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Revista do Instituto Humanitas Unisinos
Nº 417 - Ano XIII - 06/05/2013 - ISSN 1981-8769

A autonomia
do sujeito,
hoje.
Imperativos
e desafios

Jerome B. Oswaldo Carlos Josaphat:


Schneewind: Giacoia: A atualidade
Kant e a moralidade Kant e Nietzsche e a “incandescente” do Reino
como resultado de autodeterminação como de Deus e do Reino dos
nossa autonomia fundamento da autonomia Fins
E MAIS

Ernesto Lavina: Maria Manuela Brito Daniel Arruda


Aquecimento global Martins: Nascimento:
e suas implicações O percurso filosófico de Semiárido e Arendt:
para o futuro humano Heidegger: caminho de notas de uma experiência
pensamento revolucionária possível
A autonomia do sujeito, hoje.
Editorial

Imperativos e desafios

E
xaminar o conceito de au- tre uma “sociedade organizada à luz O aborto e seus dilemas para as
tonomia em suas diferentes de imperativos morais do tipo kantia- mulheres é o tema da reportagem da
acepções e, sobretudo, ana- no” e outra cujos imperativos egoístas semana.
lisar a herança e atualidade são seu modelo. O delírio de autono- Maria Manuela Brito Martins, da
kantiana para compreendermos os mia, observa, surge do imperativo de Universidade Católica Portuguesa –
desafios que se colocam em nosso gozar sem limite. Polo do Porto, analisa as influências
tempo a partir do protagonismo e Os impasses do indivíduo como neoplatônicas de Heidegger em seu
responsabilidade do sujeito é o tema fundamento do direito são uma das percurso filosófico.
em discussão da revista IHU On-Line perspectivas abordadas por Daniel O Semiárido e Hannah Arendt
desta semana. Tourinho Peres, professor da Univer- são o foco do artigo de Daniel Ar-
Para Jerome B. Schneewind, pro- sidade Federal da Bahia – UFBA, que ruda Nascimento, do PPG Filosofia
fessor emérito da Universidade John aponta a existência de nexo confuso da Universidade Federal Fluminense
Hopkins, nos Estados Unidos, e autor do entre autonomia e individualismo. – UFF.
clássico A invenção da autonomia (São Vinícius Berlendis Figueiredo, do- O aquecimento global e suas
Leopoldo: Unisinos, 2001), o iluminismo cente na Universidade Federal do Pa- implicações para o futuro humano
kantiano pode nos mostrar conflitos in- raná – UFPR, pondera que para Kant, a são examinados pelo geólogo Ernes-
solúveis entre a felicidade e o dever. autonomia não se basta a si mesma e to Lavina, da Unisinos, que estará no
O filósofo Oswaldo Giacoia, do- que a relação entre democracia e au- IHU no dia 07-05-2013, terça-feira,
cente na Universidade Estadual de tonomia não é evidente. no evento em preparação para o XIV
Campinas – Unicamp, assinala que, A pós-modernidade exalta a au- Simpósio Internacional IHU – Revolu-
reagindo ao “kantismo”, Nietzsche tonomia e atribui caráter absoluto ao ções Tecnocientíficas, Culturas, Indi-
assentou no perspectivismo histórico sujeito, que transfere essa prerrogati- víduos e Sociedades. A modelagem
e genealógico a sua compreensão de va à razão, constata Carlos Josaphat, da vida, da produção do conheci-
autonomia. teólogo. mento e dos produtos tecnológicos
O filósofo francês Paul Valadier, Por fim, Rejane Schaefer Kalsing, para a tecnociência contemporânea,
acentua que “heteronomia e autono- professora do Instituto Federal Catari- a ser realizado nos dias 21 a 24 de
mia são indivisíveis”, e que desde a nense, em Santa Rosa do Sul-SC, exa- outubro de 2014.
Renascença europeia a autonomia é mina detalhadamente o conceito de A todas e todos uma ótima leitu-
cada vez mais reivindicada. autonomia na obra de Kant e pontua ra e uma excelente semana!
O filósofo e psicanalista Mario a novidade desse sistema em relação
Fleig, atenta para a contraposição en- ao eudaimonismo aristotélico.
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REDAÇÃO Colaboração: César Sanson,
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Schneider (jacintos@unisinos.br). Jesuítas – Residência Conceição.
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2
Índice
LEIA NESTA EDIÇÃO
TEMA DE CAPA | Entrevistas
5 Baú da IHU On-Line
6 Jerome B. Schneewind: Kant e a moralidade como resultado de nossa autonomia
10 Vinicius Berlendis Figueiredo: Autonomia como ideologia?
15 Oswaldo Giacoia: Kant e Nietzsche e a autodeterminação como fundamento da
autonomia
19 Paul Valadier: “Heteronomia e autonomia são indivisíveis”
22 Mario Fleig: O indivíduo autônomo de Kant: um ideal ainda esperado
26 Carlos Josaphat: A atualidade “incandescente” do Reino de Deus e do Reino dos Fins
33 Rejane Schaefer Kalsing: A autonomia em lugar da eudaimonia: a novidade da filosofia
moral kantiana
38 Daniel Tourinho Peres: Os impasses do indivíduo como fundamento do direito

