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FadeI David Antonio Filho

Provavelmente, desde os tempos pré-


históricos, quando o homem já havia do-
minado o fogo para iluminar as trevas da
noite e aquecê-lo do frio, ele deve ter se
questionado sobre o sentido da existên-
cia. Provavelmente, quando já organiza-
do em pequenas comunidades, e tendo
conseguido equacionar os principais pro-
blemas de sobrevivência, o homem deve
ter começado a se indagar, na busca de
explicações, sobre os fenômenos com os
quais se deparava no seu cotidiano e ao
seu derredor. O por quê, o para quê e o
como sempre intrigaram a mente huma-
na.
Na busca de algum sentido ou propó-
sito, explicação ou compreensão para os
fenômenos ou fatos que fugiam da sua
capacidade de entendimento ou controle,
o homem foi levado a buscar respostas
dentro de seu próprio universo imaginá-
no.
Este lado emocional do homem, domi-
nado por angústias, desejos e temores,
levou-o a construir todo um conjunto de
alegorias que alimentou o estabelecimen-
111"
to de uma cosmovisão escatológica, nada pela noção de que algumas áreas motrizes da alma humana. A busca da
cada vez mais apurada, na qual pas- do conhecimento eram inacessíveis, ou eternidade encontrou, assim, na fé re-
saram a coexistir dois 'reinos' ou 'rea- proibidas, ao entendimento humano. ligiosa, o devido amparo e esperança
lidades' distintas: o físico ou material Nessa visão, a humanidade só é capaz para os espíritos intranqüilos e angus-
e o espiritual. Este último, considera- de entender o que Deus se digna a reve- tiados.
do 'superior' ao primeiro, passou a ser lar. Zeus acorrentou Prometeu a uma As crenças baseadas na fé geraram
chamado de 'mundo espiritual'. rocha por ter dado o fogo aos homens. instrumentos sociais de dominação,
Estabeleceu-se, assim, a divisão São Tomás de Aquino (1225-12 74) fa- através dos quais o acesso ao saber e
entre o que era humano (mundo mate- zia distinção entre conhecimento cien- ao conhecimento ficou restrito a gru-
rial ou físico) e o que era divino (mun- tífico -passível de descoberta pela men- pos privilegiados de pessoas que se ar-
do espiritual) e tal concepção veio a te humana - e conhecimento divino, 'su- voravam como os representantes do
impregnar profundamente a nossa cul- perior ao conhecimento do homem'. O mundo divino na Terra.
tura ocidental. conhecimento divino 'não pode ser bus- O grande cientista e sábio Albert
A partir daí, surgiu a noção de que, cado pelo homem por meio da razão, EINSTEIN (1994, 19), ao opinar sobre-
ao homem, estavam vetadas certas mas, uma vez revelado por Deus, deve religião, escreveu que para ele "a reli-
áreas do conhecimento ou do saber, ser aceito pela fé"'. gião é vivida antes de tudo como an-
cujo acesso só era permitido aos seres Desta forma, explica FERRY (1999), gústia. Não é inventada, mas essenci-
divinos ou a Deus. É dentro desta tra- fica evidente que a proposição das cren- almente estruturada pela casta sacer-
dição, por exemplo, que a teologia ju- ças religiosas, de modo geral, mesmo dotal, que institui o papel de interme-
daico-cristã incorpora a idéia do conhe- aquelas que se preocupam com as crí- diário entre seres terríveis e o povo,
cimento ou saber proibido, da trans- ticas alheias, está em oposição, por fundando assim sua hegemonia". E,
gressão (ou do pecado) e da culpa, im- princípio, ao discurso da ciência e da completa ele que, comumente, "c...)
