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FACULDADE INTERNACIONAL SIGNORELLI - FISIG

Curso de Psicologia Hospitalar

Fernando Pena Miguel Martinez

Medicalização do Parto e Relações de Gênero:


desafios para a psicologia hospitalar

São Paulo
2020
Faculdade Internacional Signorelli
Medicalização do Parto e Relações de Gênero: desafios para a psicologia hospitalar

Artigo Científico apresentado à Faculdade Internacional


Signorelli como requisito parcial para a conclusão do Curso de
Pós-graduação Lato sensu em Psicologia Hospitalar.

Autor: Fernando Pena Miguel Martinez


Orientador: Julianna Siciliano de Araújo

APROVADA em _______ de __________________ de __________.

Prof._____________________________

Prof._____________________________

___________________________________________________
Orientadora

SÃO PAULO
2020

RESUMO
Propomos uma reflexão sobre o desenvolvimento da ciência obstétrica e das práticas de
atenção à saúde da parturiente no Brasil, questionando quais foram os processos históricos
que significaram a experiência da gestação e do parto como evento patológico e, portanto,
requerente de intervenção médica. A medicalização do parto é compreendida como um
reflexo do processo em curso de medicalização da sociedade, e uma de suas consequências é a
naturalização da experiência da mulher atrelada às rotinas institucionais e seu impacto na
percepção da autonomia, provocando efeitos adversos na qualidade e no desfecho de seu
trabalho de parto. A cena do parto é um analisador das práticas de assistência de saúde da
mulher, no qual se formula uma racionalidade prática e localiza cada agente segundo um
repertório de ações e condutas esperadas, como também indica o lugar reservado à autonomia,
à historicidade e à experiência da mulher nos processos de nascimento. Cria-se o paradoxo no
qual o acesso a mais tecnologias não equivale ao cuidado às necessidades da mulher, tornando
a cena do parto em uma cena de desamparo, no qual ela fica vulnerável a uma sequência de
violências físicas e simbólicas, comumente nomeadas de violências obstétricas. Estas podem
interferir nas condições subjetivas para que esta mulher signifique esta experiência e se
estruture para as etapas seguintes. Por fim, propomos refletir sobre os desafios e
potencialidades da psicologia na realidade obstétrica que conhecemos, favorecer a
humanização do atendimento de parto e nascimento, e desenvolver práticas onde a
maternidade real seja acolhida.

PALAVRAS-CHAVE: Medicalização do parto; Gênero e Subjetividade; Psicologia


Hospitalar; Psicologia Obstétrica;

ABSTRACT

We propose a reflection on the development of obstetric science and health care practices for
parturient women in Brazil, questioning what were the historical processes that meant the
experience of pregnancy and childbirth as a pathological event and, therefore, requiring
medical intervention. The medicalization of childbirth is understood as a reflection of the
ongoing medicalization process of society, and one of its consequences is the naturalization of
the woman's experience linked to institutional routines and its impact on the perception of
autonomy, causing adverse effects on quality and outcome of your labor. The childbirth scene
is an analyzer of women's health care practices, in which practical rationality is formulated
and locates each agent according to a repertoire of expected actions and behaviors, as well as
the place reserved for autonomy, historicity and experience. of women in birth processes. The
paradox is created in which access to more technologies is not equivalent to caring for the
needs of women, turning the scene of childbirth into a scene of helplessness, in which she is
vulnerable to a sequence of physical and symbolic violence, commonly called violence
obstetric. These can interfere in the subjective conditions so that this woman means this
experience and is structured for the following steps. Finally, we propose to reflect on the
challenges and potential of psychology in the obstetric reality we know, to favor the
humanization of childbirth and birth care, and to develop practices where real motherhood is
welcomed.

KEYWORDS: Medicalization of childbirth; Gender and Subjectivity; Hospital Psychology;


Obstetric Psychology;
SUMÁRIO

Introdução ............................................................................................................... 01

A destituição dos saberes e o assujeitamento dos corpos femininos...................... 04

A institucionalização do parto no Brasil ................................................................. 07

Qual o lugar da subjetividade nos processos de parto e nascimento?...................... 11

Considerações Finais .............................................................................................. 16

Referências Bibliográficas ...................................................................................... 18


Introdução
O século XX foi marcado por profundas transformações do paradigma de assistência
ao parto e nascimento no Brasil, caracterizado pelo imbricamento de agenciamentos
heterogêneos: técnico-científicos, societários, culturais, políticos e econômicos, dentre outros.
No cenário obstétrico atual, observa-se uma progressiva medicalização e hospitalização desse
evento fisiológico abalizada por uma série de saberes práticos e procedimentos invasivos
instituídos, e que tem resultado na perda da autonomia da mulher (SEIBERT et al., 2005;
GOMES et al., 2018). Desde os anos 1970, a medicalização do parto é tema de pesquisa nas
áreas das ciências sociais e das ciências da saúde, porém é a partir da década de 1980 que essa
pauta ganha força na reestruturação da assistência à parturiente. A Carta de Fortaleza (WHO,
1985 apud DINIZ, 2005), elaborada em conferência internacional organizada pela
Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS/OMS) foi um marco para a reorientação das
práticas. O documento recomenda

a participação das mulheres no desenho e avaliação dos programas, a


liberdade de posições no parto, a presença de acompanhantes, o fim dos
enemas, raspagens e amniotomia, a abolição do uso de rotina da
episiotomia e da indução do parto. Argumenta que as menores taxas de
mortalidade perinatal estão nos países que mantêm o índice de cesárea
abaixo de 10% e afirma que nada justifica taxa maior que 10%-15%.
(DINIZ, 2005: 630)

