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O JÚRI POPULAR E O ABORTO A PRÁTICA JUDICIAL BRASILEIRA

Marcus Vinícius Amorim de Oliveira1

RESUMO: Este trabalho é um registro da participação do autor no Seminário “Direitos


Reprodutivos e o Poder Judiciário”, promovido pela CCR – Comissão de Cidadania e
Reprodução, em setembro de 2009, na cidade de São Paulo, e propõe uma abordagem
interdisciplinar sobre a prática judiciária, no âmbito do Tribunal do Júri Popular, em casos de
crimes de aborto, e suas implicações nos vereditos dos jurados.

PALAVRAS-CHAVE: Tribunal do Júri Popular. Aborto. Sistema de Justiça Criminal. Jurado.

SUMÁRIO: 1. Descriminalização do Aborto. 2. Seletividade do Sistema de Justiça Criminal.


3. Teoria do Etiquetamento. 4. Perfil do Jurado. 5. Dinâmica do Julgamento. 6. Sistema
Francês de Votação. 7. Conclusões. Referências Bibliográficas.

É de conhecimento geral que a prática da interrupção forçada de gestação da mulher,


nos dias de hoje, constitui uma problemática das mais complexas nas sociedades
contemporâneas. Recentemente, a Senadora da República e ex-Ministra de Estado Marina
Silva, quando indagada sobre o assunto, afirmou o seguinte: “ão julgo quem o faz. Quando
uma mulher recorre ao aborto, está em um momento de dor, sofrimento e desamparo. Mas
eu, pessoalmente, não defendo o aborto, defendo a vida. É uma questão de fé. Tenho a
clareza, porém, de que o estado deve cumprir as leis que existem. Acho apenas que qualquer
mudança nessa legislação, por envolver questões éticas e morais, deveria ser objeto de um
plebiscito”i. A manifestação desta mulher, que é uma das personalidades públicas de destaque

1
Promotor de Justiça no Ceará, Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará, Professor na FANOR –
Faculdades Nordeste e ESMP – Escola Superior do Ministério Público do Ceará.
no cenário nacional, denota com inegável clareza o nível de porosidade que muitas vezes se
dá ao assunto, e que, assim, acaba incidindo sobre o Tribunal do Júri Popular.

Nossa exposição sobre o posicionamento do Tribunal do Júri Popular em relação aos


crimes de aborto é precedida da abordagem de dois aspectos que se nos revelam
fundamentais: os processos de criminalização e descriminalizaçãoii envolvendo o fenômeno
sócio-jurídico do aborto e as características do sistema de justiça criminal, com destaque para
os mecanismos de sua funcionalidade e a nota de seletividade. Em seguida, apresentamos o
perfil constitucional da instituição do Júri e as regras jurídico-processuais que disciplinam a
sua organização, o alistamento de cidadãos e o julgamento perante o conselho de sentença,
tudo de acordo com a recente Lei n.º11.689/08 – uma legislação que, longe de uma reforma,
empreendeu alterações não mais do que epidérmicas.

A despeito da incessante polêmica em que se acha inserida, a prática do aborto, em


todas as suas formas tipificadas na legislação penal, vem sofrendo um contínuo processo de
descriminalização.

Em diversos países, o aborto é uma conduta excluída da legislação penal (abolitio


criminis). Mas no Brasil, ainda é alvo da intervenção do sistema de justiça criminal, mesmo
que em episódios cada vez mais isolados. Apanhados estatísticos dos Tribunais brasileiros
demonstram que, diante da subsistência da criminalização primária, como tal entendida a
definição de condutas desviantes pela legislação penal, a criminalização secundária, isto é, a
seleção dos comportamentos que serão absorvidos pelo sistema de justiça criminal,
permanece uma realidadeiii. Existem, basicamente, três formas de aborto inseridas na
legislação penal brasileira: o aborto provocado pela própria gestante, conhecido como
autoaborto (art.124, primeira parte, CP); o aborto consentido pela gestante, praticado por ela
própria ou por terceiro (art.124, segunda parte, e art.126, CP); e o aborto provocado sem o
consentimento da gestante (art.125, CP). O sujeito ativo, isto é, o agente responsável pela
ação típica é a gestante, o terceiro ou ambos, concomitantemente (criminalização primária).
Dessa maneira, o sistema punitivo cuida de reprimir a ação não somente da mulher, mas
também do terceiro que, de algum modo, provoca ou contribui para o abortamento.

A inserção desses tipos penais no atual Código Penal, que remonta da redação original
de 1940, é resultado da prevalência de forças direcionadas à criminalização desse tipo de
conduta. Não é, pois, fruto do acaso ou de uma suposta ideologia do legislador. Essa
criminalização é o reconhecimento da necessidade de utilização do sistema punitivo para
desestimular determinada prática social ou reprovar certos modelos de conduta, ou seja, no
fundo, reproduz uma perspectiva masculinizada dos direitos reprodutivos da mulher. E é na
ação das instâncias iniciais do sistema de justiça criminal, a polícia e o Ministério Público,
que os casos são levados para o Judiciário. Os pontos de vista das autoridades policiais e dos
Promotores de Justiça, segundo nos parece, é fator decisivo para que um caso de aborto se
torne conteudificado numa lide penal (criminalização secundária). Esclarece Zaffaroni que a
criminalização secundária “é a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, que
acontecem quando as agências policiais detectam uma pessoa que supõe-se tenha praticado
certo ato criminalizado primariamente, a investigam, em alguns casos privam-na de sua
liberdade de ir e vir, submetem-na à agência judicial, que legitima tais iniciativas e admite
um processo”iv.

Mas o próprio sistema legal cuida de dispensar, quando preenchidos os requisitos


pertinentes, a punição do aborto, exceto no tipo penal do aborto cometido sem o
consentimento da gestante, tudo isso mediante uma medida despenalizadora chamada de
suspensão condicional do processo. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou
inferior a um ano, abrangidos ou não por ela, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia,
poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não
esteja sendo processado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a
suspensão condicional da pena, conforme o art. 77 do Código Penal. Assim, na hipótese dos
crimes descritos nos arts. 124 e 126 do Código Penal, a saber, auto-aborto, aborto consentido
pela gestante e aborto provocado por terceiro sem o consentimento, cujas penas se enquadram
no dispositivo mencionado, embora sujeitas à competência do Júri, não se afasta a
possibilidade de aplicação do sursis processual, porquanto desse benefício não resulta
alteração jurisdicional, vale dizer, o Júri não é afastado de julgar o delito, se for o caso. O Júri
se mantém competente para o julgamento. Esse entendimento, a nosso ver, condiz com o
princípio da soberania do Júri Popular. Além disso, expirando o prazo proposto pelo órgão
ministerial sem revogação da medida suspensiva, o juiz declarará extinta a punibilidade (Lei
9.099/95, art. 89, § 5º), no caso, da então gestante ou do responsável pelo aborto. Por outro
lado, restando cassado o benefício, o feito retoma seu curso normal, sem prejuízo de seu
julgamento pelo juízo natural, vale dizer, o Júri Popular.
Com efeito, a criminalização terciária, que se constitui na entronização do indivíduo
penalizado no sistema prisional não se apresenta como algo significativo no contexto do
abortov.

As mudanças dos paradigmas valorativos da sociedade moderna, com destaque para a


ascensão do autodeterminismo feminino, que muitos preferem chamar de emancipação, e a
relativização da obrigação moral de sustentabilidade da vida humana, a exemplo do debate
sobre a eutanásia, têm ensejado um enfraquecimento dessa capacidade de aderência da prática
do aborto ao sistema punitivo, a ponto de se observar um afrouxamento da intervenção do
sistema de justiça criminal nesse segmento da vida social e a maior freqüência da colocação
na arena, para usar uma expressão de Habermas, principalmente através da mídia e em certos
setores do governo, de argumentos favoráveis ou contrários ao aborto, embora nem sempre
pautados por um discurso comunicativovi.

Assim, a descriminalização do aborto se revela como um novo momento, apesar de


suscetível a episódios de retrocesso e de arbitrariedades perpetradas contra mulheres. Por ora,
pode-se dizer que ela se restringe ao plano dos fatos (material). Ainda não alcançou sua
dimensão jurídica (formal) – e é arriscado dizer que um dia o será. Há dois elementos básicos
através dos quais se pode reconhecer o processo de descriminalização de uma conduta: a
maior aceitação dessa prática pela sociedade civil e a omissão ou inoperância do sistema de
justiça criminal na sua repressão. Com efeito, salientamos que é cada vez mais comum e
aberta a discussão sobre o aborto, com o surgimento de ideias e teses que buscam conferir-lhe
uma fundamentação racionalmente aceitável e afastá-lo da influência dos valores inerentes ao
sistema punitivo, como a ofensa à coletividade (princípio da lesividade penal), a demonização
dos agentes envolvidos (estigmatização do criminoso) e a imposição de modelos desejáveis de
conduta (função de prevenção geral da pena). Além disso, torna-se cada vez mais eventual a
transmissão de informações da prática desses atos às agências policiais ou ao Ministério
Público (notícia-crime) e a instauração de procedimentos investigatórios destinados à
judicialização dos fatos (processo criminal). A conjunção desses dois fatores, enfim, remete à
compreensão de que o aborto é um fato social objeto de descriminalização.

Isso não significa, porém, que o aborto esteja completamente à margem do sistema de
justiça criminal. A seletividade desse sistema ainda alcança, mesmo em casos cada vez mais
raros, mulheres ou terceiros que praticam aborto. É preciso avaliar, pois, como o sistema de
justiça criminal absorve esse tipo penal, e por derradeiro, qual o contexto de sua entronização
no julgamento perante o Tribunal do Júri Popular, que é o órgão constitucionalmente
competente para apreciar essa causa.

Não pretendemos delinear aqui um quadro geral da teoria sistêmica, tampouco analisar
a fundo suas implicações na ciência jurídica, somente esboçar alguns traços de seus mais
importantes conceitos, tendo em vista o que se nos apresenta mais adiante: a influência do
sistema de justiça criminal na decisão proferida pelos jurados no Tribunal do Júri Popular.