en-
postos à humanidade como expiação ou razão, pelo simples fato de se embasar tre a casta política dominante e a cas-
castigo, pela 'desobediência' (ou me- numa 'Revelação'. ta sacerdotal se estabelece uma comu-
lhor, seria dizermos 'ousadia'?!) do pri- A 'verdade revelada' pretende, pois, nidade de interesses
meiro casal humano. A alegoria envol- ser uma verdade que não depende da Sobre este assunto, ainda é FERRY
vendo Adão e Eva, ou seja, a tentação prova ou demonstração científica. Isto (op.cit.) quem explica que o magistério
de comer o fruto proibido e a conse- significa que sua essência não pode ser da Igreja foi imposto ao longo dos anos
qüente expulsão do casal dos jardins avaliada pelo método experimental, à custa de autoridade, de excomunhões
do Éden, pode ser interpretada como o basicamente porque seu obieta (Deus), contra hereges e contra quem ousasse
momento no qual a: humanidade, ain- está além dos parâmetros passíveis ao contestar os dogmas e a 'verdade reve-
da primitiva, adquirira a capacidade tipo de experimentação praticada pe- lada'. Para isso criou-se um instrumen-
do raciocínio e a consciência de ser. las ciências. Além disso, a chamada to ignóbil, infamante, sanguinário e
Este momento crucial aconteceu a par- 'verdade revelada' implica na imposi- insano, o Tribunal da Santa Inquisição,
tir de um cérebro que evoluiu e tornou- ção de uma fé, que significa literalmen- que não poupou nem o sábio Galileu,
se capaz de armazenar informações da te uma confiança que deve ser imune pelo fato do mesmo ter discordado da
experiência vivida e deduzir daí a me- ao exame crítico e à discussão racional, visão geocêntrica, aceita, até então,
lhor ação a ser executada. O homem isto é, ao chamado procedimento cien- como incontestável pela fé religiosa.
perdera a 'inocência', deixando de agir tífico. Entre as milhares de vítimas sacrifi-
só com o instinto, como os seres irraci- Em razão disso, surgiram os dog- cadas por esta macabra instituição re-
onais. Estava capacitado, agora, para mas, as 'verdades' imutáveis e infalí- ligiosa, encontra-se um frade, o gran-
adquirir conhecimento e inquirir. Ou- veis que alimentaram, durante séculos, de Giordano Bruno, queimado vivo, em
sou e por isso foi castigado. a intransigência, a intolerância, o medo 1600, porque cometeu o erro de usar a
Sobre este assunto, escreveu LI- e o irracionalismo de grupos e mesmo razão para explicar certos conhecimen-
GHTMAN (1999, D6), professor de Ci- de povos inteiros. tos científicos.
ências Humanas e palestrante Sênior A fé religiosa alimentou também o O poder autoritário da Igreja sem-
de Física no Massachusetts Institute medo da morte, que os gregos denomi- pre usou a superstição e a ignorância
of Technology (MIT), que: "Durante navam de tanatus e que Sigmund para impor uma fé fundamentada no
séculos, a cultura ocidental foi domi- Freud demonstrou ser uma das forças medo, na ameaça, no sofrimento, no
sacrifício, na culpa e na indulgência
falaciosa.
II O.AJ.&.III......,
mentos que ocorreram na Europa, en-
tre os Séculos XVI e XVII, deu-se iní-
Por outro lado, muitos filósofos e cio a uma mudança radical no pensa-
estudiosos do espírito humano credi- Segundo a mitologia grega, o domí- mento ocidental. Como explica LIGHT-
tam à fé religiosa a imposição de re- nio do fogo, dado por Prometeu aos MAN (op.cit.), algumas mentes mais
gras e limites à conduta do homem, homens, constituiu um passo funda- inquietas e inquiridoras começaram a
determinando o que é comportamento mental na evolução da humanidade. perceber que o Universo como um todo
ético e de certo modo desestimulando Para a tradição judaico-cristã, o era cognoscível e apreensível para os
os excessos e reprimindo as anomali- homem conheceu o fruto proibido ou a seres humanos.
