Você está na página 1de 17

Artigo original

COMO AS START-UPS CRESCEM?


Performances e discursos de empreendedores à
procura de capital*
Marcel Maggion Maia
  https://orcid.org/000-0001-5336-5802

Universidade de São Paulo (USP), São Paulo – SP, Brasil. E-mail: marcel.maia@usp.br

DOI: 10.1590/349919/2019

Introdução troit (Estados Unidos), outrora símbolo da pujança


da economia norte-americana, era avaliada em US$
Na economia contemporânea, as firmas nas- 50,2 bilhões pelos agentes de mercado. Já a nova fa-
centes de base tecnológica, conhecidas como start- bricante de carros elétricos e autoguiados Tesla Mo-
-ups, vêm assumindo um lugar de crescente relevo. tors, fundada em 2004, no Vale do Silício, na Cali-
Os altos valores que os agentes de mercado atri- fórnia (Estados Unidos), era avaliada em US$ 51,6
buem a alguns desses negócios, bem como a alar- bilhões no mesmo período. Acontece que, à época,
gada difusão dos discursos de seus empreendedores a Tesla detinha apenas 0,2% do mercado norte-a-
são dois aspectos especialmente notáveis. Obser- mericano de automóveis, enquanto a GM detinha
ve-se, por exemplo, a curiosa atribuição de valor a 17% (Thielman, 2017). De fato, a Tesla fabricou
firmas do setor automobilístico. cerca de 76 mil carros em 2016, enquanto a GM
Em abril de 2017, a montadora de automóveis comercializou aproximadamente 547 mil automó-
General Motors (GM), fundada em 1908, em De- veis nos Estados Unidos apenas no primeiro tri-
mestre do mesmo ano (Thielman, 2017). Quanto à
* Agradeço aos pareceristas da RBCS pelos comentá- avaliação de lucro, a GM anunciou uma expectati-
rios precisos e aos membros da Oficina de Sociologia
Econômica e do Trabalho (OSET, FFLCH-USP) pe- va de ganho de US$ 9 bilhões para 2017, enquan-
las observações lançadas durante a pesquisa, financiada to a Tesla, que nunca lucrou, previu uma perda de
pelo CNPq. US$ 950 milhões naquele ano (West, 2017).
Artigo recebido em: 24/02/2017 Do ponto de vista estritamente financeiro, essas
Aprovado em: 21/08/2018 diferenças referem-se em parte à própria dinâmica
RBCS Vol. 34 n° 99 /2019: e349919
2  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 34 N° 99

das bolsas de valores. Contudo, vale notar que certas ções e à agência, deixam-se flagrar em um momento
tecnologias desenvolvidas por start-ups não apenas crucial dessas firmas, qual seja, quando os empreen-
modificam práticas cotidianas (como chamar um dedores ainda buscam os recursos necessários para
carro de praça via aplicativo de celular), mas geram levar seus projetos adiante. As situações circunscritas,
uma indeterminação de mercado desencadeada pela nas quais interagem empreendedores e investidores
difusão, em redes de influência, de análises prospec- capitalistas, são especialmente interessantes à análi-
tivas que apontam patamares de valoração atípicos se sociológica, porque os empreendedores à procura
para empresas iniciantes, como a Tesla, por exemplo. de capital dedicam grande esforço para modelar seus
Ocorre que essas análises servem à elaboração de dis- discursos e performances, recorrendo a empresas es-
cursos mais amplos sobre o futuro (a economia com- pecializadas na tarefa, conhecidas como aceleradoras.
partilhada no transporte urbano, por exemplo) que Os agentes dessas empresas, além de pré-seleciona-
se mostram convenientes, justamente, aos agentes rem as firmas nascentes mais promissoras da praça
que extraem ganhos das oscilações de valor impul- e de trabalharem no aprimoramento de seus proje-
sionadas pela indeterminação de mercado. Ou seja, tos – utilizando, para isso, técnicas de administração
os agentes econômicos competem, aqui, por ganhos capazes de incrementar as chances de esses projetos
que ajudam a definir (Callon, 1998). prosperarem –, atuam como “especialistas em treina-
Nesse contexto, é ainda mais intrigante a pre- mento”. De fato, como dominam as regras informais
sença recorrente de empreendedores bem-sucedi- (expectativas de ação, etiquetas, uso da linguagem
dos nos cadernos de economia nacionais e inter- etc.) a serem operadas nas situações de interação
nacionais. No catálogo de “perfis” de executivos com investidores, os qualificadores de start-ups cum-
da versão on-line da revista Forbes, por exemplo, prem “a complicada tarefa de ensinar ao ator como
enquanto a atual chefe-executiva da General Mo- construir a impressão desejada” (Goffman, 2002, p.
tors recebe breves adjetivos, o dirigente da Tesla 148). É por essa ótica que a atividade de prospecção
Motors, Elon Musk, é descrito como um investidor de recursos financeiros é aqui apreendida como um
“bilionário” e um empreendedor que está “revolu- “movimento”, ou seja, como um “padrão de ação
cionando o transporte tanto na Terra quanto no preestabelecido que se desenvolve durante a repre-
espaço” (Musk também é o fundador da empresa sentação e que pode ser apresentado ou executado
aeroespacial SpaceX). Enfim, o caso exemplar do em outras ocasiões” (Goffman, 2002, p. 24).
setor automobilístico deixa entrever a relevância do Afinal, para refletir sobre um processo de cons-
papel que a representação social de empreendedores trução de legitimidade social culturalmente informa-
vem cumprindo na formação de expectativas em do, este artigo consagra-se ao exame de performances
torno do valor de novas firmas de base tecnológica. e discursos mobilizados por empreendedores que, à
Ocorre que os estudos sociológicos consagrados procura de recursos financeiros para suas start-ups de
às start-ups têm conferido grande atenção à dimensão base tecnológica, interagem com investidores em si-
estrutural desses empreendimentos e deixam, assim tuações circunscritas. Para isso, assume-se uma abor-
fazendo, uma lacuna no que concerne à dimensão cul- dagem microssociológica, fundamentada na teoria
tural. Dessa maneira, embora a esfera cultural costume goffmaniana, a qual compreende que, embora as
ser vista como “contraposta e subsumida à econômi- interações sociais possuam dinâmicas específicas, elas
ca” (Grün, 2016, p. 403), vale seguir o interesse – são moldadas pela realidade em que estão imersas.
já notável tanto em teorias fundantes como a weberia- Assim, a reflexão intenciona alcançar os processos
na, quanto em estudos contemporâneos (Stark, 2009) – sociais e culturais mais abrangentes, presentes no
por desvendar as tramas sociológicas em que agentes, círculo da crença, que conferem verossimilhança às
imersos em certo momento de avanço da racionali- performances examinadas.
zação da vida econômica, colocam em marcha novas O texto está organizado nessa direção. Na primei-
formas de simbolização1 da ordem social. ra seção, expõe-se a primazia que as abordagens das
Nesse intento, os elementos simbólicos perti- redes sociais assumiram até aqui na literatura socio-
nentes às start-ups, conquanto superpostos às rela- lógica, e a lacuna teórica à qual este artigo se dirige.
COMO AS START-UPS CRESCEM?  3

