinta, em vez da palavra função da norma em uso; se, de acordo com essa norma, elas
de Deus. Sei que não disse nada de indigno sobre a Escritura vêm ordenadas de tal forma que levam quem as lê à devoção,
ou a palavra de Deus e que não afirmei nada que não tenha nesse caso, essas palavras serão sagradas, bem como o livro
1,;. demonstrado ser verdadeiro mediante argumentos extremamente escrito segundo essa ordenação. Mas se a mesma norma desa-
evidentes. Por esta razão ainda, posso decerto afirmar que não parecer depois, a ponto de as palavras já não terem qualquer
disse nada de ímpio ou que cheire a impiedade. Admito que significado, ou se o livro for totalmente esquecido, seja pela
certos homens ignorantes, para quem a religião é um fardo, malícia, seja por já não se precisar dele, então, quer as palavras
possam retirar do que eu disse uma justificação para pecar e quer o livro não têm mais qualquer utilidade nem réstea de
concluir, sem qualquer razão e unicamente para se entregarem santidade. Se, enfim, as mesmas palavras forem dispostas de
aos prazeres, que a Escritura está cheia de erros e falsificações, outra maneira, ou se a norma em vigor lhes atribuir um signifi-
sendo, por isso, destituída de qualquer autoridade. De coisas cado contrário, então, palavras e livro, que antes eram sagra-
dessas, porém, ninguém está livre, de acordo com o provérbio dos, tornar-se-ão impuros e profanos. Donde se segue que, fora
segundo o qual é impossível dizer alguma coisa tão correcta- da mente, nada é sagrado, profano ou impuro em termos abso-
rnente que ela não possa, interpretando-a mal, ser deturpada. lutos, mas apenas em relação a ela .
Quem quer ceder à licenciosidade, arranja sempre uma qualquer Também isto consta, com toda a evidência, de muitas pas-
justificação. Nem sequer aqueles que possuíam, antigamente, os sagens da Escritura. Jeremias (para dar apenas um ou dois exem-
textos originais, a arca da aliança, inclusive os próprios profetas plos) diz, no cap . vn, 4, que os Judeus do seu tempo chamavam
[160J e os apóstolos, foram melhores ou mais obedientes: todos eles, erradamente ao templo de Salomão o templo de Deus, visto
tanto Judeus corno gentios, foram sempre a mesma coisa e, em que, acrescenta no mesmo capítulo, o nome de Deus só devia [1611
todos os tempos, a virtude foi extremamente rara. Todavia, para aplicar-se ao templo enquanto este é frequentado por homens
remover qualquer escrúpulo, temos de mostrar, primeiro, por que o honram e defendem a justiça; porque se for frequentado
que motivo a Escritura, ou qualquer outra coisa muda, se deve por homicidas, ladrões, idólatras e outros criminosos, então o
dizer sagrada e divina; segundo, o que é realmente a palavra que ele é, de facto, é um covil de malfeitores . A Escritura, por

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t,

outro lado , não conta o qu e foi feito da arc a da alianç a, coisa a letra e de estar tão preoc up ados com ela. Creio, com isto, ter
que muit as vezes me dei xou admirado ; é, no entanto, certo que expli cado suficient ement e em que sentido a Escritura se dev e
ela se perdeu ou ardeu com o templo, muito embora não hou - ter por sagrada e divina .
vesse nada mais sagrado e merecedor de maior respeito ao s Vejamos agora o qu e se deve propriamente entender por
olhos dos Hebreus. Por isso mesmo, também a Escritura é sa- debar Jehova (palavra de Deus). Debar significa palavra,frase, édito
grada e as suas frases são divinas, enquanto induzir os homens e coisa. Por que razão se diz, em hebraico, que algo pertence ou
à devoção para com Deus; se estes a desprezam por completo, se refere a Deus, já o explicámos no cap. 1 e, portanto, é fácil
como outrora os ·Judeus, nada mais é senão papel e tinta, tÕtal- perceber o que significa, na Escritura , palavra, frase, édito e
mente profanada por eles e sujeita à det:urpaçã9 .. Nesse caso, se coisa de Deus . Não é necessário, portanto, repetir aqui tudo
ela se corromper ou perder, será falso ·dizer-se que a palavra : · isso, o mesmo acontecendo com o que mostrámos, em terceiro
de Deus se corrompeu ou perdeu, tal como seria falso, no -tempo lugar, no cap . VI, acerca dos milagres. Basta uma referência ape-
! de Jeremias, dizer que era o templo de Deus aque le que· finha · nas p ara que se compreenda melhor o que queremos dizer aqui
1•.,1 sido destruído pelas chamas. Jeremias, aliás, diz isto também a sobre isso: palavra de Deus, quando é predica do de um sujeito
respeito da própria lei, quando interpela os ímpios do seu tem- que não o próprio Deus , significa em sentido próprio essa lei
po: Por que razão dizeis «nós somos os especialistas,a lei de Deus está • divina de que tratámos no cap. IV, isto é, a religião universal ou
connosco»? Foi decerto em vão que ela foi posta por escrito e em vão católica 3, comum a todo o género humano, como se pode ver
que a pena dos escribas (foi feita), ou seja, é falso dizerdes que em Isaías, cap. 1, 10, etc., onde o profeta ensina o verdade iro
possuís a lei de Deus, ainda que tenhais a Escritura em vosso modo de viver, que não consiste em cerimónias mas na cari-
poder, pois fizestes dela uma coisa inútil. Do mesmo modo, dade e autenticidade de ânimo, chamando-lhe indiscriminada-
quando Moisés partiu as primeiras tábuas da lei, não foi de mente lei e palavra de Deus. Usa-se, além disso, metaforica-
maneira nenhuma a palavra de Deus que ele, encolerizado, ar-
mente para significar a própria ordem da natureza e o destino
remessou e partiu . Quem poderia supor semelhan te coisa, tra-
(porque ele depende e decorre, na realidade, do eterno decreto
tando-se de Moisés e da palavra de Deus? Foram unicamente
da natureza divina), e principalmente o qu e dessa ordem os
pedras, que embora antes fossem sagradas porque nelas estava
profetas previram, já que eles não se apercebiam das coisas fu-
inscrita a aliança pela qual os Judeus se tinham comprometido a
turas através das suas causas naturais, mas sim como vontades
obedecer a Deus, contudo, a partir do momento em que eles
e decretos de Deus. Usa-se, enfim, para significar todo o édito
romperam o pacto adorando um bezerro, tinham ficado despro-
promulgado por qualquer dos profe tas, na medida em que este
vidas de qualquer santidade. E as segundas tábuas podem ter
desaparecido, juntamente com a arca, por essa mesma razão. o entendera pela sua singular virtude ou dom profético, e não
Não admira, pois, que os manuscritos originais de Moisés tam - através da luz natural comum, sobretudo porque os profetas
bém já não existam e que aos livros que possuímos tenha acon- costumavam, de facto, entender Deus como um legislador, con-
tecido o que já antes dissemos , quando até o original que con- forme mostrámos no cap. IV. A Escritura , por conseguinte, chama-
tinha a aliança divina e que era o mais santo de todos pôde -se palavra de Deus por estes três motivos: porque ensina a
desaparecer por completo. Cessem, portanto, de nos acusar de verdadeira religião, de que Deus é o autor eterno; porque apre -
impiedade, a nós que nada dissemos contra a palavra de Deus senta as profecias sobre coisas futuras como decretos de Deus:
nem a conspurcámos, e voltem a ira, se é que podem ter uma finalmente, porque aqueles que foram de facto os seus autores
(1621 justa ira, contra os antigos cuja malícia profanou e expôs à cor- ensinaram, a maioria das vezes, não através da luz natural co-
rupção a arca de Deus, o templo, a lei e tudo quanto era sagra- mum, mas de uma certa luz que lhes era peculiar, e pondo até [1631

do. E se, de acordo com o que diz o apóstolo, na II Epístola aos leis a pronunciar tais ensinamentos. E se bem que a Escritura
Coríntios, cap. rn, 3, têm dentro de si a epístola de Deus, escrita, contenha, para além disso, outras coisas que são meramente his-
não com tinta , mas com o Espírito divino, não em tábuas de tórica s e percebidas pela luz natural, ela toma, contudo, o nome
pedra 2, mas na s tábua s de carn e do coração, deixem de adorar do seu conteúdo principal.

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,.
Percebe-se assim facilmente em que sentido se deve enten - seus, como mostrámos no cap. x; os livros do Novo Testamento
der que Deus é o autor dos livros da Bíblia: é, evidentemente, foram também admitidos no cânon por decisões de certos con -
porque aí se ensina a verdadeira religião e não porque Deus cílios, nos quais se rejeitaram como espúrios alguns outros que
tenha querido transmitir aos homens um certo número de li- muita gente tinha por sagrados. Ora, entre os membros desses
vros. Por aí podemos também saber a razão por que a Bíblia concílios (tanto dos fariseus como dos cristãos) não havia profe-
está dividida em livros do Antigo e do Novo Testamento: é tas, mas só peritos e doutores, e não obstante temos de reconhe-
que, antes do advento de Cristo, os profetas costumavam pre- cer forçosamente que, nessa selecção, eles tiveram por norma a
gar a religião ·como lei ·da Pátriâ e com base no pacto concluído palavra de Deus. Sendo assim, antes de aprovarem todos os
no tempo de Moisés, ao pas~ç, que _os apóstolos a pregaram livros, eles tinham necessariamente de ter conhecimento da pala-
depois a todos os homens como _lei católica e em virtude ..apenas vra de Deus 4 •
da paixão de Cristo. Não que eles sejam diferentes pela . doutri- 4 - Os apóstolos, como dissemos no capítulo anterior, não
na ou que tenham sido escritos como texto original dà -aliança, escreveram na qualidade de profetas mas de doutores e esco-
ou ainda que a religião católica, que é sumamente natural, fosse lheram o método que consideraram mais fácil para os discípulos
nova a não ser em relação aos homens, que a não conheciam: ele a quem então queriam ensinar; daí o haver nos seus escritos
estava no mundo - diz João Evangelista, no cap. 1, 10 - e o mundo (como também concluímos no fim do citado capítulo) muitas coi-
não o conheceu. Mesmo que tivéssemos menos livros, tanto do sas de que hoje poderíamos, no que respeita à religião, prescindir.
Antigo como do Novo Testamento, nem por isso estaríamos pri- 5 -- Finalmente, quem é que acredita, pelo facto de haver
vados da palavra de Deus (pela qual, em rigor e como já disse- quatro evangelistas no Novo Testamento, que Deus quisesse
mos, se entende a verdadeira religião), da mesma forma que contar e comunicar por escrito aos homens, quatro vezes, a his-
não pensamos estar privados dela muito embora nos faltem al- tória de Cristo? E embora se encontrem num certas coisas que
guns escritos da maior importância, tal como o livro da Lei, que não vêm no outro e que, muitas vezes, um ajude a compreen-
estava religiosamente guardado no Templo como original da der o outro, não vamos, todavia, concluir daí que tudo o que é
aliança, e os livros das Guerras, das Crónicas e um bom número narrado por eles os quatro seja necessário conhecer e que Deus
de outros de que foram tirados e coligidos os que temos no os escolheu para escreverem, a fim de se entender melhor a
Antigo Testamento. Há, de resto, muitos argumentos a confir- história de Cristo. De facto, cada um deles pregou o seu Evan-
má-lo. Assim: gelho em diferente lugar e cada um escreveu o que havia pre-
1 - Os livros de ambos os Testamentos não foram escritos gado, única e simplesmente para contar de maneira clara a his-
por mandato expresso e de uma vez para sempre, mas sim em tória de Cristo e não para explicar os outros. Se pela sua
certas circunstâncias e para determinados homens, conforme o comparação se consegue, às vezes, compreendê-los melhor e mais
tempo e a sua própria maneira de ser exigiam, como claramente facilmente, isso acontece só por acaso e com poucas passagens,
indicam as vocações dos profetas (que foram chamados para as quais poderíamos ignorar, porque a história não ficava me-
admoestar os ímpios do seu tempo) e até as epístolas dos após- nos clara nem os homens eram menos felizes.
tolos . Ficou assim demonstrado que a Escritura, em rigor, só pode
2- Uma coisa é compreender a Escritura e a mente dos chamar-se palavra de Deus na perspectiva da religião, isto é, da
profetas, outra coisa é compreender a mente de Deus, isto é, a lei divina universal. Resta agora mostrar que, considerada nessa
própria verdade da coisa, corno resulta daquilo que mostrámos perspectiva, ela não tem erros nem está deturpada ou truncada.
no capítulo II acerca dos profetas. O mesmo se poderá dizer em Por errado, deturpado e truncado entendo aqui um texto tão
relação às histórias e aos milagres, como mostrámos no cap . VI. mal escrito e construído que é impossível descobrir o seu senti-
Não pode, contudo, dizer-se das passagens que tratam da ver- do com base na norma linguística ou deduzi-lo apenas da Escri-
dadeira religião e da virtude. tura. Não pretendo, pois, afirmar que a Escritura, na medida (1651
(164] 3 - Os livros do Antigo Testamento foram escolhidos de entre em que contém a lei divina, conservou sempre os mesmos acen-
muitos outros e reunidos e aprovados por um concílio de fari- tos, as mesmas letras e, em suma, as mesmas palavras (deixo

296 297
aos Masoretas e aos que têm uma adoração supersticiosa pela ensinamento da caridade, que ambos os testamentos recomen -
letra o trabalho de o demonstrar); quero apenas dizer que o dam acima de tudo. A isto acresce que, muito embora seja im-
sentido, que é a única coisa que conta para que uma frase se possível imaginar um crime tão execrável que não tenha já sido
possa apelidar de divina, chegou até nós intacto, muito embora cometido por alguém, não há, contudo, ninguém que para des-
se presuma que as palavras em que originariamente foi expresso culpar os seus crimes tente fazer desaparecer as leis ou introdu-
possam ter sido muitas vezes alteradas. Como dissemos, isto zir uma impiedade como ensinamento eterno e útil à salvação.
não retira nada à divindade da Escritura, já que ela seria ig~al- O que se verifica é que a natureza humana está constituída de
mente divina se fosse ·escrita com outras · palavras ou noutra lín- tal maneira que quem cometeu (seja rei ou súbdito) algo de tor-
1fü11: gua. Assim, ninguém pode ·pôr em :qúvida que -a lei divina, nes- pe tenta envolver aquilo que fez em circunstâncias tais que pa-
se sentido, chegou até nós int~cta. Com efeito, percebe'--se· pela reça não ter cometido nada de injusto ou indecoroso.
própria Escritura, sem qualquer dificuldade ou ambiguidade, que Concluímos, portanto, que toda a lei divina universal que a
ela se resume em amar a Deus sobre todas as · coisas e ào prõxi- Escritura ensina chegou às nossas mãos isenta de qualquer adul-
mo como a nós mesmos. E isto não pode ter sido falsificado, teração. Para além disso, existem ainda outros pontos acerca dos
nem escrito por uma pena apressada e deturpadora. Porque se quais não podemos duvidar que nos foram transmitidos de boa
a Escritura alguma vez ensinou algo diferente disto, então deve fé. É o caso dos mais importantes relatos históricos da Escri-
ter também ensinado diferentemente tudo o resto, já que isto é tura, uma vez que eram conhecidos de todos. Entre os Judeus,
o fundamento de toda a religião, retirado o qual todo o edifí- o vulgo costumava antigamente cantar em salmos a história da
cio se desmorona no mesmo instante. Além de que, nesse caso, nação. Da mesma forma, o essencial daquilo que Cristo fez e a.
a Escritura já não seria a mesma de que falamos aqui, mas um sua paixão foram imediatamente divulgados por todo o Império
.. •. livro completamente diferente. É, pois, incontestável que a Sa- Romano. É, de facto, impensável, a menos que a maior parte
grada Escritura sempre ensinou isto e, por conseguinte, nenhum dos homens se tivesse posto de acordo a esse respeito, o que
erro susceptível de alterar o sentido se introduziria aqui sem não é de crer, que o essencial desses relatos fosse transmitido
ser, de imediato, detectado por alguém, da mesma forma que pelas gerações posteriores de forma diferente daquela em que o
ninguém poderia tê-lo deturpado sem que a sua malícia saltasse haviam recebido. As adulterações e os erros, por conseguinte,
logo à vista. só podem ter ocorrido em outros aspectos, melhor dizendo, num
Dado que temos de confessar que este fundamento chegou ou noutro pormenor da narrativa ou da profecia, para incenti-
até nós sem alteração, há que reconhecer o mesmo a respeito var o povo à devoção; neste ou naquele milagre, para confundir
de tudo quanto daí deriva de forma incontroversa e que é igual- os filósofos; ou, enfim, nas matérias especulativas, a partir do
mente fundamental, a saber, que Deus existe, que a sua provi- momento em que estas começaram a ser introduzidas na religião
dência se estende a todas as coisas, que é omnipotente, que os pelos cismáticos, para que assim cada um pudesse fundamentar
bons, por força da sua lei, são recompensados e os maus casti- as suas invenções, abusando da autoridade divina. Para a salva-
gados, e que a nossa salvação depende unicamente da sua graça. ção, todavia, pouco importa que esse género de coisas tenham
Tudo isto a Escritura ensina claramente em qualquer das suas ou não sido adulteradas: é o que vou explicitamente mostrar no
partes, e sempre o deve ter ensinado, pois de outra forma tudo capítu lo seguinte, embora pense que isto já tenha ficado claro
o resto seria vão e sem fundamento. Igualmente intactas se .de- pelo que disse anteriormente, em particular no cap. II.
vem considerar as outras verdades morais, porquanto derivam
com toda a evidência deste fundamento universal: por exemplo,
defender a justiça, auxiliar os indigentes, não matar, não cobi-
çar o alheio, etc. Nestas matérias, repito, nem a malícia dos
homens pôde deturpar nem o tempo pôde apagar fosse o que
fosse. Porque tudo aquilo que daí fosse suprimido imediatamente
[1661 o seu fundamento universal o imporia de novo, em particular o

298 299
- "

CAPITULO XIII [167 )

ONDE SE MOSTRA QUE A ESCRITURA


ENSINA APENAS COISAS MUITO SIMPLES

l:'v· ~f1
1!·1
E NÃO TEM POR OBJECTIVO SENÃO A OBEDitNCIA;
MESMO DA NATUREZA DE DEUS, ELA NÃO ENSINA
SENÃO AQUILO QUE OS HOMENS PODEM IMITAR
1[,11 ATRAVÉS DE UMA CERTA REGRA DE VIDA
1'\
··!\ 1
/1
No cap. II deste tratado, mostrámos que os profetas eram
!11
dotados de uma especial capacidade de imaginar, sim, mas não
de compreender, que Deus não lhes revelou nenhuns segredos
da filosofia, mas apenas coisas extremamente simples, e que, além
li
1:1 disso, se adaptou às suas opiniões preconcebidas. Mostrámos
depo is, no cap. v, que a Escritura expõe e ensina as coisas, de
li maneira a poderem ser facilmente percebidas por qualquer pes-
soa. Dito de outro modo, ela não as deduz e encadeia a partir
1! de axiomas e definições, mas limita-se a dizê-las de um modo
11
1
simples e, em abono do que diz, recorre exclusivamente à expe-
;,1 riência 1, isto é, a milagres e a relatos históricos, os quais são
1
também narrados num estilo e com frases que se destinam a
,i'I emocionar ao máximo os ânimos do povo (sobre este aspecto,
1 veja-se o que ficou demonstrado no terceiro ponto do cap. vr).
Finalmente, no cap. vu, mostrámos que a dificuldade em com-
1
preender a Escritura reside unicamente na língua e não na trans-
:i cendência do assunto. Acresce, além disso, que os profetas não
.,
pregaram para os sábios, mas para todos os Judeus sem distin-
11 ção, e que os apóstolos costumavam ensinar a doutrina do Evan-
gelho nas igrejas 2, onde se reunia toda a comunidade.
11 De tudo isto resulta que a doutrina da Escritura não inclui
altas especulações ou considerações filosóficas, mas tão-só coi-
111
sas simplicíssimas que qualquer um, por mais lento que seja,
1 pode entender. Muito me admira, por isso, a engenhosidade

301
- ., ,;ili
: ji
1
,.
daqueles , de quem já falei, que enxergam na Escritura mistér ios
tão profundos que se torna impo ssível explicá-los em qualquer
quero expor com mais pormenor e explicar com maior clareza
todo este assunto. Para tanto, é nece ssá rio mostrar, primeiro,
língua humana e que, além disso, introduziram na religião tan - que o conhecimento intelectual, isto é, exacto de Deus não é um
tas matérias de especulação filosófica que a Igreja mais parece dom comum a todos os fiéis, como o é a obediência; em segun-
uma academia e a religião uma ciência, ou melhor, uma alterca- do lugar, que o conhecimento que Deus, por intermédio dos
ção. Em boa verdade, nem sequer é para admirar que homens profetas, exigiu a todos sem excepção e que cada um é obriga -
que se gabam de possuir uma . luz sobrenatural não queiram con- do a possuir não é senão o conhecimento da divina justiça e
siderar-se inferiores em conhecimentos aos filósofos, que nada caridade. Qualquer destes pontos se demonstra facilmente pela
mais têm senão a luz natural. O que · seria pàra admirar era se Escritura.
eles ensinassem algo de novo . no campo da pura espec.ulação, O primeiro conclui-se, com toda a evidência, do Êxodo,cap. VI,
l168 J algo que não fosse outrora extremamente banal entJ;:e.:os fiJóso- 3, onde Deus, para designar a singular graça que concedeu a
fos pagãos, a quem, no entanto, eles acusam de serem cegos. Moisés, diz: e revelei-mea Abraão,a Isaace a Jacobcomo Deus Sadai, [1691
Se, com efeito, se averiguar que mistérios eles vêem escondidos mas não me conhecerampelo meu nome de Jeová.Para melhor com-
na Escritura, decerto não se encontra nada a não ser invenções preensão desta passagem, convém notar que EI Sadai significa,
de Aristóteles e de Platão ou de qualquer outro parecido, as em hebraico, «Deus que basta», porque dá a cada um o que lhe
quais, na maior parte dos casos, · seria mais fácil um qualquer basta. E embora Sadai se empregue muitas vezes isoladamente
idiota imaginá-las a sonhar do que um grande letrado descobri- para significar Deus, não há dúvida de que está sempre suben-
-las a partir da Escritura 3 • tendida a palavra EI (Deus). É de no tar também que não se
Não queremos, todavia, assegurar absolutamente que nada encontra na Escritura nenhum nome, além de Jeová, que desig-
que seja de pura especulação pertence à doutrina da Escritura, ne a essência absoluta de Deus, sem relação com as coisas cria-
pois no capítulo anterior referimos como fundamentais algumas das . Por isso é que os Hebreus pretendem que esse é o único
coisas desse género. O que pretendo dizer é apenas que elas nome próprio de Deus, enquanto os outros são apelativos. E,
são muito poucas e muito simples. Quais sejam e por que méto- realmente, os restantes nomes de Deus, sejam eles substantivos
do as podemos determinar, eis o que me proponho apresentar ou adjectivos, são atributos 6 que convêm a Deu~ na medida em
no presente capítulo. E não será difícil, agora que já sabemos que este se considera em relação às coisas criadas ou se mani-
que o objectivo da Escritura não foi ensinar as ciências, daí se festa através delas: por exemp lo, EI (ou, com a letra He paragó-
podendo facilmente concluir que ela não exige dos homens senão gico, Eloah), que não significa senão «o poderoso», como é sabi-
a obediência e condena a insubmissão, não a ignorância. Depois, do, e que só convém a Deus no sentido de «o poderoso por
como a obediência a Deus consiste unicamente em amar o pró- excelência», tal como quando chamamos a Paulo o Apóstolo. Por
ximo (pois quem ama o próximo com a intenção de obedecer a outro lado, com esse nome explicam-se as qualidades da sua
Deus, esse, como diz Paulo na Epístola aos Romanos, cap. xrn, 8, potência, tal como: EI (poderoso) grande, tremendo, justo, mi-
cumpriu a lei), segue-se que a única ciência 4 recomendada pela sericordioso, etc.; ou, então, para indicar em simultâneo todas
Escritura é a que é necessária a todos os homens para que pos - estas qualidades, usa -se a palavra no plural mas com significado
sam obedecer a Deus segundo este preceito, ciência sem a qual singular, o que é frequentíssimo na Escritura. Ora, se Deus diz
eles serão necessariamente insubmissos ou, pelo menos, impre- a Moisés que os antepassados não o conheceram pelo nome de
parados para obedecer. Quanto às restantes especulações, que Jeová, é porque eles não conheceram nenhum atributo de Deus
não visam directamente este objectivo, quer contemplem o co- que traduza a sua essência absoluta, mas unicamente os seus
nhecimento de Deus ou o das coisas naturais, não dizem res- efeitos e promessas, isto é, a sua potência enquanto manifestada
peito à Escritura e devem, por conseguinte, estar separadas da através das coisas visíveis. E isto não é dito por Deus a Moisés
religião reveladas . para os acusar de infidelidade; pelo contrário, é para elogiar a
Embora, como dissemos, qualquer um possa vê-lo facilmen- sua credulidade e a sua fé, pois apesar de não terem também
te, contudo, uma vez que isto é decisivo para toda a religião, um conhecimento especial de Deus como o de Moisés, mesmo
11f
f1
li! 302 303
assim acreditaram que as promessas de Deus eram firmes e ina- esse nome, além de que, no cap. rn, 13, do mesmo livro, Moisés
balávei s, e não fizeram como Moisé s, que, embora tivesse ideias deseja conhecer o nome de Deus : se porventura ele já fosse an -
mais elevadas sobre Deus, duvidou das suas promessas e objec- teriormente conhecido, Moisés, pelo menos, deveria conhecê-lo.
tou a Deus que, em lugar da salvação prometida, tinha mudado A conclusão, portanto, é, como nós pretendíamos, que os fiéis
para pior a condição dos Judeus. Assim sendo, uma vez que os patriarcas ignoraram esse nome de Deus e que o conhecimento
antepassados ignoravam o nome próprio de Deus e Deus refere de Deus é um dom, não um mandamento.
este facto a Moisés para louvar o seu ânimo simples e a .sua ~é, É altura de passarmos, então, ao segundo ponto, ou seja,
e ao mesmo teinpo para lembrar a sihgú..lar graça concedida a de mostrar que Deus não exige aos homens, através dos profe-
ele, Moisés, há que concluir daí, com toda a evidência, aquilo tas, que conheçam dele outra coisa que não seja a justiça e a
que tínhamos afirmado em prÍII].eiro iugar, ou seja, que n:enhum caridade divinas, quer dizer, aqueles atributos que os homerts
[1701 mandamento obriga os homens a· conhecer os atributos de beus, podem imitar mediante uma certa regra de vida . É o que Jere- [1711
uma vez que tal conhecimento é um dom péculia 'r concediâo mias ~nsina em termos muito explícitos. Diz ele, falando do rei
apenas a alguns fiéis. Nem merece a pena demonstrá-lo por meio Josias, no cap. XXII, 15, 16: na verdade, o teu pai comeu e bebeu,
de vários exemplos da Escritura. Quem, com efeito, não vê que julgou e fez justiça, e por isso prosperou;atendeu aos direitosdo pobre
os fiéis não tiveram todos igual conhecimento de Deus e que e do indigente, e por isso prosperou;porque (note-se bem) isto é co-
ninguém pode ~er sábio por decreto, da mesma forma que não nhecer-me,disse Jeová. Não menos claro é o que vem no cap. IX,
pode viver nem existir? Homens, mulheres, crianças, todos po- 23: mas cada um vanglorie-seapenasde me compreendere de saber que
dem igualmente obedecer por mandamento, mas não ser sábios. eu, Jeová,pratico a caridade,o discernimentoe a justiça sobrea terra,
E se alguém disser que não é necessário compreender os atribu- porque é isso que me agrada,diz Jeová. A mesma coisa se conclui ·
tos de Deus, mas simplesmente acreditar, sem demonstração, também do P.xodo,cap. XXXIV, 6, 7, onde Deus não revela a Moi-
está, com certeza, a delirar. Porque as coisas invisíveis, que são sés, que deseja vê-lo e conhecê-lo, nenhum outro atributo a não
objecto só da mente, não podem ser vistas por outros olhos que ser os que manifestam a justiça e a caridade divinas. Por últi-
não sejam as demonstrações. E quem não as possuir não verá mo, é sobretudo de referir aqui aquela passagem de João, da
absolutamente nada de tais coisas, além de que tudo quanto qual voltaremos a falar nos capítulos seguintes, que explica Deus
repete po.r ouvir dizer sobre tais assuntos afecta ou reflecte tanto unicamente pela caridade, já que ninguém o viu, concluindo que
a sua mente como as palavras de um papagaio ou de um autó- tem realmente Deus e conhece-o aquele que tem a caridade. Je-
mato, que falam sem lógica nem sentido. remias, Moisés e João resumem, portanto, o conhecimento de .
Antes de passar a outros assuntos, tenho ainda de mostrar Deus obrigatório para todos a muito pouca coisa e fazem-no

i a razão por que no Génesis se afirma frequentemente


patriarcas pregaram em nome de Jeová, coisa que parece intei-
ramente contrária ao que atrás ficou dito. Se atendermos, po-
rém, àquilo que mostrámos no cap. vm, poder-se-á facilmente
que os consistir, tal como nós pretendíamos, apenas nisto: Deus é su-
mamente justo e sumamente misericordioso, ou seja, Deus é o
único modelo da verdadeira vida 7• A isto acresce que a Escri-
tura não dá expressamente nenhuma definição de Deus, não pres-
conciliar ambas as coisas. De facto, nesse capítulo, mostrámos creve que tenham de se admitir outros atributos além dos que
que o autor do Pentateuco não designa as coisas e os lugares acabámos de mencionar, nem recomenda explicitamente mais ne-
exactamente pelos nomes que tinham no tempo de que está a nhum. Donde se conclui que o conhecimento intelectual de Deus,
falar, ma,s sim pelos que eram mais conhecidos no seu próprio que considera a sua natureza tal como ela é em si mesma, natu-
tempo. Por isso, no Génesis, o Deus anunciado pelos patriarcas é reza esta que os homens não podem imitar através de qualquer
designado pelo nome de Jeová, não porque os antigos o conhe- regra de vida ou sequer tomar como modelo para instituir a
cessem por esse nome, mas por ser um nome que despertava verdadeira regra de vida, não concerne de modo algum à fé
entre os Judeus o maior respeito. É isto, note-se, o que tem nem à religião revelada, podendo, por conseguinte, os homens
necessariamente de se afirmar, já que neste nosso texto do P.xodo errar a respeito dele sem que isso constitua um crime de bradar
se diz expressamente que os patriarcas não conheciam Deus por ao céu.
11

304 305
- ~

Não é de estranhar, pois, que Deus se tenha adaptado às irna-


ginações e às opiniões preconcebidas dos profetas, ou que os fiéis
tenham sustentado pontos de vista diferent _es sobre Deus, como
nós mostrámos, por numerosos exemplos, no cap. n. Tão-pouco
surpreende que os livros sagrados falem frequentemente de Deus
com tão pouca propriedade, e lhe atribuam, não apenas mãos,
(1721 pés, olhos, orelhas, mente e movimento local 8, mas também
emoções, tais ·como o ser ciumento, misei"icordioso, etc., e que,
CAPITULO XIV (173]
finalmente, o pintem como um juiz, :sentado .nos céus sobre um
trono real, com o Cristo à sua direita. Porque eles falam -s~gun-
ONDE SE DETERMINA O QUE É A FÉ,
do a capacidade de compreensão · do vuigo, ao qual -a -Escrltura QUEM SÃO OS FIÉIS, QUAIS OS FUNDAMENTOS DA FÉ
não pretende tomar sábio mas obediente. O comum dos teófo- E, FINALMENTE, SE SEPARA A FÉ DA FILOSOFIA
f gos, todavia, sustentou que se deve interpretar metaforicamente
aquilo que a luz natural lhes permitiu ver que não convinha à
111· natureza divina, ao passo que tudo aquilo que escapa à sua ca-
'1 pacidade de compreensão se deverá aceitar à letra. Porém, se Para se ter um verdadeiro conhecimento do que é a fé, tor-
todas as passagens daquele género que se encontram na Escri-
r tura tivessem obrigatoriamente de se interpretar e entender
na-se necessário, em primeiro lugar, saber que a Escritura está
adaptada à compreensão, não só dos profetas, mas também do
metaforicamente, a Escritura não teria sido escrita para o povo vulgo, incoerente e inconstante, dos Judeus. Por muito pouca
e para o vulgo ignorante, mas unicamente para os especialistas, atenção que preste, ninguém pode ignorar isto. Quem, com efei-
designadamente os filósofos. Mais ainda, se fosse ímpio acredi- to, aceitar indiscriminadamente como doutrina universal e abso-
tar piamente e com simplicidade naquilo que acabámos de refe- luta sobre Deus tudo aquilo que vem na Escritura, sem identifi-
rir acerca de Deus, então os profetas deveriam ter tido o maior car com cuidado o que nela está adaptado à compreensão do
cuidado, se mais não fosse por atenção à incapacidade do vul- vulgo, será impossível não confundir as opiniões deste com a
go, em evitar semelhantes frases e, pelo contrário, ensinar clara doutrina divina, não apregoar como ensinamentos divinos o que
e explicttamente, antes de mais os atributos de Deus, sob a for- não passa de invenções e caprichos dos homens e não abusar,
ma em que todos são obrigados a acreditar neles, o que não assim, da autoridade da Escritura. Quem é que não vê que resi-
aconteceu em parte alguma. Não se pode, pois, acreditar que as de aqui a principal razão por que os membros das seitas ensi-
opiniõe~ absolutamente consideradas e sem ter em conta as nam tantas e tão diferentes opiniões como artigos de fé, e to-
1
obras, tenham em si algo de piedoso ou de ímpio 9; o que há das baseadas em muitos exemplos tirados da Escritura? Lá diz
que dizer é que o homem acredita em algo, pia ou impiamente, aquele velho ditado holandês: geen ketter wnder letter 1.
• 1
só na medida em que as suas opiniões o levam à obediência ou, De facto, os livros sagrados não foram escritos por um único
pelo contrário, delas retira permissão para pecar ou para se re- autor nem para o vulgo de uma só época, mas por muitos ho-
voltar . Assim, se alguém que acredita em coisas verdadeiras se mens, com maneiras de ser diferentes e de épocas igualmente
tomar desobediente, a sua fé será realmente ímpia; se, pelo con- diferentes. Se quiséssemos contar o tempo que vai do primeiro
trário, acreditar em coisas falsas mas for obediente, a sua fé ao último, teríamos perto de dois mil anos ou talvez muito mais.
será piedosa. Mostrámos, com efeito, que o verdadeiro conheci- Não queremos, porém, acusar de impiedade os adeptos das
mento de Deus não é um mandamento, mas um dom divino, e várias seitas por adaptarem às suas opiniões as palavras da
que Deus não exigiu dos homens nenhum outro conhecimento Escritura. Porque da mesma forma que ela foi antigamente adap-
senão o da justiça e caridade divinas, conhecimento este que tada à compreensão do vulgo, assim também será licito a cada
não é necessário para a ciência, mas apenas para a obediência. um adaptá-la às suas opiniões, se vir que desse modo poderá
obedecer a Deus, de ânimo ainda mais consentâneo, no que toca

306 307
- ,r

à justiça e à caridade. Acusamo-los é de não quererem reco-


nhecer aos outros a mesma liberdade e perseguirem como ini-
mas para todos os homens, sem distinção de idade ou de nasci-
mento. Bastaria isto para se poder concluir com toda a evidên-
migos de Deus todos os que não pensam como eles, por mais cia que, por ordem da Escritura, só somos obrigados a acredi -
honestos e praticantes da verdadeira virtude que sejam, ao mes- tar naquilo que é absolutamente necessário para cumprir este
mo tempo que estimam como eleitos de Deus os que com eles mandamento. Por isso, este mesmo mandamento é o único cri-
concordam em tudo, por mais impotentes de ânimo que sejam 2. tério de toda a fé universal e só em função dele devem ser
Mais criminoso do que isto, e . mais nocivo para o Estado, _é determinados todos os dogmas da fé que cada um é obrigado a 11751
1 n. impossível imágmár alguma coisa! Daí ·que~ ·para determinar até abraçar.
11741 onde vai, em matéria de fé; a- liberd~de de .cada um pensar o Uma vez que isto é absolutamente evidente e que tudo pode
que quiser e quais são aqueles qtie temos de considerar' .c_onio legitimamente deduzir-se a partir apenas desse fundamento, ou
:11 fiéis, não obstante a diversidade das suas maneiras . de ver, terá apenas pela razão, ajuíze cada um como é que foi possível sur-
de se definir o que é a fé e quais às seus princípios fundamen- girem tantas dissensões na Igreja, e se não terá havido outras
., tais. É isto que me proponho fazer no presente capítulo, além causas para além das que dissemos no início do cap. VII. É por
da distinção entre a fé e a filosofia, que constitui o . objectivo isso mesmo que eu sou obrigado a mostrar aqui a forma de
principal de toda esta obra. proceder e o mé todo a seguir na determinação dos dogmas da
Por uma questão de método, recordemos aquilo que é o fé a partir do fundamento que descobrimos. Se o não fizesse, e
principal intento de toda a Escritura, dado que este indicar-nos-á se não definisse a este respeito regras precisas, julgar-se-ia, com
o verdadeiro critério para definir a fé. No capítulo precedente, razão, que até aqui eu pouco tinha adiantado, porquanto seria
dissemos que o objectivo da Escritura é apenas ensinar a obe- lícito a qualquer um inventar aquilo que lhe apetecesse, a pre-
diência, coisa que ninguém pode contestar. Quem, com efeito, texto de que era um meio necessário para a obediência, desig-
não reconhecerá que tanto um como o outro Testamento mais nadamente quando fosse questão dos at~ibutos divinos.
não são que uma lição de obediência? Ou que o seu único objec- Para tratar, pois, metodicamente todo este problema, come-
tivo é fazer com que os homens obedeçam com sinceridade? çarei pela def~@.O da fé, a qual, com base no fundamento que
Sem querer voltar agora àquilo que mostrei no capítulo ante- se estabelêceu, deve definir-se dizendo que ela _não é senão o
rior, Moisés não tentou convencer os Israelitas pela razão, mas pensar acerca de Deus aquelas coisas que, se forem ignoradas,
obrigá-los por um pacto, juramentos e benefícios. Além disso, desaparece a obediência a Deus e que, pressuposta esta obediên-
intimou o povo com castigos e exortou-o com recompensas a cia, elas têm necessariamente de se pressupor também. É tal a
obedecer às leis, processos todos eles adequados apenas à obe- clareza desta definição e tanta a evidência com que decorre do
diência e não à ciência. A doutrina evangélica, todavia, não con- que já demonstrámos, que não precisa de nenhuma explicação.
tém senão a simples fé: crer em Deus e reverenciá-lo ou, o que Mostrarei, no entanto, em poucas palavras, aquilo que daí re-
vem a dar no mesmo, obedecer-lhe. Não tenho, pois, necessi- sulta. Assim:
dade, para demonstrar uma coisa tão evidente, de acumular tex- 1 - A fé pode salvar, não por si mesma, mas só em função
tos da Escritura que recomendam a obediência e que são nume- da obediência, ou, como diz Tiago, cap. 11, 17, a fé sem obras é
rosos em ambos os Testamentos. Depois, a própria Escritura morta (vide, sobre este ponto, todo o capítulo citado deste após-
também ensina com toda a clareza e em muitas passagens o que tolo).
cada um deve fazer para agradar a Deus, quando diz que toda 2 - Em consequência, aquele que na verdade é obediente
a lei consiste unicamente em amar o próximo. Nessa medida, possui necessariamente a fé verdadeira que leva à salvação, pois,
ninguém pode negar que aquele que ama o próximo como a si como dissemos, verificando-se a obediência, verifica-se necessa-
mesmo porque Deus manda é realmente obediente e feliz se- riamente a fé. É também o que diz explicitamente o mesmo após-
gundo a lei, enquanto aquele que o odeia e despreza é rebelde tolo, cap. II, 18: mostra-mea tua fé sem as obrase eu mostrar-te-eia
e insubmisso. Por último, não há ninguém que não reconheça minha fé pelas minhas obras. E João, na EpístolaI, cap. rv, 7 e 8:
que a Escritura não foi escrita e divulgada só para especialistas, quem ama (o próximo) nasceu de Deus e conheceDeus; quem não

308 309
..
ama não conhece Deus, pois Deus é caridade.De onde se conclui, elementos devem inferir-se todos do princípio universal que já
uma vez mais, que ninguém pode ser considerado fiel ou infiel expusemos e da finalidade única de toda a Escritura, a menos
a não ser pelas suas obras 3. Se as obras forem boas, quem as que se pretenda acrescentar aquilo que nos apetecer. Tal defini-
pratica é fiel, mesmo que discorde dos outros fiéis no que res- ção não exige expressamente dogmas verdadeiros, exige, sim,
peita aos dogmas; se, pelo contrário, as obras forem más, ele é dogmas que são necessários para a obediência, isto é, que con-
infiel, mesmo que, nas palavras, concorde com os fiéis. Porque, firmem o ânimo no amor do próximo, pois só nessa medida
havendo obediência, necessariamente haverá fé, e a fé sem obras cada um está em Deus (para falar como João) e Deus está em
é morta. É o que João ensiná expressamente, no vers. 13 ·do cada um.
mesmo capítulo: por isto -: diz .o apó~tolo - sabemosque permane- Dado, pois, que a fé de cada um só se pode considerar
cernasnele e que ele permanece.em. nós:·porque nos deu do seu espírito, piedosa ou ímpia consoante a obediência ou a insubmissão, e
' 11761
quer dizer, a caridade. Tinha, eféctivamente, dito antes quê Deus não consoante a verdade ou a falsidade, e dado que ninguém
é caridade e conclui daí (ou seja; dos princípios ass im admiti- duvida que a maneira de ser habitual dos homens é extrema- 117'71
dos) que quem possui a caridade possui realmente o espírito de mente diversa, que nem todos estão de acordo acerca de tudo
1i
il Deus. Além disso, como ninguém alguma vez viu Deus, o após- e que, pelo contrário, as opiniões regem os homens de maneira
1t tolo conclui que ninguém sente ou se apercebe de Deus a não diferente e que as mesmas que levam um à devoção provocam
ser pela caridade para com o próximo, e que é, por conseguin- noutro o escárnio e o desprezo, segue-se que à fé católica, ou
te, impossível conhecer outro atributo de Deus além desta mes- seja, universal, não pertence nenhum dogma a respeito do qual
'J
ma caridade, na medida em que participamos dela. se possa gerar alguma controvérsia entre homens honestos. Os
Não sendo peremptórias, estas razões explicam, todavia, com dogmas deste tipo podem, com efeito, ser piedosos relativamente
bastante clareza o que João tinha em mente. Mas são, de longe, a um e ímpios relativamente a outro, porquanto eles devem ser
ainda mais claras as que vêm no cap . II, 3, 4, da mesma epístola, julgados apenas pelas obras. Assim, só pertencem à fé universal
onde ele ensina, em termos os mais explícitos, o que pretende- aqueles dogmas que a obediência a Deus pressupõe absoluta-
mos aqui mostrar: por isto - diz - sabemosque o conhecemos:se mente e cuja ignorância torna a obediência de todo em todo
observamosos seus preceitos.Aquele que diz «eu conheço-o»e não ob- impossível; quanto aos outros , cada qual, na medida em que se
serva os seus preceitos,esse é mentirosoe nele não está a verdade. Uma conhece melhor que ninguém , deve julgar o que melhor lhe pa-
vez mais, conclui-se que só são realmente anticristos 4 aqueles recer para se fortalecer no amor da justiça. Com tal critério,
que perseguem homens honestos e amigos da justiça pelo facto penso, não haverá na Igreja lugar para controvérsias. Nem há
de discordarem deles e não defenderem os mesmos dogmas. que ter receio, a partir de agora, de enumerar os dogmas da fé
Aqueles que, efectivamente, amam a justiça e a caridade, sabe- universal, isto é, os dogmas fundamentais que toda a Escritura
mos, só por isto, que eles são fiéis; e quem persegue os fiéis é visa estabelecer 5 e que (conforme resulta com toda a evidência
um anticristo. do que expusemos neste capítulo e no anterior) devem conver-
Uma última conclusão é que a fé não requer tan to dogmas gir no seguinte: existe um ser supremo que ama a justiça e a
verdadeiros mas dogmas piedosos, isto é, que movem o ânimo caridade, ao qual, para ser salvos, todos têm de obedecer e ado-
para a obediência, embora na maioria deles não haja nem som- rar através do culto da justiça e da caridade para com o pró-
bra de verdade: basta que aquele que os abraça ignore que eles ximo. A partir daí, é fácil determiná-los a todos, e verificar que
são falsos, pois de outra forma seria necessariamente insubmisso. não há mais nenhum além destes:
Como é que alguém que procura amar a justiça e obedecer a 1- Existe um Deus, isto é, um ser supremo, sumamente
Deus podia, com efeito, adorar como divino o que ele sabe que justo e misericordioso, ou modelo da verdadeira vida: com efeito,
é estranho à divina natureza? No entanto, os homens podem quem não sabe ou não acredita que ele existe não lhe pode obe-
errar por simplicidade de ânimo e a Escritura, como já demons- decer ou reconhecê-lo como juiz.
trámos, não condena a ignorância mas só a desobediência. Aliás, 2 - Deus é único: ninguém pode pôr em dúvida que tam-
isto resulta necessariamente da simples definição de fé, cujos bém isto se requer absolutamente para que Deus suscite a máxi-

310 311

ma devoção, admiração e amor, visto que a admiração e o amor rege as coisas pela liberdade ou pela necessidade da natureza,
nascem apenas da excelência de um em relação aos demais. se prescreve leis tal como faz um príncipe ou se as ensina como
3 - Deus está presente em toda a parte, ou seja, nada lhe é verdades eternas, se o homem obedece a Deus por livre arbí-
oculto: se se acreditasse que para ele havia coisas escondidas, trio ou pela necessidade do decreto divino, se, enfim, a recom-
ou se se ignorasse que ele vê tudo, então duvidar-se-ia ou igno- pensa dos bons e o castigo dos maus é natural ou sobrenatural.
fill•
1; rar-se-ia mesmo a equidade da sua justiça, com a qual dirige tudo. Do pon to de vista da fé, repito, não tem qualquer importância

l; 4 - Deus tem, sobre todas as coisas, direito e poder _sobe- a maneira como cada um entende estas e outras coisas pareci-
;J
rano e tudo quanto faz · é por séu benêplácito absoluto e graçà das, contanto que daí se não tente extrair maior liberdade para
singular, e não por coacção ·de um d_ireito: na verdade, todos pecar ou para ser menos obediente a Deus. Além disso, como já
t.p.
1!
estão obrigados a obedecer-lhe em absoluto, mas ele não está dissemos atrás, cada um está obrigado a adaptar estes dogmas
obrigado a nada perante ninguém:. ·· · da fé à sua capacidade de compreensão e a interpretá-los como
11
5 - O culto e a obediência a Dêus consistem unicamente
justiça e na caridade, isto é, no amor para com o próximo.
ria lhe parecer que é mais fácil aceitá-los sem reticências e de ânimo
plenamente convicto, a fim de obedecer a Deus com total aquies-
6 - Só aqueles que obedecem a Deus, seguindo esta norma cência. Já o assinalámos, de resto: tal como outrora a fé foi re-
[178] de vida, obtêm a salvação, ao passo que os outros, os que vi- velada e escrita de acordo com a capacidade de compreensão e
vem sob o império dos desejos, estão perdidos: se os homens as opiniões dos profetas e do vulgo de então, assim também (179]
não acreditassem firmemente nisto, não haveria nenhuma razão agora cada um deve adaptá-la às suas opiniões de modo a abraçá-
para preferirem obedecer antes a Deus do que aos seus desejos.
-la sem reserva mental nem hesitações. Conforme nós mostrá-
7 - Finalmente, Deus perdoa os pecados aos que se arrepen-
mos, a fé não exige tanto a verdade quanto a piedade e só é
dem: de facto, como não há ninguém que não peque, se não se
piedosa e pode salvar em função da obediência, pelo que nin-
admitisse isto, todos desesperariam da sua salvação e não teriam
guém é fiel a não ser em função ·da obediência. Não é, por tan-
qualquer motivo para acreditar na misericórdia divina. Mas aquele
to, quem apresenta os melhores argumentos que necessariamente
que acredita firmemente que Deus, pela misericórdia e graça
demonstra maior fé, mas sim quem apresenta as melhores obras
com que dirige todas as coisas, perdoa os pecados dos homens,
de justiça e caridade. Quão salutar e necessária seja uma tal
1: e que por este motivo se inflama ainda mais de amor para com
doutrina para a república, se queremos que os homens vivam
Deus, esse conhece verdadeiramente Cristo segundo o Espírito
e Cristo está nele. em paz e concórdia, e quantos e quão graves razões de distúr-
Tudo isto, ninguém o pode negar, é absolutamente necessá- bios e crimes ela afasta, deixo isso à consideração de cada um.
rio ser conhecido para que todos os homens sem excepção pos- Antes de passar adiante, convirá aqui frisar que, por aquilo
sam obedecer a Deus de acordo com a prescrição da lei anterior- que acabamos de mostrar, é fácil responder às objecções levan-
.,.. mente explicada, uma vez que, se se suprime qualquer destes tadas no cap. 1, quando tratámos de Deus a falar aos Israelitas
dogmas, suprime-se também a obediência. Quanto a saber o que do alto do Sinai: de facto, embora essa voz que eles ouviram
é Deus, quer dizer, o modelo da verdadeira vida, se ele é fogo, não pudesse oferecer a esses homens nenhuma certeza filosófica
espírito, luz, pensamento, etc., isso não tem nada a ver com a ou matemática da existência de Deus, era, no entanto, suficiente
fé, tal como o saber por que é que ele é o modelo da verda- para os arrebatar de admiração perante Deus, tal como já antes
deira vida, se é porque tem o ânimo justo e misericordioso ou o conheciam, e levá-los à obediência, única finalidade daquele
porque todas as coisas são e agem por ele e, consequentemente, espectáculo. Deus, efectivamente, não pretendia ensinar aos Israe-
é também por ele que nós compreendemos e vemos o que é litas os atributos absolutos da sua essência (ainda não tinha, até
verdadeiramente justo e bom. Seja o que for que cada um pense então, revelado nenhum), mas sim vergar o seu ânimo insub-
a respeito de tais questões, é indiferente. misso e trazê-los à obediência. Foi por isso que não se lhes di-
Também não interessa para a fé se uma pessoa acredita que rigiu com argumentos mas com estrépito de trombetas, trovões
Deus está em toda a parte segundo a essência ou a potência, se e relâmpagos (lxodo, cap. xx, 20).

