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Anderson Schreiber
Há, nos dois casos, um erro metodológico grave, que se tornou comum
no meio jurídico brasileiro: classificar os acontecimentos em abstrato como
“inevitáveis”, “imprevisíveis”, “extraordinários” para, a partir daí, extrair seus
efeitos para os contratos em geral. Nosso sistema jurídico não admite esse tipo
de abstração. O ponto de partida deve ser sempre cada relação contratual em
sua individualidade. É preciso, antes de se qualificar acontecimentos em teoria,
compreender o que aconteceu em cada contrato: houve efetivamente
impossibilidade de cumprimento da prestação pelo devedor? Ou – hipótese que
será necessariamente diversa – houve excessiva onerosidade para o
cumprimento da prestação? Ou houve, ainda, algum impacto diverso sobre a
relação contratual (como a frustração do fim contratual, o inadimplemento
antecipado etc.)? Ou não houve, como é possível, impacto algum? São
situações completamente distintas que somente podem ser aferidas à luz de
cada contrato e é somente após a verificação do que ocorreu em cada relação
contratual que se deve perquirir a causa (ou as causas) de tal ocorrência.
1
“Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se
expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força
maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.”
2
“Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se
tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos
extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença
que a decretar retroagirão à data da citação.” A revisão judicial do contrato encontra, por sua vez,
amparo no artigo 317 do Código Civil, consoante interpretação amplamente majoritária na doutrina
brasileira.
Em outras palavras: é somente à luz da impossibilidade da prestação
específica de um contrato que se pode cogitar, tecnicamente, de caso fortuito
ou força maior para fins de liberação do devedor. E o mesmo vale para
acontecimentos ditos extraordinários ou imprevisíveis, noção que somente faz
sentido juridicamente diante da aferição específica de excessiva onerosidade
para o cumprimento de um determinado contrato. 3 Não se pode classificar
acontecimentos – nem aqueles gravíssimos, como uma pandemia – de forma
teórica e genérica para, de uma tacada só, declarar que, pronto, de agora em
diante, todos os contratos podem ser extintos ou devem ser revistos.