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Caso clínico

Willa

Identificação
W.W.P., sexo feminino, 84 anos, com 4 anos de escolaridade, destra.

Formulação clínica
Paciente mora só em seu apartamento há 10 anos, desde o falecimento de seu
marido. Conta que estava bem e há um dia passou a ter várias visões. Viu saindo fumaça
da televisão da cozinha que estava vermelha por dentro como se estivesse em chamas.
Desligou-a da tomada e a colocou no corredor do prédio. Enxergou um homem sentado
no sofá ao lado de uma mulher que parecia ser sua filha na sua sala que a olhava com
uma cara muito fria. Apareceram muitas cobras e outros bichos por toda a casa. Do
lustre e da televisão do seu quanto saia fumaça. Viu um macaco batendo palmas, vestido
com chapeuzinho, atrás da máquina de lavar roupa. Um urso marrom estava do lado do
guarda-roupa assim como baratas e ratos estavam espalhados pela casa. Nas paredes dos
cômodos do seu apartamento estavam repletas de frases escritas com tinta vermelha e
não se lembra o que diziam. Não conseguiu dormir nessa noite e passou a madrugada
com muito medo em um canto do seu quarto e mesmo assim não tinha tranqüilidade
porque as cobras e as baratas não deixavam em paz.
Ligou para sua filha às 6 horas da manhã desesperada com tudo o que estava
acontecendo. Diz que não ligou antes porque não queria incomodá-la. A filha foi buscá-
la e levou para sua casa, mas continuou com as visões e a filha a levou para consulta.
Chorou muito durante a consulta ao falar sobre seus problemas. Tem muito
medo de tudo que aconteceu e mesmo durante a consulta continuava vendo muitas
cobras e outros animais. Não tinha insight das suas visões.
O exame físico e neurológico estavam normais. Tem como comorbidades
hipertensão arterial sistêmica, osteoporose, osteoartrose e depressão.
Faz uso regular de Clortalidona 25mg, Glucosamina 1,5g ao dia e Residronato
de Sódio 35mg (01 comprimido por semana). Está sem medicação para a depressão há 2
anos, porque estava sentindo-se bem e por conta própria suspendeu a Fluoxetina.
Fez vários exames complementares: Ressonância Magnética de Crânio mostrou
achados compatíveis com seqüelas de insultos vasculares nos núcleos da base, coroa
radiada e centro semioval bilateral. Ecodoppler de carótidas e vertebrais sem lesões
hemodinamicamente significativas.
Com relação a bioquímica o ferro sérico estava abaixo da normalidade e o
hemograma mostrava 3.300.000 hemácias com hemoglobina de 9.4g%.
Paciente recebeu Risperidona 0,5mg a noite por 10 dias consecutivos com
melhora total dos sintomas e parou com esse medicamento.
Foi aplicado o Cambridge Examinatin for Mental Disorders for the Elderly
(CAMDEX) e sua bateria cognitiva Cambridge Cognitive Examination (CAMCOG).
Fazendo parte do CAMCOG temos o Mini Exame do Estado Mental (MEEM) e o Teste
do Desenho do Relógio (TDR). Também foram aplicados a Escala de Depressão
Geriátrica (EDG) e o Questionário de Atividades Funcionais de Pfeffer (QAFP).

Discussão 1
Paciente mora só e cuida dos afazeres domésticos, mas não faz a sua comida
porque almoça em um restaurante e quando isto não é possível come o que encomenda
do próprio restaurante. Sai, diariamente, para pequenas compras, para pagamentos de
contas, para ir à igreja e para caminhar pela cidade. Está em acompanhamento desde
1998 e de lá até hoje vários eventos negativos surgiram em sua vida; em 2002 o filho
ficou tetraplégico em conseqüência de uma cirurgia de hérnia cervical e a filha separou-
se depois de 13 anos de casada. De 2002 até 2006 foi operada de descolamento de retina
do olho esquerdo e várias cirurgias ortopédicas. Em 2006 o marido faleceu de IAM
enquanto estava dirigindo e provocou um acidente. Em 2009 a filha foi mastectomizada
por neoplasia à direita e em 2011 teve que retirar a mama esquerda. Nesse ano durante
colonoscopia perfurou o intestino e teve que ser operada tendo ficado com colostomia,
revertida três meses depois.
Seu apartamento está em reforma há 18 meses tendo as obras iniciadas em início
de 2014. Essa reforma foi determinada pelo condomínio e todos os apartamentos seriam
afetados. A obra que deveria durar 10 meses já ultrapassou em 8 para vários motivos
(quando a moradora não se encontra no apartamento os poderios não podem trabalhar).
O banheiro e o encanamento são os setores mais importantes da reforma e um dos canos
principais estava quebrado e por ele várias baratas invadiam seu apartamento e com
freqüência tinha que tampar o buraco do cano e eliminar as baratas. Quando os
pedreiros estavam trabalhando não podia sair para seus afazeres e sentia-se incomodada
com a presença deles.
Em julho de 2015 apresentou surto psicótico como descrito.
Em 2016 o filho faleceu após 15 anos de doença. Quase 30 dias após a morte do
filho faleceu um primo e atualmente uma cunhada está internada há 21 dias.