Na segunda seção, apresenta-se o modo de operação ção à dimensão cultural desses negócios. Documentar
das aceleradoras no Brasil; uma digressão convenien- o alcance dessa lacuna é o objetivo desta seção.
te, porque desvela a importante participação estatal Desde as primeiras noções sugeridas pela so-
nessa intermediação de mercado, bem como o papel ciologia dos mercados, compreende-se que os ato-
dos movimentos de circulação na produção de va- res desenvolvem estruturas sociais para mediar os
lor de firmas nascentes. Na terceira seção, chega-se à problemas que encontram na troca, competição e
análise das estratégias discursivas e performáticas dos produção (Fligstein e Dauter, 2012, p. 489). Daí
empreendedores. Nela se conhece como os empreen- decorre a vertente teórica que postula que os mer-
dedores alcançam a definição consensual da realidade cados devem ser compreendidos pela análise da-
por meio da retórica da racionalidade administrativa quelas estruturas em contextos sociais localizados.
e da incorporação de uma persona específica; reco- Destacadamente, os estudos sobre o aglomerado
nhece-se as principais características da língua falada empresarial do Vale do Silício, notável pela concen-
por esses atores e argumenta-se que as start-ups são tração de start-ups, muito avançaram ao revelar que
suportadas por narrativas sobre futuros imaginados. o desenvolvimento das firmas da região não se deu
Finalmente, apresentam-se pistas interpretativas, que, pelo encontro efêmero entre os atores, mas remonta
ao se beneficiarem da analogia com a religião, alme- a laços sociais cuidadosamente construídos. Suma-
jam desvendar a mágica que torna as representações riamente, esse corpo de trabalhos informa que as
analisadas verossímeis, e que faz congregar atores fun- redes sociais importam porque o fluxo de pessoas,
damentais à economia e à sociedade contemporâneas. recursos e informações entre setores implica distri-
No que concerne ao material empírico, a partir buição de poder e influência (Ferrary e Granovet-
de observações etnográficas que recobrem 76 situa- ter, 2009), e também porque impactam a produção
ções de palestras de empreendedores à procura de e a inovação (Castilla et al., 2000, p. 218).
capital, realizadas entre fevereiro de 2014 e feve- De fato, desde o final dos anos de 1980, pes-
reiro de 2016, selecionou-se uma situação típica, quisadores do campo da sociologia econômica vêm
que compõe a análise central. Trata-se do demo day estendendo o trabalho de autores como White
da 12ª edição do Start-Up Farm, evento ocorrido (1981) e Granovetter (1985) na exploração das es-
no dia 11 de junho de 2015, no auditório da Te- truturas sociais dos mercados (Lie, 1997, p. 350).
lefonica, na capital de São Paulo.2 Um demo day é As análises de redes foram predominantes em todo
um concurso de start-ups, no qual empreendedores, o campo, principalmente nos primeiros anos após
após concluírem um curso de qualificação ofere- a publicação do “manifesto fundamental” de Gra-
cido por uma empresa especializada, apresentam, novetter (1985, p. 350), quando este ganhou eco
oralmente, seus projetos de negócio a uma plateia e marcou a agenda. Não sem razão, no contexto
composta por potenciais investidores – especial- brasileiro, a influência dessas análises no estudo
mente aqueles informais, conhecidos nativamente de start-ups é marcante. Carlos Freire (2014), por
como investidores-anjo.3 A Start-Up Farm é uma exemplo, argumenta que a atividade econômica da
empresa de qualificação de start-ups, cuja principal biotecnologia – formada majoritariamente por em-
característica é o formato expresso dos cursos que preendimentos jovens – está enraizada em redes de
oferece – os empreendedores são considerados ap- agentes que se revelam interdependentes. Também
tos a buscar o capital necessário para desenvolver debruçado sobre esse setor, Agnaldo dos Santos
seus negócios após cinco semanas de treinamento. (2006) destaca o papel das redes de circulação de
informações na formação de estratégias alternativas
à proteção intelectual em ambientes de inovação.
A predominância da dimensão estrutural no Por sua vez, Comin e Freire (2009) constatam, ao
estudo das start-ups examinar dois conglomerados da indústria de equi-
pamentos de informática e eletrônica, que a den-
Como já mencionado, de maneira geral, os estu- sidade e a variedade das redes sociais locais é um
dos consagrados às start-ups têm dedicado pouca aten- fator central a impactar positivamente o crescimen-
4  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 34 N° 99

to econômico. Argumento que vai ao encontro dos sobre situações em que os aspectos culturais são efe-
achados de Vale e Guimarães (2010), para quem as tivamente implicados em práticas que moldam as
redes sociais tendem a incrementar as possibilida- trocas econômicas. Antes de avançar por essa análi-
des de sobrevivência de empresas no mercado. se, cabe, em atenção ao pressuposto de que os mer-
Contudo, como lembram Fligstein e Dauter cados refletem a construção social e política de cada
(2012), por conta desse crescimento focado do sociedade (Polanyi, 1957), interpor uma digressão
campo da sociologia econômica, muitos estudiosos que deve fazer conhecer o modo de operação do in-
deixaram de considerar perspectivas frutíferas em cipiente setor de qualificação de start-ups no Brasil.
suas pesquisas, apesar de existirem muitos pontos
de concordância no campo. A possibilidade de rea-
lizar uma conciliação a partir de um estudo empí- O circuito de qualificação de start-ups
rico sobre o circuito das start-ups no Brasil é a que
anima este artigo. A ênfase cultural dos mercados O termo “incubadora”, tão presente no voca-
frequentemente encontra referência em estudos que bulário de mercado dos anos 1990, é raramente
seguem uma agenda segundo a qual o mercado é ouvido no circuito de start-ups do século XXI; hoje
entendido como uma interação complexa entre fa- vigora a designação “aceleradora”. Essa, que parece
tores culturais, econômicos e sociais (Zelizer, 1988, uma trivial mudança, acaba por deixar entrever o
p. 629). Assim, pretende-se revelar como as rela- modo de funcionamento do suporte a firmas nas-
ções de troca entre investidores e empreendedores centes de base tecnológica na atualidade. Se o ter-
são também construídas com base em significados mo incubadora remete o imaginário ao cuidado e
produzidos e partilhados no interior de organiza- ao provimento de condições que possam garantir
ções especializadas. o desenvolvimento natural de seres ainda frágeis, o
No que tange à esfera cultural das start-ups, as neológico aceleradora sugere um desenvolvimento
pesquisas são incipientes entre nós, destacando-se em ritmo acima do convencional. Em uma imagem
o trabalho de Guimarães e Azambuja (2010), que análoga à dos seres vivos, as aceleradoras parecem
incorpora a cultura à abordagem multidimensional distantes das estufas que monitoram temperatura e
sobre os empreendimentos de desenvolvimento de outros indicadores vitais durante as fases mais de-
softwares alocados em incubadoras do Sul do país. licadas de neonatos, e se mostram mais próximas
Para os autores, os profissionais altamente qualifi- de uma superalimentação, via suplementos vitamí-
cados pesquisados apresentam comportamentos, nicos, que “acelera” processos pouco convenientes
valores e objetivos que se distanciam da esperada às expectativas dos agentes em posição hegemônica.
ênfase nos valores econômicos e no exercício de Além disso, enquanto “incuba-se” algo ainda em
poder, o que indica que o grupo estudado experi- vias de caminhar, “acelera-se” algo já em pleno mo-
menta uma “mudança cultural”. Já a investigação, vimento e que segue um processo mais ou menos
ainda em curso, de Louise Faria (2015), trata dos estabelecido. Nota-se, ainda, nessa transição de no-
usos e efeitos do que denomina performance do “fa- mes, que as incubadoras se despiram dos elemen-
zer acontecer” no desenvolvimento de start-ups. Ao tos burocráticos e lentos que suas ligações com o
refletir, especificamente, sobre o papel dos afetos Estado e com as universidades poderiam despertar,
na operação cotidiana de firmas nascentes, Faria passando a se associarem à semântica de ousadia e
(2015, p. 24) constata que “os agentes represen- liberdade que a palavra “aceleração” carrega.
tam a si mesmos como profissionais com trajetórias Embora a falta de definições sobre os novos
distintivas, movidos por paixões e pela vontade de modelos ainda dificulte a pesquisa acadêmica, é
fazer a diferença”. possível afirmar que o papel das incubadoras se
Ademais, observa-se que os processos de qua- transformou em dois aspectos. Em primeiro lugar,
lificação de start-ups em seus moldes mais recentes fazer com que as start-ups suportadas incrementem
também estão pouco presentes nos estudos socioló- o seu valor de mercado tornou-se o objetivo cen-
gicos nacionais. Desse modo, convém debruçar-se tral. Como afirmam dois qualificadores, a tarefa
COMO AS START-UPS CRESCEM?  5

