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Promotor de Justiça no Ceará, Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará, Professor na FANOR –
Faculdades Nordeste e ESMP – Escola Superior do Ministério Público do Ceará.
no cenário nacional, denota com inegável clareza o nível de porosidade que muitas vezes se
dá ao assunto, e que, assim, acaba incidindo sobre o Tribunal do Júri Popular.
A inserção desses tipos penais no atual Código Penal, que remonta da redação original
de 1940, é resultado da prevalência de forças direcionadas à criminalização desse tipo de
conduta. Não é, pois, fruto do acaso ou de uma suposta ideologia do legislador. Essa
criminalização é o reconhecimento da necessidade de utilização do sistema punitivo para
desestimular determinada prática social ou reprovar certos modelos de conduta, ou seja, no
fundo, reproduz uma perspectiva masculinizada dos direitos reprodutivos da mulher. E é na
ação das instâncias iniciais do sistema de justiça criminal, a polícia e o Ministério Público,
que os casos são levados para o Judiciário. Os pontos de vista das autoridades policiais e dos
Promotores de Justiça, segundo nos parece, é fator decisivo para que um caso de aborto se
torne conteudificado numa lide penal (criminalização secundária). Esclarece Zaffaroni que a
criminalização secundária “é a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, que
acontecem quando as agências policiais detectam uma pessoa que supõe-se tenha praticado
certo ato criminalizado primariamente, a investigam, em alguns casos privam-na de sua
liberdade de ir e vir, submetem-na à agência judicial, que legitima tais iniciativas e admite
um processo”iv.
Isso não significa, porém, que o aborto esteja completamente à margem do sistema de
justiça criminal. A seletividade desse sistema ainda alcança, mesmo em casos cada vez mais
raros, mulheres ou terceiros que praticam aborto. É preciso avaliar, pois, como o sistema de
justiça criminal absorve esse tipo penal, e por derradeiro, qual o contexto de sua entronização
no julgamento perante o Tribunal do Júri Popular, que é o órgão constitucionalmente
competente para apreciar essa causa.
Não pretendemos delinear aqui um quadro geral da teoria sistêmica, tampouco analisar
a fundo suas implicações na ciência jurídica, somente esboçar alguns traços de seus mais
importantes conceitos, tendo em vista o que se nos apresenta mais adiante: a influência do
sistema de justiça criminal na decisão proferida pelos jurados no Tribunal do Júri Popular.
Assim, o sistema de justiça criminal também não deixa de ser um aparelho burocrático,
isto é, lida com clientela, rotinas, fluxo de procedimentos, o que pode ser esquematizado da
seguinte forma:
Retroalimentação (Feedback)
A episteme, tal como concebida pelos gregos, desenvolve-se em oposição à doxia, que
se resume a uma mera opinião a respeito de uma circunstância ou de uma idéia. De igual
modo, no Tribunal do Júri Popular, o que se observa é que prevalece a simples opinião dos
jurados que, dada a desnecessidade de justificação de suas motivações, já que seu voto é
sigiloso, não raras vezes vem desacompanhada de qualquer raciocínio técnico-jurídico que o
conduza a um juízo de convencimento sobre a responsabilidade penal do réu. O direito,
porém, não pode se contentar com a doxia e, assim, ser dogmático. Afinal, o direito possui
uma função social e política. Com efeito, é salutar que o conhecimento jurídico venha a
compreender padrões de cientificidade, de modo a melhor cumprir suas funções no meio
social, como mecanismo regulador da convivência. Nessa paisagem, descortinam-se os
direitos fundamentais como um modelo para conhecer o direito como um todo.
As dimensões da problemática jurídica segundo o modelo de Dreier-Alexy se propõem
a formatar uma teoria dos direitos fundamentais. Desse modo, estar-se-ia diante de uma
tridimensionalidade do jurídico, a saber: analítica (formal), de conteúdo lógico; normativista,
esta por sua vez, axiológica; e empírica, que se entende epistemológica.
Referida teoria dos direitos fundamentais não trata de algo já posto, numa fórmula
acabada, mas convidativo para ser desenvolvido. Constitui-se, a bem da verdade, numa
metodologia dinâmica e unificante, de maneira que possa abarcar a múltipla dimensionalidade
do fenômeno jurídico. Quer dizer, é um método singular de abordagem do problema jurídico,
tal como ele se nos apresenta no mundo dos fatos, ou mundo da vida, no dizer de Habermas.
