Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A Doença de Morte - Marguerite Duras PDF
A Doença de Morte - Marguerite Duras PDF
(Marguerite Duras)
Você deveria não conhecela, você deveria têla encontrado por toda a parte ao mesmo
tempo, num hotel, numa rua, num trem, num bar, num livro, num filme, em você mesmo, em
você, em ti, ao léu do teu sexo ereto na noite clamando por um lugar onde se meter, onde
se desvencilhar do choro que o enche.
Você poderia ter pago a ela.
Você teria dito: Seria preciso vir toda noite durante muitos dias.
Ela teria te olhado por muito tempo, e depois teria lhe dito que nesse caso sairia
muito caro.
E depois ela pergunta: Você quer o que?
Você diz que quer experimentar, tentar a coisa, tentar conhecer isso se habituar a
isso, a esse corpo, a esses seios, a esse perfume, a beleza, a esse perigo de colocar
crianças no mundo que esse corpo representa, a essa forma imberbe sem acidentes
musculares nem força, a esse rosto, a essa coincidência entre essa pele nua, a essa
coincidência entre essa pele e a vida que ela encobre.
Você diz que quer experimentar, experimentar por muitos dias talvez.
Talvez por muitas semanas.
Talvez até por toda a vida.
Ela pergunta: Experimentar o quê?
Você diz: Amar.
Ela pergunta: Para o que mais?
Você diz que quer para dormir sobre o sexo em calmaria, ali onde você não
conhece.
Você diz que quer experimentar, chorar ali, nesse recanto do mundo.
Ela sorri, ela pergunta: A mim você também quer?
Você diz: Sim. Eu ainda não conheço, eu queria penetrar ali também. E tão
violentamente quanto costumo fazer. Dizem que isso aí resiste ainda mais, que é um
veludo que resiste ainda mais que o vazio.
Ela diz que não tem opinião, que não pode saber. Ela pergunta: Quais as outras
condições?
Você disse que ela teria de se calar como as mulheres dos seus ancestrais, se
curvar completamente a você, ao teu querer, ser inteiramente submissa a você como as
camponesas nos celeiros depois das ceifas, quando, desancadas, deixam delas se
achegarem os homens, dormindo isso para que você possa se habituar pouco a pouco
a essa forma que desposará a tua, que estará à mercê de Deus isso também, para que
pouco a pouco, o dia crescente, você tenha menos medo de não saber onde colocar o teu
corpo nem rumo a que vazio amar.
Ela te olha. E depois ela não te olha mais, ela olha além. E depois ela responde.
Ela diz que nesse caso sai ainda mais caro. Ela diz o valor do pagamento.
Você aceita.
Todo dia ela viria. Todo dia ela vem.
No primeiro dia ela se desnuda e se estende no lugar que você lhe designa na
cama.
Você a olha adormecer. Ela se cala. Ela adormece. A noite inteira você a olha.
Ela chegaria com a noite. Ela chega com a noite.
A noite inteira você a olha. Durante duas noites você a olha.
Durante duas noites ela quase não fala.
Depois, num fim de tarde, ela o faz. Ela fala.
Ela lhe pergunta se ela é útil para fazer o teu corpo menos só. Você diz que não
sabe se compreende muito bem essa palavra quando ela designa o teu estado. Que você
costuma se confundir entre acreditar ser só e ao contrário vir a ser só, você acrescenta:
Como com você.
E depois mais uma vez no meio da noite ela pergunta: Qual é a época do ano
neste momento:
Você diz: Antes do inverno, ainda outono.
Ela também pergunta: O que é que estamos ouvindo?
Você diz: Antes do inverno, ainda outono.
Ela pergunta: Onde ele está?
Você diz: Ali, atrás da parede do quarto.
Ela volta a dormir.
Moça, ela seria moça. Nas suas roupas, nos seus cabelos, haveria um cheiro que se
estagnaria, você sairia à procura dele, e você acabaria por nomeálo como você sabe
fazer. Você diria: Um cheiro de heliotrópio e cidra. Ela responde: Como você quiser.
Numa outra noite você o faz, conforme o previsto, você dorme com o rosto no topo das
pernas escancaradas dela, contra o sexo dela, já na umidade do corpo dela, ali onde ela
se abre. Ela deixa.
Numa outra noite, por distração, você faz gozar e ela grita.
Você lhe diz para não gritar. Ela diz que não gritará mais.
Ela não grita mais.
Nenhuma jamais gritará por tua causa de agora em diante.
