Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
J acques Le G off
mos que descobrir se há uma noção unificadora por trás de todos Devo
acrescentar que aqui nos deparamos com uma história dos valores e das
atitudes mentais por um lado e, por outro, com uma história das repre
sentações literárias e artísticas: uma história do riso e do fazer rir.
Portanto, temos inicialmente um grande problema: o dos comple
xos encadeamentos entre estes quatro domínios — valores, pensamen
tos, práticas e estéticas do riso. Para acrescentar mais uma observação
preliminar: embora haja numerosas categorias de riso e o jogo de pala
vras não seja a categoria mais importante para provocá-lo, é preciso
acentuar a importância das palavras e da linguagem. Felizmente, aqui
o his.oriador está mais bem abastecido. Há algum tempo já sabemos
usar as perspectivas da linguagem, do vocabulário e da semântica, em
bora o número de estudos sérios e inteligentes nessa área ainda seja muito
pequeno. Finalmente, há o problema do meio lingiiístico, familiar aos
medievalistas: temos que conduzir nossa pesquisa no domínio do la
tim e no das línguas vernáculas. Penso que essa segunda investigação é
ainda mais importante, pois, por diversas razões interessantes, as pes
soas riem melhor no vernáculo que em larim. Se são a sua difusão, hetero
geneidade e fragmentação que constituem um dos maiores impedimen
tos ao estudo do assunto, isso, não obstante, permite-nos tocar em
muitos temas fundamentais do período em questão.
Um dos temas que identificamos aqui são as expressivas possibi
lidades dos vários idiomas usados na Idade Média, sobretudo do la
tim em comparação às línguas vernáculas. Investigações completas de
especialistas em lingiiística ressaltaram que, a partir do século XIII, o
latim tende a se tornar, se não uma língua morta, pelo menos um
idioma de especialistas, usado basicamente em certos exercícios reli
giosos, litúrgicos ou intelectuais, dominados por um novo latim, o
latim escolástico. Esse latim é impróprio para expressar o que defini
mos como sensibilidade, a individualidade de sentimentos e idéias e,
por conseguinte, incapaz de observar tudo o que é subjetivo. Para isso,
temos que nos remeter às línguas vernáculas. Infelizmente, parece que
O RISO ΝΛ IDADE MÉDIA 69
cada vez mais apontado como o que deve ser imitado, não rira sequer
uma vez cm sua vida humana, então o riso como se torna estranho ao
homem, pelo menos a um homem cristão. Por outro lado, se consi
derarmos o riso um traço distintivo do homem, o homem que ri cer-
lamente se sentirá mais capaz de expressar a sua própria natureza.
Ambas as visões são encontradas tm autores eclesiásticos e não en
contrei qualquer heresia do riso. As várias atitudes em relação ao riso
encontram seu lugar dentro de uma certa ortodoxia. Talvez isso não
seja totalmente verdadeiro, iras essa é uma fronteira do assunte que
ainda r.ão foi corretamente explorada.
*Jean Joinville, historiador francês que acompanhou São Luís em sua sexta cruzada. (jV. da T.)
O RISO ΝΑ IDADE MÉDIA 71
tante inusitado: este não era apenas um homem propenso ao riso, mas
também alguém claramente enquadrado em outro topos, o rexfacetus,
o “rei cómico”, que se tornou uma imagem do rei.12 Parece que o rex
facetus se tornou em particular um topos dentro de um contexto social
e cronológico bem definido, o contexto da corte. É nele que encontra
mos uma função praticamente obrigatória do rei — fazer piadas. O rex
facetus figura em numerosos textos, principalmente em crónicas ingle
sas do século XII. O primeiro modelo do rex facetus foi Henrique II,
cujas graças e as ocasiões em que rira de uma coisa ou outra estão todas
registradas. Percebe-se até que o riso estava quase se tornando um ins
trumento de governo ou, de qualquer modo, uma imagem de poder.
