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Devagar com o Andor: Coronavírus e Contratos

Importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de


qualquer medida terminativa ou revisional

Anderson Schreiber

Professor Titular de Direito Civil da UERJ

Multiplicam-se, nos últimos dias, artigos jurídicos sobre o impacto do


coronavírus nas relações contratuais. A maioria dos textos qualifica a pandemia
como “caso fortuito ou força maior”, concluindo, a partir daí, que os
contratantes não estão mais obrigados a cumprir seus contratos, nos termos
expressos do artigo 393 do Código Civil brasileiro. 1 Outros preferem qualificar o
espantoso avanço do novo coronavírus como “fato imprevisível e
extraordinário”, invocando o artigo 478 do Código Civil 2 para deixar ao
contratante a opção de extinguir o contrato ou exigir sua revisão judicial.

Há, nos dois casos, um erro metodológico grave, que se tornou comum
no meio jurídico brasileiro: classificar os acontecimentos em abstrato como
“inevitáveis”, “imprevisíveis”, “extraordinários” para, a partir daí, extrair seus
efeitos para os contratos em geral. Nosso sistema jurídico não admite esse tipo
de abstração. O ponto de partida deve ser sempre cada relação contratual em
sua individualidade. É preciso, antes de se qualificar acontecimentos em teoria,
compreender o que aconteceu em cada contrato: houve efetivamente
impossibilidade de cumprimento da prestação pelo devedor? Ou – hipótese que
será necessariamente diversa – houve excessiva onerosidade para o
cumprimento da prestação? Ou houve, ainda, algum impacto diverso sobre a
relação contratual (como a frustração do fim contratual, o inadimplemento
antecipado etc.)? Ou não houve, como é possível, impacto algum? São
situações completamente distintas que somente podem ser aferidas à luz de
cada contrato e é somente após a verificação do que ocorreu em cada relação
contratual que se deve perquirir a causa (ou as causas) de tal ocorrência.

1
“Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se
expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força
maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.”
2
“Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se
tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos
extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença
que a decretar retroagirão à data da citação.” A revisão judicial do contrato encontra, por sua vez,
amparo no artigo 317 do Código Civil, consoante interpretação amplamente majoritária na doutrina
brasileira.
Em outras palavras: é somente à luz da impossibilidade da prestação
específica de um contrato que se pode cogitar, tecnicamente, de caso fortuito
ou força maior para fins de liberação do devedor. E o mesmo vale para
acontecimentos ditos extraordinários ou imprevisíveis, noção que somente faz
sentido juridicamente diante da aferição específica de excessiva onerosidade
para o cumprimento de um determinado contrato. 3 Não se pode classificar
acontecimentos – nem aqueles gravíssimos, como uma pandemia – de forma
teórica e genérica para, de uma tacada só, declarar que, pronto, de agora em
diante, todos os contratos podem ser extintos ou devem ser revistos.

Aliás, mesmo nos casos concretos em que houver impossibilidade ou


excessiva onerosidade, não será necessariamente a pandemia em si o evento
que afeta o contrato. Em muitos casos, o impacto nos contratos está sendo
gerado por restrições adotadas pela Administração Pública – fato do príncipe,
na expressão consagrada na tradição publicista – em virtude da pandemia. São
essas restrições e sua influência sobre cada contrato que precisam ser
analisadas individualmente. E mais: mesmo quando se estiver diante de
situações de impossibilidade do cumprimento da prestação ou de excessiva
onerosidade para o seu cumprimento, como ocorre, por exemplo, com
contratos de transporte diante de fechamento de fronteiras e outras restrições à
circulação de pessoas, é preciso ter muito cuidado com fórmulas
generalizantes ou soluções em abstrato, especialmente aquelas que podem ser
invocadas para embasar o descumprimento de contratos em meio a um cenário
de crise.

Como diz o sábio provérbio, surgido nas procissões religiosas realizadas


no interior do Brasil: “devagar com o andor que o santo é de barro”. A queda
acentuada das bolsas de valores, associada à baixa dos preços do petróleo, e
outros tantos fatores negativos que se associaram naquilo que muitos já
consideram uma “tempestade perfeita”, pode tornar desinteressante a
preservação de muitos contratos já firmados. Nem por isso se terá aí
fundamento jurídico para rompimento ou mesmo para revisão do contrato, se
não houver impacto econômico direto sobre as prestações devidas. Não custa
lembrar que, para a economia em geral e para a própria preservação das
relações sociais, é imprescindível que a maior parte dos contratos já firmados
seja mantida e que as prestações devidas sejam cumpridas. O adequado
abastecimento dos centros urbanos, para ficar em apenas um exemplo,
depende fundamentalmente disso. O velho pacta sunt servanda não merece
ataques desnecessários nesse momento.

A propósito, convém registrar que, mesmo no âmbito daqueles contratos


cujas prestações sejam economicamente afetadas pelas restrições a todos
impostas neste momento, antes de qualquer pleito revisional deve-se recorrer à
3
Sobre o tema, seja consentido remeter a Anderson Schreiber, Equilíbrio Contratual e Dever de
Renegociar, São Paulo: Saraiva, 2018, pp. 202 e seguintes.
boa-fé objetiva e ao dever de renegociar. Soluções alternativas podem e
devem ser encontradas pelos próprios contratantes para preservar o
cumprimento de seus contratos, tanto mais na situação que estamos vivendo,
em que o Poder Judiciário, em funcionamento restrito, deve ser acionado
apenas para situações realmente urgentes. Extinção de vínculos contratuais e
revisão judicial de contratos são remédios extremos que as partes têm o dever
de evitar sempre que possível, diante do imperativo de mútua cooperação e
lealdade que deriva do artigo 422 do Código Civil brasileiro e do princípio
constitucional da solidariedade social (art. 3º, I).

A pandemia já está exigindo de todos nós – e promete exigir ainda mais


– sacrifícios pessoais e econômicos. É hora de suportarmos todos, na medida
das nossas forças, esses sacrifícios. À ciência jurídica compete servir de
instrumento para soluções que preservem, tanto quanto possível, os direitos
fundamentais dos cidadãos brasileiros e as bases econômicas necessárias
para que esses direitos sejam exercidos em sua máxima intensidade. Para
isso, é importantíssimo preservar tanto quanto possível os contratos já
celebrados, evitando o risco real de que, em um cenário de crise, os
instrumentos jurídicos sejam manipulados de modo oportunista por aqueles
que não têm real necessidade de aplicá-los.

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