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Encontrei a Liberdade na Terra

Aos 13 anos de idade fui morar no Acampamento Carlos Marighella, a ocupação estava
localizada a 6 km da cidade de Ipiaú às margens da rodovia que dá acesso a cidade de Ibirataia.
Meu barraco ficava na margem direita - de quem vem de Ipiaú - em cima de um murundun
como falamos por aqui. No barranco minha mãe fez um jardim com flores nativas que era
atravessado por uma escada escavada no barro e corrimão feito de imbaúba.

Lembro com perfeição cada detalhe do barraco de lona e bambu e de como minha mãe, Dona
Conceição, fez ficar acolhedor com caqueiros e toda mobília que coube da casa que tínhamos
na cidade, lembro do cheiro de fumaça impregnada na roupa e das manchas pretas que o
candeeiro soltava na lona. Essa memória afetiva marcou o homem que nasceu ali naquele
acampamento, definiu meu caráter e meus sonhos.

Fui morar no acampamento com meu pai Antônio, minha mãe Conceição e dois irmão, Naiara
e Abraão, nossa trupe ainda tinha meu tio Augusto e meu avô Marivaldo. Juntamos dois
barracos em um só para caber todo mundo e, coube. E lá na ocupação às margem da BA que
entendi que não era Deus nos castigando e sim uma estrutura genocida que precisava ter um
exército de reserva para manter os baixos salários, eu entendi que embora meus pais tivessem
fé e orassem muito era necessário afiar a foice para abrir a capora e também enfrentar a
polícia quando vinham nos despejar e, vieram 26 vezes.

Naquela situação de pobreza e precariedade eu conheci a solidariedade e companheirismo,


mesmo tendo que dividir um litro de óleo em três partes, éramos capazes de emprestar para
quem precisasse primeiro, as dificuldade nos faziam estar próximos pra resolver os problemas,
cada família era importante para manter o acampamento e a resistência.

Aprendi acordando cedo para ir à roça o valor da soberania alimentar e de como éramos auto
suficientes em comida e como o excedente mantinha as outras despesas em dias. Não era
perfeito, passamos muita dificuldade, meus pais comeram menos pra nós comermos mais. No
entanto, ali reunidos em torno do fogo à lenha a noite falávamos do que estava por vir, do
nosso lote e das roças que íamos plantar e meu pai fazia planos da casa redonda e feita com as
pedras que tinha na nossa área de plantio. Foi ali com os calos nas mãos que reconstruímos
nossa esperança e nossos castelos depois que meu pai ficou desempregado, foi enganado
junto com meu tio numa roça de cacau que iriam trabalhar e ganhar à meia com o herdeiro do
fazendeiro.

No acampamento eu me descobri como negro. Na marcha de Feira de Santana a Salvador no


ano de 2004,h olhando para aquelas fileiras que enxerguei como o MST é um movimento
negro que luta pela terra. Essa mesma terra que meus ancestrais cultivaram cana para os
senhores de engenhos e cacau para os coronéis, nessa marcha discutindo o processo de
nucleação que entendi o que era liberdade: a possibilidade de decidir os rumos da minha vida
e influenciar na organização da comunidade. Entendi que o Povo Preto impedido de ter acesso
a terra pela lei de 1850 foram os primeiros sem terra do Brasil.

Quando me dei conta eu já não lembrava do que eu tinha vivido antes do acampamento,
minhas referências foram refundadas. Entedia perfeitamente minha negritude e de como era
perigoso e violento negar meus fenótipos para caber nas rodas de conversas do antigos
“amigos”. Aos 16 anos já estava engajado na militância de forma irreversível com a certeza de
que os valores da militância que eu aprendi ali seriam meus norteadores e um deles é a
espinha dorsal e o que define o grau de comprometimento: “O militante é o primeiro a morrer
e o último a comer” ser militante é um ato de amor incondicional. O militante não quer
medalha ou glória ele quer a revolução, mesmo que custe a sua vida.

Dezoito anos depois, chego aos trinta e um e escrevo essas linhas revisitando memórias ainda
vivas, quentes e pulsantes, que norteiam meu caminhar e reforçam o compromisso com a
libertação do Povo Preto. Essa consciência de que sou um homem negro só foi possível porque
a terra me libertou quando libertamos ela do coronel.

É preciso libertar a terra para que o povo seja livre. Não há povo sem território, sem comida,
sem água e isso não encontramos na cidade, não sem vender nossa alma ao capital, negociar
nossa estética para ser contratado. Compreender que a libertação começa no campo, na terra,
na possibilidade de plantar comida e garantir autonomia para fazer enfretamento. O MST
disse: “Olhe para você e olhe ao redor tem muita terra sem gente e muita gente sem terra”. Eu
olhei e vi o Povo Preto todo apertado, encurralado nas periferias da cidade longe da terra.

Ser militante do MST enquanto homem negro e com consciência da minha ancestralidade me
faz olhar para cada acampamento e assentamento, como quem olha um Quilombo. Não
Quilombo como lugar de fuga ou refúgio, meus ancestrais enfrentaram, não se curvaram para
escravidão e criaram os Quilombos para se reconstruir. Eu olho e vejo o caminho inverso,
vamos fugir de onde a supremacia branca quer que fiquemos, nas favelas, apertados e nos
matando e vamos nos aquilombar nas terras que eles tomaram dos indígenas e nos negaram.

Vejo a construção de Quilombos como forma concreta de enfrentamento aos herdeiros de


cada coronel e senhor de engenho. Sinto o nascer de Assentamentos/Quilombos que
reivindicaram sua autonomia e soberania e construíram uma rede comercial e um governo
próprio e, assim como o MST e a luta pela terra refundou meus valores, refundaremos nossos
territórios, libertando a terra para que terra nos liberte.

Esse não é um texto motivacional, não busca romantizar a pobreza, mas faz sim um chamado à
luta libertária, uma convocatória para o Povo Preto consolidar seus Territórios construindo
autonomia política, econômica e militar. Só seremos livres se construirmos nossos espaços de
poder e autodeterminação com valores afrocentrados e revolucionários. Expropriar o
agronegócio e fundar Assentamentos e Quilombos. Essa é nossa tarefa!

Jose Alves neto


Militante do MST, dirigente estadual da Brigada Ojeffersson e construtor da Teia dos Povos

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