DESTAQUES DA SEMANA
41 Entrevista da semana: Maria Manuela Brito Martins: O percurso filosófico de
Heidegger: caminho de pensamento
44 Reportagem da semana: Cenas de um tabu (im) praticável
46 Artigo da semana: Daniel Arruda Nascimento: Semiárido e Arendt: notas de uma
experiência revolucionária possível
50 Entrevistas em destaque
51 Destaques On-Line

IHU EM REVISTA
53 Agenda de eventos
55 Publicação em destaque www.ihu.unisinos.br
56 Retrovisor
57 Ernesto Lavina: Aquecimento global e suas implicações para o futuro humano

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Tema
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Capa

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da Semana
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IHU em
Revista
4 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000
Leia mais

Tema de Capa
A IHU On-Line já dedicou outra matéria de capa ao tema da autonomia. Confira.
• O futuro da autonomia. Uma sociedade de indivíduos? Edição 220, de 21-05-2007, disponível em http://bit.ly/16tSB0K

Baú da IHU On-Line


Confira outras edições da revista IHU On-Line cujo tema de capa aborda autores e temas ligados à filosofia.
• Somos condenados a viver em sociedade? As contribuições de Rousseau à modernidade política. Edição 415, de 22-04-2013, dispo-
nível em http://bit.ly/YGU1gM
• Vilém Flusser: Um comunicólogo transdisciplinar. Edição 399, de 20-08-2012, disponível em http://bit.ly/Sf21WH
• Baruch Spinoza. Um convite à alegria do pensamento. Edição 397, de 06-08-2012, disponível em http://bit.ly/Q5v356
• O bode expiatório. O desejo e a violência. Edição 393, de 21-05-2012, disponível em http://bit.ly/KsXK8Q
• Rumos e muros da filosofia na era digital. A aventura do pensamento. Edição 379, de 07-11-2011, disponível em http://bit.ly/rpQFva
• Merleau-Ponty. Um pensamento emaranhado no corpo. Edição 378, de 31-10-2011, disponível em http://migre.me/63RPv
• Henrique Cláudio de Lima Vaz. Um sistema em resposta ao niilismo ético. Edição 374, 26-09-2011, disponível em http://migre.me/63RRH
• Tudo é possível? Uma ética para a civilização tecnológica. Edição 371, de 29-08-2011, disponível em http://migre.me/63RUp
• David Hume e os limites da razão. Edição 369, de 15-08-2011, disponível em http://migre.me/63RWq
• A “História da loucura” e o discurso racional em debate. Edição 364, de 06-06-2011, disponível em http://migre.me/63RYa
• Niilismo e relativismo de valores. Mercadejo ético ou via da emancipação e da salvação? Edição 354, de 20-12-2010, disponível em
http://migre.me/63S1v
• Biopolítica, estado de exceção e vida nua. Um debate. Edição 344, de 21-09-2010, disponível em http://migre.me/63S3h
• O (des) governo biopolítico da vida humana. Edição 343, de 13-09-2010, disponível em http://migre.me/63S4C
