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UFO!> - ICHS I MA RI ANA


Copyright © 2001 by Editora Revan Ltda. Os AUTORES
Todos os direitos reservados no Brasil pela Editora Revan Ltda. Nenhuma Antonio Carlos Peixoto. Cientista político, é professor da UERJ.
parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, Publicou diversos artigos e capítulos de livros no Brasil e no exterior, desta-
cando-se ''Democracia e Autoritarismo na América Latina: fatores de legiti-
eletrônicos ou via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.
midade", in América Latina e a Crise Internacional, org, Roberto Bouzas,
Graal, 1985; "A Integração na América Latina", inAmérica Latina; globaliza-
fiio e integração solitdria, Fundação Alexandre de Gusmão, 1997; ''La théorie
REVISÁ O de la dépendence: bilan critique", in Rcvue Française de Science Politique,
Roberto Teixeira 1977.
Julieta da Motta Cunpos Antonio Edmilson Martins Rodrigues é historiador e professor em
cursos de pós-graduação da UERJ, da PUC-Rio e da UFF. Ret:entemente,
CAPA publicou dois livros: Tempos Modernos, em co-autoria com Francisco Falcon,
pela Editora Civilização Brasileira, indicado para o Prêmio Jabuti 2000, e
(Ilustrada com Cena de rua, século XIX, autor anônimo) João do Rio. A cidade e o poeta, Editora da Fundação Getúlio Vargas. Atual-
Cristina Rebello mente, prepara dois novos livros, tun sobre José de Alencar e outro sobre
Nair de Tefé.
lMPRESSÁO Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves. Historiadora, é professora da
(em papel otf-set 75g, após paginação elen·ônica em tipo Galliard BT, 11/13) UERJ e pesquisadora do CNPq. Autora de O Imphio do Brasil (Nova Fronteira,
Ebal/Coopag 1999), e autora ou co-autora de diversos artigos em revistas e periódicos no Bra-
sil e no ei..1:erior (Tempo, Ler História, Oceanos, entre outros) e de verbetes em di-
CIP-Brasil. Catalogação na Fonte cionários históricos (Diciondrio da história da colonização portuguesa no Brnsil, Lis-
boa Verbo, 1994; Encyc!opedia of Ln.tin American History and Culture, New York,
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Charles Scribner's Sons, 1996 e Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808), Objeti-
va, 2000)
L666
O liberalismo no Brasil imperial: origens, conceitos e prática I An- Lucia Maria Paschoal Guimarães. Hisrtoriadora, é professora da UERJ
tonio Carlos Peixoto ... [et ai.]; Lucia Maria Paschoal Guimarães (org.), Maria e pesquisadora do CNPq. Publicou diversos artigos e capítulos de livros no Brasil
e no ei..1:erior, destacando-se ''Debaixo da Imediata Proteção de Sua Majestade
Emilia Prado (org.). - Rio de Janeiro: Revan: UERJ, 2001. Imperial: O Instituto Histórico e C'rt:ográfico Brasileiro (1838-1889)". ln: RcPista
192p. do Instituto Histórico e Geogrdjico Brasileiro, nº 388, Rio de Janeiro, 1995; ''O tri-
bunal da posteridade". ln: O Estado como 'Vocação (Rio de Janeiro: ACCESS,
ISBN 85-706-228-5 1999, org. Maria Emília Prado).
Maria Emilia da C. Prado. Historiadora, é professora da UERJ. Publi-
l. Liberalismo- Brasil - História. 2. Brasil - Política e governo - 1822-1889. • cou artigos e capítulos de livros, destacando-se Em Busca do Progresso. A Politica
I. Peixoto, Antonio Carlos. II. Guimarães, Lucia Maria Paschoal. ill. Prado, dos engenhos centrais. 1875/1910, Rio de Janeiro, Papel & Virtual, 2000; ''O cava-
Maria Emilia. IV. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. leiro andante dos prináp,ios e das refom1as, Joaquim Nabuco e a política". ln: O
Estado corno Vocação. Idéias e prdticas politicas no Brasil oitocentista, Rio de Janeiro,
01-1011. Access, 1999, org. Maria Emilia Prado; "Govemabilidade, Democracia e Cida-
CDD 321.510981 dania no Brasil.". ln: América Ln.tina realidades y perspeaims. Editora da
Universidad de Salan1anca, 1997.
CDU 329.12(81)
Oswaldo Munteal Filho. Historiador, professor e pesquisador na
110701 130701 011103 UERJ, na PUC-Rio e no Arquivo Nacional. Publicou vários trabalhos, des-
tacando-se "A Academia Real de Lisboa e os dilemas da Razão do Mundo".
ln: &Pista Século XVIII, Lisboa, 2000; "Vitorino Magalhães Godinho no
Labirinto Ultramarino. As frotas, as especiarias e o mundo atlântico". ln:
Acerpo, v.12,1999; "Política e Natureza no reformismo ilustrado de D. Ro-
drigo de Souza Coutinho". ln: O Estado como Vocação. Idéias e Prdtiéas Políti-
cas no Brasil Oitocentista, org. Maria Emilia Prado, Access, 1999.
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Wanderley Guilherme conclui, reconhecendo o van- ÜRDEM LIBERAL, ESCRAVIDÃO E


guardismo de Alencar:
PATRIARCALISMO: AS AMBIGÜIDADES DO
Desconheço formulação mais radicalmente liberal da IMPÉRIO DO BRASIL.
organização e fwKionamento de wn sistema parla-
mentar, dando inclusive solução para o enigma demo- Maria Emília Prado
crático fw1damental. Por isso é que, na introdução, a-
firmei que José de Alencar, até prova em contrário,
surge como wn dos mais sofisticados teóricos da de- Está assim uma nação livre, filha da Revolução e dos
mocracia escrevendo no século XIX. 33 Direitos do Homem, obrigada a empregar os seus juí-
zes, a sua polícia, se preciso for o seu exército e a sua
E, nós diríamos, pedindo licença, que após a leitura da armada para forçar homens, mulheres e crianças a tra-
obra política de Alencar, se conhece melhor o Império Brasi- balhar noite e dia sem salário.
leiro, graças à inteligência de Alencar. O escritor de Senhora Qualquer palavra que desmascarasse essa triste
não foi apenas o fundador da literatura brasileira, não foi constituição social reduziria o foral das liberdades do
apenas o homem que mostrou a capacidade das idéias e da Brasil, e o seu regímen de completa igualdade na Mo-
imaginação que o Brasil tinha, mas foi wn grande descobri- narquia democratizada, a uma impostura transparente;
dor do Brasil. Como diria Manuel Bandeira: - Viva Alencar! por isso a Constituição não falou em escravos, nem
regulou a condição desses.

Este trabalho é dedicado à proj Lúcia Guimarães. Joaquim Nabuco. O Abolicionismo.

Com essas palavras, procurava Joaquim Nabuco sinte-


tizar a contradição fundamental com que se defrontava o
império brasileiro: a aspiração de integração à civilização,
convivendo cotidiana.mente com a presença da escravid:io.