“evoluiu de um trabalho que ajudava empresas a (Start-Up Brasil), criado pelo Ministério da Ciência
sobreviver durante seus anos de formação (dimi- e Tecnologia em 2013. Nele, as empresas de qualifi-
nuindo os riscos potenciais) para um trabalho que cação são incumbidas de investir o valor mínimo de
adiciona valor às empresas (aumentando seu valor R$ 20 mil em cada start-up selecionada (na forma
agregado)” (Miller e Bound, 2011, p. 8).4 Em se- de doação, empréstimo ou participação acionária),
gundo lugar, estabeleceu-se uma operação pautada enquanto o Estado provê os empreendedores de re-
na troca de serviços de qualificação por participa- cursos (na forma de bolsas de pesquisa de até R$
ção societária nas firmas nascentes. 200 mil por start-up, por até 12 meses). Consta-
Quanto aos investidores, duas categorias ta-se que, em 2015, o Start-Up Brasil participou
atuam no circuito. Os informais, conhecidos no do financiamento de 45% do total de qualificações
mercado como investidores-anjo, são, basicamen- promovidas por aceleradoras em todo o país. Mes-
te, indivíduos que prospectam start-ups incipientes, mo uma intermediadora de grande porte como a
para nelas envolverem-se ativamente e fazerem-nas Wayra Brasil, da empresa multinacional Telefonica,
crescer (Aldrich, 2005). Por sua vez, os investidores teve 64% de suas qualificações parcialmente finan-
formais, organizados em empresas de venture capi- ciadas pelo Estado. Dessa forma, percebe-se que,
tal, miram start-ups que já apresentam indicadores além de conhecidos programas de subvenção pú-
tangíveis de crescimento e nelas investem grandes blica como o Pipe (Pesquisa Inovativa em Pequenas
volumes de capital – em geral, alocados em rounds Empresas), o Estado brasileiro é um ator importan-
vinculados a metas de crescimento (Stearns e Mi- te no fomento a start-ups privadas, desvinculadas da
zruchi, 2005). Tanto investidores informais quanto pesquisa científica (Maia, 2016b, p. 93).
formais seguem um modelo de troca de recursos Os dados se chocam com o discurso mais geral
e serviços por participação societária nas start-ups do empreendedorismo, calcado na ação individual
em que se envolvem. Ao longo de todo o circuito, e na imposição de limites ao Estado. Como coloca
a mitigação de riscos se mostra uma ideia ubíqua Mazzucato (2014), vige um pressuposto segundo
entre os agentes. Além de monitorarem de perto o qual “com o Estado em uma posição secundá-
o desenvolvimento das firmas nascentes a que se ria, iremos liberar a força do empreendedorismo e
associam, investidores e qualificadores dedicam es- da inovação da iniciativa privada”. Trata-se de um
pecial atenção à formação de “portfólios” eficientes. contraste que alimenta a dicotomia entre “um setor
A teoria do portfólio estabelece que convém aos privado dinâmico, inovador, competitivo e ‘revo-
investidores espraiarem seus riscos e investirem em lucionário’ e um setor público preguiçoso, buro-
setores de alto potencial de crescimento (Dobbin, crático, inerte e ‘intrometido’” (Mazzucato, 2014).
2005). Ou seja, os agentes tratam de realizar in- De fato, no Brasil, um survey representativo dos
vestimentos numerosos e variados, de forma que empreendedores de start-ups ligados à maior asso-
o montante de negócios malsucedidos seja recom- ciação do setor (a ABStartups) corrobora essa vi-
pensado pelo montante dos bem-sucedidos. são: 62% dos empreendedores concordam que, “no
Entremeados a esse modo de operar, dois as- Brasil, os governos mais atrapalham do que ajudam
pectos sociais merecem destaque, à guisa de atuali- as start-ups”, 65% concordam que “a inovação nos
zar o estudo da intermediação de firmas nascentes mercados é movida principalmente pelas start-ups”
no Brasil, a saber: (i) a importante participação do e 91% estão de acordo que “em geral, o empreen-
Estado no suporte à qualificação de start-ups reali- dedor de start-up trabalha mais do que um funcio-
zadas por empresas privadas e autônomas e (ii) a nário assalariado” (Maia, 2016a, p. 65).
produção de valor mediante movimentos de circu- Quanto à dinâmica de movimentos de circula-
lação em âmbito não mercantil. ção que produzem valor, ela é mais bem apreciada
O primeiro aspecto é apreciado tomando-se retomando-se as ações dos agentes. Quando, em
a iniciativa nacional de maior relevo no suporte a um demo day promovido por uma aceleradora, um
firmas nascentes de base tecnológica, qual seja, investidor-anjo associa-se a uma start-up, a firma
o Programa Nacional de Aceleração de Start-Ups nascente adquire, quase imediatamente, nova es-
6  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 34 N° 99

timativa de valor graças ao vínculo que enriquece representante da NH Investment, uma empresa
suas credenciais, o que acaba por repercutir no re- que “realiza investimento em start-ups de internet
torno esperado pelo primeiro agente (a aceleradora) e tecnologia”; o representante da empresa IBM; o
mais adiante. Por sua vez, o anjo coloca em marcha coordenador do “departamento de relações com
outros movimentos, tencionados a alcançar junto start-ups” da empresa Google; o autointitulado
ao agente conseguinte, notadamente empresas de “ex-executivo do mundo corporativo, mentor
venture capital, um novo vínculo agregador de va- da Endeavor, mentor da Innovativa e membro da
lor. Daí decorre o grande empenho dos qualifica- Anjos do Brasil”; e o coordenador do Núcleo
dores em fazer com que as start-ups iniciantes, às de Empreendedorismo da Universidade de São
quais se associam, circulem por eventos onde são Paulo. Finalmente, dez empreendedores são convi-
exibidas a novos potenciais investidores. Essa circu- dados, um a um, a subir ao palco a fim de apresen-
lação permite às firmas, mesmo ainda em fase não tar seus negócios à banca e aos potenciais investido-
mercantil, concentrarem valor de troca. E, como se res presentes na plateia.
pretende demonstrar a seguir, com a análise de uma
situação típica de interação entre empreendedores e A definição consensual da realidade
investidores, os elementos simbólicos são parte fun-
damental desse processo. A estratégia discursiva dos empreendedores
apoia-se em uma profusa citação de dados quan-
titativos, que pretende demonstrar que o mercado
As performances e estratégias discursivas a ser explorado pela start-up é, em uma palavra,
“grande”. Como os empreendedores sabem, por
Ainda no saguão que antecede o auditório da meio de seus qualificadores, que os investidores não
empresa Telefonica, onde ocorre o demo day da 12ª têm interesse em negócios limitados, de antemão,
edição do Start-Up Farm, vê-se a frase I’m a startup pelo tamanho do mercado consumidor, eles se es-
kid estampada na camiseta de um dos visitantes do forçam em palestrar sobre projeções expansíveis,
evento, sugerindo que atributos como juventude e tais quais as abaixo.
internacionalização estão na pauta dos atores pre-
sentes. Mais adiante, duas garotas uniformizadas O anticoncepcional é a segunda classe de me-
carregam mochilas de formato cilíndrico gravadas dicamento mais vendida da indústria farma-
com a marca da bebida energética Red Bull, em cêutica, atrás somente do mercado dos analgé-
uma ação publicitária que parece mirar um públi- sicos. Ele faturou 2,4 bilhões de reais; e quem
co cujo discurso é fortemente marcado pelo elogio movimentou esse mercado foram 16 milhões
ao trabalho em intensidade desmedida – a própria de mulheres. Essa mulher não compra só an-
nomenclatura de eventos como “viradas empreen- ticoncepcionais, ela é a segunda maior consu-
dedoras” e start-up weekends, que perduram por até midora de produtos de higiene pessoal, per-
48 horas, remete a essa ideia. Quando, enfim, o fumaria e cosméticos do mundo. Um milhão
auditório do evento é aberto, uma música hip-hop de mulheres gastam 518 reais por ano só com
ecoa em alto volume como se voltada a elevar o âni- anticoncepcionais. (Gabriela, empreendedora
mo dos espectadores. da start-up CicloCerto em palestra).
O apresentador convida ao palco os jurados
que elegerão a start-up mais interessante do grupo Temos, no Brasil, mais de 280 milhões de linhas
das recém-qualificadas – aquela que será reporta- [telefônicas]; cerca de 42 milhões são do merca-
da em revistas e websites especializados como uma do corporativo; 33 milhões são linhas que con-
firma promissora. São eles, nas palavras do apre- tratam gestores das operadoras, e é esse mercado
sentador: a diretora executiva da Anjos do Brasil, que nós vamos focar agora. (Paulo, empreende-
uma “organização de fomento ao investimento anjo dor da start-up Telepon em palestra).
e de apoio ao empreendedorismo de inovação”; o
COMO AS START-UPS CRESCEM?  7