A concepção de sistema se sedimentou, nos idos de 1960, com o objetivo de explicar as


diferentes relações entre diversos fenômenos, e que a ciência moderna, em seu processo de
compartimentalização dos saberes, tratou de separar, às vezes isolando-os. Ela encontra em
suas origens a teoria da Gestalt, cujo espírito se corporifica na máxima de que o todo é mais
do que a soma das partes - e serve, por exemplo, para estudo da formação de grupos, ao que
se pretende o júri popular - além da cibernética e outros setores da ciência contemporânea. Ela
pode ser entendida como resultado da integração de algumas teorias clássicas, nas quais
predominava o pensamento técnico, com as correntes de pensamento comportamental, que
dão ênfase a uma abordagem dos fatores sociais na conduta do indivíduo. A teoria dos
sistemas propicia a compreensão de que os elementos sistêmicos interagem e se influenciam
mutuamente, a fim de que certos objetivos sejam alcançados. Dito de outro modo, a
abordagem sistêmica permite entrever um sistema unificado e direcionado, composto de
partes interrelacionadas. Desse modo, podemos, de início, tentar definir sistema, em sua
acepção mais lata, como um todo complexo e organizado, cujas partes são relacionadas entre
si num contexto de dependência e funcionalidade, isto é, são destinadas a desempenhar uma
determinada função ou propósito em comum.

Na ciência do Direito, as mais importantes influências nessa área vêm de Claus W.


Canaris e Niklas Luhmann, este último com sua Die Gesellschaft der Gesellschaft, verdadeiro
tratado da sociedade como um sistema social. Lembramos Campilongo, para quem, “penetrar
no cipoal de conceitos da teoria dos sistemas – seja pelas mãos de Talcott Parsons (seu
grande formulador nos anos 50 e 60) seja pelas mãos de Luhmann (com seus desdobramentos
e acréscimos, especialmente a partir dos anos 70) – está longe de ser missão singela. Ambos
rompem com padrões conceituais estabilizados pelas ciências sociais”vii. Nessa mesma
esteira de raciocínio, segundo Mathis, “Luhmann interpreta a sociedade como um sistema,
isto é, ela é observada através da distinção sistema/meio. Sendo assim, cabe inicialmente
recorrer aos instrumentos da teoria geral dos sistemas, sobretudo às mudanças
paradigmáticas que ocorreram nos anos 70 e 80, em função de novas descobertas nas
ciências exatas e biológicas. A teoria geral dos sistemas apresenta-se hoje como teoria de
sistemas auto-poiéticos, auto-referenciais e operacionalmente fechados”viii.

Então, partimos da premissa de que o sistema de justiça criminal se coloca como um


subsistema dos sistemas jurídico e social, identificando nele as características comuns a
qualquer outro sistema, dentro dos parâmetros conceituais desenvolvidos por Luhmann para a
sociedade, ou seja, a teoria geral dos sistemas sociais. Uma vez estabelecida uma definição
sustentável, o próximo passo consiste em reconhecer que um sistema possui certos elementos,
a saber: organicidade, segmentação, estratificação, funcionalidade, e em especial,
seletividade.

A organicidade significa que o sistema se apresenta como um corpo unitário, cujas


partes não são dotadas de sentido senão enquanto um todo. O sentido, aqui, recebe uma
importância especial, pois é o critério que regula os sistemas sociais e psíquicos, os sistemas
nos quais, para Luhmann, se constitui o indivíduo. O sentido constrói limites ao sistema, na
medida em que estabelece ordens de preferência daquilo que é fornecido pelo meio e passa a
integrar o sistema, formando-o e dando-lhe a tal organicidade. O sistema de justiça criminal é
orgânico, apesar de composto de outros sistemas, porque possui fronteiras de atuação, mesmo
dentro do sistema jurídico, intervindo exclusivamente nas questões de interesse criminal, de
acordo com a previsão típica da norma penal, e buscando a legitimação do exercício do poder
punitivo (jus puniendi) pelo Estado. Estas, portanto, as suas fronteiras. Mas para que um caso
de aborto seja afinal submetido a julgamento no Tribunal do Júri Popular, ele deve atravessar
diversas etapas dentro do sistema de justiça criminal, que perpassam setores da polícia
judiciária (civil e federal), do Ministério Público e do Judiciário. Apenas o sistema prisional
lhe é posterior. A atuação de cada um daqueles componentes sistêmicos, através das
informações (teses jurídicas) alinhavadas por elas no processo criminal, se constituem em
dados imprescindíveis para o julgamento dos jurados e que serão levados ao seu
conhecimento, ainda que somente no derradeiro momento do processo judicial, através das
alegações das partes envolvidas no litígio - Ministério Público e réu, basicamente.
A segmentação é a divisão interna do sistema em partes iguais entre si, mas que podem
estar relacionadas no aspecto de centro-periferia. No sistema de justiça criminal, essa
característica é observada na relação de paridade, autonomia ou independência entre as
polícias, o Ministério Público, o Judiciário e o sistema prisional, sem prejuízo de uma
centralização das atividades da justiça penal, por óbvio, no aparelho judiciário. O Tribunal do
Júri Popular, composto de cidadãos maiores de 18 anos e de notória idoneidade, nominados
numa lista geral da qual são sorteados e convocados para servir nessa função em caráter
obrigatório, como veremos adiante, é concebido no ordenamento jurídico como uma estrutura
inserida no sistema judicial.

A estratificação cria uma diferenciação no sistema social mediante camadas, numa


relação de hierarquia, isto é, dentro do sistema há partes com competências e objetivos
superiores, em grau de importância, aos demais. No sistema de justiça criminal, constata-se
que cada uma de suas agências segue um programa burocrático, isto é, uma divisão de tarefas
entre seus componentes, de modo que cada um deles responde somente pelo que lhe cabe, e
dessa maneira, o programa busca uma autojustificação. Esse aspecto é particularmente
relevante em nosso estudo, porque a decisão dos jurados pode ser revista por uma instância
judicial (Tribunal de Justiça), porém, esse órgão judicial tem sua intervenção limitada, se for o
caso, a revogar tal decisão, determinando a realização de novo julgamento perante o mesmo
Tribunal do Júri Popular, todavia, com um conselho de sentença integrado por outros jurados.

Tem-se, então, a funcionalidade, elemento preponderante na configuração do sistema


social. Ela significa que a sociedade se divide em subsistemas que assumem uma função
específica na reprodução da sociedade e do seu meio. Mathis explica que “na sociedade
global, interpretada como sistema mais amplo de comunicações, diferenciação do sistema
significa também, diferenciação da comunicação. Os sub-sistemas se diferenciam através da
elaboração de uma estrutura própria para sua comunicação, usando para isso aquisições
específicas da evolução: meios de comunicação simbolicamente generalizados e códigos
binários. Podemos enumerar alguns sistemas funcionais e seus códigos binários: − a política
que usa o código binário poder / não-poder ou governar / não-governar; − a ciência com o
código binário verdade / não-verdade, − a economia com o código binário pagar / não-pagar
ou propriedade / não-propriedade, − a arte com o código binário bonito / feio ou − direito
com o código binário lícito / ilícito”ix. A funcionalidade do Tribunal do Júri Popular é um dos
seus aspectos mais controvertidos. O sigilo da votação, a impossibilidade de diálogo entre os
jurados para decidir a causa, a exposição tardia aos argumentos de acusação e defesa, dentre
outros, são pontos que marcam a estrutura funcional dessa instituição, e sobre as quais nos
reportaremos mais adiante. Sem embargo, adiantamos nossa impressão de que a instituição é
carecedora de uma profunda reforma, não atingida, e nem mesmo cogitada, na recente Lei
n.º11.689/08.

No entanto, além das características inerentes a qualquer sistema, o sistema de justiça


criminal apresenta a nota de seletividade. Entenda-se aqui seletividade, numa primeira
aproximação, e de acordo com a teoria do labeling approach, como o processo de escolha ou
opção em determinados momentos do funcionamento do sistema sob uma perspectiva de
legal/ilegal, lícito/ilícito, criminal/não-criminal. A seletividade consiste na ação punitiva
orientada para certas pessoas ou grupos de pessoas; é a atribuição de um certo status criminal
a indivíduos, cujo perfil, seja ele ideológico, moral, político, sexual e assim por diante, é alvo
de estigmatização e, por conseguinte, colocação em posição privilegiada de abordagem e
introdução no sistema de justiça criminal (criminalização secundária). Há seletividade quando
os problemas da vida real são trazidos ao conhecimento das agências e respectivos agentes do
sistema, com destaque para as polícias e o Ministério Público, assim como as decisões daí
advindas são conectadas à atuação de outros componentes e operadores do sistema, fazendo
com que a ação praticada pelo indivíduo se transforme em dado de intervenção desse mesmo
sistema, no caso, o sistema de justiça criminal. A nota de seletividade muitas vezes se revela,
numa crueza impactante, durante uma sessão plenária do Tribunal do Júri Popular, na ocasião
em que os oradores, em suas sustentações na tribuna de acusação ou de defesa, fazem emergir
tais elementos. Há réus que são apresentados como vítimas, e vítimas que são colocadas no
banco do réus. Aquilo que se supõe como brutalidade de um crime ou o perfil
socioeconômico e os traços culturais do acusado e da vítima são expostos como aspectos
ligados ao fato criminoso.

É possível, pois, colocar a questão nos seguintes termos: no pensamento de Luhmann, o


sistema jurídico, e em seu reflexo, um de seus subsistemas, o sistema de justiça criminal, é
autopoiético, ou como explica Campilongo, utiliza-se de uma estratégia autoreferencial,
baseado numa linguagem comunicativa específica (lícito/ilícito), e desse modo, implementa
programas condicionais (se/então) e desempenha uma função infungível, quer dizer, não
compartilhada por outros sistemas (Luhmann define o direito como uma generalização
congruente de expectativas normativas). Ainda segundo Campilongo, o direito positivo deve
resolver, de modo circular, tautológico e paradoxal, o problema de seu fundamento. O direito
positivo não entende outras razões além daquelas traduzíveis nos termos de seu código,
programas e função.

Assim, o sistema de justiça criminal também não deixa de ser um aparelho burocrático,
isto é, lida com clientela, rotinas, fluxo de procedimentos, o que pode ser esquematizado da
seguinte forma:

Entrada Processamento Saída

Retroalimentação (Feedback)

Na perspectiva de sua funcionalidade, observa-se o desenvolvimento de relações dentro


do sistema. Uma determinada informação ingressa no sistema (entrada) e lá é processada
(processamento). A saída (output) de uma etapa (agência) do sistema é a entrada (input) de
outra, gerando a retroalimentação (feedback). Assim, qualquer mudança ou desfuncionalidade
num ponto do sistema pode acarretar reações ou conseqüências em outro. Um inquérito
policial parcamente recheado de elementos probatórios ou maculado por provas ilícitas,
decerto, apresenta-se como empecilho ao exercício da ação penal pelo Ministério Público, e
ainda que venha a ser o caso, obstaculiza o reconhecimento da pretensão punitiva em juízo. O
atraso na apreciação judicial de um requerimento de prisão temporária de um suspeito numa
investigação criminal, é provável, afetará o sucesso da empreitada policial, podendo
prejudicar o desvendamento de um fato criminoso. De toda sorte, ocorre aqui o fenômeno da
sinergia - o todo é mais do que a soma das partes. O resultado obtido através da condenação –
ou absolvição – do acusado (réu), outrora selecionado para inclusão no sistema, é produto do
esforço conjunto de todos os agentes que operaram no sistema, inclusive a defesa técnica, e
que, no âmbito do Tribunal do Júri Popular, se descortina na decisão (veredito) manifestada
pelos jurados através de voto secreto.
No caso do aborto, acreditamos que os inputs no sistema decorrem de um juízo de valor
dos operadores quanto à necessidade do abortamento (status socioeconômico) e dos vínculos
sociais dos indivíduos envolvidos. Ora, diversos casos levados ao Judiciário se referem a
clínicas particulares, onde profissionais da enfermagem ou da medicina acolhem clientes para
a prática do abortamento mediante honorários. Parece, então, bastante razoável pensar que
uma certa visão de “mercantilização” do aborto contribui para a seleção dessas condutas. Em
outra esfera, relacionamentos conjugais desfeitos ou outros conflitos familiares não-resolvidos
motivam a delação do aborto nas delegacias de polícia, como uma tentativa de vingança
contra a mulher.

