Você está na página 1de 11

Joseph Brodsky1

Guilherme Gontijo Flores2


Um explorador polar

Os huskies devorados. Sem espaço


no seu diário. E o rastro dos seus traços
no rosto em sombra e sépia da esposa fecha
a data, feito toupeira, junto da bochecha.
Ao lado a foto da irmã. Toda a parentela pena:
chegou-se à latitude mais dantesca!
E como a meia de seda de uma rainha burlesca
seminua ela sobe a sua coxa: gangrena.

1977, traduzido pelo autor.

810 Eutomia, Recife, 13 (1): 810-820, Jul. 2014


A Polar Explorer

All the huskies are eaten. There is no space


left in the diary And the beads of quick
words scatter over his spouse's sepia-shaded face
adding the date in question like a mole to her lovely cheek.
Next the snapshot of his sister. He doesn't spare his kin:
what's been reached is the highest possible latitude!
And like the silk stocking of a burlesque half-nude
queen it climbs up his thigh: gangrene.

1977, translated by the author.

811 Eutomia, Recife, 13 (1): 810-820, Jul. 2014


Amante holandesa

Hotel cujos livros listam mais prominência de check-outs que check-ins.


Com Koh-i-noors molhados a chuva de outubro
afaga o que restou do cérebro desnudo.
Nesta pátria aplainada pra manter os rios nos confins
cervejas cheiram à Alemanha e gaivotas
planam no ar como os cantos sujos duma página.
Pontual como um legista a madrugada traja
neste recinto a veste estetoscópica
e detecta nas costelas do radiador um gelo forte:
nalgum lugar começa o post-mortem,
E assim também os cachos angelicais
crescem mais loiros, a pele ganha um novo elã
branco e distante, enquanto se enrolam lençóis
desesperados na lavanderia do porão.

1981, originalmente escrito em inglês.

812 Eutomia, Recife, 13 (1): 810-820, Jul. 2014


Dutch Mistress

A hotel in whose ledgers departures are more prominent than arrivals.


With wet Koh-i-noors the October rain
strokes what's left of the naked brain.
In this country laid flat for the sake of rivers,
beer smells of Germany and the seaguls are
in the air like a page's soiled corners.
Morning enters the premises with a coroner's
punctuality, puts its ear
to the ribs of a cold radiator, detects sub-zero:
the afterlife has to start somewhere.
Correspondingly, the angelic curls
grow more blond, the skin gains its distant, lordly
white, while the bedding already coils
desperately in the basement laundry.

1981, originally written in English.

813 Eutomia, Recife, 13 (1): 810-820, Jul. 2014


Elegia

Cerca de um ano depois. Voltei ao local da batalha


às suas aves que aprenderam o desprender do voo
erguendo o
dom sutil da pestana surpresa ou talvez da navalha
— voa ora a sombra do crepúsculo ora do sangue
ruim estatal.

Agora o lugar se alvoroçou de negociatas


nos bronzes restantes dos teus tornozelos
de couraças queimadas risos moribundos chagas
rumores de novas reservas memórias de traição
bandeiras lavadas com marcas dos tantos
que já se insurgiram.

Tudo lotado de gente. A ruína é a mais dogmática


escola arquitetônica. E a distinção cardíaca
numa caverna em puro breu
não é das boas; nem sequer nos
temeu em nova colisão que nem ovos cegos.
Na aurora quando mais ninguém se afronta
muito andei ao monumento fundido em longos
pesadelos. No pedestal gravaram “comandante
em chefe”, mas se lê “em blefe”, ou “em breve”
ou “em desmante”.

1985, traduzido pelo autor.

814 Eutomia, Recife, 13 (1): 810-820, Jul. 2014


Elegy

About a year has passed. I've returned to the place of the battle
to its birds that have learned their unfolding of wings
from a subtle
lift of a surprised eyebrow or perhaps from a razor blade
- wings now the shade of early twilight now of state
bad blood.

Now the place is abuzz with trading


in your ankles's remanants bronzes
of sunburnt breastplates dying laughter bruises
rumors of fresh reserves memories of high treason
laundered banners with imprints of the many
who since have risen.

All's overgrown with people. A ruin's a rather stubborn


architectural style. And the hearts's distinction
from a pitch-black cavern
isn't that great; not great enough to fear
that we may collide again like blind eggs somewhere.

At sunrise when nobody stares at one's face I often


set out on foot to a monument cast in molten
lengthy bad dreams. And it says on the plinth “commander
in chief.” But it reads “in grief” or “in brief”
or “in going under”

1985, translated by the author.

815 Eutomia, Recife, 13 (1): 810-820, Jul. 2014


1 de janeiro de 1965

Teu nome desaprenderão os Magos.


E sobre ti não brilhará um astro.
Somente um mesmo som cansado e vago —
o vendaval que ruge e gela.
As sombras caem dos teus olhos fartos
e morre a sós a vela no teu quarto,
noites o calendário faz no parto
até fechar lojas de vela.

