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Mate Espíritos

Wanju Duli

2014
Mate Espíritos

Capítulo 1: Mate

– Deverias considerar que eu estou falando sério.


Eles nunca pensam assim. Os espíritos sempre
partem do pressuposto de que tu és apenas mais um
bastardo covarde.
“Mas eu não sou, seu merdinha. E não vou sair
daqui até obter o que desejo”.
Eu estava respirando rápido. Aquela situação não
era a melhor possível. A espada apontada para o
segundo círculo de formas geométricas tinha sangue.
O meu sangue.
A magia de sangue é poderosa se corretamente
utilizada. Se eu a utilizava corretamente? De forma
alguma! Eu apreciava correr perigo. Colocar a minha
alma no fio da navalha era a única coisa que fazia
com que eu me sentisse vivo.
Suor descendo. Mãos trêmulas. Até lágrimas nos
olhos. Era tudo o que eu queria.
“Está doendo. Estou em êxtase. Somente porque
sofro, porque morro”.
Eu não queria morrer de verdade. Era apenas uma
brincadeira. Bastava enganar o meu inconsciente. Só
queria perder sangue o bastante para me fazer sentir
medo. A excitação e o suor frio eram reais.
Eu ri enquanto chorava.
– Real, real! E pela primeira vez na vida, eu estou
vivo!
– Tu és uma criatura insana, Mate – bradou o
espírito por trás da fumaça – o teu sangue pinga e tu
ris.

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Puxei a manga longa do meu manto negro e


encostei no braço o fio da adaga.
– Tu queres um pouco mais, Galaxión?
– Me afogo no teu sangue. Não terias a coragem.
Eu me senti desafiado. Bufei e a luz da vela
tremeu. Meu corpo inteiro tremeu de ódio. A fumaça
do defumador preenchia minhas narinas e eu gemi
como um animal.
– Não ousa! Ah, não ousa, filho da puta! Tu sabes
que eu o faria!
– Bem te conheço, Mate Espíritos. Tu não recua.
O cheiro do sangue era tentador, mas eu não
queria tirar mais. Precisava guardar energias e
sanidade para o próximo ritual de merda que eu
prepararia.
– Isso não é um show de horrores – expliquei a
ele – eu apenas quero um único símbolo. É pedir
muito, canalha? Põe aí no envelope!
– Não ponho.
– Noixalag fodido! – berrei.
E cortei o ar com a adaga. Cravei-a no pote de
areia e dei o dedo.
– Pensei que éramos companheiros, cretino.
E enquanto eu o dizia, pingava a cera da vela no
papel do envelope.
– Vai me atacar, mestre?
– Bem no teu rabo – ameacei.
Meti fogo na caldeira de ferro. A fumaça do
quarto se retorceu, subindo e descendo pelos móveis.
Gritos abafados. E eu ri mais, enquanto acrescentava
na mistura as ervas que Galaxión mais odiava.
– Feri, te feri, ferido Noixalag Noix, Mata o Xion!

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Segurando a cuia com firmeza e chupando a


bomba do chimarrão. Foi assim que eu vi Galaxión
se dobrar e clamar para que eu parasse. E eu,
misericordiosamente, apaguei o fogo que estalava em
fumaça, mas não o fogo da minha vontade.
Lacei-o firme.
– Onde está o meu feitiço?
– Abre o envelope somente amanhã e estará lá.
Já estava lacrado com a cera. Foi um ritual
estressante. Dispensei Gala e os outros dez espíritos
de retaguarda. Apaguei as velas e acendi as luzes do
meu quarto.
O chão estava preenchido de formas geométricas
e símbolos arcanos. Velas, defumadores, caldeiras,
espadas, adagas, estátuas. A bagunça não tinha fim.
Eu precisava limpar aquilo tudo de uma vez.
A limpeza me tomou longos minutos. Dobrei e
guardei os panos com simbologia antiga que estendi
no chão. Tranquei todos os objetos no meu armário.
Por fim, passei álcool.
Era difícil disfarçar o cheiro, mas eu não podia
fazer nada. Baixei o capuz e tirei meu manto negro.
Dobrei-o também, escondendo-o no guarda-roupa.
Uma batida na porta. Meu coração quase parou.
– Elias, o jantar está servido. Vem agora.
Acalmei-me um pouco e respondi:
– Já estou indo, mãe.
Se meus pais encontrassem aquilo tudo eu estaria
morto. Eu tinha até símbolos do Anticristo.
Contemplei o meu quarto. Não havia
absolutamente nada lá que me denunciasse como um
ocultista ou um mago. Todos os meus livros e

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utensílios ritualísticos estavam estrategicamente


trancados à chave nos armários.
Eu tinha muitos livros e muitos utensílios
simplesmente porque eu tinha uma mesada generosa.
Infelizmente, eu não podia comprar utensílios
grandes demais que não pudessem ser escondidos
apropriadamente. Se Solange, a nossa faxineira, os
encontrasse, denunciaria imediatamente para minha
mãe.
Fitei-me no espelho e certifiquei-me de que meu
pijama azul de calças e mangas longas estava
apresentável. Cobri o meu ferimento com uma gaze e
escondi-o. Eu já estava acostumado a fazer isso e
tinha certeza de que nem mesmo uma gota de sangue
escaparia.
Destranquei a porta do meu quarto e fechei-a
suavemente. Caminhei em passos lentos, descendo as
escadas cuidando para não fazer barulho, ou minha
mãe ficaria furiosa.
Todos já estavam à mesa. Preparei-me para
receber um sermão pelo atraso, mas recebi apenas
olhares de desaprovação, o que provavelmente foi
pior. Isso era o que um atraso de cinco minutos era
capaz de fazer.
– Sinto muito pelo meu atraso – falei, de cabeça
baixa – isso não acontecerá de novo.
E sentei-me silenciosamente.
– Faz a reza de hoje, Elias – mandou minha mãe.
– Senhor, muito obrigado por essa comida.
Protegei os pobres e dai a eles o que comer. Dai a
eles um lar, mas sobretudo guardai-os no coração.
Agradecemos pela bênção dessa casa e de tudo de
valor que possuímos. Sem o Senhor nada somos.

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Que antes nos tornemos cinzas e pereçamos se não


tivermos a Vós em nosso ser. Pai, perdoai nossos
pecados. Somos apenas pecadores, dai a nós um
pouco de luz e de sabedoria, para que possamos
seguir por mais um dia. Um dia sem a bênção do
Senhor é pior do que a fome, a guerra e a peste.
Afastai Satanás dessa casa! Em nome do Pai, do
Filho e do Espírito Santo. Amém.
E todos fizeram o sinal da cruz. Respirei aliviado.
Aguardei que meus pais se servissem e aventurei-me
para pegar alguma coisa.
Servi um pouco de arroz e carne. Quando fui
pegar o purê de batatas, minha irmã mais velha
segurou a tigela ao mesmo tempo. Larguei a tigela na
mesma hora com apenas um olhar dela.
No começo, jantamos sem dar um pio. Apenas o
barulho dos talheres era ouvido. Até que meu pai
rompeu o silêncio.
– Como estão os estudos, Elias?
– Bem, senhor – respondi, imediatamente – não
tive nenhuma nota vermelha no meu boletim nesse
bimestre.
– Eu já vi teu boletim, que deixou muito a desejar
– disse meu pai – eu me referia ao curso preparatório.
Eu estava no oitavo ano. Meu colégio exigia, além
do alto pagamento da mensalidade, a realização de
uma prova de aptidão para o ingresso no ensino
médio. Por isso eu estava fazendo um curso
preparatório em algumas tardes, o que não me
deixava com tempo para absolutamente nada.
– Estou frequentando todas as aulas – informei.
– Mas é óbvio que tu estás frequentando! –
exclamou meu pai – Isso é o mínimo que se espera.

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Mas tu não podes fazer somente o mínimo. Se queres


ser alguém na vida, deverás dar o teu máximo.
– Sim, senhor.
– Segue o exemplo da tua irmã – recomendou
minha mãe – passou em primeiro lugar no curso de
aptidão e suas notas são as melhores da turma.
Magdalena deu um sorrisinho com o elogio.
Minha irmã era provavelmente a pessoa que eu mais
odiava na face da Terra. Ela se portava como um
anjo na frente de nossos pais, mas me tratava muito
mal pelas costas. Ela me desprezava completamente.
No colégio jamais queria ser vista perto de mim.
E não havia meios de alcançá-la! Magdalena não
fazia outra coisa que não fosse estudar e obedecer
cegamente o que lhe mandavam fazer, como um
burro de carga. Por isso era a melhor aluna de sua
turma.
Eu obviamente não passaria no tal exame de
entrada para o ensino médio em primeiro lugar. Eu
torcia para pelo menos passar, mesmo que fosse em
último. Minhas notas no colégio eram boas, mas nada
de extraordinário. Eu raramente precisava fazer
provas de recuperação e esperava alguns elogios pelo
meu esforço. Mas meus pais apenas me comparavam
com Magdalena. Mesmo numa ocasião em que tirei
nota superior a oito em todas as disciplinas recebi
sermão.
Fiquei imensamente feliz quando aquele jantar
terminou. A atmosfera tensa era insuportável. Para
completar, Magdalena ainda veio falar comigo em
particular.
– A tua reza de hoje foi adorável – ela comentou.
– Não enche – falei, rispidamente.

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– Tu devias mostrar um pouquinho mais de


gratidão, sabia? Eu sei bem que tu não estavas doente
no domingo passado, quando não foste para a igreja.
– Não quero ir pra igreja – sussurrei – tenho mais
o que fazer.
– Cuidado – alertou ela – o pai e a mãe podem
não ver o que tu fazes, mas o Senhor vê tudo.
– Eu sei. Tenho mostrado muitas coisas ao
Senhor ultimamente. Espero que Ele fique com os
olhos bem abertos para não perder nada.
E eu sorri ao dizer isso. Magdalena fez uma careta.
– Nojentinho – ela pronunciou.
E retirou-se para seu quarto cor-de-rosa cheio de
pom-pons. Ou melhor, eu já nem me lembrava qual
era a cor do quarto dela ou o que tinha lá dentro, de
tanto tempo que fazia que eu não entrava lá. E eu
sinceramente não estava interessado.
Voltei para o meu próprio quarto e tranquei-me.
Eu mesmo não tinha muita liberdade para decorar o
meu quarto como eu desejaria. Era apenas um quarto
normal, grande e bonito. Mas de que adiantava ser
assim tão arrumado e perfeitinho se não havia nele
traços da minha personalidade? Assim eu não o
sentia como verdadeiramente meu.
Além disso, eu não sentia que pertencia àquela
casa ou àquela família. Eu não conseguia ficar à
vontade lá. Era um ambiente rígido, cheio de regras.
Eu não odiava meus pais, mas eu também não tinha
certeza se os amava. Eles eram apenas frios e
distantes.
Eu estava com 13 anos: a idade mágica. Como
diziam, era a idade do suicídio. Meus pais não deviam
saber disso ou tomariam mais cuidado. Eu

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provavelmente sobreviveria até completar 14 no final


do ano. Mas às vezes eu me divertia imaginando
como eles reagiriam se eu subitamente acabasse com
tudo. Minha irmã miserável provavelmente riria. Eu
torcia para que meus pais se arrependessem da
educação que me deram. Ou eles apenas pensariam:
“Era apenas um fraco e perdedor. Ainda temos a
Magdalena, que é muito melhor, então ele não fará
falta”.
Eu simplesmente não tinha liberdade. Eu me
sentia preso em casa e no colégio. Eu era obrigado a
estudar num dos colégios mais fortes da cidade.
Ninguém nunca me perguntou se eu queria isso.
Escolheram por mim e me matricularam em outros
cursos extracurriculares que devoravam minha vida
como se eu fosse apenas um zumbi, consumido pelo
tempo, aguardando um futuro que não era nem
futuro e nem vida, mas uma semiexistência.
O que eu recebia em troca daquela escravidão e
obediência? Minha mesada, que era um cartão de
crédito com um limite bem alto, não parecia um
pagamento equivalente. Gastar já tinha perdido a
graça há muito tempo. Além do mais, meu pai
controlava tudo o que eu comprava. Por isso, sempre
que eu queria fazer qualquer compra relacionada a
ocultismo eu precisava burlar essa regra: comprava
qualquer coisa para um colega meu no cartão de
crédito e em troca ele me dava dinheiro para eu
comprar minhas coisas.
Era apenas uma existência de merda. E eu nem
mesmo ousava beber e fumar para ter um barato.
Meus pais não eram burros. Se eu chegasse em casa
com o menor cheiro de cigarro eles sacariam na hora.

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Já tive maus momentos tentando explicar o cheiro de


vela e defumador no meu quarto.
Acredito que foi devido a todos esses fatores que
comecei a praticar o ocultismo um ano atrás: eu
queria uma forma de escapar, ao menos por um
breve instante, dessa realidade que me aprisionava.
Dessa vigia por 24 horas.
Liguei o meu computador. Até ali eu precisava ser
cauteloso, porque meu pai checava o meu histórico
de sites de vez em quando. Havia alguns sites
bloqueados para mim e sempre que eu desejava
acessar um site particularmente espinhoso eu
precisava ir numa lanhouose ou na casa de um amigo
meu.

Dio: Por que tu demorou tanto pra entrar nessa


boceta, cacete? Tamo aqui te esperando, animal.

Mate: Eu sei, porra. Tava fazendo uns troços aqui.

Dio: Vendo putaria e batendo punheta, boçal.

Mate: Até parece. Não posso bater nem numa


porta que já sou xingado nessa casa miserável.

Dio: Chora mais, Matte Leão. Pelo menos


programou a porcaria que eu te pedi, cuzão?

Mate: Sim, mas ficou que nem meu rabo.

Dio: Foda-se. Vai ter que servir. Não vale mais a


pena usar esse site tosco pra falar das altas merdas

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que falamos. Precisamos de um método mais


elegante.

El Rei: Vocês são muito lentos. Eu já teria feito


todos os preparativos há muito tempo.

Dio: O cara não pode comprar no cartão de


crédito, sua besta. Senão o pai dele descobre, baitola.

El Rei: Eu tô sabendo, anormal. Eu só disse que


se tivessem me deixado responsável por toda essa
demência tu não estaria aí surtando como uma cadela
no cio.

Dio: Enfia no cu.

Rico: Calma, pessoal. Está tudo sob controle. A


gente já vai ter um canal seguro pra conversar.

El Rei: E como ficou o lance do hotel? Teu pai


deixou tu ir, Mate?

Mate: Deixou sim. Meus pais vão viajar para o


Uruguai e eu disse que não queria ir junto.

Dio: Ainda bem. Odeio uruguaios.

Rico: Por quê?

Dio: Porque eu odeio qualquer um que fale


espanhol.

Rico: Isso vai prejudicar a tua carreira, sabia?

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Dio: Eu sei, papai. Por isso estou aprendendo


latim no colégio: para me comunicar com o mundo
inteiro.

El Rei: É foda, hein. Pior ainda foi terem trocado


o francês pelo mandarim. Puta que pariu. Quase dei
um tiro na cabeça esse ano.

Dio: Eu toparia ter aulas de todas as línguas do


mundo se tirassem as aulas de etiqueta.

Mate: Caras, acho que vou sair um pouco. Não tô


me sentindo bem. Meio tonto.

Dio: Vou tentar adivinhar: fez uma evocação de


sangue com o Galaxión.

Mate: Eu precisava daquele envelope, meu. Foi


uma verdadeira guerra. Um duelo magnífico. Mas eu
venci.

El Rei: Vai usar o feitiço amanhã?

Mate: Eu vou. Nem que eu morra.

Dio: Quanto drama. Eu jamais faria algo parecido


por causa de uma mulher.

Rico: Não esqueçam da reunião do grupo no


colégio. Eu achei uma sala de aula vazia para ela.

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Dio: Tu acha qualquer coisa, Rico. Basta enfiar


dinheiro no rabo da diretora que subitamente surgem
uma sala, uma quadra de esportes e uma piscina
disponível para nosso uso.

Rico: Não, foi só uma sala mesmo.

Dio: Eu sei, seu escroto. Tava tirando com a tua


cara, troglodita.

Mate: Vou dormir. Até amanhã, Cavaleiros do


Porto!

Eu saí do computador. Antes de dormir chequei o


meu celular. Eu não fazia quase nada nele, já que meu
iphone era ainda mais vigiado do que meu laptop.
Acordei seis da manhã, coloquei meu uniforme e
fui tomar café da manhã. Minha irmã ainda estava me
fitando com uma expressão mortal.
“Cacete, ela não tira os olhos de mim!” Cada
mordida dela na torrada era como uma marretada na
minha cabeça.
Honestamente, eu morria de medo dela. Ao
mesmo tempo, não queria que ela me intimidasse
daquela forma. Eu precisava fazer alguma coisa a
respeito disso. Assim que resolvesse o lance do
envelope, do site e do hotel. Sem contar os deveres
do colégio e o curso preparatório. Era muita coisa!
Eu me sentia como um velho empresário com a
agenda cheia em vez de me sentir como um menino
de 13 anos com algum tempo para curtir e relaxar até
que a vida desabasse sobre minha cabeça.

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Meu pai nos deu uma carona até o colégio.


Magdalena desistiu de me encarar e permaneceu
apenas olhando pela janela do carro. Embora ela
permanecesse com aquela expressão de “eu sei de
tudo”, é óbvio que ela não fazia a menor ideia a
respeito do meu interesse intenso em ocultismo. Se
tivesse a menor desconfiança, ela iria comunicar aos
nossos pais.
Por isso, resolvi esquecer que ela estava aborrecida
comigo. Não era nada mais que o normal. Como
sempre, ela saiu do carro primeiro que eu e disparou
na frente, para não ser vista perto de mim. Não que
minha aparência fosse particularmente vergonhosa,
mas ela provavelmente não queria ser associada a
alguém que não tirava as melhores notas da turma.
“Foda-se o que se passa na cabeça dessa vaca
metida”. Eu achava ótimo não tê-la por perto.
Quando desci do carro, meu iphone vibrou. Eu
até já sabia quem era.

“Tá demorando demais, pô! Vem pro jardim”

Dio era impaciente. Meu pai sempre nos largava


no colégio com uma meia hora de antecedência. Se
ele fazia questão de vir uma hora antes, o problema
não era meu.
Caminhei até o jardim, mas o celular vibrou outra
vez.

“É o outro jardim, vesgo. O de trás”

Virei para os lados, tentando localizar Dio. Ele


estava me olhando de onde?

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De repente, fui empurrado por trás e resvalei para


frente. Lá estava Dio balançando a cabeça em
desaprovação.
– É foda ter amigo burro – falou Dio – isso se
parece com um jardim pra ti? Onde estão as flores? É
só um monte de mato.
– Quem precisa ter um bully como inimigo
quando seu próprio amigo é um? – perguntei.
Dio sorriu.
– Deixa disso e vem pra porra do jardim.
Precisamos de privacidade para conversar, Elias.
Um papo sério com Dio? Era de se estranhar.
Não reclamei e segui o sujeito, que nem se deu ao
trabalho de dar um nó apropriado na gravata. Estava
com os primeiros botões da camisa abertos. O cabelo
desarrumado completava o visual largado. Era o cara
mais boca-suja que eu conhecia. Ironicamente,
sempre chegava muito cedo no colégio e tirava notas
melhores que as minhas. De qualquer forma, quem
não desse um jeito nas notas não ficaria naquele
colégio por muito tempo. Eles não toleravam
repetentes para não sujar a reputação da instituição.
Estudávamos num colégio bilíngue de Porto
Alegre. Isso significava várias coisas. Em primeiro
lugar, tínhamos todas as aulas em inglês e éramos
proibidos de falar português dentro dos portões.
Sinceramente, ninguém ligava para aquela merda.
Naquele exato instante eu estava conversando em
português com Dio. Nós só calávamos a boca
quando algum professor passava.
Em segundo lugar, aquele colégio era caro pra
cacete. Mais caro que os melhores colégios
particulares da cidade. Portanto, somente a elite da

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elite estudava lá. E cerca de um terço ou um quarto


dos estudantes sequer eram brasileiros.
Minha família tinha grana, mas não cagava grana
como a família de Rico, por exemplo, que era o
apelido tosco do nosso amigo. Eu sabia que meus
pais davam o maior duro para conseguir pagar aquele
colégio para mim e para a minha irmã. Por isso
mesmo eles exigiam que fôssemos impecáveis nos
estudos. Garantir as melhores notas seria o único
jeito de conquistar uma bolsa de estudos para fazer
faculdade no exterior. Afinal, se não conseguíssemos
bolsa nossos pais não teriam grana para pagar
faculdade internacional para nós. Pelo menos não a
graduação, que era mais longa.
Eu realmente não me importava com isso. Eu não
me importaria em fazer faculdade no Brasil. Já
Magdalena, metida como era, fazia questão de
estudar nos Estados Unidos e já tinha até as suas
universidades favoritas de ingresso, que possuíam
parceria com o nosso colégio. Eu não duvidava que
ela conseguisse ser aprovada dali três anos, quando
concluísse o ensino médio. Eu só ficava puto
imaginando que meus pais esperavam a mesma coisa
de mim, sendo que eu não tinha nenhum plano de
desperdiçar minha vida inteira, e principalmente
minha juventude, estudando 24 horas por dia como
se eu não tivesse nenhum outro tipo de interesse.
Chegamos no tal jardim, que eu não achei tão
parecido assim com um jardim como Dio falou, e
sentamos num banco.
– E então? – perguntei – O que é que tá pegando,
Diomedes?

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– Espera os outros chegarem e eu falo. Enquanto


isso, vamos falando de outras coisas. Pretende te
declarar hoje pra Greta?
– Eu pretendo e eu vou – respondi, de imediato –
Arranquei um monte de sangue ontem à noite só pra
meter medo em Galaxión e forçá-lo a me dar um
poderoso símbolo de amor.
– Tá no envelope?
– Que eu só vou abrir quando estiver na frente
dela.
Dio riu.
– Parece ótimo. Posso ficar escondido pra
presenciar esse momento memorável?
– É claro que não, idiota. E se der tudo errado?
– E daí? Acontece.
– Tu não entendeu – reforcei – ela é uma das
garotas mais bonitas do colégio. A chance de ela me
dar um fora é alta. Por isso fiz o feitiço.
– Tu acha que ela pode te tratar mal? – perguntou
Dio.
– Eu tenho medo de me portar de forma patética
e, sei lá, chorar ou outra merda.
Precisei de muita coragem para confessar isso. E
só de pensar em receber uma recusa, senti um aperto
no coração. Mas eu jamais voltaria atrás depois de
toda aquela porcaria que fiz.
Dio me fitou de forma estranha nesse momento.
Ele deu um sorriso de canto, mas também me olhou
com simpatia.
– Tu não quer que eu te veja chorar, né? Por isso
não quer que eu olhe.

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– Não é isso. É só que tu zoa com a cara de todo


mundo. Então eu acho nada a ver tu estar lá, só pra
me tirar depois.
– Não esquenta – falou Dio – só perguntei por
brincadeira se eu podia olhar. Se fosse comigo, eu
também não ia querer ninguém perto.
Era difícil imaginá-lo se declarando para alguém
ou se importando com isso. Dio vivia fazendo piadas
com sexo e não parecia acreditar muito em amor.
Talvez porque, embora já estivéssemos no início da
adolescência, ainda fôssemos meio crianças. Ainda
tínhamos aquele espírito livre e invencível.
Mas aquele nosso mundo protegido da infância
estava se rompendo. Nossos sentimentos e
hormônios estavam aflorando de formas
imprevisíveis. Às vezes eu tinha vontade de gritar de
ódio, embora eu não soubesse do que eu tinha raiva.
Mas eu não podia fazer isso em casa ou no colégio.
Ficava guardando tudo dentro de mim.
E mesmo que eu e os outros três garotos
fôssemos grandes amigos e colegas nos últimos anos,
eu conhecia apenas a parte criança de cada um. Cada
vez surgiam mais segredos que guardávamos um do
outro e aquilo era uma merda. Crescer não era
somente complicado, mas quase insuportável.
Aqueles rituais me libertavam. Aquelas lágrimas, o
suor e o sangue. Somente assim eu botava para fora.
Só desse jeito eu era capaz de acordar no dia seguinte
e enfrentar aquelas aulas e provas difíceis, dentre
tantas outras ocupações que eu tinha, que não se
encaixavam para alguém da minha idade.
Eu sentia minha vida fora do lugar. Será que Dio
me entendia?

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Alguém se aproximou, jogando a mochila no


banco.
– Fala, cambada. Que tão fazendo aqui no
cantinho? Tão se pegando?
– Calado – pronunciei, aborrecido.
– Sim, a gente tá se pegando – brincou Dio – quer
participar?
– Isso não tava escrito no contrato da amizade –
ele sentou-se – pois se estiver, eu vou repensar.
O apelido de Rômulo era El Rei, por motivos
óbvios. Ele era o aluno que tirava as notas mais altas
da turma, junto com Greta. Naquele dia eles
descobririam qual dos dois havia sido o melhor do
ano. A prova de admissão para o ano seguinte era
meramente para confirmação de matrícula, mas as
notas desse ano poderiam garantir uma bolsa. O
melhor aluno da turma ganharia uma bolsa de
estudos parcial para o ano seguinte.
– Tu tá nervoso com o resultado de hoje? –
perguntei.
– Não muito – disse Rômulo – porque vou
continuar estudando aqui no ano que vem, com bolsa
ou sem bolsa. E tu, Elias?
– Vou continuar, é claro – confirmei – porque o
ensino médio é o mais importante. Não que eu
quisesse continuar, porque acho que não vou mais ter
vida estudando aqui. E tu, Dio?
– Eu acho que tô curtindo uma mina do nono ano
– disse Dio.
– Não foi isso que eu perguntei – eu disse – tu
nunca curte mina pra namorar, mas só pra ficar.
Então não me interessa.

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Mate Espíritos

– Quanto conservadorismo – comentou Dio –


teus pais tão te estragando.
– E quem é a mina? – perguntou Rômulo.
– Ela tem peitões e bundão – respondeu Dio –
precisa dizer mais?
– Opa, peitos? Onde?
O outro imbecil chegou no meio da conversa e
jogou a mochila por cima das nossas. Ninguém quis
explicar a conversa, porque dava muito trabalho. Dio
apenas continuou falando.
– Eu já vi a calcinha uma vez que ela subiu a
escada – contou Dio – tinha listrinhas laranjas e
brancas.
– Laranjas e brancas, hã? – perguntou Richie,
muito interessado – parece bom!
Richie era nosso amigo rico. Não que eu, Dio e
Rômulo não tivéssemos grana, mas Richie era rico no
sentido tradicional da palavra. Morava numa casa
bem grande. Os pais eram irlandeses. Na verdade ele
mesmo nasceu na Irlanda, mas só morou lá até os
quatro anos, então na prática ele era brasileiro.
Naquele instante, uma professora passou pelo
jardim e olhou na nossa direção.
– Orange and white, huh? – Richie repetiu o
comentário – sounds good!
Nós abafamos o riso. Era uma bosta estar naquela
joça. Não podíamos nem ter uma conversa normal
no nosso idioma.
– Mas tipo, pode dar mais detalhes além da
calcinha? – perguntou Richie, voltando a falar em
português, ao perceber que a professora já tinha
sumido de lá.

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– Não consegui ver a boceta por dentro para saber


se era virgem – disse Dio.
– Não isso, seu verme depravado – disse Richie –
fala, sei lá, do rosto, do cabelo.
– Cabelo amarelo – respondeu Dio – olho roxo.
– Roxo? – perguntou Rômulo – Ela levou uma
porrada?
– Ou rosa, que seja – consertou Dio.
– Não existe olho rosa – eu revirei os olhos,
tentando prever a próxima trollada.
– Opa, então devem ser cinzas ou azuis –
acrescentou Dio – foi mal, não olhei pro rosto. Tava
preocupado com a bunda.
– Troll – eu disse.
– É verdade! E ouvi dizer que ela é a melhor da
turma. O nome dela é Magda ou Magdala. Algo assim.
Eu senti uma sensação ruim.
– Não seria Magdalena? – perguntei.
– Isso mesmo – confirmou Dio – Magdalena
Gonzalez. Como é que tu sabe?
– Tu não sabe nem meu sobrenome, trouxa? –
perguntei.
– Um tempo atrás não sabia nem teu nome –
justificou Dio – pra mim tu é o Mate.
– Meu nome é Elias Gonzalez. A Magdalena é
minha irmã.
Houve um momento de silêncio. Logo após,
Rômulo e Richie desataram a rir. Pensei que Dio ia
rir junto, mas ele apenas me fitou em estado de
choque. E ele corou! Puta merda. Nunca imaginei o
dia que veria o Dio embaraçado com qualquer coisa.
– Nossa, me desculpa! – disse Dio – Não sei onde
enfiar a cara.

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– Relaxa – falei – eu odeio ela.


– Mas bah, se eu soubesse disso antes, nem tinha
começado a olhar – prosseguiu Dio – então deixa pra
lá. Não vou atrás dela.
– Pode ir, não ligo – insisti – acho que tu não
entendeu. Eu realmente não dou a mínima pra o que
ela faz ou deixa de fazer. Quem ela come ou deixa de
comer. Só aviso que ela é bem religiosa, então talvez
só transe depois do casamento. Ou não. Enfim, foda-
se. Vamos parar de falar dela. Dá azar.
– Caras, já tá quase na hora de entrar – avisou
Richie.
– Antes disso, queria contar uma coisa pra vocês –
falou Dio – já ia me esquecendo.
– É mesmo – falei – o que era?
– O ano letivo já tá quase acabando – começou
Dio – e pelo jeito vão ser nossos últimos dias de aula
juntos, porque não vou estudar aqui no ano que vem.
Nós fitamos Dio com espanto.
– Tá de brincadeira – falei, sem acreditar.
Dio era um palhaço. Não podia estar falando sério.
– Vai pra outro colégio? – perguntou Rômulo.
– Vou me mudar pra Macedônia – disse Dio.
– Que aleatório – comentei, com desagrado.
Pensando bem, o nome dele tinha origem grega e
a Macedônia ficava ali perto, então... fazia algum
sentido? Independente de fazer ou não, eu não queria
aceitar.
– Tenho família lá – explicou Dio.
– Filho da puta – foi só o que consegui dizer.
– Calma, isso não é decisão minha – explicou Dio
– meus pais resolveram ir pra lá, do nada. Vou ter
que acompanhar.

23
Wanju Duli

– E tu sabe falar macedônio, ou seja lá que língua


eles falam? – perguntei.
– Porra nenhuma – respondeu Dio.
– Então!
– Vou ter que aprender, ou me comunicar em
inglês – disse Dio – quem sabe estudar num colégio
bilíngue de lá ou o caralho. Não tô feliz com isso
também.
– Fica aqui – falei.
– Eu tenho treze anos! Vou ficar como? Tu vai
me hospedar aqui e cuidar de mim?
– Se meus pais deixassem, eu juro que te
hospedava – eu disse.
– Meus pais meio que querem me criar, porque
eles acham que ainda tô numa idade em que eles se
sentem responsáveis por mim – explicou Dio – isso
não é óbvio?
Nem sei porque me preocupei se ia cair no choro
por causa da parada da Greta. Chorei muito mais
com a notícia da ida do Dio.
Não chorei porque quis. As lágrimas
simplesmente caíram. Acho que foi só naquele
instante que notei o quanto eu e o Dio éramos
amigos e a falta gigantesca que ele ia fazer.
Ele era meu melhor amigo! Era por causa dele que
as aulas ainda eram suportáveis. Só ele sabia falar
merda como ninguém e me fazer rir.
Eu não queria perder tudo aquilo.
Dio ficou muito surpreso quando eu chorei. Ele
meio que riu, mas também se preocupou.
– Não é o fim do mundo – ele disse – tem a
internet.

24
Mate Espíritos

– Que se foda a internet – eu falei – tu tá indo pro


fim do mundo sim!
Naquele momento eu odiei ainda mais estudar no
tal colégio bilíngue. Não era a primeira vez que eu
perdia um amigo que se mudava para outro país ou
outro estado. Os pais daqueles alunos não paravam
de viajar, como se tivessem fogo no rabo e não
conseguissem ficar num lugar só por muito tempo.
Principalmente na idade em que estávamos, ficar
se mudando de um lugar para outro era roubada.
Como manteríamos amizades? Era complicado. Dio
encontraria novos amigos no novo país. E faria
sucesso, porque Dio era um cara legal, divertido e
comunicativo.
Eu ainda teria Rômulo e Richie, mas não seria a
mesma coisa. Richie também vivia viajando para a
Irlanda e quase nunca estava conosco nas férias ou
feriados. E o CDF do Rômulo só queria saber de
estudar.
Aquela notícia só podia ser um pesadelo.
De repente, desejei me mudar para um colégio
local. Um colégio em que os estudantes gaúchos
optassem por continuar morando em Porto Alegre,
para que assim eu não perdesse mais ninguém.
Meus pais e minha irmã eram invisíveis para mim.
Meus amigos eram tudo o que eu tinha. Eles não
tinham entendido isso ainda? Eles não tinham uma
família como a minha, então não podiam saber.
Acho que Dio entendeu um pouco a minha dor,
pois ele disse:
– Um dia vou dar um jeito de voltar.
– Nem vai dar – retruquei – vai arranjar uma
namorada por lá. Um emprego.

25
Wanju Duli

– Que nada. Vou fazer faculdade aqui.


– Balela – falei – todos vocês já estavam
planejando fazer graduação no exterior desde o
começo. Não é por isso que estão estudando aqui?
Tu, Rômulo!
– O que tem eu? – perguntou Rômulo.
– Tu vive dizendo o quanto nosso colégio é
melhor que os outros particulares daqui, melhor que
os federais, os militares e o diabo a quatro – falei – e
que o colégio não sai no ranking do ENEM porque
ninguém aqui liga pras universidades federais
brasileiras porque vai estudar no exterior, e blá, blá,
blá.
– Eu posso até ter dito algo assim – confessou
Rômulo – mas eu nunca disse que as universidades
brasileiras são ruins. O ranking internacional é
baseado principalmente em pesquisas. Mesmo uma
instituição de ensino que não publique muitas
pesquisas acadêmicas originais pode se destacar em
outras áreas.
– Belas palavras – eu disse – na prática, todos
vocês vão se mandar. Eu sabia que isso ia acontecer.
– E tu? – desafiou Rômulo – Não vai pra fora
também?
– Não quero ir mais – decidi – já cansei dessa
babação de ovo pra gringo. Decidi que vou estudar
meu ensino médio num colégio particular local.
– E a Greta? – lembrou Dio.
– Ela vai me dar um fora de qualquer forma –
falei – vou me declarar só pra tirar isso da cabeça.
Já estávamos em cima da hora. Pegamos as
mochilas e corremos para a sala de aula.

26
Mate Espíritos

Notei que Greta lançou um olhar perigoso para


Rômulo. Talvez aquele não fosse um dia adequado
para me declarar. Ela estava preocupada com outra
coisa.
O primeiro período foi macroeconomia, que foi
profundamente chato. Ouvi dizer que nos colégios
locais não havia aulas de economia, política ou
psicologia. Seria bem mais fácil sem isso.
– O pior vai ser cálculo – Dio sussurrou – espero
que no meu novo colégio não tenha isso. Deseja a
vocês um belo inferno a partir do ano que vem.
– Só vai ser pré-cálculo no nono ano – disse
Rômulo – cálculo mesmo só deve ter no 10° ou 11°
ano.
– Como se fizesse diferença – disse Dio – mesma
merda.
Todas aquelas conversas estavam me
enlouquecendo. Eu já tinha perdido Dio e estava
prestes a perder Greta. Sendo que nunca tive Greta,
para início de conversa.
Greta parecia estar num péssimo humor. Sua
expressão era irritadíssima.
Quando a professora de química declarou as notas
finais da turma no terceiro período, soubemos que
Rômulo tinha sido o número um. Demos a ele os
parabens e, embora ele dissesse que não se importava,
é claro que se importava sim.
Fomos almoçar na cafeteria do colégio, pois no
início da tarde teríamos as últimas aulas. Mas eu não
consegui comer. Decidi que ia me declarar para Greta
antes do almoço.
Encontrei Greta parada sozinha no corredor. Era
a ocasião perfeita.