Não resta dúvida, pois, da importância de uma teoria dos direitos fundamentais para o
conhecimento jurídico e, sob essa perspectiva, para uma elucidação da intrincada gama de
variáveis mergulhadas na análise da instituição do Júri Popular, onde fatores
socioeconômicos e políticos se imiscuem de maneira mais evidente com o conteúdo
jurídico. Certamente, não se deve vislumbrar o Júri Popular na restritiva ótica técnico-
jurídica, senão como modelo de julgamento aberto à participação popular, posto que, em
razão justamente da intervenção direta – mas não necessariamente efetiva – do povo, o
problema se coloca para o investigador num panorama bem mais abrangente.
Queremos crer que os direitos fundamentais possuem uma dinâmica de fluxos e refluxos
com a democracia. Num Estado Democrático de Direito, a efetividade dos direitos
fundamentais é resultante da otimização da soberania popular e, num sentido inverso, a
soberania do povo serve de suporte para a garantia dos direitos fundamentais. Na expressão de
Canotilho, além de elemento constitutivo do Estado de direito, os direitos fundamentais
apresentam-se como ingrediente básico para a realização dos princípios democráticos. Em
outras palavras, os direitos fundamentais têm uma função democrática porque o exercício
democrático do poder implica a contribuição de todos os cidadãos para esse exercício, impõe
a participação livre assente em importantes instrumentos de garantia para a liberdade desse
exercício e a abertura do processo político para a criação de outros direitosx.
Isto posto, delineada, mesmo que superficialmente, e tão-só para os propósitos deste
trabalho, a tese de que os direitos fundamentais são instrumentos de suma importância
num Estado Democrático de Direito para garantia da soberania popular, convém por ora
trazer à baila o dispositivo constitucional referente ao Júri Popular. Ele está elencado entre
os direitos e garantias fundamentais do cidadão. De fato, a Constituição Federal, em seu
art. 5º, inciso XXXVIII, restaurou o prestígio da instituição, assim prescrevendo:
Em suma, o Júri Popular pode ser tido, em sua essência, como um direito fundamental,
incluído entre aqueles de primeira dimensão, isto é, os direitos individuais. Daí porque se
pode questionar: se o júri é uma instituição reconhecida como garantia individual, o acusado
deveria ter o direito de não optar por ele, sob pena de constituir-se numa obrigação ao invés
de assegurar um direito. Todavia, aceitamos a avaliação supracitada como uma situação ideal,
mas ainda não real. Os diversos textos constitucionais já vigentes em nosso País, de fato, ora
consideraram o Júri apenas como um órgão do Judiciário ora como direito individual, mas em
todo caso, em nenhum momento o legislador reconheceu a possibilidade de que as partes, mas
principalmente o réu, pudessem escolher ou abdicar do julgamento popularxii. A história
constitucional do Júri tem demonstrado uma inconstância que, no final das contas, acusa a
insegurança do legislador quanto à natureza da instituição. Todavia, convém salientar que não
será por deixar de vir localizado na seção do Poder Judiciário que o Júri não poderá ser
considerado na perspectiva de um órgão judicial. Afinal, já dissemos que o Júri Popular faz
parte de uma estrutura maior, na qual se acha incluído, que é o Tribunal do Júri Popular, e
este, por seu turno, é um subsistema do sistema de justiça criminal.
Por esse motivo, outro ponto a merecer análise diz respeito à circunstância de ser o
Tribunal do Júri Popular um órgão do Judiciário. O Júri Popular é um órgão político, o que
implica dizer que ele não se submete à imposição constitucional de fundamentar suas decisões
(CF/88, art. 93, inc. IX). O conselho de sentença, e que afinal decide sobre uma causa, é
composto de jurados, isto é, cidadãos que, estando ali, encontram-se exercendo sua cidadania.
Isso nos leva a uma incômoda constatação: o Júri Popular possui uma natureza jurídica
híbrida, sendo a um só tempo um direito individual, do tipo clássico ou de conteúdo liberal, da
primeira geração dos direitos, e também um órgão público, ou melhor dizendo, uma parte
dele, que é o Tribunal do Júri Popular, enquadrado no organograma do Judiciário brasileiro, e
portanto, sujeito a seus regramentos. Ressalte-se o equívoco, já observado inclusive entre
profissionais da área, em referir-se a um tal “Tribunal Popular do Júri”. Certamente, não é
apenas uma troca de cadeiras na expressão gramatical. O Tribunal não é popular, pois é
composto por servidores públicos especialmente selecionados para uma função estatal, a
saber, os magistrados. É claro que os magistrados são igualmente pessoas do povo, mas
não se trata aqui de um tribunal formado direta e originariamente pelos cidadãos, como se
observa em guerras ou em comunidades mais primitivas. No Tribunal do Júri Popular
parece haver uma frustrada tentativa de acomodação do modelo tecnicista de julgamento e
da estrutura tradicional dos órgãos judiciários a uma certa ânsia de conferir legitimidade à
participação popular.