Discussão 2
Sabemos que depressão associada a estressores sociais, trauma psíquico e
privação sociossensorial pode levar a quadros de confusões mentais semelhantes a
demência (pseudodemência) porem a sintomatologia reverte com o tratamento
adequado. A paciente nos últimos 15 anos passou por vários estressores relacionados a
sua saúde social (tetraparesia do filho, separação da filha, morte do marido, assumir o
comando dos negócios, internação do filho numa casa de repouso, mastectomia da filha,
perfuração intestinal após colonoscopia na filha e a reforma do apartamento). Desde o
início das consultas em 2002 a paciente sempre foi portadora de depressão ansiosa.
Quando procurou para a consulta trazida pela filha com o surto psicótico apresentava as
alucinações principalmente a visão de cobras invadindo a sala de consulta. Foi
medicada com Risperidona 0,5mg e solicitado para a filha para que a tirasse do seu
apartamento e a levasse para sua casa. Com 10 dias de medicamento melhorou
completamente do quadro e retornou para seu apartamento (já completamente
reformado). Está em acompanhamento há 14 meses sem recidiva do quadro.
Myers (1999), psicólogo, após ressaltar que diferimos no modo como avaliamos
as inúmeras situações capazes de acionar a reação de estresse, aponta as catástrofes, as
mudança significativas na vida e os problemas do cotidiano como fatores estressantes
mais estudados, identificando o sentimento de perda do controle sobre a vida como
aspecto psicológico comum a todos eles. O modo como nos sentimos estressados
depende da maneira como avaliamos os eventos.
Segundo Lipp & Malagriss (2001) o estresse é uma resposta complexa do
organismo, que envolve reações físicas, psicológicas, mentais e hormonais frente a
qualquer evento que seja interpretado pela pessoa como desafiante.
Podemos enquadrar nossa paciente na psicose reativa breve que se caracteriza
pelo aparecimento abrupto de sintomas psicóticos sem a existência de sintomas pré
mórbidos e, habitualmente, segundo à um estressor psicossocial. O quadro clínico é
semelhante àqueles vistos em outros distúrbios psicóticos como na esquizofrenia e nos
transtornos afetivos com sintomas psicóticos. O prognóstico é bom e a persistência de
sintomas residuais não ocorre.
A CID recomenda que essa categoria de psicose deve ser restringida ao pequeno
grupo de afecções psicóticas em grande parte ou totalmente atribuídas a experiência
existencial recente. Deve ser entendida como uma alteração psicótica no qual os fatores
ambientais tem a maior influência etiológica.
Por definição de acordo com Kaplan, um estressor vivencial significativo
constitui um fator etiológico para esse distúrbio. Entretanto, melhor seria pensar nestes
fatores estressantes como desencadeadores do surto psicótico agudo. Portanto, a
patologia terá bases tanto biológicas quanto psicológicas.
Há hipóteses que a psicose representaria um mecanismo de defesa a um estressor
específico. Também poderíamos pensar que a depressão pudesse provocar esses
sintomas. O que observamos mais frequentemente nos distúrbios depressivos são
sintomas atrelados predominantemente a afetividade, normalmente sem grave prejuízo
da crítica, decorrentes de uma tríade sintomática básica e caracterizado por:
estreitamento do campo vivencial, inibição psíquica e sofrimento moral. Entretanto, em
casos mais graves há a classificação de depressão maior com sintomas psicóticos
quando então temos delírios e alucinações, confusão e outros sintomas francamente
psicóticos. Apesar da exuberância de tais sintomas devemos ter sempre o cuidado em
considerar tais fenômenos psicóticos (neste caso da depressão) como sendo de causa
secundária ao humor e não primária como na esquizofrenia.
Desde a primeira consulta a paciente sempre apresentou sintomas depressivos,
mas nunca preencheu critérios para depressão maior, acompanhados de ansiedade. Por
vários períodos fez uso de antidepressivos, nunca de forma continuada e por tempo
prolongado.

Conclusão
Depressão associada a trauma psíquico constante somado a estressores sociais
intensos

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