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Hierarquia

por Marcelo Marinho

(Entra o funcionário.)

FUNCIONÁRIO: Dr. Martinez, o senhor me chamou?

CHEFE: Sim, sim, senhor... (olha no papel) senhor Cafê.

FUNCIONÁRIO: É “Café”.

CHEFE: Não, obrigado. Mas sente-se.

(O funcionário se senta)

FUNCIONÁRIO: Então, posso ajudar em alguma coisa?

CHEFE: Você deve saber que está fazendo um bom trabalho aqui nessa empresa. Chega sempre no
horário, tem boa produtividade e até agora não tivemos nenhuma reclamação sobre o seu desempenho.
Você é o tipo de funcionário que nós nos orgulhamos de ter aqui. O tipo trabalhador, esforçado,
comprometido, sempre disposto a dar o sangue pelos companheiros. São trabalhadores como você que
fazem dessa uma grande empresa. Ou, se preferir, uma grande família.

(O funcionário ri simpaticamente)

CHEFE: Não ria, é verdade. Estamos sendo processados por nepotismo. Mas continuando, você se
parece muito comigo quando eu comecei aqui. E assim como eu tinha, estou certo de que você também
tem a mesma pergunta incessante na sua cabeça...

FUNCIONÁRIO: “Como eu faço pra mexer na máquina de xérox?”

CHEFE: ...“Até onde eu posso chegar nessa empresa?”. E eu posso lhe dizer que você pode chegar
bem longe. Se você continuar nesse ritmo, vejo você ocupando algum cargo de chefia muito em breve...
Mas as coisas não são tão simples assim. Preciso ser perfeitamente honesto com você. Chegou ao nosso
conhecimento que você anda sendo sondado por uma empresa que é nossa concorrente e você está em
dúvida entre nós duas.

FUNCIONÁRIO: Mas chef...

CHEFE: Por favor, meu jovem bígamo, não tente desmentir. Nós já sabemos que isso é verdade. A
única coisa que ainda não sabemos é o que você quer que nós façamos pra você continuar aqui. Como eu
já disse, você tem feito um trabalho acima da média e nós gostaríamos muito que você permanecesse
conosco. E então, o que você quer pra continuar trabalhando aqui?

(O funcionário pensa por alguns segundos.)

FUNCIONÁRIO: Está bem. Pra começar, eu quero uma alteração no salário.

CHEFE: Ah, eu sabia! Tudo bem. Quanto você quer passar a ganhar?

FUNCIONÁRIO: Três mil!


CHEFE: Três mil. E quanto você ganhava antes?

FUNCIONÁRIO: Cinco.

(O chefe fica olhando por alguns segundos para o funcionário com uma cara de incompreensão.)

CHEFE: Mas você estaria ganhando menos do que antes.

FUNCIONÁRIO: Sim. E daí?

CHEFE: E daí que isso está errado. Quando se faz uma negociação você tem que tentar aumentar o
seu salário.

FUNCIONÁRIO: E quem disse isso?

CHEFE: Todo mundo diz isso! Qualquer pessoa que não entrou em falência diz isso. Qualquer
criatura que estudou matemática na primeira série diz isso. Até mesmo quem estudou em escola pública
diz isso!

FUNCIONÁRIO: Óbvio que não!

CHEFE: Óbvio que sim!

(O funcionário vai ficando exaltado.)

FUNCIONÁRIO: Bobagem! Esse é o problema de vocês chefes. Estão sempre fazendo a vontade
do trabalhador. O funcionário quer aumento, vocês dão aumento. Quer melhores condições de trabalho,
vocês dão. Qualquer dia vão ser vocês que estarão servindo cafezinho pra eles. Se eu falei que quero
ganhar menos, então eu quero ganhar menos. E ponto.

CHEFE: Está bem, está bem. Eu não consigo entender, mas eu consigo reduzir o seu salário.
(rabisca alguma coisa no papel.) Pronto. A partir de hoje você passará a ganhar menos. Mais alguma
coisa?

FUNCIONÁRIO: Sim. As férias.

CHEFE: Sim?

FUNCIONÁRIO: Estão muito longas. Eu quero um corte nelas.

CHEFE: Mas você já está ganhando menos. Diminuir as férias não faz o menor sentido.

FUNCIONÁRIO: Claro que faz. Em primeiro lugar, as férias são muito longas. Trinta dias é muita
coisa. Se nem fevereiro em ano bissexto tem trinta dias, por que eu deveria ter? Ninguém tem planos
suficientes pra preencher tantos dias. Acaba todo mundo ficando sem o que fazer. E quem nas férias fica
sem nada o que fazer, no trabalho não tem vontade de fazer nada. E em segundo lugar, se eu estou
ganhando menos, aí mesmo é que eu preciso trabalhar mais. Pra poder juntar mais dinheiro.
CHEFE: Mas não é bem assim...