O que carrega tal melancolia?


A melodia, quase da família.
Ela ressoa. E que assim seja a cria.
Que soe desta noite ao léu.
Que soe no momento em que eu morrer
por gratidão dos olhos e dos lábios
pois isso com que a gente ergue mais o
olhar para o longínquo céu.

Você encara o muro à tua frente.


Meias a bocejar: não são presentes.
Você já ficou velho e renitente
pra acreditar no bom Noel;
já ficou muito tarde pra milagres.
— Mas de repente, ao levantar a face
à luz dos céus, você por fim já sabe:
o grande dom a vida é teu.

traduzido por George Kline

816 Eutomia, Recife, 13 (1): 810-820, Jul. 2014


1 January 1965

The Wise Men will unlearn your name.


Above your head no star will flame.
One weary sound will be the same—
the hoarse roar of the gale.
The shadows fall from your tired eyes
as your lone bedside candle dies,
for here the calendar breeds nights
till stores of candles fail.

What prompts this melancholy key?


A long familiar melody.
It sounds again. So let it be.
Let it sound from this night.
Let it sound in my hour of death—
as gratefulness of eyes and lips
for that which sometimes makes us lift
our gaze to the far sky.

You glare in silence at the wall.


Your stocking gapes: no gifts at all.
It's clear that you are now too old
to trust in good Saint Nick;
that it's too late for miracles.
—But suddenly, lifting your eyes
to heaven's light, you realize:
your life is a sheer gift.

translated by George Kline

817 Eutomia, Recife, 13 (1): 810-820, Jul. 2014


1 de janeiro de 1965

Os magos perderão teu endereço.


Nenhuma estrela vai luzir teu berço.
O ouvido poderá ceder ao peso
ante os rugidos das nevascas.
As sombras caem sobre as tuas costas,
você apaga cada vela posta:
o calendário a cada noite aposta
até que toda vela masca.

Que é isso então? Tristeza? Sim, talvez.


Uma canção que nunca perde a vez.
Que se sabe de cor e de revés.
Que ela seja tocada junto
com tudo que vier, e o fim de alguém,
com olho e lábio gratos qual convém
para o que vez por outra nos mantém
treinados num distante assunto.

E ao encarar o céu sem nuvem fria


pois tua meia ainda está vazia
você compreende que essa economia
condiz com a idade: é inerente.
É muito tarde pra se converter,
pra milagres, Noéis ou mesmo crer,
então você percebe que você
mesmo é o teu maior presente.

traduzido pelo autor.

818 Eutomia, Recife, 13 (1): 810-820, Jul. 2014


1 January 1965

The kings will lose your old address.


No star will flare up to impress.
The ear may yield, under duress,
to blizzards’ nagging roar.
The shadows falling off your back,
you’d snuff the candle, hit the sack,
for calendars more nights can pack
than there are candles for.

What is this? Sadness? Yes, perhaps.


A little tune that never stops.
One knows by heart its downs and ups.
May it be played on par
with things to come, with one’s eclipse,
as gratefulness of eyes and lips
for what occasionally keeps
them trained on something far.

And staring up where no cloud drifts


because your sock’s devoid of gifts
you’ll understand this thrift: it fits
your age; it’s not a slight.
It is too late for some breakthrough,
for miracles, for Santa’s crew.
And suddenly you’ll realize that you
yourself are a gift outright.

translated by the author.

819 Eutomia, Recife, 13 (1): 810-820, Jul. 2014


1
Joseph BRODSKY (Iosiph Aleksandrovitch Brodsky, 1940–1996)
nasceu em Leningrado. Em 1964 foi preso e acusado de “parasita social” pelo regime soviético, e, depois de mais
perseguições, foi exilado em 1972 e se mudou para os Estados Unidos, onde se naturalizou, deu sequência à sua carreira
poética e lecionou em algumas universidades, como Yale e Cambridge. Em 1987 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, em
1991 foi considerado poeta laureado americano. Morreu de ataque cardíaco, em 1996, em Nova Iorque Sua obra é
composta de poesia (poemas em russo e inglês, além de autotraduções), peças de teatro, prosas esparsas e ensaios.
2
Guilherme Gontijo FLORES (Brasília, 1984)
é poeta, tradutor e professor de Latim na Universidade Federal do Paraná. Autor dos poemas de brasa enganosa (2013), já
publicou traduções d’ As janelas seguidas de poemas em prosa franceses, de Rainer Maria Rilke (em parceria com Bruno
D’Abruzzo), e d’A anatomia da melancolia, de Robert Burton (4 vols. Prêmio APCA de Tradução 2014). É coeditor do blog e
revista escamandro (www.escamandro.wordpress.com).

820 Eutomia, Recife, 13 (1): 810-820, Jul. 2014

Você também pode gostar