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Interculturalidade, idenƟdade e decolonialidade:

desafios políƟcos e educacionais1


Interculturality, idenƟty and decoloniality: poliƟcal
and educaƟonal challenges
Reinaldo Ma as Fleuri*
* Doutor em Educação pela Universidade Estadual de
Campinas. Professor tular da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC/CNPq, FC/CAPES).
E-mail: rfleuri@gmail.com

Resumo
A conceituação de interculturalidade tem sido importante para a implementação de polí cas educacio-
nais. Entretanto cons tui um campo complexo de debate entre múl plas perspec vas que não podem
ser reduzidas a um esquema universal. Nesse contexto, as lutas por jus ça social e por construção
de uma sociedade plural, democrá ca, requerem a compreensão dos fundamentos epistemológicos
da sociedade moderno-colonial, bem como a problema zação dos processos de subalternização e
racialização inerentes à cons tuição do sistema-mundo atual. Estudos recentes, referenciados neste
ar go, problema zam o modelo polí co de Estado-Nação e estudam suas implicações na vida e nas
polí cas dos povos indígenas na América La na, considerando que o reconhecimento dos povos ori-
ginários como sujeitos de sua história implica rever cri camente o imaginário produzido no processo
colonizatório sustentado pelas culturas hegemônicas globalizadas. A desconstrução da matriz colonial
do poder implica desarmar o disposi vo de “raça”, que vem sendo historicamente acionado para a
distribuição, dominação e exploração da população mundial no contexto capitalista-global do trabalho.
E, do ponto de vista do saber, torna-se necessária uma ressignificação epistemológica do conhecimen-
to, que desconstrua o pressuposto moderno colonial da “universalidade” das “ciências” e considere
as complexidades e as ambivalências produzidas no encontro entre os diferentes saberes e culturas.
Palavras-chave
Interculturalidade. Decolonialidade. Indígenas.

Abstract
The concept of interculturalism has been important for the educa onal policies. However, it is a
complex field of debate among mul ple perspec ves that can not be reduced to a universal scheme.
In this context, the struggles for social jus ce and and building a pluralis c and democra c society
requires an understanding of the epistemological founda ons of modern-colonial society, as well

1
Neste ar go apresentamos parte dos resultados da pesquisa em rede desenvolvida no âmbito do
projeto integrado de Pesquisa: “Educação intercultural: decolonializar o saber e o poder, o ser e o
viver”, com financiamento do CNPq no período de 2010 -2014.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


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as the ques oning of the processes of racializa on and subordina on inherent to the current world
system. Recent studies, referenced in this ar cle, problema ze the Na on-State poli cal model and
study its implica ons in life and poli cs of indigenous peoples in La n America. The recogni on of
indigenous peoples as subjects of their stories implies cri cally review the imagery produced the
coloniza on process supported by globalized hegemonic cultures. The deconstruc on of the colonial
matrix of power implies disarm the device of “race “, which has been historically triggered for distri-
bu on, domina on and exploita on of the world’s popula on in the capitalist global context. And
from the standpoint of knowledge, it is necessary an epistemological reframing of knowledge that
deconstructs the modern colonial assump on of “universality” of “science” and consider the com-
plexi es and ambivalences produced in the encounter between different cultures and knowledges.
Key words
Interculturalism. Decoloniality. Indigenous.

Interculturalidade: conceito em debate Ayaz Naseem considera que essas pers-


(Introdução) pec vas não representam a totalidade
das possibilidades conceituais u lizadas
A conceituação de interculturalida- pelos docentes e profissionais da área.
de ou de mul culturalismo tem sido de Também não são concepções monolí -
grande importância para a elaboração cas e/ou consensuais, uma vez que cada
e implementação de polí cas educacio- uma dessas tendências teóricas se cons-
nais, orientando o desenvolvimento de tuem com base em intensos debates.
propostas curriculares e de formação de A diversidade de propostas e pers-
professores. Neste sen do, Mohamed pec vas interculturais impede-nos de
Ayaz Naseem (2012, p. 23-36), pesqui- produzir esquemas “simplificatórios”
sador de origem paquistanesa na Uni- eficazes. Mas, por isso mesmo, torna o
versidade de Concórdia (Montreal, CA), debate par cularmente aberto e cria vo.
em seu ar go “Perspec vas conceituais Para além da polissemia terminológica,
sobre o multiculturalismo e a educa- teórica e polí ca rela va ao mul cultu-
ção mul cultural: uma inves gação do ralismo, interculturalismo, transcultura-
campo”, inves ga, a par r do contexto lismo, cons tui-se um campo de debate
canadense, perspec vas conceituais com que se torna paradigmá co justamente
as quais os docentes e profissionais enga- por sua complexidade: a sua riqueza
jados em pesquisa educacional buscam consiste justamente na mul plicidade
entender as dinâmicas das polí cas de de perspec vas que interagem e que não
multiculturalismo. Essas perspectivas podem ser reduzidas por um único código
incluem, dentre outras, concepções de e um único esquema a ser proposto como
mul culturalismo conservador, mul cul- modelo transferível universalmente.
turalismo liberal e liberal de esquerda, Entretanto, a perspectiva con-
multiculturalismo crítico, educação ceitual fundamental em torno da qual
an rracista e educação an opressão. se situam as questões e as reflexões