O mercado de comer fora é de 133 bilhões de -qualificados sabem que os investidores procuram
reais; a fatia desse mercado de almoço e jantar identificar start-ups capazes de cumprir seus planos
é de 83 bilhões; voltados para a classe A/B, são velozmente; mas, como a conquista instantânea de
38 bilhões de reais; e o nosso target Market, que determinado mercado corre o risco de resvalar na
é da culinária gourmet, é de 6,5 bilhões de reais farsa, eles discursam sobre um futuro que obedece a
anualmente aqui no Brasil. E esse mercado está etapas progressivas de construção. Ou seja, concen-
em franca expansão, nos últimos 5 anos, ele tram-se em demonstrar que operam certas formas
cresceu 80% e tem uma previsão de crescer mais de controle do futuro.
40% nos próximos (Rafael, empreendedor da
start-up Home Bistro em palestra). Em agosto de 2015, a gente vai lançar o aplica-
tivo; e, em maio de 2016, nossa plataforma fica
Nós estamos falando de um mercado de 745 full. Em janeiro de 2017, a gente sai do estado de
bilhões de reais; o mercado que nos interessa São Paulo e atinge as outras cidades com mais de
movimenta 11 bilhões para bens de consumo um milhão de habitantes. (Gabriela,empreende-
e 25 bilhões para outros serviços, totalizando dora da start-up CicloCerto em palestra).
um potencial de 36 bilhões de reais, onde po-
demos alcançar até 1,5 [bilhão] de estabeleci- Iniciaremos a nossa estratégia de entrada no
mentos entre empresas de comércio e serviço. mercado, onde focaremos alcançar 25 institui-
(Paolo, empreendedor da start-up Ecrediário ções financeiras e 40 mil estabelecimentos co-
em palestra). merciais e de serviços, começando pelas regiões
Centro-Oeste e Sudeste, para depois avançar
O mercado de aplicativos atingiu 3 milhões de [em] nível Brasil. (Paolo, empreendedor da
apps e 420 bilhões de faturamento. [...] Com 3 start-up Ecrediário em palestra).
milhões de aplicativos, nós sabemos que 600
mil são apps realmente ativos. Colocando nosso E como que a gente vai começar a atacar esse
ticket médio para esse público, fica 1,4 bilhão mercado? A partir do estado de São Paulo, que
do mercado. (Leandro, empreendedor da start-up tem mais de 300 revendas ativas. Nós temos 40
Rank My App em palestra). delas mapeadas e temos uma meta muito sim-
ples: captar uma revenda por mês. (Paulo, em-
Com o propósito de fornecer à plateia dados preendedor da start-up Telepon em palestra).
suficientes para a avaliação de suas start-ups, os em-
preendedores projetam mundos que, ao observador Mas como é que vamos para esse mercado?
externo, parecem exagerados. A situação, entretan- Com atividades de marketing que já estamos
to, mostra-se crível, pois resulta de um processo de fazendo, como blogs, palestras, artigos publica-
negociação entre os interlocutores, que culmina na dos. E, como nosso algoritmo é global, vamos
partilha dos sentidos da representação. Mas como começar a expansão em âmbito global. (Lean-
os empreendedores em palestra alcançam êxito na dro, empreendedor da start-up Rank My App
definição consensual da realidade? em palestra).
Em primeiro lugar, embora os discursos enun-
ciem futuros, é a atualidade que fornece o mate- Entramos na Start-Up Farm em maio [...], en-
rial semântico a lhe emprestar veracidade. O me- traremos no Rio de Janeiro e em Minas Gerais
canismo é simples: o empreendedor aponta certa através de correspondentes locais que vão fazer
demanda consumidora até então inobservada pelas a ativação [...]. Até o final do ano, a gente es-
empresas estabelecidas, atribui a ela significados de pera ter recebido o primeiro aporte de inves-
potência econômica e, então, imagina um cenário timento e, aí sim, dar um passo fora do país.
no qual sua start-up domina a exploração de tal (Rafael, empreendedor da start-up Home Bis-
demanda. Nessa rota, os empreendedores recém- tro em palestra).
8  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 34 N° 99

O plano imaginado é estrategicamente apre- razão da palestra, mas, sim, o palestrante – aquele
sentado como uma evolução histórica do porvir: que incorpora o texto. Para o empreendedor bem
a start-up introduz seu produto em um mercado transmitir quem ele é, texto e performer devem se
regional, depois expande sua atuação para regiões fazer alinhados em uma única persona, de modo
vizinhas, em seguida alcança o Brasil e, invaria- que a plateia recepcione uma performance cuja na-
velmente, conquista todo o globo. Essa estratégia turalidade não deixe dúvida de que se trata de um
deixa ver que, apesar de ricas em dados que lhes empreendedor capaz de reconhecer e de sinalizar
conferem certo tom de acurácia, as palestras são um disposição em perseguir as expectativas dos investi-
exercício de imaginação, que se sustenta como crí- dores capitalistas. Assim, para se fazer convincente,
vel não apenas por conta da partilha situada dos o empreendedor empenha-se em contextualizar seu
sentidos, mas também porque descansa sobre uma personagem, ou seja, trabalha para alinhar seu tex-
simbolização firmada na retórica da racionalidade to (pautado em projeções sobre o futuro) à situação
administrativa. Ou seja, a persuasão acerca de futu- (que se desenrola no presente). E como o faz? Se,
ros imaginados encontra seus caracteres de verdade na linguagem teatral de Goffman, uma atriz infan-
em sentidos abrangentes, construídos em espaços til que interpreta uma pequena operária inglesa do
sociais conexos às situações em tela. Assim, como “o século XIX “se transporta” para o ambiente fabril, vi-
mundo das finanças se caracteriza por uma maior sualizando teares em movimento, incorporando fei-
ou menor capacidade de impor um sentido compar- ções e trejeitos caros à sua personagem, o mesmo faz
tilhado por toda a sociedade sobre o significado dos o empreendedor de start-up: ele se insere no tempo
eventos que transcorrem no seu interior e, especial- histórico de seu personagem. E, embora esse tempo
mente, em suas fronteiras” (Grün, 2016, p. 404), lhe seja desconhecido, nada impede que seja vislum-
aqui parece estar-se diante de uma imposição de brado. Essa, aliás, é a expectativa. Assim, ao procla-
sentidos, capaz de alcançar o espaço no qual os mar um mercado bilionário, no qual sua start-up
agentes ainda ensaiam acesso ao mercado. está prestes a se inserir, o empreendedor toma esse
Daí advém a ênfase dos empreendedores em cenário como base para a apresentação de si e passa
discursar sobre a aplicação de ferramentas de gestão a respirar os ares da cena que pretende fazer real, dis-
e de sistemas de avaliação direcionados a definir a cursando, enfim, não como um empreendedor tradi-
importância de suas ações nos mercados. Em uma si- cional, mas como um futuro bilionário.
tuação de incerteza, na qual se almeja um acordo, os
atores esforçam-se em demonstrar que estabelecem A produção da unicidade das palestras
a correta ordem de grandeza dos elementos delimi-
tados pelo mercado, com uma gramática baseada na Um aspecto central das palestras, tal qual teo-
eficácia e na produtividade (Boltanski e Thévenot, rizado por Goffman (1995), refere-se à fresh talk
1999). Por essa ótica, os intermediários são funda- illusion. Segundo essa noção, os palestrantes procu-
mentais não apenas porque aprimoram firmas nas- ram introduzir elementos inéditos em suas apresen-
centes, mas porque fazem com que as projeções de tações, de maneira a torná-las singulares. Trata-se
novos negócios sejam recepcionadas como evidentes. de um acordo tácito entre palestrante e plateia, que
Isso, pois, tais intermediadores são, ao mesmo tem- conforma uma interpretação benéfica a ambos. Nes-
po, os portadores do arbitrário cultural do mundo se acordo, o texto ensaiado, e comumente proferido
financeiro e os avalizadores das representações mo- pelo palestrante em diferentes ocasiões, é recepcio-
bilizadas em eventos localizados em uma espécie de nado como único pelos espectadores. Mais do que
“área de embarque” dos mercados. um conceito discursivo acessório, para Goffman
O segundo fator relevante em relação ao êxito (1995, p. 172), “um grande número de palestras
de empreendedores de start-ups na definição con- depende de uma ilusão de frescor na fala”, pois a
sensual da realidade diz respeito à incorporação de plateia que assiste a uma palestra é motivada pelo
signos caros à plateia. Observe-se que, como as- autor “personificado”, não pelo texto. É, com esse
sinala Goffman (1976), o texto proferido não é a intento, que os palestrantes introduzem, em seus
COMO AS START-UPS CRESCEM?  9

discursos, elementos como piadas, anedotas e co- riodicamente, constata-se que almejam tornar suas
mentários que escapam ao tema e marcam a perfor- palestras únicas ao introduzirem notícias recentes
mance como única para quem a presencia “ao vivo”. e diretamente relacionadas ao desenvolvimento da
No caso dos empreendedores de start-ups, firma, mobilizando expressões como “a gente aca-
dado o brevíssimo tempo de apresentação, o ritmo bou de fechar…” e “já vem acontecendo…”. Em-
de fala é tal que a precisão no encadeamento das preendedores e plateia parecem, enfim, comparti-
frases quase não permite pausas. Em geral, esgota- lhar a crença de que a cena que ali se desenrola é
do o tempo da palestra, a captação do microfone é legítima, importante e compensatória.
simplesmente cortada; e, nas palestras ainda mais Para melhor expor essa ideia, vale deixar a si-
curtas, é comum que uma buzina em alto volume tuação analisada em suspenso e recorrer a duas
interrompa o palestrante. Curiosamente, mesmo cenas de bastidores, reveladoras do uso de estra-
diante dessa brevidade, a fresh talk illusion se faz no- tagemas por parte de empreendedores. Elas foram
tar sob uma forma particular, relacionada ao pró- apreendidas durante o workshop de pitch conduzido
prio objetivo da palestra. pelos fundadores de uma start-up de pesquisa de
mercado durante o evento Started/USP, em 15 de
Isso não é uma ideia, é um negócio que já vem junho de 2015.5 Como vencedor de um importan-
acontecendo. Já realizamos 17 eventos, temos te concurso de start-ups, o empreendedor orienta
quatro no ar e um já está esgotado. Engajamos colegas iniciantes nos seguintes termos:
mais de 100 pessoas na ferramenta e temos um
faturamento de mais de 5.400 reais. (Rafael, em- É muito importante você passar que o que você
preendedor da start-up Home Bistro em palestra). está apresentando é the next big thing. É impor-
tante você passar confiança. Tire do seu voca-
Já fechamos parceria com o site Isola Mais, que bulário as palavras “pode”, “estamos tentando”;
vende produtos de isolamento para pequenos você tem que dizer “isso aqui é a solução para
e microempreiteiros do interior de São Paulo e o problema”, “estou criando a próxima start-up
do Nordeste do Brasil. (Fabio, empreendedor de sucesso do Brasil”. Porém, você não deve
da start-up Vihga em palestra). parecer arrogante, porque ele [o investidor] vai
achar que você é daqueles jovens prepotentes
A Ciclocerto já existe e já tem clientes. Hoje, e que não vai ouvir conselhos sobre coisas que
a gente tem 57 clientes só em São Paulo. E, de ele conhece. (Alessandro, empreendedor da
ontem pra hoje, são 62. (Gabriela,empreende- start-up Lean Survey em palestra).
dora da start-up CicloCerto em palestra).
Além disso, para transmitir ao investidor a im-
A gente acabou de fechar uma parceria com pressão de que o projeto será grandioso e, portanto,
uma grande seguradora que vai segurar o carro passível de investimento, vale recorrer a subterfúgios.
durante o período de locação. (Conrado, em- No trecho a seguir, o palestrante do workshop con-
preendedor da start-up Pegcar em palestra). fessa a construção de um case enviesado, que serviu
de “fachada” para ilustrar o progresso do seu projeto.
Já temos clientes e queria anunciar aqui, em
primeira mão, que, durante o Start-Up Farm, Mostramos [na palestra vencedora de um
conseguimos fechar com o maior portal de no- prêmio] uma empresa que contratou a gente,
tícias do Brasil, o G1, que agora é nosso cliente [mas, na verdade, era a empresa de] um ami-
[aplausos]. (Leandro, empreendedor da start- go meu, que é dono de uma start-up. A gente
-up Rank My App em palestra). falou [para o meu amigo] que ia fazer uma pes-
quisa no nome da empresa dele, ele falou “ok”.
Como os empreendedores procuram por capi- A gente fez, ele falou “obrigado” [risos]. E a
tal em diversos eventos e expõem suas start-ups pe- gente colocou lá [na competição de start-ups]:
10  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 34 N° 99

