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ESTILO DE VIDA URBANO E

MODERNIDADE

Gilberto Velho

m dos temas centrais e cM.ssicos na plícilO, com a questão urbana. Esta tem
literatura sobre cicbdes é a ClraCIe­ sido ap resentada ora como fon Ie inesgo­
Iização de um estilo de vida urbano. tável de problemas, ora como ootável
Weber, Simmel, Parl<, WU1h, Redfield, en­ progresso na emlução social mas sempre
tre outros, desenml\'Cram reUexâes sis­ como um gr:mde desafio. Muitas VC2cs,
ICIIIátjcas que até hoje são referências mesmo nas ciêndas bum:103S, não fica
impor1:U\tes. Na passagem do século XIX claro, exatamente, de que cid-ule se fuja.
para O século xx. 00 entre guerras e oos Nas gen . - mais ambiciosas
anos que se seguiram à Seguoda Gr:mde podemos encontrar Atenas do século N
Guerra, foram prodl'Zidos trnbalhos em a. C. ao lado de l'aris do século XVIII, de
v.Irias áreas das ciências sociais cuja preo­ B:lgdá de HaJUo AI·Rachid, de Roma de
cupação principal era a caractedzação do Augusto e de Nova York coolemporlnea.
urbano, contrastado com o Clmpo, com Irei me concentrar aqui na gr:mde cidade
o meio JUral, com o muodo folk etc. O do mundo moderno contemporâneo, as­
impacto e os efeitos da cidade moderna sociada ao desenmlvimento do capitllis­
oa vida da sociecbde e dos indlviduos mo e da Revolução Industcial. Esta opção
mobilizava, como se sabe, não só o mun­ fic:uá mais justifocada no decorrer deste
do actdêmico uoiversitário, mas a Intel­ artigo, mas está essencialmente vincula·
l igentsia em geral. da a uma preocupação com uma teoria
Autores como Joyce, Musil e ProuSI da cultura.
retomavam lemas e problemas \'Cicula­ O ponto CundamenL'II da minha an:ili­
dos, piooeiramente, oa literatura por Bal- se é que, paralelamente a uma reorgani­
Dickens e Baudebire, impressiona­
7!1C, zação do espaço, às lr:lIIsfonnaçâes na
dos com a complexidade e os mistérios economia e na vida política, a metrópole
da gr:mde cidade. Poder-se-ia eoumerar contemporânea,l na sua constituição e
centenas de escritores, oiUcos, actislaS natureza, está indissoluvelmente assoei·,­
de vários tipos e orientações que oos da a modos especificos de rerort:lr e
últimos 150 anos lidaram, de modo ex- construir a =lidade. Ela é conseqüência

ESI"dor Hlstórlcol,lUo de Jaoc:iro, ,'oi. 8. nO 16, 199'. p. 227-23-<f.


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e, simuhaneamente, causa de noVJS vi­ das sociedades mas aproximou-as através


sões de mundo, com concepções parti­ de um complexo sistema de trocas que,
culares de tempo, espaço e indivíduo. tendo o mCJC1!d o como motor básico, de
Sabemos, através de trabalhos como os futo propiciou interações dos mais dife­
de Thompson, Elias e Foucaul� que a rentes tipos. Estas se d eram não SÓ atra­
Rc",lução Industrial e o Estado moder­ vés de mecanismos econômicos e comer­
no, na sua emergência e consolid�ção, ciais mas também graças ao contato, ge­
instituíram complexos sistem3S de con­ ralmente dillcil, entre universos simbóli­
trole e disciplinamento, traçando novos co-culturais dramaticamente distintos.
mapas de orienL� sociocultural, por Como sabemos, esses eooontros em
sua vez associados a modelos espeáficos poucos casos foram efe tivamente paófi..
de indivídualidwe. cos, gerando confrontos de grande vío­
A cidade tornou-se o Iocus, por exce­ lência nos planos econômico, polít.ico,
lL'1lcia, dessas mud1.nças nâo como te· militar e cultural. Assim, tanto interna­
cepL-ículo mente nas sociedades pioneiras da Revo­
de novas form3S de sociabilidade e inte­ lução Industrial como na sua expansão
ração social, de modo genérico. A explo­ planetária, o capitalismo moderno asso­
são demográfica, resultado de mudanças cia-se a mudanças significativas em todas
sócio-econômõcas, com progressos mé­ as esferas da vída social.
dicos e saniLíriOS, multiplicou muiL'tS VCP Insisto que este movímento não signi­
zes em curtos períodos de tempo o nú­ ficou homogenci>:JÇio mas mudanças,
mero de habitantes dos principais cen­ ou mesmo o surgimento de novas rela­
tros urbanos. As corrente� migratórias e ções internas às sociedades e entre socie­
os diversos deslocamentos de população dades distintas. Neste processo grupos
alteraram a relação tradicional entre cida­ sociais ou até sociedades inteiras entra­
de e campo. A divísão social do trabalh o, ram em colapso enquanto outros se ex­
com noY.lS regras e caracteristiC!1s do ca· pandiam e fortal..ci'm. CerL=ente foi
piLwmo em ascensão, destruiu modos uma das maiores transformações na his­
de vida tradicionais, alterando drastica- tória da humanidade, e é neste quadro
mente tanto as estruturas SOCl:IlS como o que se desen",lvem as metrópoles mo­
• •