312 313
,,
Resta, enfim, demonstrar que entre a fé, ou teologia, e a
filosofia não existe nenhuma relação nem qualquer afinidade,
coisa que não pode ser ignorada por ninguém que conheça o
objectivo e o fundamento destas duas disciplinas em tudo diver -
gentes . O objectivo da filosofia é unicamente a verdade; o da
fé, como ficou abundantemente demonstrado, é apenas a obe -
diência e a piedade. Depois, os fundamentos da filosofia são as
noções comuns, ·devendo toda ela ser deduzida a partir apenàs
CAPtruLO XV (180]
.. da natureza; os da fé, por seu .turno,. são as_narrativas históri-
' cas e a língua, pelo que não podemos deduzi-la senão da: Escri- ONDE SE MOSTRA QUE NEM A TEOLOGIA
;:, tura e da revelação, conforme demonstrámos nó cap . .YIJ. ·A fé, ESTÁ AO SERVIÇO DA RAZÃO, NEM A RAZÃO DA TEOLOGIA,
portanto, concede a cada um a máxima liberdade ·de 'filosofãr , E POR QUE MOTIVO ESTAMOS PERSUADIDOS
(:~ (1801 de modo que se pode, sem incorrer em crime, pensar o que se
quiser sobre todas as coisas . Os únicos que ela condena como
DA AUTORIDADE DA SAGRADA ESCRITURA

heréticos e cismáticos são os que ensinam opiniões que incitam
à insubmissão, ao ódio, às dissenções e à cólera; em contrapar-
tida, ela só considera fiéis aqueles que, tanto quanto a sua ra- Entre os que não sabem separar a filosofia da teologia, dis-
zão e as suas capacidades lhes permitem, incitam à justiça e à cute-se se é a Escritura que deve estar ao serviço da razão ou se,
caridade. pelo contrário, é a razão que deve estar ao serviço da Escritura; ·
Por último, e tendo em conta que o que nós aqui apresenta- por outras palavras, se é o sentido da Escritura que deve adap-
mos constitui o principal objectivo do presente tratado, gosta- tar-se à razão ou esta que deve adaptar-se à Escritura. Os cépti-
ria, antes de continuar, de pedir encarecidamente ao leitor que cos, que negam a certeza da razão, defendem esta última tese,
se dignasse ler com particular atenção e reexaminar, uma e ou- ao passo que a primeira é defendida pelos dogmáticos 1. É, to-
tra vez, estes dois capítulos. Oxalá fique persuadido de que não davia, claro, por aquilo que já dissemos, que tanto uns como os
escrevemos pelo desejo de introduzir novidades, mas para cor- outros estão completamente errados. Com efeito, qualquer que
rigir coisas que andam distorcidas e que esperamos, um dia, seja a tese que se adapte, é necessário adulterar, ou a razão, ou
ver finalmente emendadas. a Escritura. Mostrámos que a Escritura não ensina questões filo-
sóficas, mas apenas a piedade, e que tudo quanto ela contém
está adaptado à compreensão e às opiniões preconcebidas do
vulgo. Quem, por conseguinte, a quiser adaptar à filosofia tem
..
:
de atribuir falsamente aos profetas muitas coisas que eles nem
por sonhos pensaram e de interpretar mal o seu pensamento .
Quem, pelo contrário, faz da razão e da filosofia a serva da
1
1 teologia tem de admitir como coisas divinas preconceitos do
vulgo de tempos antigos, deixando que estes o ceguem e lhe
inundem a mente. Assim, um com a razão, o outro sem ela,
1; 1
hão-de ensandecer os dois.
O primeiro de entre os fariseus que defendeu abertamente
que se devia adaptar a Escritura à razão foi Maimónides, cuja tese [181]
recenseámos e refutámos com inúmeros argumentos no cap. vn.
Não obstante este autor ter gozado de grande autoridade entre
eles, a maior parte dos fariseus afastou-se dele nesta questão e

314 315
~
: "
aderiu à tese de um certo R. Jehudá Alpakhar 2, o qual, querendo
evitar o erro de Maimónides, caiu no erro contrário. Segundo
o pensamento dos profetas; mas , uma vez encontrado o verda -
deiro significado, temos necessariamente de recorrer ao juízo e
Alpakhar ·, a razão tem de ser serva da Escritura e subordinar- à razão para lhe podermos dar o nosso assentimento. É que, se
-se-lhe inteiramente . Julga, por isso, que não se deve explicar a razão, ainda que reclame contra a Escritura, deve contudo sub-
metaforicamente uma passagem da Escritura quando o sentido meter-se -lhe inteiramente, então eu pergunto: é com a razão ou
literal repugna à razão, mas unicamente quando ele repugna à sem ela e às cegas que o devemos fazer? Nesta última hipótese,
própria Escritura, isto é, aos dogmas que ela ensina claramente. agimos como tontos e sem juízo; na primeira, só por uma deci-
.lj, Com base nisto~ formula esta regra univérsa:l: tudo o que a Escri.: são racional aceitamos a Escritura e, por conseguinte, se esta esti-
tura ensina dogmaticamente ~-e .afirma .expressamente tem de se vesse em contradição com a razão, não a aceitaríamos. E quem,
admitir, por força da sua exclusiya · aútoridade, como absoluta~ pergunto eu, pode abraçar com a mente alguma coisa contra a
mente verdadeiro, não se encontrando na .Bíblia qualquer . outro qual a razão protesta? O que significa negar com a mente algu-
tt·~ dogma que de forma directa o contradiga; só implicitàinenté, ma coisa senão que a razão protesta contra ela 3? Realmente, é
isto é, na medida em que os modos de falar da Escritura pare- impossível não ficar espantado, quando querem submeter a razão,
cem muitas vezes supor o contrário daquilo que ela ensina ex- o maior dos dons, essa luz divina, à letra morta que a malícia
pressamente, razão por que só estas passagens se devem expli- humana pode ter falsificado; quando não se considera crime falar
car metaforicamente. Assim, por exemplo, a Escritura ensina com de forma indigna contra a mente, verdadeiro documento origi-
toda a clareza que Deus é único (Deut., cap. vr, 4) e em parte nal do verbo divino, e afirmar que ela está corrompida, cega e
nenhuma se encontra uma passagem que afirme directamente perdida, ao mesmo tempo que se tem como o maior dos crimes
que existem vários deuses. Mas há várias onde Deus fala de si pensar tais coisas da letra e imagem da palavra de Deus. Julgam
mesmo e onde os profetas falam de Deus no plural, modo este que é piedoso não se fiar na razão e no próprio juízo e que é
de falar que supõe que existem' diversos ·deuses, mas não traduz ímpio duvidar daqueles que nos transmitiram os livros sagra-
o sentido da · própria frase, devendo, por isso, todas as frases dos: mas isto não é piedade, é pura demência! Afinal, pergunto
assim explicar-se metaforicamente, não porque repugne à razão eu, o que é que os preocupa? O que é que receiam? Porventura
haver vários deuses, mas porque a própria Escritura afirma direc- a religião e a fé só se podem manter se os homens forem total-
tamente que Deus é único. Da mesma forma, porque a Escritura mente ignorantes e despedirem em definitivo a razão? Se é nisso
afirma (segundo julga Alpakhar) no Deuteronómio,cap. IV, 15, que que acreditam, então é porque a Escritura lhes inspira mais medo
Deus é incorpóreo, somos por isso, ou seja, por causa apenas . que confiança. Estamos, no entanto, longe de a religião e a pie-
dessa passagem e não da autoridade da razão, obrigados ··a dade quererem fazer da razão sua escrava, ou de a razão que-
acreditar que Deus não tem corpo e, por consequência, temos rer fazer o mesmo à religião, e de não poderem, na maior das
de explicar metaforicamente, em virtude apenas da autoridade concórdias, ocupar cada uma o seu próprio domínio. Já vere-
fl da Escritura, todas as passagens que atribuem a Deus mãos, mos esta questão, mas primeiro convirá analisar aqui a regra do
pés, etc., cujo modo de falar deixa supor que Deus é corpóreo. referido rabino.
É esta a tese de Alpakhar, a quem, aliás, eu louvo, por- Segundo Alpakhar, como já dissemos, nós somos obrigados
·:.t quanto quer explicar as Escrituras pelas Escrituras. Surpreende- a abraçar como verdadeiro tudo o que a Escritura afirma e a
i-!,p -me, no entanto, que um homem dotado de razão se esforce rejeitar como falso tudo o que ela nega. Mais ainda, a Escritura
[1s21 por destruí-la. É verdade que a Escritura se deve explicar pela nunca afirma ou nega expressamente o que quer que seja que se
1-· Escritura enquanto estamos a investigar o sentido das frases e revele contrário ao que afirmou ou negou numa outra passa-
gem. Trata-se, evidentemente, de duas afirmações temerárias.
1''' t Com efeito, e não falando já no facto de ele esquecer que a
• Lembro-me de ter Lido isto outrora na «Carta contra Maimónides », que Escritura consta de diversos livros e foi escrita em diferentes
se inclui entre as cartas que se dizem do próprio Mairnónides . épocas, para diferentes homens e, enfim, por diferentes autores,
,. Anotação XXVIII . Ver Interpret. Scripturae, p . 75. acresce que Alpakhar afirma isto com base na sua própria auto-

3 16 317
!11
..
JI ridade, visto nem a razão nem a Escritura dizerem algo de pa - seja fogo, ma s só implicit amente, havend o, portanto, que adapt á-
11 [183] recido . Ele deveria, pois, mostrar que todas aquelas passagen s -la à ante rior de modo a que não pareça contradizê-la, en tão,

lf
'd
1!,
que não estão em contradição com outras senão implicitamente,
podem sem dificuldade interpretar-se rnetaforicarnente a partir
seja, concedamos que Deus é fogo, ou melhor , deixemos isto de
parte, ainda assim não enlouqueçamos, com ele, e vejamos outro
da natureza da língua e do contexto, e bem assim que a Escri- exemplo. Samuel * nega explicitamente que Deus se arrependa [1 841
tura chegou até nós intacta. Mas, examinemos a questão por de urna decisão (ver Samuel, ,, cap. xv, 29), enquanto Jeremias
i!'i': ordem. afirma que Deus se arrepende do bem e do mal que tinha de-
Quanto ao ·primeiro ·ponto, eú pergunto: · no caso de a razãà cretado (ver Jeremias, cap. xvm, 8, 10). Em que ficamos? Porven-
,:1 protestar, teremos, ainda assim, .de abraçar com.o verdadeiro o tura não se opõem explicitamente estas duas afirmações? Qual
que a Escritura afirma e rejeitai; · corri.o falso o que ela nega? delas então se pretende interpretar metaforicamente? Ambas são
Dir -se-á, talvez, que não há nada · na Eséritura que repugne à universais e contrárias urna à outr a : o que urna afirma directa-
razão . Mas eu insisto que ela afirma e ensina éxplicitirneni:e quê mente, a outra directamente nega. De acordo com a sua regra,
Deus é ciumento (no próprio Decálogo, no P.xodo, cap. xxxrv, o nosso autor teria, portanto , de admitir a mesma coisa como
14 4, no Deut., cap. IV, 24, e em várias outras passagens), o que verdadeira e ao mesmo tempo rejeitá-la como falsa. Além disso,
repugna à razão e, no entanto, teríamos de o admitir corno ver- que importa que uma passagem não contradiga directa mas só
dadeiro. Inclusivamente, se houver na Escritura quaisquer pas- implicitamente uma outra, se o que está implícito é claro e se
sagens que dêem a entender que Deus não é ciumento, teriam tanto a natureza dessa passagem como o seu contexto não são
de interpretar-se metaforicamente para que não pareçam dar a passíveis de interpretação metafórica? E passagens destas en-
entender nada de semelhante. Da mesma forma, a Escritura diz contram -se muitas nos livros da Bíblia. Veja-se, a este respeito, ·
explicitamente que Deus desceu ao monte Sinai (P.xodo,cap. XIX, o cap. rr (onde mostrámos que os profetas sustentaram opiniões
20, etc.) e atribui-lhe outros movimentos locais, não ensinando diferentes e até contrárias) e em especial todas aquelas contra-
em parte alguma de mane ira explícita que Deus não se move, dições que, nos caps. IX e x, mostrámos existirem nas narrativas
pelo que também isso deveria ser admitido por toda a gente históricas. Nem é preciso recapitu lá-las agora todas; o que já
como verdadeiro; e se Salomão diz que Deus não está compreen- dissemos é suficiente para mostrar os absurdos que decorrem
dido em nenhum lugar (Reis, r, cap. VIII, 27), na med ida em que desta afirmação e desta regra, bem como a sua falsidade e a
ele não afirma expressamente que Deus não se move, só se po- precipitação do seu autor.
dendo deduzi-lo das suas palavras, há que interpretar aquela É por isso que nós rejeitamos, tanto a posição de Alpakhar,
passagem de modo a não parecer que ela nega em Deus o mo- como a de Maimónides, e temos por incontestável que nem a
vimento local. Pela mesma razão, os céus deveriam ser tidos teologia é serva da razão, nem a razão da teologia , possuindo
como a morada e o trono de Deus, uma vez que a Escritura o cada urna delas o seu próprio reino: a razão, como já dissemos,
afirma explicitamente. E, do mesmo modo, há todo um sem- o reino da verdade e do saber; a teologia, o reino da piedade e
-número de afirmações ditas de acordo com as opiniões dos da obediência . De facto, a potência da razão , tal como já de-
profetas e do povo, que só a razão e a filosofia, e não a Escri- monstrámos, não vai ao ponto de poder determinar que os ho -
tura, ensinam que são falsas e que, de acordo com este autor, mens possam atingir a beatitude só pela obediência e sem o
deviam todas tomar-se por verdadeiras, visto não ter, nesta ma- conhecimento das coisas. A teologia , porém , não diz outra coisa
téria, de se consultar a razão. senão isso, nem ordena senão a obediência, além de que não
Depois, é falso quando ele afirma que só implícita e não quer nem pode nada contra a razão : determina os dogmas da
directamente pode haver contradição entre duas passagens. Na fé, como mostrámos no capítulo anterior , mas só na medida em
realidade, Moisés afirma directamente que Deus é fogo (Deut. , que isso basta para a obediência ; quanto a determinar como é
cap. rv, 24) e directamente nega que Deus tenha qualquer seme-
IJ/; •'" lhança com as coisas visíveis (Deut., cap. N, 12). E se Alpakhar
pretende que esta passagem não nega directamente que Deus • Anotação XXIX. Interpret. Scripturae, p . 76 .

3 18 319
-
...
que eles devem exactamente ser entendidos do ponto de vista os próprios profetas, a quem primeiramente foi feita a revela-
da verdade, isso deixa-o à razão, que é autêntica luz da mente, ção e que, contudo, só tiveram dela uma certeza moral, como
sem a qual esta não vê senão sonhos e ilusões. E por teologia mostrámos no cap. 11 deste tratado. Estão, portanto, na via
entendo aqui precisamente a revelação, na medida em que esta errada os que se esforçam por estabelecer a autoridade da Escri-
indica o objectivo para o qual dissemos apontar a Escritura (a tura através de demonstrações matemáticas. A autoridade da
saber, a razão e o modo de obedecer, ou os dogmas da verda- Bíblia, com efeito, depende da autoridade dos profetas e não
deira piedade e da fé), quer dizer, aquilo a que se chama _com pode, por isso, ser demonstrada com argumentos mais fortes
[185] propriedade a palavra de Deus é que rião· consiste num deter- · do que aqueles com que outrora os profetas costumavam per- [1861
minado número de livros (sobre isto, v~ja-se 0. ~ap. xn). Tomada suadir o povo da sua autoridade. Até porque a nossa certeza a
assim a teologia, do ponto de vista dos seus preceitos -e . dos este respeito não pode repousar em nenhum fundamento que
ensinamentos que dá para a vida, ela está ínteiramente ·de acbrdo não seja aquele sobre o qual os profetas fundamentavam a sua
com a razão; do ponto de vista do seu intuito e finalidàde, não própria certeza e a sua autoridade.
a contradiz em nada; por conseguinte, é universal. No que toca A certeza dos profetas, como vimos, consistia em três coi-
à Escritura tomada no seu conjunto, também já mostrámos no sas: 1.0 imaginação viva e nítida; 2.0 um sinal; 3.0 por último, e
cap. VII que o seu sentido se devia determinar com base apenas acima de tudo, ânimo dado à justiça e ao bem. Fora isto, eles
na sua própria história e não na história universal da natureza, não se baseavam em quaisquer outros argumentos, pelo que tam-
que é fundamento só da filosofia. E nem devemos ficar preo- bém não podem ter demonstrado diferentemente a sua autori-
cupados se, depois de ter assim investigado o seu verdadeiro dade, quer ao povo, a quem outrora falaram de viva voz, quer
sentido, deparamos aí com alguma coisa que repugne à razão. a nós, a quem falam por escrito. Ora, a primeira, quer dizer, o
Porque tudo quanto possa existir desse género nos livros da imaginarem as coisas com nitidez, só podia ser evidente para
Bíblia, ou que os homens possam ignorar sem prejuízo da cari- eles; logo, toda a nossa certeza a respeito da revelação só pode e
dade, temos a certeza de que não concerne à teologia ou à pa- deve fundar-se nas duas restantes: o sinal e a doutrina. É, aliás,
lavra de Deus, e, consequentemente, cada um poderá julgar o o que Moisés também ensina expressamente. No Deuteronómio,
que quiser a tal respeito, sem que isso constitua crime. Concluí- cap. xvrn, ele manda o povo obedecer ao profeta que em nome
mos, portanto, sem qualquer reticência, que nem a Escritura se de Deus apresentar um sinal verdadeiro. Porém, se ele profe-
deve adaptar à razão, nem a razão se deve adaptar à Escritura. tizar algo de falso, ainda que seja em nome de Deus, manda
Todavia, se não podemos demonstrar pela razão a verdade que o condenem à morte, tal como aquele que quiser afastar o
ou falsidade do princípio fundamental da teologia, segundo o povo da verdadeira religião, mesmo que confirme a sua autori-
qual os homens se salvam apenas pela obediência, poder-se-á dade através de sinais e prodígios (sobre este ponto, ver Deut.,
objectar-nos por que é que acreditamos nisso. Se é sem a razão cap. xm). Donde se conclui que o verdadeiro profeta se distin-
e como cegos que o aceitamos, estaremos também a agir como gue do falso ao mesmo tempo pela doutrina e pelo milagre: é,
insensatos e sem discernimento; se, pelo contrário, pretendemos com efeito, esse que Moisés declara ser o verdadeiro e no qual
afirmar que esse fundamento pode ser demonstrado pela razão, manda que acreditem sem receio de qualquer fraude; em con-
nesse caso, a teologia será uma parte da filosofia e não deve trapartida, diz que são falsos e condena à morte aqueles que
separar-se dela. A isto respondo que admito absolutamente ser profetizarem algo de falso, ainda que seja em nome de Deus,
esse dogma fundamental da teologia impossível de investigar ou que ensinem falsos deuses, ainda que façam autênticos mila-
pela luz natural ou, pelo menos, que não houve ainda ninguém gres. Daí que, também nós, só por esta razão tenhamos de acre-
que o demonstrasse e, por isso, a revelação foi extremamente ditar na Escritura, ou seja, nos próprios profetas: a doutrina
necessária; no entanto, nós podemos usar o juízo para abraçar- confirmada por sinais. Ao vermos os profetas recomendarem
mos, pelo menos com uma certeza moral, aquilo que já foi reve- acima de tudo a caridade e a justiça, sem pretenderem qualquer
lado. E digo certeza moral, porque não há razão para aspirar- outra coisa, concluímos que não era por fraude, mas com since-
mos sobre isto a uma certeza maior do que aquela que tiveram ridade, que ensinavam que os homens se tornam felizes pela

320 321
--
'
1:i/:
l • '
1 obediência e pela fé; e como, além disso, confirmaram este ensina- a autoridade daquela só se reveste de algum brilho se for ilu-
' mento através de sinais, persuadimo-nos de que não o diziam minada pela luz natural da razão. E se, pelo contrário, se ga -
1
temerariamente nem estavam a delirar quando profetizavam 5 • bam de se basearem inteiramente no testemunho interior do
i
1

Se repararmos, aliás, que eles não deixaram nenhum ensinamento Espírito Santo e de só recorrerem à ajuda da razão por causa
moral que não esteja inteiramente de acordo com a razão, mais dos infiéis , ou seja, para os convencerem, não nos devemos fiar
convencidos ficaremos ainda, porquanto não é por acaso que a no que eles dizem, visto podermos facilmente mostrar que fa-
palavra de Deus _que fala nos profetas concorda em absoluto . lam assim inspirados pelos afectos ou pela vanglória. Com efeito,
com a palavra de Deus que fala em nós 6 . . .. resulta absolutamente evidente, do capítulo anterior, que o tes-
Quanto a estes ensinamentos, repHo; podénios deduzi-los temunho do Espír ito Santo só se manifesta nas boas acções, a
dos livros da Bíblia com tanta ·cert~za como antigamente eis- Ju-· que Paulo também chama, por esse motivo, na Epístolaaos Gála-
deus os deduziam ouvindo os profetas de viva voz ·. Mostrá: tas, cap. v, 22, frutos do Espírito Santo, e que este não é senão ll 88J
[187] mos, com efeito, lá atrás, no final do cap. xn, que a Escritura,
a tranquilidade interior que as boas acções produzem na mente.
no que respeita à doutrina e às principais narrativas históricas, No que toca, porém, à verdade à teza sobre as coisas ue
chegou às nossas mãos sem ser corrompida. Justifica-se, portanto, são e pura especu ação, nenhum espírito dá testemunho a não
que aceitemos este fundamento de toda a teologia e da Escri- ser a razão, dado que só ela, como já mostrámos, reivindica
tura, ainda que não se possa prová-lo por demonstração mate- para si o reino da verdade . Se, portanto, além deste, eles pre-
mática . Seria, na verdade, estupidez não querer aceitar uma coisa tendem ter um outro espírito que lhes dá a garantia da verda-
que é confirmada pelo testemunho de tantos profetas e da qual de, é porque se vangloriam com a mentira e falam só por pre-
vem tanta consolação para aqueles que pelo raciocínio não vão conceito inspirado pelos afectos; ou, então, é porque, cheios de
muito longe, uma coisa de que resulta não pouca utilidade para medo ainda assim não sejam vencidos pelos filósofos e publica-
a república e na qual, enfim, podemos acreditar sem o mínimo mente expostos ao ridículo, se refugiam no sagrado. Mas é inú -
perigo ou prejuízo, só porque não é possível demonstrá-la ma- til, pois a que altar se poderá acolher quem lesa a majestade da
tematicamente. Como se, para orientar sabiamente a nossa vida, razão?
só admitíssemos como verdadeiro aquilo de que não temos ne- Mas deixemo -los, pois julgo já ter feito o bastante pela mi-
nhuma razão para duvidar, ou como se a maior parte das nos- nha causa, mostrando em que medida a filosofia se deva sepa-
sas acções não fossem extremamente incertas e cheias de risco! rar da teologia e em que é que consiste essencialmente cada
Eu compreendo, claro, que aqueles que julgam que a filo- uma delas; mostrando, por outro lado, que nenhuma deve estar
sofia e a teologia se contradizem mutuamente e que, por esse subordinada à outra e que cada uma ocupa o seu reino sem
motivo, consideram que uma delas tem de ser desapossada do qualquer oposição da outra ; e mostrando, enfim, sempre que se
seu reino e há que abandonar uma ou outra, têm razão em pro- ofereceu uma ocasião, os absurdos, inconvenientes e danos cau-
curar estabelecer a teologia em fundamentos sólidos e em ten- sados pelo facto de os homens confundirem, de maneira sur-
tar demonstrá-la matematicamente. Quem, com efeito, a não ser preendente, essas duas disciplinas e não saberem distingui-las
um desesperado e insensato, pretenderia abandonar a razão, com rigor nem separá-las uma da outra.
condenar as artes e as ciências ou negar a certeza da razão? Antes de passar a outros assuntos, quero* aqui alertar ex-
Ainda assim, não podemos desculpá-los totalmente, já que eles pressamente (embora isto já tenha sido dito) para a utilidade e
querem chamar a razão em seu auxílio para depois a rejeitarem, a necessidade da Sagrada Escritura ou revelação, que considero
e procuram, mediante uma certa razão, tornar a razão incerta . enorme. Com efeito, uma vez que não podemos compreender
Mais ainda, quando tentam provar por demonstrações matemá- pela luz natural que a simples obediência é uma via para a sal-
ticas a verdade e a autoridade da teologia e retirar à razão e à
luz natural a sua autoridade, a única coisa que conseguem é
colocar a teologia sob o império da razão, parecendo supor que • Anotação XXX. lnterpret. Scripturae, p. 115.

322 323
~

vaç ão *, e uma vez que só a revelação e nsin a que isto acontece


por uma graça singular de Deus impo ssível de alcançar pela ra -
zão, segue -se que a Escritura veio trazer aos mo r tais um enor -
me consolo . É que todos, sem excepção , podem obedecer e só
um número muito reduzido, se o compararmo s com a totalida-
de do género humano, adquire o hábito da virtude conduzido
apenas pela razão. Assim, se não tivéssemos o testemunho da
Escritura, seriá caso para duvidár da sálvação de quase todos 7.
CAPfTuLOXVI [189]
111
1,
11 DOS FUNDAMENTOS DA REPÚBLICA,
I'
.. DO DIREITO NATURAL E CIVIL DE CADA UM
E DO DIREITO DOS SOBERANOS

Até aqui, tratámos de separar a filosofia da teologia e mos-


trar a liberdade de filosofar que esta última concede a cada
um 1 . É agora altura de nos interrogarmos até onde deve ir, na
; Ji.... '
melhor das repúblicas 2, esta liberdade de cada um pensar e
dizer o que pensa . Para examinar metodicamente o problema,
temos de falar sobre os fundamentos da república e, antes de
mais nada, sobre o direito natural de cada um, sem atender,
por enquanto, à república e à religião.
Por direito e instituição da natureza 3 entendo unicamente
as regras da natureza de cada indivíduo, regras segundo as quais
nós concebemos cada um como determinado naturalmente a
existir e a agir de uma certa maneira. Os peixes, por exemplo,
são por natureza determinados a nadarem e os maiores de en-
tre eles a comerem os mais pequenos. Assim, em virtude do
supremo direito natural, os peixes são donos da água e os gran-
des comem os pequenos . É, com efeito, certo que a natureza,
considerada em absoluto, tem supremo direito a tudo o que
pode, isto é, o direito da natureza estende-se até onde se es-
tende a sua potência, pois a potência da natureza é a própria
potência de Deus, o qual tem direito supremo a tudo . Visto,
porém, que a potência universal de toda a natureza não é mais
do que a potência de todos os indivíduos em conjunto, segue-se
* Anotação XXXI. Isto é, [que nós não sabemo s naturalm ente] que para a que cada indivíduo tem o supremo direito a tudo o que está
salvação ou beatitude seja suficiente abraçar esses decreto s divinos como re -
gras ou mandamentos, e que não é necess ário conceb ê-los como verdades em seu poder , ou seja, o direito de cada um estende-se até onde
eterna s, não é a razão mas a revelação qu e o pode ensinar , como se vê pelo se estende a sua potência determinada. E, uma vez que a lei
que se demonstrou no cap . IV . suprema da natur eza é que cada coisa se esforce, tanto quanto

324 325
,,
esteja em si, por perseverar no seu estado 4, sem ter em conta fácil, e considerar, por conseguinte, como seu inimigo quem o
qualquer outra coisa a não ser ela mesma, segue-se que cada quiser imp edir de satisfazer o seu intento.
indivíduo tem supremo direito a isso, ou seja (conforme já disse), De tudo isto conclui-se que o direito e a instituição da na-
a existir e agir conforme está naturalmente determinado. Nem tureza, direito sob o qual todos nascem e vivem a maior parte
vemos que haja aqui alguma diferença entre os homens e os da vida, não proíbe nada a não ser o que ninguém deseja e
restantes indivíduos da natureza, ou entre os homens dotados ninguém pode. Não lhe repugnam os conflitos, os ódios, a cóle-
de razão e os outros que ignoram a verdadeira razão, o.u ain.da ra, os ardis, ou seja o que for que o apetite sugira. Nem é,
entre os imbecis e dementes e · as pessoa ·s · sensatas. Tudo o que aliás, para admirar, porquanto a natureza não se confina às leis
[190J cada coisa faz segundo as :leis da suç1.natureza · fá-lo com supre- da razão humana, as quais visam apenas o que é verdadeira-
mo direito, pois age conforme está determinada por nafurezá e mente útil aos homens e à sua conservação, mas inclui também
não pode sequer agir de outra forma. É. por isso gue, ·?~ r~spei- uma infinidade de outras leis, que respeitam à ordem eterna de [191]
illi,I tante aos homens, enquanto considerados como vivendo sob o
11, toda a natureza, da qual o homem é uma pequena parte e por
império unicamente da natureza, aquele que ainda não conhece cuja necessidade todos os indivíduos estão determinados a exis-
a razão ou que ainda não contraiu o hábito da virtude vive tir e a agir de uma certa maneira . Por conseguinte, se algo na
unicamente segundo as leis do apetite com o mesmo direito natureza nos parece ridículo, absurdo ou mau, é porque só co-
supremo que aquele que rege a sua vida pelas leis da razão. nhecemos as coisas em parte e ignoramos em boa parte a or-
Por outras palavras, tal como o sábio tem o supremo direito de dem e a coerência de toda a natureza, além de querermos que
fazer tudo o que a razão manda, ou seja, de viver segundo as tudo esteja orientado segundo as normas da nossa razão, quan-
leis da razão, também o ignorante e o pusilânime têm todo o do o que a razão considera ser mau não o é em relação à or-
direito de fazer tudo o que o instinto lhes inspire, isto é, de dem e às leis da natureza universal, mas apenas em relação às
viver segundo as leis do instinto. É, de resto, o que ensina Paulo, leis da nossa própria natureza 5•
que não reconhece pecado algum antes da lei, quer dizer, en- Posto isto, ninguém pode, contudo, duvidar de que é muito
quanto se consideram os homens como vivendo sob o império mais útil para os homens viverem segundo as leis e os rigoro-
da natureza. sos ditames da razão, que apontam, como já dissemos, apenas
O direito natural de cada homem determina-se, portanto, para o que lhes é verdadeiramente útil. Além disso, não há nin-
não pela recta razão, mas pelo desejo e a potência. Nem todos, guém que não deseje viver, tanto quanto possível, seguro e ao
com efeito, estão naturalmente determinados a agir segundo as abrigo do medo, coisa que não pode verificar-se enquanto a
regras e as leis da razão; pelo contrário, todos nascem a igno- cada um for lícito fazer tudo quanto quiser e não se conferirem
rar tudo e, antes que possam conhecer a verdadeira regra de à razão mais direitos do que ao ódio e à cólera. Não há, efecti-
vida e adquirir o hábito da virtude, vai-se a maior parte da vamente, ninguém que, no meio de inimizades, ódios, cólera e
vida, ainda quando tenham sido bem educados . E, todavia, eles dolos, não viva em ansiedade e não tente, por isso, fazer tudo
têm entretanto de viver e conservar-se, tanto quanto depende o que esteja em si para o evitar. Se tivermos, além disso, em
de si, isto é, pelo impulso apenas do apetite, já que a natureza conta que os homens, sem o auxílio mútuo, vivem necessaria-
não lhes deu mais nada e lhes negou a potência actual de viver mente na miséria e não cultivam a razão, conforme demonstrá-
segundo a recta razão; nessa medida, são tão obrigados a viver mos no cap. v, ver-se-á com toda a clareza que, para viver em
de acordo com as leis da mente sã como um gato é obrigado a ~egurança e o melhor possív.cl, eles tiveram necessariamente de
viver segundo as leis da natureza do leão. Assim, tudo aquilo unir-se e, assim, fazer com que o direito que cada um tinha por
que cada um, considerado unicamente sob o império da natu- natureza a tudo se exercesse colectivamente e fosse determina-
reza, julga que lhe é útil, quer conduzido pela recta razão, quer do, já não pela força e o apetite de cada um, mas pela potência
por impulso dos afectos, é lícito, à luz do direito supremo de e a vontade de todos em simultâneo . Debalde, porém, o tenta-
natureza, ele cobiçá-lo e pode adquiri-lo, pela força ou pela as- riam fazer se não quisessem dar ouvidos senão ao apetite, uma
túcia, por pedido ou, enfim, pelo processo que lhe parecer mais vez que pelas leis do apetite cada um é arrastado para seu lado.

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,.
Tiveram, por isso, de estabelecer e pactuar firmemente entre si em que, pelo direito natural, entre dois males eu sou obrigado
que tudo seria regido unicamente pelo ditame da razão (à qual a escolher o menor , tenho o supremo direito de romper um tal
ninguém ousa opor-se abertamente, ainda assim não pareça de- pacto e dar o dito por não dito. E isto, note-se, é lícito por di-
mente), refrear o apetite sempre que ele sugere algo que redun- reito natural, quer eu veja com urna razão verdadeira e certa que
de em prejuízo de outrem, não fazer a ninguém o que não quer fiz mal em prometer, quer me pareça apenas vê-lo: com efeito,
que lhe façam a si e, finalmente, defender o direito alheio como esteja eu a ver correcta ou erradamente, terei sempre receio do
se do seu se tratasse. De que modo, porém, deve este pacto maior mal e esforçar-me-ei de todos os modos por evitá-lo, de
estipular-se, · para: que sejá ratificado e estável? É o qu~ vamos acordo com o que prescreve a natureza.
ver agora 6 • _. _ _.
Concluímos daqui que um pacto não pode ter qualquer força
É uma lei universal da natureza humana que ninguém des':. a não ser em função da sua utilidade e que, desaparecida esta,
preze o que julga ser bom, · a não .·ser na esperança de um bem no mesmo instante o pacto é abolido e fica sem eficácia. É por
11n1 maior ou por receio de um maior danó, nem supõrte uin mal a isso uma insensa tez uma pessoa pedir a outra que jure para todo ·
não ser para evitar outro ainda pior ou na esperança de um o sempre sem, ao mesmo tempo, tentar fazer com que a rup-
maior bem. Entre dois bens, escolhe-se aquele que se julga ser tura desse pacto traga ao que o romper mais desvantagens que
o maior, e entre dois males, o que parece menor. Sublinho que vantagens, o que deve certamente ter lugar, sobretudo, quando
é aquele que parece, a quem escolhe, ser o maior ou o menor, se institui uma república 7 . Mas, se todos os homens pudessem
não que as coisas sejam necessariamente como ele julga. Esta lei com facilidade guiar-se unicamen te pela razão e se conhecessem
está tão firmemente inscrita na natureza humana que temos de a a utilidade e a suprema necessidade da república, não haveria
colocar entre aquelas verdades eternas que ninguém pode igno- ninguém que não detestasse profundamente os dolos e todos,
rar. Dela resulta necessariamente que só por dolo alguém pro- por desejo deste bem supremo que é a conservação da repú-
meterá -* renunciar ao direito que tem sobre todas as coisas, e blica, observariam integralmente e com a máxima fidelidade os
que absolutamente ninguém manterá as suas promessas, a não contratos e manteriam, acima de tudo, a palavra dada, que é o
ser por medo de um mal maior ou na esperança de um maior mais forte baluarte da república. Quão longe, no entanto, esta- (193
bem. Para que isto se entenda melhor, suponhamos que um la- mos de poderem todos conduzir-se facilmente apenas pela ra-
drão me obriga a prometer que lhe vou entregar os meus bens zão! Cada um deixa-se levar a seu bel-prazer e, a maioria das
aonde ele quiser. Uma vez que o meu direito natural está limi- vezes, tem a mente a tal ponto inundada pela avareza, a glória,
tado, como já mostrei, apenas pela minha potência, é evidente a inveja, o ódio, etc., que não lhe fica lá o mínimo espaço para
que, se eu puder dolosamente libertar-me desse ladrão prome- a razão. Daí que, muito embora os homens prometam, dando
tendo-lhe o que ele quiser, ser-me-á lícito, por direito natural, provas seguras de sinceridade, e se comprometam a manter a
fazê-lo, ou seja, pactuar dolosamente com ele tudo quanto ele palavra dada, 'ninguém, contudo, pode fiar-se nos outros se, à
quiser. Ou, então, suponhamos que eu, sem qualquer fraude, simples promessa não se juntar algo mais, visto que, por direito
prometi a alguém abster-me, durante vinte dias, de pão ou qual- natural, cada um pode agir dolosamente e não está obrigado a
quer outro alimento e que, a seguir, vejo que fiz uma promessa respeitar os contratos, excepto se tiver esperança de um bem
tola e que não a posso manter sem graves prejuízos; na medida maior ou receio de maior mal 8. Ora, como já mostrámos que o
direito natural tem por único limite a potência de cada um , se-
gue-se que cada um cederá, necessariamente, tanto do seu di-
reito a outrem quanto da sua potência transferir para ele, es-
• Anotação XXXII. No estado civil, em que se decide com base no direito pontaneamente ou à força. Assim, possui o supremo direito sobre
comum o que é bem e o que é mal, faz-se justamente a distinção entre o dolo
bom e o mau. Porém, no estado de natureza, em que cada um é juiz de si todos aquele que possui o poder supremo de a todos obrigar
próprio e tem o supremo direito de prescrever a si mesmo as leis, de interpretá- pela força e a todos conter pelo receio da pena capital, universal-
-las e até de as revogar se achar preferível , aí, é evidentemente impossível mente temida. Mas só manterá esse direito enquanto conservar
conceber que alguém actue por dolo mau . este poder de fazer tudo o que quiser; de outro modo, o seu

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~

poder será precário e ninguém que seja mai s forte estará, a não violentos ninguém os conserva por muito Lem po 11 . A isto acresce
ser que queira , obrigado a obedecer-lhe 9 . que, num Estado democrático, são meno s de recear absurdos :
A condição para que uma sociedade se possa constituir sem primeiro , por ser quase impo ssí vel que a maior parte de um
nenhuma contradição com o dire ito natural e para que todo o conjunto, se este for numeroso, se ponha de acordo sobre um
pacto seja sempre observado com a máxima fidelidade é, pois, a absurdo; segundo, pelo próprio fundamento e finalidade da
seguinte: cada um deve transferir para a sociedade toda a po- democracia, que, como também já mostrámos, não é senão evi -
tência que possui, de forma a que só ela detenha, sobre todas tar os absurdos do apetite e conter os homens, tanto quanto
as coisas, o supremo direito · de nah1reza, isto é, o poder supre- possível, dentro dos limites da razão, para que vivam em con-
mo, ao qual cada um é -obrigado ' ? obed~çer, livremente ou por córdia e paz. Sem este fundamento, todo o edifício ruirá facil-
receio da pena capital. Q _direito -de uma sociedade assim cha- mente. Por conseguinte, só ao soberano compete providenciar
ma-se democracia 10, a qual, por isso mesmo, se -define - como a nesse sent ido; aos súbditos, como dissemos, compete executa-
união de um conjunto de homens que detêm colegialmênte o rem as ordens deste e não reconhecerem como direito senão
supremo direito a tudo o que estiver em seu poder. Donde se aquilo que o soberano declara ser o direito.
conclui que o poder supremo não está sujeito a nenhuma lei, Pensará, talvez, alguém que, com tal argumento, fazemos
mas todos lhe devem obedecer em tudo; foi a isto que se com- dos súbditos escravos, já que se considera que é escravo aquele
prometeram todos, tácita ou expressamente, quando transferi- que age a mando de outrem e livre o que se comporta como
ram para ele toda a potência de se defenderem, ou seja, todo o muito bem entende, coisa que, todavia, não é absolutamente
seu direito. Porque, se tivessem pretendido reservar para si al- verdadeiro. Porque, na realidade, o mais escravo é aquele que
gum desse direito, deveriam simultaneamente ter-se precavido se deixa assim arrastar pelo prazer e é incapaz de ver ou fazer
com tudo com que o pudessem defender; mas, como hão o fize- seja o que for que lhe seja útil; só é livre aquele que vive, com
ram, nem o poderiam, aliás, fazer sem a divisão e a consequente toda a sinceridade, conduzido unicamente pela razão. Quanto à
destruição do Estado, submeteram-se por completo ao arbítrio acção a mando de alguém, quer dizer, a obediência, ela retira
do poder supremo. Uma vez que eles se submeteram incondicio- de certo modo a liberdade, mas não toma automaticamente um
nalmente, e isto, conforme mostrámos, não apenas porque a homem escravo, pois só o móbil da acção a tanto pode levar 12.
[194] necessidade obrigava mas também porque a razão aconselha, Se o fim da acção não é a utilidade de quem a pratica, mas
conclui-se daqui que, se não queremos ser inimigos do Estado daquele que a ordena, então o que a pratica é escravo e inútil a
nem agir contra a razão, a qual recomenda que o defendamos si próprio; porém, numa república e num Estado, onde a lei
com todas as forças, temos de seguir absolutamente todas as suprema é a salvacãÕde todo o poyo e não daquele que man- [19sJ
ordens do soberano, por mais absurdas que elas sejam. Porque da.!.quem obedece em tudo ao soberano não deve dizer-se es-
também estas a razão manda que cumpramos, escolhendo assim cravo e inútil a si mesmo, mas apenas súbdito. Por isso, a repú-
o menor de entre dois males. Acresce que qualquer um poderia blica mais livre é aquela cujas leis se fundamentam na recta razão;
facilmente expor-se a este risco de se submeter por completo ao aí, com efeito, cada um, sempre que quiser, pode ser livre*,
poder e ao arbítrio de outrem. Com efeito, este direito de im- isto é, viver sinceramente de acordo com a razão. É o que acon-
por o que quiserem só compete, como mostrámos, aos sobera- tece também com as crianças, que, embora tenham de obedecer
nos, na medida em que eles detêm realmente a soberania: por-
que, se a perderem, perdem simultaneamente o direito de tudo
imporem, indo este parar às mãos daque le ou daqueles que o • Anotação XXXIII. Em qualquer cidade em que viva , o homem pode ser
conquistaram e podem conservar. Por isso é que só muito raro livre, pois um homem é livre na medida em que se guia pela razão. Todavia
(N- B.: Hobbes é de opinião diferente) , a razão aconselha absolutamente a paz,
pode acontecer os soberanos ordenarem algo assim tão absur-
e a paz só pode conseguir-se se os direitos comuns da cidade não forem vio-
do, uma vez que têm todo o interesse, para se precaverem e lados . Portanto , quanto mais um homem se conduzir pela razão, isto é, quanto
conservarem o poder, em olhar pelo bem comum e conduzir mais livre for, mais perseverantemente observará as leis da cidade e executará
tudo conforme os ditames da razão. Como diz Séneca, poderes as ordens do soberano , de quem é súbdito .