• Escolástica. Uma filosofia em diálogo com a modernidade. Edição 342, de 06-09-2010, disponível em http://migre.me/63S6m
• Corpo e sexualidade. A contribuição de Michel Foucault. Edição 335, de 28-06-2010, disponível em http://migre.me/63S8r
• O Mal, a vingança, a memória e o perdão. Edição 323, de 29-03-2010, disponível em http://migre.me/63SaD
• A atualidade de Søren Kierkegaard. Edição 314, de 09-11-2010, disponível em http://migre.me/63ScE
• Filosofia, mística e espiritualidade. Simone Weil, cem anos. Edição 313, de 03-11-2009, disponível em http://migre.me/63Sf6
• Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica. Possibilidades e impossibilidades. Edição 308, de 14-09-2010, disponível em
http://migre.me/63Shx
• Platão, a totalidade em movimento. Edição 294, de 25-05-2009, disponível em http://migre.me/63SkL
• Levinas e a majestade do Outro. Edição 277, de 14-10-2008, disponível em http://migre.me/63Snu
• Carlos Roberto Velho Cirne-Lima. Um novo modo de ler Hegel. Edição 261, de 09-06-2008, disponível em http://migre.me/63SpD www.ihu.unisinos.br
• A evolução criadora, de Henri Bergson. Sua atualidade cem anos depois. Edição 237, de 24-09-2007, disponível em http://migre.me/63Stz
• O futuro da autonomia. Uma sociedade de indivíduos? Edição 220, de 21-05-2007, disponível em http://migre.me/63Svl
• Fenomenologia do espírito de Georg Wilhelm Friedrich Hegel. 1807-2007. Edição 217, de 30-04-2007, disponível em http://migre.me/63SwM
• O mundo moderno é o mundo sem política. Hannah Arendt 1906-1975. Edição 206, de 27-11-2007, disponível em http://migre.me/63Syr
• Michel Foucault, 80 anos. Edição 203, de 06-11-2006, disponível em http://migre.me/63Szo
• O pós-humano. Edição 200, de 16-10-2006, disponível em http://migre.me/63SAh
• A política em tempos de niilismo ético. Edição 197, de 25-09-2006, disponível em http://migre.me/63SBa
• Ser e tempo. A desconstrução da metafísica. Edição 187, de 03-07-2006, disponível em http://migre.me/63SCH
• O século de Heidegger. Edição 185, de 19-06-2006, disponível em http://migre.me/63SDq
• Hannah Arendt, Simone Weil e Edith Stein. Três mulheres que marcaram o século XXI. Edição 168, de 12-12-2005, disponível em
http://migre.me/63SEs
• Nietzsche filósofo do martelo e do crepúsculo. Edição 127, de 13-12-2004, disponível em http://migre.me/63SJ4
• Kant: razão, liberdade e ética. Edição 94, de 22-03-2004, disponível em http://migre.me/63SKv

EDIÇÃO 417 | SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 5


Kant e a moralidade como
Tema de Capa

resultado de nossa autonomia


O iluminismo kantiano pode nos mostrar conflitos insolúveis entre a felicidade e
o dever, acentua Jerome B. Schneewind. Para Kant, a autonomia sempre supera a
heteronomia e questões práticas jamais imaginadas pelo pensador hoje exigem a
atenção e podem ser pensadas a partir da perspectiva do imperativo categórico