Talvez você consiga dela um prazer até então desconhecido para você, não se.
Tampouco se se você percebe o rosnado surdo e distante do seu gozo através da sua
respiração, através desse estertor dulcíssimo que vai e vem da boca ao ar de fora. Não
creio.
Ela abre os olhos, ela diz: Que felicidade.
Você lhe bota a mão na boca para que ela se cale, você lhe diz que não se diz
esse tipo de coisa.
Ela fecha os olhos.
Ela diz que não vai mais dizer esse tipo de coisa.
Ela pergunta se eles falam disso. Você que não.
Ela pergunta do que eles falam de todo o resto, que eles falam de tudo, menos
disso.
Ela ri, ela volta a dormir.
Ela acorda. Ela te olha. Ela diz: A doença te ganha cada vez mais, ela ganhou o teus
olhos, a tua voz.
Você pergunta: Que doença?
Ela diz que ainda não sabe dizer.
Noite após noite você se introduz na obscuridade do sexo dela, você envereda quase
sem saber por essa estrada cega. Às vezes, você fica ali, você dorme ali, dentro dela,
durante a noite inteira, para estar pronto se por acaso, graças a um movimento
involuntário da parte dela ou da tua, lhe viesse o desejo de têla de novo, de fartála mais
uma vez e de gozar apenas o gozo como sempre cego de lágrimas.
Ela estaria sempre pronta, condescendente ou não. É nesse ponto preciso que você
jamais saberia nada. Ela é mais misteriosa do que todas as evidências exteriores
conhecidas até ali por você.
Você também jamais saberia, nem você nem ninguém, jamais, como ela vê, como
ela pensa o mundo e você, o teu corpo e o teu espírito, e essa doença que ela diz que
você tem. Ela mesma não sabe. Ela não saberia dizer a você, você não poderia aprender
nada com ela.
Você jamais saberia nada, nem você nem ninguém, do que ela pensa de você,
desta história aqui. Não importa o número do séculos que encobrisse o olvido das suas
existências, ninguém saberia. Ela, ela não sabe sabêlo.
Porque você não sabe nada dela, você diria que ela não sabe nada de você. Você
pararia por aí.
Até essa noite você não havia compreendido como se pode ignorar o que vêem os
olhos, o que tocam as mãos, o que toca o corpo. Você descobre essa ignorância.
Você diz: Eu não vejo nada.
Ela não responde.
Ela dorme.
Você a acorda. Você lhe pergunta se ela é uma prostituta. Ela faz sinal que não.
Você lhe pergunta por que ela aceitou o negócio das noites pagas.
Ela responde com uma voz ainda sonolenta, quase inaudível: Porque desde que
você falou comigo eu vi que você tem a doença de morte. Nos primeiros dias eu não
soube como dar nome a essa doença. Logo depois consegui.
Você lhe pede que ela repita mais uma vez as palavras. Ela faz isso, repete as
palavras: A doença da morte.
Você lhe pergunta como ela sabe. Ela diz que sabe. Ela diz que se sabe sem
saber como se sabe.
Você lhe pergunta: No que a doença da morte é mortal? Ela responde: No fato de
que aquele que a tem não sabe que é portador dela, da morte. E também no fato de que
ele morreria sem vida pregressa dentro da qual morrer, sem conhecimento nenhum de
morrer em vida nenhuma.
Os olhos estão sempre fechados. Parece que ela descansa de uma fadiga imemorial.
Enquanto ela dorme você esqueceu a cor dos seus olhos, bem como o nome que você
lhe deu na primeira noite. Depois você descobre que não é a cor dos olhos que seria
para sempre, a fronteira intransponível entre ela e você. Não, não a cor, você sabe que
esta cambiaria entre o verde e o cinza, não, não a cor, não mas o olhar.
O olhar.
Você descobre que ela te olha.
Você grita. Ela se vira para a parede.
Ela diz: Está chegando ao fim, não tenha medo.
Com um só braço você a ergue ao teu encontro, de tão leve que ela é. Você olha.
Curiosamente os seios são morenos, as suas aréolas, quase negras. Você os
como, você os bebe, e nada no corpo vacila, ela deixa fazer, ela deixa. Talvez num dado
momento você grite de novo. Numa outra vez você lhe pede que ela pronuncie uma
palavra, uma só, aquela que diz o teu nome, você lhe diz essa palavra, esses nome. Ela
não responde, então você grita de novo. E é então que ela sorri. E é então que você sabe
que ela está viva.