Portanto, é sob essa perspectiva, de que mesmo sendo submetido a um processo de


descriminalização, ainda não ultimado (abolitio criminis), o abortamento e as mulheres ou
terceiros que o realizam são selecionados para uma atuação repressiva do sistema de justiça
criminal, que iniciamos a apresentação do Tribunal do Júri Popular.

O Júri Popular é uma instituição deveras antiga, sendo identificado em sistemas


jurídicos de muitos países. Entre nós, recebeu tratamento privilegiado como modelo de
organização da aplicação da justiça, tendo-lhe sido assegurada a formatação de direito
fundamental, inscrito no art.5º da vigente Constituição da República, de 1988. Resta verificar,
então, se a inserção do Júri Popular efetivamente condiz com a natureza de um direito
fundamental e, desse modo, saber se o comando ali inserto é justificado, encontrando-se numa
condição de compatibilidade com o regime de direitos fundamentais.

A episteme, tal como concebida pelos gregos, desenvolve-se em oposição à doxia, que
se resume a uma mera opinião a respeito de uma circunstância ou de uma idéia. De igual
modo, no Tribunal do Júri Popular, o que se observa é que prevalece a simples opinião dos
jurados que, dada a desnecessidade de justificação de suas motivações, já que seu voto é
sigiloso, não raras vezes vem desacompanhada de qualquer raciocínio técnico-jurídico que o
conduza a um juízo de convencimento sobre a responsabilidade penal do réu. O direito,
porém, não pode se contentar com a doxia e, assim, ser dogmático. Afinal, o direito possui
uma função social e política. Com efeito, é salutar que o conhecimento jurídico venha a
compreender padrões de cientificidade, de modo a melhor cumprir suas funções no meio
social, como mecanismo regulador da convivência. Nessa paisagem, descortinam-se os
direitos fundamentais como um modelo para conhecer o direito como um todo.
As dimensões da problemática jurídica segundo o modelo de Dreier-Alexy se propõem
a formatar uma teoria dos direitos fundamentais. Desse modo, estar-se-ia diante de uma
tridimensionalidade do jurídico, a saber: analítica (formal), de conteúdo lógico; normativista,
esta por sua vez, axiológica; e empírica, que se entende epistemológica.

Referida teoria dos direitos fundamentais não trata de algo já posto, numa fórmula
acabada, mas convidativo para ser desenvolvido. Constitui-se, a bem da verdade, numa
metodologia dinâmica e unificante, de maneira que possa abarcar a múltipla dimensionalidade
do fenômeno jurídico. Quer dizer, é um método singular de abordagem do problema jurídico,
tal como ele se nos apresenta no mundo dos fatos, ou mundo da vida, no dizer de Habermas.

Depois das posturas extremadas do empirismo e do racionalismo, representadas na


ciência jurídica pelo juspositivismo e pelo jusnaturalismo, respectivamente, na perspectiva de
paradigmas epistemológicos que reconheciam tão-somente ora a experiência ora a razão como
caminhos para o conhecimento, é de se crer, como defende Karl Popper, que uma teoria
científica sempre estará sujeita à sua própria falseabilidade. Em outras palavras, toda teoria
constitui mera hipótese de trabalho, uma simples conjectura, a ser submetida à refutação da
comunidade científica e das demais teorias com ela conflitantes. O avanço científico, assim,
se daria através da progressiva eliminação dos erros contidos nas teorias.

Não resta dúvida, pois, da importância de uma teoria dos direitos fundamentais para o
conhecimento jurídico e, sob essa perspectiva, para uma elucidação da intrincada gama de
variáveis mergulhadas na análise da instituição do Júri Popular, onde fatores
socioeconômicos e políticos se imiscuem de maneira mais evidente com o conteúdo
jurídico. Certamente, não se deve vislumbrar o Júri Popular na restritiva ótica técnico-
jurídica, senão como modelo de julgamento aberto à participação popular, posto que, em
razão justamente da intervenção direta – mas não necessariamente efetiva – do povo, o
problema se coloca para o investigador num panorama bem mais abrangente.

Queremos crer que os direitos fundamentais possuem uma dinâmica de fluxos e refluxos
com a democracia. Num Estado Democrático de Direito, a efetividade dos direitos
fundamentais é resultante da otimização da soberania popular e, num sentido inverso, a
soberania do povo serve de suporte para a garantia dos direitos fundamentais. Na expressão de
Canotilho, além de elemento constitutivo do Estado de direito, os direitos fundamentais
apresentam-se como ingrediente básico para a realização dos princípios democráticos. Em
outras palavras, os direitos fundamentais têm uma função democrática porque o exercício
democrático do poder implica a contribuição de todos os cidadãos para esse exercício, impõe
a participação livre assente em importantes instrumentos de garantia para a liberdade desse
exercício e a abertura do processo político para a criação de outros direitosx.

Isto posto, delineada, mesmo que superficialmente, e tão-só para os propósitos deste
trabalho, a tese de que os direitos fundamentais são instrumentos de suma importância
num Estado Democrático de Direito para garantia da soberania popular, convém por ora
trazer à baila o dispositivo constitucional referente ao Júri Popular. Ele está elencado entre
os direitos e garantias fundamentais do cidadão. De fato, a Constituição Federal, em seu
art. 5º, inciso XXXVIII, restaurou o prestígio da instituição, assim prescrevendo:

Art. 5º. (omissis).


XXXVIII – é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei,
assegurados:
a) a plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações;
c) a soberania dos veredictos;
d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Quando a redação constitucional se exprime no sentido de promover o reconhecimento


da instituição do Júri, é o mesmo que afirmar a sua manutenção, como tradicionalmente, aliás,
os textos anteriores assim já manifestavam. Ademais, a expressão “instituição do júri” quer
significar, no sentido mais apropriado do vocábulo, não o mesmo que criação, mas, instituição
como grupo social organizado e articulado para alcançar um determinado objetivo. Significa
dizer que o Júri Popular, na condição de elemento estrutural do Tribunal do Júri Popular,
também é um sistema, inserido, por sua vez, no sistema de justiça criminal.

Percebe-se também que, no texto da Carta, é omitida a expressão “popular”, permitindo


entrever que a legislação ordinária (infraconstitucional) poderia até estabelecer outros tipos de
júri, a exemplo dos júris classistas, de especialistas em determinada matéria (é o que tende a
acontecer, por exemplo, no modelo brasileiro dos tribunais arbitrais), um júri daqueles de
programas televisivos de calouros e assim por diante. No entanto, acreditamos que não se
cuida, no arcabouço constitucional, de qualquer espécie de júri, mas, do júri popular
anteriormente adotado em nosso sistema e penhorado ao longo das diversas etapas do
constitucionalismo brasileiro. Além disso, organizado na legislação processual penal, de
1941, nesses mesmos moldes.

Cumpre, então, indagar se o júri se constitui efetivamente em direito fundamental ou se


a sua inserção no art. 5º não passa de uma reverência à tradição constitucional brasileira. E
ainda, sendo ele um direito individual, se não poderia o indivíduo dispor do julgamento pelo
Júri, ou seja, se não assistiria ao cidadão a opção de escolha de ver-se julgado perante um Júri
Popularxi. Neste aspecto, entendemos que o direito do cidadão consistente em ser julgado por
seus concidadãos – ou pares, como se dizia em tempos remotos – apresenta-se como um
típico direito individual de primeira geração, aquela que trouxe à tona direitos de conteúdo
liberal, consagrando, sobretudo, a liberdade do indivíduo perante o Estado. Desde seu
nascedouro, parece claro que a proposta sempre foi a de afastar o Estado do poder de julgar,
propugnando-se ao mesmo tempo por um julgamento mais justo (fair trial). Tanto na
Inglaterra como em França, o Júri Popular surgiu em contraposição à magistratura oficial,
fortemente vinculada ao poder instalado e, por esse motivo, fonte de toda sorte de
desconfianças e incertezas no meio da comunidade. E na mesma corrente liberal, muitas
cartas constitucionais recepcionaram aquele modelo de julgamento popular, e que, numa
perspectiva contemporânea, associamos ao exercício do poder soberano pelo próprio povo.

Em suma, o Júri Popular pode ser tido, em sua essência, como um direito fundamental,
incluído entre aqueles de primeira dimensão, isto é, os direitos individuais. Daí porque se
pode questionar: se o júri é uma instituição reconhecida como garantia individual, o acusado
deveria ter o direito de não optar por ele, sob pena de constituir-se numa obrigação ao invés
de assegurar um direito. Todavia, aceitamos a avaliação supracitada como uma situação ideal,
mas ainda não real. Os diversos textos constitucionais já vigentes em nosso País, de fato, ora
consideraram o Júri apenas como um órgão do Judiciário ora como direito individual, mas em
todo caso, em nenhum momento o legislador reconheceu a possibilidade de que as partes, mas
principalmente o réu, pudessem escolher ou abdicar do julgamento popularxii. A história
constitucional do Júri tem demonstrado uma inconstância que, no final das contas, acusa a
insegurança do legislador quanto à natureza da instituição. Todavia, convém salientar que não
será por deixar de vir localizado na seção do Poder Judiciário que o Júri não poderá ser
considerado na perspectiva de um órgão judicial. Afinal, já dissemos que o Júri Popular faz
parte de uma estrutura maior, na qual se acha incluído, que é o Tribunal do Júri Popular, e
este, por seu turno, é um subsistema do sistema de justiça criminal.

Por esse motivo, outro ponto a merecer análise diz respeito à circunstância de ser o
Tribunal do Júri Popular um órgão do Judiciário. O Júri Popular é um órgão político, o que
implica dizer que ele não se submete à imposição constitucional de fundamentar suas decisões
(CF/88, art. 93, inc. IX). O conselho de sentença, e que afinal decide sobre uma causa, é
composto de jurados, isto é, cidadãos que, estando ali, encontram-se exercendo sua cidadania.