Por Márcia Junges Tradução: Luís Marcos Sander

A
obra de Immanuel Kant e o conceito sustentava que o imperativo categórico po-
de autonomia são indissociáveis. Seu dia fazer as duas coisas”. Schneewind pontua
sistema moral “incide de muitas for- que “somos autônomos quando obedecemos
mas sobre sua filosofia moral. Entretanto, a a uma lei que damos a nós mesmos. É nos-
maioria dos comentadores e teóricos ten- sa própria razão que nos dá a lei. Mais pre-
ta desvincular os escritos éticos de Kant das cisamente, nossa razão prática se expressa
complexidades do sistema”. A afirmação é dando-nos uma lei – o imperativo categórico
do filósofo norte-americano Jerome B. Sch- – que exige que reajamos a nossos desejos e
neewind, autor do clássico The Invention of sentimentos de uma maneira específica. Para
Autonomy: A History of Modern Moral Philo- Kant, a moralidade é o resultado de nossa
sophy (New York: Cambridge University Press, autonomia”.
1998), publicado em português como A inven- Jerome B. Schneewind é filósofo e profes-
ção da autonomia (São Leopoldo: Unisinos, sor emérito da Universidade John Hopkins,
2001). Na entrevista exclusiva que concedeu nos Estados Unidos. Formou-se na Universi-
por e-mail à IHU On-Line, Schneewind disse dade Cornell, e cursou o seu doutorado na
que na perspectiva kantiana “ser autônomo é Universidade Princeton. Lecionou nas Uni-
ser livre no sentido moralmente relevante, e versidades de Chicago, Princeton, Yale, Pitts-
a liberdade moral se expressa ou se torna evi- burgh e Hunter College, da Universidade da
dente na ação autônoma”. O filósofo de Kö- Cidade de Nova York. Fora dos EUA, lecionou
nigsberg insistia que as pessoas podem, sim, na Universidade de Leicester, Stanford e Hel-
ser autônomas: “Podemos estar motivados a sinki. Ministrou cursos sobre a história da éti-
cumprir nosso dever simplesmente porque é ca, tipos de teoria ética, empiristas britânicos,
nosso dever. E ele argumentou extensamente ética kantiana e pensamento utópico. Já foi
para mostrar que o egoísmo moral não po- presidente da divisão leste da American Phi-
dia explicar adequadamente o que todos nós losophical Association, e é membro da Ameri-
achamos que é a moralidade nem oferecer can Academy of Arts and Sciences.
uma orientação adequada para a ação. Ele Confira a entrevista.
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IHU On-Line – Qual é a atuali-


dade de Kant frente aos desafios da um grande impacto no Romantismo ale- formas a priori da sensibilidade (espaço
moral no século XXI? mão e nas filosofias idealistas do século e tempo) e pelas categorias do enten-
XIX, tendo esta faceta idealista sido um dimento. A IHU On-Line número 93, de
Jerome B. Schneewind – A fi- ponto de partida para Hegel. Kant esta- 22-03-2004, dedicou sua matéria de capa
losofia moral de Kant1 é altamente beleceu uma distinção entre os fenôme- à vida e à obra do pensador com o título
nos e a coisa-em-si (que chamou noume- Kant: razão, liberdade e ética, disponí-
non), isto é, entre o que nos aparece e o vel para download em http://migre.me/
1 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo que existiria em si mesmo. A coisa-em-si uNrH. Também sobre Kant foi publicado
prussiano, considerado como o último não poderia, segundo Kant, ser objeto de este ano o Cadernos IHU em formação
grande filósofo dos princípios da era mo- conhecimento científico, como até en- número 2, intitulado Emmanuel Kant -
derna, representante do Iluminismo, in- tão pretendera a metafísica clássica. A Razão, liberdade, lógica e ética, que
discutivelmente um dos seus pensadores ciência se restringiria, assim, ao mundo pode ser acessado em http://migre.me/
mais influentes da Filosofia. Kant teve dos fenômenos, e seria constituída pelas uNrU. (Nota da IHU On-Line)

6 SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 | EDIÇÃO 417


relevante para as preocupações atu- tante para as pessoas que se opõem a concorrentes – como o utilitarismo,