O sorriso desaparece. O rosto está entregue ao sono, está mudo, dorme como as
mãos. Mas o espírito continua a aflorar à superfície do corpo, ele o percorre inteiro, e de
tal modo que cada uma das partes desse corpo é testemunha por si só da sua totalidade,
a mão e os olhos, a curvatura do ventre e o resto, os seios e o sexo, as pernas e os
braços, a respiração, o coração, as têmporas, as têmperas e o tempo.
Você volta à varanda diante do mar negro.
Há em você soluços dos quais você não sabe o porquê. Eles se retêm à beira de
você como se fossem exteriores a você, eles não podem alcançálo para serem chorados
por você. Diante do mar negro, contra a parede do quarto onde ela dorme, você chora por
você mesmo, como faria desconhecido.
Você escuta o barulho do mar que começa a subir. Essa estranha está ali na cama, no
seu devido lugar, na poça branca dos lençóis brancos. Essa brancura torna mais escura a
sua forma, mais evidente do que seria uma evidência animal bruscamente desertada pela
vida, do que seria a da morte.
Você olha essa forma, você descobre nela ao mesmo tempo a potência infernal, a
abominável fragilidade, a fraqueza, a força invencível da fraqueza sem igual.
Você deixa o quarto, você volta para a varanda diante do mar, longe do cheiro dela.
Chove uma chuva fina, o mar ainda está negro sob o céu descorado de luz. Você
ouve o seu barulho. A água negra continua a subir, ela se reaproxima. Ela se agita. Ela
não para de se agitar. Atravessama longas lâminas de ondas brancas, um longo
vagalhão que se quebra num estrondo de brancura. O mar negro está bravo. Há uma
tempestade ao longe, é comum, à noite. Você fica muito tempo olhando.
Vemlhe a ideia de que o mar negro se agita.em lugar de outra coisa, em lugar de
você e dessa forma escura na cama.
Você termina a sua frase. Você diz a si mesmo que se agora a esta hora da noite
ela morresse seria mais fácil para você fazêla sumir da face da terra, lançála à água
negra, que seriam necessários uns poucos minutos para lançar um corpo desse peso ao
mar montante a fim de que a cama ficasse livre dessa fedentina de heliotrópio e cidra.
Você retorna mais uma vez ao quarto. Ela está ali dormindo, às suas próprias
trevas abandonada, na sua magnificência.
Você descobre que ela é construída de tal modo que a qualquer momento, parece,
a seu belprazer, o seu corpo poderia cessar de viver, se espargir em torno dela,
desaparecer diante dos teus olhos, e que é nessa ameaça que ela dorme, que ela se
expõe a ser vista por você. Que é no perigo que ela correm, uma vez que o mar está tão
próximo, deserto, ainda tão negro, que ela dorme.
Em torno do corpo, o quarto. Era para ser o teu quarto particular. Ele é habitado
por ela, uma mulher. Você já não reconhece o quarto. Ele está esvaziado de vida, está
sem você, está sem o teu semelhante. Ocupao só essa massa maleável e longa da
forma estranha sobre a cama.
Ela começa a se mover, os olhos se entreabrem. Ela pergunta: Mais quantas noites
pagas? Você diz? Três.
Ela pergunta: Você nunca amou uma mulher? Você diz que não, nunca.
Ela pergunta: Você nunca desejou uma mulher? Você diz que não, nunca.
Ela pergunta: Nem uma única vez, nem um só instante? Você diz que não, nunca.
Ela diz: Nunca? Nunca? Você repete: Nunca.
Ela sorri, ela diz: É curioso um morto.
Ela recomeça: E olhar uma mulher, você nunca olhou uma mulher? Você diz que
não, nunca.
Ela pergunta: Você olha o que? Você diz: Todo o resto.
Ela se espreguiça, ela se cala. Ela sorri, ela volta a dormir.
Você retorna ao quarto. Ela não se mexeu na poça branca dos lençóis. Você olha essa aí
que você nunca havia abordado, nunca, nem por meio das suas semelhantes nem por
meio dela mesma.
Você olha a forma há séculos suspeita. Você desiste.
Você já não olha. Você já não olha nada. Você fecha os olhos para se reencontrar
na tua diferença, na tua morte.
Quando você abre os olhos, ela está ali, ainda, ela continua ali.
Você retorna para o corpo estranho. Ele dorme.