as. Isto tudo, sem entrarmos no méri- 'árvore' do conhecimento e a racionali- Na busca de explicações e entendi-
to da legitimidade ou não dos métodos dade, porém pagou o alto preço de per- mento dos fenômenos do mundo, atra-
e meios que, de uma maneira geral, são der a 'inocência' e os prazeres da vida vés da razão e do raciocínio lógico, o
empregados pelas religiões e crenças, no Éden. homem procurava desfazer-se das mis-
num primeiro sentido de controle, mas De qualquer maneira, na medida tificações impostas como verdades até
que também acaba por estabelecer for- em que o homem evoluiu das formas então consagradas. Neste intento, não
mas aceitáveis de convivência social. primitivas de primatas e adquiriu cons- cabia preocupar-se se havia ou não pro-
Se o universo físico é o domínio da ciência de sua existência, estabeleceu pósito ou sentido para o mundo. A Ci-
Ciência, que usa o concurso da razão uma relação interativa com o mundo, ência apresentava-se como uma postu-
como instrumento explicativo, sobre usando primeiramente como meio os ra 'neutra'.
seu correlato espiritual ela nada tem a cinco sentidos. Esta nova maneira de ver o mundo
dizer. Este universo espiritual, entre- As imagens do mundo ao derredor levou à construção de uma cosmovisão
tanto, é igualmente real para quem estavam diretamente relacionadas com diferente e não-teleológica. O mundo
nele acredita, através da fé. o que via, ouvia, cheirava e tocava .. O físico, palpável, mensurável, confron-
E, à Ciência não cabe responder uso do intelecto e do raciocínio, para tável, passível de ser analisado pelo
questões como o por quê da existên- tentar explicar o mundo, foi certamen- método experimental, era o único que
cia do Universo ou se ele tem algum te lento e exigiu o concurso de meca- poderia ter validade para o homem.
propósito. A religiosidade, com base nismos celebrais como, por exemplo, a Nascia, assim, a Ciência positivis-
na fé, toma para si tais explicações e observação, a comparação, a dedução, ta, cartesiana e mecanicista. O arca-
ainda de quebra fornece, àqueles que o armazenamento das informações re- bouço filosófico da Ciência moderna,
acreditam que a vida é algo transcen- gistradas pelos sentidos, etc. No entan- com base na razão, tomou impulso com
dental, a esperança (mesmo que pos- to, a maior parte dos avanços técnicos, a contribuição de homens de gênio
sa ser ilusória) de recuperar o Paraí- até o Século XV de nossa Era, estavam como Isac Newton, Descartes e Darwin,
so, perdido com a queda do homem relacionados à busca de soluções para entre outros.
pelo pecado. facilitar a própria sobrevivência ou pela A essência do racionalismo no pen-
Esta busca do Paraíso, de Xangri- necessidade de alcançar maior eficiên- samento científico pressupõe, sempre,
lá, de Agartha ou do Éden, perdido cia e segurança com relação aos emba- a dúvida. Há necessidade da demons-
pelo homem nos primórdios da huma- tes cotidianos. A invenção da roda, da tração experimental sobre todas as for-
nidade, é observada em quase todas escrita, a domesticação de animais e mas e ângulos de vista. Não há nada
as religiões e crenças do mundo. Este plantas, a percepção das estações do no conhecimento científico que seja
mito de que houve uma Era de Ouro ano, o conhecimento dos padrões dos definitivo e irretocável. A autocrítica
no passado remoto da humanidade ali- ventos dominantes e do movimento dos deve, sempre, permear toda descober-
menta, ainda hoje, a esperança de que astros no firmamento e, conseqüente- ta. Portanto, descartam-se dogmas e
viveremos um evento semelhante num mente, das rotas marítimas mais se- verdades absolutas. Os paradigmas da
futuro impreciso. O Apocalipse de São guras, garantiram ao homem certo do- Ciência são, assim, exemplos de saber
João ou a propalada Era de Aquário mínio sobre o meio natural, embora a relativo e pretensamente neutro e
dos esotéricos são exemplos de discur- visão do fantástico impregnava-lhe, pragmático.
sos que alimentam o mito, para cuja ainda, a imaginação e determinava O conhecimento do mundo propa-
crença é preciso ter muita fé e imagi- muita coisa de sua realidade. lado pela razão impõe regras de proce-
nação. A partir de uma série de aconteci- dimento e ordenação das 1111.