Afinal, o Estado emergente da proclamação de Independên-
cia, realizada sob os auspícios dos ideais de liberdade que
impregnavam a atmosfera ocidental, manteve inalterada a
escravidão. 1Neste trabalho procuraremos, entãoj analisar as
dificuldades para implementação de uma ordem liberal num
país onde vigorava wna estrutüfaSenhorial e escravista. ~­
sas circunstâncias, inexistia a base necessária para que tm1
dos pressupostos básicos do mundo liberal fosse estabeleci-
.n Wander!ey Guilherme dos Santos, op. cit., p. 70.
do: a possibilidade da àção individual. A escravidão impedia

162 163
gue milhares de homens que viviam nesta condição pudes- L boa. A uestão se apresentava, não obstante, por demais com-
sem dispor do prirrieiro dos quesitos indispensáveis à ação e plexa e delic1da, pois além dessa sociedade ter sido constrLúda a
''
definição dos interesses individuais: a liberdade. A ordem partir de relações de trabalho escravistas, o momento de ruptu-
senhorial respondia pelo blogueio ao homem livre do acesso ra dos laços coloniais ocorreu simultaneamente à demanda pelo
à terra e capitais indispensivcis ao empreendimento, bem café nos mercados consrn11idores. Considerando-se o esgota-
como por inviabilizar a construção de urna sociedade política mento da econonlia rnineradora e a gueda da demanda do açú-
caracterizada pela vigência plena da liberdade. car produzido no Nordeste, a perspectiva aberta à produção
Afinal, nos momentos iniciais da colonização, a escra- cafeeira levou à "revitalização do caráter mercantil da econonlia
vidão era condição primordial, capaz de tornar rcndvel a e o revigora.menta da escravidão". 4 Tal ocorreu, no entanto, no
empresa colonial e-viável o processo de colonização. Nessas interior "dos guadros de rnna econonlia controlada nacional-
condições, a escravidão não foi uma opção decorrente da mente,, ,s e num tempo em gue nas arcas , metropo li tanas se
inexistência de trabalhadores dispostos a se u·ansferircrn às consolidavam as liberdades individuais. É preciso entender essa
terras portuguesas na América, mas, sim, necessidade estrei- situação de forma mais matizada, pois em algumas áreas colo-
tamente vinculada às condições históricas cm que se efetivou 11.iais a escravidão fora retomada nesses primeiros decê11ios do
o empreendimento colonial. século XIX, além de ter sido mantida no sul dos Estados Uili-
"Renascia" assim, escravidão no Ocidente, 1 embora a- dos.6 Isto, por outro lado, arne11iza, mas não esconde as difi-
penas do ponto de vista jurídico possa haver correlação culdades com gue tinha de se defrontar o Estado brasileiro.
àgucla do mundo antigo (império romano), posto gue obe- Afinal, os princípios liberais construídos ao longo dos
decia agora à lógica do capital. O antagonismo entre senho- anos setecentos (retornando a idéia de Natureza) erigiam a
res e escravos seria inevidvcl 2 e a violência integrava, portan- liberdade cm direito e assim, a escravidão deixava de ser vista
to, de forma definitiva, este ccnirio. sob o _ponto de vista religioso, para ser discutida como aten-
~o momento de montagem do sistema colonial, a adoção tado ao direito à liberdade. O pensamento guc foi sendo
de formas de trabalho compulsórias apresentava-se como a _5labor.ado nos setecentos condenava a escravização dos ne-
alternativa mais viável, além de rentável. 3 Sua permanência em gros no Novo Mw1do, na medida em gue contestava, na
rnn Estado constrLúdo sob a égide do liberalismo era, porém, !.ealidade, todo o antigo regime. Montesguieu dedicara o
_ de difícil justificativa, pois o processo de independência tivera a livro XV de Do espírito das leis à anilisc da escravidão, procu-
inspirá-lo o credo liberal, e foi cm seu nome gue se deu a recusa rando refutar os argwnentos desenvolvidos em defesa dcla. 7
do regresso à situação colonial corno gueriam as cortes de Lis-
' Cf. João Manuel C. de Mello, O Capitalismo Tardio. 4" ed. São
-!

1
A esse respeito, o trabalho já referido de Fernando A. Novais. Paulo: Brasiliense, 1986, p. 57.
5
Poi·tugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808), Ibidem.
4" ed. São Paulo; Hucitec, 1986. 6
A esse respeito ver Eric Hobsbawm. A era das re1Joluções (1789-
2
Cf. Clóvis Moura. Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, 1848) Trad. 5" ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra 1988.
guen-ilhas, 4ª ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. 7
Afirmava Montesquieu: "a escravid:ío propriamente dita é o estabe-
3
Cf. Eric Williams. Capitalismo e Escravidão. Trad. Rio de Janeiro: lecimento de um direito· que torna · Lll11 homem completamente de-
Ed. Americana, 1975, pp. 7-34. pendente de outro, que é o senhor absoluto de sua vid.1 e de seus
164 165
Um pensamento abolicionista ainda mais elaborado e con- quiri-las, da propriedade de seu tempo e de suas forças, de
testatório, foi expresso por Mably e Raynal e, neste último, tudo enfim de que o dotou a natureza para conservação de
0 objeto central de condenação era todo o antigo regime, sua vida e satisfação das necessidades". 10 Na segunda parte,
com seu sistema colonial. 8 Não apenas razões religiosas ou capítulo II, propunha medidas para acabar com a escravidão
hwnanitárias, mas sim aquelas provenientes de wna nova de negros, sendo a abolição do tráfico a primeira delas, se-
ordem de valores, faziam Raynal considerar injustificável a guida pela dos nascituros, e da emancipação gradual dos
escravidão. Dos mais ardorosos defensores do direito que escravos menores de quinze anos, declarados livres ao com-
possuíam os escravos no Novo Mundo à liberdade, podemos pletarem quarenta anos. 11 Propunha, ainda, formas de regu-
destacar Condorcet, em especial suas Reflexões publicadas sob lar as relações entre senhores e escravos. 12
pseudônimo de pastor Schwartz. 9 O pensamento das Luzes considerando inadmissível a
Condorcet, bem como Raynal, atacava os principias escravidão, contestava, na realidade, todo o antigo regime. 13
justificadores da escravidão e considerava o "reduzir wn Nas colônias norte-americanas, a luta contra as tentativas
homem à escravidão, comprá-lo, vendê-lo, sujeitá-lo ao cati- inglesas de enquadrá-las nos princípios que norteavam o
veiro", como "verdadeiros crimes, e que crimes piores que o sistema colonial na América tropical contribuíra, também,
roubo; pois se despoja o escravo, não só de toda e qualquer para wn questionamento aprofundado da permanência da
propriedade móvel ou imóvel, mas ainda a faculdade de ad- escravidão. 14 A argwnentação não mais seguia os preceitos
religiosos dos quakers, mas sim as idéias de direito natural ,x
que serviam à luta contra o jugo metropolitano. Em 1774,
seus bens. A escravidão, por sua natureza, não é boa; não é útil
nem ao senhor nem ao escravo; a este porque nada pode fazer de Abigail Adams, casada com wn dos líderes da Revolução
forma virtuosa; àquele, porque contrai com seus escravos toda Americana (John Adams), alertava sobre a contradição de se
sorte de maus hábitos, porque se acostuma, insensivelmente, a lutar pela liberdade quando se está negando este direito aos
abandonar todas as vitrudes morais, porque se torna orgulhoso,
irritável, duro, colérico, voluptuoso, cruel. Cf. Montesquieu. Do
10
Espírito das Leis, Trad. São Paulo: Difel, 1962, p. 267. bidem, p. 23 .
11
8 Cf. G. Thomas Raynal. Histoire Philosophique et Politique des éta- Ibidem, pp. 67-73.
blissementes du commerce des européens dans les deux Indes. tomo 6 12
Ibidem, pp. 74-95
(parte dedicada a análise da escravidão no Novo Mundo). A crítica B Esta questão foi tratada por David B. Davis, The Problem of Sla-
empreendida por Raynal ao Antigo Sistema Colonial e a presença very in Western Culture, 6ª ed, Cornell V Press, Nova York: 1975,
da escravidão em terras americanas foi objeto de tratamento em pp. 391-445.