Você olha a doença da tua vida, a doença da morte. É nela, no seu corpo
adormecido, que você a olha. Você olha as regiões do corpo, você olha o rosto, os seios,
a região confusa do seu sexo.
Você olha a o lugar do coração. Você acha o batimento diferente, mais distante,
ocorrelhe a palavra: mais estranho. Ele é regular, ao que parece não deveria cessar
nunca. Você achega o teu corpo contra o objeto do seu corpo. Ele é tépido, ele é fresco.
Ela ainda vive. Ela convida ao homicídio enquanto vive. Você se pergunta de que jeito
matála e quem a matará. Você não ama nada, ninguém, mesmo essa diferença que você
acredita viver você não ama. Você só conhece a graça do corpo dos mortos, a dos teus
semelhantes. De repente lhe surge a diferença entre essa graça do corpo dos mortos e
esta aqui presente, feita de fraqueza última, que se poderia aniquilar com um único gesto,
esta realeza.
Você descobre que é ali, nela, que se fomenta a doença da morte, que é essa forma à tua
frente desdobrada que decreta a doença da morte.
Você pensa no exterior do teu quarto, nas ruas da cidade, nessas pequenas praças
solitárias perto da estação. Nesse sábado de inverno iguais entre si.
E depois você escuta esse barulho que se reaproxima, você escuta o mar.
Você escuta o mar. Ele está muito próximo das paredes do quarto. Pelas janelas,
sempre essa luz descorada, essa lentidão do dia em ganhar o céu, sempre o mar negro,
o corpo que dorme, a estranha do quarto.
E depois você faz. Eu não saberia dizer porque você faz isso. Eu te vejo fazer sem
saber. Você poderia sair do quarto, apartarse do corpo, da forma adormecida. Mas não,
você faz isso, você volta para o corpo.
Você o encobre completamente com o teu, você o traz ao teu encontro para não
aniquilálo com a tua força, para evitar de matálo, e logo depois você faz isso, você volta
ao alojamento noturno, você se atola nele.
Você fica mais uma vez nessa morada. Você chora mais uma vez. Você acredita
saber você não sabe o quê, você não chega ao fim desse saber, você acredita ser
sozinho a imagem da infelicidade do mundo, a imagem de um destino privilegiado. Você
acredita ser o rei desse acontecimento em curso, você acredita que ele existe.
Ela dorme, o sorriso nos lábios, matála.
Você ainda fica na morada do seu corpo.
Ela está plea de você enquanto dorme. Os frêmitos levemente gritados que
percorrem esse corpo se tornam mais e mais evidentes. Ela está numa felicidade de
sonho por estar plena de um homem, de você, ou de um outro, ou de um outro ainda.
Você chora.
Ela lhe pergunta se você viu o mar, ela lhe pergunta se o dia raiou, se está claro.
Você diz que o dia desponta, mas que nessa época do anos ele demora muito a
invadir o espaço que ele clareia.
Ela lhe pergunta qual é a cor do mar.
Você diz: Negra.
Ela responde que o mar nuca é negro, que você deve estar enganado.
Você lhe pergunta se ela acredita que se possa amar você.
Ela diz que em hipótese nenhuma. Você lhe pergunta: Por causa da morte? Ela
diz: Sim, por causa dessa insipidez, dessa imobilidade do teu sentimento, por causa
dessa mentira de dizer que o mar é negro.
E depois ela se cala.
Você tem medo de que ela adormeça, você a acorda, você lhe diz: Fale mais. Ela
lhe diz: Então lhe pergunta de novo se é possível amar você. Ela diz mais uma vez: Não.
Ela diz que um momento antes você teve desejo de matála quando voltou da
varanda e entrou pela segunda vez no quarto, que ela compreendeu em meio ao sono o
olhar que você lhe lançou. Ela pede que você lhe diga por que?
Você lhe diz que você não pode saber por quê, que você não tem a inteligência da
tua doença.
Ela sorri, ela diz que é a primeira vez, que antes de te encontrar ela não sabia que a
morte podia ser vivida.
Imperceptivelmente o quarto se aclara com uma luz solar, ainda escura.
Ela abre os olhos, ela volta a fechálos. Ela diz: mais duas noites pagas e isso
acaba. Ela sorri e com a mão acaricia os teus olhos. Ela caçoa dormindo.
Você continua a falar, sozinho no mundo como você deseja. Você diz que o amor
sempre pareceu fora de lugar, que você jamais compreendeu, que você sempre se
esquivou de amar, que você sempre se quis livre para não amar. Você diz que está
perdido. Você diz que você não sabe onde, dentro de que você está perdido.