Uma análise histórica ajuda a colocar a questão em melhores termos. Com efeito, o
direito ao Júri nasceu, recordamos, como um direito individual, daqueles que objetivam
salvaguardar a liberdade do indivíduo perante o Estado e, por conseguinte, a magistratura
oficial. Com o passar do tempo, contudo, e dado o fortalecimento do Poder Judiciário, e em
particular, do princípio da separação de poderes, o modelo de julgamento popular foi
incorporado no sistema judiciário tradicional, através de repartição de atribuições ou
colaboração com os juízes togados. Daí porque afirmamos que o Júri Popular é uma parcela
do Tribunal.
Quanto ao seu viés político, entendemos que não somente o Júri Popular, como também
o organismo inteiro, isto é, o Tribunal do Júri Popular, é um órgão político, aí incluído,
portanto, o juiz-presidente, uma vez que a função jurisdicional mesma possui também caráter
político. Em outras palavras: o Tribunal do Júri Popular é órgão do Poder Judiciário,
malgrado não seja previsto no art. 92 da Constituição. Porém, o seu ponto diferencial reside
no fato de que o Júri Popular é revestido da qualidade do caráter reflexo da soberania do povo
(lembremos que a soberania dos vereditos é um de seus elementos essenciais), escapando,
portanto, à necessidade de fundamentar suas decisões. Agora, quando se diz Júri Popular,
tome-se somente o corpo de jurados. O juiz-presidente, como agente estatal inserido na
estrutura de um órgão jurisdicional, não escapa à obrigação constitucional de fundamentação
de suas sentenças e não conta com qualquer soberania em relação a elas.
E porque um mero órgão dentro da estrutura típica do Judiciário brasileiro, e não mais
um autêntico e pleno direito individual, no que faria jus às suas origens históricas, o Tribunal
do Júri Popular, ou melhor dizendo, o Júri Popular também se enquadra nos mecanismos de
funcionamento do sistema de justiça criminal, isto é, o Tribunal do Júri Popular faz parte do
sistema de justiça criminal, e por isso, apresenta todas as características que lhe são
pertinentes, como a funcionalidade e, principalmente, a seletividade, isto é, os jurados
também procedem de forma seletiva, pelo menos quando decidem uma causa, já que não lhes
cabe promover a seletividade em etapas anteriores do fluxo regular do sistema.
Mas, a despeito de tudo isso, retornamos à indagação que nos motivou essas reflexões:
poderia afinal um cidadão abdicar de ser julgado por um Júri Popular, alegando que se trata de
um direito individual, tal como ele poderia fazê-lo em relação, por exemplo, ao direito à
intimidade? Entendemos que a resposta deve ser negativa, tendo em relevo as afirmações
acima expendidas. Ora, em seu processo histórico de evoluções e involuções, particularmente
no Brasil, o Júri Popular acabou sendo anexado pela estrutura funcional-burocrática do
Judiciário. Tanto que o texto constitucional se refere à “instituição do júri”, sem dizer se ela é
popular e tampouco afirmando categoricamente a possibilidade de escolha do cidadão para se
submeter a julgamento perante esse órgão.
Porém, convém discutir se há, efetivamente, soberania do Júri, vez que a decisão dos
jurados, tal qual a sentença do juiz togado, também pode ser anulada por uma instância
superior. Afinal, o Código de Processo Penal admite a interposição de apelação do veredito do
Júri quando a decisão é manifestamente contrária à prova dos autos (CPP, art. 593, inc. III, “d
”). Mesmo considerando que o Tribunal, ao cassar uma decisão, remete-o de volta, ao
invés de proferir uma sentença substitutiva – algo que, para a doutrina, constitui-se no
traço distintivo da soberania do Júri – convém salientar que, ao retornar, o processo será
submetido, num segundo julgamento, a um novo conselho de sentença. Isto posto, é
razoável imaginar que poderá decorrer daí uma decisão absolutamente diversa da anterior,
então cassada. O fator determinante dessa variação será o desempenho da defesa e da
acusação e, principalmente, a nova composição do conselho de jurados. Vislumbramos
que a soberania dos vereditos a que se refere o dispositivo constitucional corresponde,
pois, a uma soberania relativa.
Como crimes dolosos contra a vida devem ser compreendidos os tipos penais descritos
nos arts. 121 ao 128 do Código Penal, aí incluídas, pois, as modalidades de aborto. Neste
aspecto, algumas necessárias avaliações sobressaltam logo à vista: a primeira, que somente o
Júri Popular possui competência para julgar os crimes dolosos contra a vida, afastando
qualquer outra espécie de órgão judicial para esse fim (competência privativa); a segunda, que
esse mesmo Júri Popular poderia conhecer de outras matérias, não previstas no art. 5º, inc.