ambiente natural. As sucessiv.LS inova­ derno-contempocineas.


çôes econômicas e tecoolôgicas, acelera­ No teneno dos rostumes e das men­
das a partir do século XVIII, cujas origens talidades, ou da cultura de um modo
recentes remontavam, pelo menos, aos mais sintético, assistimos àoonvivência e,
séculos XV e XVI, geraram um processo constantemente, ao confronto de visões
inédito de g1o balizlção ao estabelecerem de mundo diferenciad:Js, quando não ao·
vínculos econômicos, políticos e cultu­ tagônicas Todavia, no decorrer do pro­
rais entre quase todas as grandes regiôes cesso de interaÇio entre mentalidades
do planeta. e/ou culturas particulares, ao lado de ine­
As cid�des, sobretudo, por suas ativi­ gável destruição material e simbólica,
dades comercbis e induslri.1.is, constituí­ prodllzem-se combinações e transcultu­
ram-se nos pon tos de articulação dessa rações, nos termos de Oniz, geradoras de
grande rede que passou a conect:lr esfe­ novos significados e temas culturais.
ras diversificadas da vida socL-.J de socie­ Para compreender a complexidade e
dades distantes, geográfica e cultural­ dinamismo d..sses fenômenos que se de­
mente, umas das outras. Este processo, senvolvem de modo espedalmente in­
iniciado com a expansão marítima curo. tenso nas grandes cidades, urge superar
péia, não promcou a homogeneização uma vísão linear e urtidirnensional da
ErotO OEVlDA ",BANO EaOOlINIOADE 229

cultura. Os domínios da economia, da A divisão social do trabalho é o motor


política, da religião etc. não se encontram principal da especi31ização e do surgi­
OIgaoizJdo s eu, Cil.'l indL.'Ul3 ou em cama· mento de tarefus, carreiras, profissões,
das geológicas ou em compartimentos atividades e papéis que aumentam nu­
esranques. Até mesmo a noção de níveis mericamenae e ampliam, qualitativamen­
da realidade pode prodllziruma imagem te, o quadro de a1aernativas. De certa
perigosamente esquemática dos proces­ forma, confirma-se a idéia de maior liber­
sos socioculturais. Estes se d�o e criam dade nos grandes centros urbanos, dian­
múltiplos planos e dimensões com maior te do controle social abrangente das al­
ou menor grau de autonomia, e ml:xua deias, vilarejos e pequenas cidades. Esta
dificilmente esta possa ser concebida liberdade tem, no enranto, contrapartida
como complela. Correspondem a rit­ no anonimato, mesmo que rel3tivo (ver
mos, direções e modos de atenção distin­ Velho e Macbado, 1977), e na
tos em relação à vida em geral. ção da experiência social. Nos termos de
WllliamJames e A. Scbutz, por exem­ Simmel, encontmmos na metrópole um
plo, são autores que ajudam a pensar a extraordinário desenvolvirnento da cul­

realid1de em geral, m:1S particularmente tura objetiva, das reali7;Jçôes e recursos