Em contraste com essas recomendações, no contexto brasileiro o índice de cesáreas na


rede pública de hospitais se aproxima de 40%, e sobe para 85% na rede privada (REHUNA,
2015). Movimentos pela humanização do parto e pelo protagonismo da mulher têm visado
discutir esses dados, questionando as relações de poder envolvidas na assistência, e no quanto
os procedimentos médicos e cirúrgicos estão baseados em evidência científica e em boas
práticas para a segurança da parturiente, ou se as intervenções se dão pela conveniência de
instituições ou profissionais e na violação do exercício dos direitos reprodutivos das mulheres.
Este é um paradoxo encontrado na assistência: apesar de que inicialmente a cirurgia cesariana
contribuiu com a queda da morbi-mortalidade materna e perinatal, seu uso inapropriado tem
impedido muitos países em diminuir este índice, pois submete mulheres e seus bebês a riscos
maiores e evitáveis. (DINIZ, 2005; NICIDA et al., 2019)

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Os cuidados obstétricos modernos têm naturalizado a experiência de mulheres em
rotinas institucionais, o que pode ter efeitos adversos na qualidade, nos resultados e na
experiência do atendimento durante o trabalho de parto e parto (BOHREN et al., 2017). Cabe
então perguntar que processos históricos significaram a experiência da gestação e do parto
como evento patológico e, portanto, requerente de intervenção médica, e como o parto foi
institucionalizado no ambiente hospitalar. Este levantamento histórico pode nos oferecer
subsídios para pensar a inserção de diferentes atores e seu potencial na transformação do
paradigma da assistência, em especial do profissional de psicologia, reorientando-a numa
perspectiva de garantia de direitos e autonomia, considerando a mulher como sujeito ativo do
processo de nascimento.
O movimento pela humanização do parto tem se voltado para a qualificação da
atenção num contexto de promoção de direitos humanos, sexuais e reprodutivos, e para a
formação de profissionais, capacitando-os para a implementação de práticas baseadas em
evidências científicas, seguras, de modo que a tecnologia e as intervenções estejam
submetidas às necessidades humanas, e não o contrário. (PINHEIRO; BITTAR, 2013)
Envolve também reconhecer o protagonismo da mulher no ato de parturição e a luta pelo
respeito de suas escolhas e autonomia pelos estabelecimentos de práticas de saúde. (LOPES et
al., 2009)
Com este artigo propomos refletir sobre a medicalização do parto, compreendido
como reflexo do processo em curso de medicalização da sociedade, e suas consequências aos
atores sociais que compõem a cena do parto e à autonomia da mulher. Para tal, faremos uma
revisão de literatura em bases científicas e bibliotecas universitárias de artigos, livros e outras
mídias impressas ou eletrônicas que versem sobre as intersecções entre medicalização do
parto e relações de gênero, levantando aspectos do desenvolvimento histórico das práticas
obstétricas e da institucionalização do parto no Brasil e problematizando-as sob a perspectiva
das leituras de gênero, evidenciando as relações de saber e poder que incidem sobre
parturientes e equipes de saúde de modo a colocar em análise os paradigmas de assistência
hegemônicos.
Sob a palavra gênero se encontram diversas concepções, mas, sobretudo, gênero é um
conceito relacional, que denota processos sócio-históricos que organizam como reconhecemos
e interagimos em sociedade por meio de dois tipos de pessoas criadas a partir da diferença
sexual: homem e mulher. Como categoria analítica, gênero denota relações de poder entre os

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sexos, constituídas e reproduzidas ao longo da vida de uma pessoa e na experiência social
mais ampla, nas quais os diferentes traços e capacidades humanas são assimetricamente
divididos e atribuídos a homens e mulheres (FLAX, 1991).

Gênero é, também, uma complexa metáfora para a ação humana, pois ao levantarmos
suspeita sobre o essencialismo proposto por certas narrativas sobre a relação entre biologia e
sociedade, podemos construir uma distância crítica sobre o conhecimento e colocar em debate
nossa corporificação – talvez nossos conceitos de biologia e natureza estejam mais enraizados
nas relações sociais do que supomos, e o conhecimento seja em parte efeito de uma relação
histórica de poder e dominação sobre diferenças; para Flax (1991: 219), “esse distanciamento
crítico pode ajudar a desobstruir um espaço no qual a reavaliação e a alteração de nossos
arranjos de gênero existentes se tornem mais possíveis”.
Como, então, diferenças sociais baseadas em gênero interferem no processo de
nascimento? A gestação é um processo que evidencia a corporeidade, remodelando
identidades e o lugar dos sujeitos na organização social, o que pode nos indicar as relações de
poder que regulam e produzem subjetividades. Podemos considerar o nascimento um evento
fisiológico complexo, cuja linguagem é cultural, uma vez que a forma como lidamos com o
parto é permeada por construtos sociais como o tipo de preparação, a escolha do local
apropriado para o trabalho de parto, das pessoas que assistem e estão envolvidas, do recurso à
tecnologia médica e à medicação e da participação da mulher nas decisões (FIGUEIREDO;
COSTA; PACHECO, 2002). Segundo Pinheiro e Bittar (2013: 592), os processos de gestar e
parir são acompanhados por rituais corporais que definem “o que esse corpo ‘é’ e como ele
‘pode’ ou ‘deve’ (re)agir em determinadas circunstâncias ou condições”. Nessa perspectiva,
como ao destacar as relações de gênero podemos analisar a experiência do parto? Segundo
Viera,

Não basta dizer que as concepções e representações sobre o corpo são


socialmente construídas, fazer isto é apenas nomear seu destino. É
necessário detalhar e relatar como se chegou a tal destinação, o quê,
quem estavam envolvidos neste processo e por quê. (VIEIRA, 2002:
69)

