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Piero Eyben*
Universidade de Brasília
RESUMO
O presente artigo tem por objetivo discutir a construção da
herança narrativa advinda do texto homérico, pela Odisséia,
enquanto partes constitutivas dos conceitos filosóficos de dom
e temporalidade. Nesse sentido, buscou-se, pela análise da
enunciação de Odisseu-narrador (entendida sempre como
metáfora do próprio ato de narrar), compreender como o
processo de nomeação produz um efeito de identidade na
alteridade da recepção da herança clássica.
PALAVRAS-CHAVE
Narração, dom, tempo
E stranho o canto que se recebe, ajustado, das vozes que compõem a Odisseia
homérica. Na visão trazida pelas linhas da obra, o outro do autor que a compôs é
caracterizado como “acolhido pela comunidade” – Demódoco (hormetheìs theú érkheto)
– ou ainda, como aquele que fará lembrar o passado micênico já devastado pelo tempo.
O que se acolhe faz pertencer também; e nesse pertencimento, o canto se transmite
enquanto herança. Tem-se aqui a diferença original daquele que “ajusta o canto” (hómeros,
na sugestão de Trajano Vieira).1 enquanto metáfora da própria narrativa, desse ninguém
que também canta ao ouvido o mar salino e a panóplia hefaista.
A necessidade de uma precisão acerca do estranho faz com que se possa reconhecer
esse canto do nóstos enquanto nostalgia daquilo que se pode compreender como dom
trazido pela narrativa. Toda experiência nostálgica é, em si mesma, uma experiência que
compartilha certo deslocamento do tempo, certa compreensão de um lugar já sem lugar.
Há, assim, em toda nostalgia uma experiência com o retorno; ou melhor, com a diferença
do retorno. Aquilo que compreendemos hoje como epopeia clássica – mesmo que seja
em sentido restrito enquanto padrão mimético – em realidade perpassa toda uma noção
de vivência individual do tempo enquanto dom. Com isso quer-se dizer: a experiência
do doar é uma experiência aporética com o tempo. Jacques Derrida inscreve essas duas
palavras como um “laborieux artifice”2 de economia uma vez que, dependendo da noção
econômica de tempo enquanto circularidade (circulação e círculo), o dom, ao contrário,
não pode depender, se o queremos puramente, da noção de retorno sobre si. Nesse
* piero_zeyben@yahoo.com.br
1
VIEIRA. Introdução, p. 28.
2
DERRIDA. Donner le temps I: la fausse monnaine, p. 17.
Ce motif de la circulation peut donner à penser que la loi de l’économie est le retour –
circulaire – au point de départ, à l’origine, à la maison aussi. On aurait ainsi à suivre la
structure odysséique du récit économique. L’oikonomia emprunterait toujours le chemin
d’Ulysse. Celui-ci fait retour auprès de soi ou des siens, il ne s’éloigne qu’en vue de se
rapatrier, pour revenir au foyer à partir duquel le départ est donné et la part assignée, et
le parti pris, le lot échu, le destin commandé (moira). L’être auprès-de-soi de l’Idée dans
le Savoir Absolu serait odysséique en ce sens, celui d’une économie et d’une nostalgie,
d’un “mal du pays”, d’un exil provisoire en mal de réappropriation.3
3
DERRIDA. Donner le temps I: la fausse monnaine, p. 18 (grifos do autor).
4
ELIOT. Poesia, p. 138.
5
CALVINO. Por que ler os clássicos, p. 18.
6
DERRIDA. Donner le temps I: la fausse monnaine, p. 24.
7
BENJAMIN. Sobre o conceito da história, p. 224.
8
BENJAMIN. Sobre o conceito da história, p. 229.
9
DERRIDA. Donner le temps I: la fausse monnaine, p. 21.
10
CITATI. La pensée chatoyante: Ulysse e l’Odyssée.
Em última instância: Ulisses autoriza seu pseûdos com o pseûdos da Musa, comprovando
como de fato aprendeu foi com ela que há pseúdea pollà, mesmo incontáveis, e que os que
se contam devem sê-lo etýmoisin homoîa.11
11
BRANDÃO. Antiga Musa (arqueologia da ficção), p. 166.
12
RIFFATERRE. L’ilusion référentielle.
13
CITATI. La pensée chatoyante: Ulysse et l’Odyssée.
Filha querida e meu genro, ora o nome, que digo, lhe ponde.
Vim até aqui despertando inimigos por todo o caminho,
Homens não só, mas mulheres, na terra de solo fecundo.
Ora Odisseu lhe chamai, “que tem ódio”; há de ter esse nome.
Junito de Souza Brandão aponta que o antropônimo não viria apenas do ódio, mas
de “zangar-se, estar irritado com alguém”. 14 Sendo assim, a narrativa desse nome não
pode ser considerada como aquela marcada pelas glórias, mas nas desventuras do percurso
ao “solo fecundo”. Ora, é já nesse aspecto que Odisseu conta suas aventuras, no caminho
para casa; nesse caminho que é também a metáfora de toda narração. Narrar seria,
desvencilhando o espaço fora da lei do lar (oîkos), sofrer o tempo que necessariamente
vem do ódio sentido pela dor do herói como herança conferida pelo outro (seja por
Demódoco, seja por seu avô Autólico). O nome carregaria assim seu páthos e, nessa
jornada, o nomear é buscar uma representação com sua própria essência diferencial.