Ela não escuta, ela dorme.
Você conta a história de uma criança.
O dia alcançou as janelas.
Ela abre os olhos, ela diz: Não minta mais. Ela diz que espera nunca saber nada
do mesmo jeito que você, você sabe, nada no mundo. Ela diz: Eu gostaria de não saber
nunca nada do mesmo jeito que você, você sabe, com essa certeza nascida da morte,
essa monotonia irremediável, igual a si mesma cada dia da tua vida, cada noite, com
essa função mortal da falta de amar.
Ela diz: Chegou o dia, tudo vai começar, menos você. Você, você não começa
nunca.
Ela volta a dormir. Você lhe pergunta por que ela dorme, de qual fadiga ela precisa
descansar, monumental. Ela ergue a mão e de novo acaricia o teu rosto, quem sabe a
boca. Outra vez ela caçoa dormindo. Ela diz: Você não pode compreender já que faz a
pergunta. Ela diz que desse modo ela também descansa de você, da morte.
Você continua a história da criança, você berra. Você diz que você não sabe toda
a história da criança, a tua. Você diz que você ouviu contar essa história. Ela sorri, ela diz
que também ouviu e leu muitas vezes essa história, por como o sentimento de amar
poderia sobrevir. Ela lhe responde: Talvez de uma falha súbita na lógica do universo. Ela
diz: Por exemplo, de um erro. Ela diz: jamais de um querer. Você pergunta: O sentimento
de amar poderia sobrevir de outras coisas também? Você implora que ela lhe diga. Ela
diz: De tudo, de um vôo de pássaro da noite, de um sono, de um sonho do sono, da
aproximação da morte, de uma palavra, de um crime, de si, de sim mesmo, subitamente
sem saber como. Ela diz: Olhe. Ela abre as pernas e no vão das pernas escancaradas
você vê enfim a noite negra. Você diz: Era ali, a noite negra, é ali.
Ela diz: Venha. Você vem. Metido nela, você ainda chora. Ela diz: Não chore mais.
Ela diz: Me possua para que isso tenha sido feito.
Você faz, você possui.
Está feito.
Ela volta a dormir.
Um dia ela não está mais ali. Você acorda e ela não está mais ali. Ela se foi nanoite. O
rastro do corpo ainda está nos lençóis, o rastro é frio.
Agora é alvorada. Não ainda o sol, mas as fímbrias do céu já estão claras, ao
passo que do centro desse céu a obscuridade ainda desce à terra, densa.
Não há mais nada no quarto alem de você sozinho. O corpo dela desapareceu. A
diferença entre ela e você se confirma pela sua ausência súbita.
Ao longe, pelas praias, as gaivotas gritariam no negrume que se desfaz, elas já
começariam a se alimentar dos bichos da vasa, a escaramunchar as areias desertadas
pela maré baixa. No negrume, o grito louco das gaivotas famintas, de repente lhe parece
que você nunca chegou a ouvilo.
Ela não voltará nunca.
Na noite em que ela se foi, num bar, você conta a história. Primeiro você a conta
como se fosse possível fazer isso, e depois você desiste.
Em seguida você a conta rindo como se fosse impossível que ela tenha ocorrido ou como
se fosse possível que você a tivesse inventado.
No dia seguinte, de repente, você talvez notasse a ausência dela no quarto. No dia
seguinte, talvez você experimentasse um desejo de revêla ali, na estranheza da tua
solidão, no seu estado de desconhecida tua.
Talvez você a procurasse fora do teu quarto, pelas praias, pelas varandas, pelas
ruas. Mas você não poderia achála, porque à luz do dia você não conhece ninguém.
Você não a reconheceria. Dela você não conhece mais do que o corpo adormecido sob
os olhos entreabertos ou fechado. A penetração dos corpos, você não poderia
reconhecêla, você não pode jamais reconhecer. Você não poderá jamais.
Quando você chorou, era só por você e não pela admirável impossibilidade de
chegar até ela através da diferença que os separa.
De toda a história você só retém certas palavras que ela disse durante o sono. essas
palavras que dizem aquilo que você tem: Doença de morte.
Bem depressa você desiste, você já não a procura, nem na cidade, nem na noite,
nem no dia.
Assim, no entanto, você pôde viver esse amor do único jeito que era lhe possível,
perdendoo antes que ele acontecesse.