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As narrativas sobre a gestação, parto e puerpério podem explicitar a complexidade
desse processo. Analisar os modos como somos afetados por essas narrativas, as razões que
nos levam a valorizar determinadas experiências de maternidade, enquanto outras tendem a
ser problematizadas, pode nos ajudar a reorganizar as práticas de assistência e de formação
para garanti-la em um contexto de direitos humanos. É também perguntar-se como serviços
de saúde têm estruturado práticas que reinventam, ou reiteram, os modos de vivenciar o parto
e experimentar a maternidade. Compreendemos com o filósofo Michel Foucault (1997) que as
instituições são práticas que ordenam o espaço, o tempo, as normas, os valores e as atividades
segundo certas suposições e objetivos, e intervém nos processos de subjetivação através da
formulação de uma racionalidade prática, selecionando e aprimorando certas capacidades
humanas, enquanto outras serão restringidas segundo determinados fins. Tivemos por foco
compreender como o conhecimento prático e empírico se deslocou das mulheres para a
ciência médica, modificando sua experiência e envolvimento com os processos de
nascimento.
Da descrição do parto como um evento mecânico e cirúrgico à sua descrição
contemporânea como evento fisiológico e psicossexual, pode-se perscrutar uma mudança nas
relações de saber-poder sobre os corpos que o conhecimento e a técnica tornam visíveis.
Mattar e Diniz (2012) apontam que “a experiência da reprodução, assim como a da
sexualidade, já que construtos sociais, serão sempre mediadas por relações de poder”,
podendo configurar uma vivência de autonomia e prazer em relação à maternidade, bem como
de menos valia e sofrimento. Tais construções sociais estão ancoradas em processos
históricos, que desenvolveremos a seguir.

A destituição de saberes e o assujeitamento dos corpos femininos

O processo de medicalização do parto não é recente. Na Europa Ocidental, o partejar


foi tradicionalmente uma atribuição exclusiva de mulheres – curandeiras, parteiras e
herboristas – e suas organizações sob a forma de guildas. No entanto, no século XVI essas
práticas passam a sofrer perseguições e regulamentações tanto governamentais quando de
instituições religiosas. Acusadas de bruxaria, crimes sexuais, infanticídio, pactos com o diabo
e conspirações, essas curandeiras eram também culpadas pelo ato de curar. Frequentemente,
eram estas “bruxas” que prestavam algum tipo de assistência médica aos pobres e miseráveis,
e seu conhecimento empírico das ervas e outras práticas medicinais, numa confiança mais à

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observação da natureza e as relações de causa e efeito do que a fé ou aos ensinamentos da
doutrina, colocava em risco os dogmas da igreja. (EHRENREICH; ENGLISH, 1976) Através
de comissões municipais e eclesiásticas, um longo processo de regulamentação foi
estabelecido, colocando restrições à prática do partejar e a exigência da presença de físicos e
cirurgiões em caso de emergência ou de necessidade de uso de instrumentos cirúrgicos. As
justificativas para essa processual exclusão das mulheres dos trabalhos de cura giravam em
torno do pragmatismo, do empirismo e da imoralidade das curandeiras (VIEIRA, 2002).
Nesse contexto de crescente regulamentação e instrumentalização do parto, Nagahama
e Santiago (2005: 655) apontam que uso instrumental do fórcipe obstétrico “permitiu a
intervenção masculina e a substituição do paradigma não intervencionista pela ideia do parto
como um ato controlado pelo homem”, alçando a obstetrícia um reconhecimento entre às artes
cirúrgicas como disciplina técnica e científica. Com efeito, apenas dois séculos mais tarde
haverá as condições para a criação da obstetrícia, que passa a transformar essa área de
conhecimento em domínio da medicina, progressivamente destituindo os saberes tradicionais
de parteiras e delegando o partejar às salas cirúrgicas dos médicos, transformando o saber
acerca da cura das doenças um monopólio masculino. Segundo Anayansi Brenes,

mesmo antes de dominar técnicas como o fórceps e a cesariana com


sucesso para a mulher a criança durante o parto, a obstetrícia proclama
a sua exclusividade desde 1840. Também a partir deste período,
percebe-se o deslocamento de seu olhar para questões tais como
sexualidade, higiene e moral feminina. (BRENES, 1991: 137)

Com a passagem para o século XIX, as mulheres passaram a ser desqualificadas pelos
argumentos de serem não-objetivas, acientíficas, emocionais e frágeis. A construção do
conhecimento sobre a diferença sexual e os saberes médicos do corpo feminino evidenciam
uma relação conflitiva. Frígidas, imaturas, hormonalmente instáveis, histéricas e
potencialmente adoecedoras para os homens, assim eram descritas as mulheres em textos
médicos e outras práticas discursivas ao longo do século XIX e XX (SCULLY; BART, 1973;
ROHDEN, 2003; EHRENREICH; ENGLISH, 1973). Quando analisados, esses diferentes
textos nos ajudam a compreender o processo de medicalização do corpo feminino,
evidenciando as práticas de controle e domínio sobre mulheres.

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Para Rohden (2003), é fundamental compreender os aspectos culturais para analisar a
consolidação do discurso da diferença sexual nos textos médicos produzidos durante o século
XIX. Nestes textos, é possível identificar o que era definido como uma marca da natureza, e
aquilo que é apresentado como da cultura. A concepção da diferença de gênero enquanto a
presença de dois sexos biológicos distintos é historicamente localizada: até o século XVIII,
havia a percepção herdada dos gregos de que haveria apenas um sexo biológico, e que este
teria ao menos duas expressões de gênero. A hipótese era que os órgãos reprodutivos
possuíam a mesma essência: todos seriam dotados de pênis e testículos, porém a diferença
entre o homem e a mulher se dava pelo calor recebido ao longo da gestação. Na presença, o
órgão sexual se exterioriza, e na ausência, se interioriza. Este modelo de pensamento definiu a
diferença sexual em termos de graus de perfeição, estabelecendo uma hierarquia entre os
corpos masculinos e femininos.
O final do século XVIII, foi marcado por uma transição do modelo do sexo único para
o do dimorfismo sexual, estabelecendo uma diferença radical entre homens e mulheres. Se
antes os corpos estavam hierarquicamente organizados, agora a biologia colocava os corpos
em oposição, fomentando debates no qual era preciso atribuir outra justificativa à
desigualdade entre homens e mulheres. Como sugere o psicanalista Jurandir Freire Costa:

Os sujeitos, até então avaliados moralmente por seus atos,


pensamentos e sentimentos religiosos ou pelos valores da
hierarquia aristocrática, passam a ser julgados pela
conformidade à finalidade sexual de suas supostas “naturezas
biológicas”. Na anatomia estava o destino psicológico-moral dos
viciosos e virtuosos. (COSTA, 2001)

As tentativas de definição da diferença sexual e dos papéis de gênero atribuídos a


homens e mulheres estavam conforme a manutenção da ordem social. O modelo binário da
diferença sexual tem um valor fundamental para naturalizar as diferenças sociais como
destino anatômico. É nessa transformação do imaginário social que nasce uma nova moral do
corpo e da vida, surgindo as noções de “mãe higiênica”, “mãe por natureza”, “boa esposa”,
“rainha do lar” e de “instinto materno”, arrogando à mulher a tarefa de educar e cuidar dos
seus filhos em nome do bem-estar da nação e de corresponder aos impulsos sexuais de seu
marido. Forja-se uma nova imagem de mulher e de seu papel na organização social, com

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respaldo da medicina em seus manuais de puericultura e outros textos médicos. (CARNEIRO,
2011; BRENES, 1991).
Ao analisar textos ginecológicos publicados entre 1943 e 1972 nos Estados Unidos,
Scully e Bart (1973) evidenciam um viés persistente no qual os médicos preocupam-se mais
com as demandas do companheiro da paciente do que a saúde da própria mulher. Nestes
textos, as mulheres são descritas como anatomicamente destinadas para a reprodução, a
nutrição e a felicidade dos maridos, tomando como inato um desejo sexual menor que os
homens e voltado mais à procriação que ao prazer. Assim, nos textos ginecológicos encontra-
se uma série de recomendações para que a mulher adulta desempenhe a relação marital, como
atender as demandas sexuais do homem e preocupar-se com sua satisfação, sendo
diagnosticada como frígida caso não correspondesse o desejo masculino.
Ehrenreich e English (1973) discutem que o sexismo na produção de conhecimento
médico também é acompanhado por um viés de classe social. Se por um lado o discurso
biomédico descrevia as mulheres de classe média e alta como frágeis, delicadas e
inerentemente doentes, tornando-as na clientela privilegiada da classe médica, acreditava-se
que mulheres da classe trabalhadora eram robustas, adoeciam menos e sentiam menos dor.
Por outro lado, os discursos médicos descreviam estas últimas como vetores potenciais das
doenças, demandando ações de saúde pública para o controle de seus corpos, mesmo que na
prática elas estivessem mais sujeitas a quadros de desnutrição, descanso inadequado, doenças
contagiosas e complicações no parto.
O mito da fragilidade feminina teve por efeito naturalizar os papéis sociais das
mulheres, desqualificando as práticas curativas leigas por elas desempenhadas, ao tempo que
as tornou pacientes potenciais da prática médica que estava em vias de se consolidar. Este
discurso ganhou ares científicos através de diferentes teorias fisiológicas, como a “lei de
conservação de energia”, que postulou a presença no organismo humano de uma quantidade
de energia fixa que era direcionada entre os órgãos e as funções. Uma das consequências
deste postulado era atribuir uma função central aos órgãos reprodutivos na vida biológica da
mulher, desse modo, por trás de toda queixa feminina, de enxaqueca à indigestão e escoliose,
os médicos encontravam na etiologia das doenças “desordens” do útero e dos ovários. Por sua
vez, o interesse das mulheres por atividades intelectuais, científicas, políticas e mesmo
sexuais, em suma, atividades que não se conformavam aos estereótipos de gênero da época,
era interpretado como potencialmente patológico, pois ao desviar as energias dos órgãos

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reprodutivos as mulheres estariam suscetíveis à enfermidade orgânica e mental.
(EHRENREICH; ENGLISH, 1973)

A institucionalização do parto no Brasil

No Brasil da época do Império, os partos foram majoritariamente acompanhados por


aparadeiras e comadres, mulheres que detinham um saber empírico sobre o corpo feminino,
doenças venéreas, práticas abortivas e outros cuidados, assistindo a parturiente em seu
domicílio até meados do século XIX. Cordeiro (2011, p. 26) aponta que “predominava uma
espécie de saber-curar religioso e praticado por mulheres que recorriam aos seus quintais e
suas hortas, misturando técnicas indígenas, africanas e portuguesas, para encontrar o remédio
dos males do corpo”. Estas práticas, transmitidas pela história oral através das gerações entre
mulheres, eram vistas como ameaça por representantes da igreja católica a seu poder moral,
por autoridades civis em seus objetivos sanitários de diminuir a mortalidade e controlar a
natalidade pública, e pela própria corporação médica e seus interesses de classe.
A assistência ao nascimento era uma atividade pouco valorizada por médicos, pois
esta não estava à altura do conhecimento técnico-científico das outras práticas cirúrgicas,
considerado o ápice do saber médico na intervenção do curso das doenças no homem
(NAGAHAMA; SANTIAGO, 2005). As escolas médicas terão uma função basal para a
valoração da obstetrícia enquanto arte cirúrgica e na transformação do corpo feminino como
objeto médico, e para isso a classe médica constituinte necessitará lidar com dois desafios: a
criação de um local para a observação do corpo, e trazer a mulher para suas clínicas, hospitais
e consultórios. (BRENES, 1991) Desse modo, os discursos médicos do século XIX se
voltarão à defesa da construção das maternidades, instituição hospitalar voltada para o
nascimento, em benefício do ensino médico e do desenvolvimento da prática obstétrica.
(VIEIRA, 2002)
Com a chegada da corte brasileira no país, surgem as primeiras academias médico-
cirúrgicas no país, nas quais as artes obstétricas passam a ser incluídas dentro do ensino das
práticas cirúrgicas. Na Escola do Rio de Janeiro, a disciplina passa a fazer parte do currículo a
partir de 1808, enquanto na Escola de Salvador seu início data de 1819. Por décadas o ensino
médico será primordialmente teórico, baseado em compêndios importados da Europa, e a
prática obstétrica simulada em bonecos (VIEIRA, 2002). Em 1832, as escolas cirúrgicas se
formalizam em faculdades de medicina e, com a vinda de parteiras do continente europeu,