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emergentes neste campo é a da possibi- mul culturalidade, na opinião de Adeela
lidade de se respeitar as diferenças e de Arshad-Ayaz (2012, p. 53-60), professora
integrá-las em uma unidade que não as paquistanesa na Universidade de Con-
anule, mas que a ve o potencial cria vo córdia (Montreal, CA), em seu estudo
e vital da conexão entre diferentes agen- “Mul culturalismo transnacional: um
tes e entre seus respec vos contextos. modelo para a compreensão da diver-
Marie McAndrew e coautoras sidade” - aponta para a necessidade de
(2012, p. 37-52), ligadas ao Centro reconceitualizar e redefinir a educação
de Estudos Étnicos das Universidades mul cultural de acordo com as neces-
Montrealenses (CEETUM), no artigo sidades do mundo globalizado e inter-
“A formação inicial do profissional es- conectado do século XXI. Com efeito, o
colar sobre a diversidade etnocultural, modelo atual de educação mul cultural
religiosa e linguís ca nas universidades predominante no contexto canadense é
quebequenses: um primeiro balanço” ineficiente e tem do impacto limitado
- estudam concepções de intercultura- devido ao fato de que os educadores e
lidade que se configuram no contexto as educadoras estão enredados em uma
educacional canadense e que orientam estrutura com falhas de construção, a
a formação de educadores, através do qual é focada essencialmente na cultura
diagnós co que elaboraram do estado em um contexto nacional e ofusca os
atual da formação inicial de futuros aspectos de jus ça social em âmbito
professores rela va à diversidade et- planetário.
nocultural, religiosa e linguística nas No Brasil, a expressão “diversidade
universidades quebequenses. O estudo cultural” tem sido usada como mul cul-
mostra que, mesmo se esse campo tem turalismo, principalmente pelo poder
conhecido uma expansão significa va público, revelando dis ntas proposições.
nas licenciaturas nos úl mos dez anos, Maria Conceição Coppete et al. – pro-
tanto no plano de oferta de curso, quan- fessora na Universidade do Estado de
to nas inovações pedagógicas, esse de- Santa Catarina e doutora pela Univer-
senvolvimento ocorreu principalmente sidade Federal de Santa Catarina – em
de maneira improvisada. Verifica-se seu ar go “Educação para a diversidade
uma diversidade e ambiguidade de numa perspec va intercultural” (2012,
ancoragem conceitual e a ausência de p. 231-262) destaca o conceito de diver-
exigências e de orientações ministeriais sidade no campo norma vo, passando
claras quanto à sua legi midade e aos pelas Ciências Sociais e alcançando sua
obje vos que deveria buscar. dimensão cultural. Apresenta o conceito
Entretanto, a análise crí ca das de educação intercultural e suas implica-
diferentes concepções, assim como das ções na prá ca pedagógica. Dentro dessa
políticas e práticas educacionais que abordagem, culturas diferentes são
configuram o complexo campo da inter- entendidas como contextos complexos

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e a relação entre elas produz confron- epistêmico e é co de transformação e
tos entre visões de mundo diferentes. decolonialidade. Tal concepção se dis-
Essa educação favorece a construção ngue dos sen dos e usos que se faz
de um projeto comum, mediante o qual da interculturalidade numa perspec va
é possível integrar dialeticamente as funcional ao sistema dominante. Argu-
diferenças. Sua orientação está focada menta, usando como exemplo o caso
na construção de uma sociedade plural, do Equador, que a interculturalidade
democrá ca e eminentemente humana, somente terá significação, impacto e
capaz de ar cular polí cas de igualdade valor quando assumida de maneira
com polí cas de iden dade. crí ca, como ação, projeto e processo
A luta por jus ça social, indicada que procura intervir na reestruturação
por Arshad-Ayaz (2012), bem como por e reordenamento dos fundamentos
construir sociedade plural, democrá - sociais que racializam, inferiorizam e
ca, apontada por Coppete et al. (2012), desumanizam, ou seja, na própria matriz
requerem a redefinição dos sen dos da da colonialidade do poder, tão presente
interculturalidade, comentados por Ayaz no mundo atual.
Naseem (2012) e McAndrew (2012), A interculturalidade crí ca aponta,
interpelando a uma compreensão dos pois, para um projeto necessariamente
fundamentos epistemológicos da socie- decolonial. Pretende entender e enfren-
dade moderno-colonial que caracteriza a tar a matriz colonial do poder, que ar -
nossa história de povos subalternizados. culou historicamente a ideia de “raça”
Nesse contexto, Catherine Walsh como instrumento de classificação e con-
(2012, p. 61-74), pesquisadora na uni- trole social com o desenvolvimento do
versidade equatoriana Simon Bolívar, capitalismo mundial (moderno, colonial,
em seu estudo “Interculturalidad y (de) eurocêntrico), que se iniciou como parte
colonialidad: Perspec vas crí cas y po- da cons tuição histórica da América.
lí cas”, enfa za que a mul plicidade de
sen dos da interculturalidade no atual Interculturalidade: o desafio da colo-
contexto inter-transnacional resulta, nialidade
por um lado, das lutas dos movimentos
sociais-políticos-ancestrais e de suas Diferentemente do colonialismo
demandas de reconhecimento, de direi- – que diz respeito à dominação polí ca
tos e de transformação social. Por outro e econômica de um povo sobre outro
lado, a importância da interculturalidade em qualquer parte do mundo – a colo-
no mundo contemporâneo está ligada nialidade indica o padrão de relações
às configurações globais de poder, do que emerge no contexto da colonização
capital e do mercado. A autora defende a europeia nas Américas e se constitui
perspec va de interculturalidade que se como modelo de poder moderno e
configura como projeto polí co, social, permanente. A colonialidade atravessa