Fernando A. Novais. Op. cit,p .. 147-157. 14
Muitas destas questões foram analisadas por Robert W. Foge!.
9
Cf. J. Schwartz (Condorcet). A Escravidtio dos Negros (Reflexões), Without Consent or Contract. The Rise and Fall of American Slavery,
Trad. Rio de Janeiro: Tip. De Serafim J. Nves, 1881. Há uma Nova York,W.W. Norton&Cia,1989, parte II. É preciso conside-
nota dos editores esclarecendo ser Condorcet o autor desta obra e rar que um dos mais inflamados libelos a favor da liberdade foi
que a teria enviado para publicação sob pseudônimo de Joaquim produzido nos momentos que antecederan1 a Revolução America-
Schwartz mas que, em seguida, apurou-se o nome verdadeiro do na. Referimo-nos à obra de Thomas Paine. Common Sense. Existe
autor. tradução da obra cf. T. ·Paine. Senso Comum e outros escritos políticos.
Trad. São Paulo: !brasa, 1964.
166 167
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neo-ros . 15 Thomas Jefferson, em seu A Sumary View of thc
seriam se alguns fossem mortos pela espada da injustiça e até
R;hts of British America, considerava que a abolição era l
dar azo a certos para que se perpetuem tais horrores é de
questão primordial. A situação colonial terminou sendo con-
certo w11 atentado manifesto contra as leis eternas da justiça
siderada mais importante e a escravidão vista como sendo . ·~ " .17
e dare11g1ao
como responsabilidade da Inglaterra. Concretizada a inde-
Ao desdobrar suas análises ia, pouco a pouco, introdu-
pendência, não mais se podia atribuir ao Império Britânico a
zindo a "razão nacional". 18 A escravidão obstaculizava o pro-
culpa pela escravidão e, dessa forma, como ressaltaram H.
gresso. "Causa r;1iva ou riso ver vinte escravos ocupados em
H. Franklin e A. A. Moss Jr., "a liberdade na América foi o
transportar vinte s;1cos de açücar que podiam culllluzir uma
meio de dar à escravidão uma vida mais longa do que ela
ou duas carretas bem constJuídas, com dois bois ou duas
devia ter no Império Britânico." 16
bestas muares". 19 A lavoura feita por mãos escravas não era
~ precis~ c?nsiderar port~~to que, após.ª .?roclamaçã~ lucrativa, pois um tal sistema de u·aball1o ensejava muitos
da inâependenoa, a problemauca da escrav1dao no Brasil
prejuízos. O método de u·aball1o era antigo e a indüsu·ia não
assumia uma dimensão maior. Afinal, o im ério nascente
enconu·ava meios de se desenvolver porque "os senhores que
precisava conviver com a ambigüidade proveniente de ter
possuem escravos vivem, em grandíssima parte, na inércia,
sido seu estabelecimento efetuado com base nos pressupos-
pois não se vêem precisados pela fome ou pobreza a ape1fei-
tos liberais e não terem sido essas idéias utilizadas para rom- . dusu·1a
, . ou me111orar sua 1avowa . " .20
çoar sua 111
er a ordem escravista, além do que a vigência da escravidfo
Da condenação explícita à escravidão, em nome dos di-
inviabilizava que este Estado se constitLÚsse por meio de w11
reitos individuais e do progresso do império nascente, Boni-
pacto liberal e/ou democrátic~
Hcio ia moderando seu discurso, ao afirmar que "para eman-
Na Representação enviada à Assembléia Geral Constituin-
cipar escravos sem prejuízo da sociedade cumpre fazê-los
te, ~de A. e Silva demonstrava sua preocupa-
primeiramente dignos da liberdade. Cumpre que sejamos
ção com essas questões. ~efutava a argwnentação corrente
forçados pela razão e pela lei a convertê-los gradualmente de
que procurava conceber a escravidão como oportunidade
vis escravos cm homens livres e ativos".21 No art. 10 da re-
oferecida aos negros, para que recebessem a luz do evange-
presentação era proposto : "todos os homens de cor forros
lho ou os caminhos da civilização. Afirmava só ser possível
que não tiverem ofício ou modo certo de vida receberão do
entender o deslocamento dos africanos para a América como
artifício eno-endrado
b
para introduzi-los
,
no mundo civilizado 17
José Bonifücio de Andrada e Silva. Representação à Assembléia
caso tivessem sido buscados "à Africa para 111es dar liberdade Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a es-
no Brasil e estabelecê-los como colonos. Mas perpetuar a cravatura. Memórias sobre a esi-ravidão (org. Graça Salgado) Ri o de
escravidão, fazer esses desgraçados mais infelizes do que Janeiro: Arquivo Nacional, 1988 .
18
Utilizamos o conceito de "razão nacional", conforme José Muri-
lo de Carvalho. Escravidão e Razão Nacional. ln: DadoJ~ Ri o de
'" Cf. John H . Franklin e Alfred A. Moss Jr. Da Escravidão à Liber- Janeiro:, v. 31 , n. 3, 1988, pp. 287-308 .
dade. A História do Negro Americano. Trad . Rio de Janeiro: Nórdi- 19
Cf. José Bonifrí.cio de A. e Silva. op.cit, p. 67.
ca, 1989, p. 81. 20
16 Ibidem.
Ibidem, p. 95. 21
Ibidem,, p. 69.
168
169
Estado w1u sesmaria de terra para cultivarem e receberão, dade, bem como pela valorização da tradição e por tm1a vi-
outrossim, dele, os socorros necessários para se estabelece- são de mundo que levava a que só se cedesse às mudanças
rem, cujo valor irão pagando com o andar do tempo" 22 e quando essas fossem e).1:remamente necessárias e buscando
pelo art. 16: "antes da idade de doze anos não deverão os impedir ainda que tais mudanças desestruturass~m a ordem
escravos ser empregados em trabalhos insalubres e demasia- tradicional. Por outro lado, a constituição de um Estado que
dos".23 Era sugerida, ainda, a criação de wn "Conselho Superi- se entendia - criado sob a égide do liberalismo não podia
or Conservador dos Escravos" ao qual caberia a incwnbência mesmo tratar da escravidão e, assin1, apenas se esti ulava
de vigiar a aplicabilidade dos dispositivos legais, além de que os libertos eram considerados cidadãos brasileiros. Afi-
outros onde se procurava estabelecer regras para as questões i1ãl e preciso considerar que competia, de fato, ao proprietá-
referentes a penas corporais, casamentos, mercês públicas rio a decisão sobre o destino da mercadoria, ocupando-se o
aos senhores que dessem alforria a famílias. 24 Estado em garantir a manutenção da ordem, e isto implicava
As idéias de José Bonifácio não encontraram terreno o não cwnprÍ111ento dos acordos efetivados com a Inglaterra
propício e não chegaram a ser discutidas. A Assembléia (no momento de reconheciinento da Independência) no
Constituinte foi dissolvida por Pedro I e isto resultou no tocante à extinção do tráfico de escravos. Mesmo não tendo
ato de a escravidão não ter sido, praticamente, referida na ocorrido tolerância por parte dos interesses ingleses, quanto
Constituição Outorgada de 1824. A referência foi feita ape- à permanência do tráfico, este pôde se manter de modo a
nas de forma indireta: em seu art. 6°, pelo qual os libertos realimentar a escravidão.
eram considerados "cidadãos brasileiros", e no art. 94, revo- ~ preciso, por outro lado, não esquecer a complexidade
gado posteriormente, o qual estipulava estarem os mesmos do processo que se iiúciou com as revoluções inglesas e se
impedidos de votar na eleição para deputado. 25 estendeu pelo século XVIII, com as revoluções americana e
É necessário considerar que o pacto liberal era difícil de francesa, alastrando-se por parte da Europa Ocidental, fa-
ser compreendido no império brasileiro, herdeiro da tradi- zendo com que as liberdades iI1dividuais fossem constituídas
ção ibérica26 , que se caracterizava pela resistência à moderni- em meio a um movimento bastante contraditório. A liber-
dade dos modernos estava contida, certamente, na definição
22
Ibidem, p. 72. que lhe deu BenjamÍ11 Constant, em discurso proferido no
23
Ibidem. Ateneu Real de Paris, em 1818, quando afmnou que esta
24
Ibidem, p. 74.