330 331
1

1.li
...
I"' a toda s as ordens dos seus pai s, não são, no entanto , escra vas, Por direit o civil priv ado não pod emo s entend er outra coisa
11, uma vez que as ordens dos pai s visam , acima de tudo, a utili- senão a liberdad e qu e cada um tem de se conservar no seu
'l·i·:.
11 dade dos filhos . Há, pois, a nosso ver, uma grande diferença estado, liberdade que é delimitada pelos éditos do soberano e
1
1,"! entre um escravo, um filho e um súbdito, os quais se definem garantida unicamente pela sua autoridade . A partir, com efeito,
; '1

assim: escravo é aquele que é obrigado a obedecer às ordens do momento em que cada um transferiu para outrem o direito
do dono, que não visam senão o que é útil para aquele que de viver a seu bel-prazer, o qual era delimitado apenas pelo
manda; filho, porém, é aquele que faz o que lhe é útil por or- seu poder, isto é, a sua liberdade e a potência de se defender,
dem dos pais; súbdito, ·finalmente, é aquele · que faz, por orde~ a partir daí fica obrigado a viver de acordo exclusivamente com
do soberano, o que é útil à· comuni4ade e, .consequentemente, os critérios desse outro e a defender-se apenas com a protecção
também a si próprio. . _ que ele lhe oferece.
Penso, com isto, ter mostrado com clareza bastante .os fun- Há injúria quando um cidadão ou . súbdito é obrigado a so-
damentos do Estado democrático, do qual eu preferi tràtar a-n- frer da parte de outro algum dano contra o direito civil, ou
tes de todos os outros, porque me parecia o mais natural e o seja, o édito do soberano. A injúria, com efeito, só pode conce-
que mais se aproxima da liberdade que a natureza concede a ber-se no estado civil; porém, os soberanos, a quem por direito
cada um. Em democracia, com efeito, ninguém transfere o seu tudo é lícito, não podem fazer qualquer injúria aos súbditos;
direito natural para outrem ao ponto de este nunca mais ter de logo, ela só pode ter lugar entre particulares, a quem o direito
o consultar daí em diante: transfere-o, sim, para a maioria do obriga a não se prejudicarem reciprocamente.
todo social, de que ele próprio faz parte, e, nessa medida, to- A justiça é a disponibilidade constante para atribuir a cada
dos continuam iguais, tal como acontecia anteriormente no esta- um aquilo que, de acordo com o direito civil, lhe é devido; a
do de natureza. Em segundo lugar, quis tratar expressamente injustiça, pelo contrário, é tirar a alguém, sob uma falsa aparên-
só deste Estado, porque é o que melhor convém ao objectivo cia de direito, o q_ue lhe compete segundo a verdadeira inter-
que eu me propus, a saber, tratar da utilidade da liberdade na pretação das leis. A justiça e à injustiça também se chama equi-
república. Abstenho-me, portanto, de falar nos fundamentos dos dade e iniquidade, porquanto os que são eleitos para dirimir os
restantes regimes. Nem é necessário, para conhecer o respectivo litígios estão obrigados a considerar todos por igual, sem olhar
a estatutos sociais, e a defender igualmente o direito de cada
direito, saber agora onde tiveram e ainda têm frequentemente
um e a não invejar o rico nem desprezar o pobre .
a sua origem, dado que, por aquilo que já dissemos, isso está
São aliados os homens de duas cidades diferentes que, para
mais que evidente. Quem quer que detenha a soberania - seja
evitar o perigo de guerra ou com vista a qualquer outra vanta-
um só, alguns ou todos - possui, sem nenhuma dúvida, o su-
gem, se comprometem mutuamente a não se prejudicarem e, pelo
premo direito de ordenar aquilo que quiser. Além disso, quem
contrário, a ajudarem-se em caso de necessidade, mantendo cada
quer que tenha transferido, espontaneamente ou coagido pela
uma o seu Estado . Este contrato será válido enquanto subsistir
força, para outrem o poder de se defender cedeu-lhe por com-
o seu fundamento, isto é, a razão do perigo ou da vantagem,
pleto o seu direito natural e, por conseguinte, decidiu obede-
pois ninguém firma ou é sequer obrigado a respeitar pactos a
cer-lhe absolutamente em tudo, obediência que é obrigado a não ser na esperança de algum bem ou por receio de qualquer
prestar enquanto o rei, os nobres ou o povo conservarem o poder mal; desaparecido esse fundamento, o pacto desaparece por si
soberano, que receberam e que foi o fundamento da transferên- mesmo, corno a experiência também ensina abundantemente . Na
cia de direito. Sobre isto, não é necessário acrescentar mais nada . verdade, ainda que vários Estados contratem entre si não se
Apresentados os fundamentos e o direito do Estado, será prejudicarem reciprocamente, eles esforçam -se, contudo, por
[1961 fácil determinar o que é o direito civil privado, a injúria, a jus- impedir, tanto quanto podem, que um deles se tome mais po-
tiça e a injustiça no estado civil; depois, quem são os aliados e deroso que o outro e não se fiam nas palavras enquanto não
quem são os inimigos; por último , o que é um crime de lesa- tiverem percebido bem a finalidade e a vantagem de cada um
-majestade. em contratar. Receiam , aliás, o dolo , não a injúria . Quem, com

332 333
[J97J efeito, senão um idiota que ignora o direito dos soberanos, con- direito: a razão, no entanto, é exactamente .a mesma . Na ver-
...
i
fiará nas palavras e nas promessas de alguém que detém o po- dade, uma vez que a república deve manter-se e ser dirigida
der supremo e o direito de fazer o que quiser, de alguém para exclusivamente pelo desígnio do soberano, e uma vez que pac-
''l: quem a lei suprema deve ser a salvação e o interesse do seu tuaram que só a ele compete absolutamente este direito, se al-
1· guém se meter, por sua própria iniciativa e à revelia da supre -
11 próprio Estado? E se, além disso, tivermos em conta a piedade
i e a religião, veremos até que ninguém que detenha o poder ma autoridade, a tratar de qualquer assunto público, mesmo que
.1 soberano pode, sem crime, manter as suas promessas q~ando daí resultasse, como dissemos, o desenvolvimento da cidade, [19BJ
isso implica dáno para o respectivo Estado: ·Porque tudo o que
i!.
nem por isso deixa de violar o direito do soberano e de lesar a
:r ele prometeu e que depois :verifica r~dundar ::em dano para o sua majestade, sendo justamente condenado.
Estado não o poderá cump .rirr a inenos que traia a confiança Resta-nos agora, para afastar qualquer reticência, responder
dos seus súbditos, à qual, no entanto, está acima de tuq.o obriga- à seguinte pergunta: não será aquilo que anteriormente afirmá-
do e que é costume jurar-se solenemente que . sé vai respeitar n . mos, ou seja, que o indivíduo privado de razão tem todo o
Inimigo, por sua vez, é aquele que vive fora da cidade, de direito, no estado de natureza, de viver segundo as leis do ape-
tal modo que, nem como aliado, nem como súbdito, reconhece tite, abertamente contrário ao direito divino revelado? Na ver-
o seu poder . Não é, com efeito, o ódio que faz o inimigo do dade, se estamos absolutamente todos (quer tenhamos ou não o
Estado, mas sim o direito, sendo que o direito que tem a cida- uso da razão) obrigados a amar o próximo como a nós mesmos,
de sobre aquele que não reconhece o seu poder através de ne- de acordo com o mandamento divino, não podemos, sem injú-
nhum tipo de contrato é igual ao que ela possui sobre aquele ria, prejudicar os outros e viver exclusivamente segundo as leis
que lhe causa algum dano: está, portanto, no direito de o obri- do apetite. É, no entanto, fácil responder a esta objecção, se ti-
gar, por todos os meios de que disponha, a submeter-se-lhe ou vermos em conta apenas o estado de natureza, porquanto este é,
a ser seu aliado. por natureza e cronologicamente, anterior à religião 14. Ninguém,
O crime de lesa-majestade, finalmente, só tem lugar entre por na tureza, sabe * que está obrigado à obediência a Deus, e
súbditos ou cidadãos que, por um pacto tácito ou explícito, trans-
feriram todo o seu direito para o Estado. Diz-se que cometeu
esse crime o súbdito que tentou, seja de que maneira for, arreba- * AnotaçãoXXXIV. Quando Paulo diz que os homens não têm como esca-
tar o direito do soberano ou transferi-lo para um outro. E digo par, fala à maneira humana. Com efeito, no cap. IX [vers. 18] da mesma Epís-
«tentou», porque, se ele apenas devesse ser condenado após tola, ele ensina expressamente que Deus é misericordioso para quem quer e
cometido o crime, seria, na maior parte dos casos, já muito tarde endurece quem ele quer, e que a única razão por que os homens não têm
e depois de o direito ter sido usurpado ou transferido para um desculpa é porque estão para o poder de Deus como a argila está para o po-
der do oleiro, o qual da .mesma massa faz vasos que têm um destino nobre e
outro que a cidade tentaria condená-lo. Digo, além disso, «todo outros que têm um destino menos próprio, e não porque tenham sido preve -
aquele que, seja de que maneira for, tenta arrebatar o direito nidos . Quanto à lei divina natural, cujo preceito supremo nós dissemos que
do soberano», porque, em meu entender, é indiferente que daí era amar a Deus, só lhe chamei lei no sentido em que os filósofos chamam leis
resulte, com toda a clareza, um dano ou um benefício para toda às regras comuns da natureza segundo as quais tudo acontece [necessaria -
a república . Qualquer que seja a maneira como isso tenha sido mente]. Porque o amor de Deus não é obediência, mas virtude, a qual existe
necessariamente no homem que possui um conhecimento autêntico de Deus.
tentado, é sempre de lesa-majestade e condenado pelo direito . A obediência concerne a vontade daquele que comanda, não a necessidade e
Aliás, em tempo de guerra, todos reconhecem que é justa uma a verdade da coisa. Ora, como ignoramos a natureza da vontade divina e te-
tal condenação. Se, por exemplo, alguém não se mantém no seu mos, pelo contrário, a certeza de que tudo o que acontece acontece exclusiva -
posto e avança, sem conhecimento do chefe, contra o inimigo, é mente pela potência de Deus, não podemos de forma nenhuma saber, a não
condenado à pena capital por violar o direito do chefe e o seu ser por revelação , se Deus quer ser alvo de culto e de honras por parte dos
homens, como um príncipe. Acresce que, já o mostrámos, as leis de Deus só
juramento, mesmo que tenha sido avisada a decisão e ele tenha nos parecem leis ou decretos enquanto ignoramos a sua causa; assim que a
vencido o inimigo . Mas nem todos vêem com igual clareza o conhecemos , deixam logo de ser leis e passamos a aceitá-las como verdades
facto de absolutamente todos estarem sempre sujeitos a esse eternas . Isto é, a obedi ência passa imediatamente a ser amor que nasce do

334 335
.,
1


1 também não o podemos concluir por um qualquer raciocínio: só reconhecer seja quem for como JUIZ, nem a reconhecer algum
/::'i
11!,
por revelação, confirmada por sinais, se pode lá chegar. Daí que, mortal, além dele próprio, como defensor de qualquer direito,
i,.! antes da revelação, ninguém está sujeito ao direito divino, o a menos que se trate de um profeta expressamente enviado por
li
·:l'i:
qual não pode não ignorar. O estado de natureza, por conse-
guinte, não deve, de maneira alguma, confundir-se com o esta-
Deus e que este o demonstre por sinais indubitáveis. E, ainda
aí, não é um homem, mas o próprio Deus, que ele está obriga-
1 '
11
do de religião. Pelo contrário, deve conceber-se sem religião e do a reconhecer como juiz. Porque, se o soberano não quiser
!I·I sem lei e, consequentemente, sem pecado e sem injúria, confor- obedecer a Deus no respeitante ao seu direito revelado, ser-lhe-á
''"', 11
me há pouco fizemos, confirmando-o com a· autoridade de ·Paulo. lícito fazê-lo por sua conta e risco, não havendo nenhum direito
11'
111
E não é só por causa da ignor~cia q~e .nós ~oncebemos o esta- civil ou natural que se lhe oponha. O direito civil, com efeito,
do de natureza como anterior e. estranho ao direito divino . re- depende exclusivamente do seu decreto; quanto ao direito na-
r velado; é também por causa da liberdade .com que .nasçern to-
dos. Se os homens estivessem por · natureza · sujeitos ·a·o· direito
tural, esse depende das leis da natureza, as quais estão adapta-
das, não à religião, que visa apenas o interesse dos homens,
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1[1.
·. ·1
divino, ou se o direito divino fosse um direito por natureza, mas à ordem da natureza universal, ou seja, ao eterno decreto
era supérfluo Deus estabelecer um contrato com os homens e de Deus, que para nós é desconhecido. É o que parecem pen-
i/'11
.li,
i
L
obrigá-los por um pacto e um juramento. Há, portanto, que
admitir em absoluto que o direito divino entrou em vigor no
sar, se bem que de maneira mais confusa, aqueles que afirmam
que o homem pode, de facto, pecar contra a vontade revelada
momento em que os homens, através de um pacto explícito, se de Deus, mas não contra o seu eterno decreto, pelo qual ele
comprometeram a obedecer a Deus em tudo e como que renun- predeterminou tudo.
ciaram à sua liberdade natural e transferiram o seu direito para Pode, no entanto, alguém perguntar agora: e se o soberano
Deus, conforme dissemos que acontece no estado civil. Disto, ordena alguma coisa contra a religião e a obediência que, pelo
porém, tratarei mais em pormenor nos capítulos seguintes. pacto, nós prometemos expressamente a Deus? Deveremos obe-
Poderá alguém insistir que os soberanos estão tão sujeitos decer ao mandamento divino ou ao humano? Como vou abor-
ao direito divino quanto os súbditos e, no entanto, nós disse- dar, nos capí tulos seguintes, esta ques tão mais em pormenor,
mos que eles conservam o direito natural e que tudo lhes é, por limito-me aqui a dizer brevemente que se deve acima de tudo
direito, lícito. Para afastar por completo uma tal dificuldade, obedecer a Deus, quando tivermos uma revelação certa e indu-
que surge não tanto a propósito do estado como do direito de bitável. Mas visto que é no que toca à religião que os homens
natureza 15, direi que, no estado de natureza, o motivo por que mais costumam errar, rivalizando a inventar coisas consoante a
cada um está sujeito ao direito revelado é o mesmo por que diversidade do engenho, como está mais que suficientemente
está sujeito a viver segundo os ditames da recta razão, ou seja,
provado pela experiência, é evidente que, se ninguém fosse por
(199] porque lhe é mais útil e necessário ao bem-estar. Se ele não
direito obrigado a obedecer ao soberano em nada do que julga
quiser, tem esse direito, mas por sua conta e risco. Está, pois,
dizer respeito à religião, então o direito da cidade dependeria
obrigado a viver segundo o seu próprio critério e não segundo
do critério e do sentimento de cada um. Ninguém, com efeito,
o critério de outrem, da mesma forma que não está obrigado a
estaria obrigado àquilo que julgasse contrário à sua fé e à sua
reconhecer qualquer mortal como juiz ou como legítimo defen-
superstição, além de que, com um tal pretexto, cada um poderia
sor da religião. E é este direito que eu afirmo que o soberano
permitir-se fosse o que fosse. Ora, como deste modo o direito
conservou. Ele pode consultar homens, mas não é obrigado a
da cidade seria sistematicamente violado, resulta que o sobera-
no, sendo o único a quem incumbe, por dire ito divino como
por direito natural, conservar e defender os direitos do Estado,
conhecimento verdadeiro com a mesma necessidade com que a luz nasce do possui o direito supremo de determinar o que entender em
Sol. Conduzidos pela razão, podemos, pois, amar a Deus, mas não obedecer-
-lhe, uma vez que não podemos aceitar o direito divino, enquanto ignorar-
matéria de religião 16. E todos têm de obedecer ao que ele de-
mos a sua causa, como divino, nem podemos pela razão conceber Deus como crete e ordene a esse respeito, dada a fidelidade que juraram e 12001
um príncipe a estabelecer leis. que Deus manda absolutamente manter.
12

336 337

Se aquel es que detêm a soberani a forem pa gã os, há que não
pactuar com eles seja o que for, pref erindo -se sofrer o pior a
r'
1
transferir para eles o próprio direito, ou então , se alguém pac-
tuar e transferir para eles esse direito, na medida em que assim
!" renuncia a defender -se a si próprio e à religião, deve obedecer-
tr. -lhes e manter -se-lhes fiel, ou ser coagido a isso, a menos que
se trate de alguém a quem Deus, por uma revelação certa, pro-
1:: meteu auxílio · contra o tirano oú quis ·expressamente isentar .'
t: Vemos, assim, que, de tantos -judeus éJ.!le.estay~rn na Babilónia, CAPITULO
XVJI [201]

só três jovens, que não duvidavam .do auxílio de Deus, se recusa-


ONDE SE MOSTRA QUE É IMPOSSÍVEL E DESNECESSÁRIO
ram a obedecer a Nabucodonosor: · os outros, à excepção . ainda ALGUÉM TRANSFERIR TUDO PARA O SOBERANO;
de Daniel, a quem o próprio rei tinha adorado, obedeceram SOBRE A REPÚBLICA DOS HEBREUS, COMO FOI ENQUANTO
coagidos pelo direito, pensando talvez, no seu íntimo, que ti- VIVEU MOISÉS E DEPOIS DA MORTE DESTE,
'i
' nham sido por decreto de Deus entregue s ao rei e que este ATÉ ELES ELEGEREM REIS; SOBRE A SUA SITUAÇÃO ÍMPAR
obtivera e mantinha a soberania por determinação divina. Pelo E, FINALMENTE, SOBRE OS MOTIVOS PELOS QUAIS
contrário, Eleázar, quando a pátria de alguma forma ainda sub- UMA REPÚBLICA DIVINA PÔDE CAIR E TER
sistia, quis dar aos seus um exemplo de constância para que, tal TANTA DIFICULDADE EM SUBSISTIR SEM SUBLEVAÇÕES
como ele, preferissem sofrer tudo a transferir o seu direito e
poder para os Gregos, e tudo tentassem para não serem coagi-
dos a jurar pela fé dos pagãos . O que se confirma também pela
experiência de hoje. Com efeito, os soberanos cristãos não hesi- Por muito que a doutrina do capítulo anterior sobre o di-
tam, para sua maior segurança, em concluir tratados com os reito dos soberanos a tudo e sobre o direito natural de cada
Turcos e os pagãos e em ordenar aos seus súbditos que forem um, que para eles é transferido, seja compatível com a prática, e
habitar para esses países que não usem, nos assuntos humanos por muito que esta possa estar regulamentada de maneira a
como nos divinos, de maior liberdade que aquela que expressa- aproximar-se cada vez mais de uma tal doutrina, é, todavia,
mente foi acordada ou que esse Estado concede. É o que se impossível que em muitos aspectos ela não se fique pela mera
pode ver pelo tratado dos Holandeses com os Japoneses, de teoria . Ninguém, com efeito, pode alguma vez transferir para
que falámos atrás. outrem a sua potência e, consequentemente, o seu direito, a
,,1 ponto de deixar de ser um homem. Nem tão-pouco haverá so-
1,
berano algum que p'ossa fazer tudo aquilo que quer: debalde
i
:·1
ele ordenaria a um súbdito que odiasse o seu benfeitor ou que
amasse quem lhe causou dano, que não se ofendesse com injú-
rias, que não desejasse libertar-se do medo, e muitas outras coi-
sas semelhantes que decorrem necessariamente das leis da natu-
reza humana . Julgo que a própria experiência ensina isto de
forma bastante clara: jamais os homens renunciaram ao seu pró-
\ prio direito e transferiram para outrem a sua potência em ter-
j' mos tais que deixassem de ser temidos pelos que receberam
deles o direito e a potência e que o Estado não estivesse mais
ameaçado pelos cidadãos, ainda que privados do seu direito ,
do que pelos inimigos 1. Sem dúvida que, se os homens pudes-
1
sem ser pr ivado s do seu direito natural a ponto de não pode -
i
338 339
1

rem depoi s faz er * senão o que aqu eles que detêm o direito os mais tem idos qu em tinha maior p oder, entã o o maior pode r
supremo quisessem, então seria lícito reinar pratic ando impune - seria o qu e têm os súbdit os dos tiranos , a quem este s temem
ment e as maiores violência s sobre os súbditos, coisa que julgo mai s que a qualquer outra coisa . Por outro lado, embora não se
não passar pela cabeça de ninguém . Há, por conseguinte, que possam submeter os ânimo s da mesma forma que se subm etem
reconhecer que cada um reserva para si uma boa parte do seu as línguas, os ânimos estão, contudo, de certo modo sob o po-
direito, a qual, deste modo, não fica dependente das decisões der do soberano , o qual pode, de muitas formas, fazer com que
de ninguém a não ser dele próprio . . a grande · maioria dos homens acredite, ame, odeie, etc., o que
Porém, ·pára se éompreen .der cotreétamente até onde se· es- ele quiser. E se bem que estes sentimentos não surjam directa -
tende o direito e o poder do . Estadp, deve .-se notar que ele não mente por ordem do soberano, mu itas vezes, como a experiên-
12021 consiste apenas em poder -obrigar os homens pelo medo r mas cia abundantemente confirma, eles surgem, no entanto, pela au-
absolutamente em tudo o que ·possa fazer com que eles -obede- toridade da sua potência e sob a sua orientação, isto é, em
çam às suas ordens: não é, efectivamente, a· razão dà obediên - virtude do seu direito 2 • Daí que nós possamos conceber, sem
cia, mas sim a obediência, que faz o súbdito. Porque seja qual contradição alguma, homens que não acreditem, não amem, não
for a razão pela qual um homem decide executar as ordens do odeiem, não desprezem nem sejam arrebatados por nenhum
soberano - o medo do castigo, a esperança de obter alguma outro afecto a não ser em . virtude apenas do direito do Estado.
coisa, o amor da pátria ou qualquer outro afecto -, a delibera- Mas, apesar de assim concebermos o direito e o poder do [203)
ção é sempre sua e, todavia, age sob as ordens do soberano . Estado com uma enorme amplitude, jamais acontecerá ele ser
Pelo facto de um homem fazer algo por sua iniciativa não se tão grande que aqueles que o detêm possuam a potência de
deve imediatamente concluir que age por direito próprio e não fazer absolutamente tudo o que quiserem, conforme creio já ter
por direito do Estado; com efeito, na medida em que o homem mostrado com suficiente clareza . Quanto à maneira como se pode
age sempre por sua própria deliberação e decisão, quer quando constituir um Estado de forma a ele manter-se sempre em segu-
o faz por amor, quer quando é coagido pelo medo de um mal
rança, já disse que não é minha intenção apresentá-la aqui . No
que quer evitar, ou não existia Estado nem qualquer direito sobre
entanto, para chegar aonde pretendo, sublinharei aquilo que, com
os súbditos, ou então ele estende-se necessariamente a tudo o
essa mesma finalidade, a divina revelação ensinou outrora a
que pode fazer com que os homens decidam submeter-se-lhe .
Moisés; em seguida, examinaremos a história dos Hebreus e as
Por conseguinte, tudo o que o súbdito faça e que esteja confor-
suas vicissitudes e veremos, a partir daí, o que os soberanos
me às ordens do soberano, seja movido por amor ou coagido
devem principalmente conceder aos súbditos para garantir a
por medo, seja (o que é mais frequente) levado pela esperança
maior segurança e o desenvolvimento do Estado.
e pelo medo ao mesmo tempo, seja por reverência, que é uma
paixão composta de medo e admiração, seja, enfim, por qual- Que a manutenção do Estado depende principalmente da
i:1

quer outro motivo, é sempre por direito do Estado e não por fidelidade dos súbditos, da sua virtude e da sua perseverança
direito próprio que ele age . na execução das ordens, a razão e a experiência ensinam-no sem
A mesma conclusão decorre, com toda a clareza, do facto de margem para dúvidas. Ver, porém, o modo corno eles devem
a obediência não corresponder tanto à acção exterior como à acção ser governados para que mantenham sempre a fidelidade e a
interior do ânimo . Está, pois, maximamente sujeito ao direito virtude já não é assim tão fácil. Todos, com efeito, governantes
ili de outrem aquele que delibera obedecer, com todo o seu ânimo, ou governados, são homens , que o mesmo é dizer, mais inclina-
a todas as ordens dele e, por conseguinte, detém o máximo dos para o prazer que para o trabalho. Pior ainda, os que co-
poder aquele que reina sobre os ânimos dos súbditos. Se fossem nhecem quão mutável é a índole da multidão quase desespe-
11 ram: porque ela não se rege pela razão, rege-se apenas pelos
afectos , tudo a atrai e deixa-se facilmente corromper pela ava-
• Anotação XXXV . Dois soldado s rasos tomaram a iniciativa de tran sferir o reza ou pelo luxo. Cada qua l julga que só ele sabe tudo e quer
p oder do p ovo romano e tran sferiram-n o (Tácito, Hist., liv. 1). que tudo seja orientado segundo o seu engenho; consoante julga

li 340 341
,.
que uma coisa lhe trará lucro ou preimzo, assim a considera f
Eneias, o qual se acreditava ser filho de Vénus e ertencer ao
justa ou iníqua, legítima ou ilegítima; por amor à glória, despre- número dos deuses, e quis que se lhe prestasse cuf o com tem-
za os seus semelhantes e não suporta ser dirigido por eles; por plos e com a efígie das divindades, através de flâmines e sacer-
inveja de maior prestígio ou fortuna, a qual nunca é igual, dese- dotes (Tácito, Anais, liv. 1). Alexandre quis ser saudado como
ja o mal dos outros e nele se compraz. Não é preciso referir filho de Júpiter. E parece que o fez, não por orgulho, más por
tudo, uma vez que ninguém ignora a que crimes o descontenta- prudência, como se depreende da sua resposta à invectiva de
mento pela sua con_dição presente ~ o desejo de coisas novas, a Hermolau. Era - diz ele - quase ridículoaquilo que Hermolaume
ira cega e o desprezo pela pobreza levam frequentemente os exigia ao pedir que renegasseJúpiter, por cujo oráculosou reconhecido.
homens e quanto lhes ocupam e agitam ·os ânimos. Obviar, pois, Porventuraestá tambémem meu poderaquiloque os deusesrespondem?
a tudo isto e constituir um Esfadó _·de m~neira a não dei~r · · Ele ofereceu-meo nome de filho; o aceitar (N. B.) nãofoi alheioao que
li lugar para a fraude, mais ainda, instituir tudo de form ·a . -~ ~que estamos a fazer. Oxalá os Indianos também acreditemque eu sou um
jl todos, seja qual for a sua maneira de ser, ponham Ó direito deus. Porque as guerras dependemda fama e, frequentemente,uma fal-
público acima dos seus interesses privados, aí é que está o pro- sidadeem que se acreditafaz as vezes de uma verdade(Quinto Cúrcio,
1
blema. liv. vru, § 8). Com estas breves palavras, continua argutamente a
A premência desta questão tem exigido mui tas reflexões, mas persuadir os ignorantes de uma coisa simulada, ao mesmo tem-
nunca se chegou a uma solução em que o Estado não estivesse po que insinua o motivo da simulação. E o mesmo fez Cléon,
mais ameaçado pelos cidadãos do que pelos inimigos e em que no discurso com que tentava convencer os Macedónios a
[204] os seus detentores não tivessem menos medo destes do que submeterem-se ao Rei. Com efeito, após ter dado à simulação
daqueles. Prova disto é a república romana, invencível face aos uma aparência de verdade, narrando com admiração as glórias
inimigos e tantas vezes vencida e miseravelmente oprimida pe- de Alexandre e enumerando os seus méritos, refere assim a uti-
los seus cidadãos, em particular na guerra civil de Vespasiano lidade disto: não era só por piedade,era tambémpor prudênciaque os [2os1
contra Vitélio. Veja-se, a propósito, o início do liv. rv das Histó- Persasprestavam culto aos seus reis comoa deuses:porquea majestade
rias de Tácito, onde se descreve o aspecto miserável da cidade. é a garantia da segurançado Estado. E a terminar afirma ainda: eu
Alexandre, como diz Quinto Cúrcio no final do liv. Vlll, consid'e- próprio, quando o rei entrar na sala do banquete,prostrar-me-eipor
rava mais fácil a fama entre os inimigos do que na sua cidade, terra. Os outros, a começarpor aqueles que são dotadosde sabedoria,
pois acreditava que a sua grandeza podia ser destruída pelos devem fazer o mesmo (ver ibid., liv. vrn, § 5). Os Macedónios, po-
concidadãos, etc. E, temendo pelo seu destino, faz aos amigos rém, eram pessoas mais esclarecidas. De resto, os homens, a
este pedido: Protegei-meapenas contra as conjuras internas e as insí- menos que sejam completamen te bárbaros, não toleram ser tão
dias dos súbditos, que eu afrontareisem medo o perigo na guerra e nos abertam.imte enganados e passar de súbditos a escravos inúteis.
combates.Filipe esteve mais seguro na frente de batalhado que no tea- Mas houve outros que lograram mais facilmente fazer crer que
tro; evitou muitas vezes a mão dos inimigos, mas não conseguiufugir a majestade é sagrada e faz na terra as vezes de Deus, que foi
às mãos dos seus. Se reparardesno fim que tiveram também outros reis, instituída por Deus e não por sufrágio e consentimento dos
contareismais assassinadospelos seus do que pelo inimigo (ver Quinto homens, e que, além disso, se mantém e defende por especial
Cúrcio, liv. IX, § 6). providência e auxílio divino. E, como estas, há muitas outras
I.J
Por esta razão, os reis que tinham outrora usurpado o po- coisas que os monarcas inventaram para segurança do seu po-
,1
der tentaram, para garantir a própria segurança, fazer crer que der e que deixo aqui omissas. Para ir direito ao que me interes-
111'
a sua estirpe ascendia aos deuses imortais 3 • Isto, porque pensa- sa, indicarei e analisarei, como disse, só aquilo que a revelação
vam que, se os súbditos e todos os outros os olhassem, não divina ensinou outrora a Moisés com este mesmo objectivo.
como iguais, mas sim como deuses, suportariam de melhor von- Já anteriormente, no capítulo v, dissemos que os Hebreus,
tade ser governados por eles e submeter-se-lhes-iam facilmente. após terem saído do Egipto, já não estavam sujeitos ao direito
Assim, Augusto convenceu os Romanos de que descendia de de outra nação e podiam legitimamente instituir à vontade no-

342 343
l
vos direitos e ocupar as terras que quisessem. Na verdade, uma como se tivesse morrido pela Pátria; entre o direito civil e a
vez libertos da intolerável opressão dos Egípcios, e não estando religião não havia absolutamente nenhuma distinção. Este o
ligados por qualquer contrato a ninguém de entre os mortais, motivo por que a um tal Estado pôde chamar-se «teocracia »,
readquiriram o seu direito natural a tudo o que estivesse em porquanto os seus cidadãos não estavam subordinados a ne-
seu poder e cada um podia de novo deliberar se queria conser- nhum direito a não ser o direito revelado por Deus. Tudo isto,
var ou ceder e transferir para outrem esse direito . Colocados, no entanto, era mais uma opinião que uma realidade . De facto,
pois, neste estado de natureza, decidiram, a conselho de Moi- os Hebreus mantiveram em absoluto o direito estatal, como se
sés, em quem tínham a máxima confiança, · não transferir o sêu verá pelo que vou dizer a seguir, isto é, pela maneira e pelo
direito para nenhum de tintre os ÍI!ortais, ..i;nas somente para método com que se administrava este Estado e que eu me pro-
Deus, e todos, sem hesitação, prométeram em uníssono :obede- ponho explicar aqui 5 .
cer integralmente aos seus mandamentos e não reconh~cer ou- Dado que os Hebreus não transferiram para ninguém o seu
tro direito senão o que ele próprio · estatuíssé por Úveiação pfo- direito e todos eles, como numa democracia, a ele renunciaram
fética . E esta pro,:n.essa ou transferência de direito para Deus igualmente, proclamando em uníssono «tudo o que Deus disser
processou-se do mesmo modo que nós tínhamos dito que acon- (sem nenhum intermediário explícito) nós o faremos», segue-se
tece em qualquer sociedade, quando os homens decidem renun- que, em virtude deste pacto, todos ficaram a ser completamente
ciar ao seu direito natural. Porque foi através de um pacto explí- iguais, a ter idêntico direito a consultar Deus e a receber e in-
cito (f.xodo, cap. XXIV, 7) e de um juramento, que eles renunciaram terpretar as leis e todos ficaram igualmente detentores de toda
livremente, sem serem coagidos pela força ou atemorizados, ao a administração do Estado . Este o motivo por que, da primeira .
seu direito natural e o transferiram para Deus. Além disso, para vez, eles se aproximaram todos de Deus para ouvir o que -·ele
que o pacto fosse seguro, estável e ao abrigo de qualquer sus-
lhes queria ordenar; ficaram, porém, tão aterrados neste pri-
peita de fraude, Deus não firmou nada com eles antes de experi-
meiro encontro e ouviram tão espantados a palavra de Deus
mentarem a sua admirável potência, a única que os havia até aí
que julgaram ser chegado o seu último dia. Então, cheios de
(2061 mantido e poderia, de futuro, continuar a manter (f.xodo, cap. XIX,
medo, foram novamente a Moisés: eis que ouvimos Deus a falar no
4 e 5). Foi exactamente por isso, por acreditarem que só po-
meio doJogoe não há razãoparaque queiramosmorrer;esteJogo imen-
diam manter-se graças à divina potência, que transferiram para
so devorar-nos-ácom certeza;se tivennos de ouvir outra vez a voz de
Deus toda a sua potência natural de se manterem, a qual antes
talvez julgassem ter em si mesmos, e, consequentemente, todo
Deus, por certo morreremos.Vai tu, pois, escuta todas as palavras do
o seu direito.
nosso Deus e serás tu (não Deus) a falar-nos: a tudo o que Deus te 12071
Deus ficou, portanto, a ser o único detentor do Estado dos disser nós obedeceremose havemosde cumpri-lo. Com isto, aboliram
Hebreus e só este, por força do pacto, tinha direito a chamar-se claramente o primeiro pacto e transferiram por completo para
o Reino de Deus 4, da mesma forma que a Deus se podia cha- Moisés o seu direito a consultar Deus e interpretar os seus édi-
mar o Rei dos Hebreus. Assim, os inimigos deste Estado eram tos 6. O que prometeram desta vez já não foi, como antes, obe-
inimigos de Deus, os cidadãos que o quisessem usurpar eram decer a todas as palavras que Deus lhes dissesse, mas sim a
réus de lesa-divina-majestade e, finalmente, o direito do Estado todas as que ele dissesse a Moisés (ver Deuter., cap. v, depois
era o direito e os mandamentos divinos. Neste Estado, portan- do Decálogo, e cap. XVIII, 15 e 16). Moisés ficou, portanto, a ser
to, o direito civil e a religião, que consiste, como já demonstrá- o único portador e intérprete das leis divinas e, consequente -
11
f111 mos, unicamente em obedecer a Deus, eram uma só e a mesma mente, a ser também o juiz supremo a quem ninguém podia
1.
coisa. Quer dizer, os dogmas da religião não eram ensinamen- julgar, o único que perante os Hebreus fazia as vezes de Deus;
tos mas normas jurídicas e mandamentos, da mesma forma que dito de outro modo, alcançou a majestade soberana, porquanto
a piedade era tida por justiça e a impiedade por crime e injus- só ele tinha o direito de consultar Deus, de dar ao povo as
tiça . Quem abandonasse a religião deixava de ser cidadão e, só respostas divinas e de o obrigar a executá-las. O único, repito,
por isso, era tido como inimigo; quem morria pela religião era pois, se alguém, em vida de Moisés, quisesse pregar qualquer

344 345

l
coisa em nome de Deus, mesmo que fosse um verdadeiro pro- timo. Não é por acreditar que tudo quanto o monarca lhe orde-
feta, era réu e usurpador do direito soberano (Números, cap. XI, 28) *. na provém de um decreto de Deus que lhe foi revelado que o
A este respeito, é de notar que, embora o povo tenha eleito povo lhe será menos submisso; pelo contrário, sê-lo-á ainda mais.
Moisés, não pôde, contudo, à luz do direito, eleger o sucessor Moisés, porém, não escolheu tal sucessor. Em vez disso, legou 12os1
deste. Porque, no mesmo instante em que transferiram para aos sucessores um Estado administrado de tal forma que não se
Moisés o direito de consultar Deus e prometeram sem reticên- lhe pode chamar nem popular, nem aristocrático, nem monár-
cias confiar-lhe a função de oráculo divino, perderam absoluta- quico, mas sim teocrático 7. Porque o direito de interpretar as
mente todo o direito e ficaram Óbrigados ·a aceitar aquele que · leis e comunicar as respostas de Deus estava nas mãos de um, o
Moisés escolhesse para seu sucessor éQmo se .tivesse sido esco- direito e o poder de administrar o Estado, segundo as leis já
lhido por Deus. E se Moisés tivesse ·eleito alguém que, .tal como explicadas e as respostas já comunicadas, estava nas mãos de
ele, detivesse toda a administração do Estado, isto é, ·que. fosse outro. Sobre este ponto, veja-se Números, cap. x:xvn,21 *. E para
o único a ter o direito de consultar Deus na .sua tendà e, por · que isto se entenda melhor, vou expor por ordem a administra-
conseguinte, autoridade para instituir e revogar leis, decidir da ção de todo o Estado.
guerra e da paz, enviar embaixadores, nomear juízes, escolher o Em primeiro lugar, foi ordenado ao povo que construísse
seu sucessor e desempenhar absolutamente todas as funções do uma casa que fosse como que a corte de Deus, ou seja, da su-
soberano, o Estado teria sido puramente monárquico. Com uma prema majestade deste Estado. Deveria ser construída a expen-
única diferença: o Estado monárquico rege-se, comummente, ou sas, não de um só, mas de todo o povo, a fim de que a casa
devia reger-se, por um decreto de Deus oculto até para o pró- onde Deus iria ser consultado fosse de direito comum. Para
prio monarca, ao passo que o dos Hebreus, de certo modo, era áulicos e administradores desta corte divina foram eleitos os
regido por um decreto de Deus revelado apenas ao monarca. Levitas; como seu chefe e quase como segundo logo a seguir ao
Esta diferença, porém, não diminui, antes aumenta, o poder do rei, que era Deus, foi escolhido Aarão, irmão de Moisés, a quem
monarca e o seu direito sobre todos. Quanto ao povo, num como sucederiam legitimamente os próprios filhos. Assim, Aarão, sendo
noutro Estado encontra-se igualmente submetido e ignorante do
decreto divino, já que em ambos está dependente da palavra
do monarca e só através dela conhece o que é legítimo ou ilegí-
• Anotação XXXVII. Os intérpretes (pelo menos os que tive oportunidade
de ver) traduzem mal os vers. 19 e 23 deste capítulo. De facto, não se diz aí
que lhe deu ordens ou que os instruiu por meio de ordens, mas que nomeou,
ou seja, constituiu Josué como príncipe, o que é frequente na Escritura, como
• Anotação XXXVI. Nesta passagem [dos Números] dois homens [cujos acontece no f.xodo, cap. XVlll, 23, em Samuel, liv. 1, cap. xm, 15, em Josué,cap. 1,
nomes estão escritos no capítulo n, 28, deste Livro] são acusados de terem pro- 9, e em Samuel, liv . 1, cap. xxv, 30, etc.
fetizado nos acampamentos [a notícia chegou logo a Moisés] e Josué consi- [Quanto mais os intérpretes se esforçam por traduzir palavra a palavra
dera que eles devem ser presos, o que não teria feito [nem teria a preocupa- os vers . 19 e 23 deste capítulo, menos inteligíveis eles ficam. Estou até certo de
ção de o contar a Moisés como uma acção criminosa], se fosse permitido a que muito poucas pessoas entendem o seu verdadeiro sentido; porque a
cada um, sem ordem de Moisés, transmitir ao povo as respostas de Deus. maioria imagina que Deus ordena a Moisés, no vers. 19, que dê instruções a
Moisés, todavia, preferiu absolver os réus e critica Josué por o aconselhar a Josué em presença da Assembleia e que, no vers. 23, ele lhe impôs as mãos e
manter o seu direito régio numa altura em que sentia tal tédio pelo poder que o instruiu. O que se esquece é que esta maneira de falar é muito frequente
teria preferido morrer a reinar sozinho, como se vê no vers. 14 [e 15) do mesmo entre os Hebreus para declarar que a eleição do Príncipe é legítima e que ele
capítulo, onde ele responde assim a Josué: irritas-tepor minha causa? Oxalá todo é confirmado no seu cargo. É assim que fala Jetro, quando aconselha Moisés
o povo de Deus fosse profeta,quer dizer, [tu gostarias que fosse só eu a reinar, a escolher coadjutores que o auxiliem a julgar o povo: Se fizeres isto (disse),
por mim, eu desejaria) oxalá o povo voltasse a ter o direito de consultar Deus para então Deus ordenar-te-á,como que a dizer que a sua autoridade seria firme e
que o reino estivesse nas suas mãos [e me deixassem em paz] . Josué, portanto, duradoira. A este respeito, veja-se o t.xodo, cap. xvm, 23, o liv. 1 de Samuel,
não ignorou o direito [e a autoridade] mas a oportunidade e, por isso, foi re- caps. XIII, 15, e xxv, 30, e sobretudo o cap. r, 9, de Josué, onde Deus lhe diz: Não
preendido por Moisés, tal como Abisaiu o foi por David, quando aconselhou te ordenei?Ganha corageme mostra-tehomem de ilnimoforte! É como se Deus lhe
o rei a condenar à morte Semei, que era indiscutivelmente réu de [lesa-] ma- dissesse : Não fui eu que te constituí príncipe? Não tenhas medo de nada, pois eu
jestade. (Ver Samuel, u, cap. XIX, 22, 23.) estarei sempre contigo!)

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o mais próximo de Deus, era o supremo intérprete das leis di- a arca da aliança era levada no meio do exército para que o
vinas, aquele que dava ao povo as respostas do oráculo divino povo, vendo o seu rei como se ele estivesse ali presente, com-
e que, finalmente, suplicava a Deus pelo povo. Se tivesse tam- batesse com o máximo das suas forças.
bém o direito de impor essas mesmas leis, não faltaria nada Por estas indicações deixadas por Moisés aos seus sucesso-
para que fosse um monarca absoluto. Faltava-lhe, no entanto, res concluímos facilmente que ele escolheu administradores e
esse direito, uma vez que a tribo de Levi ficou a tal ponto arre- não donos do Estado. A ninguém, com efeito, deu o direito de
dada do poder comum que ~ão teve sequer, como as out_ras consultar Deus onde quisesse e a sós: consequentemente, não
tribos, direito a possuir uma parcela · de· terra de onde pudesse deu a ninguém a autoridade, que ele próprio tinha, de estatuir
ao menos tirar o sustento: Moisés' :estabeleceu, pelo contrário, leis e de as revogar, decidir da guerra e da paz, escolher os
que ela seria sustentada pelo resto do povo, embora de :modo a .. administradores, tanto do templo como das cidades, funções
que fosse tida na maior consideração pelo comum da plebe, estas que pertencem todas a quem detém a soberania. O sumo
porquanto era a única dedicada a Deus. · · ·- - pontífice tinha, efectivamente, o direito de interpretar as leis e
Depois, constituído um exército das restantes doze tribos, de dar as respostas de Deus, mas não cada vez que quisesse,
foi-lhes ordenado que invadissem · o Estado dos Cananeus, que como Moisés; só quando lhe fosse solicitado pelo chefe dos exér-
o dividissem em doze partes e as distribuíssem à sorte pelas citos, pelo Conselho Supremo ou por outras autoridades seme-
tribos: para esta missão foram eleitos doze príncipes, um de lhantes. Em contrapartida, o comandante supremo dos exércitos
cada tribo, aos quais, juntamente com Josué e o sumo sacerdote e os Conselhos podiam consultar Deus quando quisessem, mas
Eleazar, foi conferido o direito de dividir as terras em doze só recebiam as respostas através do sumo pontífice. Daí que, as
lotes iguais e reparti-los à sorte. Josué foi escolhido comandan- palavras de Deus não fossem decretos na boca do pontífice, tal
te supremo do exército e só ele tinha o direito de consultar como o eram na de Moisés, mas simplesmente respostas; só
Deus sobre questões novas (não como Moisés, a sós na sua ten- depois de aceites por Josué e pelos Conselhos é que adquiriam,
da, ou no tabernáculo, mas por intermédio do sumo sacerdote, finalmente, força de mandamento e de lei.
que era o único a quem eram dadas as respostas de Deus), de Por outro lado, este sumo pontífice, que recebia de Deus as
promulgar depois as ordens divinas comunicadas através do suas respostas, não tinha exército nem possuía, por direito, al-
pontífice, de obrigar o povo a respeitá-las, de pensar e utilizar gum poder; em contrapartida, os que por direito, possuíam ter-
os meios para que elas fossem executadas, de recrutar para o ras não podiam, por direito, instituir leis. Além disso, os sumos
exército quantos homens quisesse e aqueles que quisesse, e de pontífices, tanto Aarão como seu filho Eleazar, foram ambos es-
[2091 enviar embaixadores em seu nome. Todo o direito de guerra colhidos por Moisés; morto este, mais ninguém teve o direito
dependia, única e absolutamente, da sua decisão. Mas ninguém de escolher um pontífice, sucedendo o filho legitimamente ao
podia suceder-lhe legitimamente ou ser eleito por quem quer pai. O comandante supremo do exército foi também escolhido
que fosse a não ser directamente por Deus e quando o interesse por Moisés e assumiu esse papel, não em virtude do direito do
de todo o povo o exigisse. Caso contrário, todos os assuntos re- sumo pontífice, mas em virtude do direito que Moisés lhe deu.
lativos à guerra e à paz seriam administrados pelos chefes das Daí que, morto Josué, o pontífice não elegeu mais ninguém para [2101
tribos, conforme mostrarei daqui a pouco. o seu lugar e os chefes das tribos também não consultaram Deus
Finalmente, Moisés ordenou que todos, entre os 20 e os 60 sobre um novo comandante: cada um deles assenhorou-se do
anos, pegassem em armas para o serviço militar e que se for- direito que Josué tivera sobre o exército da respectiva tribo,
masse um exército só de nacionais, o qual juraria fidelidade, ficando todos em conjunto com o direito que Josué possuía so-
não ao comandante nem ao sumo pontífice, mas à religião, isto bre todo o exército. E, ao que parece, não era necessário um
é, a Deus. Por isso, o exército e os batalhões se chamavam «de comandante geral, a não ser quando, reunindo todas as forças,
Deus» e Deus, por sua vez, era designado entre os Hebreus por tinham de combater contra um inimigo comum, o que teve lu-
Deus dos exércitos, razão pela qual, nas grandes batalhas de gar, sobretudo, no tempo de Josué, em que ainda não possuíam
cujo desfecho dependia a vitória ou a derrota de todo o povo, todas um território fixo e em que tudo era de direito comum.

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Porém, a partir do momento em que todas as tribos dividiram ou alguém expressamente enviado por este como profeta; aliás,
entre si as terras adquiridas por direito de conquista, bem como se se afastasse de Deus, as restantes tribos não deviam julgá-lo
as que até aí estavam autorizadas a possuir, deixando de ser como súbdito, mas atacá-lo como inimigo que tinha sido infiel
tudo de todos, a partir daí cessou também a justificação para a ao pacto.
existência de um comandante comum, visto que esta divisão fa- Temos exemplos disto na Escritura. Assim, após a morte de
zia com que as diversas tribos não devessem considerar-se con- Josué, foram os filhos de Israel, e não um novo comandante,
cidadãs, mas sim confederad~s. No que respeita a De\J.Se ~ re- quem consultou Deus. E quando se percebeu que a tribo de
ligião, deviam éfectivamente considerar~se concidadãs; mas, no Judá devia ser a primeira de todas a mover guerra ao seu ini-
que respeita ao direito que -cada 'uma tinha sobre a outra, elas migo, ela fez sozinha um tratado com a tribo de Simeão para
eram apenas confederadas, da ·mesma forma quase, se e-xcep- juntarem as suas forças contra o inimigo comum, tratado este
tuarmos o templo comum, que · os Estàdos Confederados ·da Ho- em que não foram incluídas as restantes tribos Uuízes, cap. 1, 1,
landa 8. Na realidade, a divisão de urna coisa comum -em várias 2 e 3). Cada uma delas resolvia em separado (conforme se relata
partes não é senão o ser cada um o único dono da sua parte, no citado capítulo) a guerra contra o respectivo inimigo e acei-
renunciando os outros ao direito que tinham sobre ela. A razão tava a submissão e a palavra de quem ela quisesse, muito em- [2111

por que Moisés escolheu os príncipes das tribos foi, portanto, hora as ordens fossem abster-se de qualquer pacto, fosse em que
fazer com que, após a divisão do Estado, cada um fosse res- condições fosse, e exterminá-los a todos. É certo que eram re-
ponsável pela sua parte, isto é, por consul tar Deus sobre os as- criminadas por essa falta, mas ninguém as convocava a tribunal.
Nem era motivo para começarem a guerrear-se en tre si ou a
suntos da sua tribo através do sumo pontífice, comandar o seu
intrometerem-se nos assuntos umas das outras; em con trapartida,
exército, fundar e fortificar cidades, instituir juízes em cada uma
invadiram corno a inimigos os Benjaminitas, que tinham ofen-
delas, combater os inimigos do seu próprio Estado e administrar
dido os outros e rompido o vínculo da paz, de tal maneira que
absolutamente todos os assuntos da guerra e da paz. O chefe
já ninguém das tribos confederadas podia lá hospedar-se em
não era obrigado a reconhecer nenhum outro juiz além de Deus *
segurança. E tendo-os finalmente vencido ao cabo de três bata-
lhas, trucidaram-nos a todos, culpados e inocentes, de acordo
com a lei da guerra, o que vieram depois a lamentar, arrepen-
* AnotaçãoXXXVlll. Os rabinos supõem que foi Moisés que instituiu aquilo dendo-se quando já era tarde.
a que vulgarmente se chama o Grande Sinédrio. Aliás, não são só os rabinos,
são também muitos cristãos, que deliram com eles. É verdade que Moisés
escolheu setenta coadjutores para com ele se ocuparem da república, já que
não podia suportar sozinho o encargo de todo o povo, mas nunca fez qual- a ele], etc., ou ainda o rei, para o qual todas as tribos ou pelo menos algumas
quer lei a instituir um conselho de setenta membros; pelo contrário, ordenou tinham transferido os seus direitos. Em abono disto, poderia alegar vários
que cada tribo, nas cidades que Deus lhe tinha atribuído, constituísse juízes exemplos tirados das narrativas históricas, mas darei apenas um de entre
para dirimirem os litígios [e punirem os delinquentes] de acordo com as leis muitos, que me parece o principal. Quando o profeta Silonita escolheu para
por ele definidas. Se, por acaso, os próprios juízes tivessem dúvidas sobre o rei Jeroboão, deu-lhe por inerência o direito de consultar o pontífice e de ins-
direito, deviam ir consultar o sumo pontífice (quer dizer, o supremo intérpre- tituir juízes, de forma que ele obteve sobre dez tribos absolutamente todos os
te das leis) ou o juiz a que nesse momento estivessem subordinados (pois ele direitos com que Roboão ficou sobre duas. Por isso, Jeroboão podia instituir
tinha o direito de consultar o pontífice), e resolver a contenda segundo a ex- na sua própria corte um Conselho de Estado, com o mesmo direito que tinha
plicação do pontífice. Porque, se acontecesse o juiz subordinado pretender que Josafá em Jerusalém (ver Paralip.,n, cap. XIX, 8 e seguintes). Porque a verdade
não era obrigado a pronunciar a sua sentença de acordo com a opinião do é que, sendo Jeroboão rei por mandato divino, os seus súbditos não eram
sumo pontífice, quer a tivesse recebido dele ou do soberano, era condenado à obrigados pela lei de Moisés a reconhecer Roboão, de quem não eram súbdi-
morte, certamente pelo juiz supremo que estivesse em funções na altura e tos, como juiz, e muito menos ainda um tribunal de Jerusalém, por ele institu-
pelo qual havia sido nomeado (d. Deut., cap. xvu, 9), quer este fosse o coman- ído e a ele subordinado. Assim que o Estado hebreu se dividiu, houve tantos
dante-em-chefe, como Josué, de todo o povo israelita, ou o chefe de uma das conselhos supremos [diferentes e independentes uns dos outros] quantas as
tribos, a quem passou a competir, após a divisão, o direito de consultar o partes resultantes dessa divisão. Aqueles que não têm em conta a diversidade
pontífice sobre os assuntos da sua tribo, sobre a guerra e a paz, as cidades a de situações dos Hebreus e reduzem todas elas a uma só [como se fossem
fortificar, os juízes a eleger [nas suas cidades e que ficariam subordinados só todas a mesma coisa], enredam-se em múltiplas dificuldades.