XXXVIII, “d”, da Constituição Federal; a terceira, que o instituto processual da prerrogativa
de foro afasta a competência do Tribunal do Júri Popular, já que também desfruta de estatura
constitucional, e dessa maneira, por exemplo, uma parlamentar federal que venha a praticar
um autoaborto ou permita que alguém se lho provoque terá seu comportamento conhecido e
julgado pelo STF, e não pelo Tribunal do Júri Popular. Quer dizer, certas autoridades públicas
se encontram a salvo das incógnitas que permeiam um julgamento popular, cujos julgadores,
selecionados através de mecanismos aleatórios (sorteio), decidem a causa através de voto
sigiloso, sem necessidade de fundamentação jurídico-legal.
A lei processual penal prescreve uma série de cautelas a fim de garantir a isenção do
corpo de jurados por ocasião dos julgamentos. Nesse sentido, exige que eles sejam
escolhidos mediante sorteio, na verdade, um duplo sorteio, a partir da lista geral formada
pelo próprio juiz. Esta é uma fórmula que provém das origens da instituição. Ademais, a
formação da lista é o ponto-chave para a maior ou menor democratização do Júri Popular e,
por via de conseqüência, a melhor ou pior justiça de seus vereditos.
O início da seleção de cidadãos ocorre com a formação da lista geral. A cada ano,
serão alistados pelo presidente do Tribunal do Júri de 800 (oitocentos) a 1.500 (um mil e
quinhentos) jurados nas comarcas de mais de 1.000.000 (um milhão) de habitantes; de 300
(trezentos) a 700 (setecentos) nas comarcas de mais de 100.000 (cem mil) habitantes e de 80
(oitenta) a 400 (quatrocentos) nas comarcas de menor população. Onde for necessário, poderá
ser aumentado o número de jurados e, ainda, organizada lista de suplentes, depositadas as
cédulas em urna especial. Para a formação da lista geral, o juiz-presidente requisitará às
autoridades locais, associações de classe e de bairro, entidades associativas e culturais,
instituições de ensino em geral, universidades, sindicatos, repartições públicas e outros
núcleos comunitários a indicação de pessoas que reúnam as condições para exercer a função
de jurado (CPP, art. 425, caput e § 1º). Mas isso não impede que o próprio cidadão compareça
em juízo e se proponha a ter seu nome inscrito na lista.
A lista geral dos jurados, com indicação das respectivas profissões, será publicada pela
imprensa até o dia 10 de outubro de cada ano e divulgada em editais afixados à porta do
Tribunal do Júri. Nesse ponto, a legislação foi bastante preguiçosa. Com a maior acessibilidade
dos meios eletrônicos de informação – internet, sobretudo, não há mais porque recorrer aos
tradicionais editais. Os expedientes dos Tribunais, de um modo geral, tendem a ser
integralmente virtualizados. De qualquer modo, a lista poderá ser alterada, de ofício ou
mediante reclamação de qualquer do povo ao juiz-presidente até o dia 10 de novembro, data de
sua publicação definitiva. Juntamente com a lista, serão informadas as funções e prerrogativas
do jurado. Mas o certo é que, na prática forense, muitos cidadãos assumem a difícil missão de
integrar o corpo de jurados sem conhecer a fundo os variados aspectos da instituição do Júri.
Os nomes e endereços dos alistados, em cartões iguais, após serem verificados na presença
do Ministério Público, de advogado indicado pela Seção local da Ordem dos Advogados do Brasil
e de defensor indicado pelas Defensorias Públicas competentes, permanecerão guardados em urna
fechada a chave, sob a responsabilidade do juiz-presidente (CPP, art. 425, § 3º). Antes, exigia-se
apenas a presença do membro do Ministério Público. A alteração, nesse tópico, parece ser
bastante salutar, pois permite maior participação das outras instituições envolvidas nos trabalhos
do Tribunal do Júri Popular, e que, no final das contas, também operam o sistema de justiça
criminal.
O jurado que tiver integrado o Conselho de Sentença nos 12 (doze) meses que
antecederem à publicação da lista geral fica dela excluído (CPP, art. 425, § 4º). Busca-se, assim,
tentar evitar o chamado “jurado profissional”. Entendemos como “jurado profissional” aquele
cidadão habituado, em razão de oportunidades sucessivas, ao ofício de julgar, já que sorteado
e participante seguidas vezes do conselho de sentença. Em determinadas comarcas, é razoável
acreditar que um cidadão inscreve seu nome nas listas elaboradas em diversas escrivanias, daí
decorrendo a possibilidade de que ele seja sorteado, para um único exercício, em mais de uma
dessas Varas e, com maior razão, que seu nome conste em listas diversas por anos consecutivos.