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pra camente todos os aspectos da vida de conhecer e de se organizar desses po-
e se configura, segundo Walsh, a par r vos e, assim, subalternizá-los e sustentar
de quatro eixos entrelaçados. a matriz racista que cons tui a diferença
O primeiro eixo – a colonialidade colonial na modernidade.
do poder – refere-se ao estabelecimento As relações entre povos diferentes
de um sistema de classificação social vêm, pois, se cons tuindo historicamen-
baseado na categoria de “raça”, como te no ocidente numa perspec va colo-
critério fundamental para a distribuição, nial, ou seja, como amplos movimentos
dominação e exploração da população de dominação econômico-política e
mundial no contexto capitalista-global subalternização sociocultural. No úl mo
do trabalho. O segundo eixo é a colo- milênio, as sociedades europeias lidera-
nialidade do saber: a suposição de que ram amplos processos de distribuição,
a Europa se cons tua como centro de dominação e exploração da população
produção do conhecimento descarta mundial. A contradição colonial se confi-
a viabilidade de outras racionalidades gura por processos imperialistas em que
epistêmicas e de outros conhecimentos o superdesenvolvimento dos países do
que não sejam os dos homens brancos “Norte” traz consequências econômicas
europeus ou europeizados, induzindo a e polí cas, culturais e ambientais que
subalternizar as lógicas desenvolvidas agravam as vulnerabilidades dos povos
historicamente por comunidades an- do “Sul”. Esse paradoxo é analisado por
cestrais. O terceiro eixo, a colonialidade Paul Carr e Gina Thesée (2012, p. 75-
do ser, é o que se exerce por meio da 90) – “Lo intercultural, el ambiente y la
subalternização e desumanização dos democracia: Buscando la jus cia social
sujeitos colonizados, na medida em que y la jus cia ecológica” - ao problema -
o valor humano e as faculdades cogni - zar a concepção de “desenvolvimento
vas dessas pessoas são desacreditados sustentável”, que evita ques onar o mo-
pela sua cor e pelas suas raízes ances- delo hegemônico de desenvolvimento.
trais. O quarto eixo é o da colonialidade O autor e a autora consideram que as
da natureza e da própria vida. Com base finalidades imperialistas deste modelo
na divisão binária natureza/sociedade subalterniza as culturas que domina,
se nega a relação milenar entre mundos invalidando os saberes de que são por-
bio sicos, humanos e espirituais, des- tadoras. Nesse contexto – tal como indi-
cartando o mágico-espiritual-social que cado acima por Arshad-Ayaz - propõem
dá sustentação aos sistemas integrais contra-hegemonicamente um encontro
de vida e de conhecimento dos povos entre as culturas em que se conjugam a
ancestrais. Desacreditar essa relação jus ça social e a jus ça ambiental, numa
holís ca com a natureza, tecida pelos perspec va de democracia mais ampla,
povos ancestrais, é a condição que torna par cipa va e funcional para o conjunto
possível desconsiderar os modos de ser, da humanidade.

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Nessa direção – tal como Catheri- complexa diversidade cultural? Esta é a
ne Walsh enfa za – construir cri camen- pergunta que o autor busca responder
te a interculturalidade requer transgredir a par r da perspec va intercultural. Ao
e desmontar a matriz colonial presente colocar em discussão a visão monocultu-
no capitalismo e criar outras condições ral das polí cas do Estado-Nação, o autor
de poder, saber, ser, estar e viver, que defende a necessidade de promover a
apontem para a possibilidade de con- refundação de outro modelo de Estado,
viver numa nova ordem e lógica que capaz de assumir a realidade ecológica,
partam da complementaridade e das social, polí ca e cultural do mundo con-
parcialidades sociais. Interculturalidade temporâneo.
deve ser assumida como ação delibera- Tal perspectiva problematiza as
da, constante, con nua e até insurgente, concepções e as polí cas de intercultu-
entrelaçada e encaminhada com a do ralidade que vêm sendo formuladas e
decolonializar. implementadas por diferentes Estados-
Nações, na medida em que representam
Interculturalidade e justiça: o Estado- as cosmovisões e os interesses de grupos
Nação em cheque socioculturais e étnicos que, iden fica-
dos como uma única nação, subalterni-
As lutas por se reconfigurar rela- zam os grupos cons tuídos por culturas
ções de jus ça sociocultural e ambiental e animados por projetos sociopolí cos
são sustentadas por processos de resis- diferenciados. Questionam-se as po-
tência dos povos e grupos socioculturais líticas interculturais que entendem a
colonizados. Essas lutas vêm colocando diversidade cultural na busca de incluir,
em questão o próprio estatuto da forma subjugando, os grupos étnicos historica-
atualmente hegemônica de organização mente colonizados.
polí ca do Estado-Nação. Para problematizar os sentidos
Nessa linha de pensamento e ação das polí cas interculturais dos Estados-
sociopolí ca, José Marín (2010, p. 287- Nações, os estudos de Boris Ramírez
322), em seu ar go “Perú: Estado-Nación Guzmán trazem significa vas contribui-
y sociedad multicultural. Perspectiva ções teóricas. Em seu ar go “Intercul-
actual”, busca entender histórica e cul- turalidade em questão: análise crí ca a
turalmente o modelo polí co de Estado- par r do caso da Educação Intercultural
Nação e sua aplicação na América La na. Bilíngue no Chile” (GUZMÁN, 2012, p.
Focaliza par cularmente o caso do Peru, 87-118), em que apresenta resultados de
considerando as suas repercussões: sua pesquisa de mestrado defendida na
Como assumir a realidade mul cultural Universidade Federal de Santa Catarina
de nossas sociedades, em diferentes (Brasil), o autor pondera que, durante
domínios, como a educação, bem como as úl mas duas décadas, o conceito de
a gestão da rica biodiversidade e da interculturalidade ganhou destaque no