a sociocultural, como composla de múl­ materiais, em flagrante desequilíbrio
tlpkJs dom{nkJs ou realidades. A grande com a cultura subjetiva (Simmel, 1903).
cidade não inaugura a heaerogeneidade. ESIa, em penodos e sociedades de menor
Todavia, associa da ao C:1piralismo e à Re· desenvolvimento material, econômico e
volução Industrial, apresenla-se como lo­ tecnológico, poderia apresenlar-se de
cus paradigm:ítico da diferenciação de modo mais pleno ou mais equilib rado
domínios e papéis sociais. em relação à cultura objetiva.
O esllkJ de vida urbano moderno­ Já se anunciava, portanto, em Simme l
conaemporãneo leva ao paroxismo os no início do século, a problem.1tica da
mCCUlismos universais de diferenciação, fr agmentação. Na sociedade moderna o
"ase da vida social. A inaeração inaensa e alto nível de especiali:raçã o se, por um
pennanente entre atores variados, circu · lado, aumenta a ap:ucnae liberdade de
lando entcc mundos e dorrúnios, num escolha, por outro, diminui, no mundo
espaço soci:tl e geografIcamenae delimi­ do trab-.liho, o campo possível de t:xpe­
tado, é um dos seus traços essenci-US. ri[-ncias individuais. Para Simme� a em­
Reitero que este processo, por sua vez, presa Clpil:1lista e a economia monetíria
só pode ser compreendido associado à fracionam as atividades produtivas em n
formação de um mercado mundial, à etapas e ocupaçôes, retomando, em ou­
expansão da moeda como meio de troca tro plano, a problemática da alienação.
univer.;:iliz:tn ae e, em geral, à ampliação A possibilidade de reconhecer-se e iden­
do horizonte de troClS m:ucrbis e s i.mb().. tificar-se com o produto, como na tradi­
liClS. ção artesanal, toma-se inviável no mun­
Sem diferenças nio há base para inae­ do da sociedade urbana industrial. Nada,
ração em qualquer nível. Mas para haver no enran to, é simples. A metrópole mo­
comunicação entre OS diferenles, geram­ derna oferece a possibilidade de transitar
se instrumenlos econôllÚcos, políticos e entre vários mundos e esferas diferencia­
simbólícos. Portanto, é fundamental não das. A fragmenlação do trahalho tem,
confundir comunicaç-:'o com homoge­ como outro lado da moeda, o desenvol­
neização, sob pena de sacrificar a com­ vimento de ár(as e domínios especializa.
preensão dos mecanismos m.-US elemen­ dos de sociabilidade, lner, clcnça re1i­
tares da vida em sociedade. giosa, atividade política etc. O relógio,
230 ISTLOO\ HISTÓIlCOI - 1991/11

elemen to central da cidade contemporâ­ conseQÜências gritantes para os dias de


nea, juntamente com a re.:lIganizaçáo do hoje. A moeda, como valor universalizan-
espaço social, sublinha e reforça as fron­ te, oonSUtuIU-se du um DlstnunelllO un�
• • • •

teiras entre mundos não só distinlOS mas fonnizador, por excdência, dos difelcn leS
até estranhos uns aos oullOS. significados culturais atribuídos a bens,
Ploust e Musil, por exemplo, capta­ serviços e atividades. O cálculo econômi-
ram magistralmente a coexistência, às 00, apoiado no sisIema monelário, atua

><zes semiclandestina, de estilos de vida como força nivebdora intra e inter-social


particulares. Estes são gerados a partir do nas rebções entre os mais diferetllcs aro­
trânsito maior ou menor entre domínios ICS inruvxbmis e coletivos. & cid.1des, com

e esferas mais ou menos legi tirn.wos. sua dimensão de meuMO e de centro


O enfraquecimenlO da dimensão ho­ econômico, em gerJl aprcsen tun um cc­
lista e hierarqu izante da sociedade acom­ nárloparticubm>en teriro paraapiCender
panha o forte desenvolvimenlO das ideo­ a diversidade possívd de alternativas 50-
logias individualistas. TanlO para Sim­ cioculturais. Por mais poderosos que se­
mel, quanlO para Dumont, assistimos no jam os mecanismos de mercado e a raci0-
Ocidente moderno a uma valorizaçio nalidade particubr que os acompanha, a
inédita do indi';:duo, erigindo-o como complexidade dos processos culturais e a
unidade básica da vida social, seja atr.lvés própria heterogeneid-we da socied.we
modemo-contemporânea produzirão
da vertente igualiL"Íria, seja atr.lvés da
vertente da singularidade. As ideologias combinações, sin lcses e interpreL�
individualis\'lS são variadas e complexas particulares.
mas, enquanto conJunto, expressam e A constJl3çio de que os indi';:duos