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entre 1833 e 1876 tem início os dois únicos cursos voltados para parteiras no Brasil Império.
Destinado ao público feminino, apenas mulheres jovens e que atestassem estar de acordo com
a moral e os bons costumes poderiam ingressar no curso, o que levou à progressiva exclusão
das parteiras tradicionais – indígenas, caboclas e negras – da profissionalização da prática.
(COLETIVO FEMINISTA NÓS SOLTAS, s/d)
Segundo Diniz (1996), apesar da criação das faculdades de medicina e da primeira
maternidade no interior da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, era raro os médicos
que se formavam terem acompanhado algum parto ou exame obstétrico. As enfermarias
permaneciam vazias e uma das dificuldades para o ensino era a resistência das mulheres em
fazer uso do hospital e submeter seu corpo despido ao olhar masculino, mas também o
aspecto competitivo da prática liberal, disputado com as parteiras diplomadas e práticas. Os
médicos precisavam, ainda, construir uma imagem de confiança para a população do Brasil
Império, e as mulheres tinham receio da inexperiência dos médicos e suas práticas obstétricas
rudimentares (BRENES, 1991). Somava-se a isto a preferência pela companhia das parteiras
por razões humanitárias, psicológicas e ao tabu da exposição do corpo no momento do parto.
(NAGAHAMA; SANTIAGO, 2005)
A ausência de práticas higiênicas na rotina hospitalar coadunava com outro ponto de
resistência das mulheres em frequentar os hospitais: a febre puerperal, uma entidade
nosológica que se tornou endêmica. Os médicos precisavam contornar essas resistências para
atrair a clientela feminina a suas clínicas e tomá-la por seu objeto de estudo. O advento das
práticas de assepsia ao final do século XIX leva a uma reorganização da assistência hospitalar,
diminuindo os riscos da infecção puerperal e, consequentemente, a mortalidade, trazendo o
ensino médico a outro patamar para o avanço das práticas obstétricas cirúrgicas. No entanto,
ainda restava o desafio de afastar as parteiras da cena do parto e nascimento. Segundo
Carneiro,

Ainda que a palavra médica perpassasse a sociedade e conquistasse


adeptos, um grupo considerável de mulheres seguia dando à luz em
casa, amparadas por outras mulheres, ou recorria aos médicos, mas,
ainda assim, também orientadas pela prática leiga das parteiras, dando
ensejo, com isso, a um híbrido de medicina erudita e de saber curar.
(CARNEIRO, 2011: 30)

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Se por um lado as parteiras colaboraram com o desenvolvimento do saber médico,
compartilhando seus conhecimentos com os jovens médicos e inspirando confiança às
mulheres na assistência ao parto em âmbito institucional (RODHEN, 2001), por outro a
tradição do parto domiciliar por elas praticado foi sistematicamente desqualificada. Na
segunda metade do século XIX, o discurso da obstetrícia busca desmoralizar a imagem
pública das parteiras e a confiabilidade em sua competência, cerceando suas práticas através
de regulamentações pelos conselhos médicos (VIEIRA, 2002). Para a construção de sua
autoridade científica e seu valor social, a medicina passa a se valer de dois temas: a higiene
pública e o aprimoramento da população.
A higiene pública será debatida entre 1870 e fins do século XIX, com fins de atender
os objetivos sanitários de combater a insalubridade dos meios urbanos, e a saúde passa a ser
um problema de autoridades civis, que visam o controle e prevenção de doenças, bem como o
controle das taxas de mortalidade e natalidade. Neste ideário, os discursos médicos irão
construir a figura da “mãe dedicada” e conceito de “natureza feminina”, delegando para a
mulher a tarefa de preservar a infância, compreendida como uma das estratégias para o
controle da mortalidade. (VIEIRA, 2002) Com efeito, à ideia de gestação como destino do
corpo feminino, irá se somar à maternidade como dever patriótico. Isto nos leva ao segundo
tema dos discursos médicos: o aprimoramento da população e suas preocupações eugênicas.
A medicalização do corpo feminino fez parte de uma estratégia disciplinar, visando a
tutela e educação das mulheres em função do projeto social de modernização do país e suas
instituições. No entanto, é importante frisar que esse processo não atinge todas as mulheres da
mesma forma. O início do século XX é marcado pelo surgimento de discursos médicos
respaldados na ideia de aperfeiçoamento da população, visando a produção de indivíduos
física e moralmente adequados à serviço da nação, e dentre este ideário, cabe destacar o papel
que desempenhou o discurso de refinamento da raça. Calcadas no racismo pseudocientífico
de teorias advindas da Europa e dos Estados Unidos, o corpo branco torna-se a referência
étnica a ser alcançada pelas políticas do estado brasileiro, de forma a legitimar a desigualdade
social e naturalizar a hierarquia entre os corpos (SCHWARCZ, 1996). A partir da vigilância
sobre o casamento inter-racial e práticas como o exame pré-nupcial e a esterilização de
doentes, e de teorias sobre o equilíbrio funcional e morfológico dos indivíduos, constitui-se o
juízo que a boa saúde consiste na eliminação dos sinais de enfraquecimento, dentre as quais
estavam características étnicas como a coloração da pele (GOELLNER, 2008). Através das
teses de branqueamento da população, o corpo feminino branco será enaltecido em detrimento