· N# 154 - ReVIsta O PRUMO = 33


observações feitas. Exige o registro em corrigir os desvios e se sujeitar à au-
dos fatos como testemunho e a expe- tocrítica.
rimentação como prova é como um es- Nota-se, assim, uma evolução da Ci-
tímulo à curiosidade da mente huma- ência, no sentido de emancipar-se dos
na, no sentido de impulso para conhe- limites rígidos impostos pelo racionalis-
cer e entender o funcionamento do mo cientificista e reducionista. Surgem
mundo. na Ciência moderna, os questionamen-
Há, contudo, implícita, no intuito tos sobre a moral, a ética, o sentido e a
do homem em usar o método científi- sabedoria que implicam as suas desco-
co, a necessidade de controlar os even- bertas. Há mais modéstia, menos oti-
tos, explicar, dominar ou pelo menos mismo e menos confiança nos cientis-
entender os fenômenos da vida e da tas, ho-je, do que nos do passado, com
morte. relação aos beneficios do progresso. Isso
A idéia de que o Universo é uma levou ao surgimento de uma ética cien-
grande máquina e como tal pode ser tífica, que para alguns se trata de uma
estudada nas suas partes componen- espécie de autocensura e, para outros,
tes, teve como premissa facilitar o en- uma maneira de evitar os desvios da
tendimento de suas engrenagens e do Ciência e de certa forma 'humanizar' a
seu mecanismo. Entretanto, essa ma- razão. Com isso, cai por terra a idéia de
neira de estudar o mundo levou a Ci- neutralidade da Ciência e da razão.
ência a compartimentar o conheci-
mento a uma tal forma que se perdeu III A FÉ E A RAZÃO-
a noção do todo. Esse cientificismo re-
ducionista acarretou, muitas vezes, o CONCILIÁVEIS
impasse e o radicalismo. Transformou OU NÃO?
o saber científico em domínios estan-
ques do conhecimento, um domínio
fragmentado não só do mundo, mas o embate entre a fé e a razão pode
com relação ao próprio homem. ser sentido ao longo da história do ho-
Contudo, hoje, esta forma de pen- mem.
sar é amplamente questionada pelos A fé religiosa dominou o pensamen-
próprios cientistas, demonstrando a to do homem, por séculos, nas diversas
excelência dos mecanismos da razão, culturas, mesmo nas civilizações mais
complexas e refinadas. Por exemplo, no
Egito Antigo a religião estabelecia as
relações da existência do indivíduo, do
nascer ao morrer e além da morte, per-
me ando todos os momentos da vida de
cada um. A exceção encontramos na
Antiga Grécia, berço da filosofia ociden-
tal, onde a razão e a lógica se desenvol-
veram. Embora os gregos (e mais tarde
os romanos) tivessem elaborado uma
complexa cosmovisão, rica em mitos e
existisse uma religião compartilhada
pelo cidadão comum, havia menos into-
lerância e a essência dessa religiosida-
de não trazia o peso do castigo decor-
rente de um pecado original, nem de
'verdades reveladas' ou dogmas invio- povos indígenas que se recusaram a se de a Revolução Francesa.
láveis. O mito era uma forma de expli- tomar cativos. Contudo, vale lembrar que na mai-
car o mundo e a religiosidade consistia Infelizmente, o Século XX e o início oria dos pontos cruciais, ao longo da
numa maneira pragmática de viver a do Século XXI, que marca a entrada do história da Ciência, a Igreja sempre se
vida. 3º Milênio da Era Cristã, ficarão regis- mostrou hostil com relação às desco-
Por outro lado, o radicalismo, a in- trados nos anais da História pelos vio- bertas de novas verdades pela razão.
transigência e a intolerância marca- lentos conflitos de fundo religioso: na Ainda de acordo com FFRRY
ram, na maioria das vezes, a fé religio- Irlanda do Norte, na Iugoslávia-Koso- (op.cit.). na medida em que muitas des-
sa, em particular o cristianismo. As vo, na Palestina-Israel, entre a Índia e cobertas científicas vinham desmentin-
Cruzadas, por exemplo, foram expedi- o Paquistão, entre o Irã e o Iraque, e do ou, no mínimo, questionando "seri-
ções militares enviadas à Terra Santa mais recentemente, dentro da Indoné- amente as afirmações literais da Bíblia,
para aniquilar os infiéis, além dos ob- sia, só para citar alguns. consideradas durante séculos como ver-
jetivos comerciais camuflados pela fé Igualmente, nossa época marca a dades intocáveis" - era preciso, portan-
religiosa dos promotores. Foram tão radicalização do Islamismo contra o to, reforçar a fé, proibindo, negando ou
violentas que os povos do Islã chama- Ocidente Cristão e mesmo dentro do repudiando essas descobertas.