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Tais exemplos confirmam plenamente o que dissemos sobre pretação do direito depende unicamente deles . É, com efeito,
o direito de cada tribo. Perguntar-se-á, porventura, quem é que evidente que eles extraem daí a máxima liberdade para fazerem
escolhia o sucessor do príncipe de cada urna delas. A este res- tudo quanto querem e o apetite lhes sugere; pelo contrário, boa
peito, não posso concluir nada ao certo da Escritura. Presumo, parte dessa liberdade é-lhes tirada se o direito de interpretar
no entanto, visto cada uma estar dividida em fanu1ias cujos che- as leis pertencer a um outro e se, ao mesmo tempo, a verda-
fes eram escolhidos entre os mais velhos, que o mais idoso des- deira interpretação for de tal maneira clara para todos que nin-
tes sucedia por direito ao príncipe da tribo. Foi, com efeito, guém possa duvidar dela. É, por isso, evidente que se poupou
entre os anciãos que Moisés escólheu os setenta coadjutores que os príncipes dos Hebreus a uma enorme causa de crimes, ao
com ele formavam o Conselho . Supremo; - aqueles a quem coube atribuir-se todo o direito de interpretar as leis aos Levitas (Deu-
gerir o Estado após a morte de Josué são designados na : Escri- ter., cap. XXI, 5), que não partilhavam com os outros da adminis-
tura por anciãos; e não há nada, enfim, mais fre_quente entre os tração do Estado nem da posse da terra e cuja fortuna e honra
Hebreus, corno julgo que toda a gente sabe~ do qtie tràtar Ós dependiam integralmente da interpretação verdadeira das leis.
juízes por anciãos. Pouco importa, aliás, para aquilo que nos Depois, porque todo o povo estava obrigado a reunir-se, de
propomos, sabê-lo ao certo; basta mostrar que, após a morte de sete em sete anos, num determinado lugar, a fim de ser instruí-
.., Moisés, não houve mais ninguém que tivesse exercido todas as do nas leis pelo pontífice, além de cada um, a sós, dever ler e
funções de comandante supremo. Na verdade, uma vez que não reler constantemente e com a maior atenção o livro da lei (ver
dependia tudo de um único homem, nem de um único Conse- Deuter., caps. xxx,, 9, etc., e v1, 7). Os príncipes deviam, por-
lho, nem de uma deliberação do povo, sendo umas coisas admi- tanto, até no seu próprio interesse, procurar administrar tudo
nistradas por urna tribo, outras, em igualdade de direi tos, pelas segundo as leis prescritas e bem conhecidas de todos, se que-
restantes, segue-se com toda a evidência que, depois da morte riam ser alvo das maiores honras por parte do povo, que nesse
de Moisés, o Estado ficou, não monárquico, nem aristocrático caso os venerava como ministros do Estado de Deus e como
ou popular, mas sim teocrático: primeiro, porque a casa real do alguém que fazia as vezes de Deus. Caso contrário, seria impos-
Estado era o templo e só por esta razão, como mostrámos, to- sível escaparem ao pior ódio dos súbditos, o qual costuma ser o
das as tribos eram concidadãs; segundo, porque todos os cida- ódio teológico.
dãos deviam jurar fidelidade a Deus, seu juiz supremo, o único Para este mesmo fim, isto é, para conter o desejo desen-
a quem tinham prometido obedecer absolutamente em tudo; fi- freado dos chefes, juntou-se outro factor da maior importância:
nalmente, porque o comandante supremo de todas as tribos, o exército ser formado por todos os cidadãos (nenhum, dos 20
quando era necessário, não era escolhido por ninguém a não aos 60 anos, estava dispensado) e os chefes não poderem con-
ser por Deus. É o que Moisés, em nome de Deus, expressamente tratar nenhum soldado estrangeiro como mercenário. Isto, su-
prediz ao povo (Deuter., cap . XVIII, 15) e é, na realidade, o que a blinho, foi da maior importância, visto ser certo que os prínci- [2131
escolha de Gedeão, Sansão e Samue l confirmam; não há, por- pes só com um exército ao qual pagam ordenado podem oprimir
[2121 tanto, razão para duvidar de que os outros chefes fiéis não te- o povo, ao passo que não há nada que eles mais receiem do
nham sido escolhidos de maneira semelhante, apesar de isso não que a liberdade dos soldados seus concidadãos, de cuja virtu-
constar da sua história. de, trabalho e sangue abundantemente derramado nasceu a liber-
Posto isto, é altura de vermos até que ponto um Estado dade e a glória do Estado. Por isso é que Alexandre, quando
assim constituído podia moderar os ânimos e conter quer os teve de combater Dario pela segunda vez, ao ouvir o conselho
governantes, quer os governados, de modo a que nem estes se de Parménion não se voltou contra este, que o tinha aconselha-
tornassem rebeldes, nem aqueles tiranos. do, mas contra Polisperconte, que concordava com ele. De fac-
Os que administram o Estado ou são seus detentores, qual- to, como diz Cúrcio, liv. IV, § 13, não ousou repreender de novo
quer crime que cometam tentam apresentá-lo sempre como uma Parménion, a quem, pouco tempo antes, havia criticado mais
espécie de direito e persuadir o povo de que agiram honesta- severamente do que desejara, nem conseguiu oprimir a liberda-
mente, o que conseguem com facilidade quando toda a inter- de dos Macedónios, a quem, como já dissemos, temia mais que

352 353
l
tudo, enquanto o número dos soldados recrutados entre os ca- dãos, sendo, portanto, os mesmos homens que administravam,
tivos não superou o dos soldados Macedónios. Só então, redu- quer os assuntos respeitantes à guerra, quer os respeitantes à
zido à impotência o seu ânimo, que até aí fora coarctado pela paz. Quem nas trincheiras era soldado na praça pública era ci-
liberdade dos melhores de entre os cidadãos, ele pôde dar lar- dadão; quem nas trincheiras era comandante no tribunal era juiz;
gas às suas paixões. Se, portanto, esta liberdade dos exércitos e quem no exército era comandante supremo na cidade era prín-
de concidadãos inibe os príncipes de um Estado simplesmente cipe. Assim, ninguém podia desejar a guerra pela guerra, mas
humano, que costumam usurpar só para si toda a gló_ria d_as sim pela paz e pela defesa da liberdade. E é provável que o
vitórias, quaritó mais não deve ela ter inibido os príncipes dos príncipe, para não ser obrigado a dirigir-se ao sumo pontífice
Hebreus, cujas tropas combatiam, n~o ·pela . glória do príncipe, nem ter de estar perante ele em posição de inferioridade, se ._
mas pela glória divina, e que .não se entregavam ao combãte abstivesse o mais possível de alterar as coisas. Isto, no que toca
enquanto não recebessem a resp·osta de Deus. . . - às razões que faziam os príncipes conter-se nos seus limites.
Acresce, depois, que todos os· príncipes dos . Hebreus esta- Ternos agora de ver por que razão o povo se continha, mas
vam ligados entre si apenas pelo vínculo da religião; nessa me- também isso os fundamentos do Estado indicam com toda a
dida, se algum deles a renegasse e começasse a violar o direito clareza. De facto, se repararmos neles, nem que seja por alto,
divino de cada um, podia ser tido pelos outros como inimigo e ver-se-á imediatamente que deviam despertar um amor tão sin-
legitimamente subjugado. gular nos ânimos dos cidadãos que não havia nada mais difícil
Em terceiro lugar, havia o receio de qualquer novo profeta. de acudir à cabeça de alguém que trair a pátria ou desertar e
Bastava, efectivamente, que alguém de vida irrepreensível mos- que todos deviam, pelo contrário, estar-lhe tão ligados que pre-
trasse, por meio de certos sinais reconhecidos, que era um pro- feriam morrer a serem dominados por estrangeiros. Porque, ·
feta para ter, por esse mesmo facto, o direito supremo de man- depois de transferirem o seu direito para Deus, acreditaram que
dar, tal como Moisés, em nome de Deus, que só a ele se revelara, o seu reino era o reino de Deus e que só eles eram filhos de
e não apenas corno os príncipes, que consultavam Deus por meio Deus, enquanto as outras nações eram inimigas de Deus, razão
do pontífice. E o certo é que tais profetas podiam sem proble- por que estas lhes inspiravam o ódio mais profundo Gulgavam
mas levar atrás de si um povo oprimido e convencê-lo, com os até que tal ódio era piedoso, vide o salmo CXXXIX, 21, 22}; nada
mais simples sinais, daquilo que quisessem. Já quando as coisas lhes era mais abominável do que jurar fidelidade a um estran-
andavam correctamente administradas, o príncipe podia, pelo geiro e prometer-lhe obediência; não podia imaginar-se nada
contrário, providenciar a tempo, de maneira que o profeta ti- mais vergonhoso nem mais execrável a seus olhos que trair a
vesse primeiro de comparecer no seu tribunal para ele averi- pátria, isto é, o próprio reino do Deus a quem adoravam; até o
guar se a sua vida era irrepreensível, se apresentava sinais cer- ir habitar para qualquer lugar fora da Pátria era considerado
tos e indubitáveis de que fora enviado e, finalmente, se o que infâmia, pois só em solo pátrio era permitido praticar o culto
pretendia dizer em nome de Deus estava de acordo com a dou- de Deus, ao qual estavam sempre obrigados, de tal maneira que
trina recebida e as leis gerais da pátria. Porque, se os sinais não aquele era tido como o único local sagrado, enquanto os outros
fossem suficientes, ou se a doutrina fosse novidade, ele tinha o eram tidos por imundos e profanos. É por isso que David, obri-
12141direito de o condenar à morte; caso acontecesse o contrário, o gado a exilar-se, se queixa assim a Saul: Se os que te instigam
profeta era aceite unicamente devido à autoridade e ao teste- contra mim são homens,malditos sejam eles, já que me expulsampara 121s1
munho do príncipe 9_ que eu não me passeiena herdadede Deus e me dizem «vai e presta
Em quarto lugar, o chefe não era superior aos outros, nem culto aos deuses estrangeiros».Também por este motivo, nenhum
pela nobreza nem pelo direito de sangue, pois só em virtude da cidadão (o que é particularmente digno de nota) era condenado
sua idade e da sua virtude lhe competia a administração do Estado. ao exílio: aquele que peca é, com efeito, digno de suplício, mas
Finalmente, nem os príncipes nem o conjunto do exército não de opróbrio 10.
podiam desejar a guerra mais do que a paz. O exército, com O amor dos Hebreus pela pátria não era, pois, um simples
efeito, tal como nós dissemos, era constituído apenas por cida- amor, era piedade, e esta, juntamente com o ódio pelas outras
.
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nações, era de tal forma alimentada e fomentada pelo culto quo- príncipe e cada um era dono dela para sempre. Porque se al-
tidiano que acabou por se converter numa segunda natureza. guém, coagido pela pobreza, vendesse a sua quinta ou os seus
De facto, o culto quotidiano não era só inteiramente diferente campos, na altura do Jubileu ela ser-lhe-ia integralmente resti-
(o que fazia a sua absoluta singularidade e os separava por com- tuída. E havia outras instituições semelhantes para impedir que
pleto dos outros povos): era, além disso, absolutamente contrá- alguém alienasse os seus bens. Em parte alguma, além disso, a
rio. Desta quotidiana recriminação devia, por isso, nascer um pobreza podia ser mais facilmente suportada do que numa terra
ódio permanente e mais arreigado nos ânimos que qualquer onde a caridade para com o próximo, melhor dizendo, para com
outro, na medida em qué se considerava piedoso e não há, de- o concidadão, devia ser praticada com a maior piedade para
certo, ódio maior e .mais pertu:iaz do que um ódio assim. Não que Deus, seu rei, lhes fosse propício. Os cidadãos hebreus não
faltava sequer aquela causa ·que habitualmente faz:corri ·que um podiam, portanto, sentir-se bem senão na sua pátria, ao passo que
ódio se torne cada vez mais aceso, ou seja, a reciproci_dade, já fora dela só tinham a esperar os maiores prejuízos e a desonra.
que as nações estrangeiras deveriam ler por eles o ódio mais · Havia ainda outros motivos que os persuadiam, não apenas
profundo. a ficar em solo pátrio, mas também a evitar as guerras civis e a
Em que medida é que tudo isto, quer dizer, o estarem li- suprimir as causas de discórdia, principalmente o facto de nin-
vres de um poder humano, a devoção à pátria, o direito abso- guém ser servo do seu semelhante, mas apenas de Deus, e o
luto sobre todos os outros, o ódio, não apenas lícito mas até ter-se a caridade e o amor para com os concidadãos por suma
piedoso, o tê-los todos por inimigos, a singularidade dos costu- piedade, alimentada em boa parte pelo ódio comum que tinham
mes e dos ritos, em que medida, dizia eu, contribuiu isto para pelas outras nações e que estas tinham por eles. Além disso, e
fortalecer os ânimos dos Hebreus de modo a suportarem tudo acima de tudo, persuadia-os a rigorosa disciplina da obediência
pela pátria com uma constância e uma virtude ímpares? A razão em que eram educados e segundo a qual tudo o que faziam
explica-o com toda a clareza e a própria experiência o confirm _a. devia reger-se por uma determinada prescrição da lei: não era
De facto, enquanto a Cidade esteve de pé, nunca eles puderam lícito lavrar à sua vontade, mas só em certas épocas, em certos
permanecer sob um poder estrangeiro, razão pela qual Jerusa- anos e sem emparelhar bestas de mais do que uma espécie; do
lém era vulgarmente conhecida por cidade rebelde (vide Esdras, mesmo modo, só era lícito semear e ceifar de determinada ma-
cap. 1v, 12, 15). O segundo Estado (que já era só uma sombra neira e num dado momento; Joda a sua vida, em suma, era um
do primeiro, depois de os pontífices usurparem também o di- contínuo exercício de obediência (sobre este aspecto, veja-se o
reito do principado) dificilmente pôde ser destruído pelos Roma- cap. v, relativo à utilidade das cerimónias) . Daí que, de tão ha-
nos, conforme o próprio Tácito testemunha nas Histórias, liv. 11: bituados a ela,_ a obediência já nem devia parecer-lhes escravi-
Vespasianotinha quase terminadoa guerra contra os Judeus, restando dão _mas liberdade, o que devia levar também a que ninguém
apenaso cercoa Jerusalém,empresadifícil e árdua, mais pela maneira desejasse o proibido, mas apenas o que estava ordenado.
de ser dessagente e a obstinadasuperstiçãoque por restaremaos sitiados Para isso contribuiu também imenso, ao que parece, o facto
forças suficientespara suportaremas privações. de, em certas alturas do ano, serem obrigados a descansar e a
Independentemente, porém, destes aspectos , cuja apreciação divertir-se, não para fazerem a sua vontade, mas para fazerem
é subjectiva, havia neste Estado uma outra coisa que lhe era a vontade de Deus: três vezes por ano eram convidados de
específica, algo de muito sólido por meio do qual os cidadãos Deus (Deuter., cap. xVJ),ao sétimo dia da semana deviam cessar
deveriam estar sobremaneira condicionados, de forma a não todo o trabalho e descansar. E havia ainda outras datas marca-
pensarem em desertar nem terem qualquer desejo de abando- das em que os divertimentos honestos e os banquetes festivos
nar a Pátria: refiro-me ao interesse, que é a força e a vida de eram, não só autorizados, mas prescritos. Mais eficaz do que
todé!s as a_cções humanas e que, nes~e_Est~c:!_~repitq, _ ~-r~~s~
121~!.. isto para fazer vergar o ânimo dos homens, não creio que se
cial. Na verdade, em parte alguma os cidadãos tinham tão asse- possa imaginar alguma coisa, visto que não há nada que mais
gurado o direito de propriedade como os súbditos deste Estado, arrebate os ânimos que a alegria nascida da devoção, isto é, do
os quais possuíam uma parcela de terras e campos igual à do amor junto com a admiração. Nem sequer havia o risco de se- 12

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rem facilmente invadidos pelo tédio das coisas muito repetidas, tura de vulva (isto é, todo o primogénito) a fim de os destruir, para
uma vez que o culto destinado aos dias de festa era variado e que soubessem que eu so11Jeová. Para entender correctamente estas
só de tempos a tempos. palavras e a causa da ruína do Estado, deve notar-se que a 121s1
A isto acresce a profunda veneração pelo templo que eles primeira intenção tinha sido entregar o ministér io sagrado aos
sempre conservaram religiosamente em virtude do carácter sin- primogénitos e não aos Levitas (vide Números, cap. vm, 17); mas,
gular do seu culto e dos ritos que se tinham de observar antes a partir do momento em que todos, com excepção dos Levitas,
que fosse permitido a alguém lá entrar, de tal forma que aj.nda adoraram o bezerro, os primogénitos foram repudiados e consi-
hoje não é ·sem · um profundó horror que· eles lêem a ignomínia derados impuros, sendo os Levitas eleitos em seu lugar (Deu-
de Manassés, que teve ~·audácia _de -pôr . um ídolo no próprio ter., cap. x, 8). Quanto mais penso nesta mudança, mais me sin-
templo. E em relação às leis,: que ·eram religiosamente . guarda- to obrigado a exclamar com Tácito que, naquele momento, Deus
das num sacrário recôndito, o ·respeito do povo não era menor. não se preocupou com a segurança deles, mas sim com a sua
Por isso, as murmurações e preconceitos, nesta matéria~ não eram punição. E nem consigo admirar-me o suficiente por existir em
minimamente de recear, pois ninguém ousa fazer juízos sobre ânimo celeste uma cólera tão grande que até as próprias leis,
coisas divinas; pelo contrário, eles tinham de obedecer, sem con- que sempre visam unicamente a honra, o bem e a segurança de
sultar sequer a razão, a tudo quanto lhes era imposto em nome todo o povo, ele as tenha instituído com o intuito de se vingar
da autoridade da resposta divina recebida no templo ou da lei e de os punir, de tal maneira que as leis já nem pareciam leis,
estabelecida por Deus. ou seja, o bem do povo, mas penas e suplícios.
Julgo, com isto, ter exposto de maneira suficientemente da- Na realidade, todas as oferendas que eram obrigados a dar
ra, ainda que breve, a suprema regra deste Estado. Falta agora aos Levitas e aos sacerdotes, o terem de resgatar os primogéni- ·
averiguar também as causas por que se afastaram os Hebreus tos e pagar por cada um deles uma certa quantia aos Levitas e,
tantas vezes da lei, por que foram tantas vezes subjugados e finalmente, o só a estes ser concedido o acesso às coisas sagra-
como pôde, enfim, o Estado ser completamente destruído. Dir- das, tudo isso lhes fazia constantemente lembrar a sua impure-
-se-á talvez que tal aconteceu por causa da rebeldia desta gente. za e o terem sido repudiados. Os Levitas, por sua vez, tinham
Mas isto é infantil! Por que é que esta nação foi mais rebelde sempre algo que se lhes censurasse. De facto, entre tantos mi-
que as outras? Seria por natureza? A natureza não cria nações, lhares, encontrava-se certamente um bom número de insuportá-
cria indivíduos, os quais são de nacionalidades distintas em vir- veis «teologastros», o que explica o desejo do povo de espiar os
tude apenas da diversidade da língua, das leis e dos costumes actos dos Levitas, que ao fim e ao cabo eram homens, e de os
herdados, e só estes dois últimos aspectos, as leis e os costu- acusar a todos pelo delito de um só. Daí os constantes boatos e
mes, podem fazer com que cada nação tenha uma maneira de a aversão a terem de sustentar, principalmente se os víveres
ser singular, uma condição singular e, finalmente, preconceitos estavam caros, homens ociosos e odiados a que nem eram liga-
singulares. Se, por conseguinte, fosse de admitir que os Hebreus dos pelo sangue. Não é, portanto, de admirar que, em períodos
foram mais insubmissos do que o resto dos mortais, haveria calmos, quando os milagres cessavam 11 e não apareciam homens
que o imputar a deficiência das leis ou dos costumes herdados . de excepcional autoridade, o ânimo do povo, irritado e avaro,
E, certamente, se Deus quisesse que o Estado hebreu fosse mais começasse a enfraquecer e acabasse por abandonar um culJp..que, -
TI' estável, teria fundado de outro modo as leis e os direitos e embora divino , se lhe tornava ignominioso e até suspeito~ pas-
ri
instituído outro sistema de o administrar. Assim, o que pode- sando a desejar um novo. Tão-pouco é de admirar que os prín-
mos nós dizer senão que eles tiveram contra si a ira do seu cipes, que para obterem só para si a soberania procuravam sem-
. · Deus, não apenas, como diz Jeremias,cap. xxxa, 31, desde a fun- pre um meio de atrair a si o povo e desviá-lo do pontífice, lhe
dação da Cidade, mas logo desde a fundação das leis? É o que tenham feito todas as concessões e introduzido cultos novos.
Ezeqúiel corrobora quando diz (cap. xx, 25): Dei-lhes também esta- Se a república tivesse sido constituída de acordo com a pri-
tutos que não eram bons e direitos com os quais eles não viveriam, meira intenção, todas as tribos teriam sempre igual direito e
porque os tornei impuros pelas suas oferendas,repudiandotoda a aber- dignidade e todos se teriam mantido em perfeita segurança.

!mr• 358 359


Quem, com efeito, quereria violar o direito sagrado dos seus sidade e a preguiça, razão pela qual tudo se começou a deterio-
consanguíneos? Que outra coisa prefeririam a sustentar gente rar, até que, subjugados por diversas vezes, romperam por com-
do mesmo sangue, irmãos e pais, por piedade religiosa, apren- pleto com o direito divino e quiseram um rei mortal, de modo a
12191der com eles a interpretação das leis, esperar deles, enfim, as que a sede do Estado deixasse de ser o templo para passar a ser
divinas respostas? Por outro lado, todas as tribos se teriam um palácio e todas as tribos fossem concidadãs, já não em vir-
mantido muito mais estreitamente unidas assim, quer dizer, se tude do direito divino e do pontificado, mas do direito dos reis 12•
tivessem todas igual direito a administrar as coisas sagradas. Tais alterações deram, no entanto, matéria abundante para
Nem haveria · algo a temer se á própria ·eleição dos Levitas ti- novas sedições, de que resultou, enfim, a ruína total do Estado.
_ve~se sido motivaaapor - u,ma. outra : çãusa ·que:nãO a- Cóieraea Que há, efectivamente, de mais insuportável para os reis que
cvingança. Mas, como dissemos, eles incorreram na ira :do - seu reinar a título precário e ter de tolerar um Estado dentro do 12201
Deus, o qual, para citar de novo as palavras - de Ezequiel, os Estado? Os primeiros, como tinham sido eleitos de entre os ci-
tomou impuros nas suas oferendas, repudiahdb toda à àberti.Íra dadãos, contentaram-se com o grau de dignidade a que hav iam
de vulva a fim de os destruir. ascendido. Porém, quando os filhos deles tomaram posse do
Isto mesmo é, além disso, confirmado pelos próprios rela- reino, por direito de sucessão, começaram pouco a pouco a
tos históricos. Assim que o povo começou a ficar ocioso no de- mudar tudo para chamar a si a plena soberania, boa parte da
serto, houve logo muitos, e que não eram plebeus, que começa- qual lhes escapava na medida em que o direito de legislar não
ram a suportar com dificuldade esta eleição e viram aqui um dependia deles mas do pontífice, o qual guardava as leis no
pretexto para acreditar que Moisés não tinha instituído nada santuário e as interpretava para o povo. Na verdade, eles esta-
por mandato divino mas por sua iniciativa, porquanto tinha es- vam, tal como os súbditos, sujeitos às leis e não podiam revo-
colhido, de entre todas, a sua própria tribo e conferido~ gá-las nem instituir outras com igual autoridade. Por outro lado,
~ o pontificado ao seu ir~o. Foram, por isso, ter com ele o direito dos Levitas vedava aos reis e aos súbditos, por serem
em agitado tumulto, gritando que eram todos igualmente san- igualmente profanos, a administração das coisas sagradas. E, fi-
tos e que ele, contra o direito, se alçara acima de todos. E não nalmente, toda a segurança do seu poder estava à mercê da
houve maneira de os acalmar com nenhum argumento. Tendo, vontade de um só homem, desde que este fosse visto como
porém, Moisés recorrido a um milagre em sinal da sua fé, eles profeta, coisa de que tinha havido exemplos. Com que liberda-
foram todos exterminados. Daqui resultou nova sedição geral de Samuel não ordenava tudo a Saul e com que facilidade não
de todo o povo, que pensava que os revoltosos tinham sido pôde ele transferir para David, por causa de um único delito, o
exterminados, não em virtude de uma sentença divina, · mas _por direito de reinar. Por conseguinte, eles tinham um Estado den-
,1111
artes de Moisés, o qual só depois de uma grande calamidade tro do Estado e reinavam a título precário.
ou peste, os acalmou, exaustos, num tal estado que preferiam Foi, portanto, para ultrapassar esta situação que eles autori-
,,
j ..
todos morrer a continuar vivos. A bem dizer, era mais o fim da zaram que se dedicasse outros templos aos deuses, de modo a
-sedição do que o início da concórdia. É o que vem confirmado não terem mais de consultar os Levitas, e que procuraram de-
na Escritura (Deuter., cap. XXXI, 21), quando Deus diz a Moisés, pois vários indivíduos que profetizassem em nome de Deus, a
após ter-lhe vaticinado que o povo se afastaria do culto divino fim de terem profetas para contrapor aos verdadeiros. Mas, por
assim que ele morresse: porque eu conheço a sua cupidez e aquilo muito que tentassem, jamais conseguiram levar até ao fim o seu
que já hoje ele trama, quando ainda nem o conduzi à terra que lhe intento. Porque os profetas, que estavam dispostos a tudo, es-
prometi. E um pouco mais à frente, é Moisés que diz ao próprio peravam o momento oportuno, ou seja, o poder do sucessor, o
povo: porque eu conheçoa tua rebeldiae insubmissão.Se enquanto eu qual é sempre precário enquanto perdura a memória daquele
ainda estou convosco sois rebeldes a Deus, quanto mais não o sereis que o antecedeu: podiam então, com a autoridade divina, indu-
depois da minha morte. zir facilmente alguém que fosse inimigo do rei e conhecido pela
E assim aconteceu efectivamente, como se sabe. Seguiram-se sua virtude a vingar o direito divino e a tomar legitimamente o
grandes alterações, grande liberdade para fazer tudo, a licencio- poder ou parte dele. Em boa verdade, nem assim os profetas

360 361
11:1
:11,

podiam adiantar algum a coisa , pois embor a elimin ass em o ti -


rano, as causas da tirani a ficavam : a única coisa que faziam era
comprar, a preço de muito sangue de cidadãos, um novo ti-
rano . As discórdias e guerras civis eram, por conseguinte, inter-
minávei s ma s as causas da violação do direito divino foram sem-
pre as mesmas e não puderam eliminar-se sem eliminar, ao
mesmo tempo, o Estado inteiro . _
Vemos, assim, de que mÓdo a religião foi introduzida na CAPITIJLO XVIII [221]
república dos Hebreus e· em que : ~edida .o seu Estado teria
podido ser eterno se a justa cólera do legislador o tives:se :dei- ONDE SE CONCLUEM, A PARTIR DA REPÚBLICA DOS HEBREUS
xado continuar na mesma. Mas como não foi possível isto· acon- E DA SUA HISTÓRIA, ALGUNS PRINCÍPIOS POLÍTICOS
'I tecer, ele teve, por fim, de ser destruído. E não falei àqui senão
do primeiro Estado, porquanto o segundo mais não foi do que
12211 uma sombra do primeiro, visto os Hebreus estarem sujeitos ao
,n11
1
direito dos Persas, de quem eram súbditos, e os pontífices, uma Embora o Estado hebreu, tal como o concebemos no capí-
.vez recuperada a liberdade, terem usurpado o direito dos che- tulo anterior, pudesse ter durado indefinidamente, ninguém, con-
fes e conseguido o poder absoluto. Daí a enorme ambição dos tudo, pode hoje em dia imitá-lo nem seria aconselhável. De facto,
sacerdotes de chegarem a reinar e a ser, ao mesmo tempo, pon- se houvesse homens que quisessem transferir o seu direito para
tífices, razão por que não houve qualquer necessidade de dizer Deus, eles teriam, à semelhança dos Hebreus , de concluir com
mais coisas sobre este segundo Estado. Quanto a saber se o Deus um pacto explícito, para o qual seria necessário, não só a
primeiro, estável como o concebemos, poderá ser imitado ou se vontade dos que transfeririam o direito, mas também a vonta-
é louvável imitá-lo, tanto quanto possível, vê-lo-emos nos capí - de de Deus, para quem esse direito seria transferido . Ora, Deus
tulos seguintes. Aqui, só queria sublinhar, a título de conclusão, revelou por meio do s apóstolos que o seu pacto não mais se
o que já antes tinha sugerido, isto é, que de tudo quanto expu- escreveria com tinta, nem sobre tábuas de pedra, mas com o
semos neste capítulo resulta evidente que o direito divino ou espírito de Deus e no coração. Além disso, uma tal forma de
,iH,I de religião tem ' origem num pacto, sem o qual não existe senão Estado poderia, talvez, ser útil a homens que quisessem viver
1 !

1U : 1
o direito natural. Por isso, os Hebreus não estavam obrigados, isolados e sem comércio externo, fechar-se no interior das suas
por determinação religiosa, a qualquer piedade para com as fron teiras e cortar com o resto do mundo, mas de forma ne-
nações que não tinham participado neste pacto, mas apenas para nhuma a homens para quem ter contactos com os outros é uma
com os seus concidadãos. necessidade . Uma tal forma de Estado só poderia, por isso, ser
útil a muito poucos .
A verdade é que, apesar de não poder ser imitada em tudo,
ela teve, ainda assim, muitos aspectos altamente meritórios que
serão, pelo menos, dignos de registo e que talvez fosse aconse-
'"I lhável imitar . Não sendo, todavia, minha intenção, como já avi-
sei, tratar expressamente da república, deixarei de lado a maior
parte desses aspectos e registarei só aquilo que tenha a ver com 12221
o meu objectivo, a saber, que não é contrário ao reino de Deus
eleger uma suprema majestade que detenha a soberania. Com

~
efeito, os Hebreus, após terem transferido o seu direito para
Deus, atribuíram a Moisés o direito soberano de mandar, pelo
,, que só ele possuiu autoridade para instituir e revogar leis em

1
1

1, 362 363
nom e de Deus, escolher os ministros dos assuntos sagrados , jul- dam a ciência e é na sua boca que se procura a lei, porque ele é o
gar, ensinar, castigar, enfim, mandar absolutamente em todos e enviadode Deus. Mas vós afastastes-vosdo caminho, fizestes com que a
em tudo. Em segundo lugar, .,que aos ministros dos assuntos lei fosse escândalo para muitos, rompesteso pacto de Levi, diz o Deus
sagrados, embora fossem os intérpretes das leis, não lhes com- dos exércitos. E o profeta continua a acusá-los dizendo que eles
petia julgar os cidadãos nem excomungar quem quer que fosse, interpretavam as leis a seu bel-prazer, não olhando a Deus mas
dado que esse direito pertencia apenas aos juízes e aos prínci- apenas à qualidade das pessoas. É certo que os pontífices nunca
pes eleitos pelo povo Uosué, cap . v,, 26, Juízes, çap. J,<XI,18, e puderam actuar com a cautela suficiente para passarem desper-
Samuel; 1, cap. XN, 24). Além disso; se quisermos entrar também cebidos aos mais avisados e, por isso mesmo, estes sustentaram
em linha de conta ~om .os fac.tos e ai;-narrativas históricas dos com ousadia crescente que as únicas leis a que deviam estar
Hebreus, encontraremos _aindéi outros aspectos dignos · de nota. submetidos eram as leis escritas; os outros decretos, a que por
Assim: · - engano os fariseus (que eram na sua maioria gente da plebe,
1 - Não houve quaisquer seitas religiosas à -não ser quan- como diz Josefo nas Antiguidades) chamavam tradições dos ante-
do, no segundo Estado, os pontífices passaram a ter autoridade passados, não tinham nada que ser observados . Fosse como fosse,
para promulgar decretos e tratar dos assuntos do Estado, usur- não há dúvida de que a bajulação dos pontífices, a corrupção
param, para que esta autoridade durasse indefinidamente, o di- da religião e das leis e a inacreditável proliferação destas de-
reito do principado e quiseram, finalmente, ser designados por ram frequentemente azo a controvérsias e altercações impossí-
reis. A razão está à vista: no primeiro Estado, não podia haver veis de sanar . Onde quer que os homens entram em litígio por
decretos promulgados em nome do pontífice, na medida em que fervor supersticioso, e ambas as partes têm o apoio de magis-
este não tinha o direito de os decretar, mas só o de comunicar, trados, é impossível acalmá-los: necessariamente, eles vão~se
a rogo dos príncipes ou dos Conselhos, as respostas de Deus. dividir em seitas 1 .
2 - É de notar que os profetas, ou seja, simples particula-
Por isso, não podiam nessa altura ter qualquer desejo de decre-
tar novas leis, limitando-se a administrar e a preservar as que res, irritaram mais os homens do que os corrigiram, dada a
havia e tinham sido herdadas. Porque a única forma que tinham ' liberdade que tinham de admoestar, invectivar e repreender.
de assegurar a sua liberdade face aos príncipes era impedirem a Em contrapartida, os mesmos homens, quando admoestados ou
deturpação das leis. No entanto, assim que se apossaram do castigados pelos reis, vergavam-se facilmente. Muitas vezes, os
poder de tratar dos assuntos do Estado e juntaram ao pontifi- profetas foram insuportáveis até para os reis que eram piedo-
cado o direito do principado, começou cada um a procurar a sos, por causa da autoridade que tinham de julgar se o que eles
sua glória pessoal, tanto na religião como no resto, ou seja, im- faziam era ou não impiedade e de punir os próprios reis se
pondo em tudo a pontifícia autoridade e decretando todos os acaso se atrevessem a resolver qualquer assunto, público ou pri-
dias coisas novas a respeito das cerimónias, da fé e de tudo o vado, ao arrepio do seu parecer. O rei Asa, que reinou piedosa-
mais, com a pretensão de que não fossem menos sagradas nem mente, segundo o testemunho da Escritura, condenou ao suplí-
de menor autoridade que as leis de Moisés. Daí a religião de- cio da roda o profeta Ananias (Paralip.,n, cap . xv1) por ter tido
generar em superstição funesta e corromperem-se o verdadeiro a audácia de o repreender e criticar abertamente quando cele-
sentido e a interpretação das leis. A isto juntou-se também o brou um pacto com o rei da Arameia. E, para além deste, há
facto de os pontífices, nos primeiros tempos da restauração, outros exemplos que mostram que uma tal liberdade resulta mais
quando preparavam o caminho para o principado, tolerarem em detrimento que em incremento da religião, para não falar já
(224)
tudo como fim de atrair a si a plebe, quer dizer, aprovarem as das tremendas guerras civis que tiveram também origem no facto
2
[2231 suas acções, ainda que fossem ímpias, e adaptarem a Escritura
de os profetas reservarem para si tanto direito .
3 - Igualmente digno de nota é o ter havido, enquanto o
aos seus piores costumes . É o que Malaquias testemunha em
termos os mais solenes. Com efeito, após ter invectivado os sa- povo deteve o poder, apenas uma guerra civil, a qual viria, no
cerdotes do seu tempo, acusando-os de desprezarem o nome entanto, a ser completamente sanada, e os vencedores mostra-
de Deus, continua assim a vituperá-los: Os lábiosdo pontíficeguar- ram-se de tal maneira misericordio sos para com os vencidos que

365
364
tentaram por todos os meios restituir-lhes a antiga dignidade e Acrescente-se que o povo, cujo ânimo é humi lde ou soberbo
potência. Mas, assim que o povo, que não estava habituado a conforme as circunstâncias, corrigia-se facilmente nas calamida-
reis, substituiu pela monarquia a anterior forma do Estado, as des, convertendo-se a Deus, restabelecendo as leis e pondo-se
guerras civis não mais tiveram fim e travaram-se combates tão assim a salvo de qualquer perigo. Pelo contrário, os reis, cujos
violentos como nunca se tinha ouvido falar. Só num deles (pa- ânimos são sempre orgulhosos e que não podem vergar sem
rece incrível) foram massacrados pelos Judeus 500 000 israelitas. ignomínia, perseveraram obstinadamente nos vícios até à com-
Noutro, são, pelo contrário, os. Israelitas que trucidam muitos pleta devastação da Cidade.
judeus (o número ·não ·vem na Escritura); íiprisionam o próprio Por aqui se vê com toda a clareza:
rei, quase arrasam a muralha de Jeru_salém e .(para que se saiba 1 - Quão pernicioso, quer para a religião quer para o Esta-
que a sua cólera era sem limites) espoliam totalmenté o pi:(>prio do, é conceder aos ministros dos assuntos sagrados o direito
templo. Depois, carregados com ·o enorme saque . feitó_ ~ntre _os de decretarem o que quer que seja ou tratarem dos assuntos do
seus irmãos e saciados de sangue, "levando reféns e .abandonan- Estado; em contrapartida, haverá muito mais estabilidade se eles
do o rei no seu reino já quase devastado, depõem finalmente as estiverem limitados a responder apenas quando interrogados e,
armas, confiantes, não na palavra, mas na fraqueza dos Judeus. entretanto, praticarem e ensinarem só aquilo que é tradicional-
E, de facto, poucos anos mais tarde, assim que estes refizeram mente aceite e mais usado.
as forças, lançam-se numa nova guerra em que os Israelitas saem 2 - Quão perigoso é remeter questões puramente especula-
de novo vencedores, trucidam 120 000 judeus, levam prisionei- tivas para o direito divino e basear as leis em opiniões sobre as
ras 200 000 mulheres e crianças e fazem outro saque enorme. quais os homens costumam ou podem discutir. Onde quer que
Esgotados por estes e ou tros combates que vêm contados, de as opiniões que cada um tem o direito de possuir, direito a que
passagem, nas narrativas históricas, acabaram, finalmente, por ninguém pode renunciar, são consideradas crime, aí, reina-se com
se tomar presa dos inimigos. violência. Inclusive, onde isso acontece, é a fúr ia da plebe que
Por outro lado, se quisermos considerar também o tempo costuma sobretudo reinar: Pilatos, para ceder à ira dos fariseus,
em que lhe foi permitido gozar de paz absoluta, verificamos mandou crucificar Cristo, que ele sabia estar inocente. Depois,
uma enorme discrepância : antes dos reis, passaram-se frequen- os fariseus, para retirar aos mais ricos as suas honrarias, come-
temente quarenta e até, uma vez, oitenta anos (o que supera çaram a levantar questões religiosas e a acusar os saduceus de
tudo quanto se poderia imaginar) em plena concórdia, sem guer- impiedade; e, a exemplo dos fariseus, os piores hipócritas, anima-
ra civil ou contra o estrangeiro. Mas depois que os reis se apo- dos pela mesma raiva, a que chamam zelo pelo direito divino,
deraram do Estado, como já não se tinha de combater pela paz perseguiram por toda a parte homens insignes pela sua honesti-
e pela liberdade, como anteriormente, mas pela glória, lemos dade e reconhecidos pela sua virtude e, por isso mesmo, mal
que, à excepção apenas de Salomão (cuja virtude, ou seja, a sa- vistos pela plebe, reprovando publicamente as suas opiniões e
bedoria, tinha mais possibilidades de se afirmar em tempo de incendiando contra eles a ira da mu ltidão feroz. E este abuso
paz do que na guerra), todos eles empreenderam guerras. Acresce descarado, na medida em que se acoberta sob a aparência de
ainda o insaciável apetite de poder, que à maioria deles tomou religião, não é fácil de reprimir, especialmente quando os sobe-
particularmente cruento o caminho até ao trono. Por último, as ranos introduziram alguma seita de que não são eles próprios
leis, enquanto o povo reinou, permaneceram intac tas e foram os fundadores, pois neste caso já não são considerados como
mais assiduamente observadas. Antes dos reis, com efeito, fo- intérpretes do direito divino mas como membros de uma seita,
[225J ram pouquíssimos os profetas que admoestaram o povo; mas isto é, como alguém que reconhece como intérpretes do direito
uma vez eleito um rei, passou a haver muitos e em simultâneo. divino os doutores dessa mesma seita. Daí a razão por que a
Obadias salvou 100 de um massacre, escondendo-os para não autoridade dos magistrados não costuma, em tais matérias, ter (2261
serem mortos como os outros. E nem se viu o povo ser alguma grande peso junto da plebe, ao passo que a dos doutores, a
vez enganado por falsos profetas senão depois de ter cedido o cujas interpretações se pensa que até os reis devem estar sub-
Estado aos reis, a quem a maior parte de les tentava adular. metidos, é a mais elevada. Por conseguinte, para obviar a tais

~ ..
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11

inconvenientes, não há nada mais seguro que se possa descobrir ou se cometer de novo tal façanha . Ser-lhe-á , por ém, difícil vin -
I. para qualquer república do que considerar como piedade e culto
1
gar a morte do tirano com o assassínio de cidadã os se, ao mes -
;! religioso unicamente as obras , isto é, a prática da justiça e da mo tempo, não fizer sua a causa daque le a quem sucede, não
lil
caridade, e deixar a cada um a liberdade de ajuizar sobre tudo aprovar os seus actos e não seguir, por consegu inte, todas as
o resto; mas disto falaremos, depois, mais em pormenor. suas pisadas. Daí que o povo tenha mudado tantas vezes de _
(' ' 3 - Vemos também quão necessário, tanto para a república 6>
tirano, sem nunca __abolir a tirania .nem _substituir o Estado mo -
como para a religião, é reconhec~r aos soberanos o direito de . nárquico por um outro de forma dif~!e~te.
11
/:i
.. decidir o que é lícito e · o que é ilícito. Nà verdade, se esse O povo inglês deu, a este respeito, um exemplo fatal. Pri-
direito de discernir sobre as acções nem · aos divinos profetas meiro, procurou motivos para, sob a capa do direito, liquidar o
pôde ser concedido sem grave prejllízo pa_ra a república e ·a ff!-· monarca; uma vez eliminado este, o mínimo que pôde fazer foi
ligião, muito menos deve atribuir-se a quem não sabe pr~dizer_. mudar a forma do Estado; porém, depois de rn~ito sangue der-
o futuro nem pode fazer milagres . Mas isto será expressamente . ramado, acabou por saudar um novo monarca sob oútro nome
tratado no capítulo seguinte. (como se toda .. a questão fosse a_p~na_s_ dê--nomê)~ --Õ-cp:íãf'não
4- Vemos, enfim, como é fatal para um povo que não está poderia manter-se de outro modo senão destruindo radicalmente
habituado a viver sob reis e que já tem leis instituídas eleger a estirpe régia, matando os amigos do rei ou simples suspeitos
um monarca. Porque, nem este conseguirá manter um tão gran - de o serem e perturbando, através da guerra, o lazer da paz,
de poder, nem a autoridade régia poderá suportar leis e direi- sempre propício aos boatos, a fim de que a plebe, distraída e
tos do povo instituídos por alguém com autoridade inferior à virada para coisas novas, afastasse a ideia de um outro regicí-
sua e, muito menos ainda, ser levada a defendê-las, sobretudo dio . Só já tarde é que o povo se apercebeu de que, pela salva-
porque no momento da sua instituição não pôde ser tida mini- ção da pátria, a única coisa que tinha feito fora violar o direito
mamente em conta o rei, mas apenas o povo ou o Conselho, do rei legítimo e mudar tudo para pior. Decidiu, por isso, vol-
que julgava deter o reino. Assim, se o rei defendesse os antigos tar atrás assim que pôde, e não descansou enquanto não viu
direitos do povo, pareceria mais seu escravo do que seu se- tudo reposto no seu estado anterior.
nhor. O novo monarca tentará, por isso, introduzir a todo o Objectar-se-á, talvez, com base no exemplo dos Romanos,
custo leis novas, reformar em seu proveito os direitos do Estado que um povo pode facilmente afastar um tirano; julgo, no en-
e reduzir o povo a uma condição tal que este não possa retirar tanto, que tal exemplo vem confirmar em absoluto a nossa tese.
a dignidade aos reis tão facilmente como lha dá 3• É verdade que o povo romano podia afastar mais facilmente
Aqui, porém, não posso deixar de frisar que também não é um tirano e mudar a forma de Estado, visto que o dire ito de
menos perigoso afastar um monarca, ainda quando seja absolu- eleger o rei e o seu sucessor estava nas mãos do próprio povo
tamente evidente que ele é um tirano. Porque um povo acostu- e este não se tinha ainda habituado, de tal maneira estava cheio
mado à autoridade do rei e só por ela refreado desprezará e de agitadores e revoltosos, a obedecer aos reis. Tanto que, dos
porá a ridículo uma autoridade inferior. Por isso, se afasta um, seis que tinha tido, assassinara três . E, todavia, a única coisa
ser-lhe-á necessário, como outrora aos profetas, eleger outro em que ele fez foi eleger, em vez de um, vários tiranos que o man-
lugar do anterior, e este, mesmo que o não queira, será neces- tiveram miseravelmente, com guerras externas e internas, sem-
sariamente um tirano. Com efeito, corno é que ele pode olhar pre em conflito, até que, por fim, o Estado caiu de novo nas
para as mãos de cidadãos manchadas de sangue pelo assassínio mãos de um monarca, mudando apenas de nome, tal como em
de um rei, cidadãos que se vangloriam de um parricídio corno Inglaterra.
de urna boa acção que praticaram unicamente para que lhe ser- No que respeita, porém, aos Estados da Holanda, nunca eles
visse a ele de exemplo? É evidente que, se quer ser rei e não tiveram, que eu saiba, reis, mas sim condes, para os quais em
reconhecer o povo corno juiz dos reis e seu senhor, se não quer momento algum foi transferido o direito estatal. Conforme os
(227] reinar precariamente, tem de vingar a morte do seu antecessor próprios Estados Soberanos da Holanda fazem saber, por de-
e dar por sua vez um exemplo, de modo a que o povo não terminação publicada no tempo do conde de Leicester 4 , eles [228]
1 }

368 369
sempre reservaram para si a autoridade de advertir os condes
da sua obrigação e conservaram o poder necessário para defen-
der esta sua prerrogativa e a liberdade dos cidadãos, para se
vingarem deles, caso degenerassem em tiranos, e para os limi-
tarem de modo a que lhes fosse impossível fazer fosse o que
fosse sem autorização e aprovação dos Estados. Donde se con-
clui que esteve sempre nas mãos dos Estados o direito de sobe-
rania, que o último dos condes tentou usurpar, muito longe,
portanto, de se terem desfeito · dele quando restauraram o seu CAPITULO XIX [2281

primitivo poder, que já haviam quase perdido. Confirma-se, -as-


ONDE SE DEMONSTRA QUE O DIREITO EM MATÉRIA
sim, por estes exemplos, aquilo que dissemos: o regime próprio
RELIGIOSA PERTENCE INTEGRALMENTE AOS SOBERANOS
de cada Estado deve manter-se e não pode sequer ser alterado
E QUE O CULTO EXTERNO DEVE ADEQUAR-SE À PAZ
sem se correr o risco de total ruína do mesmo Estado. E é tudo DA REPÚBLICA SE SE QUER OBEDECE R RECTAMENTE A DEUS
quanto me pareceu oportuno registar aqui.