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cenário das polí cas públicas no Chile. um sistema judicial imposto, estranho e
Por um lado, os povos indígenas que complicado. Povos autóctones são de-
convivem nessa nação, têm buscado ob- salojados por processos de apropriação
ter reconhecimento jurídico e preservar irregular das terras e de negação de seus
sua autonomia. O Estado, por outro lado, direitos fundamentais. Não obstante, os
tem inves do em polí cas voltadas para povos indígenas procuram se inserir po-
a inclusão dessa população na estrutura si vamente no sistema polí co, judicial,
societária do país. Nesse contexto, o legisla vo, cultural e social do Estado,
autor faz uma leitura crí ca do entendi- tentando conviver e manter suas iden-
mento de interculturalidade sustentado tidades como povos originários. Para
pelo Estado Chileno. Procura avaliar os isso, buscam o fortalecimento de suas
deslocamentos epistemológicos e discur- iden dades e de suas propriedades pela
sivos que o Estado realiza ao engendrar autogestão, assim como por prá cas de
a Educação Intercultural para indígenas, relações interculturais. Por exemplo,
enquadrando-a no contexto social con- assumem o manejo ambiental de Par-
temporâneo do Chile. Enfim, este ar go ques Nacionais, promovem a instalação
traz uma contribuição para a discussão de bairros interculturais para os setores
crí ca das bases teórico-jurídicas em que indígenas e populares urbanos, desen-
se estabelecem os projetos oficiais de volvem polí cas educa vas próprias e
Interculturalidade e Educação no Chile. interculturais na cidade e no campo,
O conflito entre os povos ancestrais assim como a ar culação com outros
originários e o Estado construído desde movimentos sociais. O autor e a autora
a perspec va colonial é também estuda- indicam a necessidade de se repensar o
do no contexto do cone sul-americano, conceito de interculturalidade do ponto
pelos antropólogos Raúl Díaz e Jorgelina de vista “originário” e “comunitário”,
Villarreal, integrantes do Centro de Edu- de modo a des tuí-la da manipulação
cação Popular e Intercultural (CEPINT) e folclórica que não modifica a sua subal-
pesquisadores da Faculdade de Ciências ternidade. Também revisam conceitos (e
da Educação da Universidade Nacional prá cas), tais como patrimônio, cultura,
de Comahue, Patagônia, Argen na. Em iden dade, em vistas de una sociedade
seu ar go “Teoría y prác ca intercultural: democrá ca e intercultural.
polí cas públicas y estrategias intercul- Nessa linha de estudos, Jorge
turales originarias para una ar culación Gasché Suess (2010, p. 279-305), pesqui-
con iden dad” (DÍAZ; VILLARREAL, 2010, sador do Ins tuto de Inves gaciones de
p. 189-210), o autor e a autora consi- la Amazonía Peruana (Peru), analisa as
deram que os vínculos entre os povos contradições entre os valores sociais da
originários com os Estados nacionais, floresta (da população indígena e mes -
bem como com os governos provinciais, ça rural amazônica) e os valores econô-
seguem caminhos opostos dentro de micos e sociais neoliberais inspiradores

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e mobilizadores da polí ca estatal peru- res sociais diferentes dos da sociedade
ana, em seu ar go, “La ignorancia reina, dominante.
la estupidez domina y la conchudez A contradição entre os processos
aprovecha. Engorde neo-liberal y dieta de subalternização dos povos ancestrais
bosquesina” (GASCHÉ SUESS, 2010, p. la no-americanos e sua histórica luta
279-305). De modo par cular, focaliza emancipatória é estudada por Edgar
a raiz do conflito violento que opôs, Esquit (2010, p. 252-266), pesquisador
em julho de 2009, indígenas peruanos no Ins tuto de Estudios Interétnicos,
Awajún y Huampis do Alto Maranhão Universidad de San Carlos de Guatema-
às forças policiais durante a repressão la, em seu ar go “Nociones Kaqchikel
de uma ação de protesto na região de sobre la opresión y la lucha polí ca en
Bagua. A população indígena denun- Guatemala, siglo XX”. O autor discute a
ciava a permanência de um ambiente construção de conceitos pelos indígenas
de violência latente e reagia à polí ca Kaqchikel, em sua vida co diana e na
extrativista (petroleira e mineira) do luta polí ca, no campo de poder gua-
Governo na Amazônia. O autor aponta temalteco, no século XX. Defende que
os valores sociais da floresta implícitos na história da formação nacional desse
no comportamento pessoal co diano país os Maias em geral e os Kaqchikel em
das comunidades amazônicas. Evidencia par cular se posicionaram poli camente
os valores sociais neoliberais tal como se para consolidar noções e prá ca que os
manifestam nos escritos do Presidente ajudaram a definir a subalternidade e as
da República do Peru, em suas decisões lutas pela emancipação. Esses conceitos,
polí cas tomadas mediante Decretos evidentemente, foram construídos nas
Supremos, assim como em um vídeo relações complexas que os Kaqchikel ou
produzido por um economista que cri ca os Maias veram com o Estado autoritá-
as bases socioeconômicas da floresta, rio, as elites econômicas, os camponeses
par cularmente a propriedade cole va e os outros grupos étnicos. Ao mesmo
da terra. O autor, desse modo, rela vi- tempo, os conceitos foram modelados
za e denuncia o o mismo faná co e o no contato dos indígenas com o libera-
posi vismo estreito dos defensores da lismo, a economia nacional e mundial,
ideologia neoliberal dominante. Enuncia assim como com organizações polí cas
uma série de problemas sociais causados e religiosas. Finalmente, o autor se po-
pela aplicação irrestrita da doutrina neo- siciona em relação à formação histórica
liberal nos países do Norte e que devem colonial e neocolonial sobre a qual se
incitar os polí cos neoliberais à modera- baseou a formação do Estado e da nação
ção e a um esforço de compreensão da guatemalteca, ressaltando as formas em
alteridade e da especificidade da cultura que os Maias definiram seu lugar e sua
da floresta, ou seja, à construção de um luta no contexto da formação nacional
modelo de sociedade baseado em valo- e estatal guatemalteca.