FUNCIONÁRIO: E falando em trabalhar mais, eu tenho mais uma condição.

CHEFE: Tem?!
(O chefe começa a ficar desesperado.)

FUNCIONÁRIO: Tenho. Quero um aumento na carga horária!

CHEFE: Na carga horária?!

FUNCIONÁRIO: Na carga horária!

CHEFE: Mas você já trabalha oito horas por dia.

FUNCIONÁRIO: Humpf, oito horas. Eu também durmo oito horas por dia. Você acharia justo se
eu recebesse um salário por isso também? Claro que não. Eu quero uma carga horária maior! De doze
horas seria o ideal, mas aceito fechar por dez.

CHEFE: Mas, por Deus, isso não dá pra fazer! E as leis trabalhistas? E os advogados? E o
sindicato? Como eles vão reagir?

FUNCIONÁRIO: Ah, não dá pra fazer?! Pois saiba que a outra empresa me ofereceu onze horas
por dia e só uma semana de férias! Se você não consegue igualar isso, acho melhor eu ir direto assinar
com ela.

(O funcionário faz menção de levantar da cadeira. O chefe fica completamente desesperado.)

CHEFE: Não, não! Tudo bem, eu aceito. (O chefe rabisca de novo no papel) Você terá uma carga
horária maior e só uma semana de férias.

FUNCIONÁRIO: Ótimo! E também têm várias coisas que podem ser excluídas aqui. O ar
condicionado, por exemplo. Brasileiro gosta de calor, gosta de suor, gosta de pouca roupa. Pode tirar o
ar condicionado. Também tem a máquina de café, a máquina de xérox e os computadores. Ah, e as
cadeiras também.

CHEFE: As cadeiras?!

FUNCIONÁRIO: Sim, as cadeiras. Se não vai ter computador, não precisa ter mesa. E se não vai
ter mesa, não precisa ter cadeira. As pessoas podem sentar no chão.

CHEFE: Mas veja bem, o senhor precisa entend...

(O funcionário fica bravo.)

FUNCIONÁRIO: “Senhor”? Onde já se viu o patrão chamar o funcionário de senhor?! Cadê a


hierarquia? Funcionário deve ser chamado de “seu incompetente”. Na melhor das hipóteses deve ser
tratado por “você”. Mas isso só uma vez por mês ou em dias santos, que é pra não ficar mal acostumado.

CHEFE: Você! Você! Me desculpe, é que...

FUNCIONÁRIO: Desculpa? Desculpa?! Chefe não pede desculpas! Chefe nunca erra! A única vez
que chefe erra é quando decide dar uma chance e contratar funcionário incompetente como eu!

CHEFE (quase chorando): Ok, ok, por favor...

FUNCIONÁRIO (enfurecido): Que “por favor”?! Você não tem que pedir favor. Você dá ordem!
Ordem! É você que manda aqui! Você! Você!
CHEFE (chorando): Está bem, eu desisto! Eu desisto! Eu aceito todas as suas condições. Você vai
ter tudo o que quiser! Pode escolher qualquer coisa que eu te dou. Pode acabar com as salas, as
televisões, a comida, com as paredes, com tudo. Tudo! Eu não aguento mais! Eu não aguento mais!

(O funcionário se cala e olha para o chefe, que continua chorando.)

FUNCIONÁRIO (bonzinho): Mas calma, também não é pra chorar. Tudo bem, eu aceito continuar
aqui.

CHEFE (com um misto de choro e sorriso): Aceita?

FUNCIONÁRIO: Aceito.

(O chefe dá risadas tímidas)

CHEFE: E agora?

FUNCIONÁRIO: Agora a gente sai porque tem outra cena depois dessa.

CHEFE: Ah, claro.

(O chefe se levanta e caminha em direção à saída.)

FUNCIONÁRIO: Hei!

(O chefe para e olha para trás.)

CHEFE: O que foi?

FUNCIONÁRIO (apontando para o cenário): E esse cenário, a gente vai deixar aqui?

CHEFE: Ah, é verdade.

(O chefe se dirige até o cenário e faz menção de carregá-lo, mas é parado pelo funcionário.)

FUNCIONÁRIO: O que você pensa que está fazendo?

CHEFE: Ué, eu vou pegar o cenário.

FUNCIONÁRIO: Chefe não carrega o cenário! É pra mandar eu carregar. Vai, manda!

CHEFE (assustado): Ah, está bem, está bem. Carrega!

FUNCIONÁRIO: Isso!!!

(O chefe sai de cena e o funcionário vai saindo atrás dele carregando o cenário.)

FUNCIONÁRIO: Nem parece que é capitalista!

(Fim da cena)

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