a empresa tal, site tal, a maior do Brasil e tal. Nesse sentido, o combate à incerteza não im-
Os caras [investidores] falaram “nossa!”. [...] pulsiona uma mera reprodução da linguagem fi-
Não interessa [como mostramos progresso], o nanceira e corporativa stricto sensu, mas uma res-
que interessa é que a gente estava progredin- significação que cogita uma retórica acerca da
do. (Fernando, empreendedor da start-up Lean transformação dos mercados e da sociedade como
Survey em palestra). um todo, fazendo-se notar mais claramente, por
exemplo, na linguagem de autoajuda que perpassa
Enfim, mais do que apontar a representativida- setores do chamado mundo dos negócios (Picanço,
de de casos de viés nas palestras de empreendedo- 2013; Leite e Melo, 2008; Martelli, 2006). Trata-se
res, importa indicar que, além de sinalizar o caráter de uma virada de significados importante, pois po-
contínuo, sempre fresco e veloz de suas start-ups, os siciona as empresas estabelecidas como antagonis-
empreendedores procuram mobilizar recursos dis- tas convenientes à arquitetura de uma eloquência
cursivos que emprestam deslumbramento aos jogos sobre o novo e o moderno, que é cara ao empreen-
desenrolados ao longo dos concursos de start-ups de dedorismo. Assim, em qualquer evento do setor se
que participam. ouvem discursos sobre um empreendedor que vai
“transformar” o mercado de armazenamento de da-
A língua franca dos empreendedores dos digitais, outro que irá “revolucionar” o modo
como as pessoas se transportam nas cidades, ou um
A sustentação das situações de busca por capi- terceiro que, com uso de um aplicativo de celular,
tal depende, ainda, de um elemento primordial: a vai “mudar radicalmente” a forma como os consu-
língua. Afinal, os colegas “apresentam as mesmas midores pedem seus jantares. É essa estratégia que
práticas à mesma espécie de plateia” e, como têm de permite aos empreendedores que alcançaram suces-
se revestir da mesma espécie de representação, “vêm so assumam, nesse ponto, uma representação social
a falar a mesma língua social” (Goffman, 2002, p. firmada na persona do herói modernizador.
149). Além de operarem como signos de pertenci- Ao eludir e ressignificar termos do mundo das
mento ao grupo, diversos termos desse espaço social finanças e das grandes corporações, a língua franca
expressam o contexto de ações de combate à insegu- dos empreendedores de start-ups não é apenas um
rança: é preciso “validar”, “prototipar”, elaborar “bu- interconector em um mercado local, mas, como os
sinesses plans”, produzir “minimum viable products”. agentes almejam a calculabilidade, a estabilidade
Contudo, a língua franca dos empreendedores nos mercados e a expansão em nível global, é uma
não se erige desde o inédito, há ressignificação de ter- língua que põe aquele que a fala em linha com um
mos – muitos deles de língua inglesa – que circulam, modo de cognição, que é norma nos movimen-
principalmente, no mundo das finanças e da ad- tos de renovação do capitalismo contemporâneo.
ministração de empresas globais. É uma linguagem Como afirmam Boltanski e Chiapello (2009, p.
que lhes permite passarem a compartilhar o mesmo 33), se há um amplo “conjunto de crenças compar-
espaço semântico em vigor em boards corporativos, tilhadas, inscritas em instituições, implicadas em
venture capital firms e similares, sem deixarem de ob- ações e, portanto, ancoradas na realidade”, que ser-
servar o contexto em que estão imersos. Isso ocorre ve à consolidação de um “novo espírito capitalista”,
porque convém a eles emitir, desde cedo, sinais de os empreendedores aqui em tela bem exemplificam
adesão à lógica daqueles espaços sociais. O termo agentes culturalmente moldados, que tencionam
break even, por exemplo, mobilizado por empreen- agir criativamente nos mercados. Dessa forma, a
dedores para nomear o momento futuro em que a legitimidade do papel das aceleradoras e de seus
firma nascente atingirá equilíbrio entre custos ope- agentes produtores de significados se dá justamente
racionais e faturamento, serve aos investidores como porque os atores mais valorizados no circuito das
sinal semântico de que já há disposição dos atores start-ups são aqueles mais capacitados para “prever,
em aderir aos valores de uma congregação atenta a pressentir e farejar os elos que merecem ser estabe-
sistemas de avaliação de desempenho empresarial. lecidos” (Boltanski e Chiapello, 2009, p. 145).
COMO AS START-UPS CRESCEM?  11

O discurso e a performance na dinâmica A noção assenta-se em um argumento con-


capitalista veniente porque converge com os achados aqui
expostos. A grande frequência com que os inves-
Diante do exposto, o aspecto intrigante a se timentos em empresas nascentes fracassam, bem
enfatizar é que, ainda quando os empreendedores como os casos raríssimos em que os ganhos supe-
aprimoram seus projetos e se preparam para buscar ram em muito as expectativas dos agentes de mer-
capital, eles estão produzindo valor por meio da ob- cado, indicam que, a despeito das salvaguardas ins-
servação cuidadosa de padrões culturais que deter- titucionais, os retornos de investimentos não são
minam a trocabilidade de suas firmas nascentes nos plenamente calculáveis (Knorr-Cetina, 2015). Daí
contextos sociais em que circulam. A passagem das decorre a ênfase dos empreendedores à procura de
start-ups ao estado de mercadoria é, pois, resultado capital em tornar suas projeções sobre o futuro tan-
da interseção de fatores culturais e sociais, sendo ir- gíveis aos investidores-anjo. É preciso, desde cedo,
redutíveis a meros regimes de produção de mercado demonstrar que a firma nascente mobiliza as ferra-
guiados pelas leis de oferta e demanda. Assinale-se mentas e as técnicas de gestão adequadas; e essa de-
que, na fase não mercantil aqui examinada, não há monstração apoia-se, como se buscou expor aqui,
produto acabado, não há firma estabelecida e se- em discursos e em performances, principalmente.
quer há lucro; há, no entanto, uma trocabilidade A esse respeito, vale destacar o nome utilizado
futura, que empresta sentido à ação dos agentes. Os por investidores capitalistas para definir o grupo das
elementos de representação social são tão primor- start-ups mais almejadas no mercado. Elas são os
diais no movimento de prospecção por capital que, “unicórnios”, firmas nascentes que alcançam valor
no limite, operam como uma espécie de fator de de mercado de 1 bilhão de dólares e que estão, por
produção da ação econômica capitalista. esse motivo, na mira de ação preferencial daqueles
Beckert (2013), ao se debruçar sobre a ordem agentes. O unicórnio possui um corpo de cavalo
temporal da dinâmica capitalista, destaca que os reconhecível, mas tem uma cabeça de veado muni-
atores são levados a se orientarem na direção de um da de chifre único e longo. A imagem fornece um
futuro aberto, que representa uma ameaça perma- bom exemplo, pois, de um lado, alude ao incrível,
nente aos seus status econômicos, mas também uma ao extremamente raro e, de outro, refere-se a uma
promessa de possibilidades ilimitadas. Para o autor, capacidade ilimitada, a um poder imensurável. Ou-
conquanto, no nível macro, as ações induzidas pela trossim, a metáfora é útil, pois esse ser mitológico
orientação temporal dos atores produzem tanto crises combina partes reconhecíveis com elementos mági-
quanto crescimento econômico; no nível micro, essa cos; algo que, no plano da mimese, os empreende-
ordem temporal se manifesta sob a forma de “futuros dores à procura de capital também levam a termo.
imaginados” de concretização incerta. Assim Beckert De fato, além de exibirem dados concretos sobre o
(2013, p. 222) descreve essa ideia: “eu me refiro a pre- desenvolvimento presente de suas firmas e de de-
sentes imaginados de situações futuras, que fornecem monstrarem suas ferramentas de administração de
orientação para a tomada de decisões, apesar das in- firmas nascentes, eles elaboram uma estratégia dis-
certezas inerentes à situação. Ao não se prenderem a cursiva que “precisa parecer coerente para criar uma
cálculos racionais, projeções não precisam ser verda- ‘história’ convincente sobre o desenvolvimento fu-
deiras, apenas convincentes”. Nessa direção, além dos turo do fenômeno em questão” (Beckert, 2013, p.
cálculos de previsibilidade e dos sistemas de avaliação 224). Ou seja, não importa a esses empreendedores
de crescimento, as expectativas cumprem um papel apenas demonstrarem que há um sistema de con-
relevante nas decisões dos atores imersos em contextos trole, é preciso que a narrativa de encantamento da
de incerteza. O ponto central é que, para o autor, tais plateia se faça coerente aos dados informados.
expectativas emergem como “um processo de constru- Dessa forma, não é incomum encontrar, por
ção de significado, informado pelos traços culturais e exemplo, fundadores de start-ups do setor finan-
pelo poder social”, que se situa “no coração das lutas ceiro que mobilizam uma narrativa pautada no
de mercado” (Beckert, 2017, p. 186). abandono de uma vida de altos ganhos financei-
12  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 34 N° 99