27
Wanju Duli

Greta tinha cabelos longos e ruivos, ondulados e


meio embaraçados de forma bastante charmosa. Eu
nunca tinha me aproximado dela o suficiente para
analisá-la com detalhes, mas as olhadas de longe já
faziam meu coração – e, confesso, meu pau – pulsar.
Quando cheguei perto, chamei-a pelo nome. Ela
se virou para me olhar.
Eu ia começar a dizer alguma coisa, mas parei. Os
olhos de Greta, que eram da cor de avelã, estavam
vermelhos. Ela estava chorando.
Eu senti uma pena desesperada dela. Greta ficava
linda assim, triste. Parecia uma bonequinha, com as
sardas e sinais de seu rosto misturados com as
lágrimas, como se fosse uma sopa.
Mas naquele instante eu não queria devorá-la e
sim abraçá-la. No entanto, recuei.
– Me desculpe.
Achei que fui rude ao dirigir-me a ela enquanto ela
chorava. Ela também deve ter achado, pois seus
olhos se estreitaram ao olhar para mim.
– O que tu quer?
Ela me perguntou isso de forma ríspida. Senti-me
extremamente desencorajado. Mas aquela era a última
semana de aula para quem não tinha pegado
recuperação. E eu podia não ter coragem de falar
aquilo nos próximos dias.
Entreguei a ela o envelope. Ela abriu e fitou o
símbolo.
– Eu te amo.
Eu disse isso de uma vez só. Isso não significava
que eu a amasse realmente, já que eu nem a conhecia,
e sim que eu estava apaixonado, que me sentia

28
Mate Espíritos

atraído. Mas era mais fácil dizer dessa forma, e eu


esperava que ela entendesse.
– Isso é alguma piada? – ela perguntou, de forma
mal educada.
– Não, é sério.
– Por que isso, agora? Não tinha uma hora melhor
pra dizer?
Eu não soube o que responder.
– Tu não sabe o que é amor – ela prosseguiu – tu
nem me conhece. Aposto que só se apaixonou pelos
meus cabelos, pelas minhas sardas e pelos meus
peitos, como todos os outros.
– Não é verdade – eu tentei dizer, inutilmente.
Mas eu nem estava mais a fim de discutir com ela.
Era muito humilhante.
– Se quer saber, eu odeio meu cabelo – ela revelou
– fui alvo de piadas por causa dele por muito tempo.
E é muito difícil mantê-lo desembaraçado. Sempre
que lavo, é terrível pentear. Mas mais do que meu
cabelo, detesto minhas sardas, essas manchas
horríveis no meu rosto. Eu adoraria ter um rosto
lisinho, sem nada. Tenho feito tratamentos para
tentar me livrar das sardas, mas sem sucesso. Agora,
quer ouvir sobre meus peitos?
Eu estava em choque.
– É falso. Eu uso dois sutiãs com bojo por baixo
da camisa. Eu pretendia colocar silicone quando
ficasse mais velha, mas que se foda. Não quero mais
ficar velha. A vida é uma merda.
O que se diz numa situação dessas? Ela ainda
estava falando comigo ou estava falando sozinha?
– Não aguento mais estudar ou me arrumar –
confessou ela – eu estudei sem parar nesses últimos

29
Wanju Duli

dois meses. Não fiz nem intervalo pra cagar no meio


das contas de matemática. Tô sempre fazendo
tratamento no cabelo, que nunca fica nem liso e nem
com cachos definidos, e sim essa coisa bagunçada e
rebelde. Eu recebo pelo menos uma ou duas
declarações de amor por mês de burgueses tarados
desse colégio, que nunca conversaram comigo antes.
Eu apenas dispenso todos eles, porque eu não
acredito mais no príncipe encantado. Não sou mais
criança.
Eu entendi a situação rapidamente. Ela só podia
estar chateada por ter perdido a bolsa de estudos.
– Se conversar com Rômulo, talvez ele concorde
em passar a bolsa de estudos pra ti...
Mas eu disse a coisa errada. A menina se
enfureceu.
– Eu não quero nenhum favor dele! – ela gritou –
Se eu não ganhei a bolsa é porque sou burra! Vou ter
que estudar meu ensino médio em algum colégio
particular fedorento. Eu mereci isso. E serei cantada
por mais homens nojentos que nem sabem falar
português direito.
Aquela garota tinha sérios problemas. Naquele
instante não gostei mais dela e senti-me aliviado por
ter me livrado daquela mocinha escandalosa e
superficial.
Pelo jeito os pais dela não seriam capazes de
mantê-la no colégio sem a bolsa e ela considerava
isso o fim do mundo. Mas se ela se queixava que
tinha que estudar demais, por que ela estava
reclamando?
Eu não estava mais a fim de escutar as
manifestações de chilique de Greta. Ela não tinha

30
Mate Espíritos

nada que descontar em mim. Eu não tinha nada a


ver! Em vez de melhorar o ânimo dela, minha
declaração a havia deixado braba.
– Desculpe por ter me declarado – pronunciei –
agora vejo que foi um erro.
– Vocês homens são todos iguais – ela disse – só
pensam com o pau. Que nojo! Raça pervertida e
odiosa. Deviam morrer todos!
Uau! Eu deveria rir daquilo? A senhorita frígida
havia se autodeclarado a rainha do universo e pelo
jeito até um pedestal seria muito pouco para ela.
Eu pensei que ia chorar ao receber a recusa de
Greta, mas naquele momento eu quase ri. As coisas
que ela dizia eram tão absurdas que me deixaram
embasbacado e sem fala. Mas eu sabia recuperar a
língua quando necessário.
– Vocês mulheres que são todas iguais – retruquei
– e pensam que podem nos chutar como cachorros.
Usam a beleza como arma e se acham tão poderosas
e superiores! Mas tu, senhorita, particularmente leva
isso ao extremo. Não é mais fácil que tu morra em
vez de todos os outros? Tu claramente não tá
preparada pra esse mundo competitivo e injusto. Não
vai sobreviver a ele. Qualquer coisinha que acontece,
já tem um chilique! Que babaquice...
Ela me fitou firmemente.
– Sim, é verdade – ela concordou – sou mimada e
escandalosa. Odeio perder. Doeria demais perder
outra vez.
E ela saiu de lá.
“Porra o que foi isso?” Eu ainda me sentia meio
tonto. Aquilo tinha acontecido mesmo?

31
Wanju Duli

Eu comecei a rir. Retornei para o refeitório e


relatei para meus amigos em detalhes o que tinha
acabado de acontecer. Eles também riram.
– Ainda bem que te livrou dela – falou Dio – seria
o inferno namorar uma maluca como essa.
– Eu também estudei sem parar nos últimos dois
meses – comentou Rômulo – aliás, tenho estudado
sem parar desde o início do ano. Ela claramente
perdeu tempo demais arrumando o cabelo. Deixar de
cagar não é o bastante para superar as minhas notas.
– Vocês nem entraram no ensino médio ainda e já
estão todos loucos – comentou Richie, achando graça
– deviam saber que basta ter grana pra entrar numa
universidade do exterior. Algumas nem pedem prova
de admissão. Só dinheiro.
– As melhores do mundo não pedem só dinheiro
– observou Rômulo – tem que fazer mil provas,
entrevistas, mostrar currículo, ter tirado nota máxima
em tudo, ter feito trabalho voluntário em todos os
buracos. É foda.
– E por que tu quer estudar nas melhores do
mundo? – riu-se Richie – Por status? Vocês já sabem
como é ter grana. É massa, mas não é a última
bolacha do pacote. Se viverem sempre com todo esse
estresse, vão morrer do coração rapidinho e nem o
dinheiro vai salvar.
– Não estou estressado – defendeu-se Rômulo –
basta saber administrar o tempo. Isso é algo que
Greta claramente não sabe fazer. Ela é inteligente,
mas é meio fanática. Achei que ela fosse enfiar uma
faca em mim.

32
Mate Espíritos

Alguns minutos depois, houve uma agitação no


refeitório. Eu nem tinha terminado de comer ainda.
Estavam todos indo lá pra fora.
– Essa é a época dos suicídios, com a entrega das
notas finais – brincou Rômulo – alguém deve ter
cortado os pulsos no banheiro.
– Cortar os pulsos é coisa de menina – disse Dio –
macho dá tiro na cabeça, com vontade.
– Ei, parem de falar merda – disse Richie – parece
que é sério.
– Eu também me mataria se eu pagasse o preço de
uma Harley Davidson em um ano de colégio e depois
rodasse – falou Dio.
Mas é claro que a gente, assim como todo mundo,
tava curioso para saber o que tinha acontecido.
Larguei o resto do meu almoço e fomos pra fora.
Havia uma aglomeração dos infernos. Parecia que
todos os alunos do colégio estavam lá se empurrando.
Havia até alguns com celular tirando foto.
– Alguém se jogou do terraço – comentou Richie.
– Clássico – falou Dio.
Dio estava realmente indiferente àquela situação
ou estava se fazendo?
– Eles tinham proibido o acesso ao terraço por
causa de um estudante que se jogou cinco anos atrás
– disse Rômulo – algum maluco deve ter roubado a
chave.
Eu não tinha certeza se queria ver. Aquela
multidão estava me sufocando.
– Vamos sair daqui – falei, empurrando alguns
alunos.
– Vou tentar descobrir quem foi – disse Dio.

33
Wanju Duli

– Aposto que foi a Greta – brincou Rômulo –


porque não aguentou ficar em segundo lugar.
– Cara... foi ela mesma – informou Richie.
– O quê? – perguntou Rômulo, incrédulo.
Conseguimos abrir espaço na multidão. Eu não vi
o rosto, pois o corpo estava quase completamente
coberto por um pano. Mas eu enxerguei algumas
mechas ruivas e uma parte do braço com sangue,
com as unhas esmagadas.
Senti uma sensação horrível e virei o rosto na
mesma hora. A visão dos cabelos e do braço havia
me atingido em cheio, como um tiro, como veneno.
Eu queria vomitar.
– Preciso sair – falei, com urgência e voz fraca.
Eu estava desesperado para abrir espaço. Achei
que fosse desmaiar.
Eu nunca pensei que eu fosse assim tão fraco.
Enquanto Dio estava observando a muvuca com
curiosidade e entusiasmo eu não conseguia sequer
olhar. Sem mencionar os estudantes impressionados
batendo fotos. Eu juro que vi alguns rindo, como se
fosse um espetáculo. Eles estavam adorando.
O mais intrigante é que eu não vi ninguém
chorando. Eles apenas queriam tirar logo o corpo do
lugar e disfarçar, como se nada tivesse acontecido.
Apostei que nem mesmo cancelariam as aulas após o
almoço, para não levantar suspeitas. Um incidente
daqueles mancharia a reputação do colégio.
– Pessoas fazem isso todo dia – Dio falou para
nós – é completamente normal.
Dio estava começando a me irritar com seus
comentários.

34
Mate Espíritos

– Eu falei com ela meia hora atrás – lembrei – eu


me declarei pra ela hoje, cacete!
– Isso é apenas um detalhe – disse Dio – porque
cinco minutos atrás tu estava xingando a guria. Vai
voltar atrás no que disse só porque ela morreu? Todo
mundo vai morrer um dia. Não faz diferença.
– Cala a boca – eu disse – eu tô preocupado. E se
ela se jogou por causa do que eu disse?
– Besteira – falou Rômulo – quando tu encontrou
a Greta ela já tava chorando. E o choro dela foi
porque eu tirei maior nota.
Então tanto eu como Rômulo tínhamos alguma
culpa naquela situação. Mas o verdadeiro culpado
não era algo maior? Talvez o sistema de ensino ou a
neura imposta no nosso colégio. Eu simplesmente
não era capaz de culpar unicamente o desespero da
Greta.
– Puta que pariu! – exclamou Dio – Ela não
morreu!
Nesse instante, o meu mal estar superou os limites.
Alguns estudantes ao redor gritaram quando o
suposto cadáver se mexeu. Ela ainda ia sofrer antes
de morrer. Dessa vez eu chorei e corri de lá. Eu não
queria ver aquela cena doentia. Greta não podia ser
salva após ter pulado daquela altura. Para completar,
ela ainda ia demorar alguns minutos com dor intensa
antes de perder a vida.
“Isso às vezes acontece” eu ouvi o comentário de
Dio. E teria lhe dado um soco na cara se eu não
estivesse tão desesperado.
Eu apenas queria parar de sentir aquela sensação.
Greta não era tão especial assim para mim. Ela era
apenas a garota bonita da turma e eu me declarei a ela

35
Wanju Duli

para seguir a moda. Eu sabia que ela era difícil de


lidar e fiquei mesmo com raiva do que ela me disse.
Mas ela era uma pessoa problemática. É claro que
o fato de eu conhecê-la e de ter conversado com ela
naquele dia tinha me afetado. Mas eu estava me
sentindo mal simplesmente porque alguém do meu
colégio tinha se jogado. Aquilo já era o suficiente
para eu ficar impressionado.
E as aulas da tarde não foram canceladas. Dio riu
quando soube.
– Nem quando alguém morre eles param as
malditas aulas? – disse Dio – Viva o sistema de
ensino prussiano! Só falta colocarem uma coleira no
nosso pescoço.
– Eles não cancelaram as aulas porque Greta não
morreu – informou Richie.
– Como assim, não morreu? – perguntou Dio,
como se aquela notícia fosse péssima.
– Parece que ela foi pro hospital e não corre mais
risco de vida – informou Richie – mas vai ficar
paraplégica.
– Ninguém liga – disse Dio – porque ela vai sair
do colégio de qualquer forma. As aulas já terminam
nessa sexta e ela provavelmente vai passar essa
semana no hospital. Então nunca mais a veremos.
– Mas tu é um pau no cu mesmo – comentei –
nunca vi alguém falar tanta bobagem numa situação
grave como essa.
– As pessoas assistem ao noticiário todo dia –
explicou Dio – e por acaso tu vê alguém chorando ao
saber de cada morte?
– Essa merda aconteceu no nosso colégio! –
exclamei.

36
Mate Espíritos

– Acontecem merdas piores – retrucou Dio – o


acontecimento de hoje foi quase uma libertação e um
entretenimento. E como ela não morreu mesmo, não
venham dizer que estou blasfemando ou difamando
os mortos, porque não estou. As pessoas têm que
valorizar os outros enquanto vivem e não depois da
morte. Podem cuspir no meu cadáver depois, pouco
me importa.
– Tu só tá com inveja da menina, Dio – falou
Rômulo – porque queria ter coragem pra se jogar
também.
– Esse esporte definitivamente não faz meu estilo
– falou Dio – eu só lamento por ela, por ser tão
estúpida. Ela estava sentindo uma dor mental tão
forte que queria passar para o corpo. Somente assim
a mente não explode.
Era exatamente aquilo que eu fazia nas minhas
evocações. Então será que eu e Greta éramos mais
parecidos do que eu imaginava?
Mas era melhor esquecê-la. Como Dio falou, eu
não a veria mais e ela não teria mais influência na
minha vida. Ela não me disse coisas muito legais
naquele dia e por isso mesmo eu não tinha obrigação
nenhuma de defendê-la.
As aulas da tarde foram totalmente inúteis. A
notícia da tentativa de suicídio se espalhou como
fogo. Todos só falavam disso e certamente seria o
assunto do momento até o final da semana, que
felizmente coincidiria com o final do ano letivo.
Eu não me sentia bem. E até Dio, que estava
fazendo pose de bonzão, também não parecia muito
legal. A expressão dele denunciava tudo.

37
Wanju Duli

Rômulo se defendia, insistindo que a culpa não


era dele por ter estudado demais e ter tirado mais
nota que ela. Ninguém iria culpá-lo, mas a insistência
de Rômulo nesse assunto me sugeria que, lá no
fundo, ele se sentia um pouco culpado sim.
Aquele dia foi uma merda completa, do começo
ao fim. No final da aula, eu me lembrei de uma coisa.
– Vocês acham que foi Galaxión? – perguntei.
– Tu entregou o envelope pra ela? – perguntou
Dio.
– Sim, ela levou embora – eu disse – nem vi o que
tinha dentro. Eu escrevi ou desenhei qualquer coisa
lá pelo método da escrita automática enquanto estava
em transe.
– Tá a fim de se comunicar com o espírito dela
por Ouija? – sugeriu Dio.
– Ela não morreu, panaca – lembrou Rômulo.
– E sabem o que é pior? – lembrei – Hoje tenho
curso preparatório.
Fiquei no colégio pra merda do curso. Dio não
precisava fazer, já que não estudaria conosco no ano
seguinte. Agora eu entendia porque ele não se
matriculou. E como Rômulo já sabia que ia tirar uma
das notas mais altas, também estava isento da prova
de ingresso.
Portanto, somente eu e Richie ficamos, junto com
outros estudantes do nosso ano.
Quando voltei para casa já era início da noite. Eu
só teria tempo de jantar, tomar banho, fazer os
deveres e dormir. Aquilo se parecia muito pouco com
uma vida.
Durante a janta, nem eu e nem minha irmã
comentamos sobre a tentativa de suicídio no colégio.

38
Mate Espíritos

Achamos que não seria apropriado. E não falamos


sobre isso entre nós tampouco. Eu não tinha vontade
de falar com ela nem em situações excepcionais.
Magdalena fez a reza daquela noite. Era detestável
até ouvir a voz dela. Eu não via a hora de me tornar
logo maior de idade, pegar qualquer emprego e me
mandar daquela casa. De que adiantava ter tudo se,
no fundo, eu não tinha nada?
– Foi aprovado em todas as disciplinas, Elias? –
perguntou minha mãe.
Quase engasguei. Eu tinha pegado recuperação
em política.
– Sim – respondi, sem olhá-los.
Afinal, se meus pais soubessem que peguei
recuperação, a minha reserva do hotel no sábado
seria cancelada.
Decidi que eu iria fazer outro ritual naquela noite
para me comunicar com Galaxión, mesmo que eu
cochilasse nas aulas do dia seguinte. Mas antes que eu
entrasse no meu quarto, minha irmã veio falar
comigo.
– Aquela guria era da tua turma?
Eu sabia exatamente de quem ela estava falando,
mas fiquei levemente surpreso pelo interesse.
– Sim – respondi.
– Tu conhecia ela?
Fiz que não.
– Mas ela não morreu – acrescentei.
– Devia ter morrido – comentou minha irmã –
porque ela era muito bonita. Mas agora vai ficar feia.
Minha irmã sorriu e saiu de lá.
Magdalena gostava de fazer comentários gratuitos,
mas senti que aquele comentário em particular era

39
Wanju Duli

suspeito. Ela sabia que eu gostava de Greta? Mas ela


não tinha como saber porra nenhuma, nem de quem
eu gostava e nem dos meus rituais.
Eu não estava no clima de arrancar sangue
naquele dia. Apenas alcancei um pano com um
círculo arcano desenhado e sentei sobre ele na
posição de lótus para meditar. Acendi um defumador
e chamei Galaxión.
– Me diz de uma vez, Gala – mandei – que tu
fizeste a Greta?
– Fiz com que ela se apaixonasse perdidamente
por ti. Não foi isso que me requisitaste?
– Ela só me xingou!
– Porque ela odiou a si mesma por te amar.
– Que papo furado. E ela se jogou por quê?
– Conheço a tua mente em profundidade, mas
não a dela – respondeu Galaxión – quando a
encontrei, ela já estava triste e perdida. Não podia
mais ser salva.
– E agora?
– E agora nada. Arruma outra menina menos
louca para gostar.
Era um conselho razoável. Eu não iria atrás de
Greta outra vez após ser dispensado tão
vergonhosamente. Ela tinha me humilhado.
Mas havia outras gurias bonitas na minha sala. Se
bem que depois daquela maluquice com a Greta eu
não estava disposto a me apaixonar novamente tão
cedo. Não para ser pisoteado como Greta fez comigo.
Talvez eu devesse começar a ficar com as minhas
colegas em vez de pedir em namoro.
Porém, todos aqueles pensamentos sumiam da
minha mente e somente restava a imagem das unhas

40
Mate Espíritos

esmagadas e ensanguentadas de Greta. Eu não iria


esquecer daquilo tão cedo. Será que aquela cena de
terror iria me assombrar por toda a vida? Ainda bem
que eu não a tinha visto pular. E o fato de ela ter
sobrevivido me deixava um pouco menos chocado.
E fiz a única coisa que, além dos rituais, me trazia
um pouco de paz: falar com meus amigos. Liguei o
computador.

Dio: Tá atrasado, pra variar. É um bostinha.

Mate: Eu tive aquela porcaria de curso


preparatório. Não tinha como chegar cedo em casa,
jumento.

Rico: Eu também tive, mas tô aqui, não tô?

Mate: Não, tu é um fantasma, seu cocozão.

El Rei: E a gente tava tudo animado com o nosso


grupo de magia, mas o Dio estragou tudo.

Dio: Não precisamos mais ser um grupo


presencial. Pode ser online.

El Rei: Mas aí não pode ser mais os Cavaleiros do


Porto, já que tu vai te mandar de Porto Alegre, otário.

Dio: Lá em Escópia tem um riozinho, o Vardar.

Mate: E daí? Ninguém quer saber dessa cidade,


Dio, então cala a boca. Todo mundo tá puto contigo
e com ela.

41
Wanju Duli

Dio: Vamos combinar de se falar online todo dia.

El Rei: Além de canalha, o Dio é piadista. Quem é


que vai ter tempo de conversar todo dia e ainda se
adaptar ao teu fuso horário?

Dio: São só quatro horas a mais.

El Rei: Eu não vou querer perder nem mesmo


uma hora de sono quando estiver no ensino médio.

Mate: Vai ser foda fazer qualquer coisa com vocês


dois, hein? Um vai estar lá na puta que pariu e outro
vai só estudar como a puta que o pariu.

Rico: Ei, guris, vocês checaram o Facebook? A


Greta tinha deixado uma mensagem de despedida
antes de se jogar.

El Rei: Por que vocês ainda tão falando dela?

Rico: Porque esse é o assunto do momento. E


aconteceu hoje, pô! Queriam que todo mundo
esquecesse e ficasse de boa?

El Rei: Sinceramente, eu preferia, porque dois


imbecis já me xingaram por lá, dizendo que ela se
jogou porque eu não fui cavalheiro para dar a ela a
bolsa de estudos.

Mate: É sério que tão dizendo isso? Que mal


comidos!

42
Mate Espíritos

El Rei: É puta sério. Vê lá.

Espiei o perfil de Rômulo. Um dos caras devia ter


mandado mensagem privada, mas outro estava até na
lista de amigos de Rômulo e xingou-o diretamente no
perfil dele. Ambos eram estudantes do nosso colégio.
Fazia um tempinho que eu não entrava no
Facebook, porque meu pai ficava na minha cola.
Rômulo tinha mudado a foto do perfil. Ele estava
carregando um troféu do clube de robótica, xadrez
ou sei lá quais merdas ele fazia. De vez em quando
ele ia para campeonatos de alguma coisa em São
Paulo.
Rômulo tinha cabelos cacheados, olhos escuros e
pele morena. Tinha descendentes italianos, indígenas
e angolanos. O assunto da descendência surgia entre
nós quando não tínhamos sobre o que conversar. Era
como falar do tempo.
Eu achei uma viagem xingarem o cara por algo
que nem era culpa dele. Fui no perfil da Greta para
ler a tal mensagem de despedida. Era o seguinte:

“Eu fiz tudo o que podia. Agora vou fazer tudo o


que não posso”.

Eu já tinha espiado o perfil dela algumas vezes,


mas eu não era stalker. Eu nem tinha a guria na lista
de amigos. Ela tinha umas fotos lindas nas praias de
Salvador. Ela parecia realmente feliz nessas fotos,
posando com amigos. Mas talvez não estivesse feliz.
Richie era outro que tinha fotos em Salvador.
Acho que ele tinha fotos em quase todas as capitais

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Wanju Duli

do Brasil e em várias cidades no interior do Rio


Grande do Sul. Era engraçado, pois apesar de ele ter
nascido na Irlanda e os pais deles terem grana, ele
nunca tinha ido para nenhum outro país além do
Brasil. Ele e a família dele adoravam o Brasil e viviam
se hospedando em hoteis de luxo brasileiros em vez
de viajar para o exterior.
Ele tinha cabelos e olhos castanhos claros. De
tanto que ia para a praia a pele dele tinha ficado
permanentemente bronzeada. Ele curtia surfar pra
caralho. Ele tava no clube de corrida e de futebol do
colégio.
Eu mesmo não estava em clube nenhum, tanto
por falta de interesse como por ter o tempo
preenchido pelo curso preparatório.
Dio me enviou uma mensagem privada pelo
Facebook:

“Por que tu deixa a porra do teu telefone


desligado?”

Respondi a mensagem, alegando que estava sem


bateria, mas ele me mandou tomar no cu. Ele não
teria nada importante para me dizer mesmo, então
não sei porque aquela bicha se importava.
Ele estava puto comigo porque eu tinha largado as
aulas extracurriculares de programação no mês
anterior. Eu disse a ele que era muita coisa pra mim e
ele disse que todos os outros faziam cursos extras e
só eu que ficava reclamando de barriga cheia.
Talvez eu não soubesse mesmo administrar bem
meu tempo ou quisesse um tempinho livre apenas
para ficar de pernas para o ar. O que tinha de errado

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Mate Espíritos

nisso? E por que eu devia dar satisfações? Eu não


estava tentando construir um currículo perfeito para
ser admitido nas melhores universidades, então eu
não precisava escrever no meu futuro currículo que
os meus hobbies eram tão nobres como tocar
clarinete, apenas para deixar os examinadores
impressionados. Meus hobbies poderiam ser evocar
demônios ou tirar meleca do nariz e enfiar no cu.

“Tu tá muito sexy nessa foto, meu. Eu te comeria”

Como resposta ao meu comentário, Dio digitou:

“Vem aqui me pegar, garanhão. Tô em casa, no


sofá com uma garrafa de vinho. 9876-6969. Te
espero, beijos!”

Eu me perguntei de quem raios era aquele


telefone. Deu até vontade de ligar só pra descobrir.
Eu telefonei mesmo e atendeu uma mulher com voz
sensual. Era telefone de um puteiro.
Xinguei Dio pra cacete depois disso.

“Tá louco! E se meu pai checar essa ligação?”

“Eu não mandei tu ligar pra essa boceta, sua mula.


Só joguei o número lá, como um peido. Nem pensei”

A foto de Dio que eu elogiei era nada a ver. Era


ele fazendo uma careta horrorosa, que era a foto que
ele usava no perfil. Ele não tinha uma só foto séria
no Facebook. Era tudo zoação mor.

45
Wanju Duli

Dio tinha cabelos pretos e olhos castanhos. A pele


dele era tipo a minha: era branca, mas não era pálida.
Ele tinha a aparência de um cara comum qualquer
que se encontraria na rua. Nada de especial, não
particularmente bonito, mas também não era feio.
Mas bastava conhecer Dio mais um pouco que ficava
claro que ele não era qualquer um. Era impossível
não curtir a personalidade dele: era babaca pra
caralho, mas tinha algo legal em tanta babaquice.
Eu fiquei tanto tempo na internet naquela noite,
checando as atualizações de todo mundo e buscando
os rumores a respeito da quase morte de Greta, que
fui dormir umas duas da manhã. Acordei totalmente
quebrado e com sono, mas não reclamei. Se eu me
queixasse, meus pais iam descobrir que fui dormir
tarde.
Na sexta-feira eu e Richie fizemos a prova de
admissão. Achei que fui bem. Minha única
preocupação agora era fazer a prova de recuperação
de política na semana seguinte. Mas meus pais ainda
não precisavam saber disso.
Acordamos cedo no sábado de manhã e
combinamos de nos encontrar na rodoviária.
Achamos que seria mais divertido viajar de ônibus
para o interior do Rio Grande do Sul do que pedir
para o pai ou a mãe de alguém nos levar de carro.
Assim teríamos mais liberdade de conversar e fazer
qualquer merda no caminho.
Era um alívio poder me encontrar com meus
amigos sem estar usando o uniforme do colégio.
Estávamos todos de calças compridas, casacos, luvas
e cachecóis. O ano letivo seguia o mesmo calendário
dos Estados Unidos e terminava no meio do ano. O

46
Mate Espíritos

novo ano letivo começaria novamente em agosto.


Richie achava isso uma merda, pois ele teria preferido
viajar para a praia durante as férias longas e não para
a serra.
De qualquer forma, a maioria concordava que
quase todas as praias do Rio Grande do Sul eram
umas bostas. Então em vez de viajar para outro
estado era mais fácil viajar para uma cidade vizinha.
Principalmente durante o inverno, já que ninguém
estava muito a fim de congelar nas praias de Santa
Catarina naquela época.
Todos fomos com mochilas grandes nas costas, já
que passaríamos a noite de sábado para domingo no
hotel.
Aquele foi um momento memorável. Tirando a
droga da prova de recuperação, que só eu ia fazer, as
aulas tinham terminado. No ano letivo seguinte
seríamos colegiais no respeitável e assustador ensino
médio. Nossa mente estaria completamente focada
nos estudos para ingressar numa boa universidade.
Isso significava que aquela seria uma despedida da
nossa vida como a conhecíamos.
Na verdade o propósito real daquela viagem não
era uma despedida, mas ter um espaço para
debatermos os detalhes sobre nosso grupo de magia.
Em suma, seria uma reunião formal do grupo dos
Cavaleiros do Porto. Faríamos uma roda de
chimarrão com a lareira acesa e falaríamos altas
merdas profundas e rasas.
Mas a curtição já começou no ônibus. Sentamos lá
atrás, jogamos nossas mochilas para o lado e
começamos o falatório.

47
Wanju Duli

– Adeus, ginasial! – exclamou Richie – Fico até


com saudades.
– A diversão de verdade vai começar agora – disse
Rômulo.
– Com as aulas de cálculo? – perguntei – Não vejo
muita diversão nisso. E tu, Dio, vai ter cálculo e
economia no teu novo colégio?
– Sei lá – respondeu Dio – não quero pensar nisso
agora. Acabamos de entrar de férias e vocês só
sabem falar de aulas? Não têm mais nenhum outro
papo interessante?
– Sugere, então – propôs Rômulo.
– Que tal a lista de gurias que vocês comeram esse
ano? – desafiou Dio.
Todos nos entreolhamos. Quem é que teve tempo
de comer alguém com todos aqueles cursos
preparatórios, clubes e porcarias?
– Greta foi a primeira guria pra quem eu me
declarei – falei – e vocês sabem disso.
– Eu já peguei várias – disse Dio.
– Todo mundo sabe – falou Rômulo, revirando os
olhos – já escutei essa história centenas de vezes. Eu
não tô com muita pressa. Vou esperar aparecer uma
guria massa, caso e faço filhos.
– Sem nem curtir antes? – perguntou Dio – Tu
também pensa assim, Richie?
– Já tive uma namorada, mas durou um mês –
disse Richie.
– Eu lembro – falou Dio – vocês treparam na
praia no ano passado, né?
– Sim, foi mágico – disse Richie – meus pais nem
imaginam. Devem pensar que ainda sou virgem.

48
Mate Espíritos

– Infelizmente não vou estar perto quando Elias e


Rômulo comerem suas primeiras minas – disse Dio –
eu vou perder muita coisa estando fora. Isso me
deixa triste.
– Quer que eu te espere voltar antes de comer
uma mina? – perguntou Rômulo.
– Quê? Não! – Dio riu – e se eu voltar pra cá com
uns vinte anos? Tá louco! Vai ter desperdiçado a tua
adolescência, rapaz. Lembrem-se: só se pode comer
uma adolescente enquanto ainda se é adolescente,
senão é pedofilia.
– Esse é o teu princípio de vida? – perguntei.
– Por aí – respondeu Dio – mas também tô
ansioso pra crescer logo e pegar as minas mais velhas.
Elas não querem nada comigo. Até tentei com uma.
Riu de mim, a vadia.
– Quantos anos ela tinha? – perguntei.
– Uns 28.
– E tu tem 13! Eu também riria.
– Não, eu tenho 14 – falou Dio – a gente
comemorou meu aniversário na pizzaria na quinta. Já
esqueceu, caramba?
– É mesmo – falei – metade da idade já dá. É só
tirar a raiz quadrada de quatro.
– Não vou nem responder – disse Dio.
Quando chegamos em Gramado, estávamos
congelando. Só passamos no hotel para deixar as
malas e depois fomos num chalé que eu curtia pacas.
Lá dentro tinha calefação, então tiramos os gorros,
cachecóis e luvas. E pedimos fondue de queijo e
chocolate.
– Vocês acham que neva nesse fim de semana? –
perguntou Dio.

49
Wanju Duli

– Não – disse Rômulo – quando neva é


geralmente em agosto, e é raro.
– Eu prefiro que nem tenha neve – falei – porque
quando tem, enche de turista esse cacete.
– Tu não curte calor humano, guri? – perguntou
Dio – Nesse friozinho é bom.
– Eu não curto porra nenhuma – falei – vida de
merda. Não sei como vocês aguentam.
– Como eu aguento o fondue? – brincou Dio – Se
quiserem eu posso comer tudo.
– Eu me referia ao colégio, aos estudos, à
cobrança – falei – se já foi insuportável assim no
ensino fundamental, agora só tende a ficar pior.
– Nossos pais cobram de nós porque querem que
tenhamos o conforto de reservar um hotel em
Gramado e comer fondue nas férias no futuro – disse
Rômulo – porque se não estudarmos não teremos
grana nem pra ir na esquina. Ou teremos com muito
esforço e dor de cabeça. A ideia é ter a dor de cabeça
agora para não ter depois.
– Não sei se essa troca é justa – falei – passar onze
meses do ano em sofrimento para ter apenas um mês
de conforto?
– Quem não estuda muito, tem 12 meses de
sofrimento, fazendo um trabalho que exige muito
mais força física e desgaste mental – disse Rômulo –
e às vezes nem férias tem.
– Isso tá errado – eu disse – não devia ser assim.
– O mundo é assim, cara – disse Dio – ou tu
passa a vida inteira te queixando, ou te adapta a ele.
– A não ser que tu queira te envolver com política
– sugeriu Richie – mas mesmo quem chega ao poder

50
Mate Espíritos

não consegue mudar tanta coisa assim. Essas


questões são muito complicadas.
– É, eu sei que é complicado – eu disse – por isso
peguei recuperação em política. Não entendo porra
nenhuma.
– Tu não precisa pensar que tu é o vilão da
história por ser rico ou por querer ter dinheiro no
futuro – explicou Richie – quem ganha bem pode
ajudar muito mais gente, financeiramente, do que se
não ganhasse.
– Só que na prática pouca gente ajuda – falei –
quem não tem grana também pode visitar pessoas em
asilos, orfanatos e fazer companhia. Não é só com
grana que se ajuda.
– Tá, mas em geral quem ganha bem faz trabalhos
difíceis e importantes que ajudam a sociedade –
insistiu Richie.
– Tem um monte de trabalhos difíceis e
importantes que dão salários péssimos – falei.
– É verdade, mas muitos trabalhos que exigem
bastante estudo têm até vagas sobrando, então é justo
que estes sejam bem remunerados – falou Richie.
– Tanto medicina como enfermagem exigem anos
de estudo, dedicação e são difíceis – eu disse – mas
no Brasil os médicos ganham super bem e os
enfermeiros ganham muito mal. Isso é justo?
– Ninguém disse que é justo a forma que as
coisas funcionam atualmente, meu – disse Dio – a
maioria das pessoas não está satisfeita com o salário
que ganha. Mas o mundo é uma bosta assim mesmo!
A gente tá fazendo o que pode, que é estudar pra
depois ter um emprego e contribuir um pouco.

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Wanju Duli

– Ninguém tá estudando porque é bonzinho e


quer ajudar o país – falei – e sim porque quer ter
grana.
– Sim, pra sobreviver e dar uma vida digna para
nossos filhos, futuramente – disse Rômulo – ou tu
quer colocar o teu filho num colégio público e
mandá-lo para um hospital público quando ele estiver
doente?
– Mas aí cada um só olha pro seu nariz, só resolve
a própria situação e a dos filhos e o resto da
sociedade que se foda? – perguntei.
– É por isso que estudamos política e sociologia
no colégio e vamos votar quando formos maiores de
idade – disse Richie – não é como se estivéssemos
ignorando tudo o que acontece ao nosso redor.
– E por que não se estuda política nos colégios
públicos? – perguntei.
– Até em alguns colégios particulares não se
estuda – disse Dio – muitos colégios também não
têm disciplinas para debater as questões ambientais
ou estudar teoria da música e tocar instrumentos,
como a gente tem. Mas isso porque nenhum governo
tem dinheiro infinito, cara! Até em países de Primeiro
Mundo falta um monte de coisas importantes. Não é
só aqui.
Dio largou o espetinho de morango.
– Nossa, agora fiquei deprimido – caçoou ele – eu
não devia estar aqui comendo fondue e sim
resolvendo o problema da fome no mundo. Acho
que vou me jogar de um prédio como Greta e
contribuir com a sociedade, pois morto não estarei
consumindo comida e vai sobrar mais para os outros.
Não vou me permitir um momento de diversão até

52
Mate Espíritos

que todos os colégios do mundo tenham aulas de


esgrima.
– Tu tá distorcendo tudo o que eu disse, meu –
falei.
– Mas é aí que tu quer chegar, não é? – perguntou
Dio – ou eu tô errado?
– Era por aí, mas não exatamente aí...
Eu resolvi parar com aquele assunto, pois tanto eu
como Dio estávamos ficando estressados e
poderíamos acabar brigando.
No ônibus falamos de mulheres e no restaurante
de política. Assim eu quase me sentia um adulto. A
noite no hotel seria reservada para um assunto ainda
mais quente: magia. Algo que ia além da vida, da
carne e do sangue. Possivelmente um tema ainda
mais espinhoso e complexo, já que pouco
poderíamos ver e sentir a respeito do que havia além
da própria percepção dos sentidos.
E foi assim que resolvemos começar: por que falar
de magia? Por que aquele tema era relevante?
Antes de começar a reunião do nosso grupo,
organizamos nossas coisas no hotel, tomamos um
banho e vestimos uma roupa mais relaxada.
Alugamos um quarto grande, com um espaço amplo
para conversar. Acendemos uma lareira e preparamos
o chimarrão.
Era profundamente mágico fitar aquela chama e
refletir sobre o que realmente importava. Éramos
apenas adolescentes, mas não éramos seres humanos
incompletos. Éramos, sim, completos, talvez com um
pouco de medo e insegurança. E até aquele medo que
sentíamos diante do mundo que nos aguardava não
deixava de ser emocionante.

53
Wanju Duli

Recitamos juntos o poema que preparamos para a


abertura de cada reunião do grupo: Recordação da
Excelência.