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Esses estudos, desenvolvidos em da implementação de alguns programas
diferentes contextos nacionais la no- inovadores de educação baseados nesse
americanos, evidenciam uma concepção enfoque. Sua análise das experiências
crí ca de interculturalidade emergente pedagógicas e práticas interculturais
da insurreição étnica dos povos ances- dos professores é baseada em dados de
trais, que foram historicamente coloni- campo coletados em escolas públicas,
zados e subalternizados no processo de localizadas em bairros pobres da Cidade
cons tuição dos Estados-Nações. Por um do México, onde há uma mistura entre
lado, esse processo histórico configurou pobreza e etnicidades. São escolas que
a independência dos territórios ameri- tentam realizar ações afirma vas, in-
canos em relação às suas metrópoles corporando estudantes indígenas para
coloniais. Mas, por outro lado, manteve ensinar novos valores de convivência na
a subalternização e invisibilidade polí ca escola. Contudo, os professores enfren-
e cultural dos povos autóctones, na me- tam dificuldades para alcançar as metas
dida em que os Estados se cons tuíram educacionais.
com base no pressuposto racista do reco- Do ponto de vista da etnicidade,
nhecimento de apenas uma iden dade esses estudos indicam que estudantes
nacional, que incorpora os interesses das indígenas incluídos nas escolas (como
elites coloniais em manter o controle e as do México) desafiam os educadores
a concentração do poder econômico- a ensinar novos valores de convivência
polí co capitalista. na escola e a problema zar os entendi-
mentos a respeito da convivência entre
Interculturalidade e políticas educa- diferentes culturas nos contextos social
cionais indígenas e educacional.
No contexto brasileiro, Telmo
As polí cas de interculturalidade Marcon (2010, p. 97-118) – pós-doutor
do Estado-Nação vêm apresentando pela Universidade Federal de Santa
ins gantes questões também do ponto Catarina e professor do Programa de
de vista educacional. Pós-graduação em Educação da Uni-
Os novos desafios que a intercul- versidade de Passo Fundo – em seu
turalidade vem pondo aos docentes são ar go “Educação indígena diferenciada,
analisados por Nicanor Rebolledo, pro- bilíngue e intercultural no contexto das
fessor de Antropologia na Universidade polí cas de ações afirma vas”, discute
Pedagógica Nacional (México). Em seu as perspec vas da educação indígena no
texto “La interculturalidad: nuevos de- contexto das polí cas de ações afirma -
safios para los docentes” (REBOLLEDO, vas e da recente legislação brasileira que
2012, p. 23-48), aborda alguns ângulos trata da educação indígena. Constata
do debate no México sobre a definição que as mudanças ocorridas nos úl mos
do conceito de educação intercultural e anos nas polí cas de educação reco-

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nhecem formalmente a diversidade e a tem mudado. Constata-se que o “ser
pluralidade étnico-cultural da sociedade estrangeiro” tem mais a ver com o modo
brasileira. Em relação aos indígenas, a de ser, de sen r-se, do que com aspectos
Cons tuição Federal de 1988 e a Lei de territoriais e com um determinado local.
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, As estruturas de sen mentos que
de 1996, dão passos importantes na configuram a subalternização e mar-
formulação de princípios gerais visando ginalização das culturas e dos povos
a uma educação diferenciada, bilíngue e originários resultam de processos de
intercultural. Mas o autor ques ona em colonização, cujos efeitos socioculturais
que medida e em que sen dos a legis- precisam ser reconhecidos e enfrenta-
lação rela va à educação intercultural dos cri camente. Zayda Sierra, Sabinee
indígena foi construída em diálogo com Siniguí e Alexandra Henao (2010, p. 219-
os diferentes grupos socioculturais. 252) – pesquisadoras do Grupo Diverser,
As dificuldades de se estabelecer da Universidade de An oquia, Medellin,
um diálogo crí co entre os diferentes Colômbia – em seu ar go “Acortando la
sujeitos socioculturais na definição das distancia entre la escuela y la comunidad
polí cas educacionais resultam da fal- Experiencia de construcción de un currí-
ta de reconhecimento iden tário dos culo intercultural en la Ins tución Educa-
povos indígenas, que são dos como va Karmata Rúa del Resguardo Indígena
estrangeiros nas terras de seus próprios de Cris anía, Colombia”, consideram que
ancestrais. Uma reflexão sobre essa a própria história da escolarização - que
questão é apresentada por Valdo Barce- arrebatou os filhos das famílias dos se-
los e Sandra Maders (2012, p. 119-142), tores pobres e grupos étnicos subalter-
pesquisadores da Universidade Federal nos sob o pretexto de prepará-los para
de Santa Maria, no ar go “Habitantes de melhorar suas condições de vida – tem
Pindorama – de na vos a estrangeiros”. produzido mais obstáculos do que opor-
O autor e a autora estudam os processos tunidades para as comunidades mais
culturais que levaram os na vos dessa vulneráveis da sociedade. Na verdade, a
terra de Pindorama (índios brasileiros) escolarização dos grupos socioculturais
a se sen rem estrangeiros em suas pró- pobres e subalternos contribuiu para a
prias terras. O autor e a autora mostram discriminação social, ao priorizar apenas
que a questão do ser “estrangeiro” não a formação das habilidades necessárias
se reduz a uma dimensão geográfica, para um trabalho assalariado e mal re-
tal como se pensava até recentemente. munerado. Inclusive, as escolas frequen-
Hoje, com a facilidade de acesso às in- tadas por alunos de baixa renda também
formações, pela internet ou pelos meios são as mais carentes de recursos sociais,
de transporte, as fronteiras geográficas sicos e humanos.
facilmente podem ser superadas. Com O problema tem sido ainda mais
isso, o sen do do termo “estrangeiro” dramá co em contextos indígenas em