25
Cf. Constituição para Império do Brasil. Título 2°, art. 6º p. 3 e
título 6º, art. 14, p. 11. In: O Constitucionalismo de D. Pedro I no
Brasil e em Portugal. (Introdução de Afonso Arinos de Melo Fran- en el pensamiento latinoamericano, México: Sigla XXI, 1972. L~o­
co, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1972. poldo Zéa. El pensamiento latino-ame~cano. Barcel.ona_. Ed. ~1el ,
26
Sobre o Iberismo ver: R. Morse, O Espelho de Próspero. Cultura e 1976: ainda do mesmo autor, América como consctencia, cm ....... ua-
Idéias nas Américas. Trad. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. dernos Americanos, México: Imprenta Universitaria,1972; V1.ron-
Joaquim Mortiz. Dependência y liberación en la cultura latinoameri- no M. Godinho. A Estrutura na antiga sociedade portuguesa. Lisbo-
cana, México, 1974.- Hector Murena. E! pecado original de Amé- a: Arcádia, 1977; Antõnio José Saraiva. História da Cultura em
rica, Sur, Buenos Aires: 1954. A. Villegas. Reformisrno y revolución Portugal. Lisboa: Jornal do Foro, 1953.
170 171
consisti.a " na segurança nas 1nuçoes
e. . - . das " .21 D essa ma-
pnva vinculados a rnna produção em decünio no mercado interna-
neira, o pensamento liberal, ao retomar a idéia de natureza 28 cional (caso do açúcar) resistiam a qualquer tentativa de se
e construir o axioma de que os homens nascem livres e i- discutirem propostas envolvendo o fim da escravidão. Só
gttais, tornava o direito à liberdade bandeira revolucionária. que, pouco a pouco, foi-se tornando difícil ignorar os empe-
Apesar do crescimento da onda cont.J.·a-revolucionária de que cilhos para sua manutençao.
foi palco a primeira parte dos anos oitocentos, pouco a pou- Um império que se considerava integrante da civiliza-
co foi possível se assistir à vitória do princípio da liberdade, ção tinha de arcar com a contradição de ter seu destino atre-
t
acrescentada pelo da igualdade perante as leis. 29 evidente lado ao braço escravo. Como conceber a extinção dessa for-
ma de organização do trabalho, sem que isto não levasse a
gue esta igtialdade ocultava as desigualdades reais, cotidia-
namente recriadas. Mas, os t.1.·atados de Direito Internacional sua própria núna? Esse era rnn dilema cotidiano a ser enfren-
não reconheciam legitimidade na posse de escravos, seja por tado e colocava às claras as contradições desse mrn1do. A-
parte de particulares ou de Estados. crescido do fato de que Civilização 31 , ainda que estivesse
~o Império do Brasil, o mundo da produção estava referida a um espaço (a Europa Ocidental), era rnna noção
organizado sob a égide do escravismo, que proporcionava advinda do ideal profano dos ilrn11inistas. 32
alta lucratividade e por isto era impossível se empreender a De fora chegavam pressões para que se extinguisse a es-
defesa ou sequer concordar com argumentos em prol dos cravidao e, a pouco e pouco, rnn movimento favorável à liber-
direitos individuais à liberdade. Além do lucro advindo da t~ção dos escravos ganhava expressão. Foi preciso que o gover-
produção de café, efetivada mediante utilização da mão-de- no imperial procurasse lidar com essas demandas sem descon-
obra escrava, há de se considerar o significado da escravidão siderar, porém, os reclamos dos senhores de escravos, amiúde
para esta sociedade. 30 Por esta razão, mesmo os proprietários expressos através dos parlamentares (que pretendiam conter o
processo abolicionista) tendo ainda que considerar os movi-
27
Benjamin Constant. De la Liberté des Anciens Comparée à celle mentos de revoltas intentados pelos escravos e, em meio a tudo
des Modernes. ln: Collcction Complete des Ouvrages. V. 4, parte 7, isto, defender a manutenção do trono, instalado no topo deste
Paris: Béchet Libraire,1820, p. 243. edifício, cujos alicerces ameaçavam ruir a qualquer momento. A
28
Sobre as filosofias naturalistas, cf: Clément Rosset. A Anti- fala do trono, proferida perante o parlamento em 1867, torna-
Natureza. Elementos para uwa filosofia trágica. Trad, Rio de Janei- va público o debate sobre a necessidade de promover a eman-
ro: Espaço e Tempo, 1989, pp. 49-268.
29
Sobre a questão dos direitos ver: Norberto Bobbio. A Era dos Olímpio, 1987. Ainda, o trabalho de Raimundo Faoro. Os Donos
Direitos. Trad. São Paulo: Brasiliense, 1992. Ver ainda sobre o do Poder. Fonnação do Patronato Político Brasileiro. 2 v. 6ª ed. Porto
movimento de 1848 na França: Alexis de Tocqueville. Lmtbranças Alegre: Ed. Globo, 1984.
de 1848. As Jornadas Revolucionárias cm Paris.Trad. São Paulo: 31
Veja-se a análise proposta por Norbert Elias. O processo civiliza-
c_ompanhia das Letras, 1991. Maurice Aguilhon. 1848. O Apren-
dor. Uma história dos costumes, Trad. Rio de Janeiro: Zahar, 1990,
dizado da República. Trad. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
30
pp. 65-95.
Uma vez mais devem ser referidas as obras de Gilberto Freyre . 12
· Sobre a noção de civilização veja-se Fernand Braudel. "A Histó-
Casa Grande & Senzala. Fonnação da família brasileira sob o regime
ria das Civilizações .O Passado explica o Presente". Escritos sobre a
da economia patriarcal. Sobrados e Mucambos. Decadência do Patriar-
História.Trad . São Paulo: Perspectiva, 1978., pp. 235-288.