Quando, há pouco, disse que só aqueles que detêm o poder


soberano tinham direito a tudo e que todo o direito depende
*'
'1' 1
exclusivamente do que eles decidem, não me referia apenas ao
1'· direito civil, mas também ao direito sagrado 1, do qua l devem
ser ao mesmo tempo intérpretes e defensores. E quero expres-
samente sublinhá-lo aqui e ocupar-me especificamente do assunto

f
lij
no p resente capítulo, pois há muito quem negue que este direito
de decidir sobre questões sagradas seja da competência dos so-
ber a nos e se recuse a reconhecê-los como intérpretes do direito
div in o; daí a liberdade que se atribuem de os acusar, injuriar e
até de os excomungar da Igreja, como fez outrora Ambrósio ao
ij imp erador Teodósio 2 . Veremos mais adiante, neste mesmo ca-
pítulo, como, através de um tal processo, eles dividem o Estado
e tentam mesmo apoderar-se dele. Antes, porém, quero mos-
'} trar, que a religião só adquire força de lei por decreto daqueles
l
que têm o direito de mandar, que Deus não possµi nenhum
reino especial entre os homens, a não ser através daqueles que
1!
detêm a soberania, e que, além disso, o culto religioso e o exer-
cício da piedade se devem conciliar com a paz e o interesse da 12291
rep ú blica, razão pela qual só os soberanos os devem definir e
ser seus intérpretes.
Falo expressamente do exercício da piedade e do culto reli-
gioso externo, não da piedade em si mesma e do culto interno,
que r dizer, dos meios pelos quais a mente se dispõe no seu
íntimo e com todo o seu ânimo a prestar culto a Deus. Porque
este culto interno de Deus, bem como a própria piedade, rele-

370 371
vam , como mostrámo s no final do cap . vn, do direito de cada Estado, isto é (por aqui lo que mostrámos no mesmo capítulo),
um, o qual não pode ser transferido para outrem . Presumo, além por decreto de quem detém a soberania. E como o reino de
disso, que resulta suficientemente claro do cap. XJV o que enten- Deus, conforme já mostrei, consiste unicamente no direito da
do aqui por reino de Deus : nesse capítulo, com efeito, mostrá - justiça e da caridade, ou seja, da verdadeira religião, segue-se,
mos que cumpre a lei de Deus quem pratica a justiça e a cari- como pretendíamos, que Deus não exerce qualquer reinado so-
dade segundo o mandamento divino, de onde se segue que é bre os homens a não ser através daqueles que detêm o Estado .
reino de Deus todo aquele onde !1 justiça e a caridade têm forçª E tanto faz, repito, que concebamos a religião como revelada
de lei e de mandamento. E aqui é totalmente .indiferente se Deus por luz natural ou profética: a demonstração é, com efeito, uni-
ensina e ordena o verdadeiro · culto da : justiça .e da caridade por versal, porquanto a religião é a mesma e igualmente revelada
meio da luz natural ou da revelação .
. Não -
importa
.
como .esse
- por Deus, qualquer que seja o modo segundo o qual se supõe
culto é revelado, desde que ele assuma o carácter ·de direit<;> que ela foi dada a conhecer aos homens. Por isso mesmo, para
supremo e seja a suprema lei para os homens: Se, ·po~ ·consê- que a religião profeticamente revelada tivesse. força de lei entre
guinte, eu demonstrar agora que a justiça e a caridade não po- os Hebreus, foi preciso que cada um deles cedesse primeiro o
dem adquirir força de lei e de mandamento a não ser em vir- seu direito natural e que todos decidissem, de comum acordo,
tude do direito do Estado, concluirei facilmente (na medida em obedecer apenas àquilo que lhes fosse profeticamente revelado
que o direito do Estado é da exclusiva alçada dos soberanos) por Deus, exactamente como mostrámos que acontece no regi-
que a religião só adquire força de lei por decreto de quem de- me democrático, onde todos deliberam, de comum acordo, vi-
t~nha a soberania 3 e que Deus não exerce qualquer reinado es- ver apenas segundo os ditames da razão 4 •
pecial sobre os homens a não ser por intermédio dos que de- Apesar de os Hebreus terem, além disso, transferido o seu
têm a soberania. Mas, pelos capítulos anteriores, resulta claro direito para Deus, fizeram-no mais em pensamento do que na
que o culto da justiça e da caridade só adquire força de lei prática. Na realidade, (como vimos mais acima) eles conserva-
graças ao direito do Estado. ram integralmente o direito do Estado até o transferirem para
Na verdade, mostrámos no cap . XVI que a razão, no estado Moisés, o qual, desde então, ficou a ser rei absoluto e só por
de natureza, não possui mais direito que o apetite e que tanto seu intermédio Deus reinou sobre os Hebreus. Além disso, e
os que vivem segundo as leis do apetite como os que vivem pelo mesmo motivo (ou seja, por a religião só adquirir força de
segundo as leis da razão têm direito a tudo o que está em seu lei pelo direito do Estado) Moisés não pôde aplicar qualquer
poder. Por este motivo, no estado de natureza não era possível castigo àqueles que, antes do pacto, quando, por conseguinte,
conceber o pecado, nem Deus como um juiz que puniria os ho- eram ainda juridicamente senhores de si próprios, violaram o
mens pelos seus pecados; tudo aí se passava de acordo com as sábado Ctxodo, cap. XVI, 27), como pôde fazê-lo depois do pacto
leis comuns de toda a natureza, estando (para falar como Salo- (Números, cap. xv, 36), isto é, depois de cada um ter cedido o
mão) sujeitos à mesma sorte o justo e o ímpio, o puro e o im- seu direito natural e o sábado adquirir força de lei em virtude
puro, etc., e não havendo lugar, nem para a justiça, nem para a do poder soberano . Por último, e ainda pela mesma razão, uma
caridade. Mas, para que os ensinamentos da verdadeira razão, vez destruído o Estado hebreu, a religião revelada deixou de
ou seja (como mostrámos no cap . 1v, a respeito da lei divina), os ter força de lei. É, com efeito, evidente que assim que os He-
próprios ensinamentos de Deus, tivessem absolutamente força breus transferiram o seu direito para o rei da Babilónia, acto
de lei, foi preciso que cada um renunciasse ao seu direito natu- contínuo, o reino de Deus e o direito divino cessaram, pois,
(2301 ral e que todos o transferissem para todos, para alguns, ou para devido a isso foi completamente anulado o pacto pelo qual ti-
um apenas. Só então é que nos foi dado conhecer, pela primeira nham prometido obedecer a tudo o que Deus dissesse e que 12311
vez, o que é a justiça, a injustiça, a equidade e a iniquidade. fora o fundamento do reino divino . Nem, de resto, o poderiam
A justiça, tal como absolutamente todos os ensinamentos da manter por mais tempo, uma vez que, a partir de então, já não
verdadeira razão e, portanto, a caridade para com o próximo, dependiam juridicamente de si próprios (como quando estavam
só adquire, pois, força de lei e de mandamento pelo direito do no deserto ou na pátria), mas sim do rei da Babilónia, a quem

372 373
estavam (mostrámo-lo no cap . xv1)obrigados a obedecer em tudo. qu e sentido, p ois é altu ra de mostrarmo s qu e o culto religioso
Disto mesmo também os adverte expressamente Jeremias, no externo e todo o exercício da pied ade têm, se queremos obed e-
cap. XXIX, 7: Zelai - diz ele - pela paz da cidade onde vos conduzi cer a Deus com rectidão, de conciliar -se com a paz e a segu -
cativos, pois a sua segurança será a vossa segurança. Ora, eles não rança da república . Uma vez isto demonstrado, será fácil com -
podiam olhar pela segurança daquela cidade como ministros do preender em que sentido o soberano é o intérprete da religião
Estado, já que estavam prisioneiros, mas apenas como escravos, e da piedade .
isto é, dispondo-se, para evitar s~dições, a obedec~r em h.ldo e_ É certo que a piedade pa ra com a pátria é a mais elevada
a observar os direitos e .as leis do Estado, · rião obstante sérem que alguém pode praticar, visto que, suprimido o Estado, nada
muito diferentes das leis a que . estava~ habituados na sua pá- de bom pode subsistir e tudo fica ameaçado, reinando apenas,
tria, etc . · por entre o medo geral, a cólera e a impiedade. Daí que não
A conclusão a extrair de tudo · isto é, ·evidentemente, -que a_ haja nada de piedoso que se possa praticar para com o próximo
religião adquiriu entre os Hebreus força de lei graças Ünica: que não seja ímpio se acaso resultar em prejuízo de toda a re-
mente ao direito do Estado e que, destruído este, ela nunca pública; em contrapartida, não há nada de ímpio que possa fa-
mais pôde ser considerada como lei de um Estado particular, zer-se ao próximo que não se torne piedoso se for feito pela
mas sim corno ensinamento universal da razão. Da razão, repito, conservação da república . Por exemplo, àquele que luta comigo
já que a religião universal não era NI'da conhecid~ por revela- e me quer roubar a túnica, é piedoso eu dar-lhe também a capa;
ção. Concluímos, portanto, que a religião, quer seja revelada pela mas, se se julgar que isso é pernicioso para a conservação da
f'
luz natural ou pela luz profética, só adquire força de lei por república, o que é piedoso é chamá-lo a tribunal, ainda que ele
decreto daqueles que detêm a soberania e que, a não ser por venha a ser condenado à morte. Por isso é que Mânlio Torqua-
intermédio deles, Deus não possui nenhum reinado especial so- to ficou célebre, por valer mais para ele a salvação do povo do
bre os homens. · que a piedade para com o próprio filho. Donde se segue que a
,O mesmo se conclui também, e compreende-se até mais fa- salvação do povo é a lei suprema à qual se devem adaptar to-
. cilmente, daquilo que dissemos no cap. rv. Foi, com efeito, aí das as outras, sejam humanas ou divinas. Mas como só o sobe-
demonstrado que os decretos de Deus implicam todos eterna rano tem por incumbência determinar o que é necessário para a
verdade e necessidade e que não se pode conceber Deus corno salvação do povo e a segurança do Estado e impor o que julgar
um príncipe ou um legislador impondo leis aos homens. Por necessário, resulta que só a ele compete determinar de que modo
isso, os divinos ensinamentos revelados pela luz natural ou pro- cada um deve cultivar a piedade para com o próximo, ou seja,
fética não recebem directamente de Deus a força de mandatos, de que modo cada um está obrigado a obedecer a Deus.
mas sim, e necessariamen t e, daqueles, ou por intermédio da- Compreende-se, assim, claramente em que sentido o sobe-
queles, que detêm o direito soberano de mandar e de legislar. rano é o intérprete da relig ião e como, além disso, ninguém
Por isso ainda, não é concebível que Deus reine sobre os ho- pode obedecer rectamente a Deus, se não ajustar ao interesse
mens e dirija os assuntos humanos segundo a justiça e a equida- público o culto da piedade a que cada um está obrigado e se,
de a não ser mediante eles, como se comprova também pela por conseguinte, não obedecer a todos os decretos do sobera-
experiência . De facto, só se encontram marcas da justiça divina no . De facto, na medida em que estamos por mandamento divi-
onde reinam os justos; fora disso (para citar de novo Salomão), no obrigados a cultivar a piedade para com todos sem excepção
vemos o justo e o injusto, o puro e o impuro, sujeitos à mesma e a não causar dano a ninguém , segue-se que a ninguém será
sorte, o que levou muitos, que julgavam que Deus reina directa- lícito prestar ajuda a alguém com prejuízo de outrem, e ainda
mente sobre os homens e subordina ao interesse deles toda a menos de toda a república . Por isso, ninguém pode agir piedo- [2331
natureza, a duvidarem da providência divina . sarnente para com o próximo, de acordo com o mandamento
1232 ] Sendo, portanto, evidente, já pela experiência, já pela razão, divino, sem adaptar a piedade e a religião ao interesse público.
que o direito divino depende apenas da decisão do soberano, Ora , nenhum particular pode saber o que é do interesse da re-
segue-se que ele é também o seu intérprete . Veremos agora em pública a não ser pelos decretos do soberano, a única pessoa a

374 375
"'"
e em detrimento da religião . Decididamente, se não pudésse- decisão deles . David, com efeito, delineou toda a construção do
mos atribuir a esse facto nenhuma causa precisa, convencer-me- templo (ver Paralip., 1, cap. xxv1u, 11, 12, etc.); depois, de entre
-ia facilmente de que tudo quanto apresentei neste capítulo era todos os Levitas, escolheu 24 000 para cantarem os salmos, 6000
apenas teórico ou desse género de especulações que nunca se para juízes e magistrados, 4000 para guardas e 4000, finalmente,
podem levar à prática. Basta, no entanto, considerarmos os pri- para músicos (veja-se, no mesmo livro, cap. xxm, 4, 5). Dividiu-
mórdios da religião cristã para que a causa disto se tome abso- -os, além disso, em coortes e nomeou os respectivos chefes, a
lutamente clara. De facto, não foram reis que ensinaram, a prin- fim de que ficassem por turnos de serviço ao templo (ver, no
cípio, a religião cristã, mas simples · particulares que, por largo mesmo capítulo, o vers. 5). Os sacerdotes foram divididos por
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tempo, contra a vontade dos que detinha _m o poder e de quem igual número de coortes. Mas para não ter de enumerar uma
' eram súbditos, se reuniam habitualmente em Igrejas privacrasJ ·: ·· por uma todas estas disposições, remeto o leitor para o liv. 11
instituíam cerimónias sagradas, adm1nistravam, organizav~~ e dos Paralipómenos,cap. vm, 13, onde se diz o seguinte: o culto de
decidiam tudo sozinhos, sem terem minimamente em conta o Deus era exercidono templo, por ordens de Salomão,tal como Moisés o
Estado. Quando, porém, volvidos muitos anos, a religião come- havia instituído. E, no vers. 14, acrescenta-se que este (Salomão)
çou a introduzir-se no Estado, os eclesiásticos tiveram de a en- distribuiu as coortesde sacerdotese Levitas pelassuasfunções, conforme
sinar, tal como a haviam definido, aos próprios imperadores, o as ordens do divino David. Finalmente, no vers. 15, o historiador
que lhes valeu serem reconhecidos corno seus doutores e intér- confirma que não se afastaramem nada do preceitoimposto pelo rei aos
pretes e bem assim como pastores da Igreja e vigários de Deus. sacerdotese aos Levitas, nem sequer na administraçãodo erário.
Além ~isso, para que mais tarde os reis cristãos não lhes pu- De tudo isto, e bem assim de outras narrativas respeitantes
dessem retirar essa autoridade, os eclesiásticos acautelaram-se aos reis, deduz-se com toda a evidência que a prática da reli-
optirnamente, proibindo o casamento aos principais ministros da gião e o ministério sagrado estavam inteira e exclusivamente
i Igreja e ao supremo intérprete da religião. A isto acresce ainda dependentes do poder dos reis. Quando há pouco afirmei que
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1•111
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o terem os dogmas da religião aumentado em tão grande nú- eles não tiveram, como Moisés, o direito de escolher o sumo
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mero e confundirem-se de tal maneira com a filosofia que o seu pontífice, nem de consultar Deus directamente e condenar os
supremo intérprete tinha de ser supremo filósofo e teólogo e profetas que profetizassem durante o seu reinado, disse-o só
atender a uma infinidade de especulações inúteis, o que só é porque os profe tas, dada a autoridade de que gozavam, podiam
possível a particulares com bastante tempo livre 7. escolher outro rei e absolver o regicida, e não porque lhes fosse
1}y1 Mas, entre os Hebreus, as coisas passaram-se de forma muito lícito chamar a julgamento o rei, caso violasse as leis, ou proce-
diferente. A sua Igreja começou a existir ao mesmo tempo que der judicialmente contra ele *. Se, por conseguinte, não tivesse
o Estado e foi Moisés, que detinha a soberania absoluta, quem havido nenhuns profetas que, em virtude de uma revelação sin-
1,n 1
ensinou ao povo a religião e quem organizou os ministérios sa- gular, podiam absolver impunemente o regicídio, os reis teriam
grados e escolheu os seus ministros. Daí que a autoridade régia gozado de um direito absoluto sobre todas as coisas, tanto sa-
1
se revestisse da maior importância junto do povo e que os reis gradas como civis. Por isso, os soberanos de hoje, que já não
detivessem os mais amplos direitos em matéria religiosa. Com têm profetas nem são obrigados a reconhecê-los (uma vez que
efeito, muito embora após a morte de Moisés ninguém tenha não estão sujei tos às leis dos Hebreus), dispõem e hão-de dis-
ficado detentor da soberania, o direito de decisão, quer em coi- por sempre, mesmo não sendo celibatários, absolutamente desse
sas sagradas, quer em tudo o mais, estava, conforme já mostrá- direito, contanto que não deixem os dogmas religiosos aumentar
mos, nas mãos do príncipe. E depois, para se instruir na reli- em número excessivo ou confundirem-se com as ciências.
gião e na piedade, o povo era obrigado a ir ter tanto com o
pontífice como com o juiz supremo (ver Deut., cap. xvn, 9, 11).
Por último, se bem que os reis não tivessem um direito igual ao
(2381
de Moisés, no entanto, quase toda a organização do ministério • Anotação XXXIX. Tenha-se aqui em conta, sobretudo, o que dissemos no
sagrado e a escolha dos respectivos ministros dependiam de uma cap . xv1 acerca do direito.

380 381
CAPITULO XX [239)

ONDE SE DEMONSTRA QUE NUMA REPÚBLICA LIVRE


É LÍCITO A CADA UM PENSAR O QUE QUISER
E DIZER AQUILO QUE PENSA
a..2:1
eiv:W) i vJ'w,)/ 11.. ~
ot~i~
Se fosse tão fácil mandar nos ânimos como n línguas, cada
um reinaria em segurança e nenhum Estado seri violento, uma
vez que cada um viveria de acordo com o desí ·o dos gover-
nantes e só em função dos seus decretos ajuizari do que é bom
·- ....... ou mau, verdadeiro ou falso, justo ou iníquo. M s isto, como já
observámos no princípio do cap. XVII, não é poss vel de fazer ao
ponto de o ânimo ficar completamente sujeito a jµrisdição alheia,
porquanto ninguém pode transferir para outrem, nem a tanto
ser coagido, o seu direito natural, ou a sua faculdade de racio-
cinar livremente e ajuizar sobre qualquer coisa 1. Daí que seja
tido por violento o poder exercido sobre os ânimos e que a
suprema majestade pareça injuriar os súbditos e usurpar o di-
reito deles quando quer prescrever a cada um o que deve abra-
çar como verdadeiro ou rejeitar como falso e até as opiniões
que devem incitar o seu ânimo à devoção para com Deus. Por-
que tudo isto pertence ao direito individual que ninguém, mes-
mo que queira, pode ceder.
Bem sei que o discernimento pode ser influenciado de mui-
tas maneiras, algumas quase inacreditáveis, ao ponto de, mes-
mo não estando directamente dominado por outrem, ele depen-
der de tal maneira da sua palavra que se possa a justo título
dizê-lo sob a jurisdição deste. No entanto, por maiores que se-
jam os resultados a que neste domínio chegou o artifício, nunca
se conseguiu que os homens não sentissem que cada um tem
discernimento que sobra e que variam tanto as cabeças quanto
os paladares. Se Moisés, que tinha conquistado por completo a
opinião do seu povo, não por meio de astúcias mas pela divina

383
virtude, de tal maneira que se acredi tava que era div ino e que
dade aos súbditos, também será altamente pernicioso conceder-
todas as suas palavras e actos eram inspirados por Deus, não
-lha por completo. Sendo assim, compete-nos aqui averiguar em
pôde, mesmo assim, escapar a boatos e a sinistras interpreta-
que medida ela pode e deve ser concedida a cada um sem pre-
,.
l ções, muito menos escapariam os outros monarcas. E, a haver
juízo da paz da república e do direito do soberano: é este, con-
alguma maneira de o conseguir, seria, com certeza, num Estado
forme anunciei no início do cap. xv1, o meu objeétivo principal.
monárquico, nunca num Estado democrático, onde todos, ou pelo
Dos fundamentos da república acima expostos resulta com
menos a maior parte dos cidadãos, _mandam colegialmente. Pre-
toda a evidência que o seu fim último não é dominar nem con-
sumo que seja clara para ·toda a gente _ a· razã ·o por que assim
acontece. . , ter os homens pelo medo e submetê-los a um direito alheio; é,
pelo contrário, libertar o indivíduo do medo a fim de que ele (241]
l240J Muito embora os soberanos ·tenham, pois, direito a tudo _é:.- ,
viva, tanto quanto possível, em segurança, isto é, a fim de que
sejam considerados os intérpretes do direito e _da piedaq.eJ ja- _. 1 ele preserve o melhor possível, sem prejuízo para si ou para os
mais eles poderão, contudo, fazer corri que os homens não jul-
outros, o seu direito natural a existir e a agir. O fim da repú-
guem as coisas segundo o seu próprio engenho e, nessa medi-
blica, repito, não é fazer os homens passar de seres racionais a
da, não sintam este ou aquele afecto. É certo que têm o direito
bestas ou autómatos, é, pelo contrário, fazer com que a sua mente
'[J, de considerar como inimigos todos aqueles que não estiverem
e o seu corpo exerçam em segurança as respectivas funções, que
absolutamente de acordo consigo em todas as matérias; mas nós
eles usem livremênte da razão e que não se digladiem por ódio,
não estamos, agora, a discutir os seus direitos, estamos a dis-
cólera ou insídia, nem sejam intolerantes uns para com os ou-
cutir o que é vantajoso. Admito que tenham direito a reinar por
tros. O verdadeiro fim da república é, de facto, a liberdade 3 .
meio da violência e a condenar cidadãos à morte pelos motivos
imos também que, para constituir a república, é necessária
mais fúteis. Ninguém, todavia, pretenderá que tal possa fazer-
uma só coisa, a saber, que todo o poder de decidir esteja nas
-se sem ir contra o que julga a recta razão. Além disso, como é
mãos, _ou de tQjÍos, o~ de a_l_g't_nS,ou de um só. Na verdade,
impossível fazê-lo sem pôr em grave risco todo o Estado, pode- como o livre juízo dos homens é extremamente diversificado e
mos até negar que eles tenham absoluta potência para fazer essas
cada um crê que só ele é que sabe tudo, sendo impossível que
e outras coisas parecidas e, por conseguinte, que eles tenham o
todos tenham a respeito de tudo a mesma opin ião e falem a
direito absoluto. Na verdade, conforme já demonstrámos, o di-
uma só voz, seria impossível viverem em paz se cada um não
reito do soberano é determinado pela sua potência 2•
renunciasse ao direito de agir de acordo apenas com o que lhe
Portanto, se ninguém pode renunciar à sua liberdade de jul- dita a sua mente . A única coisa, pois, a que o indivíduo renun-
gar e pensar o que quiser, e se cada um é senhor dos seus
_c!~j ao direito de agir segundo a sua própria lei. não ao
próprios pensamentos por superior direito da natureza, segue-
-~de raciocinar e de julgar. Por isso, ninguém pode agir
-se que jamais será possível, numa república, tentar sem resulta-
contra as determinações do soberano sem lesar o direito deste,
dos funestos que os homens, apesar de terem opiniões diferen- mas pode pensar, julgar e, por conseguinte, dizer absolutamente
tes e até opostas, não digam nada que não esteja de acordo
tudo, desde que se limite só a dizer ou a ensinar e defenda o
com aquilo que prescreve o soberano. Nem os mais avisados seu parecer unicamente pela razão, sem fraude, cólera, ódio ou
conseguem guardar silêncio, quanto mais a plebe! Os homens
intenção de introduzir, por sua exclusiva decisão, qualquer alte-
têm, habitualmente, o vício de confiarem aos outros as suas
ração na república. Suponhamos, por exemplo, que alguém de-
opiniões, ainda quando seria preferível ficarem calados. O mais
monstra que determinada lei é contrária à recta razão e, em
violento dos Estados é, pois, aquele que nega aos indivíduos a
consequência, considera que ela deve ser ah-rogada; se esta pes-
liberdade de dizer e de ensinar o que pensam; pelo contrário,
soa submeter o seu parecer à apreciação do soberano (o único a
aquele onde essa liberdade é concedida a cada um é um Estado
quem cabe instituir e ab-rogar leis) e se abstiver, entretanto, de
moderado. E, todavia, é inegável que tanto se podem cometer
qualquer acção contrária ao que está prescrito na mesma lei,
crimes de lesa-majestade por actos como por palavras, razão por
nesse caso, ela tem, sem dúvida alguma, tanto mérito na repú-
que, se é de facto impossível retirar completamente esta liber- blica como qualquer cidadão exemplar; mas se, pelo contrário, o
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fizer para acusar de irúquidade o magistrado e o tornar odioso rúões do mesmo género que estão em flagrante contradição com
aos olhos do vulgo , ou se tentar subversivamente revogar essa o refe r ido pacto . E não é tanto pelo juízo e a opinião, é pelo
lei ao arrepio da vontade do magistrado, então é um agitador e facto que implicam, na medida em que o julgar assim dissolve,
um rebelde. tácita ou explicitamente, a fidelidade prometida ao poder sobe-
Vemos, assim, em que- medida um indivíduo pode dizer e rano . Por isso, todas as outras opirúões que não implicam urna
ensinar aquilo que pensa, s em perigo para o direito e a autori- acção, ou seja, a ruptura do pacto, a vingança, a cólera, etc.,
dade do soberano, isto é, t,em perigo para a paz da repúbliq1.: não são subversivas a não ser, talvez, numa república de algum
basta que lhe -deixe a faculdade ·de decidir rudo quanto se deve modo corrupta, onde os supersticiosos e ambiciosos, que não
fazer e não pratique nenhutnla .acção :çontra as- suas ordens, ain- podem suportar os homens livres, conquistaram um tal prestí-
gio que a sua autoridade vale mais junto da plebe · que a do
h da que tenha muitas veze:s de _agir contra aquilo que juJgà ·e
professa ser bom. E pode efectivainente fazê-lo, sem_perigo para soberano. Não negamos que haja certas opiniões que, embora [2431
-, a justiça e a piedade; deve mesmo fazê-lo, se · quer · comportar-se pareçam versar unicamente sobre o verdadeiro e o falso, são,
12421 como justo e piedoso. Na verdade, a justiça, corno já mostrá- contudo, apresentadas e divulgadas, com intenção iníqua. Mas
mos, depende exdusivarnern.te do que decreta o soberano e, por essas já as determinámos, no cap. xv, embora em termos que
conseguinte, ninguém pode · ser justo se não viver em conformi- não obstam à liberdade da razão.
dade com as ordens que de le recebe. Quanto à piedade, a mais Se, finalmente, considerarmos que a fidelidade de cada um
elevada, de acordo com o tque mostrámos no capítulo anterior, à república, assim como a fidelidade a . Deus, só se pode reco-
é aquela que se pratica tendo em vista a paz e a tranquilidade nhecer pelas obras, ou seja, pela caridade para com o próximo,
da república; ora, a paz nfüo se pode manter se a cada um for não oferece a menor dúvida que a boa república concede a cada
dado viver ao arbítrio da §Ua própria mente; logo, é também um a mesma liberdade de filosofar que a fé, tal como vimos,
ímpio fazer por seu alvedrlio alguma coisa contra o decretado lhe concede . Claro que reconheço que uma tal liberdade traz
pelo soberano de quem se E.ésúbdito, uma vez que, se tal fosse por vezes certos inconverúentes; mas será que alguma vez hou-
lícito a cada um, acarretaria 1.necessariamente a ruína do Estado. ve algo instituído com tanta sabedoria que não pudesse surgir .,,__.,;
E, o que · é mais, não se po dle fazer nada contra os decretos e os daí qualquer inconveniente? Quem tudo 9...uerfixar nas leis aca- 411
ditames da própria razão (enquanto se agir de acordo com o ~ssanhar os vícios emvez de os corrigir. Aquilo que nãÕ
que decreta o soberano, poiis foi precisamente a rogo da razão se pode proibir tem necessariamentécie"se permitir, não obs-
·• I que cada um decidiu trans;ferir para aquele o direito de agir tante os danos que muitas vezes daí advêm. Quantos males não
conforme entendesse. Podennos, de resto, confirmá-lo pela prá- derivam da luxúria, da inveja, da avidez, do alcoolismo e dou-
tica: nas assembleias, sober.anas ou não, é, com efeito, raro to- tras coisas parecidas? E, no entanto, elas sãó toleradas porque
mar-se uma decisão por suftrágio unânime de todos os membros não está no poder das leis proibi-las, apesar de realmente se
e, no entanto, tudo é feito p<D r força da decisão comum de todos, tratar de vícios. Donde, por maioria de razão, deve ser permi-
tanto dos que votaram conttra, como dos que votaram a favor. tida a liberdade de pensamento, que é sem dúvida uma virtude
Mas volto à minha ques;tão. Vimos, a partir dos fundamen- e não pode reprimir-se . Acresce ainda que ela não provoca ne-
tos da república, em que rntedida pode cada um gozar de liber- !Ulum inconverúente que não possa, como a seguir vou demons-
dade de opirúão sem ferir o> direito do soberano. Mas podemos trar, ser evitado pela autoridade dos magistrados. Isto, para já
também, a partir daí, deternninar sem dificuldade quais as opi- não falar de quanto ela é absolutamente necessária para o avanço
rúões que na república são s;ubversivas: aquelas, evidentemente, das ciências e das artes, as quais só podem ser cultivadas com
5
cuja aceitação implica a imedi iata cessação do pacto pelo qual cada êxito por aqueles cujo pensamento for livre e sem preconceitos •
um renunciou ao direito de • agir a seu próprio arbítrio. É, por Mas suponhamos que esta liberdade pode ser reprimida e
exemplo, subversivo pensar <g_Ueo poder soberano não tem auto- os homens dominados ao ponto de não se atreverem a murmu-
nomia 4 ou que ninguém est.ã obrigado a manter os juramentos, rar uma palavra que contrarie o prescrito pelo soberano; mes-
ou que é preciso que cada utm viva a seu arbítrio e outras opi- mo assim, este jamais conseguirá que eles não pensem senão o

386 387

• i
que ele quer : o que iria nece ssariam ent e acontecer era os ho- ensina com exem plos quotidian os: semelhant es leis, qu e de ter-
men s pensarem uma coisa e dizerem outra , corrompendo-se, por minam aquilo em que cada um de ve acredit ar e proíbem qu e se
conseguinte, a fidelidade imprescindível na república, e fomen- diga ou escreva algo contr a esta ou aquela opinião, foram fre-
tando-se a adulação e a perfídia, coisas abomináveis, e, daí, as quentemente instituídas como concessão, ou antes , ced ência à
fraudes e a deterioração de todas as ·boas maneiras. Longe, ira dos que não podem suportar os engenhos livres, mas que,
porém, de isso poder acontecer, ou seja, de todos se limitarem por uma não sei que torva autoridade, podem facilmente trans -
a dizer o que está predeterminado, quanto mais se proc4ra re- formar em raiva a devoção da plebe amotin ada e instigá-la con-
tirar aos homens a liberdade de falar til.ais obstinadamente eles tra quem eles quiserem. Quanto mais não valeria conter a ira e
resistem. Não, como é óbvio, os' avaros , os bajuladores e outros o furor do vulgo, em vez de estatuir leis inúteis que só podem
[244] de ânimo impotente, para _quem a suprema salvação _-está em -. 'f ser violadas por aqueles que prezam as virtudes e as artes e
contemplar as moedas no cofre e ter a barriga cheia, mas . ague- . reduzir a república a uma situação tal que é incapaz de defen- [2451
les a quem a boa educação, a "integridade ºde · costumes e· a vir- . der os homens livres! Que coisa pior pode imaginar-se para uma
tude tornaram ainda mais livres. república que serem mandados para ó exílio como indesejáveis
Os homens, na sua maior parte, são constituídos de tal ma- homens honestos, só porque pensam de maneira diferente e não
neira que não há nada que eles menos pacientemente suportem sabem dissimular? Haverá algo mais pernicioso, repito, do que
do que verem tidas por crime as opiniões que julgam verdadei- ter por inimigos e condenar homens à morte, não por pratica -
ras e considerar-se delito aquilo que os estimula à piedade para rem algum crime ou malfeitoria, mas por serem de engenho li-
com Deus e para com os homens. Daí o detestarem as leis, atre- beral, e fazer do cadafalso, que é o terror dos maus, um teatro
verem-se a recorrer à força contra o magistrado e julgarem que belíssimo onde se exibe, para vergonha da majestade insigne, ·o
é a coisa mais honesta e não uma vergonha fomentar com tal mais sublime exemplo de tolerância e de virtude? Porque os
pretexto sublevações e intentar qualquer espécie de crimes . Sa- que sabem que são honestos não têm, como os criminosos, medo
bido, portanto, que a natureza humana é assim constituída, se- da morte nem imploram clemência; na medida em que não os
gue-se que as leis em matéria de opinião concernem, não aos angustia o remorso de qualquer acto vergonhoso, consideram
criminosos, mas aos homens livres, e são instituídas, não tanto que é honesto, e não um suplício, morrer por uma causa justa e
para reprimir os maus, como para irritar as pessoas de bem, glorioso dar a vida pela liberdade. Que exemplo poderá então
além de que não podem manter-se sem grave risco para o ficar da morte de pessoas assim, cuja causa os fracos e os de
Estado. ânimo impotente ignoram, os revoltosos odeiam e os honestos
Acresce que tais leis são de todo inúteis. Com efeito, quem amam? Ninguém, certamente, aí pode colher exemplo algum, a
acredita que são correctas as opiniões que as leis condenam não não ser para os imitar ou, pelo menos, admirar.
pode obedecer a essas mesmas leis; quem, pelo contrário, as -- Se se quiser, pois, que se aprecie a fidelidade e não a baju-
rejeita como falsas considera um privilégio as leis que as conde- lação, e que o soberano mantenha intacto o poder e não seja
nam e sentir -se-á por isso de tal maneira triunfante que o ma- obrigado a ceder aos revoltosos, terá necessariamente de se
gistrado, mesmo que queira, já não consegue depois ab -rogá- conceder a liberdade de opinião e governar os homens de modo
-las. E há ainda aquilo que deduzimos atrás, no cap. XVIII, n. 0 2 6, a que, professando embora publicamente opiniões diversas e até
da história dos Hebreus. Finalmente, quantos cismas não surgi- contrárias, vivam apesar disso em concórdia. E não há dúvida
ram na Igreja em boa parte porque os magistrados pretende- de que esta maneira de governar é a melhor e a que padece de
ram, através de legislação, dir imir as controvérsias dos douto- menos inconvenientes, porquanto é a que mais se ajusta à natu-
res? Na verdade, se os homens não alimentassem a esperança reza dos homens. Com efeito , num Estado democrático (que é
de pôr do seu lado as leis e o magistrado, de triunfar dos seus o que mais se aproxima do estado de natureza), como mostrá-
adversários com o aplauso do vulgo e de alcançar honrarias, mos, todos se comprometeram pelo pacto a agir em conformi-
jamais se bateriam com tanta crueldade ou lhes subiria à cabeça dade com o que for commumente decidid o, mas não a julgar e
tanto furor. Não é só a razão, é também a experiência que o a raciocinar ; quer dizer, como é impossível os homens pensa-

388 389
rem todos do mesmo modo, concordaram que teria força de lei querem abolir a liberdade de pensam ento, não obstante ela ser
a opinião que obtivesse o maior número de votos, reservando - impossível de reprimir.
-se, entretanto, a autoridade de a ab-rogar quando vissem que Com isto, ficou demonstrado o seguinte:
havia outra melhor. Assim, quanto menos liberdade de julgar 1 - É impossível tirar aos homens a liberdade de dizerem
se concede aos homens, mais nos afastamos do estado mais na- aquilo que pensam.
tural e, por conseguinte, mais violentamente se reina. 2 - Esta liberdade pode ser concedida a cada um sem pre-
Por outro lado, e para que fique claro que essa liberdade juízo do direito e da autoridade do soberano, podendo cada
não origina qúaisquer inconvenientes · qtie não possam ser evita- um conservá-la sem prejuízo desse mesmo direito, desde que
dos só pela autoridade do soberan<?, e de -que só ela pode _im- daí não retire á permissão de introduzir como direito algo de
pedir os homens de, professando êmbora opiniões coiit_rârlas, novo na república ou de fazer algo que vá contra as leis estabe-
•111; se lesarem uns aos outros, os exemplos · não faltam ·. -~ _nem pre- lecidas.
ciso de ir buscá-los, muito longe. Basta ver corno a cidade de 3-Cada um pode ter esta mesma liberdade sem perigo
[2461 Amesterdão, com o seu extraordinário desenvolvimento e a para a paz e sem que daí venha algum inconveniente que não
~.i
..1:11
'.l,
•;· 1 admiração que lhe consagram todas as nações, está a colher os possa facilmente neutralizar-se .
frutos dessa liberdade! De facto, nesta florescente república e 4 - Cada um pode tê-la sem prejuízo da piedade.
'I notabilíssima cidade, todos os homens, seja qual for a sua nação 5 - As leis estabelecidas em matérias de ordem especula-
11 (247]
e a sua seita, vivem na mais perfeita concórdia e, para fazerem tiva são de todo inúteis.
I j;
um empréstimo a alguém, a única coisa com que se preocupam 6 - Finalmente, mostrámos que esta liberdade, não só pode
J1
é saber se é rico ou pobre e se costuma agir de boa ou de má ser concedida sem risco para a paz da república, a piedade e o
il
il fé. Quanto ao resto, a religião ou seita não lhes interessa, visto direito do soberano, como inclusivamente o deve ser, se se qui-
;, não contar rigorosamente nada, perante o juiz, para se ganhar ser preservar tudo isso. Na verdade, onde quer que se procura
,1 ou perder uma causa. E não existe absolutamente nenhuma sei- retirá-la aos homens, onde quer que as opiniões dos dissidentes
i1 ta, por mais odiada que seja, cujos membros (desde que não são levadas a tribunal e não os ânimos, quando só estes é que
1
prejudiquem ninguém, dêem a cada um o que lhe é devido e podem ser pecaminosos, aí, oferecem-se exemplos que aos ho-
11
vivam honestamente) não sejam protegidos pela autoridade pú- mens de bem mais parecem martírios e que, aos outros, os en-
blica dos magistrados e pela guarda . Pelo contrário, quando furecem e induzem mais a ter compaixão, senão mesmo a vin-
-
.... outrora os políticos e os Estados Provinciais se começaram a gar-se, do que a ficar com medo. Depois, os bons costumes e a
envolver na controvérsia dos remonstrantes e contra-remons- lealdade corrompem-se, a bajulação e a perfíd ia são encorajadas
7
-· trantes sobre religião, esta degenerou logo num cisma e pro- e os adversários triunfam porque se cedeu perante a sua ira e
vou, com inúmeros exemplos, primeiro, que as leis estabelecidas porque os detentores do poder se tornaram seguidores da dou-
em matéria religiosa, isto é, destinadas a dirimir as controvér- trina de que eles próprios são tidos por intérpretes. Daí que
sias, servem mais para exasperar os homens do que para os tenham a ousadia de lhes usurpar o direito e a autoridade e
corrigir; depois, que há quem retire dessas leis pretexto para não corem de vergonha quando se gabam de ter sido directa-
toda a espécie de abusos; e, finalmente, que os cismas não nas- _mente eleitos por Deus e de que os seus próprios decretos são
cem do grande zelo pela verdade (que é fonte de afabilidade e divinos, enquanto os do soberano são simplesmente humanos,
benevolência), mas sim de um grande desejo de mandar. Daqui razão pela qual este se deveria subordinar aos decretos divinos,
resulta meridianamente claro que cismáticos são mais aqueles ou seja, aos seus. Tudo coisas que, ninguém o pode ignorar, são
que condenam os escritos dos outros e instigam contra os seus contrárias ao superior interesse da república.
autores a insolência do vulgo do que estes mesmos autores, os Concluímos, portanto, tal como no cap. XVlll , que não há nada
quais, na maior parte dos casos, escrevem apenas para os dou- mais seguro para a república do que restringir a piedade e a
tos e se socorrem unicamente da razão; e, além disso, que os religião unicamente à prática da caridade e da equidade e limi-
verdadeiros agitadores são aqueles que, numa república livre , tar o direito do soberano, tanto em matéria sagrada como pro-

390 391
_..

fan a, aos actos, deixando a cada um a liberdad e de pensar aquilo


que quiser e de dizer aquilo que pen sa.
E é tudo quanto tinha intenção de expor neste tratado . Res-
ta-me só advertir expressamente que não escrevi aqui nada que
de bom grado não submeta ao exame e julgamento do soberano
da minha pátria . E se ele achar que alguma coisa daquilo que .- ,.
eu disse vai contra as leis pátrias, ou é prejudicial ao b!:!m c9-
mum, eu próprio o dou por nãó dito. Sei ·que sou homem e que
posso ter-me enganado; mas fiz todo . o -possível para não errar
e, sobretudo, para não escr.ev~r · nada que não estives$~ · em
total conformidade com as leis da pátríà, a piedade .e os bo~s
• f- • costumes. · · · NOTAS

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392
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PREFÁCIO

1 1 A hlpótese sugerida por P. Couchoud , no livro Spinoza(1902), segundo


a qual este prefácio não seria da lavra do autor do ITP, mas sim de L. Meyer,
à semelhança do que acontece com os Princípios da Filosofiade Descartes e
com o Tratado Político, carece de verdadeiro fundamento , como demonstra
A. Droetto (1984, pp. 10-12). De facto, se é difícil crer que alguém a não ser
o autor pudesse apresentar uma síntese tão exacta e fiel do conteúdo do
Tratado, mais difícil ainda seria imputar essa tarefa a L. Meyer, que sustenta
ideias bem diversas sobre o mesmo assunto, como vimos na introdução.
E se, por outro lado, o estilo aqui se revela com outro vigor, é porque se trata
realmente de um prefácio, alheio, portanto, à ordem das demonstrações
que vão seguir-se com a reconhecida sobriedade .

2
A doutrina aqui exposta pressupõe e, por vezes, repete literalmente o
ll~··' que sobre as paixões é dito na w par te da Ética. Veja-se, em particular, o escó-
. •' lio da prop. 50: «as coisas que são acidentalmente causas de esperança ou de
medo vêm designadas por presságios bons ou maus. [ ...] Nós estamos por
natureza dispostos a acreditar facilmente naquilo que esperamos e dificilmen-
te naquilo que tememos[ .. .]. É essa a origem das superstições que provocam
em toda a parte a guerra entre os homens. Aliás,.rão cr~io que valha a pena
Tº~trar aqui as flutuações da alma que nascem da esperança e do temor, vis-
to ~e pela simples definição. des.tes.sentimentos nós ve~.Dª-º }iã espe-
rança se!!,1 _te~or nem temo.r..s.e.m~?P.Jmll\~.» ·
Em virtude des~ca entre paixões aparentemente irredutíveis, Es- ,.,
pinosa desliga-se d~Mas não só. O Leviathan,com efeito, estabelece ,J.:.'js~iv
no cap . Xll (pp . 95-99) urna genealogia das religiões que aparta, desde o início, J~
as que considera falsas da que considera verdadeira: as primeiras são fruto do 'l'-
«medo perpétuo que sempre acompanha, na ignorância das causas, a huma- ~úfP
nidade », e por isso «alguns poetas antigos disseram que os deuses teriam sido, , ji,o-
no início, criados pelo temor dos homens »; a segunda, porém, que é «reco- r
nhecimento de um Deus eterno, infinito e omnipotente, pode deduzir-se mais
facilmente do desejo que os homens têm de conhecer as causas dos corpos
naturais, as suas diversas virtudes e operações, que do medo pelo que possa
acontecer-lhes no futuro ». Qualquer delas tem por intuito «tomar os seus fiéis
mais aptos para a obediência, para as leis, a paz, a caridade e a sociedade civil»,
pelo que têm sempre carácter político. Mas as primeiras são «uma parte da
política humana » e a segunda é aquilo a que Hobbes chama «política divina ».
Ou seja, no momento em que os preceitos religiosos deixam de se considerar

395
como simples conselho s e assumem carácter de leis, passam intrins ecament e a nham , reflectem, antes de mais, o ambi ente em que se processa a ruptura com
ter carácter político, a informar um «reino », seja este dos homens ou de Deus. a escolástica e se afirm a o pensamento modern o. Expr essões semelhante s
Daí a conclusão de Hobbes: ~~!!!-9o reina de Deus, para ser algemais do qne encontram-s e com frequ ência em Descartes, Bacon, Galileu ou Hobbes .
o simples poder sobre todas as coisas tem de se entender como proveniente
de um pacto, o soberano cristãoé o único juiz com le~itirnidade para decidir 7
Sobre a expressão nec per sommium, vej a-se a nota de Joaquim de Car-
sobre o que é justo e o que..éinµtstoe sobre as doutrinas adequadas à manu- valho, na sua tradução da I parte da Ética (1960, 2.ª ed., pp . 114-117), onde se
_t_~nª-2_9 2_,eaz_qll.e.Jiey_em sec eusioadas aossúbditos . A neutralização das demonstra a clara ascendência portuguesa do aforismo, visível já em D. Fran-
controvérsias e, por conseguinte, do_medo, residirá então na entrega ao sobe- cisco Manuel de Melo. Como assinala o mesmo J. de C., a diversidade de tra-
rano de todo o poder de decisão em matériá civil ·ou religiosa . duções e, acrescentaríamos, a sua imprecisão, constituem «uma espécie de
A solução de Hobbes nã<;>·é, neste Pl!lticular, .ititeiramente nova. Já em contraprova » deste ponto de vista.
Platão (Leis,VI, 782, D-783, A) se podia -ler:.-«as coisas humanas dependem de
três desejos : comer, beber e (o Iriais -intenso):reproduzir-se. - Deye se tentar
0 8 O conceito de «religião católica» ou universal abarca judaísmo e cristia -
contê-los através dos três maiores remédios, que são o medo , à ie1 e o lagos.» nismo e fundamenta -se na unidade da Escritura . É verdade que , segundo a
Em contrapartida, Espinosa, ao propor a rigorosa abstenção do poder em interpretação alegórica, o Antigo Testamento se converte para os cristãos numa
matéria opinativa, remete, quando muito, para a observação de Maquiavel prefiguração do Novo e a Bíblia se reduz assim a um núcleo de enunciados
(Discorsi,cap. Vil, p . 52), segundo a qual «nada toma uma república mais firme que sucessivamente se desdobra em significações . Não é essa, porém, a pers-
nem mais estável que organizá-la de modo a que as excitações produzidas pectiva de Espinosa, como sabemos. Se de unidade aqui se pode falar - e é
pelos maus humores que a agitam tenham uma maneira legal de se ex- obrigatório fazê-lo para dar consistência à noção de catolicidade -, ela deriva
pandirem ». somente da referência comum ao mesmo Deus de diversos textos justapostos
e sancionados por concílios judeus e cristãos, configurando uma plataforma
3
É difícil precisar o que entende aqui Espinosa pela vera religiocontra- por onde circulam religiões que se digladiam entre si. Sendo, portanto, uma
posta à vana religio. Porque não se trata, obviamente, do amor intellectualisDei recusa da vocação de eleitos que os Hebreus a si mesmos se atribuem, não é
teorizado na v parte da Ética, dado que esse prescinde de «culto e aparato ». menos um distanciamento de qualquer religião positiva que se arrogue a ex-
Tudo indica, pois, tratar-se de um enunciado sem pretensões críticas, que se clusividade da interpretação dos Testamentos .
limita a assinalar a contaminação entre religião e política e a situá-las ambas
9 Diferentemente da atitude, porventura táctica, de boa parte dos pensa-
no domínio estrito da obediência, seja qual for o seu grau de razoabilidade.
dores modernos, que tentam defender a legitimidade da nova ciência alegan-
4
Nos caps. v1e vu do Tratado Político, Espinosa usará de outros termos do a sua conformidade com os princípios da religião, Espinosa sublinha, desde
para caracterizar o regime monárquico, divergindo então da legitimidade atri- logo, a sua incomunicabilidade. A própria expressão que por diversas vezes
buida por Hobbes ao absolutismo e aproximando-se da monarquia constitu- utiliza para anunciar o seu ponto de vista evidencia a deliberada ruptura com
cional tal como esta será teorizada, por exemplo, por Locke. No presente con- os pressupostos medievais da philosophiaancilla teologiaee do intellectusquae-
texto, não parece que a acusação que lhe dirige seja mais do que uma simples rensfidem, fides quaerensintellectum.
---.._
constatação empírica, na senda do que faz Maquiavel.
10 As especulações sobre os verdadeiros destinatários do ITP são inúme -

5
Há nesta passagem um dos primeiros assamos da originalidade do ITP ras. Afastados, por razões diferentes, os teólogos e o vulgo, restam os filóso-
fos explicitamente convocados no início do parágrafo . Porém, aos filósofos a
11
em termos políticos. Recorde-se que a reflexão sobre as consequências das con-
quem é dirigido o convite exige-se uma predisposição para a liberdade de
trovérsias religiosas na paz do Estado é banal, designadamente a partir da frag-
pensamento que só não se actualiza pelo obstáculo que representa o conside-
r mentação do cristianismo em diversas Igrejas. Hobbes e Grotius, por exem-
plo, partem daí para ensaiar diferentes soluções políticas. A novidade de
rarem a filosofia serva da teologia. Onde encontrará Espinosa esta predisposi-
1 Espinosa está na verificação de que o mal não vem das controvérsias em si
ção? Aparentemente, só naqueles que já filosofam no exterior das religiões
j mesmas, mas do excesso do legislador ao tomar partido por uma das facções.
positivas, estando livres de dogmas teológicos mas procurando outros em
substituição destes. A mensagem de Espinosa poderá, assim, entender-se como
tentativa de inflectir a reflexão desses «cristãos sem Igreja», num momento
.,1 6
Já no interior do aristotelismo renascentista, como referimos na intro-
dução, Pierre de la Ramée, entre outro s, se apercebe da dificuldade que é uma
em que ela hesita , ou por sentir a distância entre a razão e os dogmas das
várias Igrejas, ou por ver as suas consequências práticas, mas se arrisca a
teologia cristã baseada em autores pagãos e propõe, a partir daí, uma redistri- precipitar -se no mesmo erro por pressupor que a salvação está em novos
1 buição dos campos do saber. Mas as referências de Espinosa às «especulações dogmas, sem descortinar que é precisamente esse o mecanismo intrínseco de
dos aristotélico s ou dos platónicos », com a crítica de que sempre se acompa- todas as seitas .
1
!
l 396 397
CAPITULO! do cristão, pode considerar-se como coincidente com o que diz Espinosa, uma
vez que este propõe como critério exclusivo a «luz natural », que está longe de
1
As concepções metafísicas de Espinosa estão, como se vê por esta pas- coincidir com a «iluminação do Espírito Santo» dos reformadores.
sagem, desde o início comprometidas com a teoria do conhecimento no inte-
rior da qual se equaciona o problema da profecia. É porque o entendimento s Fiel ao princípio de interpretar a Escritura pela Escritura, a explanação
humano é parte do entendimento divino, de acordo com o exposto na Ética, li, que neste parágrafo se inicia visa mostrar que a profecia, seja quando é apre-
prop. 11, que a especificidade do conhecimento profético tem de ser outra que sett.tada como real percepção através dos sentidos, sejà quando se assume corno
não o provir de Deus. E é exactamen~e pela mesma razão que o conhecim.en- fruto de sonhos ou percepções imaginárias, está sempre fora da ciência. No
to intelectual se reveste de .uma certeza ·absoh.1ta;fazendo com que a verdade primeiro caso, limita-se a reflectir o efeito de um corpo exterior (figura ou
seja critério tanto de si mesma -como do eri:o, e dispensando na sua busca o voz) sobre a sensibilidade do profeta, sem captar a verdadeira razão de cau-
recurso à dúvida metódica. · salidade entre uma coisa e outra nem a essência daquele corpo: daí as dificul-
dades que suscita e que Espinosa, na sequênc ia de Hobbes (Leviathan,cap. XLV,
2
Estendendo-se para lá dos limites do conhecimento naturál; ~ conteúdo p. 654), refere, todas elas derivadas da impossibilidade de representar o infi-
da profecia só pode ser aceite por alguém na base da fé, a qual, tomada à nito por uma imagem que, qualquer que ela seja, o nega por definição (deter-
letra, como faz Espinosa na nota de rodapé onde comenta o assunto, implica minatio est negatio).No segundo caso, que é o mais fl'équente e o mais ge-
sempre urna relação de confiança no profeta e tem de se basear na sua auto- nuinamente profético, as ideias da imaginação encadeiam-se umas nas outras
ridade. Daí a fé consistir intrinsecamente numa dependência, que o mesmo é com base sempre em dados sensoriais e, por isso, à margem do entendimento,
dizer, em obediência, ao contrário da ciência, que ainda quando transmitida podendo mesmo configurar-se em sistema coerente que, no entanto, diferirá
por outrem é captada pelo próprio autonomamente, dado estar dentro dos da ciência porque é deduzido de ideias inadequadas. Conforme vimos na in-
limites do entendimento de que é, aliás, um produto. A tese central do Tratado trodução, é este, em última instância, o mecanismo que Espinosa atribui a toda
é, assim, afirmada logo no seu início e levada mesmo às suas últimas conse- a teologia, isto é, a todo o discurso sobre Deus formulado a partir da ideia do .
quências, como se concluirá se repararmos no final da nota atrás referida, onde soberanamente perfeito e da causalidade transcendente.
se assimila explicitamente a autoridade profética à autoridade de qua lquer
6 Por ser este o termo vulgarmente utilizado para designar a parte supe-
soberano para interpretar as leis do respectivo Estado.
rior da Arca da Aliança, onde estavam guardadas as tábuas da Lei, optámos
3
À tradução literal por que optámos relativamente à palavra latina mens por não traduzir à letra a palavra tegmen (tampa, revestimento) utilizada por
justifica-se pelo simples facto, a que aludimos na introdução, de Espinosa evi- Espinosa, de acordo, aliás, com o que aparece na Bíblia dos Setenta. «Propi-
tar sempre no TTP a palavra anima. Trata-se, efectivamente, de urna nítida ciatório» é a designação de carácter litúrgico que usa a Vulgata para o mesmo
efeito.
evolução terminológica, que indicia uma clarificação teórica do sistema à me-
dida que este vai recusando a alma na sua acepção habitual de substância ou 7
Os dois livros de Samuelcorrespondem, na versão de São Jerónimo, aos
faculdade, conforme oportunamente observaram E. C. Boscherini e A. Cra-

<~~-- pulli (1969).