A criança brinca de existir


Com sede dos surdos Deuses
Das lendas e mitos sagrados
Eu desejo tocar aquilo que jamais foi tocado
A minha vaidade é mais poderosa
Do que a minha sanidade
Venera minha magnificência
Ó, criança narcisista
Ainda que condenado eu seja
Sob a pena de ter provado o veneno da vida

E batemos palmas.
Como eu me sentia grandioso! Eu, de pé perante
meus três amigos, tão inteligentes, tão extraordinários.
Naquela época nos achávamos sensacionais.
Eu sabia preparar um chimarrão como ninguém.
Por isso meu apelido: Mate. Como eu não era
autorizado a fumar e a beber, e também nunca tinha
reunido coragem para experimentar escondido,
alterava minha consciência nos rituais com uma boa
erva mate. Devido a isso, comecei a ser chamado de
Espírito do Mate.
Mas esse apelido durou pouco. Comecei a ficar
mais violento nos rituais, desde que comprei minha
adaga ritualística. Experimentei arrancar um pouco
de sangue para fazer acelerar o coração e minhas
danças macabras, com o estado de consciência
alterado, manto e capuz negros, se tornaram famosas

54
Mate Espíritos

no nosso grupo, mesmo que fosse somente uma


fama entre nós quatro.
Os espíritos me temiam. Eu era mortífero.
Portanto, Mate Espíritos virou meu apelido oficial.
Somente Mate para os íntimos.
Nós tínhamos um grimório físico, que era um
livro grande, grosso e pesado que encomendamos, de
capa dura. Cada um permanecia com ele em casa por
um período e acrescentava poemas, rituais, feitiços,
desenhos ou pensamentos inspiradores. Com Dio na
Macedônia teríamos que enviar o grimório
regularmente pelo correio para manter a tradição.
Estávamos dispostos a pagar um pouco mais por esse
pequeno capricho.
– Por que falar de ocultismo, senhores? –
perguntei a eles – Qual a relevância de debatermos
esse tema num mundo que precisa muito mais de
discussões políticas e do avanço da tecnologia para
termos mais saúde, mais energia e uma série de
fatores que darão à humanidade uma melhor
qualidade de vida?
– Porque com o ocultismo não se busca uma vida
após a morte, mas o despertar para a realidade da
morte em vida – respondeu Rômulo – e ter o
conhecimento da finitude do ser humano é tão
importante quanto obter o conhecimento que
estende a vida.
– Bravo! – Dio bateu palmas – Assino embaixo e
acrescento: possuir algum tipo de espiritualidade é
fundamental para a maioria de nós. Afinal, viver para
quê? Somente pela vida que terminará e pelas
próximas vidas que começarão e terminarão? Não
seria extraordinário se houvesse um arcano magnífico

55
Wanju Duli

por trás de uma existência ao mesmo tempo tão


contraditória e apaixonante?
– E não seria ainda melhor se fôssemos capazes
de penetrar esse arcano? – perguntei – No momento
do ritual, somos um com aquilo que não pode ser
explicado. Ficamos satisfeitos em não entender.
Apenas sentir é o bastante. É outro tipo de
entendimento, além das fronteiras da razão.
Eu nunca imaginei que em tão poucas palavras
seríamos capazes de definir a importância da magia.
Naquela noite estávamos inspirados.
Mesmo estudando tanto, seja nos livros do colégio
ou nos livros de ocultismo, mesmo nos julgando
assim tão geniais, jamais conseguiríamos desvendar
tudo o que é importante ou dominar a morte. Pelo
menos não da maneira que queríamos: aquela que
deseja sempre mais.
No entanto, quando estávamos em grupo eu
sentia que eu era capaz de fazer qualquer coisa. Um
dia eu me desesperei diante do mundo e achei que
nada valia a pena. Foi então que me dei conta que
bastava encontrar um refúgio seguro para
permanecer protegido em meio ao vendaval.
Esse refúgio era os meus amigos. Eu seria capaz
de prosseguir num mundo repleto de injustiças, de
preconceito e dor se eu permanecesse unido àqueles
que também se revoltavam com tudo isso e queriam
fazer algo para mudar. Eu não queria ser julgado se
eu fazia muito ou pouco para transformar a minha
vida ou a das pessoas ao meu redor. Eu queria ter
meu próprio jeito de seguir em frente e de fazer as
coisas, mas não queria seguir sozinho.

56
Mate Espíritos

Meus amigos às vezes eram meio loucos ou idiotas.


Acho que eu também tinha meus momentos. Éramos
diferentes em várias coisas, mas em algumas éramos
parecidos. Aquilo era o suficiente.
No começo eu estava feliz com o cristianismo que
meus pais me ensinaram. Eu não achava que o
cristianismo era errado. Ele simplesmente não servia
para mim ou para meus amigos.
Além do mais, éramos jovens. Queríamos sentir o
coração acelerar num ritual bem louco. Queríamos
sentir o mundo do jeito que inventávamos e não
necessariamente seguir a religião inventada pelos
nossos antepassados. Não poderíamos ser, nós
mesmos, os construtores das nossas religiões?
A partir daí, poderíamos construir um mundo
muito maior, repleto de valores que considerávamos
fortes o bastante para nos fazer aceitar viver num
mundo que não era perfeito. Bastava conectar a
nossa própria imperfeição à imperfeição do mundo.
Nós quatro vestimos mantos negros e meditamos
diante da lareira. Contemplamos o fogo e eu senti
que ele percorria meu corpo inteiro.
Depois levantamos e evocamos uma série de
espíritos, deuses, demônios, criaturas sobrenaturais;
algumas reais, outras inventadas. Os mundos se
fundiam, os pés dançavam, tremiam as mãos que
erguiam espadas.
Até que cada um tirou um pouco de sangue e
unimos nosso sangue num pacto.
– Um dia nós vamos nos separar – declarou Dio –
eu vi isso na bola de cristal, vi isso no céu, no mar,
no gelo e no fogo. Meu momento virá bem cedo,
mas temo que até vocês três não conseguirão ficar

57
Wanju Duli

juntos por muito tempo. Cada um terá o seu


caminho.
Dio podia até ter feito uma divinação fantástica
que revelou isso, mas também não era preciso ser um
gênio ou profeta para adivinhar: tanto Richie quanto
Rômulo provavelmente fariam graduação em outro
país e talvez ficassem por lá. Do jeito que Richie
amava o Brasil, quem sabe até voltasse, mas talvez se
mudasse para a Bahia ou para qualquer outro estado
que tivesse praias maravilhosas, para ele surfar e
curtir.
Era difícil dizer o que iria acontecer, quando e
como. Mas Dio estava certo: em no máximo poucos
anos cada um de nós estaria num canto diferente.
Íamos crescer e nossa vida inevitavelmente nos
arrastaria para lugares que não necessariamente
desejaríamos estar. Podia ser um emprego, uma
esposa, filhos ou qualquer outro fator. Nós quatro
simplesmente estávamos fadados a ficar longe. O
afastamento prematuro de Dio era apenas uma
indicação do que no futuro seria inevitável.
– Por isso vamos prometer que quando tivermos
todos 30 anos, exatamente nesse dia do ano, faremos
um novo encontro nesse mesmo lugar. Nesse hotel,
quarto 14. Combinado?
– Trinta anos! – Richie riu – Por que tanto tempo?
Não pode ser quanto tivermos 18 ou 21?
– Nessa época cada um vai estar num canto do
mundo fazendo faculdade – disse Dio – e 30 anos é
tempo suficiente para se divertirem com mestrado e
doutorado também, para aqueles que apreciam se
entregar a esse tipo de passatempo duvidoso.

58
Mate Espíritos

– Beleza – falei – acho que entendi. 20 anos é


pouco. 30 é ideal. 40 já teríamos esquecido, quem
sabe.
– Será que aos 30 já estaremos casados e com
filhos? – perguntou-se Richie.
– Será que eu já terei terminado meu pós-
doutorado? – perguntou Rômulo.
– Espero que eu já tenha finalizado os estudos há
muito tempo – falei – mais 16 anos de estudos seria
um pesadelo.
– Não importa quem vai ter terminado o que,
quem vai casar com a moça mais bonita da festa,
quem vai ganhar o maior salário ou quem vai ser mais
bem sucedido em lançar laranjas na boca do palhaço
– disse Dio – a nossa amizade não é uma competição.
Não vamos transformar essa coisa bonita entre nós
numa competição por notas de colégio. Afinal, não
seremos mais crianças para brincar disso.
– “Essa coisa bonita entre nós” – repetiu Rômulo
– Tu te puxou no discurso, hein.
– O que quero dizer é que mesmo se vocês
resolverem largar o colégio amanhã, estejam
desempregados e feios como um espantalho, com
uma mão na frente e outra atrás, deem um jeito de
aparecer aqui de novo daqui a 16 anos! – exclamou
Dio – se algum de nós estiver totalmente pobre e
fodido, manda uma mensagem no FB que a gente
coloca dinheiro na conta do indivíduo pra passagem
de avião, de trem, de navio ou de ônibus.
– Se ainda existir Facebook – comentou Richie.
– Não interessa – falou Dio – vamos manter
contato. Caso um de nós suma do mapa, a gente dá
um jeito de encontrar e arrastar pra cá. Combinado?

59
Wanju Duli

– E se tiver alguém doente no hospital? –


perguntei.
– Sei lá! – falou Dio – Eu vou até o quarto do
sujeito, peido na cara dele e ameaço peidar de novo
se não comparecer ao encontro.
– Isso não se faz, Dio – falou Richie – gera mau
karma.
– Aceito manchar meu karma de negro para que
essa reunião aconteça – disse Dio – e espero o
mesmo de vocês.
E assim o pacto foi selado.
Que bobagem, hã? Eu não sabia se meu eu de 29
anos se importaria com as promessas do meu eu de
13 anos. Mas naquele momento eu quis acreditar que
era a promessa mais importante do mundo e que
nada que acontecesse no futuro teria a mesma
importância.
Dizem que a espiritualidade desperta por volta dos
30, que foi a idade em que muitos líderes espirituais
começaram a compartilhar sua sabedoria com o
mundo, como Buda, Mahavia, Zaratustra e Jesus.
Imaginei que esse tenha sido outro motivo da escolha.
Portanto, nós com 13 e 14 anos estávamos apenas
nos preparando para algo grande que aconteceria dali
a 16 anos.
Afinal, nós não iríamos apenas nos reencontrar e
nos despedir. Nós faríamos uma enorme reflexão
sobre as nossas vidas até então, o que conquistamos
e o que falta conquistar. E a partir daí fundaríamos
um grupo de magia ainda mais forte. Ou ao menos
era essa a ideia.
É claro que todos tínhamos medo de não nos
importarmos mais com ocultismo no futuro e de

60
Mate Espíritos

estarmos envolvidos demais com família e com


carreira para desejar montar qualquer coisa. Mesmo
assim, prometemos. E não recuamos em nenhum
momento. Foi tão natural que a proposta foi aceita
unanimamente no mesmo instante.
Dormimos no hotel. Tomamos um café colonial e
à tarde voltamos de ônibus para Porto Alegre. Nos
despedimos uns dos outros com abraços calorosos.
Afinal, os meus três amigos viajariam para outros
lugares com suas famílias naquelas férias, enquanto
eu ficaria estudando para a prova de recuperação. E
iríamos juntos no aeroporto com Dio posteriormente
para a despedida, se os outros dois bastardos já
tivessem voltado de viagem nessa época.
Foi difícil contar sobre minha recuperação para
meus pais naquele domingo. Levei uma bronca
enorme do meu pai por ter ido viajar em vez de já ter
começado a estudar. Mas ele ficou ainda mais furioso
por eu ter mentido. Afinal, eu tinha dito antes que
havia passado em todas as disciplinas.
Mas valeu a pena aquela mentira, pois nosso
encontro do grupo tinha sido memorável. Em
compensação, passei todos os próximos dias
mergulhado nos livros.
Eu fui aprovado tanto na prova de política como
no meu exame de admissão para o ensino médio. E
tudo parecia bem.
Mesmo assim, eu ainda me lembrava vividamente
do quanto tive que estudar naquele ano. E eu sabia
que seria pior no ensino médio. Minhas notas já não
estavam lá essas coisas. Eu queria mesmo continuar
no tal colégio bilíngue?

61
Wanju Duli

Eu não queria estudar num colégio público, mas


eu poderia fazer um teste para ser admitido num
colégio militar ou simplesmente me matricular num
colégio particular. Podia até ser um dos melhores e
mais puxados colégios particulares da cidade. Mas ser
bilíngue já era exagero.
Foi então que me lembrei de uma pessoa: Greta.
Decidi que eu queria me matricular no mesmo
colégio que ela. Não porque eu ainda gostasse dela.
Eu até nem queria mais nada com ela. Mas o colégio
pelo qual ela optasse seria provavelmente o melhor
depois do nosso. Eu confiava no julgamento dela.
OK, não era esse o motivo. Eu queria estar num
colégio que tivesse alguém conhecido. Mas
independente do meu motivo, eu queria ir para o
colégio que ela escolhesse.
Fiquei de olho na página do Facebook de Greta.
Não tive coragem de pedi-la como amiga no site, mas
felizmente ela mostrava suas atualizações para todos.
Fazia mais de duas semanas desde que ocorreu o
acidente e Greta ainda não tinha se manifestado. No
perfil dela a única coisa que constava era a mensagem
de despedida.
Até que um dia ela resolveu escrever alguma coisa.
Fiquei muito surpreso quando vi que ela havia
finalmente logado no site outra vez.
A mensagem dela foi a seguinte:

“Peço desculpas a todos pelo meu ato impensável


e imprestável. Nunca senti tanta dor e desespero na
minha vida. A lembrança dessa abominação ficará
para sempre gravada em minha carne. Desencorajo a
todos que estejam procurando um conforto mental

62
Mate Espíritos

através dessa escolha. É insano demais para ser real.


Às vezes acordo e penso que tudo foi um pesadelo.
Por favor, não seja idiota como eu. Não estou
tentando dar lição de moral em ninguém, porque sei
que há muita gente com motivos muito mais dignos
que os meus para fazer o que fiz. Mesmo assim, é
apenas doentio. A vida é uma merda, mas a morte,
quando chamada antes da hora, é uma merda maior.
Aguarde, que um dia chegará a sua hora. O relógio
do inferno nunca para. Não tente pará-lo por si, ou o
diabo te toma um pedaço, como fez comigo.
Tenham uma bela morte, mas enquanto vivem,
desejo uma bela vida para todos. Por mais miserável
que seja, por mais insuportável, eu juro que ainda há
vida na vida. Deve estar escondida, um dia vou
encontrar. Eu prometo”.

Essa única postagem teve uma quantidade imensa


de curtidas. Não porque Greta tenha feito alguma
revelação espetacular, mas por dois motivos
principais: era a primeira mensagem dela depois do
acontecido; e ela tinha falado tanta bobagem
travestida de seda que era impossível não curtir. Ela
ainda parecia estar dopada ou presa em algum lugar
entre a vida e a morte.
A raiva dela era clara. As desculpas que ela pediu
no início da mensagem eram apenas uma falsidade
evidente. Greta tinha claramente se arrependido do
que fez, mas eu ainda conseguia sentir uma parte nela
que se orgulhava. Para piorar, ela não tinha
aprendido quase nada e nem chegar perto da morte
serviu para aplacar a sua fúria.

63
Wanju Duli

Ela era uma pessoa interessante. A raiva dela me


atraía. Ninguém era capaz de domar a fera, nem
mesmo a morte. Puta merda. Além de achá-la linda
eu descobri que a personalidade de Greta, embora
impossível de conviver, era apaixonante.
Aquela garota era simplesmente indomável. Ela já
tinha me dispensado de forma humilhante, assim
como dispensava qualquer um que quisesse seu amor
ou amizade. Ela era um desafio à altura.
Eu não pretendia pedi-la em namoro de novo ou
nada assim, pois uma recusa já foi o bastante para me
deixar zangado. Mas ser amigo dela não parecia ruim.
Eu precisava descobrir para qual colégio ela iria o
quanto antes, pois poderia haver algum teste de
admissão ou limite de vagas. Mas eu não tinha
coragem de falar com ela diretamente. E mandar-lhe
uma mensagem fazendo uma pergunta trivial como
essa, depois de tudo o que aconteceu, parecia meio
insensível. Ela tinha se jogado por causa dos estudos,
então eu não achei que ela desejasse falar de estudos
tão cedo.
Somente duas semanas depois descobri que ela iria
se matricular num dos colégios particulares mais
caros e fortes de Porto Alegre. Ele não exigia teste de
admissão, mas eu precisava garantir uma vaga. Perto
do que meus pais pagavam no meu colégio anterior,
não achei que a nova mensalidade seria um problema.
No entanto, a reação dos meus pais não foi nada
boa. Eles queriam que eu continuasse no mesmo
colégio que a minha irmã.
– Por que está inventando essa bobagem, Elias? –
perguntou meu pai, indignado – Quer destruir o teu
futuro?

64
Mate Espíritos

– Eu quero fazer minha graduação nessa cidade –


informei – então não preciso estudar tanto. Também
não pretendo fazer medicina, então eu acho que
estarei preparado para ser aprovado em outros cursos
se eu apenas estudar num ótimo colégio particular.
– Ele vai sair do colégio só porque o amiguinho
dele foi embora – pronunciou minha irmã, com sua
língua de cobra – o Dio, não é?
No fundo era verdade. O meu melhor amigo e a
guria que eu gostava tinham se mandado de lá. Eu
não podia ir pra Macedônia estudar com Dio, mas
podia ir para o colégio de Greta, mesmo que eu já
não tivesse chance com ela e não quisesse mais nada
com ela.
Além do mais, eu não queria enlouquecer com os
estudos a ponto de cometer um ato extremo como
Greta. Portanto, eu estaria mais seguro em outro
lugar. Rômulo e Richie não eram motivos suficientes
para me prender no colégio bilíngue, apesar da
promessa que fizemos.
Meu pai poderia ter me obrigado a permanecer no
colégio, se ele quisesse, mas ele acabou cedendo.
Afinal, eu tinha desistido de ser a elite da elite para
ser apenas a elite. Não achei que fosse um pedido tão
absurdo e, de quebra, meus pais economizariam
bastante no pagamento da mensalidade. Pelo menos
metade do valor.
Pela primeira vez na vida eu tive férias bem
longas: seis meses! Fiz muitas coisas úteis nesse
período, como colocar meus rituais e minhas leituras
de livros de ocultismo em dia. Eu convidava Richie e
Rômulo para irmos juntos em lojas e livrarias
esotéricas o tempo todo, mas eles raramente

65
Wanju Duli

aceitavam meu convite, pois já estavam em aula.


Além do mais, acho que eles se sentiam meio traídos
por mim por eu tê-los abandonado sem nenhum
motivo aparente. Afinal, eles sabiam que no meu
caso não tinha sido um problema financeiro, como
no caso de Greta.
Aqueles seis meses renderam horrores. Escrevi
um monte de coisas interessantes no grimório do
nosso grupo. Além disso, fiz um site para os
Cavaleiros do Porto. Logo, mais gente começou a
curtir o que fazíamos e já tínhamos até membros
online.
Eu propus vários encontros do grupo durante esse
período. Tivemos um encontro na Redenção, um na
Casa de Cultura Mário Quintana e outro na Usina do
Gasômetro. Esse da Usina foi particularmente ótimo,
pois pegamos um barco e demos um passeio pelo
Guaíba. Richie e Rômulo foram nesse encontro. Nos
divertimos bastante.
Na ocasião na Casa de Cultura apenas batemos
papo, trocando ideias em livros e no nosso grimório.
Mas fizemos um ritual na Redenção; eu e mais três
novos membros que nos encontraram online, que
também eram gaúchos. Eu senti o gostinho do poder,
porque Richie e Rômulo não puderam ir por causa
das provas e morreram de inveja.
Eu finalmente estava descobrindo o que era ter
tempo livre para dar à luz aos meus processos
criativos. E eu aproveitei ao máximo minha liberdade.
Enquanto isso, minha irmã estava no 10º ano,
estudando que nem uma condenada. Eu via como
ninguém tinha tempo para nada e estava satisfeito
por ter me libertado daquela prisão.

66
Mate Espíritos

Eu raramente falava com Dio. Eu sabia que era


conversa pra boi dormir aquela história de que íamos
conversar todos os dias, pois às vezes passávamos
longas semanas sem nem dar um “oi”. As divisões de
tarefas do grupo estavam ocorrendo de maneira cada
vez mais informal.
Notei que Dio estava gostando bastante do novo
colégio e da nova cidade. Ele dizia que seu colégio
era equivalente ao nosso: melhor nuns pontos e pior
em outros. E além de aulas de cálculo ele tinha aulas
de ciência da computação e estatística. Ele também
tinha algumas opções bizarras de idiomas para
estudar, como turco. Pelo que ele contava do colégio,
achei bem chato.
Eu resolvi não fazer nenhum evento especial para
celebrar minha festa de aniversário no fim do ano.
Meu aniversário geralmente caía numa semana de
provas, então era estranho estar de pernas para o ar
na ocasião. Como meus dois ex-colegas estariam
ocupados, optei por não distraí-los.
Ou talvez eu só quisesse me livrar de celebrações
naquele ano, pois eu não queria ter nenhum tipo de
responsabilidade que não fosse as próprias coisas que
eu inventasse.
Quando minhas aulas finalmente começaram no
ano seguinte, em fevereiro, confesso que eu já estava
de saco cheio de férias. Estava totalmente pilhado
para me concentrar e me focar nos estudos.
Logo no primeiro dia de aula, encontrei Greta.
Fiquei muito satisfeito ao saber que ela ficaria na
minha turma, pois havia três turmas diferentes do
primeiro ano do segundo grau. Cada turma tinha uns
quarenta e poucos alunos, o que era um monte

67
Wanju Duli

comparado com os vinte e poucos alunos do meu


velho colégio. Era praticamente o dobro do que eu
estava acostumado.
Greta estava numa cadeira de rodas e aquilo seria
permanente. Fora isso, não vi nenhuma outra sequela.
Ela já devia ter se recuperado da maior parte dos
outros ferimentos. E continuava linda como sempre.
Talvez ainda mais linda.
Eu lembrava que eu a havia achado muito
charmosa na ocasião que a vi chorando, pois era
como enxergar traços de fragilidade naquele ser
furioso. Acredito que a cadeira de rodas me mostrava
algo assim: uma lembrança de que Greta, mesmo
sendo tão durona, era apenas humana. Isso me
aproximava um pouco mais dela, pois eu não queria
vê-la como um ser completamente forte e inatingível.
– Tu não me deixa em paz, cara. Aposto que veio
aqui só pra me perseguir.
Ela continuava arrogante e metida como eu me
lembrava.
– Engano teu – resolvi dizer – é apenas uma
coincidência.
– Tu é muito burro, Elias. Largou um colégio
bom como aquele pra vir pra essa merda, pelo
simples fato de eu estar por aqui?
– Estou surpreso que saiba meu nome.
– Espero que fique bem longe de mim ao longo
do ano – alertou Greta – e não conta pra ninguém o
que aconteceu com minhas pernas. Ninguém precisa
saber disso. Quero iniciar uma vida nova nesse lugar,
então não estraga tudo!
E ela se afastou, arrastando as rodas.

68
Mate Espíritos

Greta não queria que ninguém soubesse que ela


era meio pirada, mas isso era impossível de disfarçar.
Logo no primeiro dia de aula ela fez perguntas bem
difíceis para os professores e deu várias indiretas
sobre o suposto péssimo método de ensino daquele
colégio.
Eu concordava que as aulas de lá não eram tão
boas quanto as nossas e eles estavam atrasados nas
matérias, comparando ao que tínhamos estudado até
então. Mesmo assim, Greta não precisava esculachar.
Achei que os professores eram bons, embora fosse
esquisito ter aulas em português.
Nós fomos imediatamente dispensados das aulas
de inglês, pois estava bem claro que nem eu e nem
Greta precisávamos aprender um inglês de nível
fundamental ou intermediário. Seria imensamente
aborrecedor e uma perda de tempo.
As aulas de história e geografia do Brasil,
gramática portuguesa e literatura brasileira eram bem
úteis, pois embora tenhamos assistido aulas ótimas
sobre tudo isso no nosso outro colégio, não era o
enfoque.
O problema maior eram as exatas, principalmente
matemática. Eles ensinavam as matérias na
velocidade de uma lesma. Nossa “matemática de
ensino médio” já era forte desde o ensino
fundamental, já que íamos começar o cálculo. Nesses
momentos eu sabia como Greta se sentia e nós dois
revirávamos os olhos com explicações totalmente
óbvias que o professor dava. Eu estava seriamente
pensando em fazer um teste para ser dispensado
também das aulas de matemática, mas aquilo não
seria possível. Não era o mesmo caso do inglês.

69
Wanju Duli

Afinal, mesmo que soubéssemos bastante nós não


íamos gabaritar as provas nem nada assim. Se fosse
Rômulo talvez gabaritasse. Será que não nos
deixavam passar direto para o segundo ano?
No começo achei super rude a atitude de desprezo
de Greta, mas em alguns momentos eu achava
engraçado. Assim eu não me sentia sozinho naquilo
tudo.
É claro que uma parte de mim achava
maravilhoso não precisar me esforçar tanto para
estudar. Mas outra parte estava com saudade da sede
de desafio, que eu nem sabia que possuía. Pelo
menos não para disciplinas do colégio. Mas ali estava
eu, profundamente entediado.
Obviamente a nossa atitude, principalmente a de
Greta, nos deu má fama. Nós éramos vistos como os
“riquinhos esnobes do colégio bilíngue” e ninguém
estava realmente interessado em começar uma
amizade.
Eu não duvidava que vários estudantes daquele
colégio fossem mais ricos que nós. E talvez o CDF
da turma fosse melhor que a gente em várias
disciplinas, mas talvez não em inglês, matemática e
computação.
Após uma semana de aula, tivemos que conversar
com a diretora a respeito daquela situação incômoda.
Para resolver o problema do idioma, trocamos as
aulas de inglês pelo espanhol. Havia opção de assistir
aulas extracurriculares de espanhol à tarde, que para
nós se tornaram obrigatórias e substituiriam nossas
aulas de inglês. Eu até achei bom, já que no nosso
outro colégio o espanhol não era muito enfatizado.

70
Mate Espíritos

Resolver o problema das aulas de matemática foi


mais complicado. Nós fizemos um teste para medir o
nosso conhecimento e foi concluído que não éramos
tão geniais assim. Portanto, só fui dispensado das
aulas do primeiro bimestre e, em vez delas, fazia listas
de exercícios ligeiramente mais avançados. Greta foi
dispensada das aulas de matemática de todo o
primeiro semestre.
Era apenas arrogância nossa criticar o ensino
daquele colégio. Tirando as aulas de inglês e a falta de
mais atividades extracurriculares, as aulas estavam
quase no mesmo nível das nossas. O que atrapalhava
um pouco era a turma com muitos alunos e alguns
idiotas que só bagunçavam e nem queriam saber de
estudar. Só estavam lá porque os pais tinham grana
para pagar o colégio. Aquilo não acontecia no colégio
bilíngue, que já dispensava os criadores de caso no
teste de admissão.
Eu me adaptei rápido. Em pouco tempo, já estava
interessado pelas aulas de matemática e como eu
raramente participava dos clubes do outro colégio,
não senti a falta de clubes nesse.
Por outro lado, Greta sentia muita falta das
atividades oferecidas pelo nosso colégio antigo, como
campeonatos de matemática, de literatura e outros
eventos importantes.
– E esse uniforme é horrível! – completou Greta –
um colégio que não tenha saias ou vestidos nos
uniformes das gurias não pode ser bom.
Eu não sentia falta nenhuma da gravata. Pelo
menos havia opções de moletons, casacos e outras
peças de roupa, pois no nosso outro colégio havia o
uniforme de inverno, o de verão e o de educação

71
Wanju Duli

física. Isso significava que permanecíamos várias


épocas passando frio ou calor desnecessariamente.
Greta não calava a boca e eu não aguentava mais
aquele monte de reclamações. Até que um dia ela
parou de reclamar. Pensei que ela estivesse doente.
Não era possível que ela tivesse se conformado de
um dia para o outro.
Foi então que entendi o que aconteceu: ela
arranjou uma amiga.
Desde então, ela sentiu muito orgulho de estudar
em seu novo colégio. Isso porque a amiga dela era a
garota mais popular da turma.
Levou um pouco de tempo para eu entender o
que estava acontecendo. Eu fiquei sabendo que cada
uma das três turmas do primeiro ano possuíam
características em comum.
Nós estávamos no 1ºA, que reunia o maior
número de pattys, playboys, festeiros, putos e putas
de plantão, incluindo os alunos mais populares,
comunicativos e interessantes, que tinham as
“conversas legais”. O 1ºB reunia os alunos mais
inteligentes e com notas mais altas. Quando Greta
soube disso, tentou se transferir para o 1ºB, mas
depois mudou de ideia. Já o 1°C reunia os palhaços e
idiotas.
Por que aconteceu essa divisão? Porque houve
uma votação entre os alunos do nono ano, que
poderiam indicar um aluno que desejassem ter como
colega no próximo ano. Algumas panelinhas se
formaram e os grupinhos se separaram.
Eu odiaria estar no tal 1ºB, que certamente
reuniria CDFs otários de óculos e cabelo lambido,
sem nenhum outro talento a não ser estudar. E os

72
Mate Espíritos

alunos do 1ºC não eram pessoas com aptidão para


piadas, mas apenas os trouxas que estavam a fim de
vandalizar o colégio e matar aulas.
Pensando bem, a turma na qual estávamos era a
melhorzinha. E eu não tinha do que reclamar, pois
havia várias alunas bonitas.
Greta havia escolhido muito bem seu grupo de
amigas, pois ele era composto por mocinhas muito
bem arrumadas, que seguiam a última moda e, se não
eram bonitas sem maquiagem, quando a colocavam
se tornavam deusas.
No nosso colégio o uso do uniforme somente era
obrigatório em ocasiões especiais: na cerimônia de
começo do ano e de encerramento do ano, nas aulas
de educação física e na semana de provas. No resto
do tempo, eles sugeriam o uso pelo menos da
camiseta do uniforme, mas ninguém usava.
As garotas aproveitavam a ocasião para fazer um
desfile de moda. Iam para o colégio não somente
maquiadas, mas com esmalte, brincos, pulseiras, aneis
e muitas roupas provocantes. Aquilo era novidade
para mim. Gostei bastante.
Porém, Greta não era a líder do grupo, apesar de
ser tão bonita e inteligente. Para que Greta aceitasse
ser liderada, só poderia haver uma abelha rainha
imensamente poderosa.
A princípio não descobri quem era. Aquele grupo
de gurias era famoso não somente no 1ºA, mas em
todo o primeiro ano. A líder só podia ser a guria mais
popular. A famosa, de quem todos falavam.
Surpreendentemente, ela não era a mais bonita do
grupo. Ela também não era a mais arrumada ou a que
usava a última moda. Ela parecia somente usar as

73
Wanju Duli

roupas que queria. Alguns a imitavam, mas somente


ela era original para criar sua própria moda.
No começo não vi nada de mais nela. Ela tinha
cabelos pretos longos e divididos ao meio. Os olhos
eram negros. A pele ligeiramente bronzeada. Eu curti
as roupas que ela usava: muitos vestidos, de muitas
cores, a maioria acima dos joelhos.
Embora ela também usasse sandálias comuns com
os vestidos, muitas vezes ela usava botas e sapatos
arrumados, acompanhados de meias. Achei que a
gola graciosa de alguns vestidos não combinava com
tanta maquiagem e com aquele cabelo desarrumado.
Foi quando descobri que o cabelo desgrenhado era
intencional.
– Kinderwhore – eu a vi pronunciar um dia – vem
de “kinder”, criança em alemão, como Kinder Ovo,
saca? E de “whore”, vadia. É como uma menina
usando vestidinhos, mas que também é uma puta
usando saltos e maquiagem. O estilo era bastante
usado por bandas grunge dos Estados Unidos dos
anos 90.
Ela podia não ser assim tão bonita, mas a voz dela
era estonteante. Era única. Uma voz que somente ela
possuía e mais ninguém. Era meiga e ao mesmo
tempo sedutora. Voz ao mesmo tempo de mulher
adulta e de criança, assim como as roupas que ela
usava: com um toque simultaneamente infantil e sexy.
Ela mudava de roupa conforme o seu humor. Em
dias em que se sentia alegre, usava roupas de cores
felizes, como rosa e azul claro, com listras ou
bolinhas. Mas também havia os momentos que ela
somente vestia negro, ou branco e preto. O penteado
também mudava às vezes, assim como as cores das

74
Mate Espíritos

unhas. Era tudo muito calculado, embora fosse um


cálculo que eu não conseguisse fazer, pois misturava
lógica e emoções.
Somente nela eu via liberdade. Essa menina era
livre. Parecia sempre tão à vontade consigo mesma e
onde estivesse! As outras garotas a escutavam com
atenção e a seguiam para onde fosse.
A líder não era irritada como Greta e não estava
sempre de mau humor. O humor dela variava:
pulando de alegria para um jeito mais silencioso e
racional. Era difícil dizer. Ela era uma caixinha de
surpresas.
E por que ela era tão popular? Além de ter um
estilo próprio e ser bem confiante, ela era muito
comunicativa e sempre tinha assuntos interessantes.
Ter a oportunidade de conversar com ela era como
ganhar um prêmio. A famosa líder estava sempre
rodeada de suas seguidoras. Possuía uma simpatia
natural. Além do mais, era muito ocupada.
Suas notas eram regulares. Geralmente acima da
média, mas se por acaso pegava uma recuperação,
encarava isso com naturalidade. Sorria e soltava um
“ops” ao olhar para o boletim, mas sabia que ia se
safar.
Era espantoso como as notas dela eram parecidas
com as minhas. Era verdade que nesse colégio eu
tinha um pouco mais de facilidade e talvez não
pegasse nenhuma recuperação. Mesmo assim, eu me
identifiquei com o que vi.
Ela não se dedicava apenas ao colégio ou ao
número limitado de atividades extracurriculares que
colégios oferecem, como esportes, música ou idiomas.
Ela se interessava por outras áreas bem amplas, como

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Wanju Duli

moda e coleções. Ela colecionava adesivos e papeis


de carta, que trocava com as outras gurias. Ela tinha
vários álbuns de papeis de carta. Porém, ela não
mantinha suas coleções apenas guardadas. Ela usava
os papeis especiais para mandar cartas para as amigas
e os enchia de adesivos e mensagens de amizade com
canetas coloridas e glitter.
Ela tinha esse lado meigo, mas ela não era infantil
e ingênua. Também não era furiosa. Ela estava numa
espécie de limbo que eu não saberia descrever. E
como ficava confortável nele!
Eu descobri que o nome dela era Hilda.
Os meus colegas apenas se apaixonavam pelas
garotas bonitas, assim como me apaixonei por Greta
um dia. Hilda era um ser humano completo, não
somente com beleza, inteligência e gentileza ou
qualquer outro atributo normal e desejável. Ela tinha
algo mais, que a tornava única. A voz única. Estilo
único. Espontaneidade.
Eu não estava apaixonado por ela naquela época.
Mas no dia em que ela mencionou a palavra “wicca”
e mostrou umas revistas sobre isso para o grupinho
de meninas com quem andava, meu coração quase
parou.
Eu precisava falar com ela. Mas não bastava
chegar e falar. Eu tinha que praticamente marcar uma
entrevista. Para a minha sorte, Greta era a atual
“secretária”. Ou será que era azar?
– Quem é ela, Greta? Quem é Hilda?
– Minha melhor amiga – ela respondeu, de
imediato.
Então era assim? Hilda era tão disputada? É claro
que todas queriam tê-la como melhor amiga.

76
Mate Espíritos

Eu sentia algo parecido em relação a Dio. Ele


estava lá do outro lado do mundo. Já devia ter
arranjado outros amigos, do jeito que era espontâneo
e comunicativo. Mas aquilo era injusto, porque eu
conhecia Dio há muito mais tempo.
Eu finalmente consegui conversar com a guria em
particular. Hilda me fitou com curiosidade.
– Oi, Elias. Tudo bem?
– Sim... – falei, meio atrapalhado ao saber que ela
lembrava como eu me chamava. Meu nome era assim
tão fácil de lembrar? – eu por acaso te ouvi
mencionar sobre wicca hoje. Tu curte ocultismo?
Ela fez que sim.
– Meus pais são bruxos.
– Uau! Como assim?
– Assim mesmo – ela riu – adoro magia moderna.
Principalmente magia contemporânea, que mistura
com tecnologias. Faço parte de alguns grupos online.
– Que foda – falei – eu também tenho um grupo
online. Tu pratica magia há quanto tempo?
– Me sinto bruxa desde criança, mas me iniciei
com uns doze anos.
– Também comecei com uns doze – contei – quer
que eu te empreste uns livros?
– Posso te emprestar também. Amanhã trago.
Pode ser?
– Claro!
Era ótimo ter um pretexto para conversar com ela.
Era inacreditável descobrir que ela se interessava por
um dos meus assuntos preferidos.
Nós trocamos livros por um tempo. As amigas
dela estavam estranhando minha comunicação
constante com Hilda e a maioria não estava gostando.

77
Wanju Duli

Afinal, ela era a rainha das princesas. Elas


provavelmente não queriam um elemento masculino
maculando o clube da Luluzinha.
Eu queria convidar Hilda para fazer um ritual
comigo e com Richie e Rômulo, mas eu não tinha
coragem. Ela seria a única menina no grupo e mesmo
que ela se sentisse à vontade com isso, eu não me
sentia. Eu não saberia como agir com uma guria
presente. Eu provavelmente me atrapalharia.
Principalmente se a guria fosse bonita e eu estivesse
meio que a fim dela.
E se meus amigos se apaixonassem por ela? E se
ela se apaixonasse por meus amigos? Apresentá-la
para os dois ou três membros que conheci pela
internet também parecia furada. Eles eram todos
homens, até alguns anos mais velhos que eu.
Hilda vivia com seu laptop para lá e para cá. Era
um laptop rosa com uma capa de estrelas azuis e
roxas. Ultimamente eu estava achando o máximo
tudo o que ela possuía. Achava que ela tinha um
gosto admirável.
Ela frequentava muitos sites de ocultismo. E ela
tinha um blog ainda mais popular que meu site. Na
minha opinião, o blog dela era popular porque ela
vivia colocando fotos de feitiços com um monte de
utensílios ritualísticos bonitos, como flores e poções,
e isso atraía o grande público. Além do mais, ela
também postava fotos dela mesma fazendo os rituais,
e isso atraía os ocultistas homens, já que ela era ao
mesmo tempo graciosa e sensual. Assim não era justo.
Não tinha como eu competir. Eu podia escrever
pensamentos altamente filosóficos e inteligentes no
meu site, mas bastava ela colocar uma foto sorridente

78
Mate Espíritos

usando um chapéu de bruxa que aquilo parecia fazer


muito mais sucesso. Porra!
Mas confesso que aquele método funcionou para
fisgar até a mim como leitor, mesmo eu estando
ciente dos truques sujos por trás dele. Eu queria ver
novas fotos dela e dos rituais. Além do mais, ela era
um doce de pessoa, embora também fosse sincera
quando estava zangada.
Eu queria cada vez mais vê-la braba, pois ela
ficava linda assim. Acho que eu tinha uma espécie de
fetiche por gurias que explodiam de fúria ou que
choravam, pois mostrava um misto de força e
vulnerabilidade.
Mas era difícil ver isso em Hilda, porque ela
parecia possuir um bom equilíbrio de emoções. Eu
raramente a via realmente irritada ou chateada. Na
maior parte do tempo ela estava apenas normal, com
um leve sorriso.
Ela não devia me achar grande coisa. Será que ela
me achava um chato?
Quando eu ousei adicioná-la no Facebook, fiquei
com muito medo da recusa. Felizmente ela aceitou
meu pedido de amizade poucos segundos depois.
Será que ela não saía do computador? Além de viver
com o laptop embaixo do braço, ela não desgrudava
do celular. Era uma autêntica maga contemporânea.
Até Greta estava lendo livros de wicca, mas
certamente só porque Hilda emprestou. Se eu tivesse
mostrado a ela, Greta certamente acharia tudo
bobagem e não se interessaria.
Mas a minha surpresa maior foi descobrir que eu
não possuía apenas Greta como amiga em comum de
Hilda. Tínhamos outro amigo em comum: Dio.