cado Rural e Desenvolvimento do Urbano. 6ª ed. Rio de Janeiro: José·
172 173
cipação. Nela, dizia o imperador: "o elemento servil no Impé- ~roprietários de terras e de escravos. Esta situação contribui.-
rio não pode deixar de merecer oportunamente a vossa consi- na de modo decisivo para desqualificar o trabalho aos olhos
deração".33Continuava o imperador afirmando a necessidade do homem livre que, por outro lado, vivenciava nessa socie-
de ser o assunto tratado "de modo que, respeitada a proprieda- dade mn processo de desclassificação. 35 Sem lugar definido
de atual e sem abalo profundo em nossa primeira indústria - a ora era visto como o vadio i.n:1prestável, ora como 0 capang~
agricultura - sejam atendidos os altos interesses que se ligam à ou o caçador de negros fugltlvos. De toda maneira, 0 lugar
emancipação". 34 Dava assim o tom de como seria a questão que ocupava neste mundo ficava restrito à possibilidade de
enfrentada: emancipação. ser ou não considerado de utilidade. A liberdade, assim con-
A lei do Ventre Livre foi o caminho aberto para resolu- fi~ur~d~, concluiria Laura de M. e Souza, "pouco valia para
ção da questão abolicionista. A aprovação da liberdade para o mdiv1duo pobre que o mundo da produção e os áparelhos
os nascituros, da forma como se efetivou (podendo os fa- do poder esmagavam sem trégua". 36
zendeiros optar entre libertarem seus escravos com a idade No lll1iverso dos engenhos de açúcar do Nordeste, a vida
de oito anos, mediante indenização, ou utilizarem seus servi- para os homens pobres se apresentava menos irregular, uma
ços até completarem vinte e mn anos), garantia a manuten- vez que integravam o complexo canavieiro com funções mais
ção da escravidão por, pelo menos, três decênios. Esta certe- definidas. Isto porque, devido à natureza do empreendimento,
za fez com que entrasse na ordem do dia o debate referente fazia-se necessário que o grande senhor de engenho dividisse
às novas formas de relações de trabalho a serem estabeleci- com lavradores independentes os custos e os riscos da produ-
das, o tipo de trabalhador ideal e, principalmente, a reafir- ção canavieira. Dessa forma, homens livres tinham acesso à
mação da agricultura como sendo o fator de sustentação do propriedade (de terras e escravos) e, mais que isso, tinham
império e a obrigatoriedade do governo em não deixar ao lugar, possuíam função e ocupação definidas. 37 Cabe destacar,
desamparo os fazendeiros. porém, que nesse mundo colonial cuja ordenação se fazia a
O sentido da liberdade, nmna sociedade definida pela partir da grande propriedade escravista e voltada à produção de
vigência da escravidão, é o gue importa resgatar. Sem dúvida gêneros destinados a atender às demandas metropolitanas, era
que o binômio senhor/escravo representava, não apenas os o grande senhor de terras e escravos o pólo aglutinador da or-
extremos da sociedade, como também sua marca mais carac- dem, a dar sentido a vida dos homens. . .,.__
terística, o que não implicava a inexistência de mna camada _, Situação diversa seria vivida pelos homens livres que
intermediária. Mas, em mn mm1do onde as relações de pro- se aventuraram território adentro, estabelecendo-se fora
dução estavam definidas pela escravidão, existia pouco espa- dos pólos mais dinâmicos: Nordeste, Rio de Janeiro e Mi-
ço a ser ocupado pelos homens livres que não fossem gran-
des senhores de escravos. Isto implicava que a eles estaria 35
Utilizamos as análises de Laura de Melo e Souza em Desclassifi-
reservado mn papel secundário, intermediado pelos grandes
cados do Ouro. A Pobreza Mineira no Século XVIII. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Graal, 1986.
33 36
Fala do trono. Anais da Câmara dos Deputados (A.CD), 1867, Ibidem, p. 222.
V. l. p. 96. 37
Cf. Vera Lúcia Amaral .Ferlini. Terra, Trabalho e Poder. São Pau-
3
~ Fala do trono, ibidem, p. 96. lo: Brasiliense,1988, pp. 207-236.
174 175
B~BLIOTECA
UFOP • ICHS I MARIANA
nas Gerais, pois, livres da presença do grande proprietário e complexificação, mas que continuava defmida pela proprie-
de tudo o que caracterizava a sociedade então constituída: dade escrava.
hierarquia, autoridade, tradição, família, sangue e preten- A construção do Estado, a partir do processo de inde-
sóes aristocráticas, puderam construir tm1 modo de vida pendência deflagrado em 1822, possibilitou que a liberdade
onde as rclaçóes sociais eram estabelecidas de forma menos sofresse pequena mas sensível alteração. O palco era ainda o
hierarquizada, mais independente e igualitária. 38 Não po- mesmo, mas o cenário recebia alguns acréscimos de modo a
demos esquecer, contudo, que tais formas de vida e organi- permitir que os homens livres desempenhassem papel menos
zação social eram secundárias, pois o pat:riarcalisrno era o figw·ativo e ingressassem de modo mais sistemático no enre-
traço definidor da colônia. Ainda que, nas estâncias do ex- do. Era nos domínios da política strictu sensu que podemos
tremo sul, bem corno na pecuária do centro-oeste e nas encontrá-los desempenhando um papel mais significativo,
lavouras ocupadas com a produção de alimentos fosse pos- uma vez que no Estado Nacional, edificado sob a monarquia
sível ao homem livre se tornar proprietário, exercer urna constitucional, a liberdade era pré-requisito essencial ao in-
ocupação mais estável, construir tm1a sociedade menos hie- gresso na sociedade política. A liberdade, aliada a uma pro-
rarquizada, nfo era este o traço defmidor da liberdade num ~riedade núnirna, permitia a participação no jogo político
mundo colonial e escravista. Dessa forma, a pouco e pouco, que para se realizar não podia dispensar o concurso do gran-
o sentido patriarcal ia penetrando solo adentro, dissemi- de pro rietário.
nando-se por esse mundo. Do ponto de vista da sociedade política, a diferenciação
Em sendo a produção garantida pelo traball10 escravo, entre maior ou menor pobreza representaria a ascensão, por
a liberdade permitia a manutenção de um cotidiano inde- exemplo, da categoria de votantes (todos os que possuíam
pendente da prestação de serviços à grande lavoura, o que renda anual superior a 100 mil réis) à de eleitores (todos os
possibilitava aos homens livres o controle de seu próprio possuidores de renda superior a 200 mil réis). De toda ma-
tempo de trabalho. A liberdade não lhes dispensava, eviden- neira a renda necessária ao exercício dos cargos legislativos
temente, o ato do traball10 mas este, por ser desempenhado -continuava inacessível à grande maioria dos homens livres. A
para si e não para outros, tornava-os isentos da condição de importância em se deter maior renda pode ser vislwnbrada
prisioneiros do traball10, já que podiam dispor de seu tempo também no fato de que isto possibilitava a aquisição de al-
da maneira corno melhor lhes conviesse. A designação ho- gtms escravos, e sua posse (ainda que velhos ou crianças de
mens livres pobres é genérica e pouco precisa, na medida quem se extraíam baixos níveis de produtividade) 40 viabilizava
que engloba homens praticamente despossuídos (agregados,
moradores) e outros detentores de algtmias posses (sitiantes, cf. Alcir Lenhara. As Tropas da Moderação. O Abastecimento da Corte
vendciros ), 39 indicativo de w11:i sociedade em processo de na flll'?'nação política do Brasil. 1808-1842. São Paulo: Símbolo, 1979.
Para tuna descrição dos sitiantes, no momento da crise do escravismo
38
Cf. a análise clássica de Caio Prado Jr. Fonnaçâo do Brasil Con- em área de fronteira aberta na Província fltmúnense, ct: Hebe Maria
temporâneo. 16ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1967, pp. 341-347. Matos de Castro. Ao Sul da História. Lavradures Pobres na Crise do
39
A esse respeito a obra já clissica de Maria Sylvia de Carvalho Fran- Trabalho Escravo. São Paulo: Brasiliense, 1987.