O problema é que, diferentemente dos demais órgãos do Judiciário, o Júri Popular


mereceu acolhida no art. 5º da Constituição Federal, figurando entre os direitos e garantias
fundamentais do cidadão brasileiro. Direito individual é o direito a julgamento perante um
Júri Popular, e não o Tribunal como um todo. O Júri se constitui uma parcela do Tribunal,
pois este compreende ainda o magistrado e os serventuários da justiça, todos eles
considerados seus agentes. Nenhum outro modelo de julgamento pelos cidadãos recebeu
tratamento tão especial. Por essa razão, quem não necessita fundamentar suas decisões são
apenas os jurados, ou seja, o Júri Popular propriamente dito. E a desnecessidade de
justificação dos vereditos, vale destacar, decorre da própria soberania popular.

Isso nos leva a uma incômoda constatação: o Júri Popular possui uma natureza jurídica
híbrida, sendo a um só tempo um direito individual, do tipo clássico ou de conteúdo liberal, da
primeira geração dos direitos, e também um órgão público, ou melhor dizendo, uma parte
dele, que é o Tribunal do Júri Popular, enquadrado no organograma do Judiciário brasileiro, e
portanto, sujeito a seus regramentos. Ressalte-se o equívoco, já observado inclusive entre
profissionais da área, em referir-se a um tal “Tribunal Popular do Júri”. Certamente, não é
apenas uma troca de cadeiras na expressão gramatical. O Tribunal não é popular, pois é
composto por servidores públicos especialmente selecionados para uma função estatal, a
saber, os magistrados. É claro que os magistrados são igualmente pessoas do povo, mas
não se trata aqui de um tribunal formado direta e originariamente pelos cidadãos, como se
observa em guerras ou em comunidades mais primitivas. No Tribunal do Júri Popular
parece haver uma frustrada tentativa de acomodação do modelo tecnicista de julgamento e
da estrutura tradicional dos órgãos judiciários a uma certa ânsia de conferir legitimidade à
participação popular.
Uma análise histórica ajuda a colocar a questão em melhores termos. Com efeito, o
direito ao Júri nasceu, recordamos, como um direito individual, daqueles que objetivam
salvaguardar a liberdade do indivíduo perante o Estado e, por conseguinte, a magistratura
oficial. Com o passar do tempo, contudo, e dado o fortalecimento do Poder Judiciário, e em
particular, do princípio da separação de poderes, o modelo de julgamento popular foi
incorporado no sistema judiciário tradicional, através de repartição de atribuições ou
colaboração com os juízes togados. Daí porque afirmamos que o Júri Popular é uma parcela
do Tribunal.

Quanto ao seu viés político, entendemos que não somente o Júri Popular, como também
o organismo inteiro, isto é, o Tribunal do Júri Popular, é um órgão político, aí incluído,
portanto, o juiz-presidente, uma vez que a função jurisdicional mesma possui também caráter
político. Em outras palavras: o Tribunal do Júri Popular é órgão do Poder Judiciário,
malgrado não seja previsto no art. 92 da Constituição. Porém, o seu ponto diferencial reside
no fato de que o Júri Popular é revestido da qualidade do caráter reflexo da soberania do povo
(lembremos que a soberania dos vereditos é um de seus elementos essenciais), escapando,
portanto, à necessidade de fundamentar suas decisões. Agora, quando se diz Júri Popular,
tome-se somente o corpo de jurados. O juiz-presidente, como agente estatal inserido na
estrutura de um órgão jurisdicional, não escapa à obrigação constitucional de fundamentação
de suas sentenças e não conta com qualquer soberania em relação a elas.

E porque um mero órgão dentro da estrutura típica do Judiciário brasileiro, e não mais
um autêntico e pleno direito individual, no que faria jus às suas origens históricas, o Tribunal
do Júri Popular, ou melhor dizendo, o Júri Popular também se enquadra nos mecanismos de
funcionamento do sistema de justiça criminal, isto é, o Tribunal do Júri Popular faz parte do
sistema de justiça criminal, e por isso, apresenta todas as características que lhe são
pertinentes, como a funcionalidade e, principalmente, a seletividade, isto é, os jurados
também procedem de forma seletiva, pelo menos quando decidem uma causa, já que não lhes
cabe promover a seletividade em etapas anteriores do fluxo regular do sistema.

Mas, a despeito de tudo isso, retornamos à indagação que nos motivou essas reflexões:
poderia afinal um cidadão abdicar de ser julgado por um Júri Popular, alegando que se trata de
um direito individual, tal como ele poderia fazê-lo em relação, por exemplo, ao direito à
intimidade? Entendemos que a resposta deve ser negativa, tendo em relevo as afirmações
acima expendidas. Ora, em seu processo histórico de evoluções e involuções, particularmente
no Brasil, o Júri Popular acabou sendo anexado pela estrutura funcional-burocrática do
Judiciário. Tanto que o texto constitucional se refere à “instituição do júri”, sem dizer se ela é
popular e tampouco afirmando categoricamente a possibilidade de escolha do cidadão para se
submeter a julgamento perante esse órgão.

A Constituição Federal, além de reconhecer a instituição do júri, associa-o a algumas


características, das quais a legislação processual não pode se desviar: plenitude de defesa,
sigilo das votações, soberania dos vereditos e competência para os crimes dolosos contra a
vida.

O direito à ampla defesa é genericamente encampado no art. 5º, inciso LV, da


Constituição Federal, ao passo que o mesmo direito volta a ser observado, especificamente,
no art. 5º, inciso XXXVIII, “a”, da Carta Magna. Isto posto, não existe qualquer diferenciação
substancial entre ampla defesa ou defesa plena, senão uma predileção do constituinte por essa
terminologia ao arrolar os aspectos do Júri que mereceriam sua salvaguarda, em face das
características especialíssimas da instituição. Decerto, é importante destacar que o direito à
ampla defesa, tratando-se de sessão plenária do Júri, vê-se submetido a uma nova modelagem,
quando em comparação com o procedimento criminal perante o juiz singular.

Esse direito vem enfeixado entre os direitos fundamentais chamados de primeira


geração. Corresponde, em linhas gerais, ao direito do réu de lançar mão de todos os recursos
legítimos para a sua defesa, isto é, de produzir provas, argumentar da maneira que entender
mais conveniente e até mesmo mentir sobre os fatos, uma vez que sobre a acusação recai o
ônus de provar a culpa do réu, e não, o réu de provar a sua inocência. E na esfera do Júri
Popular, assiste ao acusado, como componente necessário do direito à plenitude de defesa,
que ele seja submetido a julgamento perante um conselho de cidadãos imparciais e oriundos
do povo. Ora, quer-se dizer aqui que o direito à ampla defesa no Tribunal do Júri Popular
abarca também, e principalmente, o direito a uma composição heterogênea do conselho de
sentença. O organismo de jurados deverá sempre contar com representantes dos mais diversos
segmentos do povo, a fim de que sejam afastadas as singularidades de uma determinada classe
social e, com isso, impedir que seja distorcida a justiça do julgamento em decorrência da
prevalência de valores não compartilhados por todos os grupos sociais. Assim, o direito à
ampla defesa restaria visivelmente prejudicado se, na hipótese de julgamento de um crime de
aborto, o conselho de sentença, formado por sete pessoas, fosse composto por cidadãos de
inescondível convicção religiosa, segundo os cânones da Igreja Católica, sabidamente contrária
a qualquer situação de aborto.

O sigilo das votações compreende a votação em si, não abrangendo os atos


preparatórios. Tem-se como desnecessária, portanto, a utilização de uma sala secreta – ou
“especial”, como agora a ela se refere na Lei 11.689/08, haja vista que os jurados não
discutem abertamente entre si as teses expostas em plenário pela acusação e pela defesa, em razão
do princípio da incomunicabilidade, segundo o qual, depois de empossados como julgadores no
conselho de sentença, os jurados não podem travar qualquer diálogo entre si ou com terceiros.
Nos termos do modelo de julgamento vigente em nosso ordenamento, bastaria que os jurados
fossem questionados e respondessem com seu voto aos quesitos apresentados pelo juiz ainda em
plenário. Afinal, não há nenhuma espécie de intervenção, senão quando o jurado, ainda
insuficientemente esclarecido sobre algum fato da causa, indaga ao juiz a respeito de qualquer
ponto referente ao processo; quando o jurado, querendo, faz alguma pergunta à testemunha, ao
réu e ao ofendido, no momento em que eles são colhidos seus depoimentos em plenário; na
ocasião em que o jurado pede ao orador que cite a página dos autos por ele mencionada durante os
debates ou na oportunidade em que o jurado, antes de votar, requer ao juiz autorização para
manusear os autos do processo ou examinar qualquer elemento material de prova existente em
juízo. Todos os atos processuais são públicos, porém, somente a votação dos quesitos, como
uma exceção à regra geral da publicidade e por persistência calcada na tradição, continua a ser
concretizada numa sala especial, a portas cerradas, onde tem ingresso somente o magistrado,
os seus auxiliares, as partes, e claro, os próprios jurados.

O vocábulo “soberania” empregado no mencionado dispositivo constitucional denota o


sentido corrente ou vulgar, significando indiscutibilidade, e não o conteúdo técnico-jurídico,
melhor conformado à soberania estatal.

Porém, convém discutir se há, efetivamente, soberania do Júri, vez que a decisão dos
jurados, tal qual a sentença do juiz togado, também pode ser anulada por uma instância
superior. Afinal, o Código de Processo Penal admite a interposição de apelação do veredito do
Júri quando a decisão é manifestamente contrária à prova dos autos (CPP, art. 593, inc. III, “d
”). Mesmo considerando que o Tribunal, ao cassar uma decisão, remete-o de volta, ao
invés de proferir uma sentença substitutiva – algo que, para a doutrina, constitui-se no
traço distintivo da soberania do Júri – convém salientar que, ao retornar, o processo será
submetido, num segundo julgamento, a um novo conselho de sentença. Isto posto, é
razoável imaginar que poderá decorrer daí uma decisão absolutamente diversa da anterior,
então cassada. O fator determinante dessa variação será o desempenho da defesa e da
acusação e, principalmente, a nova composição do conselho de jurados. Vislumbramos
que a soberania dos vereditos a que se refere o dispositivo constitucional corresponde,
pois, a uma soberania relativa.