79
Wanju Duli

Meu queixo caiu. Mas de onde o puto do Dio


conhecia Hilda? Aquilo não fazia o menor sentido! O
maluco não estava na Macedônia? Será que o mundo
do ocultismo era assim tão pequeno?
Mandei dezenas de mensagens para o filho da
puta, tentando descobrir de onde ele conhecia minha
colega, mas ele devia estar tão ocupado com os
estudos que nem logou no Facebook naquela semana.
Eu estava tão morto de curiosidade que tive que
perguntar para Hilda no dia seguinte.
– Ele é meu primo.
– Teu primo?!
– Sim, fui eu que iniciei Dio na magia – ela
explicou.
– E foi ele que me iniciou – confessei.
Então era como se ela fosse a mestra do meu
mestre. Cacete.
Mas havia algo de bom naquilo tudo: Dio
certamente não tinha comido Hilda, já que eles eram
primos. Eu e Rômulo tínhamos uma assustadora
teoria de que pelo menos 90% das amigas mulheres
no Facebook de Dio eram ex-ficantes dele.
– O que acha do Dio? – resolvi perguntar.
– Ele é um filho da puta – ela riu – mas adoro ele,
cara.
Eu adorava quando Hilda falava palavrões e gírias.
E principalmente quando ria depois.
– Tu também tem parentes na Macedônia?
– Não, não. Somos primos por parte de mãe. Os
parentes dele da Macedônia são por parte de pai.
Minha família é 100% brasileira e daqui não saio.
Eu achei ótimo.
– Dio é meu melhor amigo – informei.

80
Mate Espíritos

Essa informação provavelmente me tornaria mais


próximo dela.
– Tu é o Mate Espíritos? – ela perguntou,
intrigada.
– Ele já falou de mim pra ti? – perguntei,
encantado.
– Ele mencionou sobre um amigo que usa blood
magick como se fosse água.
Dessa vez eu tive que rir.
– Maldito Diomedes. Assim pareço um idiota.
– Nem tanto – ela disse – dá pra entender porque
faz isso. Dá força, né? Tu te sente foda.
– O medo vai embora – expliquei – ou me fundo
com o medo quando enlouqueço.
– E tu usa magia sexual também?
– Ah... não tenho parceira no momento – resolvi
dizer.
– Mas não usa nem masturbação pra chamar
espíritos, carregar amuletos ou alterar o estado de
consciência?
Um sinal de alerta se acendeu na minha mente.
Era uma pergunta perigosa. Por que ela tinha feito?
Eu devia agir naturalmente, como se fosse uma
pergunta qualquer.
Mas eu não sabia o que responder. Eu já tinha
usado masturbação na magia, mas não era frequente.
Se eu dissesse que não, ela me acharia inexperiente
ou arrogante? Se eu dissesse que sim ela me acharia
um pervertido?
Se fosse um homem perguntando aquilo, eu
responderia qualquer merda, como: “Já usei, mas
nem ligo muito” ou “Por que quer saber, tá a fim de
me comer?”

81
Wanju Duli

Como era Hilda perguntando, resolvi dizer:


– Sim, eu uso.
– Eu também – ela disse – é gostosinho.
OK, ela queria me deixar louco. E se ela queria
mesmo falar sobre isso, eu iria mais fundo na
conversa.
– Que método tu usa? – perguntei.
– Eu energizo amuletos.
– Sim, mas como tu faz?
Nesse momento, ela sorriu.
– Não vou te contar.
Eu baixei os olhos e ri, dizendo que tudo bem.
E naquela noite, quando me masturbei sozinho no
meu quarto, imaginei o sorriso de Hilda, dizendo
aquela última frase. A maneira que ela pronunciava a
palavra “masturbação” também era bastante sensual.
Eu queria aquela guria pra mim. Será que seria
mais natural convidá-la para um ritual de sexo do que
apenas pedir para transarmos? Mas eu não queria
apenas comê-la, e sim tê-la como namorada.
Porém, quanto mais eu lia o blog dela, mais medo
eu tinha de me aproximar. Eu não sabia explicar o
que era, mas alguma coisa me afastava.
Ela era tão elegante, tão segura de si.
Será que eu devia pedir para Dio uma dica para
conquistá-la? Mas a verdade é que eu não tinha
coragem de dizer para Dio que eu estava a fim da
prima dele.
Foi então que eu vi Hilda furiosa pela primeira vez.
Quase tive um orgasmo.
Ela chegou na sala batendo a porta, sentou-se e
abriu o laptop.

82
Mate Espíritos

– La Reina hackeou meu site outra vez! –


exclamou Hilda – E escreveu um monte de merda no
meu blog, dizendo que fui eu!
– Que putinha – comentou Greta, divertindo-se –
quer que eu acabe com ela?
– Não. Hoje mesmo vou visitá-la no colégio dela.
Então a última postagem de Hilda não tinha sido
escrita por ela. Curiosamente, achei este o post mais
sensacional e ousado do blog.
No final da aula, todas as gurias do grupinho
pegaram um ônibus até o colégio da tal “La Reina”.
Eu obviamente as segui, porque não queria perder o
espetáculo.
Era um colégio público quase fora da cidade.
Sinceramente, era um dos colégios mais fodidos que
eu já tinha visto. Tinha barro por todo o lado, as salas
de aula eram sucateadas e havia um monte de lixo.
Como é que eles tinham aula no meio daquilo?
Hilda apareceu na porta de uma das salas e disse,
com confiança:
– Com licença. Rosamaria está disponível?
E ela foi imediatamente liberada. Rosamaria
desatou a rir assim que saiu da sala. Hilda deu um
tapa na cara dela. Meu, que lindo!
Porém, em vez de Rosamaria rebater e pegá-la
pelos cabelos, ela abraçou Hilda e deu-lhe um beijo
no rosto. Docemente.
Todas as meninas soltaram uma exclamação,
escandalizadas.
“Hã? O que tá acontecendo? O que foi que eu
perdi?” pensei, confuso.
– Querida – disse Hilda, calmamente – dessa vez
eu deixo passar. Mas da próxima vez que colocar um

83
Wanju Duli

dedo no meu site, eu vou te presentear com um


cupcake envenenado.
Rosamaria apenas retornou para a sua sala de aula,
ignorando-a.
Ela era uma garota negra, com um enorme black
power e argolas nas orelhas.
Rosamaria era tão extraordinária que meu objetivo
de vida logo seria apenas um: transferir-me para
aquele lixo de colégio no próximo ano, apenas para
que eu fosse colega daquela guria poderosa.
Talvez eu pareça um doido ou um grande idiota
pensando essas coisas impulsivas. Porém, eu andava
vulnerável naquela época. Meus amigos estavam em
outro colégio, meu melhor amigo estava longe e eu
ainda não tinha feito novos amigos no colégio novo.
Eu estava começando uma amizade com Hilda e a
meia dúzia de palavras que eu trocava com Greta de
vez em nunca nem poderia ser chamado de amizade.
Descobri que eu tinha um sério problema: eu não
conseguia fazer amizade com gurias.
Quando eu era criança não ligava para meninas.
Achava que todas eram idiotas. Não tinha o menor
interesse em me aproximar delas. E atualmente
qualquer interesse que eu tivesse por elas se traduzia
em paixão. Em outras palavras, eu me apaixonava
por todas as minhas amigas!
Não que Dio fosse muito diferente, já que só
falava com gurias quando tinha interesse em ficar
com elas. E, pensando bem, Richie não era igual?
Richie já tinha se apaixonado até por professoras.
Merda. Acho que eu ainda era muito guri para ter
maturidade de ter gurias como amigas sem me
apaixonar. E não ajudava muito o fato de as meninas

84
Mate Espíritos

de quem eu me aproximava serem bonitas. Aliás, era


por isso mesmo que eu me aproximava e iniciava a
amizade. Assim ficava complicado.
Porém, antes que eu precisasse me preocupar,
descobri um fato incrível: Hilda e Rosamaria eram
namoradas. Elas eram lésbicas. Fiquei sabendo que
era a nova moda: muitas gurias do meu colégio
estavam se tornando lésbicas por causa de uma
reação do movimento feminista contra a opressão
masculina, ou sei lá o quê.
Eu não entendia muito sobre feminismo. Achava
aquilo muito complicado e embora eu não tivesse
nenhum problema em expressar diferentes opiniões
sobre isso entre meus amigos, eu preferia não falar o
que eu realmente pensava na frente de uma guria,
porque ela podia ficar braba.
Como Greta também parecia ter uma raiva natural
contra homens, fiquei sabendo que ela também
estava pensando em aderir à moda. Isso significava
que as três meninas que eu achava atraentes, que
eram Greta, Hilda e a tal Rosamaria que eu tinha
acabado de conhecer, “decidiram” não gostar mais de
homens por causa da moda.
Quando contei isso para Dio pela internet, ele
achou muito engraçado. Passou o resto da noite
rindo da minha cara.

Dio: Não te preocupa, velho. Tem um monte de


mulher no mundo. Nem todas elas são lésbicas.
Então não esquenta. E se isso é só uma moda, é
menos um motivo para se preocupar.

85
Wanju Duli

Mate: Achei que as pessoas já nasciam gays,


lésbicas ou bis.

Dio: Talvez. Acho que depende da pessoa.

Mate: Será que eu devo virar gay para aborrecê-


las?

Dio: Tu curte chupar um pau?

Mate: Sei lá, nunca chupei um pra saber. Mas acho


que prefiro chupar uma boceta.

Dio: Eu acho meio bobo virar outra pessoa só pra


seguir a moda ou pra emputecer alguém.

Mate: E tu não me contou que tinha uma prima


estudando no mesmo colégio que o meu.

Dio: Не знаев дека.

Mate: O quê?

Dio: Opa. Pera.

Dio estava ficando irritante ultimamente. Ele tinha


feito novos amigos no colégio e só tinha tempo pra
eles. Sempre que conversava comigo online ele estava
falando com outra pessoa ao mesmo tempo.
Desisti daquela conversa. De que adiantava eu ter
tempo disponível se meus amigos não tinham? Eu ia
fazer o que com aquela merda de tempo?

86
Mate Espíritos

Eu me sentia meio vazio. Eu não queria uma


namorada. As gurias que se fodessem. Eu não ia ficar
correndo atrás delas até que uma resolvesse me dar
um minuto de sua digníssima atenção.
Eu só tinha Galaxión. A entidade que um dia eu
descobri vagando no astral, ou que eu mesmo criei.
Aquilo não importava. Nós éramos um.
Deitei-me no chão do meu quarto, em posição de
Homem Vitruviano, e sussurrei o nome de Gala.
– Sinto-me vazio. Antes eu pensava que meu
problema era não ter tempo disponível para mim
mesmo. Mas agora que o tenho, não sei o que fazer
com ele, pois estou só.
– O problema não é o tempo ou a companhia,
Mate Espíritos – disse Galaxión – mas a tua mente.
Não importa se conquistares todo o tempo do
mundo, muitos amigos, mulheres ou até mesmo
dinheiro, fama e poder. Continuarás vazio enquanto
não resolveres o problema da tua mente contigo
mesmo.
– Eu... eu sei como matar a charada.
Antes mesmo de o primeiro período de aula
começar, no dia seguinte, fui falar com Greta, que
parecia muito ocupada na companhia de suas novas
melhores amigas para ter tempo de falar com “um
dos guris patéticos que se declarou pra ela”.
– Tu te lembra do envelope que te dei naquele
dia?
– Aham.
– Tu ainda tem ele?
– Te devolvo amanhã.
E ela virou o rosto.

87
Wanju Duli

Eu odiava Greta. Ela me tratava como lixo. Se


não fosse a porcaria do envelope, eu não conversaria
com ela nunca mais.
Felizmente, ela lembrou de levar o envelope para
a aula no dia seguinte e me entregou. Eu abri para ler
o que estava escrito.

“Eu morro quando eu sonho”

Eu não me lembrava de ter escrito aquilo.


– Tu não acha estranho um guri escrever uma
declaração de amor assim pra uma guria? – perguntei.
– Eu não achei nem um pouco estranho –
respondeu Greta – achei perfeitamente
compreensível.
– Então me explica – pedi.
– Não há o que explicar. Está tudo aí. Agora, com
licença. Lisandra está me chamando. Ela tá com uns
problemas sérios, não com tuas besteiras.
E Greta se afastou.
Por que eu escrevi aquela merda?
As pessoas estavam mortas enquanto dormiam?
Então também poderiam estar mortas enquanto
viviam. Mas talvez aquilo não fosse sobre sono.
Procurei o significado do termo “sonho” num
dicionário online pelo celular. O significado me
espantou.

“Utopia; imaginação sem fundamento; fantasia;


devaneio; ilusão; felicidade; que dura pouco;
esperanças vãs; ideias quiméricas”

“Minhas ideias quiméricas me matam”

88
Mate Espíritos

Minhas esperanças vãs de uma ilusão de felicidade


duravam pouco. Eram um mero devaneio, uma
fantasia sem fundamento. Um mundo utópico
completamente imaginário. Por que viver por algo
assim se aquilo me destruía muito mais do que me
salvava?
E será que eu sequer possuía sonhos para ser
capaz de abandoná-los? Pelo que eu vivia? Pelo que
eu desejaria morrer?
Cada um seguia sua vida guardando seus sonhos
numa caixinha de altas expectativas que talvez jamais
pudesse ser aberta.
Eu não tinha problemas. Minha vida era
supostamente perfeita. Então por que eu me sentia
daquele jeito? Um ou dois amigos e uma namorada já
resolveriam meu problema, certo?
Mas até na época em que eu estudava na mesma
sala com meus amigos eu não estava satisfeito.
Minha mãe notou que eu estava meio triste
naquele dia, quando cheguei da aula.
– O que tu tens, meu filho?
Não era do feitio dela ser assim tão carinhosa.
– Nada – desconversei.
“É coisa da idade” costumavam dizer meus
parentes, como uns tios ou tias com quem eu
raramente conversava. “Depois passa. Eu também
era assim na adolescência”.
Eu estava tão perturbado e sem perspectivas
naquele dia que fiz uma coisa completamente maluca:
bati na porta do quarto da minha irmã.

89
Wanju Duli

Ela demorou pra abrir, mas quando abriu só


colocou a cara pra fora. Quando viu quem era, fez
uma expressão de peixe morto.
– Que foi? Tô ocupada.
– Posso entrar um pouco?
– É claro que não!
– Por favor.
Ela abriu a porta, ainda de mau humor. Eu odiava
pedir a ela “por favor” por qualquer coisa, mas eu
queria fazer algo completamente diferente naquele
dia. E entrar no quarto dela era quase tão doido e
perigoso quanto saltar de pára-quedas ou tomar um
crack.
– Fala logo que eu tô fazendo uma coisa aqui.
O quarto dela era todo arrumadinho, perfeitinho e
sem graça. Parecia quase uma cópia do meu quarto,
mas com alguns objetos de menina que com certeza
não se encontrariam no meu.
Eu ia sentar na cama, mas ela não permitiu. Então
sentei na cadeira.
– Às vezes tu não te sente vazia?
– O que foi que tu fumou, Elias? Aposto que é má
influência dos teus colegas burros.
Era complicado conversar daquele jeito.
– Dá pra responder minha pergunta? – perguntei,
ligeiramente aborrecido.
– Não tenho tempo pra pensar nessas coisas. Tô
sempre muito ocupada. Tu fica pensando nessas
porcarias porque teu colégio não te dá deveres
suficientes.
Então era isso? Eu só precisava me encher de
ocupações para não pensar?

90
Mate Espíritos

Até que aquela conversa com Magdalena foi bem


proveitosa, mesmo que tenha durado apenas um ou
dois minutos.
Minha mãe estava realmente preocupada porque
eu andava cabisbaixo. E sabem o que ela fez? Me
mandou para a igreja, para conversar com o padre.
Em vez de simplesmente conversar comigo. Era
muito mais fácil mandar a bomba pra outro.
Eu não estava no humor ideal para isso. Estava
até meio puto.
Mas fui pra igreja mesmo assim. Fiz o que minha
mãe mandou, como um bom garoto.
O padre iniciou sua pregação sobre Deus. Eu até
que curtia aqueles papos teológicos, mas depois
começou a ficar muito viajado. Ele citou uns profetas
bíblicos meio nada a ver.
Aí tá, eu meio que dormi no meio da conversa e
para tentar me livrar dele, clamei:
– Padre, eu acho que o demônio tá dentro de mim.
Eu conversei com o diabo ontem à noite.
Do nada, eu comecei a contar que eu fazia pactos
com o demônio e rituais estranhos na minha casa.
Mas eu disse que a culpa não era minha porque “as
vozes” me mandaram fazer aquilo.
Eu sempre tive muito medo que minha família
descobrisse sobre meus rituais, então aquela era a
situação perfeita para eu escapar sem culpa. Afinal, a
culpa era de Satanás.
Mas no final da conversa, quando o padre disse
que ia me acompanhar até a minha casa para
conversar com meus pais, eu me arrependi. Supliquei
ao padre que não revelasse nada. Então ele propôs
que realizássemos um exorcismo para me livrar do

91
Wanju Duli

demônio do meu corpo, sem que meus pais ficassem


sabendo.
Eu topei, porque achei que seria apenas um monte
de bobagens. Mas aquele tal exorcismo me assustou
pra caralho.
O padre colocou uma roupa estranha, pegou uma
cruz, água benta e sabe-se lá mais o quê. Fiquei
sabendo que apenas alguns padres tinham a
autorização do Vaticano para fazer exorcismos, então
pelo jeito o padre da minha igreja era foda.
“Espera, isso aqui é sério?”
Ele começou a ler versículos da Bíblia. Eu já tinha
lido vários livros da Bíblia muitas vezes. Alguns deles
eu achava interessantes, criativos e profundos.
Outros eu não curtia tanto.
Eu era um estudioso do ocultismo e um mago.
Como tal, eu respeitava os aspectos positivos de
muitas religiões. Eu não era particularmente contra o
cristianismo. Apenas não era um entusiasta.
Portanto, imaginei que aquelas leituras teriam
efeito quase nulo. Julguei que eu possuísse a
resistência mental para não me deixar levar pela
atmosfera delirante.
Era como um teatro: a voz profunda do homem
ressoava e eu me sentia cada vez mais envolvido com
o espetáculo.
Até que entrei no clima. Uma parte de mim
desejou entrar.
Como o cara era padre, a leitura dele não tinha o
mesmo efeito de uma pessoa aleatória que recita
versículos bíblicos. O sujeito tinha fé e aquilo era
significativo na ocasião.

92
Mate Espíritos

Para completar, eu estava muito acostumado a


entrar em transe e era capaz de fazê-lo com pouca
coisa. Sendo assim, não precisou muito teatro para eu
começar a ter visões.
Vi imagens do Juízo Final ou de qualquer outra
coisa que o padre estivesse lendo. No começo achei
engraçado. Depois começou a me incomodar.
Acho que também vi Deus e Satanás no meio das
cenas. Abanei a mão e cumprimentei-os. Eles nem
olharam para mim.
Eu despertei do transe e comecei a chorar. Eu
gritei um monte de coisas idiotas. Eu disse que tinha
cumprimentado Deus e ele nem olhou na minha
direção. Até o diabo tinha me ignorado.
O padre, obviamente, deu uma explicação
teológica aparentemente convincente do motivo
maior de todas aquelas visões. E me mandou voltar
para outra sessão de exorcismo na semana que vem,
pois somente uma não era o bastante, já que “essas
coisas levam tempo”.
Achei o padre gente boa por não ter me delatado
para meus pais. No começo eu fiz aquela cena e falei
aquelas besteiras meio de brincadeira, só pra tirar
com a cara do padre. Mas então por que eu chorei de
verdade depois?
Além de estar me apaixonando por qualquer guria
aleatória que eu via, eu andava muito sensível e
chorando por qualquer merda. Acho que eu só queria
atenção e companhia.
Saí daquela igreja muito pior do que entrei.
As forças das minhas pernas estavam indo embora.
Peguei meu celular e postei uma montanha de
bobagens no Facebook e no Twitter.

93
Wanju Duli

Sem querer, deixei o celular cair no chão, mas


esqueci de pegar. O mundo inteiro parecia meio
anuviado.
Deitei num gramado qualquer e achei que fosse
explodir.
Eu dormi. Quando acordei já era madrugada.
Cacete! Eu estava num beco escuro. Senti medo, mas
o medo se transformou em terror quando vi três
caras esquisitos ali perto.
– Passa a mochila – ele parecia chapadão – rápido!
Tirei a mochila e dei pro cara imediatamente.
– Tira os tênis aí. Vai, vai!
A pressa do homem era assustadora. Eu estava
tremendo tanto que não conseguia desatar os
cadarços, então eu apenas arranquei os tênis dos
meus pés.
Ele também pediu meu casaco. E meu relógio. Eu
demorei tanto pra tirar o relógio que o outro maluco
chapado apontou uma arma pra mim.
Eu tentei arrancar o relógio do meu braço.
Arrranhei toda a mão e o pulso. A porcaria do
relógio não saía! Eu estava suando frio.
Ele começou a gritar que nem um doido.
– Tira o relógio! TIRA A PORRA DO
RELÓGIO!!
Ele encostou o cano na minha cara e eu comecei a
chorar, com o coração acelerado. Finalmente
arranquei o relógio, depois de machucar toda a mão
fazendo isso.
Eles ainda me revistaram para verificar se eu não
estava escondendo nada de valor.
– Vamo embora logo, cacete.

94
Mate Espíritos

– Pera aí que esse guri tem grana. Tira a camisa,


guri!
Arranquei a camisa o mais rápido que consegui.
Eles revistaram os bolsos das minhas calças e quando
descobriram que eu tinha coisas nos bolsos, me
mandaram tirar a calça.
E os três caras se mandaram de lá, me deixando
sem absolutamente nada. Fiquei só de cueca.
Enxuguei as lágrimas. O que eu ia fazer?
Ainda permaneci lá por alguns minutos, sem saber
se eu ficava ou saía. Eu estava tremendo tanto que
mal conseguia me mover.
E começou a chover.
Fiquei lá, no meio da chuva, desesperado.
Chorando. Eu me sentia um perdedor, um infeliz,
um merda.
Perto daquilo que eu estava sentindo, o tal “vazio”
de antes era completamente irrelevante. Eu só queria
voltar para a segurança da minha casa. Para o meu
quarto. Eu estava com fome, com frio, exausto,
apavorado.
Eu jurei que se eu retornasse com segurança para
minha casa jamais iria reclamar da vida de novo.
Jamais iria inventar problemas ou demônios para me
assombrar.
Naquele momento eu descobri porque estava
entediado: porque eu tinha tudo. Eu não tinha planos,
sonhos, objetivos, porque sempre tive tudo desde o
começo. Era por isso que eu não tinha nada pelo que
viver ou morrer.
Eu arrancava sangue do meu corpo nos rituais, me
sentindo extremamente foda. Mas bastava minha
mão sangrar de verdade, quando arranquei o relógio

95
Wanju Duli

e dei para os assaltantes, numa situação totalmente


real, e não num teatro, que eu sentia pena de mim
mesmo, me sentia fraco e perdido.
Durante o ritual era tudo planejado e eu estava no
controle. Na vida eu não estava. Lá fora eu não podia
escolher quanto do meu sangue seria arrancado e a
intensidade da dor. Não podia apenas parar e escapar
quando ficasse insuportável.
Eu não conhecia a vida. Somente um teatro da
vida, sempre protegido demais, confortável demais.
Foi então que vi um par de botas negras.
Levantei os olhos. Havia uma garota diante de
mim, segurando um guarda-chuva.
Eu não me lembrava de tê-la visto antes. Então
por que ela me parecia tão familiar?
Ela me estendeu a mão.
– Eu te ajudo.
Eu não fazia a menor ideia de quem ela fosse. Eu
estava com medo. Mas aceitei a mão estendida. Já
tinha acontecido tanta merda naquela noite que não
poderia piorar.
Eu estava completamente enganado.
Em breve eu iria descobrir que aquela guria era
muito mais assustadora que os três caras que me
assaltaram. Mais insana que qualquer outra pessoa
que conheci.

96
Mate Espíritos

Capítulo 2: Vela

– Merda! Roubaram meu código.


– Isso foi bem feito. Quem manda jogar teu
espírito à beira do abismo? É como desenvolver um
algoritmo para o suicídio.
– Vai tomar no cu, Horácio! Eu tinha tudo sob
controle. Eu estava dominando o sistema e
dominaria toda a galáxia NGC 7742 se não fosse a
putaria que rolou no buraco negro. Aqueles manés
são totalmente vidrados numa singularidade.
– E agora vai ficar irritadinha só porque uma
criança desocupada e infeliz roubou teu brinquedo?
– Não somente um brinquedo. Ele vai acorrentar
meu espírito e cobrar o resgate. Tenho certeza!
Aquela peste sabe o que faz. Ele só existe para roubar
a minha esperança de alegria.
Tirei meus headphones e joguei no chão.
– Por que leva isso tão a sério? Não é como se tu
tivesse vendido tua alma ao diabo e agora estivesse
destinada ao inferno.
– Eu apostei uma esperança, cara. Me desgastei o
mês inteiro para criar uma forma-pensamento
nebulosa de Fobos. Essa é a derrota completa de
Pulsar de Vela.
Roí minha unha, tentando planejar um meio de
encontrar uma saída. Ainda assim, aquela perda não
poderia ser reparada.
Aquilo não era exatamente um jogo, embora fosse
tão divertido quanto um. Era algo muito mais sério.
Quem sabe exatamete por isso a emoção gerada fosse
bem mais intensa. Mais perigoso que apostar dinheiro

97
Wanju Duli

real num cassino: tu deverias apostar porções do teu


espírito.
No começo só era possível participar se o
membro tivesse algum conhecimento de
programação. Aos poucos, o programa se tornou
mais acessível ao grande público, embora ainda
restasse alguns resquícios das antigas.
Aquele era um programa para neo-ocultistas
criarem ou evocarem espíritos. Em suma, magia
tecnológica. Muitos magos usavam aquilo e a
egrégora gerada era poderosa.
A princípio o pessoal tirava sarro, alegando que o
programa não passava de uma plataforma para
desenvolvimento de tamagotchis em massa. Um
mago criava um espírito e jogava numa “galáxia”, que
era como uma dimensão espaço-temporal acessada
por meditação. Na prática, bastava acessar o
programa e sair às caças de um espírito. Alguns eram
particularmente valiosos.
Cada espírito funcionava por intermédio de um
algoritmo específico que dava a ele funções especiais.
Por isso, havia os espíritos especialistas em tipos
determinados de magia, mas isso nem sempre podia
ser descoberto no momento em que se topava com
um deles. Quem sabia alterar o código podia puxar
uma forma-pensamento rudimentar e acrescentar
algumas variações.
Era possível guardar um desses espíritos no laptop,
no celular ou em outros aparelhos eletrônicos. Mas
para mantê-lo vivo era necessário alimentá-lo com
alguma coisa.
A malandragem era que muitos espíritos vinham
com vírus embutidos. Mas se engana quem pensa que

98
Mate Espíritos

era somente um passatempo para amantes de


tecnologia. Longe disso. Como foi dito antes,
qualquer pessoa podia participar de toda a emoção,
utilizando outros programas de apoio com regras
simples.
Mas todos os membros seguiam as regras do
pacto. Em primeiro lugar, para ter acesso ao
programa você precisava ser convidado. Por isso, de
certa forma, todos os membros possuiam ligações
uns com os outros, embora algumas ligações fossem
tão distantes como um sonho. Sem contar os
espertinhos que entravam de penetra.
A combinação era a seguinte: pegar um espírito ou
mais de um espírito para si e a partir daí carregá-los
com energia, como emoções. Os magos podiam
realizar meditações ou evocações para fortalecer seu
espírito, ou simplesmente representá-los com uma
estatueta e ofertar uma porção de comida
regularmente.
Cada membro possuía um perfil no site. Era
preciso escolher um apelido. Muita gente divulgava
quais formas-pensamento, espíritos ou formas de
deus havia aprisionado e modificado. Outros
mantinham isso em segredo.
Porém, não era permitido divulgar o código fonte.
Se tu encontraste uma forma-pensamento vagando
numa galáxia e a tomaste para ti, ela é tua. Tu
poderás modificá-la e soltá-la de novo, ou ficar com
ela para sempre... a não ser que alguém a roube.
Era como uma guerra, com membros tomando os
espíritos uns dos outros, replicando-os ou partindo-
os em pedaços. Alguns espíritos evoluiam para

99
Wanju Duli

deuses e outros morriam. Também havia os que se


tornavam estrelas, planetas ou até galáxias.
Com o tempo, membros com interesses
semelhantes se uniram e formaram grupos. Os
grupos mais fortes da atualidade eram os Pregos e os
Martelos.
Isso ocorreu devido ao nascimento de um espírito
forte na proximidade de Marte. Todo mundo queria
pegá-lo. Aquele foi um dia memorável. Lembro que
até faltei aula e virei duas noites seguidas.
Ninguém sabia quem tinha desenvolvido o
espírito, mas ele era simplesmente indomável. Por
isso, vários membros passaram a residir nas luas de
Marte: Fobos e Deimos. Quem decidiu se reunir em
Fobos foram os membros que possuíam a
abordagem de que para capturar o espírito era
preciso atacá-lo diretamente, com métodos pesados e
violentos. A galera de Deimos usava armadilhas sutis,
para tentar enganar o espírito e pegá-lo despreparado,
com chantagens psicológicas.
No meio disso tudo, surgiu uma jogadora
extraordinária: Pulsar de Vela; ou Vela Pulsar, que foi
o nick posterior. Esse membro sou eu. Demonstrei
todo o meu conhecimento e poder.
O processo de captura de um espírito é
complicado. Ele reage a palavras-chaves, ou jogos de
lógica. E além da parte mecânica do programa, há a
parte humana. Não sabíamos ao certo se o espírito
era uma espécie de criatura automática ou
semiautomática, mas ainda assim era incrível.
Eu estava quase clamando o espírito para mim,
quando surgiu um jogador extremamente irritante de

100
Mate Espíritos

Deimos. Esse jogador tomou o espírito para si


exatamente às 5h48min da manhã.
Os grupos que montaram acampamento em
Fobos e Deimos já eram grupos rivais, mas a partir
desse dia a rixa se tornou mortal. Esse jogador
utilizou uma armadilha suja, porém inteligente, para
apropriar-se daquele ser. Como jogar tachinhas numa
cadeira. Eu queria apenas esmagar o espírito com
toda minha força e depois reconstruí-lo. Mas o prego
foi mais forte que o martelo naquele dia. E o terror
venceu o medo.
O espírito invencível, Galaxión, foi capturado por
Mate Espíritos. E eu o odiei para sempre a partir
desse dia. Eu não iria permitir que ele se esquecesse
de mim.
Por isso, eu passei a liderar todos os membros do
grupo Martelo. Meu objetivo era destruir os Pregos.
Nós ganhamos algumas batalhas, mas nunca a guerra.
Jamais venci uma batalha direta contra o líder deles,
que era o próprio Mate, e já estava perdendo as
esperanças de aprisionar Galaxión e alterar o código.
E como se a situação não estivesse ruim o
bastante, naquele dia, três meses depois do ocorrido,
Mate Espíritos tinha aprisionado meu melhor
espírito: Vesta. Aquele foi um golpe forte.
Há dois meses eu coloquei Vesta no meu celular e
estava usando esse espírito para a realização de um
feitiço. Eu precisava passar numa prova importante,
que seria decisiva para meus últimos três anos de
colégio. Eu usava esse espírito para adquirir
confiança e me concentrar nos estudos.
No próximo dia eu iria realizar essa prova. Por
isso, resolvi arrastar um exército de espíritos e alguns

101
Wanju Duli

membros do grupo para dominarmos uma galáxia


com um enorme buraco negro. É claro que Mate,
ganancioso como era, já estava visando aquela galáxia
há muito tempo e me expulsou de lá, laçando Vesta e
me obrigando a fugir com o rabo entre as pernas.
Aquilo foi terrível.
– Deixa eu ver se entendi. Ele pegou Vesta e
Blazar 421? Ao mesmo tempo?
– Exato. Ele me humilhou. Esse cara não tem um
pingo de ética no sangue. Ele humilha os outros
membros. Além de avançar com exércitos e tentar
dominar vários universos alheios, ele ainda rouba os
espíritos dos iniciantes, cobra resgate e mata.
– Quem faz isso na internet também faz na vida
real – comentou Horácio – ele deve ser o pior tipo de
ser humano.
– É um programa para os magos se divertirem,
mas também é um momento de encontro espiritual.
Quando há uma batalha ou guerra é preciso haver
honra. Mas ele e os amigos imbecis de Mate só
sabem bagunçar! Só porque eles entendem um
pouquinho de programação, usam esse
conhecimento para atrapalhar todo mundo em vez de
ajudar. Eles se acham assim tão supremos?
– A maioria do pessoal que usa esse programa são
adolescentes estúpidos que não têm o que fazer –
disse Horácio – aposto que os pais dele não dão
limites. Tu ouviu o boato de que ele comprou um
monte de recursos extras para uso pessoal no
programa? Tão dizendo por aí que ele gastou quase
mil reais nessa besteira.
– Assim fica fácil. Não é justo.

102
Mate Espíritos

– Mas esquece isso, Mar. Se eu fosse tu ia estudar


em vez de me preocupar com essa magia. Não é a
magia que vai te garantir aprovação e sim teu esforço.
O feitiço era só um empurrãozinho extra. Tu pode
seguir sem ele.
Eu sabia de toda aquela merda, mas não deixava
de ser frustrantre. O meu empurrãozinho havia se
tornado um tiro no pé, graças ao Mate Espíritos.
Eu precisava admitir que eu também não era
santinha. Uma vez explodi um planeta que ele usava
somente para guardar um monte de espíritos
galácticos. Ele ficou puto. Mas isso não era nada.
Para quem já tinha dominado vários universos e
entupido de espíritos, era apenas um cisco no olho.
Mas ele levou para o lado pessoal e roubou o pouco
que eu tinha.
Eu tinha estudado sozinha um pouco da
linguagem de programação usada no Almax Gala,
que era o nome do programa. Mas eu não tinha
dinheiro sobrando para comprar nada que me
auxiliasse a melhorar meu desempenho além disso. E
não tinha intenção de gastar um centavo.
O pior é que fiquei tão desconcentrada e
desmotivada com tudo que aconteceu que nem
revisei os conteúdos para a prova. Na manhã
seguinte eu e outra colega minha, a Natália, fizemos a
prova. Recebemos o resultado uma semana depois.
Eu estudava num colégio público e fiz essa prova
para tentar ganhar uma bolsa de estudos integral para
estudar todo o meu ensino médio num colégio
particular. Eu tinha estudado toda a minha vida em
colégio público e aquela era uma chance única.

103
Wanju Duli

Infelizmente, não fui aprovada para a bolsa. Foi


um choque para mim, que tinha estudado tanto.
Havia um número limitado de vagas. Natália foi
aprovada.
No começo eu achei estranho, pois Natália tirou
uma nota ligeiramente menor que a minha. Porém, o
colégio comunicou que “outros fatores” também
foram levados em consideração para a obtenção da
vaga, como uma entrevista que fizemos.
Eu ainda não estava convencida, pois pelo que
conversei com a Natália, eu achava que havia me
saído muito melhor na entrevista do que ela. Mas
depois eu me dei conta do que aconteceu: parte das
bolsas de estudo eram destinadas a alunos negros.
Natália era negra e eu era branca. E como além de ser
negra ela tirou uma ótima nota na prova, a
combinação dos dois fatores garantiu sua aprovação.
Acho que fiquei feliz por Natália, pois ela era
minha amiga e ganharia a oportunidade de ter boas
aulas com bons professores. Mas também não deixei
de ficar chateada por não ter garantido minha vaga.
Se ao menos eu tivesse estudado um pouco mais...
Mas eu não achei que o problema fossem as
bolsas destinadas a alunos negros. Aquela era uma
tentativa de solucionar uma pequena parte da questão.
O problema era muito mais profundo. Será que era
certo existir aquela diferença gigantesca entre o
ensino de colégios públicos e particulares?
Havia momentos em que eu apenas queria um
banheiro no meu colégio que tivesse sanitários com
uma tampa e uma porta com tranca, e que não
estivessem transbordando merda. Professores que

104
Mate Espíritos

comparecessem às aulas e que tivessem a mínima


vontade de ensinar.
Mas onde estava o dinheiro para existir uma boa
estrutura? E como os professores se sentiriam
motivados a dar boas aulas com salários ruins?
Nas últimas semanas eu estava namorando aquele
que poderia ter se tornado o meu futuro colégio. Eu
passava lá na frente com frequência somente para
admirar aqueles portões bem pintados.
O colégio para o qual eu estava tentando uma
bolsa não estava entre os melhores colégios
particulares da cidade. Mesmo assim, comparado ao
meu, já era um sonho. Eu estava ansiosa para ter
aulas um pouquinho melhores e colegas mais
interessados, já que muitos dos meus colegas até
celebravam quando os professores faltavam.
Eu sentia que era uma das únicas alunas da minha
turma que possuía alguma ambição em relação à
carreira. Alguns colegas meus nem iam fazer segundo
grau. Outros só iam terminar o ensino médio de
qualquer jeito e nem pensavam em prestar vestibular.
Afinal, alguns deles trabalhavam e estudavam ao
mesmo tempo. Não havia tempo para mais nada.
Ninguém ali tinha grana para pagar cursinho ou
universidade particular. Portanto, nossa única escolha
era se inscrever em bolsas de estudo e programas do
governo. Mas não sobrava tempo pra estudar pra
porra nenhuma! Eu mesma já trabalhava em alguns
empregos informais de vez em quando.
No entanto, mesmo tendo estudado em colégio
público a minha vida inteira, eu me considerava uma
pessoa muito inteligente. Aliás, mais inteligente do

105
Wanju Duli

que muitos filhinhos de papai que estudavam em


colégios particulares.
Eu me achava boa em português e matemática.
Nada excepcional, mas eu sabia coisas que pouca
gente sabia. Por exemplo: eu sabia olhar para um
verbo e classificá-lo em pretérito imperfeito do
indicativo. Eu já tinha visto pessoas muito boas em
gramática que se enrolavam para fazer essas
classificações verbais.
Para completar, eu sabia de cor a tabuada de doze
a quinze. Estava memorizando as próximas. Eu
estava aprendendo muitas coisas novas das matérias
que eu não via durante as aulas, pois eu retirava livros
na biblioteca e estudava sozinha quando tinha tempo.
Por isso, além de decorar, eu entendia conceitos
fundamentais. Eu também retirava livros de literatura
brasileira na minha biblioteca. Meu autor favorito era
Machado de Assis. Eu sei que ele é o autor favorito
de muita gente, mas como tinha um monte de livros
dele na biblioteca do meu colégio, ele acabou se
tornando meu favorito por superexposição.
Eu achava que estava destinada a coisas grandes
no futuro. Meu primeiro passo seria estudar num
colégio particular pelo menos durante um ano da
minha vida, para descobrir que gosto tinha. Mas eu
fracassei. E eu teria poucas chances de conseguir uma
bolsa nos dois anos seguintes, já que a maioria delas
era para o primeiro ano do ensino médio.
Ao saber da minha reprovação, passei a odiar
colégios particulares. Eu sabia que os estudos
dependiam mais do aluno do que do colégio ou dos
professores, mas é claro que os outros fatores

106
Mate Espíritos

também influenciavam, principalmente para quem


não tinha tempo e disciplina para estudar.
Eu tentei reunir meus colegas para formar grupos
de estudo. Fui até numa reunião de professores para
fazer algumas propostas que visavam maximizar o
aproveitamento das aulas. Tudo em vão.
Eu estava sozinha nessa. Teria que continuar
naquela merda de colégio, com aquelas merdas de
pessoas. Eu não sabia de quem era a culpa: dos
professores, dos alunos, do governo, de Deus ou do
diabo.
Provavelmente se eu estivesse no governo eu não
teria uma solução mágica para melhorar de forma
significativa todos os colégios públicos e nem saberia
de onde tirar a quantia absurda de dinheiro necessária
para aumentar os salários de professores, a
infraestrutura e mais uma série de requisitos quase
infinitos.
Para mim, a política se parecia com um tapete
pequeno demais para cobrir uma grande sujeira:
quando você o puxa para um lado, o outro lado fica
descoberto, e vice-versa. Então, quando se melhora
salários de um setor da sociedade, outro é
prejudicado, ou preços aumentam, etc. Parece que
sempre há um problema e sempre vai haver alguém
insatisfeito.
Mas eu não sabia muito de política. Eu não tinha
aulas de política no colégio e já estava muito ocupada
estudando as matérias do colégio que eu não
aprendia em sala de aula no meu tempo extra, além
de trabalhar e ter que perder umas quatro horas
diárias com deslocamento, vindo de ônibus de outra
cidade.