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dos outros corpos, evidenciando um projeto de sociedade excludente e racializado, com claros
objetivos eugenistas.
Com o fim da República Velha e o início do Estado Novo, nos anos 1920 começam a
ser desenhados os primeiros programas de saúde materno infantil, com foco na dimensão
biológica e nos cuidados médicos, amparados por um lado pelo discurso higiênico de
conservação e defesa da vida, por outro, pelo discurso funcionalista da sexualidade feminina,
reduzindo-a à sua função reprodutiva e de interesse social. As políticas governamentais
marcam a institucionalização da atenção materno-infantil, transformando a maternidade e a
infância em assuntos de saúde pública. As ações dos programas são voltadas especialmente às
camadas urbanas empobrecidas nas atividades de puericultura, posteriormente agregando os
cuidados à gestação e amamentação, estendendo o alcance e a apropriação do corpo feminino
pela medicina (NAGAHAMA; SANTIAGO, 2005).
Dentre as práticas de atenção médica, o parto passará a ser descrito como uma
emergência altamente perigosa para a mulher e seu bebê, requerendo do médico uma
intervenção em um ambiente apropriado. Segundo Tanaka (1995), a institucionalização do
parto no Brasil consolidará após a Segunda Guerra Mundial, com o desenvolvimento do
conhecimento médico nos campos da assepsia, cirurgia e anestesia, ampliando as
possibilidades de intervenção na cena do parto. Este modelo é apontado por Seibert et al.
(2005) como tecnocrático, no qual a mulher é despersonalizada pela norma institucional e as
tecnologias são supervalorizadas em nome da segurança durante o trabalho de parto. O
paradigma intervencionista galga sua hegemonia, facilitado pela submissão do corpo feminino
às rotinas hospitalares, e tem como resultado o aumento progressivo de operações cesarianas:
de urgência obstétrica, a cesariana torna-se um procedimento banal nas salas de parto.
Nagahama e Santiago ponderam que

Apesar da hospitalização ter sido, em grande parte, responsável pela


queda da mortalidade materna e neonatal, o cenário de nascimento
transformou-se rapidamente: simbolicamente, a mulher foi despida de
sua individualidade, autonomia e sexualidade, por meio do cerimonial
de internação – separação da família, remoção de roupas e de objetos
pessoais, ritual de limpeza com enema, jejum, não deambular. Ou seja,
a atenção foi organizada como uma linha de produção e a mulher

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transformou-se em propriedade institucional. (NAGAHAMA;
SANTIAGO, 2005: 656)

Como Pinheiro e Bittar (2013) apontam, a institucionalização do parto acabou por


gerar o isolamento da mulher na cena de parto. Afastada de seu acompanhante e de sua rede
familiar e social, a parturiente passa a ser objeto de intervenção de uma assistência organizada
para atender as necessidades e demandas dos profissionais de saúde e seus imperativos
tecnológicos, deixando-a vulnerável a maus-tratos durante o parto, dentre os quais destacamos
o abuso físico e verbal, o estigma, a discriminação, a negligência e a negação da autonomia.
Essa sequência de violências físicas e simbólicas pode interferir nas condições subjetivas
necessárias para que esta mulher possa se apoderar de seu novo papel e vivenciar a
maternidade com autonomia e prazer.

Qual o lugar da subjetividade nos processos de parto e nascimento?

Nos blocos anteriores, apresentamos alguns dos processos históricos que consolidaram
o corpo feminino como objeto de saber da Medicina e a institucionalização do nascer no
Brasil, transformando a gestação da mulher em uma questão de saúde pública. A
hospitalização do parto foi um marco para o desenvolvimento do ensino e da pesquisa
médicas, e através do cerimonial de internação e outras iatrogenias hospitalares, nas quais se
inserem as violências obstétricas, a mulher é despida de sua subjetividade para se tornar
objeto de conhecimento e de intervenção das práticas de atenção médica e seu corpo é
transformado “em propriedade institucional no processo do parto e nascimento”
(NAGAHAMA; SANTIAGO, 2005: 657).
A eleição da maternidade como o local privilegiado do parto em nossa cultura prevê a
inserção da mulher em uma certa ordenação de espaço e de tempo que prescrevem uma certa
organização do corpo da parturiente e estabelece expectativas em relação a seu
comportamento ao longo do trabalho de parto. Espera-se que a mulher seja paciente, e isto
tem um especial significado no contexto hospitalar segundo o psicanalista Sidnei Casetto, pois
indica uma certa atitude psicológica esperada:

Ao entrar no hospital, o paciente deve submeter-se à sua


disciplina: seguir suas normas e rotina. Espera-se que seja

12
receptivo e colaborador com o tratamento, mas passivo. Não
deve ficar deprimido, não deve ficar muito emocionado e,
principalmente, não deve investigar nem questionar seu
diagnóstico ou tratamento. (CASETTO, 2004: 152)

Assim, compreendemos a cena do parto como um analisador das práticas de


assistência de saúde da mulher, no qual se formula uma racionalidade prática e localiza cada
agente segundo um repertório de ações e condutas esperadas– como também indica o lugar
reservado à autonomia e à experiência da mulher nos processos de nascimento.
Historicamente, as maternidades e instituições que acompanham o ciclo gravídico-puerperal
foram estruturadas segundo as demandas dos profissionais de saúde, de produção de saberes e
de clientela, e de objetivos de políticas públicas de controle de natalidade e mortalidade
materna.
Ao longo do século XX, percebemos na construção do discurso obstétrico um
preterimento das demandas das mulheres na formulação de como querem viver e conduzir seu
processo de parto e nascimento. A construção do imaginário de ‘mãe dedicada’, de ‘natureza
feminina’ e do mito da fragilidade feminina pelos discursos médicos tiveram por efeito a
modulação da sexualidade feminina e o estabelecimento de novos estereótipos de gênero na
organização social, agora segundo a diferença sexual biológica. Aqui, evidencia-se a ciência
como uma prática social, que em conjunto com o discurso institucional das políticas de saúde
e das práticas de atuação médica, transformam a diferença em desigualdade, onde sob a
justificativa de cuidado em saúde reproduz-se práticas de assujeitamento e de tutela da mulher
em relação a seus corpos. Como a investigação foucaultiana (1997) sugere, não se trata de
lamentar as formas pelas quais somos assujeitados pelo Estado, mas de compreender as
estratégias e procedimentos de regulação nos quais as subjetividades se tornam objeto, alvo e
recurso fundamentais para a reprodução da organização social.
Se por um lado destacamos a categoria de gênero como elemento analítico
fundamental das relações estruturais de poder no processo de parturição, a categoria raça
também deve ser lembrada em nossas análises e futuras investigações. Estudos como Leal et
al (2017: 6) apontam que as violências obstétricas ganham uma configuração particular
quando as relacionamos ao racismo estrutural no Brasil, chamando atenção às iniquidades
raciais da atenção pré-natal e parto ao identificar disparidades raciais no processo de atenção à
gestação e ao parto, “evidenciando aspectos do funcionamento cotidiano dos serviços de