Como crimes dolosos contra a vida devem ser compreendidos os tipos penais descritos
nos arts. 121 ao 128 do Código Penal, aí incluídas, pois, as modalidades de aborto. Neste
aspecto, algumas necessárias avaliações sobressaltam logo à vista: a primeira, que somente o
Júri Popular possui competência para julgar os crimes dolosos contra a vida, afastando
qualquer outra espécie de órgão judicial para esse fim (competência privativa); a segunda, que
esse mesmo Júri Popular poderia conhecer de outras matérias, não previstas no art. 5º, inc.
XXXVIII, “d”, da Constituição Federal; a terceira, que o instituto processual da prerrogativa
de foro afasta a competência do Tribunal do Júri Popular, já que também desfruta de estatura
constitucional, e dessa maneira, por exemplo, uma parlamentar federal que venha a praticar
um autoaborto ou permita que alguém se lho provoque terá seu comportamento conhecido e
julgado pelo STF, e não pelo Tribunal do Júri Popular. Quer dizer, certas autoridades públicas
se encontram a salvo das incógnitas que permeiam um julgamento popular, cujos julgadores,
selecionados através de mecanismos aleatórios (sorteio), decidem a causa através de voto
sigiloso, sem necessidade de fundamentação jurídico-legal.

Este é o perfil constitucional do júri. Agora, discorreremos sobre o alistamento de


cidadãos para composição do corpo de jurados e os requisitos exigidos em lei para a assunção
dessa cruciante tarefa, que é a de julgar a conduta de um semelhante – e que às vezes é
tomado por julgamento do semelhante.

A lei processual penal prescreve uma série de cautelas a fim de garantir a isenção do
corpo de jurados por ocasião dos julgamentos. Nesse sentido, exige que eles sejam
escolhidos mediante sorteio, na verdade, um duplo sorteio, a partir da lista geral formada
pelo próprio juiz. Esta é uma fórmula que provém das origens da instituição. Ademais, a
formação da lista é o ponto-chave para a maior ou menor democratização do Júri Popular e,
por via de conseqüência, a melhor ou pior justiça de seus vereditos.
O início da seleção de cidadãos ocorre com a formação da lista geral. A cada ano,
serão alistados pelo presidente do Tribunal do Júri de 800 (oitocentos) a 1.500 (um mil e
quinhentos) jurados nas comarcas de mais de 1.000.000 (um milhão) de habitantes; de 300
(trezentos) a 700 (setecentos) nas comarcas de mais de 100.000 (cem mil) habitantes e de 80
(oitenta) a 400 (quatrocentos) nas comarcas de menor população. Onde for necessário, poderá
ser aumentado o número de jurados e, ainda, organizada lista de suplentes, depositadas as
cédulas em urna especial. Para a formação da lista geral, o juiz-presidente requisitará às
autoridades locais, associações de classe e de bairro, entidades associativas e culturais,
instituições de ensino em geral, universidades, sindicatos, repartições públicas e outros
núcleos comunitários a indicação de pessoas que reúnam as condições para exercer a função
de jurado (CPP, art. 425, caput e § 1º). Mas isso não impede que o próprio cidadão compareça
em juízo e se proponha a ter seu nome inscrito na lista.

A lista geral dos jurados, com indicação das respectivas profissões, será publicada pela
imprensa até o dia 10 de outubro de cada ano e divulgada em editais afixados à porta do
Tribunal do Júri. Nesse ponto, a legislação foi bastante preguiçosa. Com a maior acessibilidade
dos meios eletrônicos de informação – internet, sobretudo, não há mais porque recorrer aos
tradicionais editais. Os expedientes dos Tribunais, de um modo geral, tendem a ser
integralmente virtualizados. De qualquer modo, a lista poderá ser alterada, de ofício ou
mediante reclamação de qualquer do povo ao juiz-presidente até o dia 10 de novembro, data de
sua publicação definitiva. Juntamente com a lista, serão informadas as funções e prerrogativas
do jurado. Mas o certo é que, na prática forense, muitos cidadãos assumem a difícil missão de
integrar o corpo de jurados sem conhecer a fundo os variados aspectos da instituição do Júri.

Os nomes e endereços dos alistados, em cartões iguais, após serem verificados na presença
do Ministério Público, de advogado indicado pela Seção local da Ordem dos Advogados do Brasil
e de defensor indicado pelas Defensorias Públicas competentes, permanecerão guardados em urna
fechada a chave, sob a responsabilidade do juiz-presidente (CPP, art. 425, § 3º). Antes, exigia-se
apenas a presença do membro do Ministério Público. A alteração, nesse tópico, parece ser
bastante salutar, pois permite maior participação das outras instituições envolvidas nos trabalhos
do Tribunal do Júri Popular, e que, no final das contas, também operam o sistema de justiça
criminal.
O jurado que tiver integrado o Conselho de Sentença nos 12 (doze) meses que
antecederem à publicação da lista geral fica dela excluído (CPP, art. 425, § 4º). Busca-se, assim,
tentar evitar o chamado “jurado profissional”. Entendemos como “jurado profissional” aquele
cidadão habituado, em razão de oportunidades sucessivas, ao ofício de julgar, já que sorteado
e participante seguidas vezes do conselho de sentença. Em determinadas comarcas, é razoável
acreditar que um cidadão inscreve seu nome nas listas elaboradas em diversas escrivanias, daí
decorrendo a possibilidade de que ele seja sorteado, para um único exercício, em mais de uma
dessas Varas e, com maior razão, que seu nome conste em listas diversas por anos consecutivos.
A disposição continuada do cidadão para o serviço do Júri Popular deixa-o inquinado de vícios.
Em situações extremas, o jurado não mais decide segundo a “sua consciência e os ditames da
justiça”, mas em função das simpatias nutridas pelas partes, pelos profissionais habitualmente
envolvidos nos processos ou por motivos outros.

Ademais, a experiência judicial tem demonstrado, com o decorrer do tempo, que nas
grandes aglomerações urbanas, a maior parcela de pessoas que têm seus nomes na lista geral
são funcionários públicos. Já naquelas pequenas localidades, há incidência de um maior número
de pessoas oriundas de classes mais diversificadas da sociedade, professores, pequenos
comerciantes etc. Em todo caso, por não se tratar de função remunerada, tampouco que forneça
subsídios ou comodidades extraordinárias aos jurados, os encargos profissionais ou familiares
do cidadão acarretam sua exclusão da viabilidade de sua participação como jurado, e por
conseguinte, um certo nível de perda de representatividade social do conselho de sentença.
Logo, fica prejudicada uma das principais notas de destaque e de legitimidade do Júri Popular,
vale dizer, a sua representatividade popular. Aliás, os principais argumentos em defesa da
instituição giram em torno da idéia de que o Júri representa a sociedade e seus interesses, ou de
que o Júri é o próprio povo tomando as rédeas da aplicação da justiça. Entretanto, diante de tais
distorções, quando somente uma determinada parcela ou algumas poucas classes sociais têm
ingerência e integram efetivamente o Júri, vê-se que os julgamentos poderão apenas reforçar
ideologias próprias desses grupos. Em suma, o que se vê atualmente no Brasil é a classe média
julgando os trabalhadores – agricultores, operários e desempregados, estes, sim, os mais
numerosos e freqüentes clientes do sistema de justiça criminal brasileiro. No caso do aborto, é a
classe média e seus valores médios (ou medíocres, como diriam alguns) que julgam as
mulheres, quiçá aquelas pobres, desamparadas, desesperadas, que em determinado momento da
vida se viram na contingência de praticar o aborto em si mesmas, ou aqueles outros que, por um
motivo qualquer, colocam sua experiência profissional a disposição de mulheres, que chegam a
sua presença depois de uma decisão muitas vezes difícil e traumatizante, com o objetivo de
interromper uma gestação. Queremos crer que essas distorções na composição do corpo de
jurados não se coadunam com os princípios de um Estado Democrático de Direito e, portanto,
põe em risco a integridade do direito do réu consistente em ter um julgamento justo.

Depois de organizada a pauta de julgamento para a reunião periódica do Tribunal do


Júri Popular, o juiz-presidente determinará a intimação do Ministério Público, da Ordem dos
Advogados do Brasil e da Defensoria Pública para acompanharem, em dia e hora designados,
o sorteio dos jurados que atuarão nessa reunião periódica (CPP, art. 432). O sorteio, presidido
pelo juiz, é feito a portas abertas, cabendo-lhe retirar as cédulas, cada uma delas contendo o
nome do cidadão inscrito na lista geral, até completar o número de 25 (vinte e cinco) jurados.
Estabelece a lei que o sorteio será realizado entre o 15º (décimo quinto) e o 10º (décimo) dia
útil antecedente à instalação da reunião, isto é, o período dentro do qual o Tribunal do Júri
Popular realizará sessões de julgamento de diversos processos criminais. Os jurados sorteados
serão convocados pelo correio, ou por qualquer outro meio hábil, para comparecer no dia e
hora designados para a reunião, sob as penas da lei, no caso, as sanções administrativas
correspondentes (CPP, art. 436, § 2º).

O serviço do júri, portanto, será obrigatório, dele não podendo se afastar nenhum
cidadão, salvo nos casos de escusa legítima ou quando há previsão legal. A recusa
injustificada ao serviço do júri acarretará multa no valor de 1 (um) a 10 (dez) salários
mínimos, a critério do juiz, de acordo com a condição econômica do jurado (CPP, art. 436, §
2º). O alistamento compreenderá os cidadãos maiores de dezoito anos, sem limite de idade
(CPP, art. 436). Por outro lado, não poderão participar os cidadãos estrangeiros. Integrar o
Júri Popular, pois, é uma possibilidade apenas para os brasileiros natos e naturalizados, uma
vez que o Tribunal do Júri Popular é órgão do Judiciário, e como tal, um poder político.

Em princípio, todo e qualquer cidadão encontra-se apto a ter seu nome inserido na lista
anual. Não obstante, algumas restrições se apresentam. É necessário que a idade mínima seja
de dezoito anos, igualando-se, assim, com o patamar das maioridades civil e penal. Também
não pode ser jurado aquele que não estiver inscrito como eleitor, isto porque o registro
eleitoral é condição para o pleno exercício da cidadania. Chega a ser curioso atentar para a
falta de paralelismo, no tocante à idade mínima para julgar, entre o magistrado de carreira e o
jurado. Enquanto o cidadão pode exercer a função de jurado contando apenas 18 (dezoito)
anos de idade, o juiz de direito, que inicia a carreira na condição de juiz substituto, deverá
possuir, pelo menos, 3 (três) anos de atividade jurídica até a data da posse, inviabilizando,
assim, quase que por completo, à exceção, portanto, de casos raros de pessoas com
inteligência excepcional, o ingresso tão precoce de um bacharel em Direito na magistratura
(CF, art.93, inciso I). A exigência constitucional, incluída por meio da EC n.º45/2004
(Reforma do Judiciário) permite entrever o propósito de evitar nos quadros do Judiciário um
juiz pouco amadurecido na vida, porquanto lhe é exigido certo tempo de experiência nas lides
forenses ou equivalentes. Por outro lado, esse amadurecimento não é requisito para o jurado,
restando, pois, ao Juiz-Presidente cercar-se das devidas cautelas, mas sem incorrer em
discriminações preconceituosas e ilegais, ao fazer incluir na lista geral cidadãos nessa faixa
etária (CPP, art.425, §2º).