Ao contrário do vocativo (mou=sa), a narrativa de Odisseu inicia-se, no canto IX,
com a marca discursivo-subjetiva de primeira pessoa: Ei!m’ )Oduseu\j Laertia/dhj, o(\j
pa~si do/loisin a0nqrw/poisi me/lw, kai/ meu kle/oj ou0rano\n i(/kei (IX, vv. 19-20). Os
prodígios são a isca desse “sou”, marcadamente ativo e presente. A distância do chamado
das musas é substituída por uma afirmação de nome e parentesco que já traz consigo a
glória dos prodígios, mas também do sofrimento do nauta. Foucault, unindo o pensamento
de Blanchot à leitura dessa enunciação de Odisseu, ensaia descortinar a tarefa sempre
infinita da linguagem literária. A intrínseca relação entre escritura e morte é pensada
por ele como uma suspensão da cadeia de tempo por um espaçamento (artificioso) pela
repetição da narração, que redimensiona a experiência do tempo e do dom. Diz ele: “As
mais mortais decisões, inevitavelmente, ficam também suspensas no tempo de uma
narrativa. O discurso, como se sabe, tem o poder de deter a flecha já lançada em um
recuo do tempo que é seu espaço próprio.”15 Narrar é tomar decisões que sejam capazes
de nos dar a sensação de que o tempo está suspenso, recuado, retornado à sua origem
que, não sendo um ponto estável, se localiza como infinito na divulgação do discurso.
Naquele espaço anterior à linguagem, do qual fala Foucault, a identidade de Odisseu
pode ser criada, pela própria narrativa e naquilo que ela encerra como movimento de
apagamento e rasura, como uma espécie de afirmação do “dom da linguagem na morte”. 16
Ao escolher esse ei)/mi, Odisseu projeta sua autorrepresentação como redobramento
da linguagem sobre si mesma, gerando uma proximidade entre sua mortalidade – uma
vez que se afirma como mortal perante Calypso, ou ainda que não se afirme na negação
do qa/natoj – e sua presentificação enquanto narrativa. O “sou” de Odisseu é ação da
linguagem enquanto um processo – se quisermos nos aproximar de Foucault – ontológico
14
BRANDÃO. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega, p. 167.
15
FOUCAULT. A linguagem ao infinito, p. 47.
16
FOUCAULT. A linguagem ao infinito, p. 47.
A escrita significando não a coisa, mas a palavra, a obra da linguagem não faria outra
coisa além de avançar mais profundamente na impalpável densidade do espelho, suscitar
o duplo deste duplo que é já a escrita, descobrir assim um infinito possível e impossível,
perseguir incessantemente a palavra, mantê-la além da morte que a condena, e liberar o
jorro de um murmúrio.17
Nesta luta entre os nomes, em que uns se apresentam como semelhantes à verdade, e
outros afirmam a mesma coisa de si próprios, que critério adotaremos e a quem devemos
recorrer? Não, evidentemente, a outros nomes que não esses, pois não existem outros. É
17
FOUCAULT. A linguagem ao infinito, p. 49.
18
BLANCHOT. L’entretien infini.
Khôra recebe, para lhes dar lugar, todas as determinações, mas a nenhuma delas possui
como propriedade. Ela as possui, ela as tem, dado que as recebe, mas não as possui como
propriedades, não possui nada como propriedade particular. Ela não “é” nada além da
soma ou do processo daquilo que vem se inscrever “sobre” ela, a seu respeito, diretamente
a seu respeito, mas ela não é o assunto ou o suporte presente de todas essas interpretações,
se bem que, todavia, não se reduza a elas. Simplesmente, esse excesso não é nada, nada
que seja e se diga ontologicamente. 22
19
PLATÃO. Crátilo, 438d-e, p. 222-223.
20
Talvez aqui ainda se possa pensar que mesmo esse “sou” narrativo tenha uma relação íntima com o
próprio personagem que se dispõe enquanto narrador e protagonista de sua diegese.
21
DERRIDA. Khôra, p. 14.
22
DERRIDA. Khôra, p. 25-26 (grifos do autor).
23
DERRIDA. Positions, p. 38.
Mais à traduire la mémoire de ce qui précisément n’a pas eu lieu, de ce qui, ayant été
(l’)interdit, a dû néanmoins laisser une trace, un spectre, le corps fantomatique, le membre-
fantôme – sensible, douloureux, mais à peine lisible – de traces, de marques, de cicatrices.24
24
DERRIDA. Le monolinguisme de l’autre ou la prothèse d’origine, p. 118.
25
BOITANI. A sombra de Ulisses.
26
MELVILLE. Moby Dick, or The Wale , p. 3.
ABSTRACT
This article aims to discuss the construction of the narrative
heritage arising from the Homeric narrative, in the Odyssey,
as constituent parts of the philosophical concepts of gift and
temporality. Therefore, by the analysis of the enunciation of
Odisseus-narrator (always understood as a metaphor to
describe the act of narration itself), we understand how the
nomination process produces an effect of identity on the
alterity of classical heritage reception.
KEYWORDS
Narration, Gift, Time