Tema de Capa
ais, tanto práticas quanto teóricas. essa compreensão de moralidade. por exemplo – se combinam forman-
Conhecemos as recusas, horrorosas As teorias que colocam a virtude do uma única visão da vida moral.
e amplamente difundidas, de tratar e as virtudes no centro aumentaram
todos os seres humanos como mere- de modo marcante no Ocidente em IHU On-Line – Qual é a impor-
cedores de dignidade que assolaram anos recentes. Consequentemente, o tância desse filósofo e seu sistema na
o século XX e têm continuidade no trabalho de Kant sobre a virtude, nas filosofia moral hoje?
presente. A asserção desse valor por Lições de ética e na Metafísica dos Jerome B. Schneewind – O siste-
parte de Kant representa uma repre- costumes, receberam mais atenção ma de Kant incide de muitas formas
ensão permanente de nossa inumani- do que em qualquer época anterior. sobre sua filosofia moral. Entretanto,
dade uns para com os outros e uma A maioria dos esforços para ava- a maioria dos comentadores e teó-
convocação para agir melhor. Ques- liar a filosofia moral de Kant seguem ricos tenta desvincular os escritos
tões práticas que Kant jamais imagi- seus textos e discutem sobre leitu- éticos de Kant das complexidades do
nou exigem nossa atenção hoje: as ras específicas das muitas passagens sistema. As limitações que ele impõe
necessidades de nosso meio ambien- controvertidas contidas neles. Duas ao conhecimento teórico abrem o ca-
te e o casamento entre pessoas do obras recentes tentam entender a éti- minho para seus argumentos práticos
mesmo sexo são apenas duas delas, ca kantiana não só em seus detalhes, em favor da crença na existência de
a título de exemplo. Os kantianos es- mas num contexto muito amplo. No Deus e da imortalidade, assim como,
tão tentando mostrar como a filosofia volume 3 da obra The Development of é claro, em favor da liberdade. Mas
moral de Kant pode oferecer orienta- Ethics, Terence Irwin3 dedica 172 pági- os argumentos kantianos sobre Deus
ção nesses casos e podem ir além de nas a um estudo abrangente – e muito e a imortalidade recebem muito me-
Kant em questões como, por exemplo, crítico – da filosofia moral de Kant. A nos atenção na literatura recente do
o tratamento apropriado dos animais. explicação de Irwin é, até certo ponto, que suas concepções de liberdade. As
O raciocínio baseado em meios e distorcida por sua própria convicção duas primeiras partes da Fundamen-
fins como única orientação em todos de que o eudemonismo é a concep- tação são discutidas com muito mais
os assuntos práticos é adotado pela ção correta, de modo que Kant tem frequência do que a Parte III. Mas essa
maioria dos economistas e por mui- de estar equivocado. Mas é uma ex- parte está começando a atrair mais
tas pessoas que estão envolvidas nos posição perceptiva e impressionante, atenção do que costumava acontecer.
chamados “estudos sobre a felicida- da extensão de um livro inteiro, que As concepções de Kant a respeito do
de” (veja Dierdre N. McCloskey, “Ha- trata a ética de Kant sistematicamen- mal estão recebendo maior atenção,
ppyism”. The New Republic, 28 jun. te e a associa a obras anteriores. Em mas creio que há poucos defenso-
2012). Kant oferece outros padrões seu tratado On What Matters, de dois res de suas concepções religiosas de
de raciocínio prático. Os kantianos volumes, Derek Parfit4 sustenta que a modo geral. Depois de uma negligên-
acham que os resultados decorrentes ética de Kant é uma parte da verda- cia prolongada, ambas as partes da
de se permitir que o raciocínio ba- de a respeito da moralidade, e que a Metafísica dos costumes estão sendo
seado em meios e fins tome conta de melhor maneira de entendê-la é ver estudadas com esmero, assim como
tudo seriam desastrosos. Essa é uma como ela e as principais concepções as Lições de ética. Todas essas discus-
questão teórica e prática também. sões e exposições pressupõem que o
ta alemão. No campo do direito público,
Um equívoco de Kant? ensina que a vontade do Estado é a soma
leitor e a leitora estejam familiariza-
das vontades individuais que o consti- dos com uma certa porção do pensa-
Tem havido um reavivamento tuem e que tal associação explica o Esta-
mento de Kant fora da ética.
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marcante do cristianismo nos Estados do. Nesta concepção a priori, Pufendorf
demonstra ser um precursor de Jean-Ja-
Unidos. O Islã, pregado com grande cques Rousseau e do “contrato social”.
vigor em países predominantemente IHU On-Line – Em quais aspectos
Defende a noção de que o direito inter-
muçulmanos e, muitas vezes, vincula- nacional não está restrito à cristandade, autonomia e liberdade estão imbrica-
mas constitui um elo comum a todas as das a partir do pensamento de Kant?
do a concepções antiocidentais, está nações, pois todas elas formam a huma-
sendo disseminado em muitas par- nidade. (Nota da IHU On-Line) Jerome B. Schneewind – A au-
3 Terence Irwin (1947): filósofo nascido tonomia e a liberdade estão essen-
tes da Europa e dos EUA. Há versões na Irlanda do Norte e especializado em
dessas duas doutrinas religiosas que filosofia grega antiga e na história da éti- cialmente vinculadas na concepção
adotam a concepção de que a vontade
ca. (Nota da IHU On-Line) de Kant. Ser autônomo é ser livre no
4 Derek Parfit (1942): filósofo britâni-
desimpedida de Deus é a fonte da mo- co que se especializou em problemas sentido moralmente relevante, e a li-
ralidade. A reação de Kant ao volunta- de identidade pessoal, racionalidade e berdade moral se expressa ou se tor-
ética, e as relações entre si destes pro-
rismo de sua época, particularmente o blemas filosóficos. Trabalhou na Univer- na evidente na ação autônoma.
de Pufendorf2, oferece material impor- sidade de Oxford em todas as áreas de
sua carreira acadêmica, e é, atualmente,
pesquisador emérito de Oxford. (Nota da
IHU On-Line – Kant queria refu-
2 Samuel Pufendorf (1632-1694): juris- IHU On-Line) tar a lei moral baseada na heterono-