40
co. Homens Livres na Ordem Escravocrata. São Paulo: Ática, 1974 .. Tal questão aparece tratada em Hebe Maria Matos de Castro, P·
Sobre si tiantes e tropeiros durante a consolidação do Estado imperial 90-96, onde ela procura demonstrar que a propriedade escrava
176 177
a dispensa de parte das rotineiras tarefas agrícolas, além de
ser a melhor expressão de homogeneidade, wna vez que os res compronússos, favorecendo que tais transformações pu-
homens se reconheciam nesse wúverso enquanto proprietá- dessem ser efetivadas.
rios de escravos. A posse de w1s poucos escravos, ao viabili- É preciso considerar que as eleições se processavam no
zar a dispensa de muitas das tarefas manuais, tornava os ho- império através de wn sistema indireto: os vot~t~ (todos
mens livres pobres iguais, nw11 certo sentido, aos grandes os que possuían1 renda anual super~or .ª 100 mil reis, entre
proprietários de terras e escravos, w11a vez que eram senho- outros requisitos )41 elegiam, na pnmeu-a fase do processo,
res de escravos e isentos do desempenho das rotineiras tare- aqueles que, por sua vez, seriam os eleitores, e a esses compe-
fas agrícolas. tia na segwlda fase do processo, a escolha dos "representantes
Os homens livres detentores de poucas posses conse- da' nação" (os deputados). 42 Até o dia da eleição, ~1enhwn
guiram, sob o império, consolidar wn lugar nessa sociedade dispositivo legal havia a indicar os que esta~am ou nao aptos
tão impregnada pela presença da escravidão, pois eles seri- ao exercício do direito de voto; tal procedunento era tarefa
am, em última instância, a massa de votantes indispensáveis destinada à mesa eleitoral e realizada no dia da eleição. Ora,
à realização dos processos eleitorais. A crise do trabalho es- esta mesa, composta por quatro homens que go~avam da
cravo, com todas as suas implicações, contribuiu, decisiva- "confiança pública" (os chamados homen~ bons, v111culado~
mente, para a promulgação da reforma eleitoral em 1881, à política mwúcipal, bem como à ~ropne~a~~ escrava), e
que por sua vez retirou do jogo político a massa de votantes, que possuía a incumbência de deternu~1ar o 1111':_1º e º.fon·d·a
que ficou assim reconduzida a wna situação bastante próxi- votação, julgar se os votantes preenchia1:1 ou nao os reqws1-
ma daquela vivenciada pelos homens livres no tempo coloni- tos necessários ao exercício do voto e, a111da, apurar o resul-
al. Por outro lado, necessário se fazia poder dispor de sua tado das eleições. 43 Com tantas atribuições depositadas nas
força de trabalho não mais em tarefas complementares, even- mãos dos integrantes da mesa eleitoral, parece natural a pre-
tuais, como vigilância e adnúnistração, mas sim no cerne do sença da fraude em meio a esse process~, pois no mo1;1ento
processo produtivo. Era para a plantação, tratamento, co- da qualificação dos eleitores era pe1fe1tamente po~s1vel a
lheita e ensacamento que havia necessidade de utilização dos inclusão nas listas de nomes fictícios, e pessoas falecidas; da
homens livres, que precisavam ser transferidos de sua situa- mesma forma, deixava-se de incluir aqueles vinculados aos
ção de agregados e politicamente vinculados ao grande pro-
prietário para a de trabalhadores agrícolas. A sua dispensa
1 Constituição de 1824, op. cit., pp. 2~-27.1:- lei de 1846 mand~u
4
dos processos eleitorais, enquanto votantes, representaria o
primeiro passo no sentido de libertar o fazendeiro de maio- calcular a renda em prata, o que equ1valena a dobrar a qua;1~ia
exigida. Cf. José Mur.ilo de Ca~valho. Teatro de Sombras: A Polttica
Imperial. Rio de Janeiro: Iupeq, 1988, p. 140.
2
4 Para candidatar-se à câmara dos deputados, pelos dispositivos da
estava disseminada de modo a que homens pobres a ela podiam ter
acesso. A nosso ver, a busca por se tornar proprietário de escravos, Constituição de 1824, os pretendentes deviam dispor de renda
de quem se extraíam baixos níveis de produtividade, está a indicar anual superior a 400 mil réis. .
3
~ p~·oc~.ra por unia maior expressão de igualdade e, ainda maiii, de 4 Cf. Francisco B. S. de Souza, O Sistema Eleitoral n? Brasil.

indicativo do quanto o ato do trabalho manual era desvalorizado. Como funciona, como te.m funcionado, como deve ser reformado.
Rio de Janeiro, 1872, pp. 22-26.
178
179
adversários políticos. 44 Esta situação de favorecimento aber- cargo, que já é em si wna delegação: o eleitor secundário é wn
to impossibilitava que fossem eleitos membros do partido delegado para delegar poderes". 46 O diagnóstico do deputado
em oposição ao governo. apontava a fraude eleitoral como prova da ineficácia do sistema
Convém ressaltar, ainda, a enorme soma de poderes em e concluía que a existência dos votantes era o fat~r prin1ordial
mãos dos presidentes de província que, nomeados pelo go- para que as eleições fossem marcadas pela fraude. A descrição e
verno, utilizavam o posto como meio para interferência no análise das chamadas eleições primárias dedicara todo wn capí-
processo eleitoral,45 razão pela qual a Câmara dos Deputados tulo de sua obra, para revelar o quanto eram pouco representa-
era vista não como órgão de representação nacional mas, tivas, pois "wn dos meios mais poderosos para angariar votos é
sim, como mera construção dos integrantes do governo. comprá-los'»7,e isto só seria possível em razão da massa de
Não podemos omitir, no entanto, que este governo não era votantes analfabetos:
wna "entidade transcendental", pois, além de vinculado ao
partido que se encontrasse à frente do executivo, defendia, não lê, nem pode ler jornais; não freqüenta clubes,
prioritariamente, interesses ligados à escravidão, ainda que nem concorre a meetings, que os não há; de política só
não o fizesse de modo exclusivo. sabe do seu voto, que ou pertence ao sr. fulano de tal
Os debates realizados ao longo dos anos de 187'.) centra- por dever de dependência (algwnas vezes também por
vam-se em duas direções: a predominância do Poder Modera- gratidão), ou a quem lh'o paga por melhor preço, ou
dor e o sistema de eleições indiretas, como responsáveis pela lhe dá wn cavalo, ou roupa a título de ir votar à fre-
ficção, cotidianamente representada, nas sessões do parlan1ento guesia.48
imperial. O trabalho do deputado Francisco B. Soares de Souza
serviu de base às análises referentes à questão eleitoral, objeti- O projeto de mudança eleitoral foi objeto de longas e
vando a implantação do sistema de eleição direta. Para ele, pa- calorosas discussões na Câmara dos Deputados, especialmen-
recia "pouco natural exigir-se w11 intermediário para exercer o te nos anos de 1879/80. Ocupavam-se ainda, os parlamenta-
res, com o papel desempenhado pelo Poder Moderador.
H Em 1842 foram expedidas as "instruções eleitorais", dispondo Percebiam os deputados que a vigência do Poder Moderador
sobre a necessidade de se proceder à qualificação dos votantes contribuía para o descrédito da assembléia, pois sendo este
antes dos pleitos. Objetivava-se, assim, a diminuição de poder em
"a chave de todos os poderes, chave mágica que abre todas
mãos das mesas eleitorais, só que restava, ainda, às referidas Mesas
o controle sobre o resultado das eleições. Ibidem, pp. 19-29. as portas'»9 , inclusive aquelas que davam acesso ao parla-
45 mento havia wn sentimento de desconfiança de que fosse
Ibidem . Nos Conselhos à Regente, Rio de Janeiro: Livraria São
José, 1958, registrava o imperador sua opinião a respeito da inter- mesm~ a "Câmara a expressão gemúna do sentir nacional"5º.
ferência dos presidentes de província nos pleitos, p. 31. João Ca-
milo de Oliveira Torres. A Democracia Coroada. Teoria Política do 46 Francisco B. S. de Souza, ibidem, p. 101.
Império do Brasil. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1974, pp. 253-272. O 47
Ibidem, p. 33.
autor apresenta uma descrição do sistema eleitoral do império.
Deve-se registrar a preocupação do autor em demonstrar o des-
48
Ibidem, p. 27.
