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Meus questionamentos anteriores concentraram-se na idéia de que, tendo surgido em

determinada sociedade, a “modernidade” seria tão local quanto a própria cultura


daquela sociedade. Ora, mesmo que a “modernidade” que conhecemos fosse produto da
cultura cristã, sua genealogia não a condenaria a ser “mero” aspecto da cultura
local. Embora talvez não seja possível sua manifestação em um ambiente em que não
haja língua ou cultura, a capacidade humana de crítica nem por isso deixa de ser
uma realidade por si só, nem perde suas características. De fato, a modernidade é
“um” salto para o universal, e ainda seria, mesmo que só pudesse ser produzida em
condições locais muito específicas. Nesse sentido, não apenas concordo com sua
resposta, como me arrisco a tomar suas idéias de forma radical.Não obstante, há
ainda algo que julgo fazer sentido na expressão “fundamentalismo iluminista” e que
está relacionado à nossa discussão. Se a modernidade, como o pleno uso da razão,
não se confunde com uma cultura específica, como o Islã, e se a razão pode se
expressar através de quaisquer línguas ou meios culturais, tal fato não exclui sua
imagem inversa: a de que as crenças específicas de uma sociedade podem se
manifestar através do uso da razão e do valor dado a ela. Mais especificamente, me
questiono se o papel preponderante dado ao “salto universal” (ou a esse salto em
particular, pois nada garante que não haja outros saltos) em nossa cultura tem algo
de universal. Está claro que a capacidade de crítica e abstração pode ser
desenvolvida em diversos ambientes culturais, mas isso não significa que o valor
dado ao uso dessa razão não seja uma construção cultural particular. Creio que o
autor do artigo referia-se a uma suposta atitude arrogante frente ao fato de que
outras culturas podem simplesmente não se importar tanto com a modernidade quanto a
nossa. Tal atitude não seria propriamente “moderna”, mas fundamentalista, na medida
em que toma um julgamento particular (o uso da razão é de importância máxima) em
uma verdade presumidamente universal que pode, portanto, ser imposta a outrem.
Claro, um “fundamentalismo iluminista” é profundamente contraditório e irracional,
mas isso não impede que seja adotado por determinadas pessoas.

Resposta minha:

Não creio que a sua tentativa de salvar a expressão “fundamentalismo iluminista”


possa escapar das aporias do relativismo cultural, nas quais eu havia tocado, ao
falar da insustentabilidade da tese multiculturalista de Ash. O fundamentalismo
iluminista consistiria, segundo você, em tentar impor a modernidade ou a razão a
culturas para as quais elas não tenham tanta importância quanto para a nossa. Você
parte de dois pressupostos. O primeiro é o de que uma cultura não deve impor os
seus valores a outras: o de que é preciso respeitar os valores particulares das
diferentes culturas. O segundo é o de que a modernidade/razão tem mais importância
para a nossa cultura do que para outras.

Concordo com o seu primeiro pressuposto. Há, porém, um problema que você não me
parece ter suficientemente levado em conta, isto é, a determinação do status desse
pressuposto mesmo. Ele pertence a uma das culturas particulares ou é, como afirmei
no artigo sobre Ali e Ash, exterior, anterior e superior a elas?

Se ele pertencer a uma das culturas em jogo – digamos, à “cultura ocidental” --,
então, de fato, ele não pode, segundo seus próprios pressupostos, ser imposto senão
a essa mesma cultura: ser auto-imposto. Ele poderá, porém, ser negado por outras
culturas, que se afirmem superiores às demais. Aqui não estou falando de uma
hipótese abstrata. Os fundamentalistas islâmicos não raro se reportam a uma sura do
Alcorão que diz: “Matai os idólatras onde quer que os encontreis, e capturai-os, e
cercai-os e usai de emboscadas contra eles”. Adicione-se que, para eles, os
principais idólatras de hoje são precisamente os ocidentais modernos. Veja o
resultado: o relativista, para não ser chamado de “fundamentalista do iluminismo”,
se proíbe de criticar o fundamentalista muçulmano; este, porém, permite-se, com boa
consciência, usar contra aquele não apenas as armas da crítica, mas a crítica das
armas... Como diz o físico Steven Weinberg, “com ou sem religião haverá pessoas
boas fazendo coisas boas e pessoas más fazendo coisas más. Mas que as pessoas boas
façam coisas más, só a religião consegue”.

Para que tenha alguma eficácia, portanto, o seu pressuposto tem que ser exterior
(ele não pode fazer parte desta ou daquela cultura, mas da modernidade/razão, que
está fora de todas elas), anterior (como uma constituição, ele precisa limitar a
priori a soberania da cultura em questão: a sura mencionada, por exemplo, não pode
ser interpretada de modo literal ou fundamentalista) e superior (como uma
constituição, ele precisa anular qualquer disposição contrária às suas
determinações).

Sem dúvida você considerará justamente tal afirmação da modernidade/razão como


exterior, anterior e superior a qualquer cultura como algo que pertence à nossa
cultura, e que não temos direito de exportar, sob pena de nos tornarmos
“fundamentalistas do iluminismo”. Com efeito, segundo você, “outras culturas podem
simplesmente não se importar tanto com a modernidade quanto a nossa”. Aqui chegamos
ao seu segundo pressuposto, com o qual não concordo.

O problema é o que você quer dizer com “nossa” cultura? O Cristianismo? Você se
esquece das guerras religiosas do Cristianismo? Acontece que a razão/modernidade se
desenvolveu apesar do Cristianismo, e contra ele. Não foi o Cristianismo que
relativizou a si mesmo; nenhuma cultura relativiza a si própria. Essa relativização
foi feita pela razão/modernidade, que não é uma cultura e se encontra fora da
“nossa” e de todas as demais culturas. Como eu já disse no texto anterior, ela não
surge de qualquer cultura, mas do desvio, da crítica, da separação, levada a cabo
por alguns indivíduos, em relação à cultura em que foram criados.

Não é, portanto, que a nossa cultura tenha adotado a razão/modernidade. É que a


razão/modernidade trava, há séculos, uma luta titânica com a nossa – e com toda –
cultura particular, para estabelecer regras tais como o seu primeiro pressuposto:
de que uma cultura não deve impor os seus valores a outras, de modo que é preciso
respeitar os valores particulares das diferentes culturas. Mas isso, como eu disse,
só pode ser feito a partir do reconhecimento universal (não pelas culturas, mas
pelos indivíduos, pelas sociedades e pelos Estados e organismos internacionais) de
que a razão/modernidade não é uma cultura particular: de que ela é exterior,
anterior e superior a qualquer cultura particular.

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