13
saúde que resultam em benefícios e oportunidades diferenciadas segundo a raça/cor, com
prejuízo para as de cor mais escura”. Se desejamos caminhar para uma melhora da qualidade
da atenção à saúde e de proteção aos direitos da mulher, será preciso avançar em uma utopia
ativa no enfrentamento da desigualdade de gênero e das iniquidades raciais.
O modelo tecnocrático e o paradigma intervencionista de atenção à saúde da
parturiente significam o parto como um evento de emergência médica, perigoso para a mulher
e seu bebê, e justificam o centro cirúrgico da maternidade como a cena de parto privilegiada
para os processos de nascimento. Em nome da segurança, a mulher é separada de familiares,
pessoas significativas e de seus pertences, e é submetida à chamada “cascata de intervenções”,
procedimentos destinados a acelerar o trabalho de parto e nascimento, por vezes dolosos e até
perigosos, e que os efeitos indesejados dessas intervenções serão respondidos com novas
intervenções, como: o uso de diversas substâncias para indução do parto; o rompimento
artificial de membranas antes e durante o parto; a episiotomia; a manobra de Kristeller, entre
outras (DINIZ; CHACHAM, 2006). Em nome da mesma segurança, por vezes a parturiente é
privada de uma assistência baseada em boas práticas (TESSER et al., 2005).
Essa sequência de violências físicas e simbólicas, nomeadas violências obstétricas,
podem interferir nas condições subjetivas para que esta mulher signifique esta experiência e
se estruture para as etapas seguintes. Estudos têm apontado uma relação significativa entre a
experiência de parto e as repercussões emocionais na mulher e no vínculo que vai construir
com seu bebê, indicado alguns marcadores que influenciam a experiência de parto: a
consensualidade na escolha do tipo de parto; a informação recebida por profissionais de
saúde; a capacidade em lidar efetivamente com a experiência de parto; a sensação de
autonomia; o suporte social recebido; a dor (CONDE et al., 2007; FIGUEIREDO et al.,
2002). Bohren et al (2017) aponta que quando as mulheres avaliam sua experiência de parto,
destacam-se quatro variáveis: quantidade de apoio dos cuidadores, qualidade dos
relacionamentos com os cuidadores, envolvimento na tomada de decisões e expectativas
elevadas ou experiências que superam as expectativas.
A experiência negativa de parto tem sido associada a: procedimentos médicos,
particularmente quando acontecem de forma intrusiva, inesperada e sem conhecimento da
mulher; e a desautorização da mulher enquanto sujeito deste processo. Este efeito
desautorizador pode elevar níveis de ansiedade e dor, dificultando a ação da musculatura
uterina e tornando o trabalho de parto/parto mais difíceis, implicando em maior intervenção

14
médica, além do sentimento de impotência e incapacidade para lidar com a situação (CONDE
et al., 2007).
Uma das consequências da medicalização do parto é a naturalização da experiência da
mulher atrelada às rotinas institucionais e seu impacto na percepção da autonomia,
provocando efeitos adversos na qualidade e no desfecho de seu trabalho de parto. Nesse
contexto, o parto pode ser vivido como traumático e angustiante, e cria-se um hiato nesta
experiência, no qual o sofrimento da mulher será individualizado, enquanto o ambiente onde
se deu sua experiência de parto será desresponsabilizado das consequências psíquicas vividas.
Iaconelli (2005: 5) reflete sobre este lugar paradoxal reservado às parturientes em nossa
cultura, “onde o cuidado com o amparo psíquico não corresponde ao cuidado com o corpo”, e
o parto torna-se uma cena de desamparo, uma vez que a ênfase na tecnologia e na
manipulação do corpo agem desarticulados da história, da erogeneidade e da singularidade
desta mulher. Para que possa vivenciar a maternidade com autonomia e prazer, caso esta seja
sua escolha, compreendemos com Iaconelli que

a impossibilidade de criar um ambiente que dê conta das experiências


vividas no parto afetará perniciosamente as etapas fundamentais que se
seguem. Como bem nos aponta Winnicott, estas experiências dão os
subsídios da relação de vínculo entre mãe e bebê, e, consequentemente,
estão na base da constituição do sujeito. (IACONELLI, 2005: 2)

Consideramos que o suporte emocional e social da mulher ao longo de sua gestação,


parturição e puerpério é ponto essencial para a qualificação da assistência materna, e merece
uma reflexão especial pelos serviços de saúde na construção de seus processos de trabalho.
Para Costa et al (2004: 161), “a avaliação da forma como a mulher viveu o parto pode facultar
aos profissionais de saúde a indicação da necessidade de medidas de prevenção de potenciais
dificuldades de ajustamento psicológico decorrentes de uma má experiência de parto”. O
suporte institucional pode ter um impacto positivo na experiência emocional da mulher, na
evolução do trabalho de parto e nas condições de saúde da mulher e de seu bebê (PINHEIRO;
BITTAR, 2013). O suporte psicossocial também pode proteger a subjetividade da mulher de
uma experiência marcadamente negativa de parto, bem como amparar, acolher e transformar
progressivamente as repercussões emocionais que vivenciou (CONDE et al., 2007).