prodll:rem um novo quadro de valores adquirem, contemporaneamente, uma


que se opõe li ordem hiecirquica tradi­ mobilidade de iden!idade que lhes per­
cional, que teve na Europa a hierarquia mite transitar entre dominios e papéis,
feudal como sistema paradigmático. num processo de constante me/amorfa­
se, relativiza. o peso de racionalid-�des
Na medida em que o capiLwmo se
eJe>qm,ande pdo mundo, OS individualis­ especíl)cas em tr.ljelÓrias e conto.� lo­
mos se defrontatão com variados tipos de cali7AIdos (ver Velho, 1994). Isto não sig­
sociedades tradicionais, provocando nifica que não atuem sobre as biografias
conllitos e transcuIturaçóes muilO díspa­ individuais e sobre subculturas ou estilos
res. Por exemplo, na Ásia O encontro do de vida delimitados poderosas forças his­
capil3lismo europeu com culturas onde IÓricas e sociais que estabdecem tendên­
o islamismo predominava teve resulta­ cias, direções e limites.
dos claramente distintos quando compa­ Ou seja, tanlO a Liberdade individual
rados com o encontro com sociedades quanlO a identidade singular de grupos
ou grupos hinduistas. O maior ou menor situam-se num mundo de relações cujas
grau de laidt:lçáo e de aUlOnomia da fronteiras, en. muitos caSOS, podem ser
econ omia, a existência de mennismos planelárias. Este jogo entre o singubr e
políúros mais ou menos centra1jzadorcs. o universal, explicitado de modo dramá­
O grau de xenofobia etc. são algumas das tico nos grandes centros urbanos, se dá,
variáveis significativas a serem destacadas portanlO, num campo de possibilidades
nesse processo. especifico. Assim, o crescimen 10 e a difu­
A quesliio da racionalidade, ccrL�men­ são de ideolog1'\S individualistas, por
te, coo.sútui-se em um dos pontos ccn trais mais vigorosos que tenham sido, não se
e mais polênúcos para a anáJjse dessas deram de modo semelhante em culturas
grandes transfonmçijes pbnetárias com e grupos sociais diferenciados.
muo DEVIDA lllBAIIO 1100IlII11lAIlE 231

Certamente, no caso brasileiro, u m mente evidente nas cidades, as pessoas


dos fenômenos mais evidentes, paralelo elaboram suas identidades particulares
" modemiz3Çio econômica o: temológi­ com uma forte marca religiosa Mais es­
ca, tetll sido o desenmlvimenlO de cren­ pecificamente, lidam e intecagCill nos ri­
ças e cuhos religiosos ligados ao transe o: tuais com o utilizando uma lin­
" possessão. Embora não exclusim ao guagem em que o indivíduo está clara_
Brasil, sem dúvida aqui islO tem ocorrido mente inserido "111 uma rede de rel.ÇÕC5
de focma ahamente signiOcativa, atra..w" sociais e sobrctlaturais. Existem difeten-
sando toda a estrutura social e as mais ças unporlaUtes entre os grupos menClO-
• •

dife,elites regiões do pais. Este processo nados em termos de crença e adesão.


não se encabrn de m3neira fácil nos mo­ Internamente, ttmbérn, conSlalam-se di­
delos emlucionistlS modemiz;mtes que kreilças significativas entre os fléis, como
se baseiam em visões lineares e homoge­ congregue uni--

neiz3doras, onde uma suposta radonali­ versos numerosos e sociologicamente


dado: de aÇio econômica, associada à di­ heterogêneos.
fusão de teUlologias de ponla, estabele­ Considerando-se a multiplicid'de de
ceria os fundamenlOS de um eslllo de dominios, presente em qualquer socie­
vida I11CJdemo. Esla visão de mundo, dade, há que se reconhecer que as lógicas
cen trada na existência de um indivíduo do trabalho e da racionalidade econômi­
aulÔnomo, movido por uma racionalida­ Cl precisam ser relativ u..das para não
de que o levaria a maxi.mizac seus rendi· reduzir outros domínios e lógiCls a atra­
menlOS e beneficios econômicos, colide so, ignorãocia ou desvios exóticos. Vale
com a do cotidiano de nossa lembrar que o crescimento de movimen­
-