A disposição continuada do cidadão para o serviço do Júri Popular deixa-o inquinado de vícios.
Em situações extremas, o jurado não mais decide segundo a “sua consciência e os ditames da
justiça”, mas em função das simpatias nutridas pelas partes, pelos profissionais habitualmente
envolvidos nos processos ou por motivos outros.
Ademais, a experiência judicial tem demonstrado, com o decorrer do tempo, que nas
grandes aglomerações urbanas, a maior parcela de pessoas que têm seus nomes na lista geral
são funcionários públicos. Já naquelas pequenas localidades, há incidência de um maior número
de pessoas oriundas de classes mais diversificadas da sociedade, professores, pequenos
comerciantes etc. Em todo caso, por não se tratar de função remunerada, tampouco que forneça
subsídios ou comodidades extraordinárias aos jurados, os encargos profissionais ou familiares
do cidadão acarretam sua exclusão da viabilidade de sua participação como jurado, e por
conseguinte, um certo nível de perda de representatividade social do conselho de sentença.
Logo, fica prejudicada uma das principais notas de destaque e de legitimidade do Júri Popular,
vale dizer, a sua representatividade popular. Aliás, os principais argumentos em defesa da
instituição giram em torno da idéia de que o Júri representa a sociedade e seus interesses, ou de
que o Júri é o próprio povo tomando as rédeas da aplicação da justiça. Entretanto, diante de tais
distorções, quando somente uma determinada parcela ou algumas poucas classes sociais têm
ingerência e integram efetivamente o Júri, vê-se que os julgamentos poderão apenas reforçar
ideologias próprias desses grupos. Em suma, o que se vê atualmente no Brasil é a classe média
julgando os trabalhadores – agricultores, operários e desempregados, estes, sim, os mais
numerosos e freqüentes clientes do sistema de justiça criminal brasileiro. No caso do aborto, é a
classe média e seus valores médios (ou medíocres, como diriam alguns) que julgam as
mulheres, quiçá aquelas pobres, desamparadas, desesperadas, que em determinado momento da
vida se viram na contingência de praticar o aborto em si mesmas, ou aqueles outros que, por um
motivo qualquer, colocam sua experiência profissional a disposição de mulheres, que chegam a
sua presença depois de uma decisão muitas vezes difícil e traumatizante, com o objetivo de
interromper uma gestação. Queremos crer que essas distorções na composição do corpo de
jurados não se coadunam com os princípios de um Estado Democrático de Direito e, portanto,
põe em risco a integridade do direito do réu consistente em ter um julgamento justo.
O serviço do júri, portanto, será obrigatório, dele não podendo se afastar nenhum
cidadão, salvo nos casos de escusa legítima ou quando há previsão legal. A recusa
injustificada ao serviço do júri acarretará multa no valor de 1 (um) a 10 (dez) salários
mínimos, a critério do juiz, de acordo com a condição econômica do jurado (CPP, art. 436, §
2º). O alistamento compreenderá os cidadãos maiores de dezoito anos, sem limite de idade
(CPP, art. 436). Por outro lado, não poderão participar os cidadãos estrangeiros. Integrar o
Júri Popular, pois, é uma possibilidade apenas para os brasileiros natos e naturalizados, uma
vez que o Tribunal do Júri Popular é órgão do Judiciário, e como tal, um poder político.
Em princípio, todo e qualquer cidadão encontra-se apto a ter seu nome inserido na lista
anual. Não obstante, algumas restrições se apresentam. É necessário que a idade mínima seja
de dezoito anos, igualando-se, assim, com o patamar das maioridades civil e penal. Também
não pode ser jurado aquele que não estiver inscrito como eleitor, isto porque o registro
eleitoral é condição para o pleno exercício da cidadania. Chega a ser curioso atentar para a
falta de paralelismo, no tocante à idade mínima para julgar, entre o magistrado de carreira e o
jurado. Enquanto o cidadão pode exercer a função de jurado contando apenas 18 (dezoito)
anos de idade, o juiz de direito, que inicia a carreira na condição de juiz substituto, deverá
possuir, pelo menos, 3 (três) anos de atividade jurídica até a data da posse, inviabilizando,
assim, quase que por completo, à exceção, portanto, de casos raros de pessoas com
inteligência excepcional, o ingresso tão precoce de um bacharel em Direito na magistratura
(CF, art.93, inciso I). A exigência constitucional, incluída por meio da EC n.º45/2004
(Reforma do Judiciário) permite entrever o propósito de evitar nos quadros do Judiciário um
juiz pouco amadurecido na vida, porquanto lhe é exigido certo tempo de experiência nas lides
forenses ou equivalentes. Por outro lado, esse amadurecimento não é requisito para o jurado,
restando, pois, ao Juiz-Presidente cercar-se das devidas cautelas, mas sem incorrer em
discriminações preconceituosas e ilegais, ao fazer incluir na lista geral cidadãos nessa faixa
etária (CPP, art.425, §2º).
