[Escritório de ED MORT. Ele está sozinho. Fumaça no ar.
ED MORT: Meu nome é Mort. Ed Mort. Sou detetive particular. Pelo
menos isso é o que está escrito numa plaqueta na minha porta. Ocupo um escritório numa galeria de Copacabana, junto com um telefone mudo, 17 baratas e um ratão albino. Eu o chamo de Voltaire, porque ele às vezes desaparece, mas sempre volta. Temos um acordo. Quando as coisas vão bem, eu o sustento. Ultimamente, ele estava me trazendo queijo. Mort. Ed Mort. Está na plaqueta. Idade? Digamos que o meu time de botão era o Vasco de 70. Costeletas. Bigode fino. A boca do Mick Jagger. Estranho, ele ainda não ter dado falta. Mexendo apenas as sobrancelhas, posso mudar de expressão em segundos. [mexe as sobrancelhas a cada frase] Cínico mas terno. Cruel e desiludido de tudo, mas espere até ouvir as minhas razões, neném. Carente de afeto e compreensão. Irônico, algo frívolo, mas capaz de grande profundidade. Bem, eu estava pensando no meu jantar da noite passada ― isto é, em nada ― quando ela entrou. [Entra a mulher em câmera lenta] Dizer que era uma mulher é fazer uma injustiça. Era o que vem depois da mulher. Fantástica. Tinha os seios como eu gosto, um de cada lado. Ela estava de luto. Coitada. Pensei em pular da cadeira, beijá-la brutalmente, apertá-la contra mim, esfregar suas costas com ardor e dizer: “Meus pêsames”. Mas resisti. Ela falou: MULHER: Com licença. ED MORT: [à parte] Se a sua voz pudesse ser engarrafada, seria vendida como afrodisíaco. MULHER: Estou interrompendo alguma coisa? ED MORT: Só o meu ritmo cardíaco [à parte] ― respondi, arranjando as sobrancelhas na posição Cínico, Sim, Mas Você Pode me Recuperar. MULHER: Bem, eu... ED MORT: Meu assunto favorito. MULHER: ...vi seu anúncio nos classificados do JB. ED MORT: O velho um por um. Nunca falha. [à parte] Convidei-a a sentar. Meus móveis eram escandinavos. Caixotes de bacalhau norueguês. Sentei na mesa. Primeiro, para poder olhar o decote de cima. Segundo, porque não tinha outro caixote. Ela disse que precisava dos meus serviços. Tive que escolher rapidamente o que fazer com as sobrancelhas. Nada de muito sugestivo. Optei por Curiosidade com Uma Certa Dose de Malícia. [para ela] Meus serviços? MULHER: Para encontrar meu marido. ED MORT: [à parte] Então era isso. Outro marido desaparecido. Pensei em perguntar se ela tinha procurado bem dentro da blusa, mas ela podia não entender. De olho na sua blusa, perguntei [para ela] “O que vocês querem que eu faça?” MULHER: Vocês? ED MORT: Você. A senhora. [à parte] MULHER: Quero que você investigue o desaparecimento. ED MORT: Descreva o seu marido. MULHER: Quarenta e oito anos. Vinte mais do que eu. Alto. Moreno. Grisalho. Aspecto saudável. ED MORT: [à parte] Ela baixou os olhos. Por alguns minutos, ficamos os dois olhando para a mesma coisa. MULHER: Outra coisa. ED MORT: O quê? MULHER: Ele está morto. ED MORT: [à parte] Esqueci as sobrancelhas. Meu problema agora era encontrar o que dizer. [para ela] Morto? MULHER: Há um ano. ED MORT: E você quer encontrá-lo? MULHER: Isso. ED MORT: Encontrar o corpo? MULHER: Não. O espírito. ED MORT: [à parte] Me contou que mantinha contato com o marido morto através de uma médium do Catete Seu nome era... [MULHER se transforma na VIDENTE] VIDENTE: Madame Aldiva: Quiromancia, Mediunidade e Escola de Datilografia. Duzentos cruzeiros por sessão, fora a Skol e os pastéis. ED MORT: Ok! VIDENTE: Durante um ano o espírito comparecera sempre que chamado. E de repente não tá vindo mais. Só tem uma explicação, seu Ed. Ele está sendo aliciado por outra médium. A mando, possivelmente, de outra mulher. ED MORT: [à parte] Minha missão: resgatá-lo. Mort. Ed Mort.[para ela] Tente chamá-lo. VIDENTE: São 200 adiantado, mesmo que ele não venha. ED MORT: Aqui está o cheque. VIDENTE: [coloca o chque na testa] Vejo-me entrando num banco. Vou direto ao caixa. O caixa olha o cheque. Começa a rir... ED MORT: Está bem, está bem. [à parte] Paguei em dinheiro. Uma semana de pedaços de pizza. VIDENTE: Ainda não tô conseguindo chamar o espírito. ED MORT: Tive uma idéia. Chame o espírito de Vanâncio, vulgo Fuinha, [à parte] um x-9 que morrera semanas antes me devendo um favor. VIDENTE [com voz do Fuinha]: O que é? ED MORT: Fuinha? Sou eu. Mort. Ed Mort. VIDENTE: [com voz normal] Ele quer ir embora ED MORT: Segura ele! Fuinha, preciso de um servicinho. Para saldar a sua dívida. VIDENTE: [como Fuinha] Mas que dívida o quê.. ED MORT: Para com isso, Fuinha, que de bobo eu só tenho a carteirinha do PT. Escuta, se você não fizer isso te jogo minha praga que você vai ser reencarnado no carnaval como tapa-sexo. Masculino. VIDENTE[como Fuinha]: Tudo bem, tudo bem, Ed. Vou investigar.
[ED MORT sai do consultório da vidente e volta para seu escritório]
ED MORT: [à parte] No dia seguinte nos encontramos outra vez, através de Madame Aldiva. Mais duzentos, mas quem é que está contando? [para a MULHER] Fuinha deu o serviço, madame. Descobri a verdade. O espírito do seu marido está baixando em Madureira. Ele tem uma segunda família. MULHER [visivelmente transtornada, mas se controlando]: Isso não faz sentido. ED MORT: Eu não escrevo os diálogos, boneca. Só estou no mundo pelo cachê. MULHER: Não, não pode ser! Esse desgraçado me paga! ED MORT: Falando em pagamento, madame, o serviço saiu... MULHER: Esse canalha vai ver só! [MULHER pega uma arma na gaveta de ED MORT] ED MORT [assustado]: Por favor, não me mate, eu tenho seis filhos pra criar e ainda nem conheci a mãe deles. MULHER: Se ele estivesse vivo eu dava na cara dele aqui mesmo, mas como não dá, só tem um jeito de fazer isso. ED MORT: Calma, não faça nada sem assinar esse cheque antes... MULHER: Adeus, mundo. ED MORT: Pode ser pré-datado; eu também aceito cartão... MULHER: Quando eu encontrar com aquele patife, eu mato ele de novo.
[MULHER sai correndo de cena. Ouve-se um tiro]
ED MORT: Pois é, a viúva virou defunta. A polícia levou minha arma
pra investigação. Prometeram devolver. Pedi que junto devolvessem a bala. Era a minha última. Até hoje ninguém me pagou. Só não entrei em contato com o espírito pra pedir o pagamento porque madame Aldiva exigiria os duzentos da consulta. Não fiquei com o dinheiro nem com a garota. Momento da sobrancelha O Mundo É Injusto Com As Pessoas Charmosas. Mort. Ed Mort. Vou ter que vender a plaqueta.