107
Wanju Duli

Embora todas essas explicações fossem muito


bonitas, eu não queria apenas me conformar e fingir
que não havia nada errado. E nem eu sou de ferro.
Eu não queria apenas estudar e trabalhar, mas
também ter meus momentos de diversão.
Eu encontrei livros de alquimia e astrologia no
lugar mais improvável: a biblioteca do meu colégio,
que nem tinha tanta coisa assim. A partir daí,
comecei a procurar livros parecidos em outras
bibliotecas.
Usar apenas os computadores péssimos e velhos
do meu colégio também não era um bom negócio.
Por isso, reuni uma graninha e comprei um laptop
usado. E foi com esse laptop que comecei a usar o
Almax Gala.
A partir daí, eu finalmente tive momentos
memoráveis de diversão e poder. Até que Mate
Espíritos arruinou tudo.
Meu colega Horácio também estava usando o
Almax, embora eu desconfiasse que no começo ele
só usasse aquilo para me agradar. Aos poucos ele foi
pegando o espírito da coisa, literalmente.
O nick dele era “Flaco”. Eu tinha outra colega,
Felícia, que participava usando o nick “Faláxia”. Ela
estava jogando há poucas semanas.
Mas desde que Mate roubou meu espírito e rodei
na prova, fiquei um pouco afastada do Almax. Fiquei
deprimida com a situação por quase um mês. Até que
decidi que eu não queria me portar como uma
perdedora.
Eu não sabia direito de quem eu deveria socar a
cara por não ter ganhado a bolsa de estudos. Mas eu

108
Mate Espíritos

sabia que ainda podia descontar em Mate pelo que ele


tinha feito.
Eu não tinha dinheiro para gastar no Almax e nem
tinha tempo e disposição para ganhar dele naquela
porcariazinha. Mas eu poderia me vingar dele de
outra maneira.
– Tu acha que eu devia encher o computador dele
de vírus?
– Ele parece ser bom com computadores, mesmo
que não seja tão genial assim – opinou Horácio – e já
tentamos puni-lo de muitas formas. Eu tô meio
cético quanto a essa vingança. Ninguém consegue
tocar esse cara, como se ele literalmente tivesse
colado uma parede de fogo nos seus espíritos.
– Se eu não consigo tocá-lo nem no mundo virtual
e nem no espiritual, que tal se eu o punisse na vida
real? – sugeri.
Horácio riu.
– Como pretende encontrá-lo?
– Todo mundo deixa rastros na internet –
expliquei – e ele tem um perfil no Almax Gala com
um monte de informações úteis que posso usar para
pesquisas.
– Boa sorte.
– Não vai me ajudar? Grande amigo, pô!
– Eu acho furada.
Nos próximos dias realizamos algumas pesquisas
na internet, mas apenas perdemos tempo.
– Tem um sujeito no terceiro ano que é meio
metido a cracker. Por que não vai falar com ele? –
sugeriu Horácio – Mas ele cobra pelo serviço.
– Que filho da mãe – falei – mas foda-se, quero
fazer isso. Vou falar com o corno.

109
Wanju Duli

E lá fui eu falar com um tal de Gianluca, que tinha


um moicano verde e amarelo e uma tatuagem de
toupeira.
Fiquei lá parada na frente dele. E ele olhando pra
mim e fumando um cigarro. Até que ele se
incomodou.
– O que é que tá pegando, minazinha?
– Acha uma pessoa pra mim? – perguntei.
– Eu tenho cara de polícia? Ou de detetive?
– Ouvi dizer que tu consegue localizar umas
pessoas por aí com umas habilidades lendárias.
– Como adoro ser bajulado – disse Gianluca – é
música para meus ouvidos. Vamos, bajule mais.
– Para com isso daí, meu. Eu te pago pelo serviço.
– Depende quanto. Sou muito ocupado.
Não paguei grande coisa, mas ele ficou com pena
de mim e disse que ia dar ums procuradas, mas não
prometia nada. Ele demorou um pouco para me dar
o retorno. Algumas semanas.
– Minhas fontes dizem que ele estuda nesse
colégio aqui, no oitavo ano.
Ele me deu um endereço. Aquilo ficava meio
longe. Lá do outro lado da cidade.
Peguei um ônibus até lá no final da minha aula e
fiquei impressionada com o que vi. Aquele colégio
era enorme e lindo. Eu não sabia que tinha um
colégio assim em Porto Alegre.
Eu descobri que eles tinham aula pela manhã e à
tarde, então Mate Espíritos ainda devia estar lá
dentro. Gianluca me disse que o nome dele era Elias,
mas ele não tinha qualquer outra informação além
dessa. Ou não quis me dizer.

110
Mate Espíritos

Entrei lá com a desculpa de que eu queria


conhecer o colégio, pois estava interessada em me
matricular. Até parece.
Era horário de almoço, então havia muita agitação
por todos os lados. Os estudantes usavam uns
uniformes feios e ultrapassados. Se parecia muito
com o uniforme que minha mãe ou minha vó usaram
quando moças. Achei aquilo tudo muito conservador
e sem sentido. Eu era meio contra o uso de
uniformes. Eu preferia me vestir como queria. A
maioria dos uniformes de colégio são feios, mas
aquele era particularmente horrível.
Perguntei na secretaria pelo Elias do oitavo ano. A
secretária me apontou uma professora no corredor e
eu perguntei a ela. A professora, que tinha um
sotaque carregado, me apontou um guri não muito
longe de lá.
Ele estava com mais três amigos guardando livros
nos armários. Resolvi, como quem não quer nada, me
aproximar de lá, fingindo que estava olhando o
quadro de avisos na outra parede. Entreouvi a
conversa.
Espiei os nomes dos autores dos livros que Elias
estava carregando: William Faulkner, T.S. Eliot,
William Butler Yeats. Todos os livros estavam em
inglês. Será que ele conseguia ler aquilo?
– Odeio Shakespeare – disse Elias – mas eu tenho
certeza de que ia gostar se não me obrigassem a ler
isso no colégio. Peguei raiva só por esse motivo.
– Não gosta nem das meias amarelas e das ligas
trespassadas do Malvolio? – perguntou um guri de
cabelo castanho claro.

111
Wanju Duli

– Tô cansado de professores pagando pau pro


“What You Will” – respondeu Elias – e eu ainda não
esqueci o que tu falou da minha mãe, Richie.
– Eu não sabia que ela era a tua mãe, OK? –
defendeu-se o tal Richie – Já pedi desculpas.
– Tu prefere o decote da professora Becky ou o
decote da mãe do Elias? – perguntou um guri de
cabelos pretos e expressão de deboche.
– Por que não vão encher o saco de outra pessoa?
– perguntou Elias – Vai lá fazer bullying no
Argentino, Dio.
– Não tô a fim – respondeu o mesmo guri de
cabelos pretos – ele não reage quando empurro ele
ou quando escondo os materiais escolares. Não tem a
menor graça.
Então aquele era o Dio. Ele também jogava o
Almax Gala, exatamente com esse nick. Ele explodia
espíritos e dimensões espirituais de outros membros
só por zoeira. No mesmo instante, não fui com a cara
dele.
Honestamente, não fui com a cara de nenhum dos
quatro. Pareciam apenas riquinhos arrogantes, que se
achavam muito inteligentes.
Eu devia ter imaginado que Elias tinha esse perfil,
para ser assim tão detestável. Senti vontade de cuspir
na cara dele e sair de lá, mas não seria o bastante. Eu
queria puni-lo de uma forma muito mais poderosa.
– Quem quer ficar à noite aqui no colégio para
ver o asteroide no telescópio, no clube de
astronomia? – perguntou um guri mulato de cabelos
crespos.
– Que programa de índio, Rômulo – disse Dio –
ninguém quer ver essa porcaria.

112
Mate Espíritos

– Tô com fome – disse Richie – tomara que hoje


tenha peixe no refeitório. Espero que não seja galinha
outra vez.
– Detesto a comida desse refeitório – queixou-se
Dio – parece até comida de país de Terceiro Mundo.
– Isso era para ser uma piada? – perguntou Elias –
Porque se era, foi muito ruim.
– Estou com tanto sono depois daquela aula
péssima de microeconomia que meu cérebro não está
trabalhando direito para formar boas piadas –
justificou Dio.
Eles não eram apenas metidos e arrogantes. Eram
extremamente esnobes e pareciam profundamente
entediados com a riqueza e os privilégios que
possuíam.
Eles odiavam tudo! Os professores deles exigiam a
leitura de livros de excelentes autores e eles se
queixavam, enquanto eu sonhava que na minha aula
de literatura a professora um dia se importasse em
exigir que lêssemos livros completos para posterior
debate em aula, em vez de passar uma aula inteira na
velocidade de uma lesma, analisando uma ou duas
características de apenas um período literário.
No meu colégio não havia refeitório, mas apenas
uma cantina que vendia nada mais que um
pastelzinho, coxinha ou refrigerante. Eles não sabiam
o que era ter aulas ruins de verdade e ainda
reclamavam como se fossem reis.
Notei que todos os livros didáticos deles eram
escritos em inglês. Havia alguns alunos ao redor
conversando em inglês. Vi alguns que eram
claramente estrangeiros, com cabelos num tom loiro

113
Wanju Duli

quase branco ou alguns com pele negra tão escura


que os dentes brancos dos estudantes brilhavam.
Elias e seus três amigos eram certamente
brasileiros, e gaúchos. Pude atestar isso pelos
sotaques. Além do mais, todos eles tinham feições de
brasileiros. Aquele que se chamava Rômulo parecia
ter antepassados indígenas e africanos bem próximos.
Elias e Dio eram uma mistureba não identificada.
Somente o tal Richie, pelo nome e pelo rosto, parecia
ter um pé na Europa, mesmo que algumas
características brasileiras fossem visíveis aqui e ali.
Essas foram apenas minhas primeiras impressões,
pois nunca é possível saber ao certo. Distraída, notei
que os quatro saíram da frente dos armários e
caminhavam pelo corredor. Decidi segui-los.
Caminhei tão rápido que esbarrei numa guria.
– Desculpa.
– Sem problemas.
Era uma garota simpática que parecia ser indiana
ou paquistanesa.
Eu ainda estava pensando numa maneira de punir
Elias apropriadamente, mas não faria mal se eu
punisse Dio também. Afinal, cada vez eu ia menos
com a cara dele.
Quando entrei no refeitório deles fiquei com fome,
pois eu ainda não tinha almoçado. O cheiro de
comida era delicioso. Os quatro pegaram bandejas,
serviram o que queriam e se sentaram juntos.
Discretamente, sentei-me numa mesa ao lado, de
forma que eu pudesse ouvir o que eles diziam.
– Meu irmão mais velho decidiu que vai fazer a
graduação no Brasil – comentou Rômulo – ele vai
tentar ITA, para engenharia aeronáutica.

114
Mate Espíritos

– Estudar no exterior é caro pra cacete – disse


Elias – se eu estudasse fora teria que pegar um
trabalho de meio período para ajudar a pagar a
estadia e os estudos. Eu acho que não vale a pena.
Mas a minha irmã não está nem aí. Ela prefere que
meus pais fiquem endividados até o pescoço só pra
pagar pra ela esse capricho de fazer graduação nos
Estados Unidos.
– Eu tenho dupla cidadania, mas não sei se vou
fazer graduação fora – disse Richie – o mais
importante é que minha universidade seja na frente
de uma praia. O resto não importa.
– É sempre assim – comentou Dio – quem tem
grana ou oportunidade de estudar em outro país está
se fodendo pra isso. Quem não tem, sonha com essa
merda. No fundo, as pessoas só desejam o que não
possuem. Assim sempre foi e assim sempre será.
– Nossa, Dio, isso foi muito profundo – caçoou
Richie – se eu ficar no Brasil vou mudar meu nome
para Ricardo. Ninguém nunca entende meu nome
quando eu falo. É um saco isso.
– Eu teria muito interesse em fazer graduação
para matemática, mas não quero ter uma bosta de
salário – disse Rômulo – então terei que pensar em
outra coisa.
– Por que não faz engenharia civil, que está na
moda? – sugeriu Elias.
– Eu não – falou Rômulo – isso é curso de guria.
Eu faria mecatrônica, mas também está na moda.
Assim como engenharia de petróleo, de minas ou o
caralho. Mas foda-se a moda. Acho que vou fazer
engenharia de materiais ou metalúrgica. Ainda tô
pensando.

115
Wanju Duli

Eles estavam no ensino fundamental e já falando


sobre os cursos que queriam na universidade. E
como falavam merda! Era difícil dizer quem falava
mais bobagem.
– Antes eu tava a fim de fazer ciências da
computação, mas talvez eu faça contabilidade – falou
Dio.
– Mas tu não curte economia, rapaz – falou
Rômulo.
– Foda-se – falou Dio – se eu fosse
completamente sincero, diria que eu não curto merda
nenhuma que aprendemos no colégio. Por mim
ficaria de pernas para o ar a vida inteira, bebendo
uma cachaça. Tu acha que eu iria pro colégio ou pra
universidade se eu não fosse obrigado a ir?
– Eu também não faria universidade se não fosse
obrigado – concordou Elias – eu não faço tanta
questão assim de ter dinheiro.
– Quero fazer administração – disse Richie – eu
até que tô a fim de ir pra universidade, mais por
causa das festas e das amizades.
– Eu só queria ficar trancado em casa e não sair
nunca mais – falou Elias.
– Que depressivo – disse Dio – não é tu que diz
que não curte tua família e quer te mandar de lá o
quanto antes?
– Sim, por isso eu preferia ter um apartamento só
meu e me trancar lá dentro – disse Elias – mas aí eu
teria que trabalhar em qualquer coisa pra pagar as
despesas. Então... acho que ainda não tenho
nenhuma solução pro meu problema.

116
Mate Espíritos

– É o problema de muita gente – disse Dio – mas


se eu fosse tu não me preocuparia. É só curtir as
bundas.
– O quê? – perguntou Elias.
– Meu dia sempre fica melhor quando vejo uma
bunda bem grande rebolando, com um salto alto –
explicou Dio – e assim todos os meus problemas
vão embora. Uma vez vi um vídeo pornô em que a
puta tinha uma bunda tão gostosa que minha porra
voou, bateu no ventilador de teto e depois grudou na
janela.
Os outros três se entreolharam, meio céticos.
Aqueles idiotas com certeza não conheciam o
mundo real. Achavam que os pais deles eram os
vilões, por lhes darem uma boa educação. Eles não
sabiam o que era passar fome, esperar doente numa
fila de hospital público ou acordar três ou quatro da
manhã para pegar dois ou três ônibus lá de outra
cidade todos os dias.
Eu mesma morava numa cidade do interior e
tinha que me locomover todo dia para Porto Alegre.
Meu sonho era morar na capital.
– Eu acho que devia haver campi de universidades
internacionais no Brasil, com aulas em inglês – disse
Rômulo – isso existe em muitos países. Tem muita
gente aqui no Brasil que teria grana pra pagar uma
universidade dessas, mas que não teria grana pra
pagar universidade no exterior. Afinal, além do preço
das mensalidades tem a estadia e o custo de vida alto
lá fora. Eu acho que se cobrassem uns 10 mil reais
por mês já rolava.

117
Wanju Duli

– Não, porque há alguns países mais baratos para


se estudar – disse Richie – só rolaria por no máximo
uns 6 ou 7 mil mensais.
– Mas lá fora eles cobram por semestre e não por
mês! – retrucou Rômulo – Então ainda sai mais
barato pagar 10 mil por mês aqui do que 30 mil por
semestre lá fora. Assim o empréstimo não acumula
tanto. E não vai precisar pagar comida, aluguel e
transporte pelo dobro ou triplo do preço. A não ser
que o maluco estude part-time e ajude nas despesas.
Os valores que eles mencionavam me ofendiam.
Aquela conversa me ofendia. A existência deles me
ofendia. Eu estava começando a ficar com raiva.
– Calem a boca – disse Dio – vão pagar em
universidade o preço de uma Ferrari? Vocês são
doentes.
– Não é mais fácil fazer a graduação no Brasil,
pela mesma qualificação? – perguntou Elias – façam
apenas a pós no exterior, como fazem as pessoas
normais. A não ser que estudem apenas um semestre
da graduação no exterior, só pra constar no currículo.
Sem bolsa de estudos é estupidez torrar a grana lá
fora. A menos que tu seja o Richie.
– Eu sinceramente já cansei dessa conversinha
sobre universidades – disse Richie – ainda faltam três
anos, porra.
– Não se pode mais ser uma criança hoje em dia,
nesse mundo competitivo – falou Rômulo – já é
preciso planejar a carreira desde cedo, para estar à
frente.
– Será que toda essa maldição dos infernos é culpa
do capitalismo? – sugeriu Dio – Sabem, eu amo o
capitalismo, mas eu também o odeio. Eu gosto das

118
Mate Espíritos

partes boas, como fazer o que quero e torrar minha


grana como quero. Ter grana e gastar é a melhor
parte. A parte ruim é ter que estudar pra caralho,
trabalhar como um condenado e ter que ganhar de
todo mundo.
– Tu preferia socialismo? – perguntou Richie.
– Eu não sei o que eu preferia – confessou Dio –
todas as opções parecem péssimas. Mas não faz
diferença o que eu prefiro. Vou ter que me adaptar às
coisas como são ou me matar.
Pensei que alunos de colégios bons tivessem o
mínimo de inteligência. Mas naquele instante eu
estava achando que meus colegas do colégio público
eram muito mais conscientes politicamente do que
aqueles quatro bostinhas.
Dio colocou um pouco da comida do próprio
prato numa colher e jogou em cima de alguém lá da
outra mesa.
– Foi mal, Argentino! – berrou Dio – era pra cair
no prato do Adriano.
Aqueles guris se queixavam demais. Eles tinham
tudo e ainda se achavam as vítimas da situação. Eles
não podiam se sentir um pouco mais gratos?
Mas eles eram crianças. Apenas crianças idiotas,
como eu mesma. O que eu poderia esperar?
Salvar o mundo ou desistir do mundo. Eu achava
que aquelas duas não eram as únicas opções. Poderia
haver um meio termo.
Se eu tivesse mais dinheiro, será que eu seria
como eles? Ou será que eu já era como eles desde o
começo? Afinal, eu tentei conseguir uma bolsa de
estudos e estava muito preocupada com minha
própria educação para poder ter um bom futuro. Eles

119
Wanju Duli

não estavam fazendo exatamente o mesmo que eu?


Somente de uma perspectiva diferente.
Mas será que era certo que uma pequena parcela
da população tivesse aquelas oportunidades enormes
enquanto eu lutava para obter apenas o básico ao que
eu deveria ter direito?
Olhando dessa forma, eu e eles éramos
completamente diferentes. Mas o que eu queria que
eles fizessem? Que eles doassem metade do dinheiro
deles para caridade? E se fizessem isso, não seriam
mais assim tão ricos e não conseguiriam estudar fora
ou realizar outros grandes caprichos.
Eu não chegava a passar fome. Apenas não podia
comer fora muitas vezes e ficava no básico do arroz e
feijão em casa. Portanto, da perspectiva daqueles que
não tinham comida, água ou eletricidade, ou nem
mesmo um teto, eu já estava num patamar mais alto.
Então por que eu não doava para essas pessoas o
pouco que me sobrava?
Porque eu queria esse dinheiro, pelo menos para
me dar ao luxo de comprar um sorvete de vez em
quando. Para não somente sobreviver, mas viver,
com um mínimo de diversão.
Mas uma Ferrari equivalia ao meu sorvete? Acho
que não.
Observei Elias por um momento. Ele estava de
olhos baixos, concentrado na comida. Tinha cabelos
castanhos escuros, meio ondulados. Ele não parecia
ser uma má pessoa. Se eu não soubesse o que ele
fazia no Almax Gala, eu até desconfiaria que era um
cara simpático.

120
Mate Espíritos

Será que se eu roubasse o celular ou o laptop dele


conseguiria recuperar meu espírito? Poderia até
mesmo roubar Galaxión.
Não. Ele jamais seria assim tão descuidado. As
suas dimensões de espíritos deviam estar protegidas
por senhas.
Os quatro se levantaram para assistir aos períodos
de aulas da tarde. Resolvi continuar caminhando pelo
colégio enquanto isso, observando as salas e os
quadros de avisos.
Quando eles foram liberados, por volta de
3h30min da tarde, alguns alunos foram assistir aulas
extracurriculares ou participar de atividades de clubes.
Em suma, somente no fim da tarde a maior parte dos
estudantes começou a ir embora.
Resolvi seguir os quatro, para saber até aonde iam.
Eles estavam caminhando juntos pelas ruas. Tentei
não perdê-los de vista.
Eles dobraram em uma rua e entraram numa casa.
Devia ser a casa de um deles, que morava
incrivelmente perto do colégio. Provavelmente era a
casa do tal Dio, já que foi ele que abriu a porta com a
chave.
A partir daí, foi complicado ver qualquer coisa. A
casa era grande, mas não tão grande quanto eu
imaginava. Talvez eles tivessem tanto dinheiro
porque os pais deles economizavam em algumas
coisas. O carro e a casa pareciam ser de uma família
comum de classe média, embora a casa fosse bem
localizada.
Achei que eu conseguiria descobrir onde Elias
morava se eu apenas esperasse que ele saísse e o
seguisse de ônibus. No entanto, era mais provável

121
Wanju Duli

que eles fossem dormir lá ou que os pais dele o


buscassem de carro. Sendo assim, depois que eles
entraram resolvi pegar um ônibus e voltar para minha
casa.
A experiência daquele dia deixou uma marca forte
em mim.
Eu descobri que ricos eram apenas pessoas
normais como qualquer outra. Provavelmente um
pouquinho mais idiotas e alienadas do que a média.
O dinheiro certamente não os tornava pessoas
melhores, mesmo tendo uma educação de qualidade.
Naquele momento, eu não fiquei mais com tanta
vontade de estudar num colégio particular. Eu não
queria conviver com aquele tipo de pessoa. Os meus
colegas pareciam ter papos mais interessantes. Meus
colegas eram pessoas reais, vivendo o mundo real e
não fantoches vivendo um mundo de fantasia que
existia completamente à parte do nosso mundo.
E o que eu deveria fazer em relação a Elias?
Talvez eu odiasse os amigos dele ainda mais do
que ele. Mas eu ainda queria atingir Mate Espíritos.
Se a mente de Mate residia naquele corpo, era ele
quem eu precisava ferir.
Como eu realizava somente trabalhos informais
com conhecidos da minha cidade e da capital, passei
parte do meu trabalho para os fins de semana, para
assim ter mais tempo livre de investigar Elias durante
a semana.
Eu não queria entrar no colégio dele tantas vezes,
para não levantar suspeitas. Por isso, eu apenas
passava por ali nos finais da minha aula, sem entrar.
E todo dia eu via Elias, sem nenhuma pista de onde
ele morava, já que ele voltava para casa todo dia de

122
Mate Espíritos

carro. Seria exagero pagar um táxi para segui-lo? Eu


não tinha tanta grana assim pra isso.
Descobri que Elias tinha uma irmã que estudava
no mesmo colégio. Ela parecia uma bonequinha, toda
delicada e com cabelos presos do lado com um
lacinho.
Era estranho ver Elias no dia a dia, pois eu tinha
imaginado algo completamente diferente. Pensava
que Elias teria uma personalidade parecida com a de
Dio, sempre confiante e criticando tudo. Mas na
verdade Elias parecia um menino meio deprimido e
reservado. Não achei que ele parecia feliz.
Apesar de estar rodeado de amigos, ele parecia
meio solitário. Fiquei com vontade de descobrir mais
sobre ele. Por que ele se sentia sozinho, mesmo com
amigos? E por que estava triste, estudando num
colégio tão bom e tendo dinheiro para fazer o que
bem entendesse?
Ele não devia estar doente. Então só podia ser
outra coisa.
Resolvi pedir a ajuda do Gianluca. Outra vez.
– Por que está tão obcecada por esse moleque? –
perguntou-me Gianluca.
– Ele ganhou de mim num tipo de jogo – resolvi
dizer – e quero me vingar.
– Se eu descobrir o endereço da casa dele, o que
pretende fazer?
– Não sei ainda.
Alguns dias depois, Gianluca, após muitas
pesquisas na internet e hacking, me passou um
endereço que seria a provável residência de Elias.
Peguei um ônibus e fui até lá imediatamente. Resolvi
que iria aguardar perto dali, até que o carro do pai

123
Wanju Duli

dele entrasse na garagem. Eu já sabia qual era o


modelo do carro e a placa.
Somente algumas horas depois, o carro entrou na
garagem. Então aquele era o endereço certo. A casa
dele também não era particularmente extraordinária,
mas tinha dois andares. Aquele era considerado um
bairro nobre e seguro.
Decidi que seria mais fácil observá-lo na casa do
que no colégio. E aquele se tornou um tipo de
passatempo meu. Eu já nem sabia mais porque fazia
aquilo e estava trabalhando cada vez menos, apenas
por curiosidade de observar a rotina diária de Elias,
mesmo que eu fizesse isso de longe.
Eu ia anotando o que descobria. Ele saía com a
família todo domingo pela manhã para ir à igreja. Até
assisti a uma missa com eles. E enquanto assistia, eu
observava a expressão de Elias, que parecia não estar
nem um pouco contente por ser obrigado a rezar.
Nós tínhamos um tipo de religião na Almax Gala.
Era uma crença de que seríamos capazes de moldar a
nossa vontade quanto mais capturássemos espíritos
nas dimensões do programa. Conforme
desvendávamos os códigos e particularidades de cada
um deles, conhecíamos mais a respeito de nós
mesmos.
Parecia uma brincadeira, mas religiões também
não são uma espécie de jogo? Há um livro sagrado, às
vezes um Deus com quem conversar. Nossos deuses
eram nossos espíritos, que representavam aspectos de
nossa psiquê. Os nossos livros eram as regras de
Almax Gala.
Mas Mate Espíritos estava arruinando nossa
religião e nossa diversão. Ele queria ganhar, ser o

124
Mate Espíritos

melhor. Se duvidar, ele desejava ser o nosso Deus,


dominando todas as dimensões e galáxias, com seu
grupinho de fieis seguidores.
Porém, Elias era muito diferente do Mate que eu
conhecia. Ele não queria ganhar e ser o melhor na
vida real. Ele estava se fodendo para a vida real.
Estava profundamente entediado. Quem sabe o
Almax fosse seu local de escape, no qual residisse seu
verdadeiro eu; ou o eu que ele desejava ser.
Resolvi tentar conversar com ele no chat do
Almax. Às vezes o pessoal ficava lá de bobeira,
embora a maioria tivesse mais interesse em ficar
explodindo espíritos dos outros no jogo, alterando os
códigos e tomando territórios para si.

Vela: Mate, exijo a Vesta de volta.

Mate: Não vai ter.

Vela: Então eu vou tomar ela de ti.

Mate: Tenta.

Vela: Vocês, Pregos, são um bando de filhos da


puta. Os multiversos de Almax Gala são grandes o
bastante para que todos nós desfrutemos deles.

Mate: Vocês ficariam entediados se tivessem tudo


de graça, e parariam de jogar. A diversão está no
desafio. Quando explodimos seus planetas e seus
espíritos estamos fazendo um favor.

125
Wanju Duli

Vela: Não é assim que a gente sente a situação. É


muito fácil falar, tu que está entre os vencedores.

Mate: Que graça teria o cristianismo sem a


presença do diabo? Todos já seriam felizes e perfeitos
e não haveria mais o que fazer. Apenas passear no
Éden e colher frutas? Vocês precisam da cobra.
Precisam de Jesus para obter a salvação. Se não existe
um conflito, até mesmo Jesus se torna irrelevante.

Vela: Ser a cobra pode ser divertido. E se tu fosse


a presa, ainda assim acharia incrível?

Mate: Eu acharia extraordinário. Estou com pena


de ti, Vela. Por isso, vou te dar uma chance. Vou
lançar teu espírito Vesta em Deimos e tu terás quinze
minutos para pegá-la de volta.

Ele queria me fazer de boba. Era uma armadilha.


Mas eu não teria outra chance.
Coloquei meus fones de ouvido. Através do meu
avatar, entrei na região de Deimos. Lá havia uma
série de espíritos e criaturas estranhas. Era difícil
desvendar onde estava Vesta.
Eu finalmente a encontrei. E quando tentei
modificar o código para me apropriar dela, perdi algo
muito mais importante.
Os capangas de Mate fizeram um cerco ao meu
redor e roubaram os códigos de todos os meus
espíritos. Me jogaram para fora do jogo. Me deixaram
sem nada. Alteraram todos os códigos e explodiram
todos os planetas que eu já tinha conquistado.

126
Mate Espíritos

E depois ficaram rindo da minha cara no chat.


Publicaram no fórum sobre a “derrota completa de
Vela Pulsar”. Elias não fez isso pessoalmente. Só
ordenou que outros fizessem. Dio estava entre esses
infelizes.
Eu achava foda quando me roubavam
covardemente num RPG online e abusavam da
minha boa vontade. E achava ainda pior quando
membros de um grupo de ocultismo do qual eu fazia
parte roubavam todos os meus espíritos e amuletos
de poder e me humilhavam em público. Um grupo
que seria supostamente “espiritualmente avançado”.
Mas seres humanos são a mesma merda, não
importa quanta educação tiveram, quanto dinheiro
possuem ou a qual religião pertencem. Não era aquilo
que determinava o caráter de uma pessoa.
Eu seria muito infantil se quisesse me vingar
pessoalmente de uma criança que me enganou num
jogo. Ao mesmo tempo, aquilo me satisfaria
imensamente.
Elias estava cansado de já ter tudo na vida real,
então queria dominar também o mundo virtual e o
espiritual. Simplesmente porque não tinha nada mais
para fazer. Ele apenas estudava, não trabalhava. Não
tinha grandes preocupações na vida.
Que merda era aquela? Eu estava furiosa. Eu
queria dar a ele uma lição que ele não esquecesse
nunca mais.
Quando cheguei em casa naquela noite, recebi
uma bronca dos meus pais. Eles disseram que eu
andava gastando muito em passagem de ônibus e me
criticaram por eu não estar trabalhando tanto
ultimamente.

127
Wanju Duli

– Quando eu era muito mais nova que tu, eu já


trabalhava – falou minha mãe – então não seja
irresponsável!
E isso me lembrou uma cena que vi na frente da
casa do Elias.
O pai dele saiu do carro e já foi brigando com ele.
– Não sabe o quanto eu e a tua mãe nos
sacrificamos para dar tudo o que tu tens agora?
Então não seja mal agradecido. A única coisa que tu
precisas fazer agora é estudar e ainda reclamas?
– Mas eu tirei boas notas... senhor – respondeu
Elias, com cuidado.
– Isso não basta – respondeu o pai dele – achas
que tem vagas de emprego para todo mundo? Pois
não tem. Para ser bem sucedido na vida não basta
tirar notas boas. Elas precisam ser as melhores.
Não foi a primeira vez que vi uma discussão como
essa entre eles.
Eu também discutia com meus pais. Muitas vezes.
Sempre faltava dinheiro em casa e isso era um
problema. Mas quando eu via as discussões de Elias
com o pai dele, era quase como me olhar num
espelho, mesmo que nós dois fôssemos tão diferentes.
Mas eu não podia sentir pena dele. Era absurdo.
Eu trocaria a minha vida pela dele no mesmo instante.
Mesmo assim, enxergar-me nele foi simplesmente
inevitável. Pelo menos uma parte de mim.
Eu estava acompanhando a vida dele de muito
perto. Os dias passavam. Eu ia visitá-lo às vezes em
casa e às vezes no colégio. Secretamente.
Alguns meses se passaram. Eu já sabia tanto sobre
a vida dele que era assustador.

128
Mate Espíritos

Elias Gonzalez, 13 anos, signo de sagitário. Cor


favorita: vermelho. Comida favorita: lasanha de
frango com molho branco. Bebida favorita:
chimarrão e Matte Leão. Tipo sanguíneo: O positivo.
Tipo de música favorita: Horrorcore. Banda favorita:
Insane Clown Posse. Filme favorito: The Evil Dead.
Livro favorito: Lord of the Flies, de William Golding.
Confesso que também fiz pesquisas na internet e
pedi a ajuda de Gianluca. Elias estava no Facebook,
no Twitter e em muitos outros sites, como fóruns de
ocultismo e de bobagens variadas. Eu acompanhava
tudo.
Descobri que Elias era apaixonado por uma
colega dele chamada Greta e estava usando Galaxión
para fazer um feitiço de amor. Fiquei encantada
quando soube. Contei para minha colega Felícia, que
também jogava o Almax Gala e conhecia Mate.
– Eu jamais imaginei que Elias tivesse um lado tão
meigo – comentei com Felícia, com um sorriso.
– Por que tu não avacalha essa guria pra se vingar
de Mate? – sugeriu ela.
Felícia tinha pele morena e cabelos loiros tingidos.
Ela tinha cabelos longos e alisados com chapinha.
Era muito gatinha.
Felícia e Horácio, que usavam os nicks de Faláxia
e Flaco no Almax, também odiavam Mate Espíritos e
toda a quadrilha de Deimos. Nós, de Fobos, que
éramos os Martelos, queríamos dar um jeito naquele
Pregos impertinentes e sem educação.
É claro que meus dois amigos estavam se fodendo
para a minha ideia ridícula de vingança. Talvez
estivessem me dando corda apenas porque era
divertido.

129
Wanju Duli

Mas eu tinha me sentido pessoalmente atingida.


Não estava apenas brincando de vingança.
Minha ideia inicial era pesquisar o máximo
possível sobre Elias para poder atingi-lo em seu
ponto fraco. Porém, em algum momento do
processo eu continuei a investigá-lo simplesmente
porque fiquei curiosa sobre a vida dele. Quase como
se ele fosse um amigo de quem eu tivesse interesse
em conhecer os gostos e a personalidade.
Mas Elias era um amigo muito especial, porque ele
era meu inimigo na internet. Também era um tipo de
adversário espiritual, como num duelo de arquimagos.
Aquela ideia me empolgava.
De vez em quando eu enviava o código de um
espírito que montei para o celular de Elias, apenas
para confudi-lo e deixá-lo intrigado. Sim, àquele
ponto eu já sabia o número de celular dele. Afinal,
como eu não saberia? Existia alguma coisa sobre
Elias Gonzalez que eu não soubesse?
Uma vez até achei na internet um questionário
virtual que Elias e o pessoal da turma dele
responderam. Certas respostas me deixaram
admirada.
Algumas perguntas eram realmente bobas, mas eu
aprendi muito sobre ele dessa forma. Elias disse que
sua maior qualidade era a sinceridade e seu maior
defeito era... a sinceridade também. O que o deixava
com mais raiva era conexão lenta da internet. O que
ele considerava mais importante numa amizade era a
presença física. Seu melhor amigo era Dio. Se
pudesse ter poderes mágicos, ele escolheria a
invisibilidade para poder desaparecer quando pessoas
lhe incomodassem. A primeira coisa que ele fazia ao

130
Mate Espíritos

acordar era checar o celular. Ele tinha um pouco de


claustrofobia. A viagem dos sonhos seria com a
pessoa mais importante para ele, não importando
para onde fossem. Se soubesse que o mundo acabaria
amanhã, ele beberia, fumaria e usaria muitas drogas
pesadas. Dali dez anos, ele se imaginava muito pobre,
mas feliz. A pessoa de quem ele menos gostava era a
irmã. Seu momento mais inesquecível não importava,
pois ele vivia do presente e não do passado.
Achei que muitas das respostas foram ingênuas.
Para completar, eu achei comentários dele num site
sobre sexo e fiquei surpresa ao constatar o quanto ele
era inocente. As perguntas que ele fez eram risíveis.
Ele havia acessado muitos sites de pornografia.
Consegui o histórico dos vídeos mais acessados por
ele. A maioria dos vídeos mostrava caras amarrados e
amordaçados sendo espancados por gurias e tendo as
bolas espremidas por salto alto.
Para saber o que ele fazia trancado no quarto e
para invadir sua privacidade, cheguei à conclusão de
que a melhor solução seria revirar o lixo dele. Eu
sabia que o lixo do quarto dele tinha uma sacola cinza.
Por isso, passei a recolher esses antes que o
caminhão de lixo viesse.
Achei papeis de bala, chicletes mascados, latinhas
de refrigerante, embalagens de produtos diversos,
papeis amassados e picotados, lascas de lápis, farelos
de bolachas, dentre muitas outras coisinhas
interessantes.
Quando Felícia soube que eu estava roubando até
o lixo, ela achou que eu estava passando dos limites.
– Tu tá louca! E tu tá abrindo o lixo do banheiro
dele também?