Com o modelo vigente de recrutamento dos jurados através de uma lista anual e,
sobretudo, em razão da atribuição de sentido à expressão “cidadão de notória idoneidade” por
parte do magistrado, ocorre o que Lênio Luiz Streck denomina de introjeção no imaginário
social de um padrão de normalidade. Segundo o jurista gaúcho, a partir das características
ideológicas dos jurados, este fator determinará o padrão de comportamento exigido do
restante da sociedade. Em outras palavras: o magistrado conforma a composição ideológica
do corpo de jurados e estes reproduzirão um padrão de comportamento desejável ao restante
da sociedade através de seus vereditosxiv.
O juiz togado, posto que investido do status de agente estatal incumbido de exercer a
função jurisdicional ao lado dos jurados, possui importantes funções na estrutura do Tribunal
do Júri Popular. Em linhas globais, ele deve prover a reunião do corpo de jurados e a sua
convocação. E na sessão do Júri, com a formação do conselho de sentença, cumpre-lhe a
tarefa de presidir os trabalhos, exercendo o poder de polícia sempre que necessário.
Nos termos do art. 457 do Código de Processo Penal, verificado publicamente pelo juiz
que se encontram na urna as cédulas relativas aos jurados presentes, o que deverá constar em
termo próprio, será feito o sorteio de sete dentre eles para a formação do conselho de
sentença.
Nos dizeres do art. 472 do Código de Processo Penal, assim que formado o conselho de
sentença, o juiz, levantando-se, e com ele todos os presentes, num momento inspirado pela
solenidade, fará aos jurados a seguinte exortação: “Em nome da lei, concito-vos a examinar
com imparcialidade esta causa e a proferir a vossa decisão, de acordo com a vossa
consciência e os ditames da justiça”. Os jurados, nominalmente chamados pelo juiz,
responderão: “Assim o prometo”. Não há determinação legal, mas alguns juízes pedem ou
mesmo os jurados tomam a iniciativa de estender o braço para celebrar a promessa. O que se
observa, nessa passagem, é a tentativa do legislador de fazer surtir um certo efeito psicológico
no compromisso dos jurados, incutindo-se-lhes a idéia de seriedade e solenidade que
permeiam o julgamento. Nada estranho para quem já está habituado a um ambiente
impregnado de formalismos, tradição e rituais, como é o caso dos operadores jurídicos, mas
um momento de significativa relevância e satisfação pessoal, ou de estranhamento e temor,
pelo menos nas primeiras sessões, para os cidadãos ditos comuns.
Ressalte-se, por oportuno, que o principal dever dos jurados consiste na manutenção de
sua incomunicabilidade, a qual deve ser preservada a partir da formação do conselho de
sentença e, daí em diante, até o anúncio da sentença. O princípio da incomunicabilidade dos
jurados, ao lado do sigilo das votações, é a verdadeira mola-mestra que confere prestígio ao
julgamento popular. Em seguida ao compromisso, os jurados receberão cópias da pronúncia
ou, se for o caso, das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação e do relatório
do processo (CPP, art. 472, parágrafo único).
Através dos quesitos, serão apresentados aos jurados os pontos fundamentais sobre
os quais eles deverão emitir seu julgamento. É a forma que a lei encontrou para que não
haja uma interlocução direta do juiz ou das partes com os jurados, a fim de manter intacta
a isenção e imparcialidade dos juízes leigos, e que também está relacionada ao princípio
da incomunicabilidade dos jurados. Os quesitos serão redigidos em proposições
afirmativas, simples e distintas, de modo que cada um deles possa ser respondido com
suficiente clareza e necessária precisão. Os Tribunais já recusavam quesitos formulados
negativamente, porque capazes de induzir os jurados. Na sua elaboração, o presidente
levará em conta os termos da pronúncia ou das decisões posteriores que julgaram
admissível a acusação, do interrogatório e das alegações das partes, inclusive, nas suas
sustentações orais (CPP, art. 482, parágrafo único).