Algumas funções do riso foram pesquisadas por antropólogos. Os “re
lacionamentos jocosos” em duas sociedades africanas examinadas prin
cipalmente por Radcliffe-Brown são um exemplo.13 H á sociedades em
que certos laços de afinidade, inter alia aqueles entre genro e sogra,
devem ser expressos por meio de brincadeiras. Será possível que estru
turas e práticas semelhantes existissem na Idade Média cristã? Exami
nando melhor certos textos, tem-se a impressão de que, nas mãos do
rei, o riso era um meio de estruturar a sociedade ao seu redor. Ele não
troçava de todos indiscriminadamente ou da mesma maneira. A obsce
nidade também era um dos “deslizes” do riso.
O nome da rosa teve seu papel na orientação de minha pesquisa, con
forme eu notava que meu amigo Umberto Eco não estava menos con
vencido da importância do riso na sociedade e na cultura medievais. O
leitor deve se lembrar de que ele foi detestado pelo rigorosíssimo monge
Jorge de Burgos. Eco sugeriu com muita perspicácia uma ligação entre a
atitude de seu monge e a de São Bernardo, que se opôs à representação
de monstros nos romances. Ainda se percebe aqui uma das alianças his
tóricas entre as várias formas de desconfiança dirigida a fenômenos que
fossem mais ou menos anárquicos, anormais ou provocativos. Mas talvez
o que me tenha levado especificamente até o riso foi que, na École des
Hautes Études e no Centro de Pesquisas Históricas, muitos de nós estão
η UMA HISTÓRIA CULTURAL DO HUM OR
ram que a Regula Magistri antecede a regra de São Bento e que ser
viu como seu modelo, apesar de diferenças consideráveis. Uma des
sas diferenças é que, enquanto a regra de São Bento é m uito sucinta
(uma das razões de seu sucesso: simplicidade e brevidade!), a Regula
Magistri é um texto muito longo, mas também muito interessante c
ultrapassa a psicologia individual. Ela mostra uma verdadeira fisio
logia cristã, que explica as exigências de comportamento ao mesmo
tempo físicas e espirituais. É um texto firmemente apoiado em um
dos fenômenos mais importantes da Idade Média, embora pouco
considerado. A atenção foi voltada sobretudo para textos hostis ao
corpo, textos do tipo ascético, exemplificados pela famosa frase de
Gregório, o Grande, que definiu o corpo como “a abominável
vestimenta da alma”. Acredito que foi dada muito pouca atenção
ao fato de que o homem é fundamentalmente concebido como uma
união inseparável do corpo e da alma. Não nos esqueçamos de que
o cristianismo oferece a ressurreição do corpo, o que o distingue de
muitas outras religiões, e que nela se é salvo de corpo e alma: o bem
e o mal são praticados através do corpo.
Havia uma tendência para focalizar o corpo como um instrumen
to do demónio, embora fosse ele também um instrumento da salvação.
É justamente a Regula Magistri que explica com clareza como o corpo
humano está posicionado em relação ao bem e ao mal. De fato, o bem
e o mal possuem duas fontes. De um lado, há uma fonte exterior, que
é a graça divina nc caso do bem, e o diabo e a sua tentação, no do mal.
De outro, há duas fontes interiores, ambas provenientes do coração,
que são os pensamentos ora ruins, ora bons. Nas duas direções, de fora
para dentro ou de dentro para fora, o corpo humano emprega filtros:
os orifícios do rosto. Olhos, orelhas e boca são os filtros do bem e do
mal e devem ser usados para permitir que o bem entre ou se expresse, e
bloquear o caminho do mal. A Regula Magistri fala da “passagem da
boca”, a “barreira dos dentes” etc. Quando o riso está começando, ele
deve, a todo custo, ser impedido de se expressar. Assim vemos como o
74 UMA H IST Ó R IA CULTURAL D O H U M O R
T IP O S DE RISO
* 0 humor t :ua relação com o incomcientt, de 1905, em que Freud analisa o humor e a piada.