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que a escola foi ins tuída numa perspec- ar go de Leandro Belinaso Guimarães
va colonizadora e doutrinária, em clara e Maria Lucia Wortmann (2010, p. 306-
oposição a prá cas culturais ancestrais, 318), “Passando a limpo a Amazônia atra-
contribuindo, assim, para a destruição vés da literatura de viagem: ensinando
da coesão social na família e na comuni- modos de ver” discorre sobre os modos
dade. Hoje, nas comunidades indígenas, como a floresta Amazônica foi produzida
a gestão de suas escolas foi entregue as no início do século XX pela literatura de
autoridades e a professores indígenas. viagem de Euclides da Cunha. O ar go
Mas essas comunidades enfrentam as debruça-se, sobretudo, sobre o conjunto
consequências históricas e sociais da de mo vações da viagem euclidiana à
colonização. Nesse ar go, Zayda Sierra e floresta. Argumenta que naquela época
coautoras estudam o potencial da escola se ins tuiu a necessidade de inscrever
para contribuir para os processos organi- a floresta Amazônica no mundo como
zacionais de uma comunidade indígena. um ambiente desencantado, caótico,
Iden ficam as enormes dificuldades para bárbaro e selvagem. Era preciso apagar,
reconstruir processos de par cipação ou passar a limpo, uma literatura de via-
a va e de autonomia, decorrentes tanto gem do século XIX que marcara a floresta
de pressões externas (sociedade maiori- como um lugar idílico, tranquilo e encan-
tária, sistema de ensino formal) quanto tado. Dessa forma, aponta uma descon-
de conflitos internos. É doloroso reco- nuidade entre a literatura de viagem
nhecer cri camente esses problemas do século XIX (sobretudo aquela que
internos que os povos autóctones hoje sofrera fortes contaminações român cas
enfrentam, mas é um passo necessário da “esté ca do sublime”) e a literatura
para adquirirem força e conseguirem li- sobre a Amazônia de Euclides da Cunha,
dar com as diversas pressões que afetam que inaugura os modos diferentes de se
a vida dos povos indígenas. ver a floresta e os povos que nela vivem.
Os textos de Euclides da Cunha sobre
Interculturalidade: reconsiderar as a Amazônia são vistos no ar go como
identidades “indígenas” pedagógicos, por nos ensinarem como,
no início do século XX, a floresta foi con-
Reconhecer e interagir com os figurada e como os sujeitos que lá viviam
povos originários como sujeitos de sua foram cons tuídos e posicionados, por
história, implica se rever cri camente exemplo, relativamente à raça. Com
o imaginário produzido no processo inspiração nos estudos culturais que
colonizatório e sustentado pela cultura assumem perspec vas pós-modernas, o
hegemônica. A literatura tem sido um autor e autora buscam entender as signi-
poderoso disposi vo de construção da ficações atribuídas à floresta e, também,
imagem social dos povos colonizados aos processos que posicionam de modos
como “indígenas”. Nesse sentido, o específicos os sujeitos que nela habitam,

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como resultantes de configurações teci- naldo Ma as Fleuri (2010, p. 335-347),
das na história e na cultura, indicando em seu ar go “O processo educa vo:
que foram cons tuídos e posicionados cultura e iden dade indígenas” discutem
rela vamente à raça. a questão de “Como a escola pode con-
Tal perspec va implica descons- tribuir no processo de revitalização da
truir a lógica da colonialidade, que tem cultura e da iden dade indígena caingan-
configurado as relações com os povos gue na educação básica?” A pesquisa,
ancestrais na América La na. Assumindo desenvolvida junto à Escola Indígena de
esse intento, Valéria Aparecida Caldero- Educação Básica Cacique Vanhkrê, mu-
ni e Adir Casaro Nascimento (2012, p. nicípio de Ipuaçu, SC, buscou aprofun-
303-318) – em seu ar go “Saberes tra- dar a compreensão do papel da escola
dicionais indígenas, saberes ocidentais: tendo em vista uma atuação pedagógica
suas intersecções na educação escolar transformadora, que contribua para a
indígena” – desenvolvem uma reflexão revitalização da cultura e da iden dade
sobre a relação da lógica da colonialida- indígena caingangue e a preservação
de com a legi mação dos conhecimentos dos seus valores e de sua iden dade.
tradicionais nas escolas indígenas das Observam que as discussões mais inten-
aldeias. Abordam os desafios postos sas acerca da educação indígena ficam
à educação escolar indígena quanto à por conta de alguns professores, mesmo
negociação e à tradução entre os sabe- que o projeto pedagógico da unidade
res tradicionais e os saberes ocidentais. escolar tenha uma grande preocupação
Aponta para a importância de uma revi- para com o processo de revitalização da
são do pensamento colonial, em especial cultura e iden dade indígena. Porém,
a necessidade de uma ressignificação nem todos os professores estão suficien-
epistemológica sobre os conhecimentos temente preparados para desempenhar
legi mados. Ques onam a crença de tal função. Mesmo assim, é possível
que basta formalizar a educação esco- desenvolver um trabalho numa perspec-
lar indígena. Defendem a importância, va histórico-cultural crí ca que atenda
numa perspec va intercultural crí ca, aos interesses e anseios da escola e da
de se considerar as complexidades e as comunidade caingangue. Isso só é pos-
ambivalências produzidas no encontro sível com a organização de um trabalho
com os diferentes saberes intrínsecos cole vo e com a corresponsabilidade
ao processo educa vo. dos envolvidos no processo educa vo.
A consideração da complexidade Para além dos saberes e das prá-
dos saberes ancestrais dos povos indíge- cas formalizadas pela prá ca escolar,
nas cons tui-se como uma necessidade a educação dos povos ancestrais se
importante para promover o empode- configura principalmente em prá cas
ramento desses povos historicamente socioculturais, tais como as “técnicas
subalternizados. Claudio Luiz Orço e Rei- corporais”. Esse entendimento é ilus-