Os jurados serão sorteados dentre cidadãos de notória idoneidade, a critério do juiz.


Entretanto, nas grandes cidades, ocorre que nem todos os nomes – senão uma pequena parte –
inseridos na lista geral correspondem a cidadãos de conhecimento pessoal do magistrado, ali
sendo adicionados por indicação de serventuários da Justiça, terceiros em geral (instituições
públicas ou privadas) e mesmo de outras pessoas cujos nomes já se acham ali inscritos. Não
há previsão de nenhum mecanismo efetivo de averiguação da idoneidade desses cidadãos,
salvo as informações prestadas por órgãos públicos, em se tratando de candidatos a jurado que
sejam funcionários do Estado. O viés ideológico do corpo de jurados, portanto, é uma
verdadeira incógnita, não se sabendo como verificar as tendências e opiniões de seus
membros. O perfil ideológico do juiz profissional é verificável a partir de sua produção diária
na judicatura, seus despachos, suas sentenças. Já em relação aos jurados, em princípio nada se
sabe e nem há como saber, pois seus votos são sigilosos.

A legislação, de fato, é bastante lacônica ao estabelecer que os jurados serão


recolhidos entre os cidadãos de notória idoneidadexiii. Não deixa consignado nada mais
que isso. O problema, então, consiste em procurar compreender a expressão “notória
idoneidade”. Este é mais um dos vários termos jurídico-legais de conceituação indefinida
e, por conseguinte, não suscetíveis de conteudificação apriorística. Trata-se de um tipo de
textura aberta, no dizer de Hart. Em verdade, a notória idoneidade do cidadão é uma
qualidade identificável, para efeito de alistamento, somente pelo juiz-presidente, único
responsável pela elaboração da lista. É ele quem atribui um sentido a esse conceito
jurídico indeterminado. Não raras vezes, porém, o juiz-presidente recebe sugestões das
pessoas que lhe são mais próximas, quando não delega tal missão a um funcionário de sua
confiança. Em alguns casos, a inscrição na lista é livre, no sentido de que não há nenhum
controle prévio ou exigência de requisitos para a inserção do nome de um cidadão. Afinal,
acreditamos que ter seu nome registrado na lista anual de jurados é um direito público
subjetivo que assiste a todo cidadão, desde que observada a regularidade de sua condição
como tal e os requisitos do art. 434, do Código de Processo Penal.

Com o modelo vigente de recrutamento dos jurados através de uma lista anual e,
sobretudo, em razão da atribuição de sentido à expressão “cidadão de notória idoneidade” por
parte do magistrado, ocorre o que Lênio Luiz Streck denomina de introjeção no imaginário
social de um padrão de normalidade. Segundo o jurista gaúcho, a partir das características
ideológicas dos jurados, este fator determinará o padrão de comportamento exigido do
restante da sociedade. Em outras palavras: o magistrado conforma a composição ideológica
do corpo de jurados e estes reproduzirão um padrão de comportamento desejável ao restante
da sociedade através de seus vereditosxiv.

O Tribunal do Júri Popular, consoante previsão da legislação pátria, vem constituído de


um juiz de direito, que é o seu presidente, e de vinte e cinco jurados que se sortearão dentre os
alistados, sete dos quais constituirão o conselho de sentença em cada sessão de julgamento
(CPP, art. 447). Essa sessão de julgamento é, via de regra, pública, podendo ser acompanhada,
mas sem qualquer tipo de interferência, por todo cidadão, pela imprensa e por familiares e
amigos da vítima ou do réu.

Adotadas todas as precauções que a lei recomenda, o processo será submetido a


julgamento perante o Júri Popular, que se reune em plenário, presentes o réu, seu defensor, o
representante do Ministério Público, o assistente, se houver, e serventuários da Justiça, além
do juiz-presidente. Mas esse processo criminal, antes de chegar à apreciação do Júri Popular,
atravessa um rito procedimental muito semelhante ao dos demais processos judiciais,
iniciando-se na denúncia do Ministério Público, e em seguida, contando com a citação e a
defesa preliminar do acusado, a realização de audiência para a colheita de provas,
principalmente as testemunhais, mas também a oitiva da vítima e o interrogatório do réu,
juntada de documentos e laudos periciais, alegações por escrito das partes, e finalmente, a
decisão de pronúncia, que consiste na manifestação do juiz de direito no sentido de submeter
a causa ao julgamento do povo.

O juiz togado, posto que investido do status de agente estatal incumbido de exercer a
função jurisdicional ao lado dos jurados, possui importantes funções na estrutura do Tribunal
do Júri Popular. Em linhas globais, ele deve prover a reunião do corpo de jurados e a sua
convocação. E na sessão do Júri, com a formação do conselho de sentença, cumpre-lhe a
tarefa de presidir os trabalhos, exercendo o poder de polícia sempre que necessário.

Por outro lado, é tradição na prática forense o juiz demonstrar passividade no


julgamento em plenário do Júri. A despeito das responsabilidades legais, tais como o sorteio
dos jurados, a apresentação dos quesitos e a lavratura da sentença, de resto o juiz se limita a
observar o embate da defesa e da acusação nas suas respectivas tribunas, não raras vezes
entrecortado por algum entrevero ou discussões mais acirradas. Nestes termos, as
prerrogativas do juiz podem ser sintetizadas na função de controle e policiamento da sessão
do Júri Popularxv.

O julgamento em plenário mostra-se polarizado entre a acusação e a defesa. Esta última


é tarefa do advogado do réu, que pode ser um profissional da advocacia ou um membro da
Defensoria Pública, ao passo que a delação, como conseqüência do direito ao exercício
privativo da ação penal pública, afigura-se papel do Promotor de Justiça (CF/88, art. 129, inc.
I), corroborado pelo assistente, se houver, que vem a ser um membro da família da vítima,
representado por um advogado. Na qualidade de procurador dos interesses da sociedade e,
portanto, de que seja concretizada a justiça que o caso requer, o Promotor não só pode como
deverá pedir a absolvição, quando entender que for o caso. Ministério Público não é só para
acusar, como já ensinam muitos membros da instituição. Acima da satisfação pessoal e
profissional em obter êxito nas suas investidas, impõe-se ao Promotor o dever de zelar pelos
interesses da sociedadexvi. E o interesse maior da sociedade, num julgamento perante o Júri
Popular, não é simplesmente condenar o acusado, senão fazer justiça. E em alguns casos,
concretizar a justiça significa absolver um réu que, diante das provas coligidas, demonstra ser
inocente ou, ao menos, constatam-se inexistentes provas cabais de sua culpabilidade.

O certo é que, nos debates em plenário, surgem contraposições entre Promotor e


defensor, ou mesmo entre Promotor e assistente da acusação, em atitudes que acabam
destoando e fugindo das abordagens necessárias para o esclarecimento dos jurados a respeito
dos fatos ligados ao caso em julgamento. Este é um ranço que, com muito esforço, ainda
deverá ser expurgado da prática forense.

Nos termos do art. 457 do Código de Processo Penal, verificado publicamente pelo juiz
que se encontram na urna as cédulas relativas aos jurados presentes, o que deverá constar em
termo próprio, será feito o sorteio de sete dentre eles para a formação do conselho de
sentença.

No sistema brasileiro, como se trata de um procedimento preparatório, de natureza


muito mais administrativa do que jurisdicional, o sorteio dos 25 (vinte e cinco) nomes da
lista geral não proporciona a interferência de terceiros – sejam eles as partes, mesmo
porque não há então qualquer vinculação a processo, sejam eles o Ministério Público, o
representante da OAB ou da Defensoria Pública. No modelo atual, essas instituições são
apenas intimadas para comparecimento, não se lhes permitindo qualquer ingerência no
sorteio. Por outro lado, a possibilidade de recusa depois que o juiz-presidente retira uma
cédula e anuncia o nome do jurado pode se tornar uma ação decisiva para o deslinde do
julgamento.

A cultura forense tem fomentado algumas situações curiosas nesse aspecto.


Acreditando tratar-se de uma estratégia adequada, há quem, na defesa, recuse mulheres para
um julgamento de homicídio em situações de violência doméstica, quando uma outra
mulher foi vítima do crime, então cometido por seu cônjuge ou companheiro. Em
contrapartida, isso poderia não acontecer se o crime sob julgamento fosse alguma das
modalidades de aborto. Nos Estados Unidos, há profissionais especializados na tarefa de
aceitar ou recusar jurados. Por estas bandas, entram em cena elementos variados: o maior ou
menor contato do Promotor ou do defensor com o jurado poderá trazer indícios do que se
supõe serem tendências de personalidade desse julgador. Mas não é raro observar recusas ou
aceites lastreados num verdadeiro psicologismo rasteiro, como a circunstância de um jurado
ser excessivamente circunspecto ou risonho.

Nos dizeres do art. 472 do Código de Processo Penal, assim que formado o conselho de
sentença, o juiz, levantando-se, e com ele todos os presentes, num momento inspirado pela
solenidade, fará aos jurados a seguinte exortação: “Em nome da lei, concito-vos a examinar
com imparcialidade esta causa e a proferir a vossa decisão, de acordo com a vossa
consciência e os ditames da justiça”. Os jurados, nominalmente chamados pelo juiz,
responderão: “Assim o prometo”. Não há determinação legal, mas alguns juízes pedem ou
mesmo os jurados tomam a iniciativa de estender o braço para celebrar a promessa. O que se
observa, nessa passagem, é a tentativa do legislador de fazer surtir um certo efeito psicológico
no compromisso dos jurados, incutindo-se-lhes a idéia de seriedade e solenidade que
permeiam o julgamento. Nada estranho para quem já está habituado a um ambiente
impregnado de formalismos, tradição e rituais, como é o caso dos operadores jurídicos, mas
um momento de significativa relevância e satisfação pessoal, ou de estranhamento e temor,
pelo menos nas primeiras sessões, para os cidadãos ditos comuns.

Ressalte-se, por oportuno, que o principal dever dos jurados consiste na manutenção de
sua incomunicabilidade, a qual deve ser preservada a partir da formação do conselho de
sentença e, daí em diante, até o anúncio da sentença. O princípio da incomunicabilidade dos
jurados, ao lado do sigilo das votações, é a verdadeira mola-mestra que confere prestígio ao
julgamento popular. Em seguida ao compromisso, os jurados receberão cópias da pronúncia
ou, se for o caso, das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação e do relatório
do processo (CPP, art. 472, parágrafo único).