(N.daT)
O RISO ΝΑ IDADE MÉDIA 75
O RISO EA SOCIEDADE
CONCLUSÃO
u
UMA HISTÓRIA CULTURAL D O H U M O R
N otas
J. Le Goff, "Le rire dans les règles monastiques du haut moyen âge”, em C. Lepclley
et al. (orgs.), Haut moyen-âge: culture, éducation et société. Études offertes à Pierre
Riché (La Garenne-Colombes, 1990), pp. 93-103.
Conforme aprendemos nos excelentes estudos de Paul Zumthor: Introduction à la
poésie orale (Paris, 1983) e La lettre et la voix de la littérature médiévale (Paris, 1987).
E. R. Curtius, European Literature and toe Latin Middle Ages, trad. W. R. Trask
(Princeton, 1953), pp. 417-35.
J. Le Goff, “Jésus a-t-il ri?”. L’histoire, 158 (1992), pp. 72-4.
Conforme estudado por J.-C, Schmitt, La raison des gates dans l ’Occident médiéval
(Pans, 1990).
Jean de Joinville, Histoire de Saint Louis, org. Natalis de Wailly (Paris, 1874), Trad,
inglesa M. Shaw como Chronicles of the Crusades (Harmondsw'orth, ’.963), pp.
161-353; J. le Goff, Saint Louis (Paris, 1996), pp. 486-8.
13, A. R. Radcliffe-Brown, Structure and Function in Primitive Society (Londres, 1952),
pp. 90-116.
>4, M. Mauss, “Les techniques du corps'. Journaldepsychologie normale etpathologique, 39
(1935), pp. 271-93, reeditado em sua Sociologie et anthropologie (Paris, 1950), pp. 365-
86; trad, inglesa como Sociology apd Psychology (Londres, 1979), pp. 97-123.
• Cf. A. de Vogüé, La Règle de saint Benoit (2 vois, Paris, 1972), trad, inglesa T. Fry (org.)
como The Rule of St Benedict in Latin and English with Notes (Collegeville, MN, 1981).
'· J. Le Goff, Time, Work and Culture in the Middle Ages, trad. A. Goldhammer (Chi
cago e Londres, 1980), pp. 71-86.
7· Um texto importante a esse respeito é Baudciairc, Oeuvres complètes, ed. Pléiade (2
vols, Paris, 1958), vol. 2, pp. 525-43 (“De l'essence du rire et généralement du
comique dans les arts plastiques”).
8. V. Wcndland, Ostermârchen und Ostergelackter (Frankfurt e Berna, 1980).
9. J. Le Goff, The Medieval Imagination (Chicago e Londres, 1988), pp. 193-242.
ÍO.
Cf. N. Elias, The Court Society, trad. E. Jephcott (Oxford, 1983).
ll.
F. Vercauteren, “Avec le sourire...", em Mélanges offerts à Rita Lejeune (2 vols,
Gembloux, 1969), vol. 1, pp. 45-56.
Q.
Thomas de Eccleston, De adventu fratrum mnorum in Angliam, rrad. inglesa L.
Sherlcy-Price como The Coming of the Franciscans (Oxford, 1964).
T M. Bakhtin, TvorcestvoFransua Rable i narodnaja kulturasrednevekovjai Renessansa
(Moscou, 1965), trad, inglesa H. Iswolsky como Rabelais and his World (Bloo
mington, 1968).
■ D. S. Lichaceve A. M. Pancenko, “Smechovoj tnir"drevnej Rust (Leningrado, 1976;
2* ed. 1984), trad, alemã como Die Lachwelt des Alien Rutland, org. R. Lachmann
(Munique, 1991); V. Propp, Theory and History of Folklore (Manchester, 1984),pp.
124-46 (publicado pela primeira vez em 1939); Gurevich, Capítulo 4 deste livro.