49 ACD. 1883, III, p. 100.
contentamento do imperador com a forma de condução do pro- V.
cesso dei torai. 50
ACD. 1880, V. VI, P· 299.
180 181
BIBLIOTECA
UFOP- ICHS I MA RIANA

Questionavam a credibilidade da assembléia ante a proemi- De fato dependia só, em última análise, de uma opção mais
nência do Poder Moderador, e o deputado Gomes de Castro ou inenos cap11c•• hosa d a c01oa
• ".53 so que, a nosso ver, pre-
I

punha em dúvida a vigência de uma monarquia constitucio- cisamos remontar a origem desta distorção à forma como se
nal. "Se há um concurso para provimento de mn emprego", efetivou o processo de independência e de construção do
dizia o deputado, "os candidatos não se fiam na justiça do Estado Nacional que, não dispensando a presença forte e
governo e dirigem-se diretamente ao soberano, cuja justiça é marcante do príncipe, viabilizou essa ingerência, capaz de
a única que lhes inspiram confiança e fé". 51 As ambigi.üdades proporcionar as referidas distorções.
do Poder Legislativo foram já objeto de análises. Sérgio Bu- Pelo disposto na Constituição Outorgada de 1824, po-
arque adverte sobre contradição desse "sistema pretensamen- demos verificar que grande era a soma de poderes deposita-
te parlamentarista, mas onde a decisão última cabia ao chefe da em mãos do príncipe. No período das regências, não se
de Estado" 52 . pôde resolver este impasse. Ao contrário, distorções signifi-
É preciso reter que no sistema parlamentar o governo é cativas podem ser aí apontadas. O receio ante o esfacelamen-
constituído pelo conjunto dos ministros e pelo chefe de go- to do território e os desdobramentos sociais que a questão
verno. As decisões são sempre compreendidas como de go- política podia suscitar levariam a que fossem mantidos, já
verno, significando a existência de solidariedade ministerial. sob o reinado de Pedro II, os princípios básicos da centrali-
No regime parlamentar, o poder legislativo é exercido con- zação que implicavam a concentração de poderes estabeleci-
juntamente pelo parlamento e os órgãos do executivo, estes das no título 5°, capítulos I e II da Constituição de 1824. A
como delegados daquele. No império brasileiro, os ministros imposição do princípio centralizador representou a vitória de
não tinham responsabilidade pelos atos do governo e o chefe uma determinada concepção de Estado e, mais que isso, dos
de EStado só teoricamente se caracterizava irresponsável. É homens que a preconizavam, reunidos sob denominação de
importante assinalar, ainda, o fato de que a representação saquaremas. 54
devia ser encontrada no parlamento e não no chefe de Esta- Em meio ao aprofundamento da crise do trabalho escravo
do. No Brasil, a Câmara dos Deputados parecia não nutrir ia-se efetivando o processo de reflexão e debate sobre o papel
dúvidas de que a credibilidade dos habitantes do império, e do legislativo e do regime parlamentar. Para muitos deputados,
não apenas dos cidadãos, depositava-se, justamente, no chefe a debilidade do parlamento provinha do regime eleitoral mar-
de Estado, o imperador. Isto levou Sérgio Buarque a indicar cado por fraudes, violências, chantagens de todo o tipo - fatos
com perspicácia que "por onde mais se distanciava a ficção que não permitiam a real expressão da vontade eleitoral. Havia,
parlamentar brasileira do modelo britânico era pelo fato da porém, os que creditavam ao sistema indireto a responsabilida-
subida ou da queda de um ministério depender só idealmen- de pela presença de fraudes e violências, características das elei-
te, entre nós, de uma eventual maioria na câmara popular. ções. O trabalho citado, do deputado Francisco B. Soares de
Souza, apontava nesta direção e servia de base para os debates.
51
ACD. 1883, II, P· 193.
V.
52 53
Cf. Sérgio B. de Holanda, "Do Império à República",3ª ed. Ibidem, p. 73.
54
tomo II, v, 5 História Geral da Civilização Brasileira, São Paulo: Ver a este respeito as con"siderações de limar R. de Mattos, Tempo
Difel, 1977, p. 66. · Saquarema, São Paulo: Hucitec, 1986, pp. 109-192.
182 183
..
A situação vivenciada pelo legislativo pode mesmo ser comprc- scri;1111 marcadas pela fraude, de que não haveria mais neces-
endida como o "drama, ou tragicomédia do Império", porque sidadc da presença do governo e, por conseqüência, os par-
a "legalidade (o Poder Moderador do rei), foi combatida corno lamentares representariam., de fato, os interesses dos eleito-
ilegítima pelas elites e pelos partidos, mas o foi por meios que res. Isto procedia, pois tal mudai1ça tornaria o pai·larnento
acabavam por tornar os partidos e as elites ilegítimos do ponto mais representativo dos interesses da nação, ainda que não
de vista da nação". 55 possamos nos esquecer de que, com esta medida, reduziain-
O processo eleitoral realizado no império era, efetiva- se ainda mais os direitos de cidadania política. Além do que,
mente, marcado pela fraude, violência e manipulação da dadas as condições da sociedade brasileira, a imensa maioria
massa de votantes que, de fato, pouco inte1feria na escolha de homens livres que nela habitavan1 (inteiramente sem pos-
dos representantes, w1u vez que as eleições processavam-se ses ou não) necessitava recorrer aos detentores dos direitos
"de cima para baixo". O sistema de eleição direta, en6o vi- de cidadania política para fazer valer os poucos direitos ine-
gente em praticamente todos os países do Ocidente, impli- rentes à cidadania civil de que dispunham, ou então restava-
cava maior abrangência no tocante à representação. Ocorre, lhes o recurso ao prÚKi pe.
porém, que a forma corno a questão ia sendo conduzida no De fato, a partir da reforma eleitoral, o parlamento
império levava à caracterização do votante como responsável começou a ser mais representativo. Mas essa representação
pela falta de legitimidade do corpo dos representantes. era vinculada a wna sociedade bastante reduzida: proprietá-
Detenhamo-nos um pouco no significado das a.nilises dos rios de terras e escravos e letrados. Isto resultou no fato de
parlamentares acerca do papel do legislativo, enquanto órgão que os não detentores dos direitos de cidadania política e
de governo e da extensão de sua reprcs~ntatividade o significa- mesmo os próprios escravos continuavam recorrendo ao
do do mandato. Ao fazerem wna avaliação do sistema eleitoral prfocipe. Dessa maneira, a reforma eleitoral empreendida em
vigente dispwu1am no cerne das preocupações o sentido do nome do ideário liberal e sob inspiração das reformas eleito-
i~ai1dato, que acreditavam estai· relacionado à reduzida expres- rais realizadas na Europa Ocidental (reformas essas que obje-
s~o do Poder Legislativo. Encontravain-se os deputados cons- tivavam ampliai· os direitos de participação política) teve
cientes de que o legislativo era o órgão máximo de expressão da como resultado o inverso dos modelos inspiradores. No
v.ontade ~a nação. Acreditavam que isso não ocorria no impé- Império do Brasil a reforma objetivando tornar o parlamen-
no em virtude da ingerência do Poder Moderador e por w11 to mais representativo acabou resultai1do no fortalecin1ento
processo eleitoral mai·cado pela fraude. Nessas circtmst:lncias do papel exercido pelo monarca.
?s p~lainentares deviam seus mai1datos à ação do governo (af E preciso considerar que o debate sobre o significado
mclwdo o Poder Moderador) e a wn processo eleitoral frauda- do mandato retroage aos fmais da Idade Média; devemos
do-, Assim, tratava-se, antes de tudo, de tomai· o parlainento nos deter, porém, na opção feita pelos liberais (séculos
mais representativo. XVIII e XIX), pois era em nome do liberalismo que se cons-
Ao se optar por se retirar à massa de votantes da cena trufra o Estado no Brasil e estava sendo proposta a reflexão
política, os deputados estavam certos de que as eleições não

55
Cf. José Murilo de Carvalho, Teatro de Sombras, op. cit., p. 159.