4
À primeira vista, a observação de que não existe, hoje em dia, nenhum
dois primeiros livros dos Reis;só o terceiro e o quarto é que, na Bíblia hebrai-
ca, vêm designados por livros dos Reis (1e n).

8 Repare-se como Espinosa, a partir de citações da Escritura, parece cor-


profeta seria apenas um lugar-comum aceite por todas as religiões ao tempo
roborar integralmente a distinção que a tradição judaica faz entre Moisés e os
de Espinosa. Para a tradição judaica, o último dos profetas fora Malaquias
restantes profetas, à semelhança do que estabelece Maimónides. Ao contrário,
(séc. v, a. C.); para o cristianismo, a revelação, prolongada embora com o porém, do que este pretende, quando conclui que Moisés foi um verdadeiro
objectivo de assegurar a ponte entre o Antigo e o Novo Testamento, encerrara- filósofo e possuía o verdadeiro conhecimento de Deus, Espinosa sublinha que
-se com os apóstolos; e mesmo para o islamismo, ela terminara com Maomé. toda a revelação se fica pelo domínio do imaginário, reconhecendo embora
O contexto em que é feita essa observação oferece-lhe, no entanto, um signi- uma graduação no interior deste. Quer seja por palavras, quer seja por visões,
ficado muito mais amplo e, nessa medida, polémico. De facto, cancelada em- a profecia reduz-se ao plano da imaginação e da passionalidade, conduzindo
bora a revelação, nenhuma das religiões extrai daí a conclusão de que, para se sempre a urna atitude de obediência e não de ciência. Daí que Moisés não te-
entender a Bíblia, «só nos resta abrir os sagrados volumes». Pelo contrário, nha prescrito senão urna legislação política, válida apenas para o Estado ju-
todas elas tentam manter vivo o efeito de autoridade que emanava do pro- deu, abolindo inclusivamente a diferença entre religião e governo.
feta, não confiando a prerrogativa da interpretação a qualquer um. Nem se-
quer a excepção a esta norma que constituem as religiões protestantes, segun- 9 A figura de Cristo, tal como por várias vezes surge na obra de Espi-
do as quais a leitura da Escritura propiciaria uma iluminação interior e individual nosa, é altamente ambígua e, em última instância, não representa qualquer

398 399
papel no sistema, conforme conclui A. Matheron (1971,p. 276), no estudo exaus- 10 Compare-se com a expressão, vulgar em português , «espalhar ou pro -

tivo que dedica a esta problemática. De notar, em primeiro lugar, a diferença clamar aos quatro ventos ». Já Hobbes, no cap. xxxrv,pp. 380-388, do Levia-
estabelecida entre Cristo e Moisés, que faz o ITP, também neste particular, than, interpretava metaforicamente a palavra spiritus, que literalmente signi-
divergir do Leviathan.Hobbes, com efeito, no cap. xu, dedicado à «missão do fica vento. No entanto, para ele este «vento de Deus » era tido ainda como um
nosso bendito Salvador » e antecedendo imediatamente o capítulo dedicado sinal excepcionalmente produzido por Deus para autenticar alguma das suas
ao «poder eclesiástico», assimila ambas as figuras, caracterizando-as corno obras miraculosas. Em Espinosa, pelo contrário, trata-se apenas de um fenó-
representantesde Deus. Tal assimilação, é verdade, está em boa parte fundada meno natural e só nessa medida «produzido» por Deus.
sobre o acessório - E:Scolhade discípulo_s,instauração de ritos, etc. -, mas é.
nítido que ela visa ·demónstrar que tanto num coino ·noutro caso não estamos 11 No vers. 20 do capítulo citado, diz-se precisamente: «Mediu a sua pa-

senão perante personagens que detêm «subotdinadamente» o poder que só rede por todos os lados, segundo os quatro ventos, andando em volta, e con-
pertence a Deus. A própria redenção operada -por Cristo consist~, segundo - cluiu ter o comprimento de 500 côvados e a largura também de 500 côvados,
Hobbes, em restituir por um segundo ·pacto o pod~r que fora usurpaq.ó pela que era o espaço que havia entre o santuário e o lugar do povo.» Em contra-
rebelião do povo e a eleição de Saul. Em resumo, Cristo é representante de · partida, como nota A. Droetto (Boscherini-Droetto, 1984, p. 43), o significado
Deus e, nessa medida, vice-rei; ora, corno «o reino de Deus não é deste de spiritus é diferente no também citado cap. xxxvn,9, denotando explicita-
mundo», a sua missão tal como a dos seus discípulos, foi e é preparar os ho- mente sopro vivificador, alento, à semelhança do que Espinosa enunciara na
mens para.o «reino celestial», não devendo, portanto, interferir na actividade alínea 2, e não como aqui, na alínea 7.
dos soberanos.
O problema de Espinosa é inteiramente outro. Sem jamais fazer uma 12 O termo «transcendental» aqui referido, tal como na Ética, u parte,

análise do Novo Testamento como faz do Antigo, justificando-se inclusivamente prop. 40, esc. 1, constitui um dos pilares da metafísica escolástica. Tentando
por não dominar a língua grega, o ITP pressupõe os ensinamentos de Cristo sintetizar algo que de si é bastante complexo, recorde-se que, na Escolástica,
como religião universal da caridade e da justiça, diferente, portanto, da reli- transcendental poderia significar: a) aquilo que está para além dos predicamen-
gião dos profetas, a qual, por decorrer no plano da imaginação, está sempre tos ou géneros de ser (Deus); b) aquilo que convém a vários predicamentos
circunscrita a particularidades de lugar e tempo. À primeira vista, portanto, (por ex., o movimento); c) aquilo que se encontra em todos os predicamentos
Cristo seria um filósofo, ou seja, alguém que possuía o conhecimento intelec- (por ex., a pluralidade); d) o ser e aquilo que se diz de todo o ser. Para além do
tual de Deus, assumindo no sistema espinosista o exacto papel que Moisés ser, são cinco os conceitos transcendentais: res, 11n11m, aliquid,verum, bonum
assumira no de Mairnónides. Há, porém, urna diferença essencial, que justifica (cf. Gredt, vol. 11, 1961, p. 14). Ora, para Espinosa, como sabemos pela Ética,
o ter Espinosa recusado a Moisés o carácter de filósofo: é que, a este, a reve- , parte, prop . 28, «nenhuma coisa singular[ ... ] pode existir nem ser determi-
lação é mediatizada por palavras e imagens, enquanto a Cristo ela surge ime- nada a produzir um efeito a não ser por uma outra causa, ela própria finita e
diatamente. Dito de outro modo, e em termos já não escriturísticos, o enten- com uma determinada existência [... ] e assim até ao infinito». Não se pode,
dimento infinito exprime-se em Cristo apenas por ideias adequadas, sem portanto, explicar a profecia pelo poder de Deus enquanto infinitamente con-
mistura de imaginação ou conhecimento confuso. No entanto, como evitar siderado, mas sim pelo poder de Deus enquanto afectado de qualquer modo
o absurdo que seria o entendimento infinito assumir a natureza humana? finito . É este que escapa à ciência, como o autor confessa, e de pouco valerá
--, As reservas de Espinosa a esse propósito são manifestas quando declara, logo remeter para termos transcendentais que não explicam os factos singulares.
a seguir, que não compreende o que as Igrejas dizem sobre Cristo. E em res- «A existência», diz o TRE, § 55, «é concebida tanto mais confusamente quanto
posta a Oldenburg (carta 1..xxm) será ainda mais veemente e preciso, ao consi- mais genericamente a concebemos.»
derar que a sabedoria divina se revela na mente humana «e de modo absolu-
tamente particular em Jesus Cristo», remetendo, pois, a pessoa deste para a 13
• por mais de urna vez ao longo deste capítulo, a análise
Como · acontece
categoria de um filósofo, àinda que superior, de alguém que teria compreen- que o Tf P faz da Escritura pretende-se sempre um simples exerócio «crítico»
dido a verdade que Espinosa deduz moregeometrico; Sabedoria de Deus signi- destinado a apurar o sigriificado dos textos. A pretensa inocência do método
ficaria, assim, como o contexto do presente capítulo parece sugerir, apenas levará, todavia, muito tempo a ser reconhecida e aceite, como irá experimen-
uma sabedoria fora do comum. tar, logo a seguir, o oratoriano Richard Simon: não obstante querer apenas
Mais difícil ainda é compreender-se Cristo como «caminho de salvação». reforçar com a crítica a tradição e reconhecer que sem esta a interpretação da
Porque se a sua doutrina coincide com a verdade e se a beatitude se alcança Bíblia é impossível, a ortodoxia católica abater-se-á sobre ele, designadamente
unicamente pelo conhecimento desta, como explicar aquilo que Espinosa parece na pessoa de Bossuet (cf. P. Auvray, 1974).
aceitar e que é a possibilidade de salvação pela simples obediência aos dogmas
universais? Como entender a «salvação dos ignorantes», à luz da v parte da 14 A teoria aqui sintetizada fora exposta no TRE, §§ 87-89, embora reas-

Ética?É este precisamente o tema do atrás citado livro de Matheron. suma agora o tom a rondar a ironia que já por mais de uma vez encontrámos

1,;

400 401
~:j
no TTP. Com efeito, ao mesmo tempo que dá a impressão de ratificar a ideia tinha como critério do verdadeiro profeta a conformidade com a religião
generalizada de que o profeta excede em conhecimento o que é normal no estabelecida, recusando assim a possibilidade de se introduzir doutrina nova
homem, o autor remete esse excesso para a categoria de conhecimento do (cf. Leviathan,cap . XXXII, p. 364), Espinosa põe o acento na conformidade com
primeiro género, ou seja, inadequado. Veja-se o que é dito nos parágrafos a justiça e o bem, o que pode muitas vezes significar ruptura com a tradição.
do TRE a que aludimos: «aqueles que não estabelecem cuidadosamente a dis-
2 A fidelidade ao método de interpretar a Escritura pela Escritura está
tinção entre a imaginação e o entendimento incorrem em erros enormes[ ... ].
As palavras são criadas arbitrariamente e em conformidade com a mentalida- patente nesta recorrência a citações eivadas da ideia antropomórfica de Deus,
de do vulgo. Elas nã<;>são $enão. sinais das.coisas tais como estas aparecem à que de todo em todo o Tratado rejeita. É, com efeito, um absurdo, como já
imaginação e não ao entendimento. Assim se explica o· facto de muitas coisas Descartes notava e os modernos estudos bíblicos sublinham, pensar-se o ser
que estão só no entendimento e nãó na imagi_nação serem muitas vezes que se define pela suprema perfeição a enviar falsos profetas para enganar e
designadas por termos negativos, tais eomo incorporal, infinito, etc., e bem : castigar o povo. O que Espinosa acrescentará, levando, por assim dizer, o ra-
assim o exprimirem-se negativamente muitas coisas positivas ou viee-ve_rsa~» ciocínio às suas últimas consequências, é que imaginá-lo como sumamente bom
É de notar, enfim, a diferente origem do erro assim estipulada relativa- é permanecer ainda no antropomorfismo. Por isso a Ética o define como o
mente a Descartes (rv meditação), que o faz derivar de uma alegada assime- absolutamente infinito e não como o absolutamente perfeito, o que equivale
tria entre os limites do entendimento e o ilimitado da vontade (AT, VII, p. 46). a retirá-lo do universo da imaginação em que decorre a Escritura e a posicioná-
Na verdade, enquanto o autor do Discursodo Método,referindo embora que a -lo no universo da razão.
possibilidade de errar surge exactamente quando a vontade leva o homem a
pronunciar-se sobre matérias que excedem a sua capacidade de entender, não 3 A passagem aqui aludida (Samuel,11,cap. XXIV, 1) diz expressamente que

exclui de modo algum a hipótese de aquela atingir a verdade se for secundada ofuror do Senhor'VOitou de novo a acender-secontraIsraele excitouDavidcontraele
por outros recursos, tais como, por exemplo, a revelação divina. É precisa- dizendo:vai e Jaz o recenseamentode Israele de Judá. Mais adiante, e ainda no
mente esta hipótese que parece negada em Espinosa quando nega a assime- mesmo capítulo, vers. 10, refere-se que David disse ao Senhor:eu cometi nesta
tria entre entendimento e vontade e exclui, em consequência, do domínio do acçãoum grandepecado,mas rogo-teque perdoesa iniquidadedo teu servo.
saber adequado toda a ideia que não provenha do enten dimento.
4
O heliocentrismo assume aqui as dimensões de caso exemplar no que
toca ao método de interpretação da Escritura. O que se condena é a atitude
CAPÍTULO II daqueles que, como Maimónides, ou o cartesiano L. Meyer, tentam enqua-
drar todos os enunciados bíblicos no interior da razão, promovendo a filoso-
1 A teoria da imaginação, já desenvolvida na Éticae a que fazemos refe- fia a supremo intérprete e recorrendo irremediavelmente a processos alegó-
n
rência na introdução, é continuada neste capítulo por uma reflexão sobre os ricos para extorquir do texto uma verdade que literalmente ele contradiz.
sinais. Dado que as coisas reveladas não são evidentes em si mesmas, jamais À primeira vista, dir-se-ia, pois, ser uma condenação do saber de tipo calvi-
poderão constituir ciência. Nessa medida, a certeza que o profeta delas possui nista. Mas Espinosa tão-pouco considera a Escritura capaz de ensinar alguma
-~ só poderá advir dos sinais que as acompanham. Estes, porém, em vez de re- coisa sobre Deus ou sobre o mundo. O que o afasta daqueles que, como Ga-
'· conduzirem os enunciados da revelação ao domínio científico, reforçam ainda lileu, descobrem a inexactidão da Bíblia mas a atribuem ao seu carácter didác-
mais a sua exterioridade, visto serem intrinsecamente ambíguos: Deus tam- tico, pressupondo que os profetas possuiriam um conhecimento científico que
bém faz sinais para experimentar o povo, os prodígios tanto acompanham a adaptavam à mentalidade do vulgo, é precisamente a equivalência entre pro-
verdade como o erro. Dito de outro modo, não há nenhum processo de o fecia e imaginação, pela qual toda a revelação se toma por natureza ideia ina-
conhecimento certo que Deus tem das coisas se transferir para os homens a dequada, tanto no profeta como no povo.
não ser pela evidência que acompanha o conhecimento •natural», dado que
este, como sabemos, é a própria e única expressão do entendimento infinito. 5 O fenómeno que em meteorologia se designa por parélioou falso Sol

A revelação, portanto, reduz-se sempre ao campo da imaginação, isto é, a ideias consiste numa imagem do Sol, vermelha ou branca, observada por ocasião de
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que indicam apenas o «sentir» dos homens, os efeitos das coisas e dos outros um halo solar. Normalmente, os parélios apresentam-se à mesma altura do
sobre o corpo de cada um, sem que alguma vez reproduz.i.m o encadeamento Sol e à distância angular de 22 graus para um e outro lado do astro. Se este
causal do universo. Assim se explicam as múltiplas contradições que atraves- está próximo do horizonte, situam-se sobre o halo ordinário; mas se está mais
sam a Escritura e se justifica a conclusão apontada por Espinosa, segundo a alto, podem-se produzir parélios brancos a 120 graus do Sol e incidindo fora
qual não somos obrigados a aceitar da revelação mais do que aquilo que é o do halo. Espinosa deve ter tido notícia do fenómeno através do estudo do seu
seu fim, ou seja, o ensinamento da «verdadeira vida», da justiça e da caridade. contemporâneo Huygens intitulado De coroniset parheliis,dado que por várias
De notar também que, de acordo com o mesmo princípio, enquanto Hobbes vezes se refere nas suas cartas aos trabalhos do autor.

402 403
6
É manife sta a heterodoxia da versão que Espinosa oferece do relato ge- sível e corporal , que ela produ z segundo razões seminais que imi tam as ideias
nesíaco, ainda que não seja esse o objecto de discussão no parágrafo . Com (cf . Robin, 1963, pp . 417 e 447).
efeito, em pleno século XVII, só em livros cabalísticos se poderia ainda encon-
7 Abraão Ibn Ezra nasc eu em Toledo, em 1092, e teria morrido, ao que
trar vestígios desta nítida tentativa de conciliar a Bíblia com o pensamento
parece, em Roma, no ano de 1167. É considerado o primeiro comentador que,
antigo, não obstante ela ter sido uma das tendências mais insistentes , quer
na tradição judaica, levanta algumas suspeitas sobre a atribuição dos livros do
entre os Judeus, quer mesmo na Patrística cristã.
Os termos que se nos deparam estão, com efeito, muito longe da tese da Pentateuco a Moisés.
criação ex nihilo consagrada por sucessivos concílios: docuit praeterea,h9c ens 8 Tratando-se embora de demonstrar, neste passo, a inadequação das
mundum hunc visibílein ex Cfiaà (Gen. 2, éap. 1) in ordíném redegisse,seminaque-
ideias de Moisés sobre Deus, é também nítida a insinuação do carácter secun-
naturae indidisse.É, de resto, signifiqi.tiv_ó _que 6 ~utor remeta para o vers. 2 do dário e «regional » dos cultos relativamente à religião, aspecto este que será,
Génesis,em vez de citar o vers. 1: no princípiocriou Deus o céu.e a term. Qpr.q- .. mais à frente, objecto de desenvolvimento, quando Espinosa refere o exem-
blema, como se sabe, está na dificuldade ·em abarcar racionalmente 9 -actcr de plo da Companhia das Índias Orientais, que recomenda aos seus marinheiros
criação da matéria a partir de um Deus que se define trad.icionalméRte como · absterem-se do culto externo em terras aonde este seja proibido . De qualquer
a sua negação. A tentativa mais frequente para o resolver passa por uma con- forma, o que de essencial permanece, para lá das possíveis influências de um
ciliação, ora com as teses do mazdaísmo persa e babilónico, que contaminam calvinismo que centra a religião na relação directa do indivíduo com Deus, é a
diversas franjas do pensamento judaico, ora com o pensamento grego, aonde representação imaginária da divindade e, por conseguinte, a sua irremediável
o cristianismo dos primeiros séculos procura alojar a sua doutrina, à seme- tradução em particularismos sempre relativos à situação de cada povo . Nessa
lhança, aliás, do que fazem muitos autores hebreus. Assim, por exemplo, Jus- medida, a consignação intrínseca de cada divindade a um território, subtilmente
tino, um dos padres da Igreja, exprime-se como se Deus criasse a partir de sublinhada neste texto, constitui, não tanto a denúncia de um erro episódico,
uma matéria informe preexistente, assegurando, além disso, que a narrativa como a descoberta de um elemento característico de todos os processos as-
mosaica teria inspirado a Platão a actividade do derniurgo descrita no Timeu sentes na base da passividade e passionalidade dos indivíduos: o Deus repre-
(cf. Tresmontant, 1961, pp. 114-155). A versão espinosana faz-se eco desta lei- sentado na imaginação será sempre um Deus particularizado, que indicia mais
tura platónica do Génesis, quando fala da transformação do caos em mundo a situação de quem o imagina do que a substância infinita e, por isso, mudará
visível. Ao acrescentar, porém, a referência às «sementes da natureza», a de povo para povo e de situação para situação.
heterodoxia da leitura acentua-se ainda mais e parece estabelecer uma sú-
bita e subtil ponte com a sua metafísica, toda ela anticriacionista. Na verdade, 9 Conforme Espinosa anteriormente sublinha (p. 158), em parte alguma
só num quadro conceptual em que a natureza surja como engendrada e não o Génesisrefere a criação destes entes que fazem as vezes de Deus e que aqui
como criada tais sementes ou gérmenes adquirem algum sentido. E é precisa- aparecem identificados com os anjos. Na verdade, a literatura sobre o assunto
mente este o caso das correntes gnósticas, contra as quais se insurgirão suces- aparece entre os Hebreus, sobretudo, depois do exílio na Babilónia e do con-
sivos padres e concílios, a braços com a necessidade de distinguir a «geração sequente contacto com os Persas, vindo, portanto, do mazdaísmo . Que esta
na eternidade» do Filho de Deus e a criação a partir do nada de todos os incorporação no judaísmo tradicional foi fecunda, não obstante ter deixado
outros seres . intacto o monoteísmo e a crença na superioridade do Deus de Israel, prova-o
'
'r,:, Sendo embora o imanentismo de Espinosa diferente do emanatismo da a abundância de espíritos angélicos que surgem principalmente em livros apó-
fr._,.,.l
,·,:., gnose, inspirado em Plotino, não pode deixar de assinalar-se aqui a emergên- crifos e que reflectem com mais exactidão as crenças populares . São de dois
l •': .
cia de um tema caro ao neoplatonismo, até pela coincidência terminológica. tipos os espíritos que aí surgem : os bons e os maus, os anjos e os demónios.
De facto, a expressão «sementes da natureza » constitui a tradução evidente Os anjos, por sua vez, ou estão perante a face de Deus, ou são enviados para
das razões seminais que Plotino invoca, na sequência dos logoi spermatikoidos tomar conta, seja dos astros, seja das nações (cf. Ricciotti, p. 86).
estóicos. Para Crisipo , recorde-se, a geração do mundo faz-se a partir do ele-
mento por excelência, o fogo. Este, existindo a princípio só e no vazio infinito, 10 A ratio bene vivendi, apresentada aqui como sinónimo de verdadeira

é animado por uma tensão de gerar que para se satisfazer exige que o mesmo vida, culto interior e amor de Deus, lembra imediatamente os termos com
fogo se condense e se converta, primeiro, em ar e, depois, em água . A água, que na v parte da Ética se descreve a liberdade. Não resulta, todavia, absolu-
porém, uma vez percorrida pelo sopro inflamado do ar, dá origem a um gér- tamente claro por que razão diz o autor que ela foi para os Hebreus uma
men que é a razão seminal ou a lei do mundo, na qual se contêm as razões escravidão . O que Espinosa quer, decerto, frisar é a distância que vai do viver
r ·;
segundo uma moral imposta , que apela à obediência, ao viver por determina-
..
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seminais ou leis de organização de todos os seres particulares. Da mesma
forma, em Plotino, é também por uma «superabundância» do Uno que se ção do próprio entendimento e livre da sujeição passional. Só aquela poderá
engendrarão as suas sucessivas hipóstases, até ao aparecimento da Alma, que ser para alguém, e é por essência, escravidão . A «verdadeira vida», pelo con-
serve de meio termo entre o inteligível , do qual provém, e a natureza sen- trário, é sempre libertação para quem a experimenta .

404 405
CAPÍTULO IIl . 4
A recusa em reconhecer os Hebreus como povo eleito processa-se por
uma via a que poderemos chamar irónica; de facto, é porque tudo o que acon-
1
O processo de demonstração utilizado neste capítulo evidencia já um tece é fruto de especial eleição ou vocação divina, quer dizer, ex Dei aetema
domínio pleno dos vectores principais do sistema, o que parece pôr em causa directione e/ decreto, que não faz sentido falar em povo eleito. A menos que
as interpretações que o dão apenas como wn retomar dos temas enunciados por essa eleição se entenda o conjunto de circunstâncias que determinaram a
na Apologia contra a expulsão da Sinagoga de que o autor foi alvo a 27 de constituição da comunidade e do Estado hebraicos. Por detrás do argumento
Julho de 1656. O conceito-chave dessa argwnentação é «a beatitude», que co- está, obviamente, a singular e polémica concepção que Espinosa tem do pro-
meça por ser apresentada num contexto i;ltelectual inspirado no estoicismo. blema da vontade e da liberdade. Entre muitas outras passagens aonde a
Leia-se Séneca: Quid est beatavita? Securitas et perpetua·tranquilitas (Ad Luci- questão é tratada, poderemos citar a prop. 32 da I parte da Ética:«a vontade
lium, xrn). Por ser tranquilidade (apatheia)que provém '3._o conhecimento, a não pode ser considerada causa livre, mas apenas causa necessária». Isto
beatitude exclui as paixões do orgulho .e da inveja. Mais ainda, e conforIJ1.e~ . .... demonstra-se a partir da observação de que «a vontade não é senão um
diz no Tratadoda Reformado Entendimento(§§-13e 14), a beatitude, que aí aparece determinado modo do pensamento, tal como o entendimento, e, nessa me-
como «bem supremo» e finalidade última da naturezà -humana, alcançávél pelo -· dida, nenhuma volição pode existir nem estar determinada a produzir um
«conhecimento da união da mente com a totalidade da natureza», tende in- efeito se não estiver determinada por uma outra causa, e esta, por sua vez,
trinsecamente a ser partilhada: «faz parte da minha felicidade empregar todos por uma outra, e assim sucessivamente até ao infinito». Daí se segue, confor-
os esforços para que muitos outros compreendam como eu, de modo a que o me Espinosa acrescenta no corolário 1 da mesma proposição, que «Deus não
entendimento deles e os seus desejos se ponham de acordo com o meu en- produz os seus efeitos pela liberdade da sua vontade», mas sim pela necessi-
tendimento e o meu desejo». Muito distante já do sentido iniciático deste dade do seu entendimento, o que faz com que elas não possam ser diferentes
começo do TRE, a mesma ideia é transposta para o contexto necessitarista daquilo que são. ·
da Ética (1vparte, prop. 36), assumindo aí o seu pleno significado espinosano:
«Só na medida em que os homens vivem sob a conduta da razão eles estão 5 A separação entre os dois níveis a que aludimos na nota 1 aparece aqui
por natureza, sempre e necessariamente, de acordo»; pelo contrário (idem, com toda a clareza e reforça a interpretação da política tal como ficou apre-
prop. 34), «na medida em que os homens estão dominados por sentimentos sentada na introdução. Efectivamente, são três os objectivos principais a que
que são paixões, podem opor-se uns aos outros». O que se verifica no presen- se resume «tudo o que podemos honestamente desejar»; conhecer as coisas
te capítulo do TTP é precisamente a articulação destes dois níveis, fazendo-os pelas suas causas primeiras; dominar as paixões, isto é, adquirir o hábito da
atravessar a ambos pela noção de beatitude (securitaset tranquilitas),cujo sig- virtude; viver em segurança e manter o seu próprio corpo. Os meios para
nificado se bifurca assim em dois raios: o moral e o político. É moral o impe- alcançar os dois primeiros estão contidos na própria natureza humana enquan-
rativo que põe o indivíduo em busca do conhecimento da sua verdadeira to racional e constituem, por isso, um «dom universal» à mercê de cada indi-
natureza·e, por essa via, o levará em busca do conhecimento da natureza na víduo que se disponha a perseguir tais objectivos. Mas os meios para obter a
sua totalidade, aproximando-o sempre mais do impossível encontro com to- segurança não dependem só de cada um, dependem de tudo o que o envolve,
dos os seres (ou com o Ser). Desse ponto de vista, não há nações e o cosmo- dos outros homens e dos outros seres. É, portanto, um objectivo radicalmente
politismo estóico recobre plena justificação. Mas a neutralização dos ataques diferente dos anteriores, que só se alcança mediante a conjugação de forças,
vindos de outros homens, ou seja, do ambiente exterior a cada indivíduo, é quer dizer, mediante a correcção do movimento que coloca cada um contra
política (cf. mais adiante, nota 5). o outro. E é isto que a razão recomenda. Porque a razão nunca está em con-
tradição com a natureza, exigindo que o indivíduo deseje o que lhe é real-
2 A expressão directioDei é frequente na obra de Espinosa. Assim sendo,
mente útil, e «nada há de mais útil ao homem que o homem» (Ética,IV parte,
julgamos estarem removidas as hipóteses de ambiguidade que pudessem advir prop. 18, esc.). Os homens, acrescenta Espinosa, «não podem desejar nada que
do facto de a traduzirmos aqui por «governo de Deus», expressão com evi- seja melhor para conservar o seu ser que estarem todos de acordo em tudo,
dentes ressonâncias antropomórficas mas que, além de parecer mais adequa- de modo a que as mentes e os corpos de todos componham como que uma
da em português, sintoniza com os termos «lei» e «decreto» que lhe vêm jus- só mente e um só corpo[ ... ]. Daí que os homens que se governam pela razão,
tapostos. quer dizer, os homens que buscam sob a orientação da razão o que lhes é útil,
não desejam nada para si que não desejem para os outros.» Mas é também
3 Esta parte constituirá o objecto específico do cap. IV. De notar, desde já, isto o que a experiência ensina, diz o texto que vimos comentando. Na ver-
que todo o trabalho teórico aqui operado consiste em envolver os enuncia- dade, o ensinamento da razão é, a este respeito, de muito pouca eficácia,
dos, quer religiosos, quer científicos, na teia do imanentismo. O processo é, wna vez que o homem não tem «o poder absoluto de adaptar em função do
aliás, característico do estilo de Espinosa, que tenta sempre levar opiniões co- que lhe é útil as coisas exteriores» (Ética, IV, apêndice, cap. 32), a começar
mummente aceites a exprimir verdades comummente inaceitáveis, sem que o pela vontade dos outros, nem sequer pode algwna vez deixar de estar ele
leitor se aperceba de qualquer momento de ruptura. mesmo submetido às paixões (idem, ibidem,prop. 4, corolário), como Espi-

406 407
no sa argumenta explicitamente contra os estóicos e contra Descartes (idem, como o «centro da vida » e a «acrópole do corpo» (De partibus 1111imali11m, 670,
v parte, prefácio). É por isso que as sociedades possuem vários graus de se- a, 22-26), verdadeiro princípio único (cf. Vegetti, 1981, pp. 146-148). Este mes-
gurança e estabilidade, podendo, no limite mínimo, subsistir por força apenas mo «cardiocentrismo » aristotélico será retomado por São Tomás, que dele re-
do acaso. tira uma analogia para fundamentar a sua doutrina da «naturalidade» do go-
verno monárquico (cf. De regno, trad. franc., Paris, 1946, p. 38).
6 É flagrante a coincidência entre esta passagem e a doutrina exposta no

cap . xxv do Príncipe,onde Maquiavel trata desse conceito-chave de toda a sua 9 O argumento retirado de Job contra a pretensa eleição dos Judeus tinha

concepção política que é a «fortuna», por contraste com a «virtude». A virtude sido vulgarizado na primeira metade do século XVII em torno da questão dos
traduz o termo latino ilirtus, oti seja, energia moral e ·militar a que se acres- mandamentos noaquitas, os sete preceitos que Deus teria dado a Noé e aos
centa, no contexto moderno, a eficiência e habilidaçle estré!tégica; a fortuna, seus filhos após o dilúvio, através dos quais se poderiam salvar, de acordo
por seu turno, traduz o conjunto de elementos :imponderáveis que po.dem . com o Talmude, os não-judeus. John Selden, autor do De Jure naturali et Gen-
condicionar e limitar a acção do homem por serem estranhos .à sua vont.ade. tium juxta DisciplinamEbreornm(Londres, 1640), menciona estes mandamen-
Maquiavel compara-a, no citado capítulo, a um rio torrençial ·que, quéÍQdo se __ tos citando autores judeus, entre eles Maimónides. Uriel da Costa, por seu
enfurece, inunda os campos, áerruba árvores e· edifícios, gera, enfim, o pânico turno, refere-os no contexto polémico do seu Exemplar Humanae Vitae,
geral. Todavia, acrescenta o autor, os homens podem, passada a borrasca, associando-os nitidamente à «religião natural», que conteria tudo quanto há
tomar precauções e construir diques para que o desastre se não repita. Com de bom em qualquer religião positiva (cf. ed. P. Gomes, 1982,pp. 233-236;sobre
a fortuna passa-se o mesmo: «ela exibe o seu poder quando não há uma vir- Uriel e Selden, vide H. Salomon, 1979, e Aurélio, 1985).
tude organizada e preparada para lhe fazer face».
1º A insistência na doutrina de São Paulo é sintomática de um certo para-
7 Hobbes dedica a este mesmo assunto uma parte do cap. xxxv do Levia- lelismo de situações entre o apóstolo e Espinosa, ambos judeus e ambos hete-
tlum, concluindo também, contrariamente aos «escritos dos clérigos e especial- rodoxos face à tradição na medida em que desligam a essência da palavra de
mente os sermões e tratados de devoção», onde o reino de Deus é amiúde Deus do Estado de Israel e, como tal, subtraem à «nação» a exclusividade da
interpretado como a felicidade eterna, que tal expressão significa na Escritura eleição. Note-se, todavia, que enquanto o catolicismo reivindica as teses pau-
um «reino propriamente dito, constituído de modo muito particular pelos votos linas para delas concluir o estatuto de «nova Israel» atribuído à Igreja, o TTP,
do povo de Israel, através dos quais este escolheu Deus para seu rei mediante longe de pretender substituir uma igreja por outra, invoca apenas a universal
o pacto celebrado com ele, quando lhe prometeu a posse da terra de Canaã» . possibilidade do conhecimento e amor de Deus, independentemente de qual-
Muito raramente, acrescenta Hobbes, «e só no Novo Testamento», o reino de
quer rito, sinal ou seita.
Deus aparece como uma metáfora (pp. 396-397). Foi po rque os Hebreus rom-
peram aquele pacto pela eleição de Saul (cf. nota 9 ao cap. 1)que Cristo veio 11 Uma vez mais, a «nova aliança» aparece subtraída a qualquer igreja
para redimir a falta e preparar os homens para o momento em que ele virá
em particular, fosse ela a Igreja Católica, e, por conseguinte, em ruptura com
no fim dos tempos, a tomar posse do reino de seu Pai. Até lá, não há portanto
a teologia e a exegese cristã, que vêem no Antigo Testamento um prenúncio
razão para se desobedecer aos soberanos instituídos. Como facilmente se
do Novo. Os termos em que aparece aqui a aliança são, de resto, os mesmos
verificará, o contexto em que Espinosa retoma a questão e a doutrina é total-
mente outro . que traduzem o amor intellectualisDei da v parte da Ética.

12 Há duas ordens de problemas que se interligam na questão aqui alu-


8 A localização da alma no coração não constitui especificidade hebraica,
como parece pretender Espinosa. Sem ser necessário recorrermos a informa- dida: uma é a dos elementos integradores da nação judaica; outra é a das hi-
ções mais recentes da etnologia, bastará lembrar o pensamento grego, onde a póteses de essa nação voltar a constituir-se em Estado. A primeira deriva da
«topologia do espiritual» é, como se sabe, bastante variável. Platão, por exem- constatação de que as nações não são produto da natureza, havendo, portan-
plo, apesar de insistir globalmente na separação radical entre a alma e o corpo, to, que procurar-lhe uma genealogia de forma a explicar cabalmente a sua
escreve também (Timeu, 45 A; 70 A-B) que a razão está somaticamente situada força e dinâmica. O tratamento que Espinosa faz deste tema é, porventura,
na cabeça, de onde reina sobre o resto da alma e do corpo, como se fosse de dos mais subtis e pode considerar-se pioneiro na análise das ideologias e da
uma acrópole, e controla e regula, com a ajuda da guarnição militar sediada capacidade mobilizadora da esfera do simbólico. Por um lado, a unidade he-
na região cardíaca, a desordenada ágora dos desejos e apetites. Da mesma braica é, de facto, um fruto do «inimigo externo»; o ódio generalizado que os
analogia parece derivar a caracterização psicogeográfica dos povos que é apre- Judeus granjearam entre os povos cristãos transforma-se em agente da iden-
sentada na Rep1íblica(435, E, seg.): Gregos - cabeça/razão; Citas e Trácios - tidade nacional, através de um mecanismo em tudo similar ao que, pelo cona-
coração/coragem; Egípcios e Ferúcios - ventre/luxúria. Em Aristóteles, que tus ou reacção ao exterior, garante a identidade física e psicológica a rúvel in-
questiona a separação entre a alma e o corpo e define aquela como o conjunto dividual. Como dirá mais tarde D. Luís da Cunha, «o procedimento da
de funções que fazem de um corpo um organismo vivo, o coração surge-nos Inquisição, em lugar de extirpar o Judaísmo o multiplica . E Frei Domingos de

408 409
São Tom ás, deput ado do Santo Ofício, costum ava di zer qu e ass im como na «o esta belecimento da Inquisição veio interro mp er este processo». Como
Calcetaria havia uma casa onde se fazia moeda, no Rossio havia outr a em que observa o mesmo A. J. Saraiva (idem, p . 115) o pró prio Regimento da Inquisi-
se faziam Judeu s» (cit. por A. J. Saraiva, 1985, p. 11). Não é, por isso, totalmen - ção é uma das vias indirecta s para introduzir em Portugal a exigência da «lim-
te improcedente a opinião de Poliakov, quando escreve que «poucos homens peza de sangu e» há muito aplicada em Espanha , porquant o «dispõe no seu
na história das ideias contribuíram tanto como Espino sa para legitimar o anti- livro m que o filho ou neto de condenado pelo Santo Oficio não possa ser juiz,
-semitismo» (cit. in G . Brykman, 1972, p . 64), acusação que outros pensadore s meirinho , alcaide , notário , escrivão, procurador, feitor, almoxarife, secretário,
judeus contemporâneos , tais como Levinas, têm reiterado . Porém, do ponto chanceler , tesoureiro , médico, boticário, sangrador, contador de rendas reais,
de vista em que nos situamos aqui, o mats importante é sublinhar como Es- nem ter qualquer oficio público, nem usar qualquer insígnia de qualquer dig-
pinosa acrescenta à pressã·o exterior um elemento simbólico, a circuncisão, que nidade civil ou eclesiástica ».
é como que a expressão e, ao mesmo:tempo, a cor:idi~o da identidade judaica . Importa , finalmente, notar que a tese que dá a Inquisição e outros instru-
Quanto ao problema de os Hebreus virem â refazer o seu Estado, trata -· mentos políticos de pressão como «fábricas de judeu s», sem as quais eles ca-
-se de matéria sobre a qual muito se especulava ao tempo da elab.or;lção· do
' minhariam para a integração , levada a formu lações extremas como é a de
ITP. Oldenburg interroga explicitamente Espinosa a esse respeito (catta XXXIII) ,- Espinosa e a de tantos historiadores ainda hoje, tem sido alvo de contestação
fazendo-se eco de escritos que circulam entre os Judeus (por exemplo, a Espe- por parte de muitos estudiosos para quem o problema se reveste de outra
rançade Israel,de Menasseh ben Israel) e de doutrinas milenaristas que davam complexidade , quer doutrinária, quer até mesmo histórica. (Vide a opinião de
para breve a conversão universal e a reconciliação dos homens. Desconhece- Gebhardt sobre o marranismo, transcrita nos Cahiers Spinoza, n.0 3, pp . 135-
-se qualquer carta em que o autor tenha respondido à pergunta de Olden- -141, ou as teses de I. S. Révah, op. cit.)
burg . O que se pode assegurar, pela leitura deste capítulo do ITP, é que a
hipótese não lhe repugna mas é entendida à margem de quaisquer considera-
ções apocalípticas e como mera possibilidade histórica. Ou seja, há uma nação CAPÍTULO IV
fortemente integrada , pode haver um Estado se e quando as circunstâncias o
permitirem. 1 O prob lema da aceitação das leis ou da legitimação destas é, por assim
dizer, intrínseco a toda a filosofia política. Mas o que Espinosa aqui introduz a
13
O contraste que o autor estabelece entre a assimilação dos ex-Judeus esse respeito é relativamente novo, pois talvez só em Maquiavel possamos
em Espanha e a sua segregação em Portugal só pode imputar-se a deficiente encontrar semelhante distinção entre a verdadeira natureza e finalidade das
informação sobre a complexidade do processo anti-semita num e noutro país . leis, ou seja, a segurança colectiva, percebida apenas por alguns, e as justifica-
Todavia, apesar dessa falta de precisão de todo em todo marginal à tese que ções a que terá de recorrer a «arte» do legislador para persuadir a maioria .
está a ser demonstrada e que certeiramente imputa a continuação do judaís - É, além disso, notório o contexto original em que Espinosa aborda a questão,
mo às condições sociais que lhe são criadas (Sartre virá depois a dizer que mesmo relativamente a Maquiavel. Este, como se sabe, limita-se a observar
«o judeu está em situação de judeu porque vive no seio de uma comunidade que todos os grandes chefes têm de recorrer à religião para serem aceites
que o tem como judeu »), deve referir-se que Espinosa define aqui as duas ati- (Discorsi, liv. 1, cap. XI). Inclusivamente Rousseau , que cita e comenta esta pas-
tudes possíveis face à nação hebraica. O equívoco parece estar em atribuir sagem (Du contratsocial,liv. II, cap. vu) no quadro já da soberania popular, não
o quase total desaparecimento da questão judaica na Espanha de meados do vai além de uma justificação da instrumentalização do sagrado como forma
século XVI a uma suposta ausência de legislação sobre «limpeza de sangue» . de impor «o jugo da felicidade pública ». O carisma de Moisés ou de Maomé,
Na realidade, esta existe ali desde 1449, data do édito de Toledo, sendo depois acrescenta Rousseau , não foi, por conseguinte , uma «impostura», mas uma
secundada, em 1478, pelo tribunal da Inquisição de Castela, que vigiava a au- intuição extraordinária que consistiu em pôr na boca de Deus as decisões que
tenticidade das conversõe s de judeus ao catolicismo . E, após a expulsão de ,,
., eles próprios julgaram convenientes para a colectividade e que esta não pode-
todos os que não quisessem converter-se, determinada em 1492 pelos Reis ria perceber . Em Espinosa, pelo contrário, não se trata de ocultar o legislador;
Católicos, o estatuto de inferioridade dos cristãos-novos manteve-se. As ex- trata-se de juntar à finalidade essencial da lei diversos fins que a tomem ope-
cepções - e houve muitas - ficaram-se a dever a actividades comerciais bem rativa por serem compreendidos por todos. A influência de Maquiavel, aqui,
sucedidas por parte dos Judeus que conseguiram assim ingressar na nobreza, termina na verificação de que o comum dos homens não capta a racionalida-
passando então a gozar de todos os privilégios e abandonando até o comércio. de da lei. A solução, porém , não passa por metamorfosear as leis em vontade
Em Portugal, pelo contrário, a política de D. Manuel I para com os Judeus dos deuses , passa por evidenciar outro tipo de bens que delas decorrem e que
que aqui se fixaram, exilados de Espanha, é toda ela apontada para uma assi- sejam mobilizadores dos indivíduos em geral.
milação que passaria pela igualdade de oportunidades sociais, não obstante
ser de extrema severidade em matéria religiosa, forçando-os à conversão. 2À concepção tradicional da justiça entendida como verdadeira virtu-
Segundo A. J. Saraiva (1985, p. 38), esta política teve como resultado o estar a de interior e não como simples execução das normas, Espinosa junta o
comunidade hebraica portuguesa em vias de total integração quando, em 1536, caráct er de «autonomia » individual que será característico do pensamento

410 411
7 A mesm a figura do Cristo-filósofo no sen tido espin osano, a qu e já se
mod ern o: em rigor , o justo só obede ce a si pr óprio , porquanto conhec e a
verdadeira natureza da s leis e as vant agens que daí colhe, decidindo-se a alud ia no cap . 1, é aqui explicitada no contexto da lei divina e dos mandam en-
cumpri-las em conformidade com o seu próprio conhecimento. tos uni versais da natur eza humana , em contra ste com os ensinamentos de
Moisés e dos profetas, que estavam adaptados às respectivas situações e men-
3
A definição do bem supremo (summum bonum) aparece em quase todas talidades. Mais do que um filósofo, Cristo é, pois, a própria filosofia, quer di-
as obras de Espinosa e sempre conotado com o conhecimento de Deus sive zer, o conjunto de verdades que se podem deduzir dos princípios universais
Natura. Nesta passagem, o conceito aparece a distinguir dois campos irredutí - do conhecimento humano . Como tal, será sempre impossível restringir este
veis, o da lei divina e o das leis humanas,. os quais estavam ainda misturados Cristo espinosano a uma determinada religião posit iva, porquanto as reli -
noutros livros, por exemplo nó Tratadoda Reforma dó Entendimento(§§ 9-14). giões se situam, para Espinosa, no plano da fé e da obediência, enquanto o
Decididamente, a política vai sendo, :ao longo dà _obm do autor, cada vez mais Cristo aparece a encarnar a ciência .
apartada da «comunidade de sábios ».idealizada a princípio , à medidq qu~ " 8 Conforme observa A. Droetto (Boscherini-Droetto, 1984, p . 121), em
adquire contornos de realismo. ·
nota a esta mesma passagem, a tradução proposta por Espinosa difere pro-
4
Aparentemente, este parágrafo assinalaria um adiamento da questão fundamente da da Vulgata. Assim, onde aquele escreveJons vitaeintellectus sui
em análise e a consequente passagem a outro assunto . Na realidade, o que se domini, et supplicium st11ltorumest st11ltitia,lê-se na versão dita de São Jeróni -
passa é um pouco diferente. Por tradição, é da essência do homem definida mo: Jons vitae eruditiopossidentis,doctrinastultorumJat11itas. Além de preferir o
pela racionalidade que se tentam deduzir os valores a que deve obedecer o termo intellectus a uma incaracterística erudição, Espinosa apresenta a sabedo-
seu comportamento. Espinosa, por um lado , entende essa racionalidade como ria como uma virtude cujo prémio se esgota nela mesma e cuja ausência é, já
expressão do entendimento infinito e, por isso, conclui que as regras de com- de si, um castigo .
portamento por ela impostas são os verdadeiros mandamentos divinos. Por
9 A edição do texto do Novo Testamento em siríaco, acompanhado da
outro lado, ao mesmo tempo que faz perguntas cuja resposta só poderá
encontrar-se na Ética (v parte), continua a desenvolver o tema da «lei divina respectiva tradução latina e da versão em grego dos Setenta,foi publicada, em
em geral », chegando a conclusões da maior importância a este mesmo respei- 1569, por E. Tremellius , no mesmo ano em que se inicia a publicação da Poli-
to. Assim, esta lei divina, por ser universal, não entra em consideração com as glota de Anvers . Já em 1555 surgira uma outra edição do texto siríaco, da
circunstâncias concretas em que se fundam e mantêm as sociedades humanas . responsabilidade de J. A. Widmanstad, a qual será depois incluída nas poliglo-
Daí que os relatos históricos e as cerimónias, elementos co-naturais do políti- tas de Paris (1629-1645) e Londres (1654-1657). A preferência de Espinosa pela
co, lhe sejam indiferentes . Daí também que a razão humana não possa conce- versão siríaca, sempre que se trata do Novo Testamento, não se deve apenas
ao facto de não dominar suficientemente o grego . Como confessa numa nota
ber Deus como um legislador. Daí, em suma, a tese fundamental do TTP, que
ao cap . XJ (p. 267), o autor suspeita até que não está perante uma tradução,
estabelece uma fractura entre ciência e obediência. Para a primeira, a história
dado que o siríaco era a língua materna dos apóstolos.
ou os ritos são dispensáveis; para a segunda, como já reconhecia Maquiavel,
revestem-se da maior importância. 10 A expressão usada pelo autor, se fosse colocada em contexto não-espi-

5 Uma vez mais, o especulativo surge aqui como sinónimo de teórico e


nosano, exigiria uma leitura que aqui se torna impossível. Mais atrás, ficara
dito que «Deus age e dirige todas as coisas unicamente pela necessidade da
desinteressado, para marcar a diferença entre o bem supremo e os bens avul- sua natureza e perfeição » e que «os seus decretos e as suas volições são ver -
sos : ao contrário do que acontece com aquele , que tem por objecto algo de dades eternas ». Afastou-se, portanto, a hipótese de um Deus-legislador cuja
1,
«eterno e imperecível », estes geram sempre «inveja, temor, ódio, numa pala- atitude dependesse das acções dos homens castigando ou premiando confor-
vra, paixão », na medida em que têm por objecto coisas perecíveis, conforme me os casos. Depois , procurou -se extrair isto mesmo da Escritura. A concluir,
referia o TRE (§ 9). afirma-se agora que o mal arrasta o mal e o bem atrai o bem, não como pe-
nalização ou prémio, mas segundo as leis da natureza : os vícios implicados na
6 A identificação entre o entendimento e a vontade, tanto em Deus como ignorância são castigo da ignorância, as virtudes implícitas na sabedoria são o
no homem, são uma constante no pensamento de Espinosa . Até porque (Éti- prémio da me~ma sabedoria. Também aqui há imanência, como se pode ver
'(~~ ca, 11,prop . 48, esc.) «não há no espírito nenhuma faculdade absoluta de com- até pela alusão às sementes, metáfora privilegiada da tradição expressionista.
.A'~i preender, desejar, amar, etc. Donde se segue que estas faculdades e outras G. Deleuze, a este respeito, escreve o seguinte: «O aparelho metafórico da
semelhantes, ou são absolutamente fictícias, ou são apenas entidades metafísi- expressão é o espelho e o gérmen. A expressão como ratio essendireflecte-se
cas, quer dizer , universais que nós formamos habitualmente a partir das coi- no espelho como ratio cognoscendie reproduz-se no gérmen como ratiofiendi.
sas particulares .» Pretender , como Descartes, que as próprias verdades meta - Mas note-se como o espelho parece absorver não só o ser que nele se reflecte,
físicas estão fundadas na decisão da vontade de Deus é, portanto, algo que mas também o que contempla a imagem. O gérmen ou o ramo parece absor-
não faz qualquer sentido para Espinosa . ver tanto a árvore d e onde ele provém como aquela que dele provém.»