vam os cristãos de bárbaros. Outro próprio mundo Ocidental, industriali- Sem a necessidade de detalharmos
exemplo, a Inquisição, não poupou nin- zado, moderno e democrático, observa- os exemplos do passado, os inenarrá-
guém; bastava uma simples suspeita e se um crescente exacerbamento da fé veis processos promovidos por católi-
milhares de pessoas eram assassina- religiosa, na forma de milhares de sei- cos e protestantes, condenando à mor-
das nas fogueiras ou submetidas a in- tas e cultos cristianizados que se utili- te milhares de inocentes, acusados de
descritíveis torturas, pelo crime de zam da mídia eletrônica e se transfor- serem hereges, pretensas bruxas, pos-
consciência ou por pura ignorância, tão mam, não raro, em poderosas e ricas suídos pelo demônio, sacrílegos ou sim-
comum naqueles tempos medievais. organizações, com ramificações no ples judeus (acusados de usura, blas-
Tudo em nome da fé dominante que não mundo dos negócios. A fé religiosa pas- fêmia ou teomicídio), sabemos, entre-
admitia contestação. sa a ser um produto altamente vendá- tanto, o que se escondia por trás da fé,
Nas terras da América, a religião vel e rendoso, à semelhança das fran- em muitos destes casos: a mesquinhez,
abençoou o genocídio dos povos indí- quias e dos 'fast food'. a inveja, a traição, a ignorância, a ma-
genas, em nome de uma fé que para FERRY (op.cit.) mostra, em seu levolência ou a pura ganância. A con-
aquela gente não fazia o menor senti- magistral artigo, que um dos aconteci- denação dos Cavaleiros Templários e
do. Foi assim que desapareceram, ao mentos mais importantes deste fim de a morte na fogueira de seu último
fio da espada ou despedaçados pelo século consiste na reconciliação da Igre- grão-mestre, Jacques DeMolay, cor-
arcabuz e pelo canhão, as civilizações ja Católica com os regimes democráti- responde exatamente ao exemplo.
Inca e Asteca, bem como centenas de cos, que foram por ela combatidos des- 111.
No nosso Século XX, essa intolerân- osa, tão em moda nos nossos dias, usa-
cia e radicalismo da fé permaneceram, va a seguinte argumentação: dizia ele
sem fogueiras, mas com as conseqüên- que a Bíblia era imutável, que durante
cias da condenação pública. Nos EUA, séculos nenhuma das 'verdades reve-
por exemplo, as discussões e embates ladas' ou fatos ali descritos foram des-
entre 'criacionistas'(que aceitam so- mentidos. Por outro lado, dizia ele, uma
mente a versão bíblica para explicar o 'verdade científica', hoje, pode ser des-
surgimento da vida na Terra) e os mentida por outra nova verdade ama-
'evolucionistas'(que rejeitam a versão nhã, perdendo aquela sua validade.