184 185
sobre o papel do legislativo
. imperial. Para os liberais 56 os )
atendia às solicitações. 59 A tentativa de aperfeiçoar os meca-
representantes precisam atender aos interesses de suas bases nismos de funcionamento do parlamento, mediante retirada
eleit~rais, mas por outro lado, a prática da representação da massa de votantes, resultava num aprofundamento do
consiste em trazer para a Assembléia os diferentes interesses hiato existente entre a esfera pública política60 e os habitantes
da sociedade, de modo a que possam ser negociados evitan- do império. Invertia-se assim, por completo, o processo vi-
do-se o predomínio de uma facção sobre a outra. Afinal, ao vido pela Europa Ocidental.
parlamento compete elaborar políticas capazes de atender às A Câmara dos Deputados passara todo o decênio de 1870
demandas da nação. 57
numa atividade de reflexão acerca do seu papel enquanto órgão
. No Império do Brasil, a busca por se reforçar o legisla - de governo e representante da nação. O caminho escolhido
avo i:esultara na diminuição dos direitos de participação e, transformava o parlamento num reduto ainda mais contraditó-
com isso, ? -parlamento, em especial a Câmara dos Deputa- rio. A escravidão era o traço mais marcante da sociedade imperi-
dos, acolhia os representantes de um reduzido número dos al, primeiro contraponto num processo de diferenciação relativo
pr~priet~ios Ado. império. Teoricamente, a representação aos outros países integrantes do "mundo civilizado". De toda
sena mais autenuca, mas o aperfeiçoamento da exclusão re- maneira, o Estado emergente do movimento de independência
força:'ª' por um lado, o poder dos grandes proprietários assentava-se sobre os pressupostos do liberalismo e fora organi-
, . d o f:avor, 58 por outro, conu·aditoriamen-'
amp liand o a prauca :zado de modo a comportar a vigência dos três poderes. Sob
te, enfraquecia o parlan1ento porque este, ao se constituir inspiração dos escritos de Benjan1in Constant, a Constituição
como esfera de representação de wn número bastante redu- outorgada em 1824 adotou wn quarto poder, o moderador.
zido da popula.ção, permitia que continuasse sendo o prfoci- Originalmente, o Poder Moderador deveria comportar funções,
pe o pod;~ maior e soberano. Não podemos deixar de regis- a serem exercidas pelo monarca, de contenção, regulação e freio.
trar a prauca constante levada a efeito pelos escravos de re- Competia assim ao monarca exercê-lo "intra-muros", de modo a
correr a P~edr~ II para que transmutasse em penas de galés as deter excessos e radicalismos. O desempenho dessas tarefas devia
condenaçoes a morte, e ao fato de que o imperador sempre se dar de modo reservado e o resultado das conversações e pon-
derações não devia ir a público, de modo a não permitir que ::t

56sb ,. f.
. o re esta temat1ca c . C. B. Macpherson. A Democracia Liberal:
ortgen~ e cvoluç~o. Trad. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. Giovanni 59
No Arquivo Histórico do Museu Imperial, por exemplo, encon·
Sarton ·A Teoria da Representação no Estado Representativo Moderno
Trad. Belo Horizonte: Ed da RBEP, 1962. . tramas requerimento feito por africanos livres ao imperador solicitan·
do a liberdade. Arquivo da Casa Imperial. Maço 115 Doe. 5729.
C~ Eric. Hobsbawm. "Nações e Nacionalismo". Ler Histrfria nº
57

Brasil Gerson, em A Escravidão no ImpérW, Rio de Janeiro: Palias,


5, Lisboa: Ed. Salamandra, 1985.
1975,trata dos despachos favoráveis dados pelo imperador quanto à
S~hw:~z,
58
Cf. Roberto "As idéias fora do lugar". Ao Vencedor as prática de comutar pena de morte em penas de galês, ver p. 150
Batatas~ Fonna_ Literana e processo social nos inícios do romance brasi- 60
Sobre o conceito de esfera pública poütica cf. J. Habermas.
leiro. 3 ed, Sao Paulo: Liv. Duas Cidades 1988 onde o autor UEspace Public. Archéologie. de la Publicité comme dimension constitu-
desenvolve o tema relativo ao "favor''. ' '
tive de la societé bom;geoise. Trad. Paris: Payot, 1978.
186 187
opinião do monarca exercesse influência nas decisões finais. 61 Ao
faziam isto mantendo inalterada a ordem interna. Dessa
serem tais princípios transpostos para a realidade do império
forma, como disse Roberto Schwarz, "era in~vitável que ~s
brasileiro, sofreram adaptações, que resultaram na preponderân-
cia do poder privado do monarca. formas modernas de civilização, vindas na esteira da emanci-
pação política e implicando liberda.de ~ ci~adania, pareces-
A Câmara dos Deputados, tendo se tornado representa -
sem estrangeiras ou postiças, antmac1ona1s, emprestadas,
tiva dos interesses de w11a mínima parte da população, acaba-
despropositadas etc." 63 , principalmente ~s "abomináveis"
ria por se tornar frágil, wna vez que aos homens livres excluí-
idéias -francesas disseminadas pela Revoluçao de 1889, con-
dos do processo político restava a dependência ao grande
siderada pelo deputado F. B. Soares de Souza como a re.:-
senhor de terras e escravos. Este via seu poder pessoal refor-
ponsável pelas "tremendas catástrofes que ness~ ~1.esmo P~'.s
çado ao preço do enfraquecimento da esfera pública política.
iam submergi-los (os homens) por tantos anos . Afinal, ci.1
Por outro lado, continuava ao dispor do homem livre, porém
eÀ'tremamente difícil a penetração do ideário liberal nessa
pobre, o recurso àquele que se lhe apresentava como o sú11bo-
sociedade cujo corpo político e social estava impregnado de
lo maior do poder no império: o monarca. Com isso fortale-
w 11.a concepção profundamente hierarquizada.
cia-se o Poder Moderador, que o parlamento queria ver extin-
to. Por fim, a possibilidade de se recorrer ao imperador, con-
tribufra, decisivamente, para o entendimento de que residia
no prÚ1cipe a verdadeira esfera de representação dos interesses
da população excluída da participação no jogo político, via
eleição de representantes à Câmara dos Deputados.
A sociedade política fora construída de forma hierar-
quizada e, com a reforma eleitoral de 1881, afirmava-se o
princípio da exclusão. O reduzido número dos que possuíam
os direitos plenos de cidadania, em sua condição de proprie-
tários, tinha seus interesses direcionados para wna produção
destinada ao mercado eÀ'terno. 62 Os políticos tinham os o-
lhos voltados para a Europa, ansiosos por se tornarem inte-
grantes do "mw1do civilizado", c para t:into buscavam ado-
tar algw1s de seus valores, decifrar seus códigos culturais;
61
Veja, para elucidação dessa questão, o capítulo II do livro de
Benjamin Constant. Cours de Politique Constitutionelle. Paris, Chez
P. Planchere ed, 1818.
62
São significativas as proposições de Poulantzas sobre o papel do
mercado na construção da unidade. Cf: Nicas Poulantzas. O Esta-
do, o Poder, o Socialisrno, Trad. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1985 . .
pp. 113-138.
63
Cf. Roberto Schwarz, op. cit. p. 105.
64
Francisco B. Soares de Souza, op. cit., P· 115.
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