Uma vez recolhidos à “sala especial”, mas antes de proceder à votação de cada
quesito, o juiz mandará distribuir entre os jurados pequenas cédulas, feitas de papel opaco
e facilmente dobráveis, contendo sete delas a palavra “sim” e outras tantas a palavra
“não”, a fim de, secretamente, serem recolhidos os votos (CPP, art. 486). Assim que sejam
distribuídas as cédulas, o juiz lerá o quesito que deva ser respondido, prestando, mais uma
vez, as explicações correspondentes. Em seguida, cada um dos oficiais apresentará aos
jurados uma urna ou outro tipo de receptáculo que assegure o sigilo da votação. O
primeiro oficial recolherá os votos, enquanto o outro receberá a sobra, isto é, o papel
correspondente àquilo que restou do voto do jurado em suas mãos (CPP, art. 487).
Em seguida, o juiz lavrará a sentença, com observância do disposto no art. 492 do
Código de Processo Penal. Nesse sentido, apresentam-se duas opções ao magistrado, de
acordo com o veredito dos jurados: condenação ou absolvição.
A sentença, portanto, será fundamentada, salvo quanto às conclusões que resultarem das
respostas aos quesitos. A prescindibilidade de fundamentação da sentença diz respeito à
decisão dos jurados, uma vez que, em nenhum momento, eles são obrigados a justificar seu
voto, posto que secreto. O juiz, as partes e os jurados, então, se retiram da “sala especial”,
retornando ao recinto do plenário. Em seguida, ao magistrado caberá fazer o anúncio imediato
da sentença, diante de todos os presentes. Findos os trabalhos, o juiz dissolve o conselho e
encerra a sessão.
A circunstância a considerar seria, então, a de que os jurados não precisam motivar suas
decisões. Aí residiria o grande perigo nos julgamentos submetidos ao Júri Popular, uma vez
que dos jurados poder-se-ia esperar qualquer veredito.
Mas é muito comum constatar os assuntos ligados ao Tribunal do Júri Popular sendo
tratados sob um enfoque de certo modo maniqueísta. Ou se é um incansável combatente ou
um ardoroso admirador da instituição. Ou são lembradas suas incontáveis virtudes ou são
rememorados seus incessantes defeitos, mesmo depois das reformas empreendidas pela Lei
11.689/08. Enfim, esse tratamento acientífico muito mais embaça a visão do investigador do
que fornece subsídios para uma melhor compreensão do Tribunal do Júri Popular como
fenômeno jurídico e social.
Nesse cenário, vemo-nos diante de certas questões essenciais. De onde se origina a ideia
de que pessoas do povo, sem formação técnico-jurídica, possuiriam melhores condições de
julgar a conduta de alguém que, na sua condição existencial de ser humano, é igual a eles
próprios? Um cidadão que, tendo-lhe sido reconhecida uma certa qualidade de idoneidade,
ainda assim, está sujeito às diversas influências de temperamento, caráter, ideologias, fé,
enfim, as vicissitudes humanas mais elementares. As fórmulas mais antigas de Júri Popular
afastam quase que completamente quaisquer firulas técnicas e preciosismos processuais para
se ater a um sentimento, um senso de justiça, invocado num viés de misticismo e acaso, mas
consagrado e ainda resistente no conceito de “convicção íntima”, algo que poderíamos, afinal,
associar à noção de equidade, no sentido mais aristotélico do termo. Ocorre que a apropriação
engendrada pelo Estado, através de seu aparelho judiciário, ao longo dos anos, desse modelo
de organização da administração da justiça, segundo nos parece, veio desnaturar a instituição,
ou retirar-lhe a alma, deixando para nós somente seu corpo. Ao invés de julgar uma conduta
na perspectiva do que é jurídica, moral e racionalmente aceitável, imbuído de um sincero
propósito de buscar nos lugares mais recônditos de sua consciência aquilo que ele entende
necessário para julgar com serenidade e sabedoria, um jurado se percebe exposto às
artimanhas retóricas de competentes oradores, à pressão exercida por elementos estranhos à
causa, principalmente a mídia, que não raras vezes se arvora no papel de porta-voz da opinião
pública, e à precariedade de formação de um conhecimento sobre os fatos que deve avaliar.