ros – experimentada ao longo de suas carreiras em passado para, então, retraçar a trajetória da firma,
grandes empresas do setor – em prol do desafio de de modo a produzir a coerência esperada. “Vejam
empreender. O pitch do fundador da Wordpackers, como aquela start-up de garagem, na qual alocamos
bastante difundido no circuito das start-ups brasi- nossos recursos, cresceu”, dizem os empreendedo-
leiras, revela a multiplicidade de alinhamentos dis- res e investidores bem-sucedidos. Obviamente, o
cursivos possíveis. O empreendedor diz que, após argumento ignora o montante de firmas nascentes
pedir demissão do banco de investimentos onde que não alcançam sucesso de mercado, preferindo
trabalhava, viajou por mais de 40 países durante identificar uma origem pobre apenas entre aquelas
três anos, logo montou dois hostels na Califórnia, que se fizeram ricas. Assim, o discurso de origem
acumulou experiência e, quando retornou ao Bra- das start-ups empresta sentido ao arbitrário cultu-
sil, realizou o maior sonho de sua vida: criar uma ral, que apresenta o empreendedorismo como uma
start-up que, por uma plataforma digital, liga hostels ação de “caráter evidente” (Bourdieu, 1983, p. 47)
a pessoas interessadas em trocar sua força de traba- na atualidade. Nela, todo o conjunto articulado de
lho por estadia. metáforas observado no circuito das start-ups parece
ter se transformado em sistema classificatório nati-
vo e não passível de disputa. Note-se que as críticas
A mágica do circuito das start-ups ao empreendedorismo são raras, e quando ocorrem,
partem da mesma doxa econômica, terminando as-
Desvendadas essas características acerca dos sim por reiterar a hierarquia cultural imposta.
materiais significantes, resta fornecer pistas inter- Mas é preciso destacar que a produção sim-
pretativas a respeito do círculo de crenças ao qual bólica que sustenta a incessante criação e financia-
todo o conjunto simbólico aqui exposto está sub- mento de start-ups só mantém seu vigor porque há
metido. Isso, pois, além de tencionar o matching agentes profissionais nela envolvidos. Para sumaria-
com investidores, as palestras de empreendedores mente expor essa interpretação, vale recorrer à ana-
de start-ups cumprem o papel social de fixar um logia com o campo simbólico da religião, que serve
discurso fundante, que serve ao empreendedorismo como paradigma de análise sociológica da compo-
de base tecnológica como um todo. Como se viu, sição interna de sistemas simbólicos (Miceli, 2004,
diante de investidores, o empreendedor pretende, p. 59). Pela grade weberiana, os sacerdotes seriam
como um pai, exibir sinais que apontem que aquele agentes especializados que se organizam como uma
“ser”, ainda frágil e dependente de cuidados, terá empresa para transmitir um saber específico sob a
um futuro brilhante: um rosto belo, pernas bem forma de uma doutrina difundida em cultos regu-
formadas, um apetite exemplar e tudo mais que lares. Do mesmo modo, no sistema simbólico das
sirva como indicador de que o recém-nascido cres- start-ups, parece claro que as aceleradoras e seus
cerá forte e rapidamente. Esse discurso, serve, ime- qualificadores e “mentores” cumprem exatamente
diatamente, à atração de capital, mas, servirá, mais esse papel, já que, além de se dedicarem a proble-
adiante – caso a firma seja bem-sucedida no merca- mas práticos, como os modos legítimos de prospec-
do –, como comprovante da correção da previsão ção de recursos, voltam-se à regulação da vida coti-
anunciada pelo empreendedor. E é nesse ponto que diana dos empreendedores iniciantes à medida que
o discurso, antes local, mostra sua força abrangente. lhes impõem uma ética particular de conduta. Por
Assim, designa-se “discurso de origem” o dis- sua vez, os empreendedores demandantes de capital
curso de prospecção de capital. Ao envolver os estão posicionados como leigos, já que conformam
agentes em representações e símbolos, o discurso um grupo que espera encontrar sentido para suas
de origem alimenta um sistema simbólico, que su- ações e ao qual as empresas sacerdotais das acelera-
porta a criação de start-ups. Posteriormente, ao ser doras se dirigem quando à procura de novos adep-
acionado quando a firma já se encontra estabelecida tos. Quanto ao papel dos investidores, parece claro
no mercado, esse discurso pauta-se em um sofisma que eles são os verdadeiros empresários da salvação,
que parte de um resultado conhecido e recorre ao os magos que fornecem o elemento mágico que
COMO AS START-UPS CRESCEM?  13

dota de potência aqueles leigos dispostos a aderir à intelectuais, seus quadros dissimulam um embate
conduta indicada. que, utilizando uma linguagem especialmente le-
Resta, então, identificar os agentes que produ- gitimada (Idem, p. 23), corrobora a elaboração de
zem os discursos e práticas que são tomados como discursos que vão dinamizar o confronto entre tra-
revelações pelos leigos. Como já se viu anterior- dição e inovação e, assim, terminam por contribuir
mente, quando da análise de uma situação circuns- com a estabilização de todo o conjunto simbólico,
crita, o mundo das start-ups é guiado por signos uma vez que o efeito ideológico de suas postulações
do futuro; agora, sob um ângulo abrangente, que parecem evidentes (Grün, 2007, pp. 400-401).
se beneficia da analogia weberiana, percebe-se que Não sem razão, as parcerias entre universidades
esse futuro é anunciado e difundido por grandes brasileiras e instituições de fomento a start-ups
profetas, notáveis portadores dos já mencionados seguem aquecidas, encobrindo aquela relação de
discursos de origem. Trata-se, em regra, de ex-em- forças em eventos de fomento à inovação e ao em-
preendedores que se tornaram grandes investidores, preendedorismo, que se prestam, mais uma vez, ao
como Peter Thiel (PayPal) e Mark Zuckerberg (Fa- permanente recrutamento de novos fieis.
cebook) –, cuja eloquência sobre negócios e inova- Assim, os profetas da mudança que versam so-
ções é recepcionada como mensagem divina pelos bre, por exemplo, os benefícios modernizadores de
empreendedores leigos. Assim o é, pois, como se motoristas da Uber diante de tradicionais taxistas,
viu, uma vez constatado o feito de sucesso, recorre- ou de apartamentos residenciais da Airbnb perante
-se ao passado para lá se registrar a profecia original, ordinários quartos de hotel, encobrem a continui-
a qual, enfim, eleva seu portador à posição de visio- dade que o aparato de agentes institucionalizados
nário. Trata-se de uma produção incessante que, na coloca em curso. Assim, é a congregação de intera-
atualidade, se reconhece, por exemplo, no discurso ções entre investidores, qualificadores e a massa de
envolvendo os carros autoguiados e no esforço do leigos que possibilita a continuidade da “revelação”
empresário Elon Musk (Tesla) de encontrar subs- do empreendedorismo de base tecnológica, pois é
trato capaz de o ungir – caso esse negócio prospere ela que provê aquele conjunto dos recursos necessá-
no mercado – como o próximo grande profeta. rios à sua existência.
Finalmente, aponta-se que a unidade desse Enfim, é nesse ponto que se encontra a mágica
corpo religioso se dá em torno de um único deus do circuito das start-ups. Conquanto as forças em
abstrato: a inovação – mais precisamente, a trans- jogo coloquem os empreendedores iniciantes em
formação social por meio de dispositivos tecnológi- posição de dependência – de capital e de laços so-
cos. Essa espécie de vontade divina – intermediada ciais especialmente –, são eles que nutrem o apara-
pelos grandes profetas – alcança a legião de leigos to institucional do seu recurso indispensável, qual
em cultos regulares, nos quais a palavra a ecoar, ano seja, a ação econômica capitalista baseada na expec-
após ano, é a “disrupção”. Nos grandes eventos de tativa de lucro. De fato, embora a firma nascente
start-ups, o caminho da correição é sempre contrá- careça de intermediários capazes de fazê-la circular
rio ao estabelecido, ou seja, é sempre moderniza- como objeto econômico crível, é sobre o empreen-
dor, “revolucionário”. Ocorre que, como demonstra dedor que recai todo o custo da produção criativa
Bourdieu (1983), a força da profecia contracultural daquele objeto. Ao ouvirem o chamado contracul-
deriva de grupos que contestam a ordem vigente, tural dos grandes profetas, ao se debruçarem sobre
justamente porque querem ver suas posições sociais livros de empreendedorismo canonizados por uni-
avançarem. Dessa forma, no circuito das start-ups, versidades de negócios e ao recepcionarem uma re-
a profecia da disrupção presta-se a um rearranjo do tórica hegemônica que representa a inovação como
mundo simbólico, firmado na relação entre profe- uma espécie de vontade divina, os empreendedores
tas, sacerdotes e leigos. leigos apresentam sua disposição em atender a certo
Nesse processo de reconfiguração, o papel ca- modo de conduzir a vida. E eles o fazem em troca
nonizador das universidades é essencial. Por ocu- da salvação ofertada pela congregação, qual seja, a
parem uma posição distintiva, ligada às credenciais oportunidade de produzir trocas ricas e abundantes
14  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 34 N° 99