412 413
CAPÍTULO V a genealogia experiencial ou passional dos Estados por ele mesmo verificada.
Daí que «a animosidade contra os cristãos» da parte dos fariseus tenha por
1 O inatismo a que se refere esta passagem não deve confundir-se com o
efeito a conservação pelos séculos fora da maior parte da legislação de um
de Platão ou Descartes, uma vez que a mente humana não representa para Estado há muito desaparec ido.
Espinosa qualquer entidade ou faculdade autónoma das ideias. Se a lei divina
se pode dizer como que estando aí inscrita, é porque a actividade racional do 5 Notar-se-á que as finalidades do agrupamento social são alternada-
homem é a própria expressão dessa lei. mente evidenciadas por Espinosa conforme os contextos em que o tema é abor-
il.. dado: umas vezes, é a segurança individual e colectiva; outras, a maior como-
!f 2 Tanto no cap. ·m como aqui, Espinosá utiliza o adjectivo temporaneus ·para didade que propicia, ou seja, a economia de esforços na aquisição de bens;
designar o carácter contingente ou transitório da el~ição d9s _Hebreus ou das outras, como acontecerá no cap. xx, a garantia da liberdade. Quanto à «perfei-
cerimónias por estes consideradas essenciais ·. Dunin:Borkowski (cit , in. ção da natureza humana» e à «beatitude», elas são, evidentemente, facilitadas
Boscherini-Droetto, p. 138) faz derivar este adjectiv.o da língua espanhola e· pela existência de uma sociedade organizada, mas não constituem uma sua
não do baixo-latim, vendo aí um vestígio da língua em ·qu_e teria. sido ~ita a _. finalidade.
famosa Apologia. É, porém, muito difícil assegurar a este respeito algo de
inquestionável, dado que o mesmo adjectivo, com mais ou menos uso, pas- 6 Não obedecendo embora a uma demonstração minuciosa, como acon-
sou para várias das línguas latinas, em particular o italiano temporaneoe o tece no cap. xv1,a potestas,sob a forma explícita de imperium,é aqui declarada
português «temporão». elemento imprescindível à organização social, pondo, por conseguinte, em
causa as interpretações do espinosismo que o apresentam como patrocinador
3
Coerentemente com a distinção das leis em função da finalidade para da abolição do Estado.
que estão apontadas, Espinosa reduz todo o articulado ritual e moral do Pen-
tateucoa um código do povo judeu. A partir daqui, sublinha a distinção já 7 A leitura do Príncipe está patente ao longo de toda esta passagem e .
apontada entre Moisés e os profetas, por um lado, e Moisés e Cristo, por outro. reflecte-se na definição do perfil individual do soberano. É precisamente me-
Diferentemente daqueles, Moisés dá ordens e não conselhos morais; diferen- diante essa leitura que a arte política se vai converter numa transformação da
temente de Cristo, procura fundar e manter um Estado e não ensinar a lei paixão do medo em paixão da esperança.
universal onde reside a felicidade de cada um.
,,
't t-~~
8 Uma vez mais, os vestígios de Maquiavel são nítidos nesta análise que
' 4 A conclusão a que chega Espinosa, apesar de lógica se considerarmos poderíamos dizer dos «principados», em particular no que se refere às difi-
que todo o cerimonial religioso constituía um código que se tomou caduco culdades que tem um chefe para se impor numa sociedade que viveu muito
uma vez desaparecido o Estado, poderá parecer paradoxal quando confronta- tempo como república.
da com a realidade histórica. É, de facto, na diáspora que os ritos e preceitos
mosaicos adquirem um valor levado por vezes até ao paroxismo, o que dá a 9 Sobre o conceito renascentista de «virtude», cf. o que ficou dito na

ideia de que não estão dependentes da existência de instituições políticas. Há, nota 6 ao cap. 111.
pois, que ter aqui em conta dois planos distintos: um é o plano estritamente
jurídico, ou seja, o quadro de obrigações e penas que constitui a lei no Estado 10 A experiência a que se recorre na Escritura são, evidentemente, as his-

hebreu e que tende a desaparecer a partir do momento em que o povo fica tórias e os dados susceptíveis de «falarem» à imaginação do vulgo. Como se
sujeito a autoridades estrangeiras; outro é o plano simbólico subjacente a esse poderá verificar, sendo embora a matéria discutida de natureza teológica, a
quadro jurídico, no qual as elites irão fundamentar o discurso «nacionalista» argumentação pela qual ela se separa da racionalidade científica é igualmente
_I
com que procuram evitar a desagregação. Enquanto durou o Estado, este úl- aplicável à questão política.
·- timo funcionou como imaginário legitimador da lei, fundindo a religião e o
direito nesse todo coerente que foi a teocracia. Uma vez perdida a indepen- 11 A «salvação dos ignorantes», numa doutrina como a de Espinosa, em
dência, já não há, como Espinosa observa, razão para o cumprimento dos ri- que o homem só se liberta e atinge a beatitude através do conhecimento ade-
tos: as penalizações que as autoridades religiosas aplicam sobre os membros quado, surge como algo de paradoxal, dando azo a toda uma diversidade de
da comunidade, ainda em pleno século xvn holandês, tomam-se, efectivamen- interpretações, a mais exaustiva das quais é, até hoje, a de A. Matheron (1971).
te, suspeitas de usurpação do direito aos olhos das autoridades e de muitos Sem pretendermos solucionar um problema que é, manifestamente, intrín-
pensadores da altura. A verdade, porém, é que as «gentes da nação», mercê seco à filosofia de Espinosa e ao qual fizemos demorada alusão nas páginas de
desse potencial simbólico que as faz viver segregadas dos outros e, nessa introdução, é de notar que a obediência incutida pelas narrativas bíblicas leva
medida, sobreviver integradas, regem-se por normas que pouco têm a ver o vulgo à prática da justiça e da caridade, ainda que não permita a realização
com essa racionalidade invocada por Espinosa e que são, aliás, coerentes com cabal que o homem só encontra mediante o conhecimento adequado. Os seus

414 415
efeitos, po r conseg uint e, são já pos itivos, p elo qu e é necessá rio ultrapa ssa r- p ers pectiva o conh ecime nto das coisas é já conh ecimento da essência de Deus
mos o binómio salvação-cond enação, liberd ade-escra vid ão, e entendermo s esta «m odi ficada» e não reco nh eciment o indir ecto atr avés da p erfeição das sua s
problem ática num a escala progr essiva de «emenda s» que vai da total sujeição obr as. A tese da ima nência e a consequent e recus a de um Cri ador transcen-
às «paix ões tristes» até ao ideal da compl eta liberdad e do ent endimento. Como dente é o único fio condut o r da argum entaç ão levada a cabo no ITP .
vimos, toda a vida do homem, enquanto modo finito , decorre aqu ém de sse
4 A distinção entre opus contra naturam e opus supra naturam aparece em
ideal , havendo sempre um resíduo maior ou menor de pas sionalidade. É, no
Santo Alberto Magno e em São Tomás . Espinosa refere-a ainda nos Pensamen-
entanto, impossível colocar no mesmo pé as paixões que afastam o homem
tos Metafísicos (u parte, cap . xtt), para concluir entã o que, mesmo havendo mi-
da prátic a daquilo que a razão aconselha e_aquelas que daí o aproximam, como .
lagres , a ordem da natureza não se altera: «a maior parte de entre os mais
seja o conhecimento inadequado de Deus que foni.ecém."as narrativas bíblicas .
douto s teólogo s concorda que Deus não faz nada contra a natureza, ou seja,
12 tal como eu explico, que Deus para agir possui muitas leis que não comunicou
O livro de R. Joseph ben Shem .fora publicado em 1556 e resumia-'Se-à -
ao ent endimento humano e que, se estas lhe tivessem sido comunicadas, pa-
um breve escrito de filosofia religiosa inspirada em Aristóteles (cf . Duiün-
receriam tão naturais como as outra s». Das contradições que estavam implíci-
-Borkowski, cit. in Boscherini-Droetto , 1984, p . 149) . ·
tas nesta concepção, fala o presente capítulo do Tratado.

5 O círculo argumentativo fecha-se aqui em ironia, pondo as últimas conse-


CAPITULO VI quências de uma premissa em contradição com ela mesma: invocado em abo-
1
no da potência de Deus, o milagre vem a revelar-se um pressuposto de
Instado, anos mais tarde, por H. Oldenburg a atenuar as passagens mais
ateísmo ...
«chocantes » do TTP, designadamen te as «ambiguidades » sobre Deus e a Na-
tureza , o valor dos milagres e a pessoa de Cristo, Espinosa, a quem os rumo- 6 À semelhança do que acontece com o milagre, a própria noção de pro-
res que circulam a seu respeito impedirão de publicar a Ética,mantém em plena vidência divina perde sen tido num contexto imanentista . Em contrapartida,
borrasca a sua ideia inicial de que Deus é causa imanente e não transitiva e de ela apresenta -se sempre e necessariamente problemática no âmbito da teolo-
que os milagres equivalem a ignorância e superstição (cf. as cartas LXVIll, LXXJ, gia, dada a impossibilidade de a distinguir e ao mesmo tempo conciliar racio-
LXXIll, LXXIV, LXXV, LXXVII, LXXVIII e LXXIX, toda s elas datadas de Novembro de nalmente com a ordem fixa da natureza . Espinosa, como se pode ler um pouco
1675 a Fevereiro de 1676). Para se medir todo o alcance polémico deste capí- mais à frente, identifica uma e outra coisa .
tulo, poder-se-á compará-lo com o que sobre o mesmo assunto escreve Hob -
bes no cap. XXXVJJdo Leviathan,igualmente intitulado «Dos milagres ». Tudo 7 Cf. I Epístola aos Coríntios, cap . IX, 20.
ou quase tudo o que o autor inglês escreve a este propósito é ainda repetição
do que o vulgo e os teólogos imaginam sobre os «prodígios » que Deus faz 8 Todo este capítulo é atravessado por uma constante oscilação do ponto
para secundar as suas decisões . A única preocupação de Hobbes, aliás, é de de vista metodológico que o autor virá no fim a reconhecer. De facto, e
natureza política e consiste em garantir que seja o «lugar-tenente de Deus » ou contrariamente à recomendação que impediria que se extraísse da Escritura
soberano quem define os milagres que devem ser publicamente reconhecidos algo que não resulte com clareza dos seus próprios enunciados, é a filosofia
pela comunidade. que emerge aqui a protagonizar a demonstração, pedindo uma vez por outra
o abono escriturístico . Espinosa justifica-se alegando que a questão do milagre
~t..1- ...~
2 Alguns dos elementos da metafísica espino sana referidos nesta passa- é estritamente filosófica e deve, por isso, ser res olvida com base na «luz na-
gem já por mais de uma vez se nos depararam, em particular no cap. 1v.O seu tural ». O que é verdade , mas na condição, conforme argumenta S. z.ac. (1965,
tratamento exaustivo será, como se sabe, o objecto da Ética. É, todavia, evi- p . 207), «de nos colocarmos do ponto de vista da sua própria filosofia e da sua
dente que, à luz da sustentada identificação da potência da natureza com as própria concepção do milagre . No entanto, para os seus leitores cristãos, o
~----' milagre é uma questão teológica, ao mesmo nível que a questão da profecia
potência e essência divinas, deixa de fazer qualquer sentido a questão dos
milagres , que pressupõe sempre a assimetria entre duas potências numerica - [. ..]. O que Espinosa devia demonstrar, dado o objectivo que persegue no Tra-
mente distintas . O que há são factos explicados e factos cuja explicação é igno- tado Teológico-Político, era que, como ele mesmo diz no final do cap. VI, citando
rada, todos eles expressão da mesma potência infinita . O equívoco da supers- Flávio Josefo, a crença nos milagres não é, segundo a Escritura, obrigatória,
tição consiste, portanto, em atribuir aquilo que não consegue explicar a uma podendo cada um pensar sobre eles aquilo que quiser. Todavia, no interior do
potência diferente daquela que produz os factos que ela julga explicar . capítulo , o filósofo continua vigilante e prova que a crença nos milagresé uma
imbecilidade .»
3 Apesar de formalmente repetir um enunciado caro à tradição filosófico-
9 A oscilação aludida na nota anterior é flagrante nesta passagem. Repare-
-religiosa, segundo o qual «todas as criaturas cantam as glória s do Criador », é
óbvio que Espinosa está a dizer algo totalm ente difer ente, p orquanto na sua -se que ela parte da afirmação de que tudo o que na realidade acontece é natural,

416
417
~-
12 A mesma «an álise das mentalidades» que tinha sido pr escrita pa ra se
excluindo a hipóte se do milagre, e evolui depoi s para uma verificação filoló-
gica d a qual extrai apena s a conclusão de que há circunstâncias naturais omi- chega r ao verdad eiro sentid o das profecias é agora invocada a respeito dos
tidas na descriç ão dos milagres com o fim de os tornar mai s aparatosos aos milagre s, de modo a separ ar os factos ocorridos da interpretaç ão que implici-
olhos do vulgo. É, no entanto , possível concordar -se com esta segunda parte tament e os acompanha nas narrativas da Escritura. Não se discute, como é
e rejeit ar-se a tese inicial , já que o problema, em definitivo, é saber se houve óbvio , até que ponto este facto isolado e isento de interpretação constitui, ele
milagres e não se estes foram maiores ou menores . Toda a interpretação bí- próprio , um tópico de uma mentalidade específica, dada a manifesta inopor-
blica feita hoje em dia no campo teológico assume que as narrativas tenham tunidade de uma tal probl emática no âmbito do racionalismo pré -kantiano .
sido adaptadas à mentalidade dos seus originais destinatários, sem que por
isso deixe de admitir a possibilidade de uma 'intervenção- divina extraordiná- 13 Dunin -Borkowski (cit. in Boscherini-Droetto, 1984, p . 181) pretende que

ria . Mas sublinhe-se que Espinosa, apesar _do ponto d~ partiqa ,_não resvala o adjectivo reales, utilizado por Espinosa e inexistente no latim clássico, seria
para uma indagação das causas naturais dos _pretensos milagres, como farií importação do castelhano . O termo, todavia, é frequente no latim da escolás-
depois a tradição libertina, mantendo-se nos limites até onde a Bíblia permite · . tica, assumindo importância capital no problema da distinção entre o esse e a
evoluir nesse domírúo . · essentia.O que não quer dizer que o seu sigriificado seja o mesmo num e noutro
caso. Com efeito, enquanto Espinosa o emprega como sinónimo de algo que
10 ocorreu de facto e não foi apenas imaginado, na escolástica ele apresenta-se
O conceito de «história política » sugerido neste contexto, por oposição
a «história sagrada », faz lembrar aquilo a que hoje se chamaria «ciência polí- com outra amplitude, designando tudo o que se opõe ao nada e podendo, por
tica». Um bom exemplo deste tipo de história crítica podia o autor colhê-lo na conseguinte cobrir a «realidade » de uma essência que já é mas que ainda não
obra de Maquiavel, que ele tanto admira e com a qual se inaugura a exegese existe (cf. Gredt, 1961, vol. u, p . 125).
do discurso e da imagem do político. As narrativas bíblicas são vistas no TTP
como enunciados pragmáticos, puros efeitos de superfície condicionados pela
relação autor-destinatários. Em contrapartida, o texto de Espinosa integra-se CAPÍTULO VII
na perspectiva da história moderna, que procura desvendar o que o discurso
do político ou do profeta oculta. 1 No essencial, retomam-se nesta primeira parte do capítulo várias após-
trofes do prefácio. Mesmo a acusação de sacrilégio lançada contra aqueles que
11
À oposição entre o «historiador sagrado » e os «historiadores políticos » teriam adulterado trechos da Escritura só pode entender-se como retórica e
estabelecida mais atrás, sucede neste passo uma oposição de tipo diferente entre ironia, uma vez que, se a interpretássemos à letra, seria incoerente com a ideia
«cronistas » (chronographi)e «historiadores ». A oscilação terminológica fica, ob- que Espinosa faz dos livros sagrados . É de notar que uma tal acusação foi fre-
viamente, a dever -se à ambiguidade do conceito de história no quadro disci- quente na literatura anti-semita anterior ao Concilio de Trento e daí transitou
plinar seiscentista . De qualquer modo, convirá notar: a) o «historiador polí- para os panfletos deístas e libertinos, ampliada agora sob a forma de conde-
tico » e o «cronista » relatam factos que tiveram os homens por protagonistas, nação de todas as religiões positivas, às quais se imputa o rótulo de invenções
ao passo que os «historiadores » aqui mencionados relatam os factos da natu - e imposturas. Um bom exemplo deste tratamento do tema pode encontrar-se
reza; b) esta distinção das matérias relatadas não é decisiva para a apreciação no Exemplar humanae vitae, atribuído a Uriel da Costa . Em contrapartida, a
que Espinosa faz de cada uma das referidas categorias de estudiosos, por- ortodoxia romana defenderá que os livros incluídos no Cânon tridentino
quanto a única que aparece demarcada da narração escriturística é a dos «his- chegaram até nós na sua integridade material e formal, isto é, doutrinal e
toriadores políticos ». Daí o pensarmos que, neste último caso, Espinosa teria literal, ainda que esta última seja relativa, admitindo a ocorrência de modifi-
em mente alguns exemplos , como o de Maquiavel , em que os factos descritos cações que não atingiram, todavia, o substancial dos livros (cf. Hõpfl, 1963,
são sujeitos a uma interpretação, tal como ele próprio faz em relação à Escri-
pp. 219-220).
tura . Quanto aos «historiadores da natureza » ou «filósofos que escreveram
sobre a história da natureza », a opinião que Espinosa faz deles, com excepção 2 Pela sua radicalidade, a função do método, tal como ele surge em Espi-
de Demócrito, Epicuro e Lucrécio, pode ver-se na correspondência com Hugo
nosa, não deve confundir-se com aquilo que a maioria das Igrejas acabou, muito
Boxel, o qual os invoca para garantir que existem fantasmas: «a autoridade de
depois , por assumir . A diferença está em que o ITP, como já se frisava no
Platão, Aristóteles, Sócrates, etc., não tem para mim grande peso[ ...]. Nem é
prefácio, recusa o princípio da inspiração divina como ponto prévio a toda a
para admirar se homens que acreditaram nas qualidades ocultas, espécies in-
crítica externa ou interna do texto, desvinculando o método de qualquer com-
tencionais, formas substanciais e mil outras fantasias , imaginaram fantasmas e
espíritos e deram fé a velhinhas para enfraquecer a autoridade de Demócrito. promisso dogmático.
Invejavam tanto a glória dele que até queimaram todos os livros que tinha
3 Sobre a paridade da interpretação da Escritura e da interpretação da
publicado. Se fôssemos a acreditar neles, por que razão havíamos de negar os
milagres da Virgem Maria e de todos os santos, que são contados por tantos natureza , veja-se o que ficou dito na introdução. De recordar ainda que a ex-
filósofos , teólogos e historiadores dos mai s ilustres[ .. .]?» (carta LVI). pres são interpretatio naturae,vinha contraposta por Bacon, no N(Jl)umOrganon

418 419
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(cap. xxvr), às n11tecipntio11


es nnturne, exactamente por exigir uma consideração ram a Gramática da Escritura, mas não houve nen hum que escrevesse a Gra -
atenta dos vários aspectos da natureza e recusar conclusões «temerárias e mática da lingua hebraica ». Daí, precisamente, o projecto a que Espinosa, so-
prematuras ». licitado por amigos , meteu ombros, deixando-o embora incompleto e sem
chegar à sintaxe. Porém, a maneira como estão elaborados os trinta e três ca-
4 pítulos publicados nas Opera Posthumaconstitui, além de um legado revolu-
A autoridade da Escritura não possui credenciais fora do conjunto dos
seus enunciados. Pelo facto de eles estarem em contradição com aquilo que a cionário do ponto de vista filológico, uma reflexão absolutamente original so-
razão determina, não se pode concluir que o seu sentido deva ser diferente bre a filosofia da linguagem e porventura um elemento dos mais importantes
daquele que aparentam. E da mesma forma que é rejeitada a opinião _dos para a compreensão do sistema espinosano (cf. Jõel Askénazi e Jocelyne
teólogos, segundo a qual as contradições bíblicas são de-imputar aos limites Askénazi-Gerson, introdução a Spinoza, Abrégéde GrammaireHébraique,Paris,
da razão natural, incapaz de compreeI)der os mistérios. sobreilfalturais,tem igual- Vrin, 1968, pp. 13-31).
mente de se afastar a opinião de Maimónides e ue outros racionalistas, .qu~
tentam pelo método alegórico neutralizar · todas as contradições, fazendo -o 8 A questão aqui levantada constitui o tema dos quatro primeiros capítu -
texto dizer o que ele não diz. · los do Compêndioelaborado por Espinosa . Aí (cap. 1)se explica como a letra
propriamente .dita é diferente da vogal,na medida em que a primeira designa
5 um movimento da boca variável em função dos órgãos emissores do som
A interpretação aqui feita dos ensinamentos de Moisés, por um lado, e
de Jeremias e Cristo, por outro, inscreve-se coerentemente na análise anterior que se ouve, enquanto a segunda é um sinal que «indica um som fixo e deter-
(caps. 1 a m), que toma a revelação como conhecimento do primeiro género, minado». Esta diferença surge ainda mais vincada pelo facto de, até muito
condicionado portanto pelas circunstâncias que actuam sobre a imaginação : tarde, só as consoantes serem transcritas, ao passo que as vogais eram suben-
conforme a situação política, assim os preceitos morais recomendados na Es- tendidas, razão pela qual os Hebreus, acrescenta Espinosa, «dizem que as
critura, longe, portanto, da Ética universal que se impõe ao conhecimento do vogais são a alma das letras e que estas sem aquelas são corpos sem almas».
terceiro género . A questão que se levanta, uma vez mais, é a dos ensinamen- A partir de certa data - discutível, como veremos - as vogais passaram a vir
tos de Cristo, que o ITP frequentemente refere como autêntica tradução des- indicadas por pontos acrescentados às consoantes (cap . w), se bem que nos li-
sa ética e que, no entanto, são tidos nesta passagem ao nível do simples co- vros destinados ao culto público elas continuassem ausentes (cf. Hõpfl, 1963,
nhecimento profético. Poderá talvez dizer-se que a «essência do cristianismo» vol. 1,p. 232). Quanto ao outro tipo de sinais aqui mencionados, os acentos, a
reside na caridade e na justiça e que esta, numa boa república, é incompatível sua função não corresponde à que lhes é destinada no comum das línguas.
com uma tolerância para com o crime da qual só adviriam injustiças. Porém, Acentos, em hebraico, são todos os sinais, com excepção das vogais, que acom-
algumas linhas atrás, Espinosa atribui as palavras de Cristo, quando reco- panham as consoantes, servindo ora para indicar a tónica em cada palavra,
menda o perdão, ao facto de ele viver num Estado corrupto, cuja queda era ora para pontuar a frase, ora para exprimir notas musicais que permitissem
iminente . Ou seja, considera-o fruto das circunstâncias, não obstante ele se apre- entoar o texto (cap . 1v).Quer as vogais quer os acentos foram introduzidos
sentar como ensinamento eterno e desconhecer ou recalcar o seu lado condi- posteriormente na Bíblia, veiculando, por conseguinte, uma interpretação da
cional. Com que bases se presumirá então se um determinado Estado é ou mesma. No que toca aos acentos, Espinosa diz, no cap. IV do Compêndio,que
não corrupto, que o mesmo é dizer, quando será necessário «dar a outra face»? eles «foram introduzidos a partir do momento em que os fariseus instituíram
o hábito de ler a Bíblia, todos os sábados, em reunião pública, para que essa
6 leitura não fosse demasiado apressada (conforme geralmente acontece com
Anos mais tarde, a terminar a resposta a uma carta mais ou menos in-
sultuosa de um antigo amigo entretanto convertido ao cristianismo, Albert as orações que se repetem muitas vezes)» . Já quanto às vogais, a questão foi
Burgh, Espinosa defenderá com redobrada veemência o método de interpre- muito mais controversa na história dos estudos bíblicos. A tese que Espinosa
tação da Escritura, contra a alegada autoridade dos papas, instando o seu cor- sustenta e que acabou por prevalecer veio pela primeira vez na gramática de
respondente a «examinar a história da Igreja (a respeito da qual sois tão igno- Elias Levita (1525). Segundo este, as vogais terão sido introduzidas só na al-
rante) para ver quantos erros vêm nos livros pontifícios e por que acaso, tura em que entre os Judeus surgiu uma verdadeira escola de reconstituição
através de que maquinações, o pontífice romano conquistou, seiscentos anos do texto bíblico, ou seja, a partir do século v1e até ao século x, escola a que se
após o nascimento de Cristo, a autoridade sobre a Igreja» (carta LXXVI). chamou de Tiberíades ou dos Masoretas, este último nome derivado do ter-
mo hebraico Masora, equivalente ao latim tradere.
7
Ao contrário do que, à primeira vista, se poderia concluir desta passa-
gem, são inúmeras as gramáticas do hebraico que se conhecem ao tempo de 9 Antecipando-se ao que a ciência histórica viria a sistematizar, Espinosa

Espinosa, se bem que as primeiras tentativas nesse sentido só tivessem apare- sublinha a necessidade de se terem em conta, por um lado, os limites impos-
cido em finais do século IX da nossa era. O problema é que, conforme o autor tos pelo quadro mental de cada época, por outro, os objectivos que a partir
dirá no seu próprio Compendiumgrammatices linguaehebrene(cap. VII e, mais ou daí se poderão atribuir ao narrador. As virtualidades metodológicas de uma
menos pelas mesmas palavras, cap . xva), «muitos foram aqueles que escreve- tal observação podem avaliar-se, hoje em dia, por trabalhos como o que Lu-

r; 420 421
,,
cien Fevre dedicou a Rabelais (1952). Todavia , mesmo no campo da exegese «religião católica», perten ce ao dir eito individu al, é do domínio interior de cada
bíblica, onde esta questão aparece em torno da chamada «teoria dos género s um, e não tem, por isso, a ver com a ordem pública , nem precisa de um pon-
literários », a tese que Espinosa aqui desenvolve é assumida pela Igreja Cató - t ífice a quem se atribua autoridade superior em matéria de interpretação da
lica de sde 1943, data em que Pio XII acolhe aque la teoria na «Divino afflante Escritura.
Spiritu ». Trata -se, afinal, de aplicar às relações entre a Bíblia e a his tória as
mesmas considerações que Roma já aceitava, desde finais do século passado e
a propósito de Galileu, para as relações entre a Bíblia e a ciência . CAPITULO VIII
10 1 O tema do presente capítulo, tal como dos dois seguintes, é a exegese
Os livros apócrifos a que Espinosa se refere são.aquele$ que a tradição
judaica toma como tal, ou seja, os considerados nã-o-canónícos, abrangenc!o , do Antigo Testamento, não de uma forma programada e exaustiva, mas uni-
portanto, quer os que a Igreja Católica chama .de «apócrifos», quer os _que ela - camente como um ensaio dos princípios hermenêuticos enunciados no cap. Vil
designa por «deuterocanónicos ». Repare-se que entre os Ju9-eus pre _valec.e o e aqui sublinhados como ponto de partida. É de notar que muitos dos argu-
significado que a palavra «apócrifo » tem no étimo grego, quer dizer, «ocul- mentos aduzidos por Espinosa contra a autenticidade dos livros analisados
to », «escondido »: o livro apócrifo é, por isso, todo aquele que, por qualquer provêm de obras anteriores que existiam na sua biblioteca, em particular do
razão, não consta da leitura em público. E a principal dessas razões era, preci- Leviatlian(cap. xxxm) e dos Prae-adamitaede Isaac la Peyrere, esse estranho li-
samente, o não ter sido escrito originariamente em hebraico. Para aqueles que vro publicado em 1655 onde, além de se mostrar que o Pe11tateuco era 'uma
a Igreja Católica considera «apócrifos», isto é, que não foram ·escritos pelo autor justaposição de textos de diversa origem, o autor pretende que teria existido
a quem são atribuídos, Espinosa utiliza, como se verá no capítulo seguinte, a uma outra humanidade anterior a Adão. A própria lista dos livros da Escritu-
designação de «apógrafos» ou «não-autógrafos». ra criticados nestes três capítulos do ITP é quase coinciden te com os mencio-
nados no referido capítulo de Hobbes. O que faz, portanto, a originalidade de
11
A ideia de que a religião consiste num reduzido número de princípios, Espinosa é o enunciado do método e não a descoberta de incongruências no
simples e acessíveis a todos, constitui um dos temas mais polémicos no seio texto bíblico .
do protestantismo holandês. De facto, levada à letra, como faz Espinosa, ela
volta-se contra todas as religiões institucionalizadas. Camphuísen exprime assim 2 Não sendo, corno se poderá verificar, mais do que uma simples conclu-

esta contradição : «O grande anticristo está abertamente em Roma; mas São são na economia do Tratado,a recusa da autenticidade do Pentateucoconstitui
João diz que virá o tempo em que hão-de aparecer muitos anticristos; e, em um ponto nevrálgico em toda a história dos estudos bíblicos. Em 1679, Daniel
boa verdade, pode-se dizer, hoje em dia, que muitos apareceram. Habituámo- Huet dedicará ainda quinze páginas da sua Demonstratioevangelicaad Serenis-
-nos a ver o papado só em Roma, numa única seita, quando, afinal, por toda simum Delphinumà defesa de Moisés, considerando que a opinião de Espniosa
a parte, em numerosas seitas, existe papado » (TeologischeWerken,Amsterdam, destruía «os fundamento s da verdadeira religião, da teologia e de todo o cris-
1699, p . 58, cit. in Kolakowski, 1969, p. 119). Mais radicalmente ainda, a ques- tianismo». A Richard Simon, que conclui também pe la inau tenticidade rnosai-
tão traduzir-se-á na po lémica sobre os limites da tolerância . Porque uma coisa ca do Pentnteuco,na sua Histoire Critiquedu Vieux Testament (1678), de nada
é sustentar que há um mínimo de princípios doutrinários a definir, como pro- lhe valerá pôr urna ressalva no prefácio a dizer que o nome do au tor é pouco
clamam aqueles que pretendem a simples reconciliação no interior do cristia- importante, desde que se esteja certo de que foi um homem inspirado por
nismo, outra bem diferente é recusar qualquer definição doutrinária, mínima Deus, tentando assim demarcar-se das «consequências falsas e perniciosas que
que seja , conforme sustentam os defensores da tolerância irrestrita, entre os Espinosa pretendeu tirar destas alterações e acrescentos para desacreditar a
quais poderemos incluir Espinosa (cf. Kolakowski, idem, pp. 280-288). autoridade dos livros divinos » (cit. in Auvray, 1974, p . 43): o cardeal Bossuet
encarregar-se-á de mandar queimar no prelo a primeira edição da obra. Seria
12
Ao referir-se novamente ao Papado, Espinosa explicita aqui a sua ori- necessário esperar pelo princípio deste século para que a Igreja Católica reabili-
ginal posição sobre a polémica que opõe Hobbes aos defensores da autorida- tasse este oratoriano, que nem sequer ousava duvidar da inspiração divina
de do pontífice romano para interpretar a Escritura. Na cap . xxxvn do Levia- das Escrituras, coisa que para Espinosa, corno sabemos, estava por demonstrar.
than, o filósofo inglês sustentava que, em princípio , aquela autoridade cabia a
cada indivíduo, sendo, no entanto, transferida para o soberano no momento 3 Espinosa atribui, portanto, o Deuteronómioao mesmo autor desconhe-

do contrato . A Igreja, pelo contrário, defende a tese de que, com a vinda do cido dos outros livros do Pentateuco,contrariamente a Hobbes que, no Levia-
Messias, a autoridade que cabia ao pontífice hebreu se transfere para o pontí- than, cap . XXXIII, p . 369, faz o seguinte reparo : «embora Moisés não tenha com-
fice romano. Espinosa, por seu turno, distingue o âmbito político e o âmbito pilado estes livros integralmente e tal como hoje os possuímos, escreveu, no
religioso . A autoridade do pontífice hebreu era necessária na medida em que, entanto, tudo aquilo que aí se diz que ele tinha escrito, como, por exemplo, o
confundindo-se os preceitos religiosos com o direito público , o Estado soço- volume da lei, que está contido, ao que parece, entre os caps. XI e xxvu do
braria sem essa atitude. A religião universal, por ém, aquela a qu e o autor chama Deutero11ó111io».
4
Jonatan ben Uziel é considerado pela tradição judaica como autor de de obras filológicas que se contam entre os cento e sessenta e um volumes da
um Targum, nome por que se designam as versões do texto sagrado feitas sua biblioteca: três gramáticas do hebraico, dois dicionários rabínicas, a Bíblia
em aramaico. Estas versões tomaram-se necessárias com a diáspora e o con- de Buxtorf, juntamente com uma outra Bíblia em hebraico e três traduções:
sequente esquecimento do hebraico por parte da maioria do povo. Como os uma em espanhol e duas em latim, a de Trem ellius e a de Xantes Pagnini . Sem
textos eram lidos em público sempre na língua original, havia quem se encar- contar , obviamente, com o Guiados Perplexos,de Mairnónides, e os Pré-Adamitas,
regasse da sua tradução, acrescentada de comentários explicativos. Trata-se, de Isaac la Peyrere, livros onde o tema também era abordado.
por conseguinte, de versões comentadas ou paráfrases, corno também se lhes
chama (cf. Hõpfl, 19.63, p .. 300) .. 4 O verbo redolere,que Espinosa utiliza, significa «cheirar a». O sentido

5
metafórico em que, por mais de uma vez, aparece no texto constitui um ele-
O quarto mandamento, que prescreve a o_bservância dn sábado, é jus- mento de vivacidade regra geral atenuado pelos tradutores, sem que para tal
tificado no P.xodopor ter sido o dia em que Deus descansou, depois de _ter'. · · se vislumbrem razões válidas.
criado o mundo, e no Deuteronómiopor ter sido o dia em que Deus libertou os
Judeus do cativeiro egípcio. · s As influências cabalísticas na obra de Espinosa, pese embora o distan-
ciamento a que este pretende estar das suas «imposturas», tem sido um dos
temas classicamente polémicos na histó ria do espinosismo, não faltando mes-
CAPÍ11JLO IX mo quem, como Kant, reduza o autor a um «cartesiano da Cabala». Houve,
1
na realidade, um nítido e talvez profundo contacto de Espinosa com o neopla-
(Anotação XI.) As palavras citadas do vers. 32 do cap. xvrudos Reis, u, tonismo cabalístico que ressurge em Amesterdão no século XVII, através de
aparecem na edição Gebhardt apenas em hebraico. múltiplas obras, entre elas a Esperançade Israel,de Manassés, e A Casade Deus
2
e a Porta do Céu, de Alonso de Herrera, além do clássico Livro do Esplendor.
Traduzimos literalmente in castra por «aos acampamentos», e não por Seja, porém, qual for o contributo que daí veio para a formação do sistema, a
«ao campo», como vulgarmente é traduzida esta passagem, uma vez que o investigação mais recente é unânime em concluir pela ruptura de Espinosa com
capítulo mencionado do liv. 1 de Samuel (ou dos Reis, conforme o cânon) des- as teses da emanação às quais se associara equivocadamente o seu imanen-
creve claramente uma situação de guerra, na qual estão os irmãos de David tismo. Isto, apesar de um autor como A. Matheron sustentar a existência
quando o pai diz a este para correr a levar-lhes mantimentos. de homologias entre os caps. v1e VIII d o TratadoPolfticoe a árvore sefirótica
3
(cf. 1969, p. 344).
Apesar do predomínio da ortodoxia, a comunidade hispano-judaica, no
interior da qual decorre a infância e a adolescência de Espinosa, foi, quase desde
o seu início, agitada por fortes dispu tas doutrinais. Muito antes de ir aprender CAPITULO X
o latim com o médico Van den Ende e tomar contacto com as obras de Cí-
cero, Séneca e mesmo Descartes, já o jovem Baruch frequentara a escola rabí- 1 Já no Leviatlum(cap. xxxu1,p. 372) os Salmoseram tidos como urna com-
nica Etz Afm, orientada por Manassés ben Israel e por Moisés Rafael de Agui- pilação feita «depois que os Judeus regressaram da Babilónia», e bem assim os
lar, bem como o colégio Keter Torah, dirigido por Saul Levi Morteira, Provérbios,«obra de um qualquer homem devoto que viveu depois de todos
ambientes em que o pensamento oficial tentava depurar e consolidar a fé de aqueles» que terão pronunciado as frases aí cornpendiadas . A opinião dos
famílias oriundas de uma certa promiscuidade doutrinária com o catolicismo. teólogos, hoje em dia, não difere des ta apreciação, situando o aparecimento
Os desvios, porém, eram frequentes, como se prova por casos como os de de qualquer das colecções entre os séculos IV e 111a. C. (cf. Hõpfl, 1963, vol. n,
Uriel da Costa e Juan de Prado, o que obrigava a literatura ortodoxa a pp . 361 e 384) .
transformar-se numa apologética permanente, quer face ao cristianismo, quer
face aos insubmissos que se erguiam no interior da comunidade. No centro 2
Os doze profetas aqui referidos, a que a tradição cristã chama «profetas
de boa parte das discussões está, naturalmente, a interpretação da Bíblia, tare- menores», são Oseias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miqueias, Nahum, Ababuc,
fa para a qual não raro se recorre a pensadores suspeitos, em particular o já Sofonias, Ageu, 2.acarias e Malaquias. A designação de «menores» é-lhe atri-
citado lbn Ezra, Aben Gabirol e Hasdai Crescas. É para responder às críticas buída, pela primeira vez, por Santo Agostinho, em virtude da exiguidade dos
inspiradas nestes heterodoxos que Manassés ben Israel escreve o seu Conci- seus escritos, os quais aparecem num volume conjunto, tanto entre os Judeus
liador,livro de grande êxito, em que tenta mostrar que as aparentes contradi- como entre os cristãos (cf. Hõpfl, 1963, vol. n, pp. 580-581).
ções da Bíblia não são mais que dificuldades propositadamente inspiradas por
Deus para suscitar uma leitura sempre atenta da Escritura. Não admira, por- 3 Conforme Espinosa observa logo a seguir, a estrutura do livro remete
tanto, que Espinosa esteja, desde a infância, particularmente motivado para muito mais para um plano mitológico do que para o plano histórico. E não é
este género de questões, como se comprova até pela impressionante colecção só pelo diálogo entre Deus e Satanás a que ele faz referência, é também por

424 425
esta sucessão de tempos: uma «idade de oiro», uma «idade de ferro » e nova- talidade da alma, aos anjos e aos espíritos, os saduceus negavam também, con-
mente a «idade de oiro». O próprio tema do sofrimento imposto pelos deuses sequen temente, estes pontos admitidos pelos fariseus e daí o serem com fre-
é comum a todas as literaturas antigas . Todavia, apesar de admitir este para- quência associados a epicuristas. No fundo, portanto, há uma atitude conser-
lelismo e de considerar que, enquanto simples hipótese, não invalida a exis- vadora por parte destes últimos, que recusa qualquer acrescento à lei de
tência histórica da personagem, a teologia católica continua, ainda hoje, a de- Moisés mas que, por isso mesmo, vai permitir uma maior abertura para o
fender que o autor do livro era um judeu e que o seu conteúdo só é pensável exterior. Pelo contrário, os fariseus, na tentativa de manter o nacionalismo a
no interior da doutrina i;>íblica(cf. Hopfl, 1963, vol. .u, pp. _338-343). salvo de interferências, vão sendo obrigados a multiplicar os preceitos da lei
4
com o intuito de não deixarem nada ao acaso (cl . Ricciotti, 1963, pp. 43-56).
Morno é a figura mitológica qué personifica O" espírito crítico. Platão,
por exemplo, refere-a na República,liv. v-1,487"a. 7 R. Salomão ben Isaac (também chamado Raschi, ou, por erro, Jarchi),

5
que viveu entre 1040 e ll05, foi o fundador de uma escola de estudos bíblicos
É esta, como se sabe, a tese que o autor sustenta sobre o conteútlõ da e talmúdicos, em Troyes, que teve larga influência no Sul de França, tanto entre
Escritura. Quanto à importância do livro de Daniel no contexto seiscentista, é judeus como entre cristãos .
de recordar a onda milenarista que invade, nos princípios do século, quer cer-
tas franjas do judaísmo, quer alguns colégios de cristãos reformados, e que se
inspira precisamente naquele profeta. A pedra que se desprende da estátua CAPÍTULO XI
no sonho de Nabucodonosor é, um pouco por toda a parte, vista como o sim-
bolo do V Império que se julga estar próximo e que se interpreta das mais 1 Ao contrário dos profetas, pregadores de uma religião nacional, que
diversas maneiras. Veja-se, por exemplo, a Carta ao Futuro, do P.e António impõem, por conseguinte, a sua doutrina como uma ordem, os apóstolos, pre-
Vieira, ou a Esperançade Israel,de Manassés ben Israel. P. Serrarius, o amigo gadores de uma religião wúversal e desvinculada de qualquer lei positiva,
de Espinosa e Oldenburg a quem nos referimos na introdução, é um dos que dirigem-se ao intelecto humano. Donde, o serem considerados por Espinosa
crêern firmemente na proximidade da nova vinda do Messias para restaurar como alguém que pretende ensinar (docere).
em pessoa a sua Igreja, uma vez que tanto Roma como as várias seitas refor-
mistas estão contaminadas pelo mal. Guerras e calamidades da natureza são 2 Esta mesma ideia sobre a natureza da pregação dos apóstolos é desen-

vistas como sinais dos tempos. E até homens como Newton se deixarão sen- volvida por Hobbes ao longo de todo o capítulo XLII do Leviathan.Conside-
sibilizar por tal ideia, como se vê pelas suas Observationsupon the Propheciesof rando que «em qualquer parte do mundo, quem pretende provar faz juiz da
Daniel and the Apocalipseof St. Joltn (Londres, 1733), não obstante as reticências prova aquele a quem dirige o seu discurso», Hobbes distingue na pregação
que, na esteira de Espinosa, formula à autenticidade do livro. dos apóstolos os argumentos retirados da razão, quando eram destinados aos
6
gentios, e os argumentos retirados da Escritura, caso se dirigissem aos Judeus.
Fariseus e saduceus constituíam as duas principais correntes na nação A diferença das fontes não altera, todavia, a natureza do ensino. Entre os ju-
judaica ao tempo de Cristo. A sua origem deve-se à diferente atitude assumi- deus de Tessalónica, aonde São Paulo foi pregar, uns acreditaram nele, outros
da pelos sectores da população face ao helenismo, quando este entrou em não . Isto porque, explica Hobbes, o apóstolo se comportou «como alguém
conflito com o judaísmo a partir do tempo dos Macabeus, que foram apoia- que não quer impor mas persuadir, coisa que teria necessariamente de fazer,
dos na sua revolta contra os monarcas selêucidas pelas camadas populares, ao ou por milagres, como fez Moisés [... ], ou por um raciocínio baseado na Escri-
passo que as classes abastadas, mormente os sacerdotes, se tinham mostrado tura[ ... ]. Mas quem persuade por raciocínios baseados em princípios escritos
favoráveis aos estrangeiros, de quem admiravam a cultura. Num primeiro converte os seus interlocutores em juízes, quer do significado desses princí-
momento, o espírito nacionalista triunfa e, com ele, os apoiantes dos Maca- pios, quer do peso das suas deduções a partir de les.» A interpretação do Leuia-
beus. Mas, pouco depois, dada a pressão política e cultural do helenismo so- than é, pois, igual à do TTP, salvo nas conclusões que ambos os autores daí
bre o Estado judaico reconstituído, os novos governantes tenderão para os extraem: Espinosa pretende que a razão de cada um é o único·intérprete au-
compromissos. Daí o conhecerem a oposição dos seus antigos apoiantes, que torizado em matéria de religião; Hobbes, pelo contrário, sustenta que, num
passam a considerar-se «separados» ou, como se diz em hebraico, perusltim, Estado cristão, só o soberano civil tem «o poder de ensinar e levar a cabo
de onde deriva a palavra «fariseu». Em contrapartida, os adeptos de uma ati- todas as outras missões pastorais ».
tude de abertura serão chamados saduceus,designação que deriva de Sadoc,
nome de um antigo tronco de uma família sacerdotal. Do ponto de vista dou- 3 Sem este esclarecimento, dir-se-ia que a interpretação de Espinosa se
trinário, os primeiros apoiam-se, quer na lei escrita, quer na «lei de boca» for- associava à de Louis Meyer e de outros colegiantes, que querem promover a
mada pelos inumeráveis preceitos da tradição; os segundos baseiam-se ape- razão ao papel de supremo intérprete em matéria religiosa, conciliando assim
nas na lei escrita ou Tora e consideram tudo o mais (o Ta/mude) acrescentos aquilo que o ITP separa. Na verdade, o facto de os ensinamentos dos apósto-
espúrios. Como a lei escrita não é explícita quanto à providência divina , à imor- los poderem ser seguidos por qualquer um sem necessidade de uma luz so-
br enat ura l não implica qu e a religião, na sua essê ncia, se torn e um conheci- to por consequ ência», como lhes chama Hobb es (Leviatha,1, cap . IX), não de-
me nt o do segundo género. Por este me smo motiv o, não parece m muito fiéis ve ndo , por conseguin te, tomar -se por equival ente da opo sição verdade-erro .
ao texto as leituras qu e tomam o espino sismo com o um a «reli gião da razão ». Conform e Platão já s ustentava no Ménon, a opinião não deixa de ser opini ão
4
por ser verdadeira , uma vez que não está «acorrentada » a um princípio (causa)
A chamada de atenção que o autor faz para doi s conceitos que, na teo- e, por isso mesmo, é «fugidia » e não pod e ser ensinada . O mesmo estatuto da
logia cristã, não são passíveis da distinção que ele quer sublinhar constitui uma opinião , frut o da experi ência sen sorial ou de conhecimento por ouvir dizer é
flagrante adaptação da doutrina de São Paulo ao espinosismo , em particular a tribuído por Espinosa à imaginaçã o, para a qual é remetida a Escritura.
no que toca ao problema dos géneros de _conhecimento .
2A palavra «igreja » é tomada , de acordo com o seu étimo grego, por
5
A secular questão da justificação pela fé ou pelas ob.i:as,que dividiu os «assembleia », «reunião ».
doutores da Igreja e divide católicos e prot~stantes é aqui, pura e simples~n- ·.
te, desvirtuada por Espinosa . Como, de résto, poderia ela ter algum _sigr1ifi;· 3 O principal alvo deste parágrafo é toda a teologia, entendida como espe-
cado do ponto de vista de uma filosofia que neg a radicalmente .a ideia.desse_ . culação a partir da Escritura e, como tal, fonte de controvérsias. Em boa ver-
Deus transcendente perante o qual os homens, pela fé ou pelas obras, se te-
dade , entre a fé e a filosofia não há, para Espinosa, meio termo. Este o cerne
riam de justificar?
da sua atitude sobre o problema da tolerância, isto é, do fim das lutas religio-
sas, que a partir de Erasmo se transformara em preocupação maior de muitos
autores, tais como Fausto Socino ou, mais tarde, John Locke. A ideia que já
CAPITULO XII
preside ao «cristianismo não confessional » é precisamente a de que a multipli -
1 cação dos dogmas foi a causa da divisão da Igreja. O que nem todos aceitam,
Alusão ao já mencionado apego dos saduceus à lei escrita como a única
muito pelo contrário, é que a solução do problema não passa pela procura de
verdadeira, recusando todos os preceitos derivados da tradição - a lei oral
ou «lei de boca». Um bom exemplo da discussão em tomo destas duas fontes uma plataforma mínima para a reconciliação, mas sim pela destruição do pró-
de lei pode ver-se no Exemplarhumanae vitae, de Uriel da Costa . prio mecanismo eclesial que, ao afirmar-se, minimamente que seja, traz já
consigo os gérmenes do comportamento sectário .
2
Embora, hoje em dia, que o termo «tábua » perdeu o seu significado de
4 A palavra «ciência », neste contexto, só poderá entender-se como equi-
suporte da escrita, a frase possa soar algo insólita, optámos, no entanto , por
traduzir literalmente , preservando assim a original variação no interior do valente de simples conhecimento ou saber, uma vez que a verdadeira ciência,
campo semântico das «tábuas da lei». para Espinosa, conduz à liberdade e não à obediência . A ambiguidade deste
parágrafo não é, porém , unicamente terminológica, como se poderá ver pelo
3
Como assinala Appuhn, em comentário a esta mesma passagem, a ex- seu desenvolvimen to no capítulo seguinte . Na verdade, o problema que nele
pressão «religião católica » aparece já no mesmo sentido em autores ingleses está implicado é aquele a que já aludimos na introdução e tem a ver com o
como Herbert de Cherbury. É, todavia;"de sublinhar que o facto de ser «uni - preciso lugar da religião num sistema que a identifica com a obediência e que
versal » não lhe retira o carácter de religião, o que a toma, por conseguinte, faz depender a «salvação » do seu oposto, ou seja, do conhecimento adequa-
diferente do «amor intelectual de Deus » teorizado na Ética. do . Como se salvam os ignorantes? E em que medida estarão todos os ho-
mens sujeitos a determinados dogmas , mesmo os que os reconhecem como
4 fruto de uma ilusão ou ideia inadequada? A resposta a este tipo de questão
Contrariamente às teses que tomam os concílios ou as Igreja s como
fonte da canonicidade dos livros, Espinosa insiste na existência de um critério terá de pa ssar, tant o pela explicitação dos vários graus de beatitude ou salva-
que necessariamente terá assistido a qualquer decisão nesse domínio. A con- ção, como pela teoria do modo finito, isto é, pela impossibilidade de o homem
clusão é óbvia: não é a autoridade (do sumo sacerdote, do Papa ou ainda, como atingir o conhecimento absoluto de Deus. É, no entanto, manifesto que Espi-
pretende Hobbe s, do soberano cristão) a base da verdadeira religião, mas sim no sa, dirigindo -se a leitores filósofos mas não «espinosistas», tenta habitual-
a doutrina universal da caridade e da justiça , pedra de toque de toda a «pala- mente adequar a sua linguagem .
vra de Deus ».
5 Rompendo com o pensamento de boa parte dos autores seus contem -
porâneos , que reivindicam a liberdade de filosofar sobre a natureza ar-
CAPITULO
XIII gumentando que a Bíblia é fonte só de conhecimentos teológicos, e não
científico s, Espinosa dei xa a teologia sem objecto ao pretender que «o co-
1
A oposição aqui explicitada entre a Escritura e a ciência assenta na dis- nh ecimento de Deus, como o das coisas naturais, não dizem respeito à Escri-
tinção de cunho nominalista entre «conheciment o dos factos » e «conhecimen- tura ». A diferen ça em relação , por exemplo, a um Galileu não é, por conse-