131
Wanju Duli

– Ainda não cheguei nesse ponto – respondi –


mas quem sabe um dia?
– Mar, tu sabe que eu te considero minha melhor
amiga, né? Isso mostra que te conheço bem.
– Eu sei, Fê.
– E mesmo que eu não te conhecesse, eu diria que
tu tá apaixonada por ele – disse Felícia.
– Fiz uma pasta no meu computador só com
fotos dele – confessei – consegui reunir algumas
centenas, depois de muita pesquisa na internet. Mas
acho que não é o bastante. Vou começar a fotografá-
lo.
– Por que apenas não se declara pra ele e acaba
com isso? – sugeriu Felícia.
– Ele tá apaixonado por outra guria. Primeiro
preciso tirá-la do caminho.
A partir daí iniciei minha série de maldições.
Usei meus espíritos eletrônicos para ferrar com a
vida da vadia. Enviei pra ela um dos códigos de um
espírito que possuía um algoritmo próprio para
amaldiçoar, com um vírus embutido.
Numa manhã em que não teve aula no meu
colégio, para variar, fui bem cedo até o colégio de
Elias. Resolvi entrar no colégio naquela ocasião para
dar uma passeada. Eu já sabia que Dio costumava
chegar cedo. Naquele dia eu o avistei atrás de uma
árvore, nos fundos do pátio. Ele estava pegando uma
coleguinha dele.
Não fiquei surpresa ao constatar que ele agarrava a
guria de uma maneira muito experiente e parecia
muito bom para beijar. Afinal, ele vivia se gabando
que pegava todas. No começo achei que era só papo,
mas talvez ele pegasse mesmo.

132
Mate Espíritos

Estava começando a esquentar. Ele passou as


mãos nos peitos dela. A guria quase não tinha peitos,
mas foi empolgante mesmo assim. E quando ela
avançou e colocou a mão por cima da calça dele, Dio
recuou.
– OK, é o bastante – disse Dio – vamos parar por
aqui.
– Por quê? – perguntou ela, zangada – Não vamos
trepar?
– Hoje eu não tô muito a fim.
Ela ficou braba.
– Gay!
E ao gritar isso, a guria apenas se virou e foi
embora.
Eu achei bem engraçado. Então até aquele idiota
tinha dias ruins?
– Tá olhando o quê?
“Porra, ele me viu”.
E não somente isso. Dio me viu rindo dele. E
caminhou até onde eu estava para tirar satisfações.
– Tu estuda aqui? – ele me perguntou.
Eu não estava usando uniforme e nem nada.
Apenas minhas roupas comuns.
– Não – respondi.
– Então te manda! Ou chamo o segurança.
– Uh, que medo – falei – pode chamar, querido.
Não tô nem aí.
Dio caminhou na direção do guardinha que ficava
na frente do colégio. Eu corri e saí de lá rapidinho.
Na semana seguinte, a guria que Elias gostava
pulou de cima do terraço do colégio. Mas não
morreu.

133
Wanju Duli

Eu não soube direito o que pensar da situação,


pois foi tudo muito insano. Eu não me achava tão
poderosa para que meu espírito tivesse causado isso.
Mas sei lá. Quis pensar que podia ter sido.
Eu já tinha tirado várias fotos de Elias pelo meu
celular. Quando as aulas dele terminaram eu fiquei
triste. Infelizmente eu não teria dinheiro para viajar
até Gramado e persegui-lo por lá.
Ele só voltou para o colégio para a prova de
recuperação. Depois disso, ele teve um período
gigantesco de férias, pois decidiu mudar de colégio.
O novo lugar que ele ia estudar também era
incrível. Tinha um pátio enorme e quadras de
esportes. Para eles talvez existissem grandes
diferenças entre os colégios particulares, mas para
mim todos eram bonitos e interessantes.
A melhor parte foi que Dio se mudou para outro
país. Não tê-lo por perto facilitaria as coisas. Eu
cheguei a amaldiçoá-lo também antes disso. Minha
intenção era isolar Elias. Com a guria que ele gostava
e com o melhor amigo longe, eu teria a oportunidade
de me aproximar.
Mas para meu azar, Elias foi para o mesmo
colégio de Greta. Felizmente, ela deu o fora nele de
novo. E infelizmente apareceu outra vadia no pedaço.
Hilda. Aquele nome não me era estranho. Eu já
tinha dado umas passadas pelo blog dela antes, já que
ela escrevia sobre ocultismo. E ela também já tinha
logado no Almax Gala alguma vez.
Rosamaria também era famosa. Ela era do meu
colégio e tinha se tornado membro do Almax há
muito tempo.

134
Mate Espíritos

Hilda era membro do Pregos. Rosamaria era do


Martelos. Mesmo assim, as duas eram namoradas. O
Martelo e o Pregos tinham ideologias diferentes. Na
minha cabeça, a união das duas não combinava em
nada. Talvez exatamente por isso fosse apaixonante.
No final do ano anterior eu resolvi infiltrar
Horácio no grupo de Elias, chamado Cavaleiros do
Porto. Esse era o grupo que ele tinha com os amigos,
que ele também estendeu para atividades online.
Hilda e Rosamaria também tinham formado um
grupo de ocultismo muito elegante. Elas usavam
vestidos longos e rodados, de cor vinho, para a
realização dos rituais. Hilda tirou algumas fotos no
seu blog, junto com rosas vermelhas, espada
ritualística e outros utensílios.
Para mim a magia eletrônica era mais acessível, já
que através dela eu não precisava gastar dinheiro em
utensílios mágicos caros ou vestimentas cerimoniais.
Meus rituais ocorriam na rede.
Fiquei satisfeita ao notar que Elias não tinha
conseguido conquistar as duas gurias pelas quais
havia se apaixonado. Eu soube até que ele teve uma
quedinha por Rosamaria. Tudo em vão. Todas as três
eram lindas, poderosas e inacessíveis.
E eu? Eu também me achava bonita e poderosa,
mas perguntei-me se eu seria boa o suficiente para
Elias.
O que ele buscava numa garota? Ouvi falar que
ele curtia gurias furiosas e confiantes. E pelos vídeos
que ele assistia, eu podia supor que ele tinha um
fetiche por ser dominado no sexo, ou até humilhado,
por gurias fodas.

135
Wanju Duli

Eu poderia ao mesmo tempo realizar a fantasia


dele e humilhá-lo. Como? Ele queria ser amarrado e
amordaçado, certo? Eu poderia fazer aquele favor
para ele.
Mas eu precisava escolher o momento certo. Para
isso observei-o por muitos meses. Horácio estava
participando de alguns encontros dos Cavaleiros do
Porto. Por fim, contatei Gianluca para ele me
arrumar três capangas.
– Tenho três amigos drogados que podem assaltar
o teu príncipe encantado – sugeriu Gianluca – basta
criar uma cena. Tu chega lá e finge que vai ajudar.
Leva ele pra casa do Duda, que fica mais ou menos
perto de onde o teu guri mora. É um lugar pequeno
que ele não tá usando no momento. Lá tem um sótão.
Tu pode trancar ele lá dentro.
A ocasião ideal veio num dia em que, sabe-se por
que cargas d’água, Elias foi sozinho até a igreja. Saiu
de lá parecendo meio sonolento. Ele estava meio
tonto e caiu no chão. Os três amigos de Gianluca
levaram ele pra um beco.
Quando Elias acordou, eles montaram a cena do
assalto, que ficou perfeita. Elias ficou apavorado.
Levaram tudo que ele tinha.
Começou a chover. Elias estava chorando. Meus
sentimentos estavam conflitantes.
Eu amava aquele guri como nunca amei ninguém
antes. Ao mesmo tempo, eu tinha um pouco de raiva
e inveja dele.
Uma parte de mim, meio sádica, gostou de vê-lo
sofrer. Aquela pequena dor nem chegava perto do
que eu enfrentava dia após dia. Elias era apenas um
ignorante. Eu já tinha sido assaltada algumas vezes na

136
Mate Espíritos

cidade em que eu morava. Se tivesse passado pela


mesma situação de Elias, eu saberia lidar com ela
com mais firmeza.
“É só uma criança idiota, um riquinho mimado”.
Aquele era um presente meu a ele: um gostinho do
mundo real, para ver se ele acordava.
Ele se queixava que estava entediado, hã? Elias se
considerava um cara perigoso, o diabo, a cobra.
Bem, agora eu seria a cobra. Era a minha vez de
fazer-lhe um favor e dar-lhe um desafio,
transformando-o na presa.
Hesitei por um momento. Não fui ajudá-lo em
seguida, pois diversos sentimentos se passaram
dentro de mim.
Eu o amava e o odiava. Eu estava com pena do
guri ignorante, ingênuo e fraco que ele era. Mas
também sentia raiva do que via.
Para completar, eu queria abraçá-lo. Eu queria
beijá-lo e chicoteá-lo. Não exatamente nessa ordem.
Respirei fundo, abri meu guarda-chuva negro e
caminhei em direção a ele.
Elias levantou os olhos quando me viu. Olhos
castanhos e assustados. Olhando-me assim ele
parecia um ratinho que merecia ser pisoteado.
Era a primeira vez que nos fitávamos frente a
frente, embora nos conhecêcemos há mais de dois
anos. Elias não fazia a menor ideia de quem eu fosse.
Eu estava vestindo uma blusa branca e um casaco
negro. Shorts e botas. Meus cabelos eram
profundamente negros. Eu já os tinha pintado de
outras cores antes, como azul e verde, por isso eles
não estavam bem tratados. Eu usava a franja de lado.
Meus olhos eram castanhos.

137
Wanju Duli

As pessoas diziam que meu nariz era muito feio e


que ele estragava toda a beleza que eu poderia ter.
Mas os outros que se fodessem. Eu achava o formato
do meu nariz totalmente único, o que me tornava
especial. Se Elias poderia me enxergar dessa forma
também, pouco me importava. Eu não estava lá para
me declarar passivamente e aguardar que ele
analisasse minha aparência. O motivo de minha
presença era amarrá-lo e humilhá-lo, sem receber
autorização para isso.
Eu disse que iria ajudá-lo. Ele segurou na minha
mão. Como era burro!
Senti um arrepio com o toque. Por um momento,
desejei namorá-lo de maneira normal. Mas não havia
nada de normal naquele relacionamento. Eu iria
punir aquele filho da puta.
Além de ter tirado com a minha cara no Almax
Gala, ele era um filhinho de papai miserável que
precisava de umas palmadas, para aprender a se
portar como gente.
Mandei que ele me seguisse. Em pouco tempo,
chegamos ao apartamento do Duda. Lá dentro havia
poucos moveis. Pedi que Elias aguardasse no sofá.
Eu trouxe a ele uma toalha.
– Muito obrigado – ele disse, aceitando a toalha –
nem sei como agradecer. Eu acabei de ser assaltado.
Me levaram tudo!
– Sério? – perguntei, fazendo uma cara espantada.
Eu era uma excelente atriz. Sentei-me noutro sofá,
em frente a ele.
– Sim, foram três caras. Eu preciso ligar para
meus pais o quanto antes. Eles devem estar
preocupados. Tu por acaso terias um telefone?

138
Mate Espíritos

Eu fiz que não.


– Quer passar a noite aqui por enquanto? –
ofereci, como quem não quer nada.
– Não quero incomodar – disse Elias – acho
melhor procurar um orelhão e ligar para meus pais.
Tu tem acesso à internet?
Balancei a cabeça em negação.
– Bem, eu não moro muito longe, posso voltar a
pé para casa. Mas depois do que aconteceu hoje, fico
preocupado. E se os assaltantes ainda estiverem por
perto? E está chovendo, ainda por cima.
– Fica aqui – insisti – assim que amanhecer, daqui
algumas horas, procuramos um telefone.
– Obrigado mesmo. Então acho que vou ficar...
– Quer um calmante ou algo assim? Tenho um
remédio aqui.
– Eu aceito.
Ele era ingênuo pra caramba. Aquilo seria ainda
mais simples do que pensei.
Levantei-me e servi um copo com água.
– Como é teu nome? – ele perguntou.
– Margoth – respondi.
– Meu nome é Elias.
“Eu sei, idiota”. E dei-lhe o copo d’água com o
remédio.
Ele tomou tudo. Não demorou muito para que ele
ficasse meio sonolento e dormisse. Acho que foram
pouquíssimos minutos.
Assim que ele adormeceu, segurei-o e arrastei-o
com dificuldade até o sótão. Lá em cima usei uma
corda para amarrá-lo, dando nós fortes,
principalmente para prender-lhe os pulsos e tornozê-
los. Por fim, amordacei-o.

139
Wanju Duli

Fechei o sótão e voltei para baixo, com o coração


disparado. Eu nunca tinha feito algo tão maluco. E
nunca me senti tão satisfeita.
Fui ler um livro, mas eu não conseguia me
concentrar. Até que ouvi batidas no sótão. Ele tinha
acordado.
Subi e abri a porta. Elias parecia desesperado.
Retirei a mordaça para descobrir o que ele teria a me
dizer.
– Tu é amiga daqueles caras?
– Menino esperto – respondi.
– O que quer de mim?
– Meu nome é Vela Pulsar.
O olhar de Elias mudou completamente. Passou
do medo ao ódio num só segundo.
– Era só o que faltava! Fez tudo isso por causa de
um jogo?
– Fiz porque estava a fim – eu disse, simplesmente
– e posso fazer mais. Tu quer mais?
Ele ficou quieto.
– Tu quer dinheiro? – ele ofereceu – Minha
família tem dinheiro. Se me soltar...
– Cale a boca. Não quero seu maldito dinheiro.
– Tô com fome, tô exausto, tanto fisicamente
quanto psicologicamente. Eu não aguento mais.
Quero voltar pra casa. Então para com essa bobagem
e me solta.
Abri a mochila dele e virei-a de cabeça para baixo.
Lá de dentro caiu o laptop e outros apetrechos.
Peguei um martelo e bati fortemente no laptop.
Fiz isso muitas vezes, com cada vez mais força e
raiva, até que ele se quebrasse.

140
Mate Espíritos

– Me respeita, caralho!! – berrei – Eu sou a porra


da tua sequestradora, entendeu?! Aqui eu não sou a
Vela daquele grupinho imbecil de internet. Meu
nome é Margoth e teu corpo é minha propriedade!
Foi um discurso meio dramático, mas eu consegui
assustá-lo pra cacete. Minha encenação foi linda. Eu
encarnei no papel e martelei o laptop com vontade,
até destruí-lo. A tela ficou em pedaços. Gritei tanto e
com tamanha autoridade que eu talvez tivesse sido
ouvida pelos vizinhos.
Já era madrugada. Mas dentro daquele sótão
abafado talvez o som não saísse tão facilmente.
Elias me fitou com olhos esbugalhados e
respiração interrompida. Parecia um animal acuado.
Coitadinho.
Ele devia pensar que eu não girava bem da cabeça.
Mas isso não era verdade, porque eu era uma pessoa
bastante sã.
– Eu quero Vesta de volta – exigi – e Galaxión.
Agora.
– Eu preciso... eu precisava do laptop – ele disse,
entre gaguejos.
– OK, foda-se isso – resolvi – só vou te torturar
um pouco e depois te soltar. Pode ser?
– Vai fazer o quê?
Encostei minha bota pesada entre as pernas dele.
Elias estava só de cueca e estava todo amarrado. Não
achei que ele estivesse em condições de se defender.
Ele ficou desesperado e se encolheu.
– Para, espera...! – ele estava nervoso pra cacete –
vamos conversar.
– Eu posso te punir dessa maneira – avisei – ou
em vez disso, se preferir, vou te deixar três dias

141
Wanju Duli

trancado aí dentro, todo amarrado, exatamente assim.


Vou te trazer água e te dar comida na boca duas
vezes ao dia, já que tu não vai ter as tuas mãozinhas.
Se precisar ir ao banheiro, posso te ajudar também...
– Não, isso não – ele disse.
– Tu prefere isso ou tortura sexual? – perguntei.
– Porra! Tu é doente, guria! Puta que pariu...
E ele começou a derramar lágrimas. Ele esperava
que eu ficasse com pena daquilo?
Abaixei-me. Levantei o rosto dele para que fitasse
o meu, segurando-o no queixo.
– Tu não sabe nada sobre esse mundo fedorento –
eu disse – uma vez, quando eu era bem pequena,
morei num cortiço. Tinha que dividir o banheiro com
mais um monte de gente. Era detestável. Um monte
de bosta acumulada naquele buraco de madeira, que
nem de privada era digno de ser chamado. E agora tu
vai ficar com a bunda cagada por apenas três dias e
vai achar ruim? Eu sei onde tu mora. Sei onde tu
estuda. A vida tá muito confortável, não é mesmo,
Mate Espíritos? Precisa de um pouco de desconforto,
de fome e de fedor. Como numa autêntica guerra.
Ele engoliu em seco, mas não parou de me fitar.
– Minha família pode te ajudar se tu precisa...
Dei um tapa na cara dele.
– Não me humilha dessa forma, Mate – falei –
não quero tua ajuda. Somente teu sangue e tua merda.
Dessa vez ele me fitou com raiva.
– Margoth... não é mesmo? Me diz o que tu quer
de mim, lá no fundo. Eu não consigo acreditar que tu
fez tudo isso só por causa do Almax Gala ou porque
minha família tem dinheiro. Tá cheio de imbecis no
Almax que ferram com todo mundo. Tem muita

142
Mate Espíritos

gente bem mais rica que eu nessa cidade. Então... por


que virei teu alvo?
– O que eu quero de ti, lá no fundo, é isso – e eu
coloquei a mão entre minhas pernas – quero foder
contigo. Isso é tudo.
– Ah...!
A nova expressão dele foi um misto de surpresa e
vaidade. Por um momento, ele se sentiu no poder.
Por outro lado, a informação o confundiu e não o
agradou tanto assim.
– Por que não disse logo? – ele perguntou –
Precisava criar todo esse teatro?
– Eu li na internet que teu fetiche era ser
amarrado e humilhado.
– Mas só de brincadeira – justificou ele – não
quero ser humilhado e torturado de verdade. Isso é
insano.
– Vamos combinar o seguinte – propus – eu te
solto agora mesmo se tu aceitar me namorar.
Elias desatou a rir.
– Que bonitinha. Então era só isso?
Quando Elias falou dessa forma comigo, eu fiquei
sem jeito. Acho que até corei.
Baixei os olhos.
– Sim, era só isso...
Ele ficou sério.
– Eu me recuso – disse Elias, com firmeza – eu
não gostei do que tu fez comigo. Armou aquele
assalto e me deixou apavorado. Depois me amarrou e
me trancou. Eu não confio em ti. Tu é doida!
Somente se eu fosse louco ia aceitar te namorar.
Encostei o martelo por cima da cueca dele.
– Pensou uma segunda vez? – perguntei.

143
Wanju Duli

– Pensei – respondeu Elias – eu te amo, Margoth.


Vamos ficar juntos.
Aproximei-me de Elias e dei-lhe um beijo nos
lábios, com um abraço apertado. Permaneci a beijá-lo
nos segundos seguintes, até que o soltei.
Desatei os nós da corda e permiti que ele saísse do
sótão. É claro que ele não queria nada comigo. De
qualquer forma, eu já tinha me vingado. De quebra,
ainda realizei a fantasia de tê-lo por um momento,
mesmo que não fosse de forma completa, como eu
queria.
Elias tinha passado por muita coisa naquela noite.
Ele estava até com dificuldade de caminhar. Pensei
que ele iria abrir a porta e sair correndo de lá, mas ele
sentou-se no sofá novamente.
– Eu tô com muita fome – confessou ele – tu não
tem nenhum tipo de comida nesse lugar? É o mínimo
que pode fazer por mim para compensar toda essa
bosta que acabou de fazer.
– Eu tenho os ingredientes pra preparar uma
lasanha de frango – contei – eu ia cozinhar pra ti na
hora do almoço e te dar na boca.
– Não tem algo mais rápido de fazer? Meu
estômago tá doendo de fome.
– Não vai demorar muito.
Eu era uma ótima cozinheira. Preparei a lasanha
de frango o mais rápido que consegui. Coloquei em
dois pratos e comemos juntos.
– Essa é a melhor lasanha que já comi na minha
vida – ele disse.
– Não quer uma namorada que sabe cozinhar tão
bem quanto eu? – perguntei – Não é um sonho? É

144
Mate Espíritos

coisa rara hoje em dia! Além disso, sou bonita,


inteligente e tenho uma personalidade incrível.
– O problema é a parte da personalidade incrível –
observou ele – é incrível em demasiado para o meu
gosto.
– Achei que tu gostasse de gurias furiosas e
confiantes.
– No começo sim. Cada vez mais eu percebo o
quanto o meu gosto é duvidoso. Acho que eu vou
curtir mais uma guria gentil e calminha.
Sentei-me do lado dele no sofá e segurei-o pelo
braço, fazendo uma expressão meiga.
– Sei ser gentil e calminha – sorri, falando com a
voz mais suave que consegui.
– Tu tem dupla personalidade? – perguntou Elias,
meio espantado.
– Tenho. Sou do signo de gêmeos. Quer que eu te
conte tudo o que sei sobre ti?
Relatei todas as minhas pesquisas. Mostrei as
centenas de fotos que eu tinha dele no celular. Falei
que também já tinha lido o livro do William Golding
e falamos sobre o conteúdo e a mensagem por trás
da história. Eu entendi um pouco mais porque aquele
era o livro preferido dele. Encaixava certinho.
Nós tínhamos quase dois anos de amizade, ou de
inimizade. Afinal, nos conhecemos pela internet e
discutimos incontáveis vezes no chat ou durante as
guerras de espíritos.
Portanto, aquela conversa aconteceu de forma
completamente natural. Eu estava tão preocupada em
me tornar a guria confiante e furiosa que Elias
supostamente amava, que deixei de lado quem eu
realmente era. Aquilo era bobagem. Eu não precisava

145
Wanju Duli

fingir ser outra pessoa para Elias gostar de mim. Se


ele não gostasse, paciência. Minha vida não iria
terminar.
Mas acho que ele ainda estava assustado por eu
ser uma stalker tão autêntica. E ele estava cansado.
Queria dormir, voltar para casa. Sendo assim, devolvi
a roupa para ele e nos despedimos.
– Desculpa por tudo – falei – às vezes uma garota
apaixonada pode fazer loucuras. Eu estou
insanamente apaixonada por ti. Mas se não me quer
mais perto, apenas diga e vou ficar longe.
– Podemos conversar melhor outra hora? – ele
perguntou – eu ainda tô muito confuso com tudo o
que aconteceu. Essa foi a primeira vez que uma guria
se declarou pra mim. E foi a declaração mais...
exótica que recebi e provavelmente será a mais
exótica que receberei em toda minha vida. Sei que tu
colocou um monte de esforço nisso tudo, mas...
porra, eu ainda tô assustado. De um jeito ruim. Acho
que não vai rolar, mas, por favor, não fica louca. A
gente vai se falar depois. Não surta antes disso,
beleza?
– Beleza. Pretende me delatar pra polícia ou pros
teus pais?
– Não quero envolver a polícia nisso e acho que
meus pais pirariam se eu contasse – disse Elias – mas
se tu estiver planejando outra loucura, vou ter que
dar queixa na polícia. Eu falo sério.
É claro que Elias não queria contar para os pais,
pois se eles soubessem que eu era uma “amiga da
internet” eles provavelmente iriam confiscar o
computador e o celular dele para todo o sempre.

146
Mate Espíritos

– Se tu sabe mesmo onde eu moro e onde eu


estudo, eu tô seriamente preocupado – confessou ele
– talvez eu contate a polícia mesmo. Cacete...
Ele estava bem estressado.
– Juro que não vou fazer nada – prometi – mas
não demora pra me contatar. A gente combina pelo
Almax?
– Sim...
E nos despedimos.
Aquilo tudo foi meio perturbador, até mesmo
para mim. Eu não queria ter ficha criminal.
Naquele instante, eu não fazia a menor ideia do
que se passava na cabeça de Elias. Talvez ele
estivesse mais apavorado do que deixou transparecer
e fosse contatar a polícia imediatamente. De qualquer
forma, era melhor eu me mandar da casa do Duda,
sem deixar rastros. Elias não tinha outras
informações a meu respeito além do meu primeiro
nome na vida real e do meu nick no Almax.
Devolvi todos os pertences dele que os três
amigos do Gianluca tinham fingido roubar. Portanto,
no final de tudo, a única coisa que fiz foi assustá-lo e
gerar-lhe bastante desconforto. Eu não tinha
machucado ele diretamente. Eu apenas tinha sido
extremamente rude e ligeiramente pervertida.
Imaginei que Elias teria uma história incrível e
perturbadora para contar aos pais e aos amigos
quando voltasse para casa. E essas duas histórias
seriam provavelmente diferentes.

***

147
Wanju Duli

Eu nunca vi meus pais daquele jeito. E nem minha


irmã. Fiquei boquiaberto.
Meus pais me abraçaram. Até minha irmã me
abraçou, provavelmente pela primeira vez na vida.
Eram cinco da manhã. Todos estavam acordados
e preocupados. Minha mãe até passou mal de tanta
preocupação. Já tinham ligado para a polícia, para
parentes meus e amigos.
Eu raramente passava a noite fora, mas sempre
quando fui dormir na casa de amigos, no meu colégio
anterior, eu avisei com antecedência. Meus pais
sempre sabiam onde eu estava.
Aquela era uma situação inédita. Eu só tinha ido
até a igreja e avisei que logo estaria de volta. Porém,
eu não somente demorei longas horas para voltar,
mas caiu a noite e não retornei. Já era alta madrugada
e eu não havia dado o menor sinal de vida.
Meus pais tinham ido até a igreja e perguntaram
nos arredores. Tinham achado meu celular caído no
chão e pensaram o pior.
Para completar, eu havia postado mensagens
idiotas e raivosas no Facebook e no Twitter. Minha
irmã tinha visto e pensou que eu ia cometer suicídio,
que nem a minha colega.
Eu fiquei com receio de contar a história
verdadeira para meus pais por uma série de razões.
Uma delas era que se eu contasse que havia uma
guria louca me perseguindo, eu provavelmente nunca
mais saberia o que era privacidade. Meus pais já
controlavam para onde eu ia, no que eu gastava e o
que eu via na internet, além do que eu considerava

148
Mate Espíritos

adequado. Se eles soubessem da stalker, eu não teria


mais vida.
Além do mais, embora a guria fosse louca, eu não
achei que ela seria uma ameaça à minha vida. Eu já
tinha conversado com ela muitas vezes pelo Almax
Gala e a impressão que eu tinha era que ela apenas
havia feito uma cena exagerada para me impressionar.
Ela prometeu que me contataria em breve pelo
Almax para esclarecer a situação.
Honestamente, eu não achei que ela precisasse
esclarecer nada. Ela apenas havia sido estupidamente
absurda e infeliz. Ela precisava me prometer que não
me procuraria de novo, pois se ela continuasse com
aquela perseguição sem sentido, nesse momento eu
iria sim contatar a polícia e contar aos meus pais o
que realmente aconteceu.
Eu estava com medo. Muito medo. Nunca passei
por uma situação em que me senti tão aterrorizado e
perdido. Ao mesmo tempo, eu não queria mobilizar a
polícia e a minha família apenas por causa de uma
adolescente desequilibrada com crise de identidade.
Primeiro eu ia aguardar.
Eu já estava cansado que todos resolvessem meus
problemas por mim. Meus pais sempre tinham
escolhido o colégio onde eu ia estudar e gostavam de
dar opinião sobre universidades e cursos. Eles
opinavam o tempo todo sobre meus amigos e sobre
o que eu fazia. Eles queriam que eu fosse perfeito.
Minha súbita mudança de colégio foi meu
primeiro ato de revolta. No fundo eu desejava me
mudar para um colégio público no próximo ano,
apenas para aborrecê-los.

149
Wanju Duli

Meus pais só permitiam que eu e minha irmã nos


envolvêssemos em namoros após ingressar em
alguma universidade, pois até lá deveríamos estar
focados apenas nos estudos. Por isso, eu até que me
divertia com a ideia de namorar Margoth. Ela era
completamente louca. Totalmente o contrário do que
meus pais imaginavam para uma futura namorada
minha, que deveria ser perfeita nos estudos, vir de
família rica e ser muito gentil.
Porém, aquela possibilidade estava fora de
cogitação. Margoth era minha inimiga no Almax há
dois anos e tinha feito uma brincadeira de extremo
mau gosto naquela madrugada. Senti medo e raiva.
Ela não era tão importante e perigosa quanto
desejava parecer, então eu não ia dar importância
àquela situação e iria ignorá-la.
A história que contei para minha família foi que
eu passei mal. Depois da conversa com o padre fiquei
meio deprimido e psicologicamente instável. Acabei
me deitando num gramado para descansar e dormi.
Depois disso, eu resolvi que queria ficar na rua por
mais tempo para pensar na minha vida, e não
conseguiria voltar para casa imediatamente, pois
estava me sentindo sufocado. Eu estava sentindo
claustrofobia em qualquer ambiente fechado e
precisava desesperadamente de ar.
Não sei se a conversa colou, mas a partir do dia
seguinte comecei a frequentar um psicólogo.
Eu não disse merda nenhuma de importante para
o psicólogo, pois fiquei com medo que ele contasse
para meus pais depois.
Talvez meus pais me amassem mais do que eu
imaginava. Mas às vezes eles tinham uma forma

150
Mate Espíritos

estranha de demonstrar esse amor, gritando comigo,


me dando sermões, controlando a minha vida e me
proibindo de fazer isso ou aquilo.
Eu sabia que eles queriam me proteger, mas havia
momentos em que essa proteção era excessiva e me
aprisionava. Eu sabia que eles queriam me dar uma
boa educação para eu ter um bom emprego no futuro.
Mas eu não precisava ser o melhor de todos ou nem
mesmo rico. Eu ficaria satisfeito com uma vida
simples, tranquila e feliz.
Eu não iria me arrepender se largasse tudo de
repente e se perdesse todos os mimos a que estava
acostumado. Se o preço de uma vida confortável
fosse toda aquela privação e estresse, eu não desejava
uma vida assim. Um pouco de desconforto não ia me
matar. Talvez até me deixasse mais vivo.
Ao mesmo tempo, eu tinha descoberto o que era
passar por um desconforto real naquela noite. E não
gostei do que senti.
Se eu não tivesse dinheiro o bastante, talvez eu
tivesse que morar num lugar não tão seguro. Se não
tivesse um carro, eu poderia precisar andar de ônibus
em horários e lugares perigosos, correndo o risco de
ser assaltado.
Mas as pessoas não assaltavam como
consequência da desigualdade social? Será que para
existir os muito ricos sempre precisariam existir os
muito pobres? Então o problema era a existência de
privilégios para famílias ricas como a minha, pois se a
riqueza fosse mais bem distribuída, mais pessoas
teriam acesso a boa educação e a bons empregos,
aumentando a segurança e diminuindo cada vez mais
a existência de assaltos?

151
Wanju Duli

Mesmo com as aulas que tive sobre essas questões


no meu colégio antigo, eu ainda não conseguia
entender com clareza. Meus pais queriam me pagar
um bom colégio, pois embora não tivessem poder
suficiente de transformar o mundo e a forma que as
coisas aconteciam no nosso país, eles podiam
transformar pelo menos a vida de seus filhos.
Contudo, essa explicação não me deixava
satisfeito. Pouca coisa naquele mundo me deixava
satisfeito.
Havia momentos em que olhar para a natureza me
dava um pouco de paz. Mas ao recordar que animais
comiam uns aos outros, eu me dava conta que o
mundo, em sua essência, não era perfeito e nunca
seria.
Mas isso não significava que as pessoas
precisavam devorar umas às outras, numa eterna
competição violenta. Na natureza também havia atos
de amor. Então ainda havia esperanças no nosso
mundo. Como eu poderia contribuir para essa
esperança?
Quem sabe eu encontrasse alguma esperança para
mim mesmo no momento em que eu decidisse
contribuir para a esperança do mundo.
Eu não estava sozinho. Eu não precisava ficar
sozinho. Eu tinha amigos e conhecia muitas pessoas
que passavam por dilemas semelhantes aos meus.
Isso é característica de estar vivo. Não poderia haver
vida sem um pouco de desespero e esperança, então
eu precisava unir os dois e encontrar meu equilíbrio.
Minha inquietação com a realidade do mundo
poderia ser o meu combustível para transformá-lo.

152
Mate Espíritos

Ao menos minimamente, para meu pensamento não


se tornar uma utopia esquecida.
Será que foi isso que Margoth tentou me mostrar?
Já tínhamos discutido sobre o assunto no fórum da
Almax. Qualquer coisa sobre o desafio de uma cobra.
Para meus melhores amigos, Dio, Rômulo e
Richie, eu contei a história verdadeira. Falei que a
líder do Martelo de Fobos tinha enlouquecido de vez
e armou uma cena vergonhosa.

El Rei: Eu acho que tu devia acabar de vez com a


versão online da Ordem dos Cavaleiros do Porto. A
não ser que tu nunca encontre pessoalmente essas
pessoas. É complicado encontrar na vida real gente
que se conhece pela internet. Nunca se sabe quem
são.

Mate: Tinha um colega dela infiltrado na OCP, o


Horácio. Mas somente nosso contato pelo Almax já
foi suficiente para gerar toda essa merda. Talvez eu
não devesse usar mais internet, como meus pais
dizem. É perigoso mesmo. As pessoas mentem. E
podem me rastrear.

Dio: Foi apenas um incidente infeliz. Se for


pensar dessa forma, uma pessoa que te ache na rua
pode te seguir e descobrir onde tu mora. E daí? Tu
não vai mais sair de casa por medo de ser assaltado e
sequestrado?

Mate: Tu nem tá morando no Brasil, otário. Assim


é fácil falar.

153
Wanju Duli

Rico: Existem países em que a situação é muito


pior, em que se joga ácido no rosto das vítimas para
desfigurá-las, como na Índia. Há muitos países em
que é comum torturar a vítima antes de matar,
esquartejar e coisas piores. Por que as pessoas
sempre comparam o Brasil com países de Primeiro
Mundo? Os brasileiros deviam valorizar tudo o que já
foi conquistado em vez de somente criticar o que
falta conquistar.

Mate: Meus pais também vivem me comparando


com minha irmã, que tira notas melhores. Isso é
ridículo. Nossas vidas são diferentes, nossos
objetivos e caminhos. Cada um de nós é único, com
qualidades e defeitos próprios. Pessoas deveriam ser
valorizadas em sua individualidade em vez de
somente comparar com o intuito de inferiorizar.
Mesmo que eu não seja tão rico quanto ela no futuro,
posso ser feliz.

Rico: E o mesmo serve para países.

Mate: Vocês acham que Margoth é apenas louca


ou ela tava mesmo a fim de mim?

Dio: Eu acho que ela é uma vaca e o fato de ela


gostar de ti ou não é irrelevante.

El Rei: Não te envolve com ela, cara. É roubada.

Mate: Não vou me envolver! Não depois do que


ela fez. E vou chamar a polícia se ela continuar nos
arredores. Eu só tava perguntando.

154
Mate Espíritos

Dio: É bom receber uma declaração e se sentir


desejado, hã?

Mate: Mas não esse tipo de declaração. Isso não é


amor. É insanidade.

Rico: Há uma fronteira muito tênue entre o amor


e a loucura.

Mate: Cala a boca.

Dio: Há uma fronteira muito tênue entre minha


glande e o meu prepúcio.

Mate: Não sei porque peço a opinião de vocês.

Dio: Já contei pra vocês que eu tô namorando?

El Rei: O quê?!

Dio: É uma colega minha. O nome dela é Chen


Mi. Ela é chinesa.

Rico: Por que não colocou no Facebook ainda?

Dio: Eu tava esperando ela colocar primeiro. Mas


a conta do Facebook dela é recente, já que na China
eles não têm FB. Então talvez ela ainda não saiba
mexer direito. Finalmente estou fazendo uso das
aulas de mandarim.

Rico: Vocês já treparam?

155
Wanju Duli

Dio: A gente tá namorando há uma semana.

Rico: Repito a pergunta: vocês já treparam?

Dio: Ainda não.

El Rei: Já está namorando a guria há uma semana


e ainda não transaram? Nem parece tu, Dio. E eu
achando que tu não curtia namorar, mas só ficar.

Dio: Ela é minha primeira namorada, então ainda


tô descobrindo como se faz num namoro. Não quero
estragar tudo. E ela é meio tímida.

Mate: Gurias tímidas não fazem muito teu estilo.


Tu tá mesmo gostando dela?

Dio: Eu tô completamente apaixonado. Fui eu


que a pedi em namoro. Levei mais de um mês pra
criar coragem.

Rico: Cacete! Um mês? Tu mudou totalmente,


meu. Nem te reconheço mais. O Dio que conheci
não demoraria um segundo pra contar pra uma guria
que estava a fim dela.

Dio: Não encham meu saco.

Rico: Posso ver o perfil dela no Facebook?

Eu também estava curioso. E confesso que fiquei


morrendo de inveja porque o Dio estava namorando.

156
Mate Espíritos

Logo ele que era totalmente cético em relação a


namoros.
A namorada dele era bonitinha, mas tinha cara de
criancinha. Eu achei que ela não tinha nada a ver com
o Dio. Ela era toda meiguinha e quietinha. Gostava
de costurar e de cozinhar sobremesas.
Eu disse para o Dio tantas vezes que os dois não
tinham nada a ver que ele ficou zangado comigo. Na
verdade ele ficou puto. Mandou eu me foder. Disse
para que eu cuidasse da minha vida.
Na real a gente quase brigou, cara. Foi foda
mesmo. Resolvi ficar quieto.
Uma semana se passou. Eu já estava me sentindo
melhor depois daquela situação tensa. Mas meus pais
ainda estavam preocupados e continuei indo ao
psicólogo.
Comemorei meu aniversário de quinze anos com a
família e meus dois amigos num restaurante. Eu não
gostava de organizar grandes festas de aniversário.
Preferia algo pequeno e discreto. Ao contrário de
Magdalena, que deu uma festa de quinze anos de luxo,
só para se mostrar. E eu ainda tive que ir naquela
porcaria. Nem gostava de lembrar.
Meu ano letivo terminou e eu precisava escolher
meu colégio para o próximo ano. Ainda estava em
dúvidas se permaneceria no mesmo ou trocaria.
Pessoas como a Greta já não faziam a menor
diferença na minha vida. Hilda era legal, mas ela só
andava com suas amigas e ela acabava não sendo
realmente uma companhia.
Vários colegas meus tiraram sarro de mim porque
peguei uma recuperação no último bimestre. Depois
de me gabar tanto por vir de um colégio bilíngue,

157
Wanju Duli

pela má influência de Greta, pegar uma recuperação


no novo colégio não me dava muita autoridade para
reclamar do ensino de lá.
Eu não tinha amigos naquela merda. Por fim,
decidi que iria trocar para qualquer outro colégio. Só
faltava escolher para onde eu iria.
Eu não andava logando muito no Almax Gala nos
últimos tempos. Mas para a minha surpresa, numa
das ocasiões em que loguei, Margoth estava online. E
ela veio falar comigo. Começou pedindo desculpas
pelo que tinha feito. Por que eu desculparia aquele
absurdo? Ela só podia estar sonhando.