bíblica e aceitam as afirmações cientí- Ora, o dito pastor não considerou
ficas), ainda hoje ocorrem e chegam a algo fundamental, como diriam Jean-
ser muito 'elucidativas' e 'hilárias', para Claude CARRLÉRE, Jean AUDOUZE
não dizer ridículas e inconseqüentes. e Michel CASSÉ (1991,35): "A Ciência
Assim foi o célebre caso de Thomas duvida, a religião afirma" (JCC); "E
Scope, então um jovem professor de ci- justamente porque afirma que ela ain-
ências em uma escola pública de da tem tantos fiéis" (MC), pois "Uma
Dayton (Ohio, EUA), onde, em 1925, religião que duvidasse seria inconcebí-
sofreu um ruidoso processo (conhecido vel" (JA). adequados e convincentes para enten-
como "O processo do Macaco"), no qual Embora reconhecendo que a razão dermos o mundo. Como explica SA-
foi condenado a pagar 100 dólares de não explica tudo e a Ciência está longe GAN (1997,41): "O modo científico de
multa por ter ensinado a teoria da evo- de ser um instrumento perfeito do co- pensar é ao mesmo tempo imaginativo
lução aos seus alunos. nhecimento, é, entretanto, o melhor de e disciplinado. Isso é fundamental para
Antes, em 1923, ainda nos EUA, cin- que dispomos. o seu sucesso. A ciência nos convida a
co professores do Kentucky Wesleyan Talvez a imagem e a explicação do acolher os fatos, mesmo quando eles
College foram demitidos pelo simples Universo e da vida não seja ainda exa- não se ajustam às nossas pré-concep-
fato de terem defendido a tese de que tamente esta que a razão propõe, nem ções. Aconselha-nos a guardar hipóte-
não havia contradição entre a evolu- muito menos o que a Revelação impõe. ses alternativas em nossas mentes, para
ção e a Bíblia. Talvez fosse mais interessante se ver qual se adapta melhor à realidade.
É igualmente assustador que fatos nos dispuséssemos a analisar, com a Impõe-nos um equilíbrio delicado en-
semelhantes continuem ocorrendo nos mente aberta e sem qualquer precon- tre uma abertura sem barreiras para
EUA, muitos nas décadas de 80 e 90. ceito, uma famosa frase dita por PAS- idéias novas, por mais heréticas que
Por exemplo, em 1999, em alguns Es- TEUR (apud FERRY, op.cit.,D 1) "que sejam, e o exame cético mais rigoroso
tados americanos, devido à pressão dos se um pouco de ciência nos afasta de de tudo - das idéias novas e do conheci-
'lobbys' cristãos 'criacionistas', as esco- Deus, muita ciência nos reconduz a ele". mento esclarecido", pois, "além disso,
las não puderam ensinar a teoria da O grande equívoco do homem, no os cientistas têm em geral o cuidado de
evolução de Darwin, nem a idade geo- nosso entender, é cada um aferrar-se à caracterizar o status verídico de suas
lógica da Terra aceita pela Ciência, nem idéia de que a razão ou a fé religiosa tentativas de compreender o mundo -
mesmo a teoria do Big-Bang, sobre a pode ter resposta para tudo. que vão desde conjeturas e hipóteses,
origem do Universo. E lei, portanto A constatação feita por JIING que são altamente experimentais, até as
deve ser acatada e ponto final. Isso (1990), de que o homem não sabe mais leis da Natureza, que são repetidas e
ocorre, lembremos, na maior potência fabular e que se recusa a entender que sistematicamente confirmadas por
do mundo atual. os mitos são formas antiqüíssimas da muitas pesquisas sobre o funcionamen-
Sobre isso recordemos que, desde Ciência e que poderíamos aprender to do mundo. Mas até as leis da Natu-
1860, o evolucionismo já havia sido con- muito com essa velha sabedoria, pode reza não são absolutamente certas.
denado pela Igreja, no Concílio de Co- . conter uma profunda e reveladora ver- Pode haver novas circunstâncias nun-
lônia e Charles Darwin excomungado. dade. ca antes examinadas C.)".
Recentemente, aqui no Brasil, um Por outro lado, entendemos que a Deduz-se desta longa explicação
pastor neopentecostal, num desses pro- razão, com todas as suas possíveis li- uma premissa que ao nosso ver, é de
gramas televisivos de pregação religi- mitações, nos oferece os meios mais fundamental importância: a imagina-

36 - Revista O PRUMO - N2 15.J.