Prestado o compromisso pelos jurados, será iniciada a instrução criminal em sessão


plenária, ocasião em que o juiz-presidente, o Ministério Público, o assistente, o querelante e
o defensor do acusado tomarão, sucessiva e diretamente, as declarações do ofendido, se
possível, e inquirirão as testemunhas arroladas pela acusação. O interrogatório do acusado,
se estiver presente, proceder-se-á na forma estabelecida em capítulo próprio do Código de
Processo Penal.

Encerrada a instrução processual, será concedida a palavra ao Ministério Público, que


fará a acusação, nos limites da pronúncia ou das decisões posteriores que julgaram admissível
a acusação, sustentando, se for o caso, a existência de circunstância agravante. O assistente, se
existir, falará depois do representante do Ministério Público. Concluída a apresentação verbal
da acusação, terá a palavra a defesa. Admite-se, inclusive, a reinquirição de testemunha já
ouvida em plenário. Esta é a conhecida fase dos debates, isto é, de discussão oral entre as
partes a respeito da causa em julgamento. Inclui-se aí, por conseguinte, o direito da acusação
e da defesa de pedir algum aparte.

A cronometragem destinada à acusação e à defesa, no sistema antigo, era de duas horas


para cada um, e de meia hora para a réplica e outro tanto para a tréplica. Hoje, por força da
Lei n.º11.689/08, esse tempo foi reduzido para uma hora e meia disponível para cada um, mas
em compensação, duplicou-se o tempo de réplica e tréplica para uma hora (CPP, art. 477,
caput). Havendo mais de um acusador ou mais de um defensor, continua tudo como antes,
isto é, eles combinarão entre si a distribuição do tempo, sendo que, na falta de entendimento,
o tempo será marcado pelo juiz, de tal maneira que não se exceda àquele previsto para cada
uma das partes. De igual modo, havendo mais de um réu, o lapso temporal para a acusação e
para a defesa será, em relação a todos, acrescido de uma hora e elevado ao dobro o da réplica
e da tréplica (CPP, art. 477, §§ 1º e 2º).

É aqui que se desenvolvem ações estratégicas e mesmo dramáticas, na acepção de


Habermas, ao invés de uma ação comunicativa. Ação estratégica (ou ideológica) ocorre
quando as decisões e o comportamento de pelo menos um agente são incluídas no cálculo
correspondente aos meios e fins. Ação dramática, por sua vez, acontece quando o objetivo
principal é a autorepresentação. Está ligada à projeção de uma imagem pública e a uma
“representação de papéis”, no sentido do interacionismo simbólico de Goffman. Toda ação
dramática é implicitamente estratégica e visa obter uma resposta determinada de certa
audiência. Os crimes de aborto, aliás, oferecem variados elementos, tanto estratégicos como
dramáticos, sobre os quais a acusação e a defesa poderão almejar a conquista do veredito dos
jurados. Todos aqueles conceitos referentes à criminalização e descriminalização da prática
do aborto, conforme salientamos no início deste texto, são realçados ou levantados durante
essa etapa dos debates. Emoções incipientes, dados estatísticos, notícias de jornal, história de
vida do réu, tudo isso pode vir enfeixado na ação estratégica direcionada à obtenção de uma
decisão favorável dos jurados. É nesse momento, em particular, que se destacam os grandes
tribunos, aqueles oradores de refinada retórica, ainda muito prestigiada no Tribunal do Júri
Popular, o que não significa dizer que se estará diante de um raciocínio lógico impecável ou
de uma demonstração cabal de provas. De feito, a competitividade é um traço até certo ponto
caricato do Tribunal do Júri Popular, uma vez que seus críticos não se cansam de afirmar que,
ao invés de analisar racionalmente os fatos imbricados à causa, os jurados são submetidos a
verdadeiras competições de eloqüência da acusação e da defesa. Ao final, sai vencedor aquele
que melhor expôs sua tese e, com isso, amealhou a simpatia dos jurados.

Depois de encerrados os debates, o juiz-presidente lerá os quesitos e indagará das partes


se têm requerimento ou reclamação a fazer, devendo qualquer deles, bem como a decisão,
constar da ata dos trabalhos. Mas ainda em plenário, o juiz-presidente explicará aos jurados o
significado de cada quesito (CPP, art. 484), evidentemente, sem ingressar no mérito da
conveniência da opção a ser feita pelo jurado. Essa explicação pode ser repetida ou reforçada
na sala “especial”.

Através dos quesitos, serão apresentados aos jurados os pontos fundamentais sobre
os quais eles deverão emitir seu julgamento. É a forma que a lei encontrou para que não
haja uma interlocução direta do juiz ou das partes com os jurados, a fim de manter intacta
a isenção e imparcialidade dos juízes leigos, e que também está relacionada ao princípio
da incomunicabilidade dos jurados. Os quesitos serão redigidos em proposições
afirmativas, simples e distintas, de modo que cada um deles possa ser respondido com
suficiente clareza e necessária precisão. Os Tribunais já recusavam quesitos formulados
negativamente, porque capazes de induzir os jurados. Na sua elaboração, o presidente
levará em conta os termos da pronúncia ou das decisões posteriores que julgaram
admissível a acusação, do interrogatório e das alegações das partes, inclusive, nas suas
sustentações orais (CPP, art. 482, parágrafo único).

Não havendo dúvida a ser esclarecida, o juiz-presidente, os jurados, o Ministério


Público, o assistente, o querelante, o defensor do acusado, o escrivão e o oficial de justiça
dirigir-se-ão à “sala especial” a fim de ser procedida a votação. Na falta de “sala espe-
cial”, o juiz-presidente determinará que o público assistente se retire, permanecendo somente
aquelas pessoas supramencionadas. De qualquer maneira, o juiz-presidente advertirá as partes
de que não será permitida qualquer intervenção que possa perturbar a livre manifestação do
conselho e fará retirar da sala quem se portar inconvenientemente (CPP, art. 485).

Uma vez recolhidos à “sala especial”, mas antes de proceder à votação de cada
quesito, o juiz mandará distribuir entre os jurados pequenas cédulas, feitas de papel opaco
e facilmente dobráveis, contendo sete delas a palavra “sim” e outras tantas a palavra
“não”, a fim de, secretamente, serem recolhidos os votos (CPP, art. 486). Assim que sejam
distribuídas as cédulas, o juiz lerá o quesito que deva ser respondido, prestando, mais uma
vez, as explicações correspondentes. Em seguida, cada um dos oficiais apresentará aos
jurados uma urna ou outro tipo de receptáculo que assegure o sigilo da votação. O
primeiro oficial recolherá os votos, enquanto o outro receberá a sobra, isto é, o papel
correspondente àquilo que restou do voto do jurado em suas mãos (CPP, art. 487).
Em seguida, o juiz lavrará a sentença, com observância do disposto no art. 492 do
Código de Processo Penal. Nesse sentido, apresentam-se duas opções ao magistrado, de
acordo com o veredito dos jurados: condenação ou absolvição.

No caso de condenação, o juiz-presidente fixará a pena-base; considerará as


circunstâncias agravantes ou atenuantes alegadas nos debates; imporá os aumentos ou
diminuições da pena, em atenção às causas admitidas pelo júri; observará as demais
disposições do art. 387 do CPP; mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à
prisão em que se encontrar, se presentes os requisitos da prisão preventiva; e finalmente,
estabelecerá os efeitos genéricos e específicos da condenação (CPP, art. 492, inc. I). Na
hipótese de absolvição, o magistrado mandará colocar em liberdade o acusado se por outro
motivo não estiver preso; revogará as medidas restritivas provisoriamente decretada, e ainda,
imporá, se for o caso, a medida de segurança cabível (CPP, art. 492, inc. II).

A sentença, portanto, será fundamentada, salvo quanto às conclusões que resultarem das
respostas aos quesitos. A prescindibilidade de fundamentação da sentença diz respeito à
decisão dos jurados, uma vez que, em nenhum momento, eles são obrigados a justificar seu
voto, posto que secreto. O juiz, as partes e os jurados, então, se retiram da “sala especial”,
retornando ao recinto do plenário. Em seguida, ao magistrado caberá fazer o anúncio imediato
da sentença, diante de todos os presentes. Findos os trabalhos, o juiz dissolve o conselho e
encerra a sessão.

A dissertação sobre as nuanças da sentença no Tribunal do Júri Popular faculta-nos a


oportunidade de trazer a lume a dificuldade de distinguir, no nosso sistema judiciário, um
julgamento de fato e um julgamento de direito. Em conformidade com o modelo ainda
hoje em vigor, o primeiro seria tarefa dos jurados. O segundo, por seu turno, seria
incumbência do juiz-presidente (de jure judices, de facto juratore). Este é um ponto de
grande divergência entre os doutrinadores, fazendo surgir daí duas correntes que se
embatem: uma que defende o modelo bipartido, uma vez que seria possível separar as
distintas formas de julgamento, na esteira do esquema francês, e outra que, em
contraposição, entende que essa conciliação não seria viável, só trazendo prejuízo ao réu.

A distinção, inclusive, chegou a ser consagrada na Carta Política do Império, sendo


revigorado através da Lei 11.689/08. Mas, para muitos doutrinadores, como Frederico
Marques, a pretensa separação de competência funcional é equivocada, estando também
desprovida de qualquer significado de natureza técnico-jurídica. A referida distinção residiria,
segundo o autor, na superada concepção silogística da sentença, em que na premissa maior
vinha exposto o direito e na menor consubstanciado o fato. O Júri e o juiz possuem, decerto,
atribuições funcionais diferenciadas entre si, mas não será na separação entre julgamento de
fato e de direito que se dividirão as competências de um e de outro.

Distinguir julgamento de fato e julgamento de direito só faz sentido, primeiro, para


sustentar a necessidade da quesitação e, segundo, para acusar o ponto de cisão entre os
regimes de escabinado e Júri. Embora sejam ambos modelos de julgamento baseados no
recrutamento popular, no escabinado a causa é decidida mediante uma apreciação, em
conjunto, dos juízes leigos e juízes togados, não existindo tal colaboração no Júri.