EDIÇÃO 417 | SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 7


mia. Como podemos compreender Jerome B. Schneewind – Até os sobre ela, e Mill7, embora acentuasse
Tema de Capa
essa concepção tendo em vista os escritos de Kant, sempre se usava “au- a importância central da independên-
ideais do iluminismo e a ideia que tonomia” como um termo para desig- cia da mente, não fez dela o cerne da
se tinha da humanidade naquele nar entidades políticas que não eram moralidade como Kant o fez. A maioria
tempo? obrigadas a obedecer a qualquer au- dos filósofos morais de língua inglesa
Jerome B. Schneewind – Muitos toridade outra do que sua própria. Os desde Sidgwick8 e Moore até o desen-
pensadores iluministas sustentavam, estados são autônomos quando têm o volvimento da “ética da linguagem or-
como os iniciantes na filosofia e mui- direito de fazer suas próprias leis. Kant dinária” e além dela simplesmente não
tos economistas ainda o fazem, que ampliou o conceito para a esfera pes- discutiu a autonomia. Talvez surpreen-
toda ação humana deliberada visa soal. Somos autônomos quando obe- dentemente, os filósofos que iniciaram
beneficiar somente o agente. Com decemos a uma lei que damos a nós a reavaliação da ética de Kant nesse
base nessa concepção, toda ação é mesmos. É nossa própria razão que período – H. J. Paton, L. W. Beck, Mary
heterônoma por ser guiada por moti- nos dá a lei. Mais precisamente, nossa Gregor – deram muito pouca atenção
vos que nos são simplesmente dados razão prática se expressa dando-nos à autonomia. Não há um artigo sobre
por nossos desejos. Kant insistia, pelo uma lei – o imperativo categórico – autonomia nem mesmo na Encyclope-
contrário, que as pessoas podem ser que exige que reajamos a nossos de- dia of Philosophy, de 1967, editada por
autônomas. Podemos estar motiva- sejos e sentimentos de uma maneira Paul Edwards.
dos a cumprir nosso dever simples- específica. Para Kant, a moralidade é o
mente porque é nosso dever. E ele resultado de nossa autonomia. Influência silenciosa
argumentou extensamente para mos- Kant estava rejeitando uma con- Desde 1970, a discussão sobre
trar que o egoísmo moral não podia cepção comum de moralidade como a autonomia aumentou enormemen-
explicar adequadamente o que todos obediência a uma lei ou leis que nos te. Isso se deve, em parte, à busca
nós achamos que é a moralidade nem foram traçadas por Deus. Ele também incessante dos filósofos mais jovens
oferecer uma orientação adequa- estava rejeitando a reivindicação do por questões novas sobre as quais
da para a ação. Ele sustentava que o egoísta de que devemos seguir nossos pudessem escrever. Mais importante,
imperativo categórico podia fazer as desejos baseados no interesse próprio. porém, é que isso reflete a ascensão
duas coisas. No século subsequente a Kant houve de movimentos sociais e políticos de
Kant se opunha ao otimismo sim- pouca discussão sobre a autonomia. grupos que buscam mais controle so-
plório muitas vezes associado com o Fichte5 e Hegel6 pouco tinham a dizer bre sua própria vida – especialmente
iluminismo. Ele acreditava que nós as mulheres e minorias. Kant tratou a
5 Johann Gottlieb Fichte (1762-1814):
deveríamos de fato tentar satisfazer filósofo alemão. Exerceu forte influência autonomia como um traço essencial
nossos próprios desejos e os das ou- sobre os representantes do nacionalismo da vontade racional. Ela não é vista
alemão, assim como sobre as teorias fi-
tras pessoas, mas tão somente dentro losóficas de Schelling, Hegel e Schope- como uma capacidade contingente
dos limites fixados pelo imperativo ca- nhauer. Fichte decidiu devotar sua vida cujo desenvolvimento possa ser im-
à filosofia depois de ler as três Críticas
tegórico. E a orientação do imperativo de Immanuel Kant, publicadas em 1781, pedido pela educação e opressão. A
categórico bem que poderia não nos 1788 e 1790. Sua investigação de uma crí- contrariedade com atitudes paterna-
tica de toda a revelação obteve a apro-
levar a produzir o máximo de felicida- vação de Kant, que pediu a seu próprio listas por parte de médicos e hospitais
de para todos os envolvidos. editor para publicar o manuscrito. O livro levou ao desenvolvimento de estu-
surgiu em 1792, sem o nome e o prefá-
Ser esclarecido, sustenta Kant, é cio do autor, e foi saudado amplamente
dos sobre a ética do tratamento e da
pensar por conta própria, não seguir como uma nova obra de Kant. Quando pesquisa na medicina, o que tem sido
Kant esclareceu o equívoco, Fichte tor-
o interesse próprio ou egoísmo, nem outro locus importante de discussões
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nou-se famoso do dia para a noite e foi