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ção. Exatamente aquela imaginação va da existência de Deus. Demonstra acidente biológico sem conseqüências
que impulsiona o espírito científico, apenas que existem certas coisas que e efêmero. No máximo, talvez, somos
armado fortemente com seu método, a não entendemos. Além disso, dessa in- um milagre, um evento extraordinari-
atingir uma espécie de 'religiosidade compreensão também nada pode ser amente raro e assustadoramente iné-
cósmica'. E aqui vale distingui-Ia, como verdadeiramente deduzido. dito. Contudo, possuímos o poder de
diria Albert EINSTEIN(op.cit.), das Da mesma forma, a infelicidade que escolha e a percepção de que existimos
crenças das multidões ingênuas que atinge os inocentes ou as pavorosas tra- num mundo que ainda, felizmente, es-
consideram Deus um ser de quem es- gédias que, indistintamente, atingem conde segredos e mistérios para desco-
peram benignidade e do qual temem o multidões, tampouco podem servir de brirmos e nos maravilharmos.
castigo, um Deus antropomórfico, que prova da inexistência de Deus, se ad- Portanto, temos que deixar nossa
fez o homem à sua semelhança e com mitirmos que os desígnios do Senhor mente sempre aberta ao conhecimen-
ele também trava relações pessoais, são insondáveis. to e livre dos dogmas e das 'verdades
com todo o respeito e reverência, claro. De qualquer maneira, as pretensas absolutas'. Somente assim teremos a
Por sua vez, esta espécie de religio- provas ou argumentações da fé e da grandeza e o gozo de usufruirmos des-
sidade cósmica, como descreve EINS- razão, certamente nunca convencerão ta fantástica aventura que é a vida .•
TEIN (op.cit.,23), "(..) consiste em es- ninguém quejá não estiver previamen-
pantar-se, em extasiar-se diante da te convencido. A verdade de cada um é
harmonia das leis da natureza, reve- única e cabe na própria percepção que
lando uma inteligência tão superior que se tem do mundo. Contudo, e apesar
todos os pensamentos humanos e todo de tudo, é possível que nos limites da REFERÊNCIAS BmLIOGRÁFlcAS
AUDOUZE, l.1 CASSÉ, M. & CARRIÊRE, J-C - Conversas Sobre o
seu engenho não podem desvendar, di- razão se aloje a fé. Invisível - Especulações sobre o Universo. S.Paulo, Brasll!-
ense, 1991.
ante dela, a não ser seu nada irrisó- Por fim, qual a lição a ser tirada dis-
."
no. to tudo? A de que nós somos seres hu-
EINSTEIN, Albert - Como Vejo o Mundo. S.Paulo, Círculo do LI-
vro, 1994.
FERRY, Luc - ..A sombra de Deus nas aventuras da ciência". O Esta.
Talvez melhor seria pensar o mun- manos, meros mortais e insignifican- do de S.Paulo. Cultura, Caderno 2, 10/10/1999, p.D1.

do não como uma grande máquina, mas tes quando comparados na escala do ~A reconciliação da Igreja com a CIência", O Estado
como um grande pensamento, diria Cosmos? Afinal, como a Ciência afir- de S.Paulo. Cultura, Caderno 2, 10/10/1999, p.D5.

ainda Albert Einstein. ma, somos 'filhos das estrelas' e evolu- FROST lR., S.E. - Enslnamentos Básicos dos Grandes Filósofos.
S.Paulo, Cultrlx, 1961.
Neste caso, teríamos a liberdade to- ímos até ganharmos uma consciência,
JUNG, C.G. - Memórias, Sonhos, Reflexões. S.Paulo, Círculo do
tal em imaginar Deus, se for o caso, que tem o dom da imaginação, capaz Livro, 1990.

como bem julgássemos, sem idéias im- de nos levar aos confins do Universo. lIGHTMAN, Alan . "Ciência de um lado, Religião de outro". O Esta-
do de S.Paulo. Cultura, Caderno 2, 10/10/1 999. p.D6.
postas, sem antropomorfismos e sem Pensamos, raciocinamos e temos o
SAGAN, Carl - O Mundo Assombrado pelos Demônios - A Clên·
egoísmos. Ou mesmo, não imaginá-lo. discernimento para distinguir a estu- cla vista como uma vela no escuro. S.Paulo, Companhia

Pois, que o mundo seja contingente pidez da inteligência e a ignorância da das Letras, 1997.

e nos pareça perfeito, não constitui, no sabedoria. Podemos não significar ab-
• ARLS:. Estrada do Rio Claro
sentido estrito, de forma alguma, pro- solutamente nada, um mero acaso, um
Or:. de Rio Claro - SP

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