428 429
guinte, meramente estratégica, uma vez que , por detrás dela, está toda a CAPÍTULO XIV
doutrina do Deus sive 11at11ra.
1 «A cada hereje o seu texto. » Para se ter uma ideia de quanto este pro-
6 Sobre a problemática dos atributos de Deus, cf. Aurélio, 1985. vérbio traduz a realidade religiosa holandesa da época, veja-se o livro de
Kolakowsk.i (1969).
~ 7 Verae vitae exemplar:a expressão utilizada por Espinosa faz lembrar o
2 A. Tosel (1984, p. 26) define bem esta situação quando escreve: «Se, para
título do livro atribuído a Uriel da Costa, Exemplar humanae vitae, suposta-
mente escrito em 1640 ~as só .editado em 1687 por f)1_ilippe von Limborch , - cada Igreja, a superstição é o outro, tem de concluir-se que, para o filósofo,
quase duas décadas, portanto, após a l.ª edição do Tratado.Comentando esse que objectiva um tal campo de identificação por acusações recíprocas, esta pro-
título, J.-P. Osier (1983, pp . 62-64) :recorda um.a frase de"J. Reuchin no seu priedade que tem cada elemento do campo de se identificar corno religião pela
e
De arte cabalistica(1517): «Desçamos agora ao nosso mundo corporal sen ~ ·_ sua diferença com o outro, apontado como superstição, é precisamente o que
sível, cujo modelo (exemplar) está no mundo incomparável da divj.ndadê, a . define a superstição.»
cópia (exemplum) no mundo inteligível das formas, e o · exempÍár (exempla-·
3 A insistência de Espinosa sobre esta tese deve-se à amplitude da polé-
rium), que subsiste por si, em si mesmo .» Como nota Osier, estamos pe-
mica que à sua volta se trava. Se, num primeiro momento, o autor parecia
rante modulações no interior do pensamento neoplatónico e gnóstico que
estar com os luteranos, ao advogar que a verdadeira religião não reside nos
remontam ao Timeu, onde o demiurgo fabrica o cosmos a partir de um pa-
actos exteriores do culto mas na autenticidade interior, aqui, parece aproximar-
radigma inteligível. Mais claramente ainda do que no caso de Uriel, que le-
-se dos católicos, ao frisar a importância das obras. Todavia, e como já refe-
vanta algumas dúvidas de tradução, o exemplar em Espinosa, se considerar -
rimos anteriormente, não há qualquer incoerência entre uma e outra des-
mos o contexto em que sempre nos surge e a metafísica para que remete,
sas postulações. O que há é uma diferente noção de fé, noção essa que já
corresponde a um «modelo», pese embora a sua distância em relação ao «mo-
Fausto Socino sustentava contra Lutero: «crer em Cristo é obedecer a Cristo»
delo» neoplatónico.
(cf. Boscherini-Droetto, 1984, p . 355).
8 O «movimento local», no sentido de mudança de lugar, constitui, na
4 Na impossibilidade ·de identificar a «besta» que aparece no cap. Xlll do
economia da frase, um nítido contraponto às mudanças de atitude ou de «es- Apocalipse, tanto a Igreja romana, como, mais tarde, os protestantes, utiliza-
tado de alma» exemplificadas pelo ciúme e pela misericórdia. O objectivo ex- ram sempre o termo «anticristo» como um nome pejorativo para designar o
plícito é denunciar o antropomorfismo frequente nas narrativas bíblicas, dei- principal adversário de momento, fosse no plano doutrinal ou no plano polí-
xando em suspenso a rede metafísica em que se prendem alguns conceitos e tico. Deste modo, conforme a doutrina, assim o «anticristo» aparece, ora como
onde a questão teria de ser enunciada de forma completamente diferente. Em inimigo do Papado, ora como o próprio Papa. Grotius, na sua tentativa de
boa verdade, o que se critica é a confusão do infinito com o finito sem, no reconciliação das Igrejas, escreve mesmo, em 1640, uma Comentatioad loca
entanto, se adiantar que a mente ou o movimento local são modos do pensa- quaedamNovi Testamentide Antichristo,para demonstrar aos protestantes que
mento ou da extensão, isto é, expressões de atributos divinos. Acrescente-se, o Pontífice romano não pode ser a besta do Apocalipse,visto os seus ensina-
de resto, que a designação aparece aqui num contexto abso lutamente pacífico mentos não contrariarem os de Cristo. Espinosa, por seu turno, coerente com
e à margem de problemas de natureza científica que ela pode levantar. Basta a identif icação já feita entre fé e obediência, ou seja, entre a fé e a prática da
recordar que enquanto Hobbes, no TractatusOpticus, consich!rava que «toda a justiça e da caridade, remete a designação para aqueles que perseguem os
acção é movimento local no agente, assim como toda a paixão é movimento «homens honestos», seja qual for a sua doutrina.
local no paciente» (Op. lAtina, v, p. 217), Descartes contrapunha, na Dióptrica,
uma distinção entre o movimento actual propriamente dito e «a acção ou in- 5 O plano de Grotius para a unificação das Igrejas, que ele repete em várias
clinação para se mover » (AT, VI, p. 88). obras, era, conforme se lê no De jure belli ac pacis (prol. 42), veritatemsparsam
per singulos, per sectasdiffusam,in corpuscolligere.Tratava-se, por conseguinte,
9 Será este o tema do cap. x1ve, além disso, uma das conclusões funda- tanto no domínio religioso como da política internacional, de estabelecer, a
mentais de todo o Tratado.Para já, o importante é verificar como aqui se pro - partir da sua concepção do direito de integração, uma plataforma jurídica que
duz uma inflexão na tradicional problemática que consiste em saber se é a fé subsumisse as várias ordens estatais e doutrinárias sem colocar nenhuma em
ou as obras que salvam. Sob a aparência de um apoio à tese segundo a qual posição subordinada (cf. Gurvitch, 1932, p. 186). Espinosa, por sua vez, igno-
«a fé sem obras é morta », o que na realidade se defende é a redução da fé à rando ou recusando o appetitussocietatisque Grotius coloca na base dos agre-
obediência, isto é, ao desejo de praticar a justiça e a caridade, subtraindo-a gados sociais e da desejada organização supra-Estados, equaciona o problema
assim a qualquer conteúdo doutrinário dogmaticamente estabelecido e, por a partir do princípio da preservação individual, que pode igualmente apli-
conseguinte, abrindo a possibilidade da livre opinião. car-se a cada Estado ou a cada Igreja. Consequentemente, não cuida de re-

430 431
colher a doutrina «dispersa pelas várias seitas», mas de estabelecer um prin- 5 Tam bém Hobbes (Leviathan,cap. xxxn, p. 364) sustenta que a autori-

cípio universal de onde se deduzam as normas que levam à prática da justiça. dade do s profetas se averigua pelos sinais e pela doutrina . Diferentemente,
O único problema que poderá levantar -se a esta formulação é, como já disse- porém, de Espinosa, que entende o segundo destes critérios como o da ade-
mos, o de saber em que medida alguém abraça dogmas de fé conhecendo a quaçã o entre a palavra prof ética e os princípios da justiça e da caridade, o fi-
sua origem. É esta, afinal, a questão autenticamente «espinosista » que subsiste lósofo inglês toma-o por uma consonância com a tradição, reservando para o
no presente capítulo e sobre a qual nos demorámos na introdução. soberano a autoridade para aquilatar da mesma .

6 Por «palavra de Deus que fala nos profetas » entende-se aqui, não o con-
CAPÍTULO XV junto dos seus ensinamentos tomados à letra, como pretende a tradição fari-
saica, mas o verdadeiro ensinamento contido na Bíblia e que Espinosa identi-
1
À luz do que já fora dito nos capítulos anteriores, a questão assim en~- · ficou, anteriormente, com a justiça e a caridade.
dada está resolvida : se o objectivo da ciência é a verdade e o da fé é a obe:
diência, se aquela se faz por ideias adequadas enquanto esta só contém ertun- 7 Todo o paradoxo da «salvação dos ignorantes » no sistema espinosano

ciados da imaginação, a milenar tentativa de conjugar uma coisa e outra, seja está resumido nesta passagem: se, por um lado , há razões para considerar a
por que via for, não faz qualquer sentido. Trata-se aqui, portanto, de uma expressão contraditória nos seus próprios termos, por outro, o facto de Espi-
recapitulação das conclusões a que já se chegou, em matéria «teológica », nos nosa falar a este respeito de uma «certeza moral» impede que a rotulemos de
capítulos anteriores. Os próprios termos em que o problema é enunciado (fi- absurda ou de simples compromisso com os leitores. Sobre o assunto, que
losofia versus teologia) já foram ultrapassados pela crítica feita às pretensões está longe de uma solução a salvo de quaisquer reticências, vejam-se as pági-
dos teólogos e pela consequente redução da religião à fé. De notar, ainda, que nas de A. Matheron (1969, pp. 149-248), que são, por certo, a análise mais
a solução apresentada por Espinosa rejeita, não só as posições que ele classifi- penetrante e exaustiva que até hoje se lhe dedicou.
ca corno «cépticas» e «dogmáticas», mas também aquela que poderíamos clas-
sificar como fides quaerensintellectum, intellectusquaerensfidem.
CAPÍTULO XVI
2
O rabino Alpakhar, de Barcelona, falecido em 1235, era médico e autor
de um conjunto de cartas dirigidas a David Kirnchi (célebre pelo comentário 1 A. Droetto, no ar tigo «Genesi e strututtura dei Trattato Teologico-
;! que acompanhará, dois séculos mais tarde, aquele que será o primeiro texto -Político » (Studi Urbinati,1969, pp. 135-179),cuja tese retoma nas suas anota-
bíblico impresso em hebraico, os Salmos,Narbona, 1477), onde criticava aspe- ções à tradução italiana do TTP (Boscherini-Droetto, 1984,p. 392),sustenta que
ramente o método de Maimónides. Como ficou dito na introdução, e como se a intenção inicial ao autor seria, presumivelmente, dar a obra por terminada
demonstra pela citação que Espinosa faz, em rodapé, do livro de Meyer, tanto com o fim do problema teológico, isto é, com o cap. xv, vendo-se depois ten-
Maimónides como Alpakhar constituem aqui exemplos remotos de uma polé- tado a esclarecer alguns pontos de natureza política, a que entretanto fora
mica reactivada no seio do cristianismo após a Reforma e que, entre outros, obrigado a aludir, e a expor, em traços gerais, a sua filosofia civil. Se foi assim
oporá o referido L. Meyer a P. Serrarius. O próprio Espinosa, nos Pensamentos ou não, é difícil sabê-lo a partir apenas do facto de a parte política do tratado
Metafísicas,sustentava ainda uma posição algo diferente da que vem no ITP. repetir e desenvolver pontos já focados na parte teológica. A verdade, como
Como ele então escrevia, «a verdade não contradiz a verdade e a Escritura
o próprio Droetto observa, é que esse mesmo facto denota igualmente a exis-
não pode ensinar tolices como aquelas que o vulgo imagina. Porque, se nela
tência de um nexo sistemático muito mais estreito entre as duas partes do que
encontrássemos alguma coisa que fosse contrária à luz natural, poderíamos
deixaria supor a sua simples justaposição no livro. Ora, esse nexo não provém
refutá-la com a mesma liberdade com que refutamos o Corãoou o Talmude»
só da articulação formal estabelecida entre a questão religiosa e a questão
(CM, a parte, cap. vn).
política: pelo contrário, ele é inevitável e essencial se não quisermos que o TTP
3 Toda esta argumentação pressupõe, no fundo, a identificação feita por seja lido como um vulgar libelo contra os teólogos . A distinção entre ciência e
Espinosa entre a vontade e o entendimento, contra Descartes e a filosofia cristã fé, conclusão da primeira parte, não pode ser deixada como um mero enunci-
no seu conjunto. Veja-se, a este respeito, a Ética, 11parte, prop . 49, corolário e, ado racional, sem se evidenciarem as suas consequências na ordem prática.
sobretudo, o escólio: «mesmo que um homem seja suposto aderir a ideias falsas, Daí a necessidade de uma reflexão política que explicite, do ponto de vista da
não diremos, no entanto, que ele tem uma certeza . Com efeito, por certeza experiência, ou seja, do possível enquadramento dos afectos, quais os limites
entendemos qualquer coisa de positivo e não a ausência de dúvidas. E por em que deve conter-se a potência individual a que se reconhece ilimitada liber-
ausência de certeza entendemos a falsidade. » dade de opinião e expressão.

4 2 • A expres são optima Respublicaremete para uma comunidade de cida-


A citação, que no original é referenciada como pertencendo ao cap . IV,
foi corrigida por Charles Appuhn, na sua tradução do TTP. dão s politicamente organizados o melhor possível, e não para uma república

15

Â~7 433
ideal, que teria a conota ção de um modelo de Estado construí d o à margem da m ent e a obri gatoried ade dos cont ra tos. Espinos a, inver samente , identifica o
experiência, totalm ente estranho à concepç ão espinosana . Até certo ponto, é a dir eito natural e a lei natural: sem atentarmos neste pormenor, não se perc e-
mesm a ideia que ressurg e actualmente num J. Rawls, ao dize r que «urna so- berá a diferenç a essencial que separ a as du as filosofias políticas e a razão po r
ciedade é bem ord enada quando está, não apena s destinada a aumentar o bem qu e, no Tratado Político, será logicamente abandon ada a noção de contrato .
dos seus membro s, mas também regulada por uma concepção pública da jus-
tiça, quer dizer, quando é uma sociedade em que, primeiramente, cada um 6 Ao longo do parágrafo, foi feita a demon stração de que o pacto é con-

aceita os mesmos princípios de justiça e sabe que os outros fazem o mesmo, forme ao que a razão determina, demonstração que segue muito de perto a
e em que, em segundo lugar, as instituições sociais de base satisfazem, de uma _ de Hobbes . Porém, a interrogação final faz inflectir o sentido da reflexão e
maneira geral , estes princípios e são recônhecidos cõmo tal» (A Theoryof Jus- marca precisamente a diferença entre os dois autores . Porque, em termo s
tice; parág . 1). Aqui, porém , como ob.serva F. Gil (EnciclopaediaUniversalis, político s, de pouco adianta uma tal conformidade quando se sabe que a maior
Symposium, p. 1090), «o problema é ~aber ·se é em qu~ ~ondições se revela . parte dos homens não chega a conhecer o que lhe é verdadeiramente útil.
praticável um acordo sobre os princípios · da justiça ,~, problema este que Espi- E, depois, como se disse mais atrás, para além das regras racionalmente dedu-
nosa contorna ao considerar tal acordo como resultante de uma .progressiva · zidas, há a lei geral da natureza, que rege a existência de todos os seres, inclu-
emenda passional que permite chegar a equiHbrios políticos razoáveis . sive dos seres humanos . Ora, o pacto, ou está fundado nesta lei ou não tem
aplicabilidade . Daí que a sua verdadeira condição seja um equilíbrio surgido
3 da própria dialéctica passional.
O jus et institutum naturae corresponde ao direito natural objectivo, ou
seja, ao conjunto de leis da natureza pelas quais os seres existem e agem . Uma
7
vez mais, é de salientar que, para Grotius, havendo embora lugar para se falar Partindo de Hobbes, Espinosa acaba por se encontrar com Maquiavel.
de uma lei natural individual (que se fundamenta no instinto de conservação, que já havia sustentado doutrina semelhante: «Um príncipe prudente não pode
mas é apenas uma regra moral e não jur ídica), o verdadeiro direito objectivo nem deve guardar fidelidade à sua palavra quando a fidelidade se volta con-
dá-se no plano das relações inter-humanas e define ~se, em última instância, tra si e quando já tiverem desaparecido os motivos que determinaram a sua
como obrigação de respeitar os direitos subjectivos dos outros. Hobbes, rejei- promessa . Se os homens fossem todos bons, este preceito não seria correcto,
tando o «apetite de sociedade » e, por conseguinte, qualquer obrigação natural mas visto q ue eles são maus e não guardariam a sua palavra para contigo,
de respeitar os direitos alheios, concluía já que os limites ao direito subjectivo também não há razão para que guardes a tua. Além de que não faltarão ja-
de cada um, isto é, o direito objectivo, ou lei natural, como ele prefere chamar- mais pretextos legítimos com que o príncipe possa disfarçar a violação das
' -lhe, derivaria de um conjunto de regras racionalmente deduzidas que nos suas promessas. » (O Príncipe,cap . XVIII, p . 156.) Compreende-se, assim, o mo-
impõem a autoconservação. Espinosa vai mais longe e faz, no presente capí- tivo por que Espinosa retoma dois exemplos de Hobbes - a promessa ao
tulo , coincidir o direito subjectivo com o direito objectivo, sendo que um e ladrão ou inimigo que ameaça matar -me e a promessa de jejuar vinte dias -
outro coincidem com a potência do indivíduo : na medida em que Deus tem e resolve ambos de forma inversa à que surgia no Leviathan(cap. x1v,p. 126).
direito a tudo e a potência da natureza é idêntica à potência de Deus, o indiví- Aqui, o contrato feito com o ladrão passava a ser válido e, portanto, a obrigar-
duo - parte da natureza - tem tanto direito quan ta potência tiver . -me, a partir do momento em que aquele cumpria o estipulado, ou seja, me
deixava com vida. A promessa do jejum prolongado era, por sua vez, semp re
4 nula, visto não ser possível a alguém querer uma coisa que põe a sua vida em
A definição do conatusaqui explicitada corno in suo statu perseverareserá
alvo, na Ética (m parte, props. 7 e 8), de uma reformulação bastante mais perigo . Em qualquer dos casos, a validade ou nulidade do contra to depende-
consentânea : com a substantia actuosa e que se traduz por um in suo esse ria da sinceridade dos contratantes : é uma lei da razão que se respeitem os
perseverare. contratos, desde que não haja motivo para suspeitar que o outro vai faltar ao
prometido . Mas Espinosa assenta a sua teoria na lei natural, que coincide com
5 o direito natural , e, por isso, ninguém renuncia a uma coisa a não ser por medo
Todo este parágrafo constitui um a crítica cerrada ao jusnaturalismo, o
qual contrapõe ao «instinto » os «ditames da razão » e funda assim o direito de de outra pior ou na esperança de outra melhor . Consequentemente, o contra -
natureza numa suposta ordem moral eterna e universal . Espinosa, como ve- to com o ladrão é nulo desde o princípio, porque tanto ele como eu sabemos,
mos, reduz essa ordem moral ao plano da razão humana, que julga em fun- à partida , que não vou ter interesse em cumprir o que prometi: não houve
ção do seu próprio interesse , e sobrepõe-lhe a ordem do todo ou leis da natu- contrato, houve um logro em que eu fiz.cair o adversário para me ver livre
reza. O erro aqui evidenciado é, no fundo, aquele que Kant, na Críticada Razilo dele, quer dizer, houve «dolo bom », como Espinosa lhe chama, recorrendo ao
Pura, atribui ao dogmatismo , que encara a totalidade da experiência d e um direito romano. Pelo contrário , é possível eu prometer jejuar pensando que
ângulo que convém apenas a um dos seus aspectos particulares. O próprio daí tiro algum benefício e, nesse caso, enquanto assim pensar a promessa é
Hobbes , no cap. XIV do Leviatlum,cuja estn1tura é semelhante à deste cap ítulo válida, cessando, todavia, a partir do momento em que eu concluir o contrá-
do Tratado, apresentava o direito natural objectivo, a que chama lei da natu- rio . Escusado será dizer a importância de que isto se reveste em termos polí-
reza, em confronto com o direito subjectivo, para em seguida fundar racional- ticos, como acrescenta o autor .

434 435
_;;1• .-;

8 É a tese fundamental do contratualismo espinosano. Mas será que po- <ladeiramente útil» ou o «sumo bem», mas, em todo o caso, os bens materiais
demos, de facto, chamar -lhe ainda contratualismo? Na verdade, se a analisar- e a segurança de que precisa. Nessa medida, o homem que se guia pela razão
mos nos seus pressupostos, concluiremos que, em rigor, a transferência de e que, portanto, é interiormente livre , observa as leis do Estado, como Espi-
direito que o contrato implica não é mais que um meio de que o indivíduo se nosa diz em rodapé, demarcando-se, ainda aqui, de Hobbes, para quem o objec-
serve para prosseguir a sua conservação, isto é, de obter o que quer, cessando tivo da segurança seria contraditório com a liberdade dos súbditos.
logo que ele quiser e puder fazer outra coisa. Veja-se como esta questão é
levada às suas últimas consequências no TratadoPolítico(cap. n, § 12), onde l3 O recurso a considerações inspiradas em Maquiavel é usado aqui con-
desaparecem todas as ambiguidades a que _dá lugar aqui a utilização da tenni- tra o direito internacional tal como este fora teorizado por Grotius, a partir de
nologia jusnaturalista. · · · · ·· um appetitussocietatisque existiria também entre as nações e permitiria a cria-
. . ção de uma ordem ou direito internacional.
9 A tão citada carta L, em que Espinosa .expliea a Jarig Jelles a sua diferen- ·
ça em relação a Hobbes no campo político; já está contida neste parágrafo. 14 Mais do que «anterior à religião», o estado de natureza é, na sua acep-
Nessa carta, escrita só em 1674, o autor limitar-se-á, com efeito,,doimular a -·, ção autenticamente espinosana, oposto à religião. Esta, como se sabe, consiste
síntese: «A diferença está em que, para mim, o direito natural não desaparece na obediência . A natureza, quer a entendamos como o estado de antes do
e o soberano não tem, numa cidade, qualquer direito sobre o súbdito a não conhecimento da lei ou revelação, quer a entendamos como o verdadeiro
ser na medida em que, pela sua potência, é superior a ele; é a continuação do objecto do conhecimento, no qual reside o «sumo bem» do homem, é sempre
estado de natureza.» conotada com a liberdade.
't-t
r 10
A diferença entre Hobbes e Espinosa na apreciação dos diversos tipos 1s A argumentação desenvolvida neste parágrafo segue de muito perto
lli_
. l
~· de regime tem a sua razão de ser nos pressupostos teóricos de onde cada um o estatuto do soberano .tal como ele é definido por Hobbes. As dificuldades
deles parte. Separando a lei e o direito, e deduzindo o Estado a partir daquela, que se levantam derivam, portanto, desse duplo registo em que o texto se
Hobbes pensa que os três tipos de regime não se distinguem entre si em fun- inscreve - o espinosismo e o contratualismo. Como se poderá verificar, as
ção do poder, mas em função da maior ou menor «aptidão para produzir a dúvidas que o próprio formul a estão à margem da tese da identificação de
paz e a segurança do povo» (Leviathan, cap. x1x,p. 173). Porque se o poder Deus com a natureza , na qual, por sua vez, se baseara a teoria do direito natural.
nasce pelo contrato, quer ele esteja nas mãos de um indivíduo, de uma assem- Transposta a filosofia política para esse plano, a pertinência de uma categoria
bleia restrita ou de uma assembleia alargada, «todos os indivíduos são autores como a de «estado de natureza» será praticamente nula , visto não se poder
de tudo quanto o soberano faz» (idem, cap. xvm, p. 163). Pelo contrário, Espi-
reconhecer o «estado civil» como sua negação. A partir do momento em que
nosa, fazendo coincidir a lei e o direito, é levado a concluir uma diferença de
se recusa qualquer ordem transcendente, todas as formações políticas se orga-
«natureza» entre os regimes. Dito de outro modo, a sua maior ou menor ope-
nizam em função dos equilibrios de potência em que se exprime a natureza.
racionalidade é uma consequência da sua maior ou menor consonância com o
direito natural, definido como regra do existir e agir de todos os seres. É nesta 16 Jáantes se deixou claro em que consiste a verdadeira religião e é óbvio
perspectiva que a democracia surge como «o mais natural de todos», porquanto
que essa não pode ser alvo das prescrições de um qualquer soberano. Por isso
nela se assume a impossibilidade da transferência dos direitos individuais e se
mesmo, nos capítulos seguintes, o autor sublinhará a necessidade, aí implícita,
procura identificar a lei com a vontade e a potência da «multidão».
de o Estado conceder plena liberdade de crença e expressão, se quiser estar
11Uma vez mais, é a experiência que aconselha a conformidade com os em sintonia com a natureza das coisas, permitindo assim as controvérsias mas
ditames da razão e não o inverso. A inspiração colhida em Maquiavel é o fio evitando que elas d~generem em guerras. Uma vez mais , a coincidência com
condutor da superação que Espinosa faz do contratualismo. Hobbes é apenas pontual e esconde a verdadeira divergência. De facto, o filó-
sofo inglês, que analisa primeiro a questão política e só depois a religiosa, é
12 Em termos absolutos, «uma coisa é livre quando existe unicamente se- levado a concluir que não pode haver contradição entre a lei de Deus e a lei de
gundo a necessidade da sua própria natureza e só por si é determinada a agir» um Estado cristão: «as leis de Deus não são senão as leis da natureza, a prin-
(Ética, 1 parte, def . 7). Em termos relativos, porém, o agir às ordens de ou- cipal das quais é que não devemos violar a palavra dada, quer dizer, o man-
trem, ou seja, obedecer, pode-se traduzir em utilidade para a natureza de quem damento de obedecer aos nossos soberanos civis, que por mútuo convénio de
obedece. Daí que seja necessário considerar a actionisratio,o fim da acção, para uns com os outros constituímos como superiores a nós» (Leviathan,cap. XLlll,
a classificarmos, contrariamente ao que faz Hobbes (cap. xx, p. 186), que iden- p. 587). Para Espinosa, que procede de modo inverso, ou seja, trata primeiro
tifica os direitos e consequências do poder paterno e do poder senhorial com a questão religiosa e só depois a política, o problema já não é legitimar a obe-
os de um soberano. O fim da obediência ao soberano é o bem comum e, por diência dos cristãos ao soberano: é, sim, estatuir a soberania em termos que
conseguinte, o bem de cada um dos que obedecem. Não o que lhe é «ver- não suprimam a possibilidade do diferendo.

1/
fj
436 437 ;u
CAPÍTULO XVII intérpretes . É mesmo provável que Espino sa tenha em mente a leitura feita
por Hobbes , que não reconhece outros regimes além do monárquico, do aris-
1 Nos termos em que vinha definido por Hobbes, o contratualismo revela-
tocrático e do democrático, confundindo a teocracia com o primeiro, no in-
-se ilusório e inútil. A experiência demonstra que os soberanos continuam tuito de demonstrar que o poder legislativo e o poder executivo, ou seja, o
dominados pela paixão do medo, o que é contraditório com a suposta trans- poder de iriterpretar e de fazer aplicar as leis, estavam nas mãos do mesmo
ferência de todos os direitos dos súbditos para as suas mãos. Daí que todo o indivíduo e que assim deveria acontecer nos Estados cristãos (Leviathan,cap. XL,
exercício do poder, como o presente capítulo evidencia, redunde em perma- p. 465). É contra este absolutismo que Espinosa irá demonstrar, até final do
nente reactualização do direito, ou seja, da potência que- efectivamente detêm capítulo, a separação dos poderes religioso e civil subjacente a um regime que
os soberanos, através de todos os meios ao seu alcanc;e. Dito de outro modo, continua a ter Deus no seu vértice, como verdadeiro rei, e por isso se designa
a política não está suspensa de contratos! está suspensa de t~ctos. por teocracia. Cf. infra, nota 12.
2
-
A subtileza da distinção entre obediência exterior e assentimento inte- B No original, PraepotentesConfoederati BelgarumOrdines.Trata-se das As-
rior, colocando uma coisa e outra como possíveis expressõe~ do p~der, d~or- sembleias (ordines)de província que em finais do século xv se tinham consti-
re logicamente da distinção entre o conhecimento filosófico e a imaginação, tuído nos Países Baixos contra a política, repressora do movimento comunal,
tal como da inserção da política e da fé neste último campo. levada a cabo por Filipe de Borgonha. O congresso dos seus representantes
veio depois a constituir os «Estados Gerais», verdadeiro parlamento nacional
3
A mesma alegação aparece em J. J. Rousseau (Contrato Social, liv. n, das Províncias Unidas ou Estados Confederados, muito embora cada uma das
cap. vn) e é, de resto, utilizada com frequência pela libertinagem de Seiscentos Assembleias ou Estados tenha integralmente mantido as suas prerrogativas, o
e Setecentos (cf. Tratadodos Três Impostores),embora com um objectivo dife- que justifica a designação de Praepotentesque se lhes atribuía.
rente do de Espinosa, qual seja o de reduzir a religião à «impostura» com in-
tuitos dominadores. 9 A par da simples interpretação do texto bíblico e do seu enquadramen-

4 Hobbes (Leviathan,cap. xxx1,p. 345) chama a este reino o «reino profé- to no plano jurídico, é uma constante no ITP a explicitação do conteúdo pro-
priamente político formalizado no direito. Neste caso, para além do problema
tico», reino que existiu historicamente e, como tal, nenhuma Igreja pode rei-
da tipificação do regime e, sobretudo, dos critérios de legitimação dos profe-
vindicar a sua sucessão. A formulação de Espinosa, sem deixar de implicar
tas, Espiriosa tenta evidenciar as efectivas relações de poder delimitadas por
idêntica conclusão, é bastante menos circunstancial e visa mostrar, como a
esse quadro, chamando assim o político, sempre na esteira de Maquiavel, ao
seguir se pode ver, que a transferência do direito natural para Deus equivale
a uma não transferência e, por conseguinte, a teocracia em estado puro equi- campo exp~riencial, dos homens que existem e não daqueles que deveriam
vale a uma democracia. É o que a análise do aparelho de Estado confirma, existir. Diferentemente, pois, do que julga Hobbes, o príncipe não detém por
mas é também o que se poderia deduzir de toda a doutrina do direito natural natureza a legitimidade de Moisés, mas tem ao seu dispor mecanismos que
já exposta. lhe dão a possibilidade de submeter aqueles sobre quem a ideologia lhe con-
fere tal legitimidade.
5 A «suposição», como lhe chama o autor, de que Deus é o soberano de
10 Toda esta passagem, que se prolonga por algumas páginas, constitui
Israel, não tendo embora contrapartida no plano da organização do Estado, é,
todavia, um elemento importante na sua fundação e defesa, visto ser essa me- uma notável fenomenologia do elemento nacional como factor de integração
diação simbólica que produz a efectiva agregação dos indivíduos. social e diriamização política.

11
6 A leitura da Bíblia que Espinosa faz nesta passagem constitui um nítido A associação do milagre aos períodos de crise é uma insinuação de
ajustamento de textos onde será difícil, para qualquer leitor, descortinar a cla- natureza meramente retórica que Espinosa evita em sede metafísica. Dado,
reza doutrinária que o comentário lhe atribuí. Hobbes, por exemplo, e por porém, o estatuto atribuído à crença em factos extraordinários, não custa ad-
razões que facilmente se compreendem, passa em claro o carácter democrá- mitir que aquela seja uma consequência social historicamente verificada, o que
tico que o TTP vislumbra nesse primeiro pacto (Leviathan,cap. XL, pp . 463-464), não é de somenos na filosofia política de Espinosa.
considerando-o uma reactivação da aliança celebrada por Deus com Abraão e
12 Para Hobbes (Leviathan,cap. XL, p. 470), esta mudança em nada alterou
evidenciando em seguida o carácter autenticamente político que ela adquire a
partir do momento em que são os Hebreus a transferir o poder para Moisés. a natureza do regime, uma vez que os poderes que os reis passam a exercer
são precisamente os mesmos que antes exercia o sumo sacerdote. Para Espi-
7
Conforme o autor explica na nota da página a seguir, esta especifici- nosa, pelo contrário, começa aqui a monarquia, passando-se de um regime de
dade do regime teocrático em vigor depois de Moisés escapa à maioria dos separação dos poderes para uma tirania pessoal.

439
CAPÍTULO XVIII CAPÍTULO XIX

1 Tal como outro s intelectuais seus cont empor âneo s, Espinos a distancia - 1 Também aqui o ponto de partida para a reflexão de Espinosa é Grotius ,
-se do emaranhado de discuss ões teológicas que o circundam, considerando que, no De imperio summarumpotestatum circa sacra (1614), teorizava a questã o
as várias posições em presença como ideias inadequadas que se autopromo - do s efeito s político s da religião, já sublinhado s por Maquiavel e Bodin , em
vem a verdade absoluta. As raízes que atribui a esse mal são, no entanto , termos que tentavam reduzir ao mínimo aquilo que de especificamente teoló-
diferente s, como diferente é a solução que sugere . Não é a variedade de opi - gico ficaria sob a alçada do poder civil. Espinosa possuía o livro, mas a dou-
niões que constitui o perigo. O -perigo vem da su,l de_ge_nerescência em sei- trina que sustenta é, em grande parte, subsidiária daquela que Hobbes apre -
tas, o que acontece quando os poderes público .s tomam partido na conten - senta no Leviathan.Fazendo seus os argwnentos que o filósofo inglês aduzira
da, tran s formando as discussões erri. guerras civis . Daí que as autoridades contra as pretensões do pontífice romano a uma supremacia sobre o poder
devam permitir a livre expressão e, ao mesmo tempo, abster-se de intro ~ temporal, o ITP não irá, porém, ao ponto de defender a transferência para os
missões . · · soberanos d e todos os direitos que nega ao Papado . O seu objectivo é concluir
pela liberdade de pensamento. Por isso, considera os soberanos como intér-
2 Reciprocidade da não intromissão: tal como a política não deve interfe- pretes da «lei de Deus », isto é, concede-lhe o «jus circa sacra », mas só depois
rir nas convicções religiosas, cabendo-lhe apenas a regulação do culto externo , de ter reduzido a «lei de Deus» ao mandamento da justiça e da caridade, base
assim os responsáveis pelas religiões não devem interferir na política. Já de toda a legislação civil, e de a ter furtado ao plano das discussões teológicas .
Hobbes tinha dedicado o cap . XLll do Leviathana demonstrar o infundado do
2
poder eclesiástico, contra a tese oposta sustentada pelo cardeal Belarmino, Hobbes, no cap. xw (p. 583) do Leviathan,é ainda mais severo que Es-
em 1610, no De potestate summi pontifici in rebus temporalibus. pinosa : «a acção de Santo Ambrósio, se é verdade que excomungou o impe -
rador Teodósio, constitui um delito capital ».
3 Maquiavel interrogava-se sobre este mesmo problema no cap . v
3 O «jus imperii » corresponde aqui ao conceito de soberania teorizado
d'O Príncipe, que tem por título exactamente «De que modo se devem go -
vernar as cidad es ou principados que antes da conquista se regiam pelas por J. Bodin nos Seis Livrosda República . Diz este : «a primeira característica do
suas próprias leis ». Tal como acontece com o capítulo anterior, onde al- príncipe soberano é a potência de dar a lei a todos em geral e a cada um em
:Jl.'ó
.,. guns autores (Tosel, 1984, p. 74) vêem uma «análise cifrada » da situação pa r ticular; mas isto não é tudo, pois é preciso acrescentar que ele o faz sem o
' holandesa na década em que o TTP é escrito, não é difícil ver, também aqui, consentimento de ninguém, seja superior , igual ou inferior a si» (op. cit., liv. ,,
cap . XI) .
algumas coincidências . É notória, de resto, à medida que o livro se aproxi-
ma do fim , uma alusão cada vez mais frequente à experiência das Provín- 4
Esta formulação, com vestígios nítidos do Leviathan,que ·por mais de
cias Unidas.
uma vez aparece no Tratado,não deve iludir o verdadeiro carácter da demo-
4
cracia , como dos outros regimes, na concepção política de Espinosa. Como já
Robert Dudley , favorito da rainha Isabel I e por ela nomeado conde de
referimos, o facto de um sistema político, enquanto estrutura organizada que
Leicester, foi enviado, em 1585, para a Holanda com um exército de 6000 ho-
possibilita a aquisição regular de bens pelos indivíduos, ser algo que está de
mens destinado a apoiar a revolta das Províncias contra Espanha. Fosse pelo acordo com o que dita a razão não quer dizer que seja nela que reside a sua
sentido da autonomia conservado pelos Holandeses, fosse pela arrogância e génese , a qual está sempre no plano da imaginação e das paixões que mútua
inabilidade de Leicester na condução dos negócios políticos e militares, o facto e naturalmente se equilibram .
é que a rainha o manda regres sar a Inglaterra, em 1587. A tese de que os
Estados da Holanda tinham sido soberanos até ao momento em que os Países 5
O poder temporal do Papa havia sido sancionado pelo IV Concílio de
Baixos, no final do século xv, foram doados por Maria de Borgonha a Maximi- Latrão, convocado por Inocêncio III, em 1215. Já no século anterior, porém,
liano de Áustria e ficaram feudo do Império, era já utilizada por Grotius (De Gregório VII defendia a doutrina da plenitudopotestatisde Roma, fazendo notar
antiquilate ReipublicaeBataviae)contra as pretensões de Maurício de Orange, que «o Papa é o único homem a quem os príncipes beijam os pés».
que se propunha reunificar a Holanda e restaurar a monarquia absoluta. Gro-
tiu s, no entanto, não se manifesta tão seguro quanto o fará Espino sa sobre a 6 A conclusão reflecte exactamente o mesmo ponto de partida de todas

dependência dos condes relativamente às Cortes após a recuperação da auto- as reflexões jurídicas anteriores sobre a questão (Bodin, Grotius, Hobbes, etc.).
nomia . Pelo contrário , refere até que , no domínio da política externa , eles eram No caso específico da Holanda, sobre o qual trabalham Grotius e Espinosa, o
semelhantes ao s reis, o que tinha necessariamente consequências no plano problema ganha uma pertinência muito maior do que aquela que apresenta
interno . E a prova de que estava certo viria a ser o exílio a que , em 1618, ele em paí ses onde se limita a um confronto entre o rei ou imperador e o Papa.
próprio foi condenado . Ali , de facto , a liberdade religiosa e o consequente acolhimento de pessoas

16

440 441
professando as mai s diversas crenças vão gerar toda uma problemática nova Leo Strauss, que considera que o Estado livre é aquele em que todos saíram
no domínio da jurisprudência, a partir do momento em que o direito civil se da super stição, a verdadeira função da política é garantir a segurança, isto é,
vê contraposto à legislação religiosa de confissões, como o judaísmo, que têm salvaguardar o direito de natureza, e, ao mesmo tempo, garantir a autonomia
vastas implicações no quotidiano dos seus membros. de cada um. Corno diz M. Corsi (1978, p. 51), «a política tem a função de pre-
servar e não de constituir o humano ».
7
É esta a principal crítica que Erasmo faz à Igreja: «os artigos de fé au-
mentaram, mas a caridade foi diminuindo; as discussões aqueceram, mas a 4
Sui juris non esse: a expressão remete para o direito tal corno Grotius o
caridade arrefeceu» (cit._in_J. Lec}er, 1955, p.. 145). entendia. Ser sui juris (que traduzimos por «ter autonomia») é ser senhor do
seu corpo - o que implica o direito de exigir que os outros lho respeitem e a
reparação dos danos que lhe causem - e ser, ao mesmo tempo, senhor dos
CAPÍTULO XX seus actos - o que implica que ninguém tem o direito de lhe impor seja o que
for. Em contrapartida, ser alteriusjuris (expressão que Espinosa utiliza em vez
1
A ruptura com Hobbes é flagrante neste capítulo. No Leviathim(cap. XL, - de alienijuris e que traduzimos por «estar sujeito ao direito alheio») significa
p. 462) afirma-se que do «pensamento íntimo e da crença dos homens» os ter perdido, ou porque se foi dominado por outrem ou porque com ele se
:' soberanos não podem ter notícia, pois «só Deus conhece o coração». Mas isto pactuou, prerrogativas inerentes ao ser sui juris (cf. Matheron, 1984, p. 86).
significava apenas a impossibilidade prática de abranger pela legislação tal
domínio e não que o direito do soberano, por natureza absoluto, cessasse 5
A perspectiva de Espinosa sobre a relação entre a ciência e a política
perante ele. Espinosa, pelo contrário, opõe um resíduo dé direito natural indi- está, não só afastada da perspectiva iluminista, como até, de certo modo, no
vidual, absolutamente intransferível, ao direito das autoridades, o que impli- pólo oposto. Não é, efectivamente, a ciência que é pensada como condição
cará, de imediato, a possibilidade de o soberano cometer injustiças, coisa que para o desenvolvimento da sociedade e para a felicidade dos homens: é, pelo.
Hobbes não admitia. contrário, o problema político que é prioritário, estando o progresso científico
dependente dele.
2 O que o autor crítica em Hobbes é, afinal, a dedução dos direitos do
....
1,,.,
•<
.
soberano a partir de uma lei da razão que, tomada abstractamente, leva a si- 6
Vide p. 367: «Quão perigoso é[ .. . ] basear as leis em opiniões sobre as
~~n: tuações que contradizem a mesma razão. A antinomia pode enunciar-se as- quais os homens costumam ou podem discutir.»
t f1:;• sim: o desejo de segurança, para ser plenamente satisfeito, postula a concen-
•; tração de todo o poder nas mãos do soberano; mas se este exercesse todas as 7
Alusão à polémica entre os partidários de Armínio e os de Francisco
prerrogativas contidas no contrato, a violência do soberano incitaria a violên- Gomar. Aqueles combatiam as teses de Calvino sobre a predestinação e, no
cia dos súbditos, o que seria desvantajoso para todos; em conclusão, o sobe- plano político, manifestavam-se a favor da liberdade das Províncias ou Esta-
rano não pode querer exceder-se para além de certos limites, o que significa dos autónomos holandeses, ao passo que os gamaristas eram pela unificação
que não tem nas suas mãos um poder absoluto.

3
,. e contra as Cortes. Armínio morre em 1609 e, no ano seguinte, os seus adep-
tos apresentam ao Conselho provincial um texto em defesa das suas teses a
A paixão que Espinosa coloca na orig~m última do Estado é, como faz que foi dado o nome de Remonstraçãoe que foi condenado pelo sínodo de
Hobbes, o medo. Simplesmente, enquanto este considera que para afastar o Dordrecht. Daí a designação de remonstrantespor que ficaram conhecidos e a
medo recíproco que os homens têm uns dos outros é necessário que todos de contra-remonstrantesatribuída aos seus adversários.
temam o Estado, o autor do ITP sustenta que a melhor forma de superar essa
paixão é contrapor-lhe outra, a esperança, criando as condições para que to-
dos possam, na medida do possível, ou melhor, do «compossível», exercer
em segurança a sua actividade. É a doutrina da Ética (IV parte, prop. 7) : «uma
paixão não pode ser reprimida ou contida a não ser mediante uma outra que
lhe seja contrária e mais forte». O verdadeiro fim do Estado não é, pois, como
tantas vezes tem sido interpretado, fazer com que os homens usem da razão,
mas sim que eles «possam .usar livremente da razão». Trata-se aqui de liber-
dade política e não da verdadeira liberdade, que nasce do viver segundo a
razão e não segundo as paixões, a liberdade que será teorizada na v parte da
Ética.Porque esta diz respeito ao verdadeiro fim de cada indivíduo; aquela diz
respeito ao verdadeiro fim do Estado, que é dar a todos os mesmo.s direitos,
sejam eles doutos ou ignorantes. Ao contrário do que pretende, por exemplo,

442 44 .'l
tf
l•

... ÍNDICE

Nota à pr esente edição 7


Nota à edição brasileira 13
Abreviaturas 17

INTRODUÇÃO

AB ERTIJRA

E D EUS ESTAVA NO MUNDO


!t,
1. Recapitulação da Ética 21
\l1 ..... 2. A estrutura do ITP
J.·;,i:4"~. 30
i 'f.
I- A VERDADE E AS OPINIÕES
1. Conhecer 35
2. Imaginar 49

II - O MUNDO COMO NATUREZA E INSTITUIÇÃO


1. O ser e os seres 55
2 . As leis da natureza e as leis humanas 63

III - AS ENCARNAÇÕES DO VERBO


l . A passagem do indicativo ao imperativo 69
./'. 2. A letra e o espírito 72
3. Scientia propter potentiam................................................................... 79
4. O método em Espinosa 85

IV - AS TÁBUAS DA LEI
1. A ficção do contrato 97
2. O Estado ideal 108

V- O TEXTO E A TRADUÇÃO 113

Bibliografia 117

445
TRATADO TEOLÓGICO -POLÍTICO 1 Cap. XVI Dos fundamento s da república, do direito natural e civil
de cada um e do direito dos soberanos .............................. 325
Prefácio ··································
·······:"'····
·······················
································
·· 125
Cap. 1
1 Ca p. XV!I Ond e se mostra que é impos sível e desnecessário algu ém
Da profecia ................................................................................ 133 tran sferir tudo para o soberano; sobre a república do s
Cap. II Dos profetas .............................................................................. 149 Hebreu s, como foi enquanto viveu Moisés e depois da
Cap. lll morte deste, até eles elegerem reis; sobre a sua situação
Da vocação dos Hebreus e se o dom da profecia terá sido
ímpar e, finalmente , sobre os motivos pelos quais uma
um privilégio exclusivamente seu ........................................ 165 república divina pôde cair e ter tanta dificuldade em
Cap . IV Da lei dfvina ............................................:.....:..'..'....................... 179.. subsistir sem sublevações ....................................................... 339
Cap . V Da razão pela qual foram instituíd~s as cerimónias e da Cap. XVIU Onde se concluem, a partir da república dos Hebreus e
fé nas narrativas históric;as, ou seja, por que motivo e a da sua história, alguns princípios políticos ......................... 363
quem é que ela é necessária ....:...............:.........................:.., . 191
r Cap. XIX Onde se demonstra que o direito em matéria religiosa
Cap . VI Dos milagres .............................................................:..........:.... 203 pertence integralmente aos soberanos e que o culto
Cap . VII Da interpretação da Escritura ................................................ 221 externo deve adequar-se à paz da república, se se quer
Cap . VIII Onde se demonstra que o Pentateuco, assim como os livros obedecer rectamente a Deus ..................................
............... 371
1~ 1 de Josué, dos Juízes, de Rute, de Samuel e dos Reis, não Cap. XX Onde se demonstra que numa república livre é lícito a
'' são autógrafos e, em seguida, se averigua se estes livros cada um pensar o que quiser e dizer aquilo que pensa 383
i 1Íi'"
·A.,·,,~ foram escritos por várias pessoas ou por uma só e quem
(f iJ

Cap . IX
terá sido ...........................:.........................................................
Onde s~ imalisam outras questões a .resf>eito ainda dos
243
r- '.
NOTAS
mesmos livros, em particular se foi Esdras quem os
,.,.
concluiu e se as notas à margem qur.se encontram nos Prefácio ............................................................................ ................................. 395
códices hebraicos constituem variantes .............................. 255 âi
;\i, Cap . I ..................................................................................
............................... 398
Cap.X Onde se examinam os restantes livros do Antigo Tes- f! Cap . II ............................................................................................................... 402
.,
- ~-[

tamento, tal como se examinaram os anteriores .............. 271 Cap . III .............................................................................................................. 406
i'
Cap . XI Cap. IV .............................................................................................................. 411
Onde se averigua se os apóstolos escreveram as suas
epístolas na qualidade de apóstolos e de profetas ou na . Cap . V ............................................................................................................... 414
Cap . VI .............................................................................................................. 416
qualidade de doutores e se mostra depois qual a função
dos apóstolos ............................................................................ 283 Cap . VII ............................................................................................................ 419
Cap. VIII ........................................................................................................... 423
Cap. XII Do verdadeiro original da lei divina e por que razão se Cap . IX .............................................................................................................. 424
designa por Escritura Sagrada e por que se chama a Cap. X ........................................................................................... ..................... 425
palavra de Deus. Onde se mostra, enfim, que a mesma Cap . XI .............................................................................................................. 427
Escritura, na medida em que contém a palavra de Deus, Cap. XII ............................................................................................................. 428
chegou até nós intacta ............................................................ 291 Cap . XIII .................................. ......................................................................... 428
Cap. XIII Onde se mostra que a Escritura ensina apenas coisas muito Cap. XIV ........................................................................................................... 431
simples e não tem por objectivo senão a obediência; Cap. XV ............................................................................................................ 432
mesmo da natureza de Deus, ela não ensina senão aquilo Cap. XVI ........................................................................................................... 433
que os homens podem imitar através de uma certa regra Cap . XVII .......................................................................................................... 438
de vida ........................................................................................ 301 Cap. XVIII ........................................................................................................ 440
Cap . XIV Onde se determina o que é a fé, quem são os fiéis, quais Cap . XIX ............................................................................................ ............... 441
os fundamentos da fé e, finalmente, se separa a fé da Cap. XX ............................................................................................................. 442
filosofia ....................................................................
................... 307
Cap . XV Onde se mostra que nem a teologia está ao serviço da
razão, nem a razão da teologia, e por que motivo estamos
persuadidos da autoridade da Sagrada Escritura .............. 315

446 • 1 447

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