Vela: Eu não sabia que os caras que fingiram te


assaltar iam te apontar uma arma. Aquilo não tava
combinado.

Mate: Não quero mais falar sobre isso. E não


quero mais falar contigo também, sobre qualquer
coisa. Fique longe.

Vela: Não vou mais te perseguir. Que tal a gente


se encontrar pessoalmente outra vez, de maneira
normal?

Mate: Eu não confio em ti. E se estiver tramando


outra bobagem?

Vela: Eu não tô.

E ela falou um dia, local e horário. Nem liguei.


Não compareci. Mas cada vez que nos

158
Mate Espíritos

encontrávamos no Almax ela dizia que estaria lá de


novo no dia seguinte, no mesmo horário.
E assim passaram os dias. Eu não sabia se ela
estava indo mesmo me esperar todo santo dia. Até
que, duas semanas depois, resolvi ir na praça que ela
mencionou. Não para encontrá-la, mas somente para
tentar descobrir se ela estava me esperando mesmo.
E lá estava ela, com uma roupa preta e branca. As
mesmas botas da outra vez.
Resolvi observá-la por um momento, sem que ela
me visse. Ela estava lendo um livro.
Qualquer um pensaria que ela era uma guria
normal. Se ela tivesse me pedido em namoro
normalmente, eu poderia ter considerado namorá-la.
Afinal, ela não era feia.
Mas naquelas circunstâncias era melhor eu ficar
longe. Ela tinha contato com pessoas perigosas. Ela
mesma era perigosa e tinha ideias estranhas.
– Tu veio, Mate! Finalmente! Tô tão feliz!
“Merda, ela me viu”. E ela correu na minha
direção. Tentou me abraçar, mas eu me afastei.
– Não vim para um encontro – esclareci – eu só
queria deixar claro que não quero nada contigo.
Então não insiste.
Ela pareceu triste.
– Tá bom – ela disse – desculpa por tudo. Não
vou mais te incomodar. Adeus.
E ela caminhou para ir embora.
“Espera. Ela vai desistir assim tão fácil?” Nem
parecia Margoth. Quando ela estava determinada a
invadir uma dimensão minha no Almax, ela me
jogava um exército de espíritos de nebulosas. Não
recuava até ter o que queria, ou ser derrotada.

159
Wanju Duli

Então ela estava aceitando a própria derrota, sem


nem lutar? Mas ela já não tinha lutado o bastante?
Até excessivamente.
Era melhor assim. Eu finalmente ficaria livre dela.
Não teria mais uma pirada analisando
minuciosamente minhas redes sociais, espreitando
minha casa ou revirando meus lixos. Quando ela me
contou o que tinha feito, fiquei assustado. Ela que
fosse revirar o lixo de outro.
Mas será que eu queria que ela revirasse o lixo de
outro cara? Receber tanta atenção assim era novidade
para mim.
A ideia de uma guria insanamente apaixonada por
mim era totalmente sexy. Ela descobriu até minhas
fantasias sexuais e preparou uma situação perfeita
para me satisfazer.
Como eu estava me cagando de medo na ocasião,
confesso que não senti nenhum desejo sexual. Eu
queria apenas me mandar de lá o quanto antes.
Mas pensando com mais calma, revendo tudo o
que tinha acontecido, não foi totalmente detestável.
Eu não era masoquista e gostava de ser respeitado na
vida real. Ainda assim, Margoth tinha algo que me
atraía.
Acho que o que eu gostava nela era exatamente o
que eu não gostava. Ela era cheia de defeitos e
loucuras. Eu não devia dar corda para aquela
maluquice.
Será que ela era exatamente quem eu desejava ser?
O que eu não podia ser. Minha vida era toda regrada.
Se eu estivesse com ela, talvez fosse capaz de sentir a
vida pela primeira vez, numa intensidade única.

160
Mate Espíritos

As meninas do meu colégio eram certinhas demais,


repletas de maquiagem e de roupas da moda.
Pareciam feitas de plástico. Margoth era selvagem e
livre.
Eu conhecia Vela Pulsar há muito tempo. Então
no fundo eu entendia quem Margoth era, o que
defendia e acreditava.
Ela me deu um remédio pra dormir e me trancou
num sótão. Ela estava furiosa comigo, em muitos
sentidos. Para mim, o que eu fazia na internet não
tinha a mesma intensidade da vida real. Eu podia
xingar alguém por lá ou roubar espíritos das pessoas
em Almax. A internet era terra sem lei. Lá eu podia
pisotear todo mundo e não dar satisfações. Era meu
mundo de escape.
Mas Margoth me mostrou que não era bem assim.
Ela não mostrou isso da melhor forma possível. Foi
estúpida e exagerada. Mas eu entendi o recado.
Eu não pretendia perdoá-la pelo que fez e jamais
daria razão para ela. Mesmo assim, a ideia de nunca
mais manter contato com ela, depois de tanto tempo,
era estranha.
Eu não precisava de Margoth. Era apenas uma
desconhecida de internet. Eu tinha amigos reais, na
vida real.
Mas por que às vezes a vida real parecia ser tão
vazia? Tão menos real que outras vidas que eu vivia
simultaneamente, na internet e dentro de mim.
Margoth acordou um monstro adormecido em
meu espírito, que não fui capaz de despertar sozinho,
mesmo após todos os rituais sangrentos com
Galaxión. Ela me fez sentir o peso da realidade.

161
Wanju Duli

Antes eu tinha medo da vida. De repente, não


senti mais tanto medo assim daquela tal vida lendária,
que antes soava como contos de bruxas e fadas nos
meus livros de história. Foi quase como um ritual de
iniciação.
Uma simulação de assalto e sequestro. Aquilo não
tinha sido muito mais forte do que um rito
tradicional, no qual vendariam meus olhos e
apontariam uma espada contra meu peito? Não um
mundo de vendas e corações, mas um mundo de
guerra e sexo.
Senti falta de Margoth com seu silêncio nos dias
que se seguiram. Ela tinha decidido mesmo não
correr mais atrás de mim. Nem mesmo voltou a
aparecer em Almax Gala.
Enquanto isso, Dio estava furioso. Ele estava
surtando no chat, como se fosse uma criança.

Dio: É tudo culpa dos meus pais! Eles teriam


grana pra me mandar estudar na China, mas não
quiseram! Eu odeio eles. Estão me proibindo de fazer
coisas só por abuso de poder, para mostrar quem
manda.

El Rei: Tu mesmo não disse que eles queriam ficar


perto de ti, pra te educar? Te mandar pra China não
seria a forma mais responsável de fazer isso.

Dio: Agora eu já tenho quinze anos. Sei me virar.


Tive que terminar o relacionamento com minha
primeira namorada só pelo capricho e egoísmo dos
meus pais. Eles estragaram minha vida.

162
Mate Espíritos

El Rei: Não esquenta. Tu vai arranjar outra


namorada, velho. Se quiser namorar uma chinesa,
não vai faltar oportunidade. Tem um monte de
chinesas no mundo.

Dio: Mas Chen Mi era especial. Eu amava ela.

Mate: Então por que não continuaram o


relacionamento pela internet?

Dio: Na China a internet é toda bloqueada. Eu ia


acabar só conversando com ela por email e telefone.
Seria chato.

Mate: Então tu não amava ela tanto assim.


Custava esperar mais uns dois ou três anos pra vocês
fazerem faculdade juntos?

Dio: Isso é uma eternidade. Vou ficar três anos


sem beijar?

A ex-namorada de Dio teve que retornar para a


China, pois os pais dela se mudaram outra vez. Dio
não conseguia aceitar. Os pais dele sempre faziam
tudo o que ele queria. Negar-lhe uma coisa, pela
primeira vez na vida, parecia o fim do mundo. No
final, eles só namoraram por um mês.
Margoth estava certa. Eu e meus amigos éramos
mimados e mal acostumados. Talvez eu não quisesse
namorar uma riquinha fresca e sim uma guria que
fosse madura o suficiente para enfrentar os
problemas da vida real. Uma pessoa que aceita pegar
um ônibus lotado sem criticar o governo e o país.

163
Wanju Duli

Qualquer governo e qualquer país sempre precisam


melhorar e todos devem lutar por isso. Mas mesmo
no melhor país do mundo, com o melhor governo,
merdas acontecem.
As pessoas deveriam ser educadas para lidar com
o desconforto, pois o desconforto é parte da vida.
Todos vão sentir dor, adoecer, morrer, se molhar na
chuva e mais uma série de situações.
Eu odiei me molhar na chuva, ter minhas roupas
roubadas e sentir frio. Odiei ter que passar longas
horas sem comer no meio da rua. Somente para
depois ser amarrado e amordaçado. Nesse momento,
o desconforto anterior não parecia tão ruim. Uma
questão de perspectiva.
Quando Margoth desapareceu da minha vida, eu
senti que perdi algo precioso. Algo que também era
detestável e odioso. Mas eu precisava daquilo para
viver. Como colégio e estudos.
Ela me ensinou muitas coisas, mas eu demorei
para entender a lição. Alguns consideram os ricos os
“vilões egoístas” e os pobres as “vítimas do sistema”.
Margoth inverteu a situação e tomou o poder por um
momento, assumindo o papel de vilã, enquanto eu
era a vítima. Aquilo era absurdo, inconcebível.
A que conclusão eu chegava? Eu não achava que
nenhum de nós era vítima ou vilão. Cada um estava
tentando construir seu espaço no mundo,
desesperadamente, estupidamente. E ninguém sabia
ao certo como viver.
Aquele amontoado de pensamentos eram ao
mesmo tempo tão certos e tão errados. Margoth me
amava e me odiava com uma intensidade absurda.
Ela me invejava e odiava a própria inveja. Queria ser

164
Mate Espíritos

tudo o que sou, e tudo o que não sou. E eu também


a admirava e a repudiava.
Fiz uma coisa muito boba: procurei Margoth no
Facebook. Eu a encontrei, porque ela tinha dois
amigos em comum comigo: Hilda e Rosamaria. Acho
que o Almax Gala acabou conectando quase todo
mundo.
Margoth estudava no mesmo colégio de
Rosamaria. Eu não entendi direito no que ela
trabalhava. Margoth estudava num colégio público
muito ruim. Alguns colégios públicos em certas
zonas da cidade eram muito melhores e mais bonitos.
Aquele, particularmente, era péssimo. Mas acho que
Margoth não queria gastar uma passagem de ônibus
adicional para estudar nesses, além de perder mais
tempo útil no dia com tanto deslocamento.
Ela gostava de muitos livros de autores brasileiros.
Ela tinha várias fotos de péssima qualidade tiradas no
celular, junto com colegas e amigos. A blusa cinza do
uniforme dela até que era simpática. Era meio
apertadinha e realçava bastante o formato dos seios.
Era a primeira vez que eu estava prestando
atenção nos peitos da guria, pois antes só prestei
atenção em sua fúria e em sua loucura. Além do mais,
ela parecia ser ainda mais inteligente do que eu
imaginei a princípio.
Eu queria vê-la de novo. Enviei uma mensagem.
Ela demorou para responder.
Agora foi a minha vez de ficar irritado. Eu não
curtia muito ter que ficar implorando pela atenção de
uma guria. Já bastava a experiência com Greta. Minha
irmã também vivia me ignorando. Sem falar na minha
mãe, que só falava comigo quando eu tinha algum

165
Wanju Duli

problema, ou nem isso. Eu estava rodeado por


mulheres frias.
Dois dias depois, Margoth me respondeu. Ou ela
andava muito ocupada ultimamente, já que ela era
uma pessoa ocupada, ou ela resolveu se fazer de
difícil para ver se eu correria atrás dela.
Eu perguntei se poderíamos nos encontrar outra
vez e ela respondeu com um “OK”. A Margoth que
eu conhecia teria se apressado em marcar um
encontro imediatamente, repleta de animação.
Acho que ela também já estava cansada desse jogo
de poder, fosse no Almax Gala ou na vida real.
Margoth não tinha sido somente a primeira guria
que se declarou pra mim, mas também aquela com
quem tive meu primeiro beijo. Não foi exatamente o
primeiro beijo que eu desejava. Ou será que foi?
Exótico, perigoso. Não um beijo romântico num
campo de flores, mas um beijo tenso num campo de
guerra.
Margoth se esforçou para gerar uma impressão
forte em mim. Apesar do meu repúdio inicial, acho
que ela conseguiu.
Nós nos encontramos na Redenção. Sentamos
embaixo de uma árvore. No começo, não dissemos
nada. Nem olhamos para a cara do outro.
– Quer me namorar ou não? – ela foi logo
perguntando – Se for só amizade, eu não tô a fim.
Prefiro ser tua inimiga. É tudo ou nada.
Ela parecia meio braba.
– Pode ser namoro – falei – tô a fim de
experimentar e ver no que dá. Mas não esqueci o que
aconteceu. Eu só aceitei isso porque...

166
Mate Espíritos

Ela não permitiu que eu terminasse. Se jogou em


cima de mim e me deu um beijo na boca. Ela me
deitou no chão, subiu em cima e continuou me
beijando com cada vez mais intensidade.
Meu coração disparou. Eu tive que tirá-la.
– Calma, calma! Não podemos conversar antes?
– Odeio conversar – disse Margoth – vamos
deixar isso pra internet, já que nos veremos poucas
vezes. Gosto de ação.
E ela continuou me beijando. Acho que ela
pretendia ficar me beijando por horas seguidas ou o
dia inteiro. Ela não parava!
Do nada, ela deitou no meu peito e dormiu. Acho
que ela ficou sem energia depois de tanta pegação.
Achei engraçado que ela tivesse dormido tão rápido,
assim que encostou no meu peito.
Eu estava mesmo namorando. Uau! E com uma
louca. Será que eu não era meio pirado também?
Era como se eu estivesse namorando minha
sequestradora. Eu acho que aquilo era quase uma
Síndrome de Estocolmo.
Eu duvidava que aquele namoro fosse durar muito.
Talvez fosse questão de dias ou no máximo semanas.
Mesmo assim, eu sabia que Margoth ficaria marcada
por toda a minha vida, simplesmente por ter sido a
primeira guria que se interessou por mim, que se
declarou, me beijou e me namorou.
Ela também tinha sido a primeira guria que
encostou um martelo no meu pau. E eu esperava que
ela fosse a última.
Tentei não me mexer muito para não acordá-la.
Era até um alívio tê-la quietinha por um momento,

167
Wanju Duli

pois eu ainda não conseguia acompanhar a


velocidade da Margoth acordada.
Mas em algum momento ela despertou. Levantou
o rosto e olhou para mim, com uma expressão
curiosa.
“Que fofinha”. Ela ao mesmo tempo me
encantava e me confundia.
Ela me deu um selinho e levantou-se.
– Vamos nadar no lago? – ela propôs.
– Que lago? – perguntei – Essa água suja da
Redenção?
– Sim! O que acha?
– Por que não vamos numa piscina de algum
clube?
– Eu quero nadar no Lago Guaíba.
E quando ela metia alguma coisa na cabeça, não
tinha quem tirasse. Lá fomos nós pegar um ônibus
até a parte do Guaíba que ela queria.
Chegando lá, ela começou a arrancar as roupas.
– Não faz isso aqui! – avisei – É um lugar público.
– Não tem ninguém aqui. Ninguém vai ver.
E ela pulou no lago de calcinha e sutiã. Tive que
acompanhar. Mergulhei de cueca. Por que aquela
guria só tinha ideias de jerico?
Nós nos beijamos e nos pegamos um pouco no
lago. E depois saímos.
Foi tudo tão rápido que nem consegui vê-la
direito de lingerie, e nem senti-la. Quando olhei de
novo, ela já estava de roupa.
– Legal o encontro. Nos vemos amanhã. Tchau.
E ela saiu correndo.
Respirei fundo. Aquele namoro seria não somente
uma loucura, mas uma correria.

168
Mate Espíritos

Era melhor que meus pais não soubessem que eu


tinha uma namorada, ou eles me matariam.
Principalmente quando soubessem que Margoth
tinha uma personalidade totalmente maluca e não
tinha muito dinheiro.
Como nós dois estávamos de férias, ainda
poderíamos curtir bastante. Era o último mês de
férias. Eu precisava decidir logo para qual colégio eu
iria.
– Vem pro meu – convidou Margoth.
Meus pais jamais concordariam com aquilo.
Resolvi dizer que eu tinha um grande amigo
estudando naquele colégio. Afinal, se eu dissesse que
tinha uma amiga eles iriam desconfiar. Com exceção
da minha curta amizade com Hilda, nunca tive
amigas gurias.
Meus pais ficaram escandalizados. Minha irmã
disse que eu só podia ser um mongoloide, o que foi
um termo bem rude. Mas Magdalena, apesar da pose
de princesa, era especialista em usar termos
inapropriados.
Tive uma longa conversa com meus pais e
inventei uma explicação profunda para minhas razões
de desejar estudar num colégio público, por ao
menos um ano. Eu disse que queria descobrir como
viviam as pessoas comuns, para ter uma maior
compreensão a respeito da realidade do país, para que
assim eu me tornasse uma pessoa mais consciente.
– Se é isso mesmo que quer, vá e volte de ônibus
– ele disse – até porque não quero ter meu carro
roubado andando por aqueles lados.
Aceitei a condição. E a partir daquele ano tive que
começar a acordar muito mais cedo, já que o colégio

169
Wanju Duli

ficava na direção completamente oposta da qual eu


morava. Mesmo assim, eu sabia que Margoth
acordava bem mais cedo que eu, já que morava em
outra cidade e precisava pegar dois ônibus.
Eu não tinha que caminhar muito. A parada de
ônibus ficava bem perto da minha casa e ali o fluxo
de ônibus funcionava relativamente bem.
Nos primeiros dias achei muito confortável andar
de ônibus e até divertido. Era uma novidade pra mim.
Senti-me muito adulto fazendo isso.
Porém, nos dias de chuva e no inverno andar de
ônibus começou a ser um desafio. Eu vivia dando
discursos bonitos a respeito de como as pessoas
precisavam se adaptar ao desconforto inerente à
existência, mas ficar de pé e esmagado por pessoas
suadas no calor de quase quarenta graus não era
exatamente a ideia que eu tinha de um leve
desconforto.
Mas isso não foi o pior. O pior foram as aulas.
Para começar, eu só usava os banheiros do colégio
em situações de urgência, pois o banheiro cheirava
muito mal e as privadas estavam constantemente
entupidas e transbordando.
A cantina tinha lanchinhos gostosos e baratos,
embora fossem umas porcarias que faziam muito mal
à saúde. Não que eu me importasse tanto com isso,
mas no começo eu tive alguma resistência a provar
certas comidas. Com o tempo me acostumei.
A nossa turma não tinha uma sala de aula própria.
Precisávamos nos mover constantemente para as
salas de cada disciplina, o que gerava uma enorme
distração e perda de tempo a cada troca de período.

170
Mate Espíritos

Eles estavam muito atrasados em todas as


disciplinas. Uma matéria que nos meus colégios
anteriores teria sido passada em um ou dois dias, ali
levava em torno de um mês para ser explicada.
Mas o pior eram as aulas de inglês. Nem a
professora sabia direito o que estava explicando. Eu
sabia muito mais que ela. Eu acho que não saímos da
explicação do verbo “to be” no ano inteiro. E nem
tentei solicitar isenção da disciplina, pois eu duvidava
que lá houvesse estrutura para análise apropriada das
minhas qualificações.
Aquilo me deixou impaciente. Aquelas aulas eram
uma perda de tempo. Eu queria ficar mexendo no
meu celular, mas os professores não gostavam. Por
isso comecei a matar algumas aulas.
Margoth jamais matava aulas, pois era uma aluna
dedicada. Na verdade jamais tinha me dado vontade
de matar uma aula antes. Esse desejo foi somente
despertado depois de ir estudar naquele colégio, já
que os professores não tinham didática nenhuma
para ensinar e explicavam apenas as mesmas coisas
mil vezes.
– Tu devia mudar o teu nome de Mate Espíritos
para Mata Aulas.
– Eu não sei como tu aguenta esse tormento.
– Quero aprender – ela disse – e ter boas notas no
boletim. Isso pode influenciar na minha carreira mais
adiante.
Margoth não tinha muito tempo de sair comigo na
época de aulas, já que trabalhava no resto do dia. Ela
inclusive trabalhou em alguns momentos das férias e
nem tivemos tanto tempo assim para sair.

171
Wanju Duli

Eu não estava gostando desse novo mundo.


Queria sair dele.
Tive que contar para meus amigos que estava
namorando, pois eles exigiam uma explicação para
minha súbita mudança para um colégio público.

Dio: Tá namorando a Vela, depois de tudo o que


ela fez? Que fodido.

El Rei: Também achei viagem.

Mate: Ela é legal. Ela é apenas diferente das outras


gurias.

Eu estava até surpreso que nosso relacionamento


estivesse durando tanto. Com o início das aulas
Margoth ficou mais calma e mais focada.
Mas eu não tinha intenção de continuar naquele
colégio no último ano do ensino médio. Por isso,
desde o meio do ano comecei a guardar minha
mesada para usar nas mensalidades de Margoth no
ano seguinte.
Decidi que estudaríamos num colégio particular
bem barato, pois só assim eu conseguiria pagar as
mensalidades dela em segredo. Imaginei que meu pai
aceitaria pagar para que eu estudasse lá sem
problemas.
E foi assim que aconteceu. Iniciamos os nossos
estudos do terceiro ano e Margoth ficou encantada
pela oportunidade de estudar num colégio um
pouquinho melhor pela primeira vez na vida. Eu
escolhi bem, dentro das possibilidades financeiras.

172
Mate Espíritos

Já estávamos namorando há um ano e meus


amigos não paravam de perguntar se eu já tinha
comido a guria. Eu desconversava.
Eu também não entendia porque Margoth não
mencionava sexo ou não dava indicações de que
iríamos transar. Sempre que começávamos a nos
agarrar e nos beijar com bastante empolgação, ela
parava no meio e dizia que estava com fome, com
sono ou inventava outra coisa para fazer.
Talvez ela estivesse aguardando uma ocasião
divertida, até que ela surgiu. Essa ocasião foi na igreja.
Meu primeiro beijo tinha sido amarrado num
sótão. Minha primeira transa seria no confessionário
da igreja. Se continuasse naquele ritmo, meu primeiro
oral seria num carrinho de supermercado.
Mas, para minha surpresa, o oral rolou lá mesmo.
Nosso colégio era religioso e tinha uma igrejinha.
Margoth estava tão empolgada nos primeiros dias de
aula, por estar estudando num colégio tão bonito e
com aulas interessantes, que se empolgou além da
conta num dia e me puxou para dentro do
confessionário, numa ocasião em que passeávamos
pela igrejinha para observar os vitrais. A igreja estava
vazia, então talvez não nos pegassem. A não ser que
fizéssemos muito barulho, já que lá dentro estava um
silêncio tumular.
Nos esprememos naquele espaço escuro e
apertado e começamos a nos beijar. Notei que ela
estava se esfregando em mim com mais intensidade
que o normal. Até que ela colocou a mão entre as
minhas pernas. Meu coração quase parou.
Interpretei isso como uma indicação de que eu
poderia pegar nos peitos dela, e foi o que fiz.

173
Wanju Duli

Ela começou a desabotoar a minha calça. Tirei a


blusa dela e o sutiã. Os peitos dela eram totalmente
apetitosos e comecei a apertá-los e a chupá-los,
perguntando-me por que raios não tínhamos feito
isso mais cedo, se era tão bom.
Margoth baixou minha cueca e chupou meu pau.
Eu estava indo às alturas. Até que ela surpreendeu-
me com uma camisinha.
Eu mesmo não tinha camisinha no bolso, pois
jamais se passou pela minha cabeça que íamos trepar
no colégio. Ela pensou em tudo. Talvez já estivesse
planejando desde o começo.
Ela conseguiu colocar a camisinha em mim bem
direitinho. Mas na hora de tentar encaixar meu
caralho na boceta dela, Margoth teve alguma
dificuldade. Ela gemeu, e eu não sabia se era de
prazer ou de dor. Ela fez algumas expressões de
sofrimento, até que consegui entrar nela.
Margoth continuava com aquele gemido estranho.
O coração dela estava disparado.
Eu não consegui gozar, porque eu estava nervoso
e estávamos num lugar que não me permitia relaxar.
Resolvemos interromper por ali mesmo.
Notei que havia sangue na camisinha e algumas
lágrimas nos olhos de Margoth. Fiquei muito
preocupado.
– Eu te machuquei? – perguntei, com urgência –
Desculpa.
– Tu não sabe mesmo, Mate Espíritos? –
perguntou Margoth, com um sorriso – É comum as
gurias sangrarem na primeira vez. Doeu muito mais
do que eu imaginava, mas valeu cada dor e cada gota
de sangue.

174
Mate Espíritos

– Eu fui o teu primeiro? É sério isso?


– Primeiro nos lábios de cima e nos de baixo. Tu
tá podendo, hein, cara?
Margoth tinha escondido aquilo de mim, para
fazer pose de experiente. Ela era definitivamente a
melhor atriz que eu conhecia. Não mentiu. Apenas
ocultou a verdade, que eu nunca tive coragem de
perguntar.
Naqueles tempos, era Margoth que me ajudava
nos estudos e não o contrário. No ano anterior eu
matei tanta aula que quase reprovei o ano. Quem me
salvou de rodar foi ela. E nesse novo ano eu também
estava com dificuldade em várias disciplinas, com
exceção de inglês, já que além de ter aulas fracas no
outro ano, eu não estudei quase nada.
Pelo menos eu podia ensinar inglês para Margoth,
pois o inglês dela era bem básico. Em compensação,
o português dela era fenomenal. Eu até me espantava
com as coisas que ela sabia.
– Tu tá no Brasil, mané – ela disse – então teu
português precisa ser melhor que teu inglês. Não
adianta querer aprender uma segunda língua se tu
nem sabe bem tua primeira. Se conseguir escrever
uma redação boa em português, tu vai conseguir
escrever bem em qualquer outro idioma que aprender
no futuro.
Pela primeira vez, Margoth estava aprendendo
uma terceira língua, pois além de aulas de inglês
tínhamos aulas de espanhol. Ela estava se divertindo
bastante e vivia dizendo frases em espanhol para
mim.
– Tenho um amigo que detesta espanhol –
comentei um dia.

175
Wanju Duli

– O Dio, não é? Eu conheci ele. É um bostinha.


E ela contou a história da ocasião do encontro
deles, quando flagrou Dio agarrando uma guria atrás
de uma árvore. Nem eu sabia daquela história.
– Nunca vi Dio beijando uma guria – confessei –
ele só conta.
– Aposto que ele é virgem – disse Margoth – ele
tem todo o perfil. Só fica contando vantagem.
Dessa vez eu ri.
– Tu não o conhece bem. Sou colega dele desde a
pré-escola.
Margoth e Dio discutiam bastante pelo Facebook.
Os dois se odiavam! É claro que eu acabava
defendendo Margoth em vez de Dio. Ele ficava puto.
O último ano do colégio prometia ser
emocionante, pois seria o ano no qual decidiríamos
em qual universidade iríamos estudar e que curso
iríamos fazer. Eu já tinha abandonado há muito
tempo a ideia de estudar fora, já que eu queria
estudar na mesma universidade de Margoth. Então
não podia ser nem fora do estado. Tinha que ser em
Porto Alegre.
Magdalena tinha conseguido uma bolsa de estudos
devido às suas altas notas e estava estudando numa
universidade dos Estados Unidos. Não estava entre
as mais famosas, mas ainda assim era muito boa. É
claro que ela ainda estava miando por não ter
conseguido entrar em suas universidades favoritas.
Mas pelo menos ela estava miando bem longe dos
meus ouvidos.
A partir do segundo semestre, eu e Margoth
entramos num cursinho popular. Era tão barato que
nem me esforcei muito para pagar a mensalidade dela

176
Mate Espíritos

com minha mesada. Era difícil de acreditar que uma


família não seria capaz de pagar um cursinho barato
como aquele. Mas Margoth não teria estudado lá
comigo se eu não a ajudasse.
No entanto, eu não senti que estava fazendo um
favor para ela. Era o mínimo a que uma guria
estudiosa como ela tinha direito. Se o governo ou
ninguém mais lhe dava uma bolsa de estudos, eu iria
dar isso a ela. Acho que normalmente Margoth não
teria aceitado que pagassem coisas para ela. Mas ela
sabia que aquela quantia não faria tanta falta assim
para minha família.
Porém, eu estava enganado. Meus pais começaram
a notar que havia uma grande quantidade de dinheiro
indo embora, por causa da mensalidade do colégio e
do cursinho de Magdalena.
– O que tu andas gastando tanto no teu cartão de
crédito, Elias? – perguntou minha mãe um dia.
– Apostilas extras para o cursinho – respondi – e
livros de estudo. Também há aulas extracurriculares
no colégio que são pagas à parte.
– Eu vou checar isso.
Cacete. Minha mãe foi até o meu colégio. Ela
acabou descobrindo o que estava acontecendo.
– Tu tá pagando a mensalidade de outra menina?
– ela perguntou, furiosa.
– Ela não tem condições de pagar – justifiquei –
só estou ajudando...
– Eu não acredito – falou meu pai, como se fosse
o fim do mundo – desde quando tu faz caridade?
Quem é essa guria?
– Uma amiga...

177
Wanju Duli

– Tu tá namorando escondido? – perguntou meu


pai, num tom perigoso.
Eu não respondi. E meu silêncio foi minha
resposta.
– Quem é ela?! – perguntou meu pai, num tom
brabo – E quem é a família dela?
Fiquei sem fala. Não esperava essa reação.
– Ela mora em outra cidade – gaguejei – por isso
eu tô ajudando.
– O Elias está namorando uma vagabunda
qualquer que não tem nem onde cair morta – falou
meu pai – acredita nisso, Soraya?
Soraya era a minha mãe. Ela colocou a mão na
boca, como se estivesse em estado de choque. Meu
pai respirou fundo.
– O que foi que eu te disse sobre namoro, Elias?
– Só depois que eu entrar na faculdade – respondi
– ou depois dos 18, mas e daí? Já tenho quase 17.
– Desde quando estão namorando?
Eu não aguentava mais aquele interrogatório.
– Desde meus 15, no final do primeiro ano –
respondi.
O escândalo estava feito. Meus pais achavam
muito cedo. Eu já estava namorando Margoth há um
ano e meio e não via nada de errado nisso.
– Ela é branca? – perguntou minha mãe.
Puta que pariu. Me deu vontade de dizer que ela
era negra, só para provocá-los. E daí se ela fosse? O
que isso tinha a ver com qualquer coisa?
– Sim – eu respondi.
– Vocês não transaram, certo? – perguntou minha
mãe, com medo.
– Já fizemos sexo cinco vezes – respondi.

178
Mate Espíritos

Achei que minha mãe fosse ter um treco. Ela se


sentou no sofá e começou a se abanar. Meu pai
também não gostou nada da informação.
– Com camisinha? – perguntou meu pai.
– É claro – falei, como se fosse óbvio.
– Pelo menos te sobrou um pouco de juízo –
falou meu pai – e amanhã tu vai dizer adeus pra essa
menina.
– Como assim? – perguntei.
– Nós iremos bloquear o teu cartão de crédito –
disse meu pai – tu não vai mais gastar um centavo
que não seja do nosso conhecimento. Nós não te
demos liberdade para que tu abuse dela.
Margoth teria que sair do colégio e retornar ao
colégio público. Merda. Logo quando ela estava tão
empolgada com o novo colégio e com o cursinho.
– Se ela vai sair do colégio, saio com ela –
informei.
– Negativo – disse meu pai – a partir da semana
que vem nós vamos te mandar para um colégio
interno.
– O quê?!
Eles iam me separar da minha namorada. À força.
Meus pais não confiavam em mim. Eles não
acreditavam que eu estivesse estudando para o
vestibular. E provavelmente tinham medo que eu
engravidasse a Margoth.
Para piorar, enquanto eu estava organizando meus
pertences para me mudar para o colégio interno,
meus pais encontraram meus utensílios de magia. Na
verdade foi a faxineira que encontrou. Solange era a
pessoa de quem eu mais gostava naquela casa, mas
depois disso passei a não gostar dela tanto assim.

179
Wanju Duli

Prefiro não descrever a discussão que aconteceu a


seguir. Foi ainda pior do que a descoberta do meu
namoro. Acabei chorando e gritando de raiva. Nunca
tive uma discussão tão feia com meus pais antes.
Pensando melhor, era um alívio que eu fosse logo
para a porcaria do colégio interno, para ficar bem
longe deles. Só seria doloroso ficar longe de Margoth.
O colégio interno ficava no interior do Rio
Grande do Sul. O colégio era enorme e incrível, com
muitas coisas para fazer. Os dormitórios eram
bonitos, havia aulas de música, coral, piscina e até
pista de skate. Mas nada daquilo ia apagar minha
raiva e insatisfação.
Meus pais pensavam que iam me disciplinar
daquela maneira? Eu já estava cansado daqueles
colégios bonitos que nos enfiavam um milhão de
atividades extracurriculares pela garganta. Estava
farto de ser obrigado a estudar todas as áreas do
conhecimento e ser proibido de viver ou de fazer o
meu próprio caminho.
Felizmente, só havia mais um semestre de colégio
pela frente. E infelizmente, eu seria obrigado a cursar
uma universidade no ano seguinte. Eu sinceramente
não sabia se seria pior ou melhor do que minha
situação atual.
Eu só queria estar com Margoth de novo. Nem
consegui me despedir direito dela ou avisar o que
tinha acontecido. No colégio interno eu tinha pouco
acesso à internet. Aquilo era um pesadelo.
Se eu estivesse com ela, eu não me importaria de
estar no colégio ou na universidade. Foi muito
divertido estudarmos juntos por um ano e meio.

180
Mate Espíritos

Até que eu me diverti um pouco no colégio


interno, passado o choque inicial. Margoth foi me
visitar em alguns fins de semana, quando recebi
autorização para ir até o centro da cidade.
Eu sinceramente pensei que eu fosse me reunir a
Margoth a partir do ano seguinte. No entanto, meus
pais disseram que eu deveria me inscrever somente
numa universidade de Santa Catarina, pois eles
estariam se mudando para lá no começo do próximo
ano.
Aquilo foi diabolicamente calculado para me
afastar de Margoth. Meu pai já tinha recebido muitas
ofertas de transferência de emprego para outros
estados antes e havia recusado todas. Ele resolveu
aceitar dessa vez, já que surgiu a ocasião perfeita.
Sendo assim, a partir do novo ano eu, aos meus
17 anos, estaria iniciando um curso numa
universidade de Florianópolis. Margoth estudaria
letras numa universidade de Porto Alegre. E cada um
dos meus três amigos estudaria num lugar diferente.
Rômulo estudaria engenharia de materiais em
Santiago, no Chile. Dio estudaria contabilidade em
Escópia, na Macedônia. Richie faria administração
em Fortaleza.
Eu e meus três amigos manteríamos pouquíssimo
contato nos 12 anos seguintes. Ainda nos falávamos
pela internet de vez em quando. Mas depois de tanto
tempo, cada um estava construindo sua vida e novas
amizades.
Até que junho chegou. Eu estava com 29 anos. Eu
me lembrei da promessa que fizemos.
Nós não relembramos uns aos outros pela internet
sobre a data. Aliás, já fazia alguns anos que eu não

181
Wanju Duli

conversava com eles. Acho que com Richie eu não


conversava há uns seis anos.
Eu apenas peguei um ônibus até Gramado.
Caminhei até o hotel. Felizmente o hotel ainda existia.
E perguntei sobre o quarto 14.
Enquanto subia as escadas, perguntei-me se meus
amigos ainda se lembravam da promessa distante que
fizemos no início da adolescência. Ainda possuíamos
o mesmo senso de aventura? A mesma amizade? O
quanto ainda significávamos uns para os outros?
Fiz muitos amigos ao longo da última década, mas
aqueles três eram especiais. Eu esperava que eles
pensassem parecido.
Eu já tinha apagado minha conta do Facebook há
muito tempo. Eu não estava acompanhando a vida
dos três em tempo real. Alguns tinham arranjado
namoradas ao longo dos anos e depois terminado.
Eles estariam com uma namorada fixa agora?
Estariam casados? Com filhos? Onde estavam
morando? Tinham terminado a universidade? No que
estariam trabalhando?
Eu conhecia ou desconfiava algumas respostas
dessas perguntas, já que eu tinha falado com alguns
deles poucos anos atrás. Mesmo assim, a vida é um
turbilhão. Tudo poderia acontecer.
Coloquei a chave na fechadura. E quando abri a
porta do apartamento número 14 do hotel, tive uma
enorme surpresa.

182
Mate Espíritos

Capítulo 3: Galaxión

O quarto do hotel estava vazio.


Já eram nove horas da noite. Se meus amigos não
chegassem até a meia-noite, era hora de partir. Não
adiantaria aguardá-los mais.
Juro que pensei que eu seria o último a chegar. Eu
iria surpreender os três, que pensariam que eu havia
esquecido da data. Mas quem esqueceu foram eles.
Aquilo me espantou. Nem mesmo Dio, que foi
quem inventou o pacto de sangue, se deu ao trabalho
de ir. Provavelmente cada um deles estava ocupado
demais com suas próprias vidas para relembrar de
uma promessa tão distante, da época em que
tínhamos sonhos e fantasias sobre um mundo
brilhante.
Coloquei lenha na lareira. Quando fitei a chama
recordei-me do meu eu antigo que odiava olhar para
o passado. Eu ainda odiava no presente, com uma
única diferença: na época atual, eu permanecia
relembrando dos anos idos, mesmo que doesse.
Meus pais sempre me falaram da importância dos
estudos. Eu achava que eles estavam exagerando.
Considerava tudo muito chato. Pensava que eles
estavam apenas tentando me impedir de viver.
Eles me obrigaram a estudar e eu odiei. A época
de colégio foi um pesadelo. Sobrava tempo para
pouca coisa. E a época da universidade também foi
detestável. Nessa época eu deparei-me com uma
realidade assustadora: minha maioridade, e com ela
meu direito de fazer escolhas e tentar ser livre.