sociedade. IsIO ocorre, particulannente, tos nústicos, religiosos, esoterismos e


nas grandes cidades onde, ao lado da crenças mais ou menos a1ternatiY.lS não
nOlÓria desigualdade social geradora de
,
ocorre apenas no chamado Terceiro
tensão e con.O.ilOs, as difelenças de inter­ Mundo. Eles são encontrados, cada 'cz
prt'"I:!Çio o: construÇio da rrnlidade esla­ mais, nos países considerados mais de­
belec em descontinuidades cuhurais que senvolvidos, L1Jlto em termos econômi­
repercutem em IOdo o sistema de rela- cos como de conquistlS tecnológiCls e
çoes SOCr:1IS, eduClcionais.
- . .

o crescimento das religiões afro-brasi­ Não se traia apenas de aponttr a coe­


leiras como o clOdomblé, com seus des­ xisténcia de diferentes v isões de mundo
dobramentos, da umbanda, das diferen- e estilos de vida. É fundamental perceber
teS seitas e �as protestantes em que como os indivíduos lidam e se deslOClm
• • •

algum tipo de transe está presente, e até entre códigos e mundos diferenciados
o movimenlO cuismático CllÓlico, ilus­ q11an 10 aos Y.LIores, ariro tações e siste­
Irnm a importância na esfera religiosa da mas dassifiCllÔriOS. Assim, quando, por
sociedade coOlemporânea do que tem exemplo, técnicos de informática, que
sido chamado de eslado alterado de trabalham de oito a dez horas no compu­
oonsclêncfa (ver Bourgnignon, 1973). tador diariamente, são encontrados
Seja como transe genérico, seja como como fiéis em terreiros de umbanda, le­
possessão por espiritos de antepassados , mos um interess ante caso de participa­
entidades, deuses, guias, santos elC., Çio el1\ mundos difcrenciados.2 Talvez
53S crenças e cultos mobilizam dezenas não haja nada de extraordinário nisso.
de milhões de individuos. Ora penn:me­ Mas para os analistlS que apresenlam
cendo em um cullO espeáfico, ora tran­ uma visão unidimensionál da vida em
silando entre eles, fenômeno particular- sociedade soa absurdo o: contraditório.
232 IST� HISTÓiKOS - 199\/16

Não há como explicar esse fenômeno dos processos individ l'a1izantes. Estes re­
como "sobrevivência" de l'etustas trad� percutiram e ti>eram conseqüências, ca­
ções afriClllas pois traia-se de processo mo já foi c:li1O, em quase todas as regiões
contemporâneo agregando indivíduos do mundo. Resumindo, essas indiscu tí­
dos mais v.ui:ldos estratos e procedên­ veis conseqüências da e"('aDsão do capi-­
cias. Efetivamente estamOS nos defron· taBsmo ocidental associam-se a uma vi­
tando com uma demonstraçio da com­ são de modernidade, assenlada em con·
plexidade da vida sociocultural. Esla se cepções específicas de racionalidade e de
dá sempre em múlúplas dimensões e indivíduo. Apesar da força do seu impac­
planos. Mas é nas metrópoles e grandes to, esti3s transformaçócs inevitavelmente
cidades contemporâneas que assume interagem com tradições culturais di>er­
maior explicilação e niúdez. sificad.s. Assim, dão margem a sincretis­
Frise-se que mesmo as transformações mos, combinações e rein>enções cultu­
te""cno16gicas ap:ucntemente mais revolu· rais, não em número infinito, mas varia­
cionárias, como as da inform:íúm, não das e numerosas. Em outras palavras, as
produzem efeitos homogenei:z:Jdores crenças e valores tradicionais não desa·