100 Reinaldo M. FLEURI. Interculturalidade, idenƟdade e decolonialidade: desafios políƟcos...


trado pelo trabalho de Eliton Clayton ao mesmo tempo em que a dinâmica da
Rufino Seára (2012, p. 319-334) no aldeia é alterada, favorecendo o seden-
ar go “Movimento em diálogo: Técni- tarismo, a prá ca despor va promove
cas corporais dos Guarani da aldeia de o movimento sico e se configura como
M’Biguaçu”. Mediante a convivência por um dos campos de mediação e interação
sete meses na aldeia M’Biguaçu, locali- com a sociedade brasileira.
zada na grande Florianópolis, SC, Brasil, Sob o mesmo enfoque de estudo
o autor observou como os Guarani inte- da identidade étnica dos Xokleng/
ragem com os elementos de sua cultura Laklãnõ em Santa Catarina, Cá a Weber
tradicional tendo o corpo como o lugar (2010, p. 253-274), Mestre em Educação
primeiro dessa relação. Nesse sen do, pela Universidade Federal de Santa
descreve e discute elementos culturais Catarina, em seu ar go “Escolarização,
como as pinturas, brincadeiras e os jogos ensino superior e iden dade étnica: a
tradicionais da aldeia, estabelecendo um experiência das professoras Xokleng/
movimento dialógico de compreensão Laklãnõ”, estudou as implicações dos
de tais elementos com outras referências processos de formação universitária de
culturais Guarani. mulheres Xokleng/Laklãnõ para a forma-
O estudo da importância das ção iden tária dessa importante etnia
práticas corporais na constituição da que vive no Estado de Santa Catarina,
identidade dos povos originários em Brasil.
Santa Catarina é também desenvolvido,
do ponto de vista da apropriação pelos Interculturalidade e decolonialidade
Laklãnõ/Xokleng de uma prá ca cultural na prática educativa
corporal exógena (o futebol), por Anto-
nio Luis Fermino (2012, p. 335-354) em No contexto da sociedade globa-
seu ar go “O jogo de futebol e o jogo das lizada, diferentes movimentos sociais
relações entre os Laklãnõ/Xokleng”. O buscam desconstruir os disposi vos de
autor verifica uma mudança de habitus sujeição, mediante o desenvolvimento
entre os Laklãnõ/Xokleng, que teve iní- de processos de ar culação em rede. O
cio a par r do primeiro contato com a encontro radicalmente democrá co en-
sociedade não indígena, ou seja, com os tre sujeitos e grupos diferentes implica
conflitos entre os colonizadores os povos o desenvolvimento da escuta do outro,
indígenas. Impelidos a “sair do mato”, os aliada a uma capacidade de autocrí ca.
povos indígenas adotaram prá cas cultu- Mais do que uma a tude de comisera-
rais ambivalentes. O futebol, por exem- ção e solidariedade para com o outro, a
plo, ao promover a “ocidentalização” interculturalidade implica uma revisão
dos povos indígenas, simultaneamente radical das perspec vas socioculturais,
cria uma mediação sociocultural para polí cas e epistemológicas que mobili-
interagir com os não indígenas. Ainda, zam a interagir com o outro.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 89-106, jan./jun. 2014. 101


Nessa perspec va, Rosanna Cima que um curto-circuito, uma espécie de
(2012, p. 103-114), em seu ar go “Re- desnorteamento no modo de pensar de
desenhar os mapas do encontro: qual quem com ele interage. Mas a desorien-
trabalho de cura com os migrantes”, tação pode ser um terreno fér l de se
analisa sua experiência de pedagoga e promover a necessidade e o desejo de
pesquisadora ao desenvolver o trabalho parar, de voltar a ouvir, de voltar a olhar
em âmbito social e psicopedagógico com os próprios passos, de retomar os pró-
os migrantes no Norte da Itália. Pelo prios confins e as próprias interrogações.
exercício da reflexão e da escuta, pela Com esse entendimento, desde
disponibilidade à formação e reelabora- outro ponto de vista, Clara de Freitas
ção con nua no processo de cooperação Figueiredo – em seu ar go elaborado
com os parceiros, é possível reconhecer junto com Reinaldo Ma as Fleuri (2010,
o olhar com que observamos os outros p. 157-166) “‘Entrelugares’ iden ficados
homens e as outras mulheres que vêm numa experiência de intercâmbio univer-
de longe. Desse modo, podemos com- sitário na Itália” – reflete sobre sua expe-
preender melhor o que é preciso mudar riência de estágio de intercâmbio acadê-
do nosso trabalho e descobrir inusitados mico, quando estudante de pedagogia,
pontos de vista sobre o trabalho educa- na Universidade de Roma 3 e com um
vo, social e clínico com as pessoas e as movimento de educadores e educadoras
famílias migrantes. italianos, o Movimento de Cooperação
Na primeira etapa de seu proces- Educa va. A autora e o autor analisam o
so de pesquisa, Rosanna Cima deu-se caráter mul dimensional e complexo de
conta de que as formas das dificuldades experiências educa vas realizadas na in-
das famílias migrantes, mulheres e ho- teração entre sujeitos e movimentos so-
mens, refletem inevitavelmente o olhar ciais de iden dades culturais diferentes,
e os sistemas de atribuição de sen do de modo a colaborar para a elaboração
próprios de quem os observa. A par r de referenciais teórico-metodológicos
da reflexão sobre o próprio trabalho, para a Educação Intercultural. A atuação
os pesquisadores e as pesquisadoras no “entrelugar” entre duas ou mais cul-
se deram conta das posições, por vezes turas, par cularmente em processos mi-
obsoletas e coloniais, que assumem ao gratórios, permi u iden ficar a diferença
entrar em contato com os outros. de enfoque da educação intercultural,
Cada profissional, normalmente, entre os países do norte e do sul. Nessa
acredita estar preparado para acolher o dupla perspec va, buscaram entender
outro. Talvez seja por isso que o choque a eminente importância da educação
cultural tem sempre a caracterís ca do intercultural como mediadora das rela-
imprevisível e de algo que se parece com ções dos imigrantes com os autóctones,
um embate. A impossibilidade de conhe- bem como a importância da u lização de
cer radicalmente o outro produz como processos de trocas interculturais para a