183
Wanju Duli

Quem diria que em minha tentativa de ser livre eu


me afogaria na liberdade que tanto cobicei.
Entrei no curso de agronomia de uma
universidade de Florianópolis. Porém, nunca cheguei
a concluí-lo: larguei o curso após dois anos, para o
desapontamento de meus pais. Eu queria curtir
minha vida por um momento, pois não aguentava
mais. Arranjei um emprego como atendente numa
loja de departamento. Fui morar sozinho.
Descobri que era muito difícil trabalhar, pagar
contas e me virar por mim mesmo. Mas eu estava
determinado a prosseguir. Afinal, eu disse muitas
coisas aos meus pais antes de me mudar e não queria
apenas retornar para casa com o rabo entre as pernas.
Eu fui teimoso. Fiquei de birra com meus pais e
trabalhei em diferentes empregos casuais nos anos
seguintes. Eu não queria retornar à universidade
porque eu queria provar aos meus pais que eles
estavam errados. Eu acreditava que podia ter uma
vida feliz e bem sucedida seguindo meu próprio
caminho. Mesmo que eu não ganhasse um salário
muito bom, eu acreditei que eu era uma pessoa
especial e comigo seria diferente: eu, com minha
inteligência, seria capaz de me virar sem o auxílio
dessas coisas tradicionais e ultrapassadas como
colégios e universidades.
Eu vivia dizendo aos meus pais que muitas
pessoas inteligentes tinham largado o colégio ou não
tinham feito universidade. Que era possível fazer
grana por outros meios, e que somente as pessoas
medíocres e sem criatividade, que não faziam a
menor ideia de como ganhar dinheiro por elas
mesmas, precisavam se matricular em instituições de

184
Mate Espíritos

ensino para que outros pensassem por elas e lhes


ensinassem o “modo certo” de fazer as coisas.
Entenda que naquela época eu estava revoltado
com o ensino, por tudo que meus pais fizeram
comigo. Para eles, estudar era o centro da existência e
todo o resto deveria ficar em segundo plano. Eles só
podiam estar errados. O amor e a amizade eram mais
importantes.
Como eu era ingênuo.
Margoth sempre me disse que eu era inocente
demais, de um jeito ruim, mas eu nunca acreditei. Ela
disse que eu não conhecia a vida. Eu achei que
conhecesse.
Meu pai ficou doente quando eu tinha 25 anos. A
mesma doença que meu tio teve antes dele. Meu pai
morreu poucas semanas depois. Foi um choque para
todos, pois foi muito súbito.
Nem tive tempo para falar direito com meu pai.
Para dizer que eu o amava, apesar de tudo. E minha
mãe entrou em depressão profunda após a morte do
meu pai. Ela morreu um ano depois, de tão acabada
que ficou.
Agora que penso nisso, arrependo-me de não ter
voltado a morar com minha mãe após a morte do
meu pai. Talvez eu a tivesse consolado. E Magdalena
estava mais longe ainda. Tinha arranjado um marido
americano só para conseguir o green card. Mas os
dois viviam brigando. O marido dela era um grande
idiota.
Já fazia dois anos que eu estava tendo que me
virar completamente sozinho com meu salário de
merda. Meus pais gastaram tanto com Magdalena,
para que ela fizesse a porcaria da universidade no

185
Wanju Duli

exterior, que restaram somente dívidas. Eu e


Magdalena tivemos que vender a nossa casa, o carro
e quase tudo o que tinha lá para quitar todas as
dívidas acumuladas ao longo dos anos. Ficamos sem
nada.
Porém Magdalena, caprichosa como era, insistia
que não se arrependia. Afinal, ela estava disposta a
vender a alma para conseguir uma cidadania
americana. O diploma que ela conseguiu nos Estados
Unidos não valeu muita coisa, já que não era numa
área em demanda. Atualmente ela estava trabalhando
como garçonete e depois das diversas brigas que teve
com o marido, estava pensando em pedir o divórcio
e retornar ao Brasil. Acho que nesse momento ela se
arrependeu por não ter uma graduação brasileira, pois
ela estava tendo uma enorme dificuldade para
revalidar o diploma estrangeiro, já que o currículo era
totalmente diferente. Talvez ela tivesse que cursar
tudo de novo no Brasil.
Subitamente, libertei-me do meu devaneio com
um barulho de chave na fechadura. Meu coração
acelerou. Um dos três havia se lembrado da promessa.
Quando ele entrou, não o reconheci
imediatamente. Ele era alto, forte e tinha uma
barriguinha. Estava com o rosto coberto por uma
barba espessa e negra.
– Puta que pariu – pronunciei, espantado –
Diomedes?
– Caralho, Elias – ele estava tão surpreso quanto
eu – levanta aí e dá um abraço no teu amigão.
Dar aquele abraço foi a coisa mais estranha que fiz
em muito tempo. Dio estava totalmente mudado! As

186
Mate Espíritos

roupas dele tinham um cheiro que não era dele. Será


que ainda havia uma parte nele que fosse ele mesmo?
– Tá gordo, hein – comentei, para ver a reação.
– E tu tá um palito – foi a resposta dele – tu tá
comendo direito? Tá passando fome?
– É o estresse. Tu soube do que aconteceu, né?
– Ah, sim. Eu sinto muito.
Dio soube da morte dos meus pais dois anos atrás.
Apenas troquei um email rápido com ele naquela
época, porque eu estava arrasado. Atualmente eu já
tinha superado um pouco, mas não completamente.
Ele se sentou ao meu lado e fitamos juntos o fogo.
– Eu lembro desse fogo – disse Dio – como se
fosse ontem.
– Para mim parece que foram séculos – eu disse –
acho que aconteceu muita coisa ruim na minha vida
nesses últimos anos. Por isso passou tão devagar.
– Então talvez devêssemos transformar a nossa
vida numa desgraça completa, pra que não passe
nunca.
– Nem pensar – falei – estava cansado de ser
jovem. Suponho que seja a pior parte da vida. São
muitas dúvidas, muita dor, porque tudo pode
acontecer.
– Eu tava brincando – Dio sorriu – minha
adolescência foi o inferno da minha vida. Ainda bem
que foi embora. Agora posso fazer o que quero.
– E quais foram todas essas coisas que tu fez e
não podia fazer antes? – perguntei.
– Eu viajei – disse Dio – mas depois de um tempo
cansa. No final, todos os lugares são iguais e todas as
pessoas são as mesmas. Só muda a embalagem. Não

187
Wanju Duli

é preciso ir muito longe para ver o que é a vida e o


que são as pessoas.
– Mas é legal conhecer novas culturas. Abre a
mente.
– A única coisa que abriu minha mente depois de
todas essas viagens foi descobrir o quanto eu era feliz
no Brasil e não sabia. Ainda bem que voltei pra cá.
Daqui não saio mais.
– Eu não sabia que tu tava morando no Brasil! –
exclamei, surpreso – Quando tu se mudou?
– Não faz muito tempo. Alguns meses. Eu estava
cansado de sofrer preconceito no exterior por ser
estrangeiro. E a situação não está fácil para ninguém.
Empregos são disputados em qualquer lugar do
mundo. E quando não se é nativo, é muito pior.
Principalmente para ter acesso ao sistema de saúde.
Os outros países não querem comprometer a saúde
pública deles com gringo. Faltam médicos em todos
os lugares.
– Eu sabia que essa história de estudar fora era um
golpe – eu disse – muitas universidades só querem
arrancar dinheiro dos estrangeiros trouxas. Isso
aconteceu com minha irmã. O preço da universidade
aumentava absurdamente de ano pra ano e eles
sempre inventavam taxa de materiais, disso ou
daquilo. Até que ela conseguiu um diploma inútil,
que ela pode rasgar e jogar no lixo. Eles tinham
promessas de emprego, mas não apareceu nada. Tem
até um ex-colega dela, indiano, com doutorado
trabalhando como motorista de ônibus nos Estados
Unidos.
– A vantagem de ter um diploma no exterior,
mesmo que seja numa faculdade de merda, é que os

188
Mate Espíritos

brasileiros pensam que é um luxo – disse Dio – mas


na verdade muitas das universidades brasileiras são
melhores que várias estrangeiras. Os brasileiros que
não valorizam o que têm. E ainda podemos estudar
de graça, caramba! São poucos os nativos de um país
que possuem esse privilégio.
– Tu conseguiu revalidar o teu diploma?
– Consegui. Vou fazer meu mestrado em São
Paulo.
– Não era tu que odiava estudar? – perguntei –
Pensei que só fosse fazer graduação.
– Eu ia. Mas pós pode ser útil em alguns casos.
Acho que meus pais estavam certos.
Para Dio elogiar os pais, sendo que antes ele os
xingava tanto, a situação devia ser séria.
Um barulho na porta. Dois caras entraram juntos
por lá, com muita animação. Nós nos levantamos e
fomos cumprimentá-los com alegria.
Era incrível. Todo mundo chegou atrasado! Acho
que isso significava que todos nós andávamos muito
ocupados, numa grande correria. Por pouco não
teríamos nos encontrado.
Rimos muito ao contemplarmos uns aos outros.
Eu já tinha visto umas fotos mais ou menos recentes
deles pela internet, mas era sempre inacreditável ver
ao vivo.
Richie, que atualmente se chamava Ricardo, estava
com os cabelos lisos na altura dos ombros e com
uma barba rala. Rômulo estava com os cabelos bem
curtos, quase raspados, e também usava barba. Senti-
me meio de fora por ser o único do grupo sem barba.
Eu só não usava porque no meu trabalho eles não
gostavam.

189
Wanju Duli

Eles eram como completos desconhecidos. Era


engraçado pensar nisso. Ironicamente, bastaram
alguns minutos para quebrar aquela barreira de
estranheza. Parecia que tínhamos 14 anos de novo.
Era como voltar no tempo.
A primeira coisa que fizemos, assim que os outros
dois chegaram, foi recitar o poema da Recordação da
Excelência. Ninguém se lembrava do poema inteiro e
tivemos que resgatar uma anotação. Depois disso,
fizemos uma meditação de 15 minutos. Ninguém
estava muito a fim de fazer um ritual, porque
estávamos ansiosos para conversar.
Richie era o mais animado de todos. Nenhum de
nós conseguia chamá-lo de Ricardo. Era
simplesmente impossível. Para nós ele sempre seria o
Richie.
A animação com que ele contou sobre sua vida foi
contagiante.
– Me mudar para Fortaleza foi a melhor coisa que
me aconteceu – disse Richie – as praias... velho, as
praias! A cidade é linda. E as pessoas...! Tão legais e
inteligentes. Sério, eu acho que Fortaleza é uma das
cidades que reúne o maior número de brasileiros
gênios. Estava cheio de feras na universidade. Era
assustador. Eu me senti um burro conversando com
aquelas pessoas.
E ele desatou a falar sobre seus colegas e
professores com ideias inovadoras. Pelo jeito, Richie
não queria sair de Fortaleza nunca mais. Ele disse que
até nas férias ele raramente viajava, pois já morava no
paraíso.
Eu sabia que ele já estava namorando há um longo
tempo, mas ele nos surpreendeu contando do

190
Mate Espíritos

noivado. Ele ia se casar em alguns meses e já morava


junto com a noiva. Uma cearense, é claro. Ela era
apaixonada por praia tanto quanto ele.
Desde a época do colégio Richie tinha esse ar
despreocupado e tranquilo. Provavelmente por isso,
de nós quatro, ele parecia o mais feliz. Foi fazer
universidade perto da praia, foi levando o curso
normalmente, sem estresse, sempre indo em festas.
Rodou em algumas disciplinas e atrasou dois anos
para se formar, mas acabou se formando e
trabalhando na área. E lá estava ele, noivo, cheio de
amigos e morando em sua cidade preferida. Ele não
queria estar em nenhum outro lugar do mundo.
– Eu tô morando em Belo Horizonte – contou
Rômulo – lembram que eu tinha trancado meu curso
no Chile? Mudei de área e consegui um emprego
legal. Meu irmão tá morando em São José dos
Campos.
Rômulo já era casado. Ele estava planejando ter
filhos em breve, já que tanto ele quanto sua esposa já
estavam com as carreiras encaminhadas.
No final, todos nós decidimos morar no Brasil e
acabamos fazendo faculdade no Brasil. Até minha
irmã.
Eu desde o começo não pretendia estudar fora,
porque achava que não faria tanta diferença. Richie
estava com aquele ar de “Eu disse pra vocês!” já que
desde sempre ele e a família dele, mesmo tendo grana
pra ir morar em várias partes do mundo, tinham
decidido ficar no Brasil e pronto, porque curtiam o
país.
Rômulo e Dio que tinham um pouco mais de
vontade de estudar fora, mas após passaram pela

191
Wanju Duli

experiência descobriram que não era nada de outro


mundo. E decidiram voltar para um lugar em que se
sentiam em casa, porque estavam realmente em casa,
e não sofriam xenofobia. De quebra, em casa o
padrão de vida acabava elevando bastante, já que não
precisavam pagar coisas em dólar ou outras moedas
caras.
Não somente Richie estava feliz. Olhando para
Rômulo pude ver com clareza que ele estava
completamente realizado e já tinha atingido suas
principais metas.
– Ainda bem que estudei bastante e tive uma boa
educação – disse Rômulo – preciso agradecer aos
meus pais por todo o esforço que fizeram por mim.
– Tenho minhas dúvidas – comentou Dio – eu
concordo contigo que só agora consigo entender os
motivos de meus pais insistirem tanto nos estudos.
Por outro lado, o sistema de ensino tá todo errado. É
chato e ridículo. Perdi de fazer muita coisa quando
era mais novo porque precisava estudar de uma
forma completamente mecanicista e repetitiva.
– Mas o que nossos pais podem fazer sobre isso?
– perguntou Rômulo – Eles só podem escolher o
melhor colégio dentro das possibilidades. Não existe
colégio perfeito ou educação perfeita. Eu concordo
que os currículos e métodos estão ultrapassados, mas
é o melhor que temos dentro das circunstâncias
atuais.
– Tem muita gente que fala sobre esses métodos
alternativos de ensino – opinou Richie – mas eu não
acho que eles sejam a verdade ou a salvação. As
pessoas sempre vão achar que encontraram a solução
perfeita, mas a vida não é perfeita. Mesmo daqui mil

192
Mate Espíritos

anos, se o ensino estiver um pouco melhor e se a


vida for mais confortável, sempre vai ter partes
chatas e problemáticas. Precisamos lidar com isso.
– Sabe, eu gostava muito desse discurso nos
velhos tempos – falei – mas atualmente sou da
opinião de que uma pequena transformação já faz
diferença.
Afinal, nos dias atuais se eu tivesse um real a mais
no meu dia, já fazia uma diferença gigantesca. Mas
preferi não dar esse exemplo para meus amigos não
se preocuparem.
Antes eu não acreditava que Margoth não pudesse
pagar a taxa ridícula daquele cursinho comunitário
que fizemos, que era praticamente de graça. Agora
que eu estava recebendo menos de um salário
mínimo, eu entendia perfeitamente.
No final, meus três amigos não se tornaram tão
ricos ou bem sucedidos quanto os pais deles. Uma
viagem para o exterior se tornaria um evento de luxo
para eles no futuro. E para mim, até a viagem para
Gramado pesou no meu bolso.
Mas e daí? Richie e Rômulo tinham seguido o
caminho que queriam. Dio também, mas embora ele
parecesse realizado profissionalmente, perguntei-me
como andava a vida pessoal dele. Fazia tempo que eu
não escutava sobre aquilo.
– Tu tá namorando, Dio? – perguntei.
– Não – ele respondeu – eu só me fodo em
namoros. Dá tudo a mesma merda. E tu, como foi
aquela história com a Margoth? Até hoje não entendi.
– No começo da faculdade eu estava tentando me
transferir para Porto Alegre para estudar na mesma
faculdade dela – expliquei – e numa ocasião viajei

193
Wanju Duli

para encontrá-la de surpresa no trabalho. Quando


descobri no que ela trabalhava, nós brigamos e
terminei com ela. Nunca mais voltamos.
– Ela não trabalhava num bar? – perguntou Richie
– Qual é o problema?
– Mas ela trabalhava quase seminua – eu disse –
ela usava uma roupa toda exagerada com um decote
cavado e aparecendo metade da bunda. Parecia uma
prostituta. E os clientes do bar ficavam dando mole,
passando as mãos nas pernas e na bunda dela. E ela
deixava!
– Cara, era o emprego dela – disse Richie.
– Fala sério! – exclamei – Tu ia curtir que a tua
esposa trabalhasse nisso?
– Não, mas se não houvesse alternativa, por que
eu iria terminar por causa disso? – perguntou Richie
– Pelo que tu me contou, ela ganhava um salário
cinco vezes maior por trabalhar nesse bar usando
essa roupa do que se trabalhasse num bar comum.
– Eu sei – falei – mas não vale mais a pena aceitar
cinco vezes menos e trabalhar com dignidade?
Dio riu.
– Eu me pergunto quem chegaria a essa conclusão
genial – disse Dio – eu não recusaria um salário cinco
vezes maior, mesmo que destruísse algumas florestas
aqui e ali.
– Porra – falei – foi isso que tu aprendeu com a
educação que teus pais te deram? Tu ia querer dar a
bunda se te pagassem dez vezes mais?
– Ela não tava trepando com os caras – disse Dio
– só fazendo um trabalho meio tarado.

194
Mate Espíritos

– Tu tá defendendo a Margoth? – perguntei –


Achei que tu odiasse ela. E que tu ia ser o primeiro a
ficar feliz depois que eu contasse que terminamos.
– Ela tava na época da faculdade, Elias – falou
Rômulo – nessa época nenhum estudante tem muita
grana. E ela já tinha poucas condições financeiras. Tu
acha que está em condições de julgar uma situação
como essa? Tu, que sempre teve tudo.
Eu estava. Isso porque meu salário era uma merda,
mas sempre tentei trabalhar em troços razoáveis.
Em compensação, talvez eu estivesse sendo um
falso moralista. Eu vivia criticando meus pais por
serem tão conservadores. Talvez eu tivesse me
tornado um pouco como eles, embora fosse difícil
aceitar.
– Além disso, ela se formou em letras e mesmo
tendo ficado um tempo parada, atualmente está
trabalhando na área – disse Dio – ela provavelmente
não ganha tanto em início de carreira, mas com
certeza ela não precisa mais do velho emprego.
– Como sabe de tudo isso? – perguntei.
– Eu cheguei a conversar com ela umas vezes por
aí – disse Dio – nada de mais.
Aquela desculpa não colou.
– Que merda é essa? – perguntei – Por que tu teria
conversado com minha ex? Sendo que tu sempre
odiou ela.
– Bem... – nesse momento, Dio olhou pro lado –
eu me encontrei com ela uma vez há três meses, meio
por acaso.
– E se falaram mais vezes depois disso?
– Eu fiquei com ela, está bem? – disse Dio – Mas
só uma vez.

195
Wanju Duli

Dessa vez eu fiquei chocado. Não consegui


acreditar. Senti uma sensação muito ruim.
Eu não soube explicar porque, mas fiquei com
muita raiva.
– Puta merda, Diomedes! Tu beijou ela? Ou
comeu ela?
– Sim. Foi mal. Se bem que vocês já tinham
terminado há dez anos. Então qual o problema?
– Tu gosta dela?
– Eu não. Só quis dar uns amassos. Não tenho
nenhum interesse de namorar aquela moça
desequilibrada.
Dio não tinha mudado nada. Eu esperava que ele
tivesse amadurecido um pouco após tanto tempo,
mas as pessoas não mudam facilmente. Ele ainda
falava e agia como um adolescente. Os pais dele
devem tê-lo mimado tanto que ele se tornou uma
pessoa assim.
No começo aconteceu o mesmo comigo. Até que
eu acordei.
Pensei que aquela seria uma noite fantástica, em
que todos beberíamos e riríamos juntos relembrando
os velhos tempos. Mas Dio estragou tudo com aquela
merda.
O mais intrigante era que nenhum de nós
mantivemos as práticas de ocultismo ao longo dos
anos. Atualmente eu ainda lia um livro aqui e ali, nas
raras vezes em que eu tinha tempo. Mas nada de
rituais. A não ser nas ocasiões em que eu entrava em
transe tomando um mate.
Resolvi não mencionar minhas dificuldades
financeiras para meus amigos. Afinal, cada um deles
ainda estava construindo a carreira e também deviam

196
Mate Espíritos

estar economizando. Principalmente Rômulo, que


estava planejando ter filhos em breve.
Minha vida foi difícil nos três anos seguintes. Eu
estava seriamente pensando em voltar para a
universidade, pois daquele jeito não ia dar para
continuar.
Até que fiquei doente. Era uma doença parecida
com aquela que meu pai teve, embora meus maus
hábitos de vida pudessem ter contribuído para eu tê-
la mais cedo. Eu comia muita porcaria barata por
falta de grana e saía para beber sempre que surgia a
oportunidade, pelo estresse de não ter dinheiro.
Eu soube que eu precisava fazer uma cirurgia.
Inicialmente fiquei aborrecido, porque era uma
cirurgia cara, então minhas alternativas eram esperar
ser atendido pelo sistema público ou economizar
para pagar um hospital particular.
Porém, não haveria tempo para nada disso. Meu
aborrecimento virou medo quando eu soube que
corria risco de morrer se eu ficasse os próximos
meses sem tratar e principalmente se não fizesse a
cirurgia o quanto antes.
Era uma situação de vida ou morte. Eu precisava
de ajuda. Mas para quem eu ia pedir ajuda?
Minha família não era grande e eu não tinha mais
meus pais. Magdalena tinha voltado para o Brasil e
estava morando no interior do Rio Grande do Sul,
trabalhando de faxineira, pois foi o que ela conseguiu
e ela já estava expert em limpeza depois de fazer
tanta faxina em casas americanas. Em breve ela
pretendia voltar à universidade, mas era óbvio que ela
não tinha condição nenhuma de me ajudar.

197
Wanju Duli

A vantagem de Magdalena ter estudado num


colégio bom era que ela com certeza não teria
dificuldade para ser aprovada na universidade federal
e poderia estudar sem pagar. Mas aquela opção não
serviria para mim. Eu devia ter pensado nela nos
anos anteriores, não quando estava doente.
Felizmente, eu tinha três amigos que tiveram a
ideia genial de conseguir um bom emprego e eu
poderia contatá-los. Eu não pediria dinheiro para
ninguém se a situação não fosse urgente. Eu odiava
pedir dinheiro para os outros.
Eles foram meus melhores amigos no passado,
mas eu não podia dizer o mesmo do presente. Não
nos falávamos há três anos. Era certo eu contatá-los
do nada para pedir grana?
Bem, era melhor passar por esse embaraço do que
morrer por medo do constrangimento. O primeiro
para quem liguei foi Dio.
Dio parecia totalmente estressado ao atender o
telefone. Ele me disse que tinha perdido muito
dinheiro porque tentou abrir um negócio com um
amigo e não deu certo. Ele disse que sentia muito a
respeito da minha situação, mas estava com
dificuldade até para pagar o próprio aluguel.
Eu fiquei meio chocado com a recusa, mas resolvi
entender o lado dele. Era difícil ser trocado por um
pagamento de aluguel, mas eu também não iria curtir
ter que ir morar na rua se eu estivesse no lugar dele.
Liguei para Rômulo. Expliquei a situação. Ele
expressou suas sinceras condolências e senti que ele
ficou realmente triste. Mas ele me contou que
também estava passando por uma situação financeira
complicada. Ele tinha três filhos, pois teve um

198
Mate Espíritos

seguido do outro, e o mais novo estava meio


doentinho e corria riscos. A mulher dele ganhava
pouco e os dois estavam tendo que se virar com
aquela situação difícil.
Se o filho dele estava doente, eu entendia. E liguei
para Richie.
Porém, não consegui achar Richie em lugar
nenhum. Liguei para muita gente, e nada.
Alguém me contou que achava que ele tinha
viajado para a Irlanda com a esposa para visitar uns
parentes. Mas ninguém fazia a menor ideia onde ele
tinha se hospedado, ou do telefone dele na Irlanda.
Ele não respondeu o email que enviei.
Eu estava ficando com falta de opções. Por isso,
na hora do desespero, liguei para Margoth.
Ela ficou totalmente chocada quando soube e
disse que tentaria me ajudar como pudesse.
Lembrei que eu tinha pagado um semestre de
colégio para ela e um mês de cursinho no terceiro
ano. Será que ela estava apenas me devolvendo o
favor? Se eu não tivesse feito esse pagamento, ela
teria tido tanta boa vontade em me ajudar mesmo
assim? Será que as relações humanas eram uma mera
troca de favores? Aquele pensamento era
decepcionante.
Margoth foi me visitar em casa. Ela estava
mudada. Tinha engordado um pouquinho. Os
cabelos estavam um pouco mais curtos.
Ela me encontrou de cama. Nos últimos dias eu
estava sentindo um pouco de dor e já tinha faltado
no trabalho. Se continuasse daquela forma, eu corria
o risco de ser demitido. Até porque o meu trabalho
era totalmente informal.

199
Wanju Duli

Nos dois meses seguintes, senti-me infinitamente


pior. Eu não tinha mais condição nenhuma de
trabalhar e perdi o emprego. Todo santo dia eu sentia
dores infernais. Algumas vezes a dor era tão forte que
eu me perguntava se não era melhor estar morto.
Margoth vinha me visitar todos os dias. Ela
cuidou de mim. Ela não podia ficar muito tempo,
pois tinha que trabalhar. Mas ela disse para eu ligar
sempre que precisasse de qualquer coisa.
Somente a presença dela já era o bastante. No
entanto, ela também não tinha dinheiro para me
ajudar a pagar a cirurgia. E se era para passar os
últimos meses da minha vida sofrendo, com toda
aquela dor e sem atendimento médico, resolvi que
seria melhor morrer.
Mas como? Teve um dia que eu quase cometi
suicídio, de tão forte que era a dor. Eu chorei. Se ao
menos eu tivesse a bosta do dinheiro...! Se eu tivesse
o equivalente ao preço da mensalidade de apenas um
mês do meu antigo colégio bilíngue, já daria para
pagar a cirurgia. Na época, eu considerava que essa
quantia não era tanto assim. Atualmente, era tão
distante como um sonho.
Na época em que eu estava entediado em casa, eu
considerava garantido tudo o que eu tinha. Pagava
vinte reais num almoço, como se fosse
completamente normal. Comia todo dia coisas
diferentes e podia pagar uma consulta médica se
sentisse qualquer dorzinha nas costas. Atualmente, eu
pagava cinco reais num almoço e achava caro. Comia
quase todo dia as mesmas coisas, para economizar.
De repente, minhas ideias românticas e idealizadas
sobre a vida já não pareciam assim tão bonitas.

200
Mate Espíritos

Pessoas ao meu redor tinham amor e amizade por


mim, isso eu não duvidava. Margoth me ajudou e
todos os meus amigos ficaram sinceramente
chocados e tristes quando souberam que eu podia
morrer.
Mesmo assim, eles não me ajudaram
financeiramente. A maioria porque não podia, e eu
não duvidava. Era óbvio que suas próprias vidas e a
família viriam em primeiro lugar. Eu entendia isso.
Meus pais me educaram de forma rígida, me
pagaram uma educação cara e exigiam de mim uma
disciplina de estudos. Talvez essa não tenha sido a
forma ideal de fazer as coisas, mas meus pais não
eram perfeitos. Até os pais de Richie, que eram
totalmente tranquilos, se estressavam com ele de vez
em quando. Eu apenas não ficava sabendo de todos
os detalhes.
Mas mesmo essa merda de educação que meus
pais me deram, cheia de defeitos e de amor
misturado com ódio, tinha seu valor. Eles estavam
preocupados. Não queriam que eu sofresse no futuro.
Eu ignorei essa preocupação. Não acreditei que fosse
necessária. Eles só podiam estar exagerando.
Afinal, a vida não podia ser assim tão impossível.
Vivi uma realidade em que o dinheiro sempre estava
disponível para minhas necessidades básicas. Achei
que essas necessidades continuariam a ser atendidas
com qualquer emprego que eu pegasse. Eu só teria
um pouco menos de conforto, certo?
Mas, porra, mesmo meus amigos que eram
formados estavam apertados financeiramente. Foi
então que lembrei das palavras do meu pai, de que

201
Wanju Duli

não adiantava eu somente ter um bom emprego. Eu


precisava ser o melhor.
Não. Eu não queria ser o melhor. Eu preferia
morrer.
Era melhor morrer a sofrer. O sofrimento era
insuportável. Aquela dor era insuportável. Eu apenas
queria me livrar dela. Para mim, aquela dor não valia
o preço da vida.
Margoth veio me visitar no dia seguinte e, quando
viu o quanto eu estava sentindo dor, chorou comigo.
Eu gritei. E eu implorei a ela que me matasse. Eu
decidi que não queria mais viver aquela dor por nem
mais um dia.
E em vez de me dizer frases bonitas e irreais de
consolo, como “Seja forte” ou “Tu irás superar isso”,
ela me disse uma coisa bem madura:
– Eu tenho uma arma. Posso te livrar da tua
miséria.
Eu fiquei muito curioso.
– Por que tu tem uma arma? – perguntei, quando
a dor me permitiu falar.
– Pra me defender onde moro – ela respondeu –
já foi bem útil contra assaltantes e estupradores. Eu
vou trazê-la amanhã, OK? Dorme bem.
E naquela noite eu finalmente consegui dormir.
Pela primeira vez, depois de muito tempo, senti-me
feliz. Isso porque Margoth, como a guria incrível que
era, me deu uma esperança: a esperança de que iria
me libertar daquela dor.
Juro que sorri. Chorei de alegria. Eu senti-me
sinceramente feliz.

202
Mate Espíritos

Aquela noite foi uma das mais felizes dos últimos


anos. Eu me sentia leve e mais vivo do que nunca.
Porque sabia que nunca mais sofreria de novo.
Margoth trouxe a arma no outro dia, como
prometeu. Esperá-la foi uma tortura. Porém, quando
ela chegou, senti medo.
– Faz isso rápido – eu disse.
– Não posso fazer aqui – ela falou – eu posso ser
presa se encontrarem teu corpo.
– Eu tô sentindo muita dor! – gritei – Por favor,
me mata agora. Eu vou morrer, e tu tá preocupada
com uma coisa sem importância como ser presa?
Pelo menos na prisão vai ter comida de graça. E eu
nunca mais vou comer nada!
Eu achava ótimo. Não aguentava mais comer a
mesma gororoba todo santo dia.
De repente, desejei nunca ter tido dinheiro. Não
teria doído tanto se eu nunca soubesse o que era
conforto.
Mas nada daquilo importava mais.
Margoth apontou a arma para mim. Porém, no
momento em que ela fez isso, eu comecei a chorar e
implorei que ela não me matasse.
Eu me portei de forma patética. Ela guardou a
arma.
– Não tem outra maneira? – ela perguntou – Não
tem ninguém mais para quem tu possa pedir ajuda?
– Não. E nesse ponto provavelmente não faz mais
diferença.
Resolvi adiar a decisão até o dia seguinte. Eu
estava confuso e com medo.
E foi no dia seguinte que recebi uma ligação. Eu
estava sozinho em casa e quase não atendi o telefone,

203
Wanju Duli

porque estava muito longe e eu sentia uma dor dos


infernos.
Só atendi aquela bosta porque não parava de tocar
e não me deixava em paz. Aquele maldito era muito
insistente.
– Alô? – atendi com uma voz ao mesmo tempo
desanimada e mal humorada.
– Elias?
– Sim.
– Aqui é a Greta. Lembra de mim? Tua colega no
colégio.
Mas que porra? Eu não falava com ela há 18 anos
e ela me ligava, do nada? Como ela conseguiu aquele
telefone?
– Fiquei sabendo que tu tá doente e precisa de
uma cirurgia urgente.
– É uma cirurgia cara e não tenho dinheiro – falei.
– Tu tá em casa?
– Estou.
– Tem como eu te encontrar agora?
Passei a ela meu endereço e em mais ou menos
meia hora Greta chegou na minha casa. Ela ainda
estava na cadeira de rodas. O corte do cabelo era
diferente. Ela parecia ainda mais bonita e madura.
Ela estava acompanhada de um homem elegante
que provavelmente era o marido dela.
Expliquei a ela toda a situação. Falei que tipo de
cirurgia eu precisava, quanto custava e quanto tempo
eu tinha de vida.
Pensei que ela só ia me visitar para dizer que
sentia muito pela minha situação e depois ir embora,
como os outros. Porém, ela disse que pagaria minha
cirurgia, que poderia ser realizada na manhã seguinte.

204
Mate Espíritos

Aquilo foi completamente inesperado. Fiquei tão


surpreso com a informação que nem agradeci.
De lá, já fui levado direto para o hospital. Recebi
um tratamento preliminar que aliviou muito minha
dor.
A cirurgia foi realizada no dia seguinte, com
sucesso. O pós-operatório não foi tão ruim. Ou
talvez perto do que eu tinha passado, qualquer dor
que eu sentisse depois não chegaria nem perto.
Quando tudo terminou, eu agradeci
apropriadamente. Caramba, ela tinha salvado minha
vida!
Mas eu não podia me esquecer de outra pessoa
que havia me ajudado um monte por todo aquele
tempo: Margoth.
As duas me ajudaram de formas diferentes. Uma
com dinheiro e a outra com companhia e cuidados.
Definitivamente, não existia somente uma maneira de
ajudar.
Quando Richie voltou de viagem e soube do que
aconteceu, ele me xingou por eu não ter contatado
ele antes.
– Mas tu sumiu, meu! – falei.
– Tu tá mal de grana atualmente? – perguntou
Richie – Precisa de alguma coisa?
– Deixa pra lá. Agora que tô com saúde, tô
totalmente pilhado pra retomar os estudos.
– Qualquer coisa me fala, tá?
Richie já devia ter gastado um monte naquela
viagem para a Irlanda, então decidi não incomodá-lo.
O mais fantástico foi que quando retomei minha
saúde, não ter dinheiro já não parecia um problema
tão horrível.

205
Wanju Duli

Fui tomar um mate na beira do Guaíba, olhando o


pôr do sol. Eu estava desempregado e totalmente
sem grana. Mas minha vida nunca pareceu tão bonita.
Eu estava finalmente sentindo a sensação pela
qual busquei a vida inteira: alegria por estar vivo. Eu
não sentia mais vazio. Minha vida tinha sentido.
Tudo parecia ter significado, especialmente as coisas
simples.
Havia coisas totalmente erradas no mundo, tanto
no meu país como em todos os outros países. E
sempre haveria coisas erradas, na minha vida e em
todas as outras vidas.
Eu estava com 33 anos. Lembrei que foi com essa
idade que Jesus supostamente morreu. Recordei-me
dos meus pais lendo para mim os Evangelhos. Eu
sempre pensei que tudo o que eles faziam era errado
e conservador: o rigor para a religião, estudos,
obediência... e talvez uma parte disso não fosse tão
bom. Mas quando eu parava para pensar neles com
carinho, eu percebia que eles apenas estavam
tentando me educar da melhor forma que sabiam.
Afinal, cada pessoa possui uma ideia diferente a
respeito de educação, de espiritualidade, do que é
importante na vida, e tantas outras coisas. Elas nunca
vão concordar nisso. Se eu tivesse filhos um dia, eles
provavelmente também discordariam da forma que
eu os educasse. Meu consolo era pensar que mais
tarde, quando tivessem seus próprios filhos, eles
pudessem entender o valor do que tentei fazer por
eles.
E eu consegui sorrir ao recordar da minha mãe
dizendo para mim quando eu era pequeno: “Um dia

206
Mate Espíritos

tu vai entender porque estou te mandando escovar os


dentes e dormir cedo”.
Minha mãe se chamava Soraya e meu pai Augusto.
Minha mãe era mais parecida fisicamente com minha
irmã e eu com meu pai.
Naquele momento chegou uma pessoa. Ela
sentou-se comigo no banco na beira do Guaíba e
deitou a cabeça no meu ombro. Ela me passou um
fone de ouvido.
– Lembra dessa música de jazz? – ela perguntou –
Era a favorita do pai.
– É mesmo – falei, fitando o horizonte.
Fiz força para não chorar. Magdalena estava calma.
Eu não queria interromper aquela paz.
– Vamos estudar juntos esse ano? – ela propôs –
E no ano que vem nós dois vamos passar no exame
da universidade da nossa cidade.
Talvez a culpa por tudo o que aconteceu não
tenha sido exclusivamente nossa, dos nossos pais, do
governo ou de ninguém especificamente. Cada um
pode ter errado um pouco, e eu estava bastante
convencido de que era o caso, mas erros sempre vão
acontecer. Levaríamos isso como lição e
diminuiríamos os erros dali pra frente. Não para ser
melhor do que alguém, mas apenas para seguir
vivendo como conseguíamos.
Naquele dia libertei Galaxión. Falei mentalmente
com ele e disse que ele poderia se pôr com o sol.
Seria um tipo de morte, ainda que uma quieta e bela
morte.
Acho que matei um espírito naquele dia, para
honrar a minha alcunha. Libertei-me de uma parte de
mim da qual eu não precisava mais.

207
Mate Espíritos

Magdalena me passou uma bala. Também colocou


uma na boca.
– Achei que odiava balas – comentei, surpreso –
tu sempre disse que faziam mal.
– Mudei um pouquinho – ela disse – ainda me
lembro as coisas que a mãe nos ensinou. Mas agora
somos só nós dois. Vamos começar a tomar as
nossas próprias decisões, sem medo. Tu acha que a
gente consegue?
– Eu tenho certeza.
E fomos para casa, pois ainda havia uma casa para
a qual retornar. Uma casa que nós mesmos
inventamos, que poderia não ser assim tão bonita
quanto a casa antiga. Mas era só nossa. Somente por
isso, pela coragem de começarmos a construir nossa
própria história, já poderíamos nos considerar
vitoriosos; tanto nós mesmos como nossos pais.

FIM

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