materializadas na forma de carreiras, reputações e negócios, para alinhá-los ao contexto de incerteza


identidades legítimas. Em suma, como coloca Grün no qual os agentes das start-ups estão imersos, sem
(2016, p. 417), relembrando Mauss, “a magia só é deixar de sinalizar a disposição de adesão aos va-
possível com a cumplicidade dos implicados”. lores daquele mundo. Enfim, argumentou-se que
Afinal, se, na atualidade, os atores dotados de as start-ups possuem uma trocabilidade futura cara
“intuição e talento” agem animados a “varrer com o à economia contemporânea, que encontra sentido
olhar o mundo que os cerca em busca de sinais iné- em discursos e performances.
ditos” (Boltanski e Chiapello, 2009, p. 145), pro- O discurso dos empreendedores de start-ups
curou-se, neste artigo, apresentar evidências sobre à procura de capital se erige, outrossim, como um
como a teodiceia da acumulação de valor por parte discurso de origem, o qual alimenta um sistema
de firmas em fase pré-mercantil tem sua alquimia simbólico, que empresta sentido ao arbitrário cul-
efetuada ao longo de um circuito que, perpassado tural do empreendedorismo de base tecnológica
por intermediários, parece, ao fim, voltado a “obter como um todo. Sustentou-se que o caráter mo-
e moldar o consenso, fazendo com que a garantia dernizador desses discursos se volta, justamente,
de legitimidade das classes dominantes pareça não ao rearranjo de um mundo simbólico firmado na
só espontânea, mas natural” (Hall, 1984, p. 38). relação entre agentes profissionais e leigos. Por fim,
argumentou-se que, ao aderirem à congregação, os
empreendedores acabam por nutrir o aparato insti-
Conclusão tucional com ações criativas, baseadas na expectati-
va de lucro, recurso que lhe é indispensável.
Este artigo tratou dos elementos simbólicos
envolvidos nas trocas econômicas, mediante a cons-
trução de um objeto passível de análise empírica Notas
concreta, a saber, as performances e os discursos mo-
bilizados por empreendedores de start-ups de base 1 Trata-se da busca desses agentes por novas combina-
tecnológica à procura de capital. Verificou-se que, ções de elementos culturais, capazes de edificar argu-
como os empreendedores precisam alinhar suas per- mentos úteis à sustentação de suas posições sociais.
formances às expectativas de investidores que pros- 2 O evento foi aberto ao público geral e à imprensa
pectam negócios capazes de crescer e de ganhar va- mediante inscrição prévia. As falas aqui transcritas
lor de mercado rapidamente, eles mobilizam signos se referem a palestras que se deram, em palco, nessa
ocasião.
que os representam como portadores de futuros
promissores. Para tal, os empreendedores partem 3 Investidores-anjo são pessoas físicas que investem em
start-ups. Como ocupam posições centrais nas redes
de dados do presente e projetam histórias de negó-
sociais de setores econômicos em que os empreende-
cios, que culminam, invariavelmente, na conquista
dores esperam se inserir, os anjos também mobilizam
de mercados de consumo globais. Constatou-se, as- outros atores capazes de incrementar o crescimento
sim, que o futuro é o elemento-chave a orientar as das firmas nascentes em que investem (Aldrich, 2005).
interações entre os atores, levando os empreende- Apesar de conduzirem investimentos temporários, os
dores à procura de capital a incorporarem a persona anjos não integram formalmente o setor de Private
do “futuro bilionário”. Equity e Venture Capital (PE/VC) e são considerados
Notou-se que os empreendedores praticam investidores-informais (ABDI, 2011, p. 105).
um tipo de fresh talk illusion, fundamentada na in- 4 Todas as traduções de citações em língua estrangeira
trodução de notícias tempestivas sobre conquistas foram feitas por este autor.
recentes de suas start-ups, que empresta ineditismo 5 O evento foi aberto ao público geral e à imprensa
a palestras pré-moldadas e indica que os negócios mediante inscrição prévia. As falas aqui transcritas
têm dinâmica incessante e veloz. Demonstrou-se, se referem a palestras que se deram, em palco, nessa
ainda, que os empreendedores dominam uma lín- ocasião
gua franca, que ressignifica termos do mundo dos
COMO AS START-UPS CRESCEM?  15

BIBLIOGRAFIA start-up brasileira”. Trabalho apresentado no 39º


Encontro Anual da Anpocs, Caxambu, MG.
ABDI – Agência Brasileira de Desenvolvimento In- FERRARY, Michel & GRANOVETTER, Mark.
dustrial. (2011), Introdução ao Private Equity e (2009), “The role of venture capital firms in
Venture Capital para Empreendedores. Brasília, the Silicon Valley’s complex innovation ne-
ABDI, Centro de Estudos em Private Equity e twork”. Economy and Society, 18: 326-359.
Venture Capital. FLIGSTEIN, Neil & DAUTER, Luke. (2012), “A
ALDRICH, Howard. (2005), “Entrepreneurship”, sociologia dos mercados”. Cadernos CRH, 25
in R. Swedberg e N. Smelser (orgs.), The han- (66): 481-504.
dbook of economic sociology, Nova York, Russell FREIRE, Carlos. (2014), Biotecnologia no Brasil:
Sage Foundation/Princeton University Press. uma atividade econômica baseada em empresa,
BECKERT, Jens. (2013), “Imagined futures: fic- academia e Estado. Tese de doutorado. São
tional expectations in the economy”. Theory Paulo, USP.
and Society, 42: 219-240. GOFFMAN, Erving. (1976), The lecture. Katz-
BECKERT, Jens. (2017), “Reimaginando a dinâ- -Newcomb, Memorial Lecture, University of
mica capitalista: expectativas ficcionais e o ca- Michigan.
ráter aberto dos futuros econômicos”. Tempo GOFFMAN, Erving. (1995), Forms of talk. 3 ed.
Social, 29 (1): 165-189. Philadelphia, University of Pennsylvania Press.
BOLTANSKI, Luc & CHIAPELLO, Eve. (2009), GOFFMAN, Erving. (2002), A representação do eu
O novo espírito do capitalismo. São Paulo, na vida cotidiana. 19. ed. Tradução de Maria
WMF Martins Fontes. Célia Santos Raposo. Petrópolis, Vozes.
BOLTANSKI, Luc & THEVENOT, Laurent. GRANOVETTER, Mark. (1985), “Economic ac-
(1999), “The sociology of critical capacity”. Eu- tion and social structure: the problem of em-
ropean Journal of Social Theory, 2 (3): 359-377. beddedness”. American Journal of Sociology, 91
BOURDIEU, Pierre. (1983), “Esboço de uma teo- (3): 481-510.
ria da prática”, in R. Ortiz (org.), Pierre Bour- GRÜN, Roberto. (2007), “Decifra-me ou te devo-
dieu: sociologia, São Paulo, Ática. ro! As finanças e a sociedade brasileira”. Mana,
CALLON, Michel. (1998), “Introduction: the 13 (2): 381-410.
embeddedness of economic markets in econo- GRÜN, Roberto. (2016), “Capital cultural e do-
mies”, in M. Callon, The laws of the markets, minação social: as pistas e os problemas levan-
Oxford, Blackwell. tados pela dominação financeira no contem-
CASTILLA, Emilio et al. (2000), “Social ne- porânea”. Revista Estado e Sociedade, 31 (2):
tworks in Silicon Valley”, in C. Lee et al. 403-431.
(org.), The Silicon Valley edge: a habitat for in- GUIMARÃES, Sonia & AZAMBUJA, Lucas.
novation and entrepreneurship, Stanford, Stan- (2010), “Empreendedorismo high-tech no
ford University Press. Brasil: condicionantes econômicos, políticos
COMIN, Alvaro A. & FREIRE, Carlos T. (2009), e culturais”. Revista Sociedade e Estado, 25 (1):
“Sobre a qualidade do crescimento: atores, ins- 93-121.
tituições e desenvolvimento local”. Novos Estu- HALL, Stuart. (1984), “Cultural studies at the
dos Cebrap, 84: 101-125. center: some problematics and problems”, in
DOBBIN, Frank. (2005), “Comparative and his- S. Hall (org.), Culture, Media, Language, Lon-
torical approaches to economic sociology”, in dres, Hutchinson.
R. Swedberg e N. Smelser (orgs.), The han- KNORR-CETINA, Karin. (2015), “What is a fi-
dbook of economic sociology, Nova York, Russell nancial market? Global markets as media-insti-
Sage Foundation/Princeton University Press. tutional forms”, in P. Aspers e N. Dodd (orgs.),
FARIA, Louise. (2015), “O imperativo do sonho: Re-imagining economic sociology, Oxford, Ox-
criatividade, valor e circulação de afetos em uma ford University Press.
16  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 34 N° 99