102 Reinaldo M. FLEURI. Interculturalidade, idenƟdade e decolonialidade: desafios políƟcos...


desestereo pização, a descolonização e necessidade de se desenvolver novas
(des)subalternização cultural. perspec vas de poder, que desconstru-
am a lógica do mercado e da hegemo-
Educação intercultural: decolonializar nia capitalista e visem à construção de
o poder e o saber (Conclusão) relações democráticas participativas,
fundadas na jus ça social e coerentes
A desconstrução da matriz colonial com os interesses do conjunto da hu-
do poder implica desarmar o disposi vo manidade e com a autonomia de cada
de “raça”, que vem sendo historicamente grupo sociocultural.
acionado para a distribuição, dominação As polí cas educacionais recentes,
e exploração da população mundial no de fato, reconhecem formalmente a di-
contexto capitalista-global do trabalho. versidade cultural e promovem polí cas
Diferentes movimentos sociais, que se de educação bilíngue e intercultural. Mas
articulam rizomaticamente no mundo essas polí cas têm sido construídas sem
atual, vêm desenvolvendo estratégias o diálogo com os grupos socioculturais
decoloniais. A rebelião dos povos an- interessados. A cidadania dos povos
cestrais colonizados, par cularmente na indígenas é pouco reconhecida. Os “in-
América La na, ques ona o pressupos- dígenas”, iden ficados como “selvagens”
to racista e o caráter monocultural dos (seja vistos como pacíficos, seja como
Estados-nacionais. Denuncia a violência bárbaros), são ainda percebidos como
latente e a ideologia neoliberal domi- “estrangeiros” no território nacional.
nante que favorecem a manutenção do Os processos socioculturais e educacio-
controle e da concentração do poder nais coloniais invalidaram suas culturas
econômico-polí co nas mãos dos seto- ancestrais minando sua coesão social e
res capitalistas hegemônicos. Os povos gerando de conflitos internos que fragi-
originários reconhecem cri camente os lizam sua capacidade de resistência às
processos de subalternização a que foram pressões da sociedade hegemônica.
subme dos historicamente e assumem Do ponto de vista do saber, verifi-
as lutas por fortalecer suas iden dades ca-se que as significações racistas atribu-
e auto-gerenciar seus territórios. Grupos ídas aos povos originários condicionam a
étnicos subalternizados se mobilizam na interação intercultural entre os saberes
busca por reconstruir relações de jus ça tradicionais e os saberes ocidentais.
e equidade entre os diferentes grupos Torna-se, pois, necessária uma ressignifi-
socioculturais na gestão da vida e do cação epistemológica do conhecimento,
meio ambiente, colocando em discussão que desconstrua o pressuposto moderno
as bases teórico-jurídicas dos projetos colonial da “universalidade” das “ciên-
estatais nacionais de interculturalidade. cias” e considere as complexidades e as
O ponto de vista crí co da inter- ambivalências produzidas no encontro
culturalidade evidencia, portanto, a entre os diferentes saberes e culturas.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 89-106, jan./jun. 2014. 103


As prá cas educacionais, par cu- ficação da migração e da mobilidade in-
larmente as escolares, são interpeladas ternacional no contexto da globalização
na perspec va decolonial do saber a con- do mundo contemporâneo, desafiam
tribuir no processo de revitalização das cada grupo a refletir e a assumir os
culturas e das iden dades dos povos ori- próprios limites e limiares na relação
ginários. As pesquisas mostram que, na intercultural com o outros. Isto implica
busca de recuperar as prá cas culturais decolonializar os paradigmas de conhe-
tradicionais e de se apropriar cri camen- cimento cons tuídos pela modernidade.
te de prá cas culturais ocidentais, os po- O pensamento fronteiriço, com efeito,
vos originários tentam, em interação com coloca em cheque o ideário moderno
os outros grupos socioculturais, compre- de uma cultura única e universal. A
ender os múl plos significados, por vezes emergência de múltiplos paradigmas
paradoxais, das mediações interculturais desafia os diferentes sujeitos sociocul-
com as sociedades em que vivem e traçar turais ao reconhecimento recíproco e à
suas estratégias interculturais. solidariedade entre diferentes formas
Os confrontos interculturais, que de ser-sen r-pensar-agir nas relações
se ampliam e se acirram com a intensi- sociais e ambientais.

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Recebido em agosto de 2013


Aprovado para publicação em fevereiro de 2014

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