O escabinado parte do pressuposto de que não se pode bipartir a atividade de julgar em


níveis fático e jurídico. E nesse aspecto, o júri brasileiro, tal como o conhecemos hoje,
paradoxalmente, aproxima-se do escabinado. Assim, os jurados podem ser instados pelo juiz-
presidente para responder, por exemplo, se o acusado agiu em legítima defesa, ainda que, a
partir da Lei 11.689/08, não se faça uma pergunta específica sobre a tese. Ora, para chegar a
tanto, os jurados se defrontarão com a necessidade de avaliar os pressupostos de fato, isto é, a
conduta do réu e as circunstâncias a ela relacionadas, mas também confrontar essa conduta e
essas circunstâncias com a aplicação do conceito jurídico de legítima defesa, conforme o que
eles compreendem como sendo isso. Daí decorre que não transparece nenhuma separação
substancial entre julgamento de fato e julgamento de direito. Em verdade, os jurados apreciam a
causa, a um só tempo, e numa mesma operação mental, nos dois espectros. O juiz-presidente é
que se limita a prolatar uma sentença sem adentrar na matéria de fato, uma vez que isso já
haverá sido objeto de apreciação dos jurados, estes sim, membros do corpo competente para
julgar, revestidos de soberania quanto aos seus veredictos.

A circunstância a considerar seria, então, a de que os jurados não precisam motivar suas
decisões. Aí residiria o grande perigo nos julgamentos submetidos ao Júri Popular, uma vez
que dos jurados poder-se-ia esperar qualquer veredito.

O Júri Popular, embora de larga difusão nos ordenamentos jurídicos ao redor do


mundo, é elaborado em atendimento às particularidades sociais, culturais e econômicas de
cada povo, em cada época, não havendo uma uniformização de procedimentos, haja vista
que diversas são as concepções de como melhor aplicar a justiça nos casos concretos. Em
determinados sistemas, ele é a regra geral para os julgamentos judiciários. Em outros,
porém, sua institucionalização pode ser considerada tímida. No ordenamento brasileiro, o
Júri Popular encontrou seu ponto meridiano de equilíbrio, mas numa mesclagem por vezes
mal sucedida, que imprime ao sistema jurídico notas de incoerência. Embora a sua
competência seja relativamente restrita, no sentido de conhecer e julgar apenas algumas
espécies delitivas, esses tipos penais são de suma importância no panorama axiológico do
direito penal brasileiro, uma vez que relacionados à tutela da vida humana. Por outro lado,
também envolvem outros aspectos cruciais para o indivíduo, no contexto do aborto, tais a
autodeterminação quanto à disposição do próprio corpo, o reconhecimento da
fundamentalidade dos direitos reprodutivos da mulher, a necessidade de afastamento de
perspectivas religiosas, místicas ou pseudocientíficas na determinação dos marcos legais
de início e término da vida humana. Daí o patente prestígio desse modelo de julgamento
alcançado ao longo dos anos na tradição jurídica de nosso País. Ao Júri Popular não é
dado conhecer e julgar causas de somenos importância social, mas atos e comportamentos
que refletem, muitas vezes, situações encontradas entre as mais complexas e
emocionalmente significativas na trajetória de qualquer ser humano.

Mas é muito comum constatar os assuntos ligados ao Tribunal do Júri Popular sendo
tratados sob um enfoque de certo modo maniqueísta. Ou se é um incansável combatente ou
um ardoroso admirador da instituição. Ou são lembradas suas incontáveis virtudes ou são
rememorados seus incessantes defeitos, mesmo depois das reformas empreendidas pela Lei
11.689/08. Enfim, esse tratamento acientífico muito mais embaça a visão do investigador do
que fornece subsídios para uma melhor compreensão do Tribunal do Júri Popular como
fenômeno jurídico e social.

Gostaríamos de encerrar nossa apresentação trazendo à tona números sobre os


julgamentos do Tribunal do Júri Popular, em alguma comarca brasileira, nas causas criminais
envolvendo os delitos de aborto. Sobremaneira, destacando a compatibilidade do Júri Popular
com o Estado Democrático de Direito e o livre exercício da soberania popular. No entanto,
somos levados a reconhecer que, para alguém que vê sua conduta submetida a julgamento por
cidadãos que lhe são desconhecidos, em observância a rituais e fórmulas herméticas, numa
sessão pública que propicia a exposição de toda sorte de comentários e argumentos, mesmos
os mais falaciosos, a experiência pode ser angustiante, aterrorizante. Um dia de incertezas,
suposições, esperanças e desesperanças, talvez, em algum aspecto, assemelhado ao sofrimento
causado pela quase sempre dura decisão de praticar um aborto.

Nesse cenário, vemo-nos diante de certas questões essenciais. De onde se origina a ideia
de que pessoas do povo, sem formação técnico-jurídica, possuiriam melhores condições de
julgar a conduta de alguém que, na sua condição existencial de ser humano, é igual a eles
próprios? Um cidadão que, tendo-lhe sido reconhecida uma certa qualidade de idoneidade,
ainda assim, está sujeito às diversas influências de temperamento, caráter, ideologias, fé,
enfim, as vicissitudes humanas mais elementares. As fórmulas mais antigas de Júri Popular
afastam quase que completamente quaisquer firulas técnicas e preciosismos processuais para
se ater a um sentimento, um senso de justiça, invocado num viés de misticismo e acaso, mas
consagrado e ainda resistente no conceito de “convicção íntima”, algo que poderíamos, afinal,
associar à noção de equidade, no sentido mais aristotélico do termo. Ocorre que a apropriação
engendrada pelo Estado, através de seu aparelho judiciário, ao longo dos anos, desse modelo
de organização da administração da justiça, segundo nos parece, veio desnaturar a instituição,
ou retirar-lhe a alma, deixando para nós somente seu corpo. Ao invés de julgar uma conduta
na perspectiva do que é jurídica, moral e racionalmente aceitável, imbuído de um sincero
propósito de buscar nos lugares mais recônditos de sua consciência aquilo que ele entende
necessário para julgar com serenidade e sabedoria, um jurado se percebe exposto às
artimanhas retóricas de competentes oradores, à pressão exercida por elementos estranhos à
causa, principalmente a mídia, que não raras vezes se arvora no papel de porta-voz da opinião
pública, e à precariedade de formação de um conhecimento sobre os fatos que deve avaliar.
Enquanto que, num processo judicial, o magistrado possui diversos artifícios para
continuamente ter acesso às informações necessárias para formar um juízo de valor sobre a
causa, e assim, amadurecer uma decisão que se revele tanto mais próxima do justo quanto
possível, o jurado, todavia, dispõe apenas de algumas horas para, diante do semblante de um
réu ou da vítima, de testemunhas e dos demais atores processuais, e mergulhado num
ambiente de estranhamento e solenidade, emitir o seu veredito.
i
Revista Veja, Páginas Amarelas, edição 2128, 2 de setembro de 2009.
ii
Raul Cervini, Os Processos de Descriminalização, 2ª ed., São Paulo: RT, 2002.
iii
O convite para a exposição, gentilmente formulado pela CCR – Comissão de Cidadania e Reprodução, através
de Margareth Arrilla, se revelou motivado por um recente caso concreto, na cidade de Campo Grande-MS, e no
qual milhares (!) de mulheres se viram envolvidas.
iv
Eugenio Raul Zaffaroni et alli, Direito Penal Brasileiro, 2ª ed., Rio de Janeiro: Revan, 2003, p.43.
v
A criminalidade feminina, nos dias atuais, tem-se deslocado dos espaços tradicionais do aborto e da
prostituição para o tráfico ilícito de drogas e crimes interpessoais violentos (homicídios, roubos, seqüestros
etc.). A respeito do assunto, v. nosso “Criminalidade feminina: um Fenômeno em Transformação” (Revista
Diálogo Jurídico, v. 5, 2006, p. 203-218).
vi
Jürgen Habermas, Consciência Moral e Agir Comunicativo, 2ª ed., Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
vii
Celso Fernandes Campilongo, Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial, São Paulo: Max Limonad, 2002,
p.18.
viii
Aramis Mathis, A Sociedade na Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann. Obtido em
www.infoamerica.org/documentos_pdf/luhmann_05.pdf. Acessado em 13 de maio de 2008, p.12.
ix
Aramis Mathis, op.cit., p.15.
x
José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 2ª ed., Coimbra: Almedina, p. 431.
xi
A título de estudo de direito comparado, assinale-se o que estabelece a respeito do Júri Popular a
Constituição Portuguesa, na qual se encontra prevista a possibilidade de as partes requererem o julgamento
perante o Júri Popular. No texto constitucional português, lê-se que “o júri, nos casos e com a composição que
a lei fixar, intervém no julgamento dos crimes graves, salvo os de terrorismo e os de criminalidade altamente
organizada, designadamente quando a acusação ou a defesa o requeiram” (art. 217). Outrossim, é salutar
destacar que, naquela Constituição, o Júri é tido como órgão do Judiciário, e não como direito individual,
diferentemente do sistema brasileiro.
xii
Episódio insólito teve lugar quando o STF iniciaria o julgamento de mérito na AP 333, em processo-crime de
homicídio contra o Dep. Federal Cunha Lima, ex-Governador da Paraíba, que, diante da iminência de seu
julgamento na Corte Suprema, porque detentor da prerrogativa de função, simplesmente renunciou ao
mandato parlamentar. Desse modo, o STF, em sessão plenária de 5.12.2007, decidiu o seguinte: “O Tribunal, à
unanimidade, afastou questão de ordem para firmar que a competência do Tribunal do Júri cede diante da
norma que fixa foro por prerrogativa de função. E, relativamente à competência desta Casa, ante a renúncia
manifestada pelo parlamentar, o Tribunal, por maioria, vencidos os Senhores Ministros Joaquim Barbosa
(Relator), Cezar Peluso, Carlos Britto e a Senhora Ministra Cármen Lúcia, declinou da competência ao juízo
criminal da Comarca de João Pessoa/PB. Votou a Presidente, Ministra Ellen Gracie. Reajustou o voto proferido
anteriormente o Senhor Ministro Eros Grau (Revisor)”. Os votos contrários à declinação de competência, em
favor do Tribunal do Júri Popular de João Pessoa, se basearam na constatação de que houve uma manobra
protelatória do réu, que aguardou todo o desenrolar da instrução criminal – convém salientar, que levou alguns
anos, como sói acontecer quando os réus são autoridades públicas – para só então abdicar do mandato, já às
vésperas da sessão de julgamento, no que seria, portanto, um abuso de direito.
xiii
De igual maneira, a Constituição italiana de 1948 apenas diz que os órgãos judiciários poderão também
contar com a participação de “cidadãos idôneos” alheios à magistratura.
xiv
Lênio Luiz Streck, Tribunal do Júri – Símbolos e Rituais, 3ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 84.
xv
Esse dever impõe-se ao juiz não somente na sessão do Júri Popular como, de resto, ao longo de toda a
instrução do processo. É esta a regra do art. 251, do Código de Processo Penal: “Ao juiz incumbirá prover à
regularidade do processo e manter a ordem no curso dos respectivos atos, podendo, para tal fim, requisitar a
força pública”.
xvi
Não é à toa, portanto, que a Carta Magna estabelece em seu art. 127, caput: “O Ministério Público é
instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica,
do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

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