LEITE, Elaine & MELO, Natália. (2008), “Uma dberg e N. Smelser (orgs.), The handbook of
nova noção de empresário: a naturalização do economic sociology, Nova York, Russell Sage
empreendedor”. Revista de Sociologia e Política, Foundation/Princeton University Press.
16 (31): 35-47. THIELMAN, Sam. (2017), “Tesla surpasses GM
LIE, John. (1997), “Sociology of markets”. Annual to become most valuable car company in US”.
Review of Sociology, 23: 341-360. Disponível em: <https://www.theguardian.
MAIA, Marcel. (2016a), “Características dos em- com/technology/2017/apr/10/tesla-most-
preendedores de startups brasileiras de base -valuable-car-company-gm-stock-price>. Aces-
tecnológica”. Revista de Empreendedorismo, Ne- so em: 10 abr. 2018.
gócios e Inovação, 1: 52-68. VALE, Gláucia & GUIMARÃES, Liliane. (2010),
MAIA, Marcel. (2016b), Como nascem as startups? “Redes sociais na criação e mortalidade de em-
Uma análise microssociológica das performances e presas”. Revista de Administração de Empresas,
estratégias discursivas dos empreendedores à pro- 50 (3): 325-337.
cura de capital. Dissertação de mestrado. São WEST, Karl. (2017), “Sparks fly on Wall Street
Paulo, USP. over Tesla’s current valuation”. Disponível
MARTELLI, Carla. (2006), Autoajuda e gestão de em: <https://www.theguardian.com/busi-
negócios: uma parceria de sucesso. Rio de Janei- ness/2017/apr/15/tesla-electric-cars-sparks-
ro, Azougue. -fly-wall-street-valuation>. Acesso em: 10 abr.
MAZZUCATO, Mariana. (2014), O estado empreen- 2018.
dedor: desmascarando o mito do setor público vs. se- WHITE, Harrison. (1981), “Where do markets
tor privado. São Paulo, Portfolio-Penguin. come from?”. American Journal of Sociology, 87
MICELI, Sergio. (2004), “A força do sentido”, in (3): 517-547.
P. Bourdieu, A economia das trocas simbólicas, ZELIZER, Viviana. (1988), “Beyond the polemics
São Paulo, Perspectiva. on the market: establishing a theoretical and
MILLER, Paul & BOUND, Kirsten. (2011), empirical agenda”. Sociological Forum, 3 (4):
“The startup factories: the rise of accelerator 614-634.
programmes to support new technology ven-
tures”. Disponível em: <http://www.eban.org/
wp-content/uploads/2014/09/14.-StartupFac-
tories-The-Rise-of-Accelerator-Programmes.
pdf>. Acesso em: 5 fev. 2017.
PICANÇO, Monise. (2013), O poder da solução: a
construção do mercado de literatura de autoajuda
(voltada a negócios). Dissertação de mestrado.
São Paulo, USP.
POLANYI, Karl. (1957), The great transformation.
Boston, Beacon Press.
SANTOS, Agnaldo dos. (2006), Entre o cercamento
e a dádiva: a inovação sob cooperação e os cami-
nhos da abordagem aberta em biotecnologia. Tese
de doutorado. São Paulo, USP.
STARK, David. (2009), The Sense of Dissonance:
accounts of Worth in Economic Life. New York,
Russell Sage Foundation/Princeton University
Press.
STEARNS, Linda & MIZRUCHI, Mark. (2005),
“Banking and financial markets”, in R. Swe-
RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS  17

COMO CRESCEM AS START-UPS? HOW DO START-UPS GROW? COMMENT LES START-UPSSE


PERFORMANCES E DISCURSOS THE ROLE OF PERFORMANCES DÉVELOPPENT-ELLES?
DE EMPREENDEDORES À AND DISCOURSES IN SEARCH PERFORMANCES ET DISCOURS
PROCURA DE CAPITAL FOR CAPITAL DES ENTREPRENEURS À LA
RECHERCHE DE CAPITAL

Marcel Maggion Maia Marcel Maggion Maia Marcel Maggion Maia

Palavras-chaves: Empreendedorismo; Keywords: Entrepreneurship; Culture; Mots-clés: Entrepreneuriat; Culture;


Cultura; Microssociologia; Investimento; Microsociology; Investment; Firm; Microsociologie; Investissement; Entre-
Firma; Start-up. Start-up. prise; Start-up.

O artigo analisa as performances e es- The article presents an analysis about the L’article examine les performances et les
tratégias discursivas mobilizadas por performances and discursive strategies stratégies discursives mobilisées par les
empreendedores de start-upsde base mobilized by high-tech start-up entre- entrepreneurs destart-ups du domaine de
tecnológica, à procura de capital. Uma preneurs looking for financial support. la technologie. Une situation typique a
situação típica foi objeto de etnografia, We conducted an ethnographicfieldwork été l’objet de l’ethnographie, à savoir, un
a saber, um concurso no qual empreen- about a specific situation: a competition concours dans lequel les entrepreneurs –
dedores – recém-qualificados por uma of start-ups that occurred in São Paulo, récemment qualifiés par une entreprise
empresa especializada no desenvolvimen- Brazil, in which entrepreneurs that were spécialisée dans le développement de ce
to desse tipo de negócio – competiram recently qualified by a companyspecialized type d’affaire – concourraient à l’attrac-
pela atração de investidores. Por uma in the development of start-ups competed tion des investisseurs. Sous une optique
ótica microssociológica, firmada na teo- for the attention of investors. In a micro microsociologique, établie selon la théorie
ria goffmaniana, a pesquisa revela que os sociological level, supported by Erving de Goffman, la recherche révèle que les
empreendedores têm suas performances Goffman’s theory, the research reveals that entrepreneurs ont leurs performances éta-
assentadas na persona do “futuro bilioná- the investigated entrepreneurs based their bliessur le persona du «futur milliardaire»
rio” e que seus discursos tratam de “futu- performances in the persona of “future et que ses discours se réfèrent à des «fu-
ros imaginados”. Ao revelar os principais billionaires”, and that they produce a dis- turs imaginés». En révélant les principales
componentes da representação social dos course about “imaginary businesses”. By composantes de la représentation sociale
empreendedores de start-ups, o estudo restoring the main elements of the social des entrepreneurs destart-ups, l’étude
pretende restituir a dimensão cultural representation of start-up entrepreneurs a pour but de restaurer la dimension
dos acordos econômicos e, assim, de- looking for capital, we aimed to infer how culturelle des accords économiques et de
monstrar como agência, significados e re- agency, meanings and social relations are démontrer, ainsi, comment l’agence, les
lações se fazem imbricados na construção imbricated in the process of creating new significations et les relations sont imbri-
de firmas notadamente contemporâneas. high-tech firms. quées dans la construction des entreprises
particulièrement contemporaines.

Creative Commons License This is an Open Access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License,
which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original work is properly cited.

Você também pode gostar