15
Os aspectos psicológicos envolvidos nas situações de gestação e parto são complexos,
e buscamos apresentar um olhar sobre as práticas culturais e históricas que modelaram os
processos de parturição em nossa sociedade brasileira. Nesse contexto, é de suma importância
refletir sobre os desafios e potencialidades da psicologia na realidade obstétrica que
conhecemos, na qual a medicalização do corpo da mulher e a institucionalização do parto
refletem na construção de estereótipos de gênero, na perda da autonomia da mulher e na
dessubjetivação de sua experiência, tornando o momento do parto um tempo especialmente
vulnerável às violências físicas e simbólicas.
Ainda temos uma literatura em construção sobre a atuação da psicologia na área
obstétrica, e dentre as técnicas mais conhecidas está o Pré-Natal Psicológico, atividade
voltada à psicoprofilaxia do ciclo gravídico-puerperal e que consiste na oferta de acolhimento
e de orientação psicológica à mulher, seu/sua companheiro/a e seus familiares
(BORTOLETTI, 2007). No entanto, apesar da crescente inserção do psicólogo no contexto
hospitalar e do reconhecimento pela equipe hospitalar da importância dos aspectos subjetivos
das pacientes no processo de trabalho de parto, raras vezes são chamados para atuar na
psicoprofilaxia de gestantes e puérperas, e o serviço de psicologia é comumente solicitado em
momentos que desafiam os limites profissionais da equipe, como no caso de bebês com má
formação ou deficiência, desfechos complicados nos partos, aborto e óbito fetal, morte
materna e outras intercorrências (ARRAIS; SILVA; LORDELLO, 2014).
Nestes momentos estamos diante da impotência que acomete mães e equipes de
saúde, e torna-se mais evidente a experiências de sofrimento e as formas de (não) lidar com
ele. No entanto, é menos comum a percepção que uma gestação de risco habitual também
possa gerar sofrimento, pois os constructos sociais sobre a maternidade de que dispomos
supõem a gravidez como um processo natural e a vinda do bebê um momento de realização
para a mulher.
Ademais, a dor é um elemento relevante para compreender os efeitos perniciosos de
uma maternidade idealizada, seja pela própria mãe, quanto pela equipe de saúde. Sob a
expressão “parirás na dor”, há, ainda, a construção de um imaginário social que faz equivaler
a experiência da dor no processo de parto à experiência de sofrimento, e por outro lado supõe-
se a negativa, de que um parto sem dor, almejado na cirurgia cesariana, será uma experiência
sem sofrimento. Este paradoxo nos mostra a significação sobre a dor no parto operada pela
medicalização, que entende a dor como uma sensação a ser evitada, senão abolida, e que o
trabalho de parto deva ser encurtado. Em outros modelos de cuidado e de posturas não

16
invasivas, abre-se a possibilidade que a dor seja ressignificada como uma passagem
importante na vida de uma mulher que escolhe o transcurso da maternidade, marcando uma
nova relação com seu corpo e a preparando para um novo papel social. Uma das formas de
atuação do psicólogo nesse contexto é seu trabalho com o imaginário da dor nos processos de
parturição, auxiliando a mulher na compreensão dos aspectos emocionais envolvidos na
fisiologia do parto e na oferta de recursos para o manejo da dor.
Compreendemos que a inserção efetiva do psicólogo na equipe é uma tarefa em
contínua construção, e um de seus desafios está em sensibilizar a equipe às contribuições da
psicologia para a área da saúde, sendo a intervenção nas situações de crise uma de suas
possibilidades, e não a única. Para isso, o profissional precisará desenvolver uma postura
ativa, através de discussão de casos, atendimentos psicoterápicos diversos, avaliação do
estado psíquico da parturiente, orientações terapêuticas no trabalho de parto e para o manejo
da dor, e outros encaminhamentos, intervindo na direção do empoderamento da mulher em
seu processo de parto e nascimento, de modo a contribuir para que o trabalho de parto se torne
mais humanizado.

Considerações finais

Propusemos neste artigo uma reflexão sobre o desenvolvimento histórico da ciência


obstétrica e das práticas de assistência à saúde da parturiente, visando compreender as
relações de saber e poder que incidem sobre parturientes e equipes de saúde no paradigma de
assistência hegemônico. A medicalização do corpo feminino e do parto são resultado de um
longo processo de desapropriação dos conhecimentos práticos e empíricos das mulheres pela
ciência médica, modificando radicalmente a experiência e o envolvimento com os processos
de nascimento em nossa cultura. Nagahama e Santiago (2005: 656) ponderam nesta
perspectiva que “o preço da melhoria das condições do parto foi a sua desumanização e a
transformação do papel da mulher de sujeito para objeto no processo do parto e nascimento”.
E, complementamos, o avanço nos cuidados tecnológicos com o corpo da parturiente muitas
vezes deixou de lado os cuidados com sua subjetividade, transformando a cena do parto em
uma cena de desamparo.
Visamos apontar que a categoria gênero é um analisador dos processos de subjetivação
em curso, modelando o lugar dos sujeitos e suas identidades na organização social, e como ela
permite colocar em análise a pretensa neutralidade dos discursos científicos. No entanto, não

17
basta denunciar a participação da ciência na manutenção das desigualdades de gênero,
refletidas na baixa qualidade de atenção à saúde da mulher em nossa realidade obstétrica. É
preciso também tensionar as formas de fazer ciência, e apostar na reflexividade das práticas e
na produção de conhecimento implicado na transformação do paradigma de assistência.
Concordamos com Tesser et al. (2005) sobre a urgência de reformar as práticas obstétricas
tanto ao nível da assistência quanto da formação para garanti-las em um contexto de
afirmação de direitos humanos e da autonomia da mulher, garantindo a qualidade de vida
desde o nascimento com uma assistência humanizada e evitando intervenções desnecessárias,
e isto pode ocorrer através da inserção de outros profissionais no acompanhamento das
parturientes, em especial para as gestações de risco habitual. Enfatizamos que entre estes
profissionais, o(a) psicólogo(a) pode favorecer a humanização do atendimento de parto e
nascimento, bem como o desenvolvimento de práticas onde a maternidade real seja acolhida.

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