para toda a sociedade. Alguns grupos e parecem necessariamente diante da ex·


segmentos vivem mais intensamente pansão das ideologias individualiscas
essa mudança sem que islO signifique modemizantes. O futo da sociedade ser,
que desapareçam crenças e vivências de por natuHm, multidimensional e hete­
outros domínios e contextos. Além disso, rogênea produz a1ternaúY.lS e cria no\'OS
grande parte da população, parúcular­ domínios.
mente em sociedades heterogêneas e de­ A não-Iinearidade e mulúdimensiona­
siguais, é aúogida muito lateralmente pe­ lidade dos processos soc ioculturais é ma­
las mudanças tecnológicas que podem, ximizada nos centros utbaoos cuja prin­
alLis, constituir-se em m.1is um falOr de cipal mracteristim é a geração de estilos
desiguald1de e de exclusão social. de vida e vwes de mundo diferenciados
A grande cidade não só incorpora vi­ que, no limite, levam à experiência da
sões de mundo e eslilos de vida díspares fragrnenlação. ESIa não é um impec:li·
como está penn:lnentemente produzin­ menlO à vida social mas uma mracterisú­
do processos de diferenciação. Em últi­ m marcante, até certo ponto inédita, da
ma aoálise, ou até como ponlO de parti­ modernidade. É o próprio potencial de
da, estará sempre criando noY.lS realida­ nretamorfose expresso, por exemplo, no
ClSO brasileiro, entre outros, pela expan·
des, dentro desse processo. A frngmenla­
ção, de um lado, é resullado de uma crise são das de transe e possessão
e divisão dramáLÍCIS de mundos holísti­ que pennite viabilizar O tdnsilO entre
cos tradicionais e, de outro, é a mulúpli­ dominios e a elaboração de novas formas
mção de experiências e valores até ine­ de iden údade social.
xistentes em uma ardeu'I anterior. PortanlO, o estilo de vida urb ano e a
O estilo de t>/da urbano contemporâ­ modernidade são fuces do mesmo fenô­
neo é a expressão mais radical dos pro­ meno de complexillcaçã o e diferencia­
cessos de individualiz;Jção da moderni­ ção da vida social, cujas principais mrac­
dade, cujas origens remonlam ao final da terÍsLÍcas são a não-linearid�de e a grande
Idade Média. Nesse periodo de mais de autonomia de mundos e dominios espe·
quinhentos anos Y.ÍrL-.s transformações cíficos.
signifimúY.lS OCOrreram em todos os do­ A própria definição de realidade está
minios da vida social do Ocidente mas sujeita a perman entes reavaliações em
com uma tendência geral de acentuação função das mod-ilid.des culturais e con·
ElTILO DE VIDA UiBANO E MODEKNIOAOE 233

tex\OS particulares. Conseqüenremenre _-=-. 1991. la soc/élé des Indlv/dus. Paris,


há que relativizar, apesar de evenruals F.yard.
prorestos, a própria consciência da rea­ FOUCAULT, Michel. 1977.HIsI6rladasexut;
lidade. Logo, por exemplo, o que deno­ {Idade l Rio de Janeiro, Gr.l3!.
minamos de estados alterados de cons­ . 1978. História da lo ucura na Idade
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ctêncta podem ser compreendidos, sim­ dásslca. São Paulo, Perspectiva.
plesmente, como mod,Jlidades possíveis
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1. Não estou fnendo neceSS3namemc: dis­ _--;:-. 1952. 'llle percepúons 01 ""dily", em
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entendê-las amb as oomo gigant.escos centros Books, Encydopedia Britmnica, cap. 21.
urbanos que se desenvolver:lrn. prinàp:ll-­ ___o 1952.
"Allenúon", em Principies of
fficntt; a partir do final do século XVIll, rela­ psycbology. TheGre:uBooks, Encydopo­
cionados ao desenvolvimentO Clpit:JJisla e à dia Britmnica, cap. 11.
expansão industrial em Ql13SC todas as regiões
do mundo. Normalmeme a idéia de meLrÓpo­ ORl1Z, Fernando. 1991 119631. Contrapu".
Ic corrcsponde a um centrO urbano cuja in­ /elo cubano dellabaco y e l aníror. u
Ouência é de esfera nacional ou mesmo inter­ Haoon a, Editoria.! de"(;iencias Sociales.
naàonal. Gr;lOde cidade é UlTU Cltegoria mais PARI<, Robert E. 1916. 'The clL}': suggestions
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xar. Rio uc Janeiro, Jorge ZaJur.

WEBER, Max. 1958. 1be d/y. M:utind3le e GUbcrto Velho é professor titular do Prt>­
Neuwirtb (org.), Glencoe. IIlinois, lbe gf:l1lU de Pós-Cf3du.ç'io em Antropologi. 50-
Free Press. cW do MII5eU Naoon:ü UFIU.
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