Enquanto que, num processo judicial, o magistrado possui diversos artifícios para
continuamente ter acesso às informações necessárias para formar um juízo de valor sobre a
causa, e assim, amadurecer uma decisão que se revele tanto mais próxima do justo quanto
possível, o jurado, todavia, dispõe apenas de algumas horas para, diante do semblante de um
réu ou da vítima, de testemunhas e dos demais atores processuais, e mergulhado num
ambiente de estranhamento e solenidade, emitir o seu veredito.
i
Revista Veja, Páginas Amarelas, edição 2128, 2 de setembro de 2009.
ii
Raul Cervini, Os Processos de Descriminalização, 2ª ed., São Paulo: RT, 2002.
iii
O convite para a exposição, gentilmente formulado pela CCR – Comissão de Cidadania e Reprodução, através
de Margareth Arrilla, se revelou motivado por um recente caso concreto, na cidade de Campo Grande-MS, e no
qual milhares (!) de mulheres se viram envolvidas.
iv
Eugenio Raul Zaffaroni et alli, Direito Penal Brasileiro, 2ª ed., Rio de Janeiro: Revan, 2003, p.43.
v
A criminalidade feminina, nos dias atuais, tem-se deslocado dos espaços tradicionais do aborto e da
prostituição para o tráfico ilícito de drogas e crimes interpessoais violentos (homicídios, roubos, seqüestros
etc.). A respeito do assunto, v. nosso “Criminalidade feminina: um Fenômeno em Transformação” (Revista
Diálogo Jurídico, v. 5, 2006, p. 203-218).
vi
Jürgen Habermas, Consciência Moral e Agir Comunicativo, 2ª ed., Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
vii
Celso Fernandes Campilongo, Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial, São Paulo: Max Limonad, 2002,
p.18.
viii
Aramis Mathis, A Sociedade na Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann. Obtido em
www.infoamerica.org/documentos_pdf/luhmann_05.pdf. Acessado em 13 de maio de 2008, p.12.
ix
Aramis Mathis, op.cit., p.15.
x
José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 2ª ed., Coimbra: Almedina, p. 431.
xi
A título de estudo de direito comparado, assinale-se o que estabelece a respeito do Júri Popular a
Constituição Portuguesa, na qual se encontra prevista a possibilidade de as partes requererem o julgamento
perante o Júri Popular. No texto constitucional português, lê-se que “o júri, nos casos e com a composição que
a lei fixar, intervém no julgamento dos crimes graves, salvo os de terrorismo e os de criminalidade altamente
organizada, designadamente quando a acusação ou a defesa o requeiram” (art. 217). Outrossim, é salutar
destacar que, naquela Constituição, o Júri é tido como órgão do Judiciário, e não como direito individual,
diferentemente do sistema brasileiro.
xii
Episódio insólito teve lugar quando o STF iniciaria o julgamento de mérito na AP 333, em processo-crime de
homicídio contra o Dep. Federal Cunha Lima, ex-Governador da Paraíba, que, diante da iminência de seu
julgamento na Corte Suprema, porque detentor da prerrogativa de função, simplesmente renunciou ao
mandato parlamentar. Desse modo, o STF, em sessão plenária de 5.12.2007, decidiu o seguinte: “O Tribunal, à
unanimidade, afastou questão de ordem para firmar que a competência do Tribunal do Júri cede diante da
norma que fixa foro por prerrogativa de função. E, relativamente à competência desta Casa, ante a renúncia
manifestada pelo parlamentar, o Tribunal, por maioria, vencidos os Senhores Ministros Joaquim Barbosa
(Relator), Cezar Peluso, Carlos Britto e a Senhora Ministra Cármen Lúcia, declinou da competência ao juízo
criminal da Comarca de João Pessoa/PB. Votou a Presidente, Ministra Ellen Gracie. Reajustou o voto proferido
anteriormente o Senhor Ministro Eros Grau (Revisor)”. Os votos contrários à declinação de competência, em
favor do Tribunal do Júri Popular de João Pessoa, se basearam na constatação de que houve uma manobra
protelatória do réu, que aguardou todo o desenrolar da instrução criminal – convém salientar, que levou alguns
anos, como sói acontecer quando os réus são autoridades públicas – para só então abdicar do mandato, já às
vésperas da sessão de julgamento, no que seria, portanto, um abuso de direito.
xiii
De igual maneira, a Constituição italiana de 1948 apenas diz que os órgãos judiciários poderão também
contar com a participação de “cidadãos idôneos” alheios à magistratura.
xiv
Lênio Luiz Streck, Tribunal do Júri – Símbolos e Rituais, 3ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 84.
xv
Esse dever impõe-se ao juiz não somente na sessão do Júri Popular como, de resto, ao longo de toda a
instrução do processo. É esta a regra do art. 251, do Código de Processo Penal: “Ao juiz incumbirá prover à
regularidade do processo e manter a ordem no curso dos respectivos atos, podendo, para tal fim, requisitar a
força pública”.
xvi
Não é à toa, portanto, que a Carta Magna estabelece em seu art. 127, caput: “O Ministério Público é
instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica,
do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.