diretivas convencionais ou religiosas, convidado a lecionar na Universidade de a respeito da autonomia. Na teoria
a menos que se possa perceber que Jena. Fichte foi um conferencista popu- política, que ficou em grande parte
lar, mas suas obras teóricas são difíceis.
o imperativo categórico as aprovaria. Acusado de ateísmo, perdeu o emprego e
Portanto, o iluminismo kantiano pode mudou-se para Berlim. Seus Discursos à 200 anos de lançamento dessa obra. O
nação alemã são sua obra mais conheci- material está disponível em http://mi-
nos mostrar conflitos insolúveis entre a da. (Nota da IHU On-Line) gre.me/zAON. Sobre Hegel, leia, ainda,
felicidade e o dever. E, para ele, a auto- 6 Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo a edição 261 da IHU On-Line, de 09-06-
alemão idealista. Como Aristóteles e San- 2008, Carlos Roberto Velho Cirne-Lima.
nomia sempre supera a heteronomia. to Tomás de Aquino, tentou desenvolver Um novo modo de ler Hegel, disponível
um sistema filosófico no qual estivessem em http://migre.me/zAOX. (Nota da IHU
integradas todas as contribuições de seus On-Line)
IHU On-Line – Que diferenças principais predecessores. Sua primeira 7 John Stuart Mill (1806-1873): filósofo
cruciais percebe entre a invenção da obra, A fenomenologia do espírito, tor- e economista inglês. Um dos pensadores
nou-se a favorita dos hegelianos da Euro- liberais mais influentes do século XIX, foi
autonomia nos séculos XVII e XVIII, pa continental no século XX. Sobre Hegel, defensor do utilitarismo. (Nota da IHU
como o senhor desenvolve em sua confira a edição nº 217 da IHU On-Line, On-Line)
de 30-04-2007, intitulada Fenomenologia 8 Henry Sidgwick (1838-1900): econo-
obra, e a autonomia como se apre- do espírito, de Georg Wilhelm Friedrich mista e filósofo do Reino Unido, ligado ao
senta em nossos dias? Hegel (1807-2007), em comemoração aos utilitarismo. (Nota da IHU On-Line)

8 SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 | EDIÇÃO 417


dormente durante o reinado da filoso- mo em nossa sociedade. A que atri- IHU On-Line – A democracia

Tema de Capa
fia da linguagem ordinária, a obra de bui essa má compreensão e quais pode ser considerada a tradução
John Rawls9 despertou um novo inte- são os problemas que surgem de tal política da autonomia? Dado o com-
resse pela consideração da autonomia interpretação? portamento apático dos eleitores, ou
como essencial para uma sociedade Jerome B. Schneewind – A au- a obrigatoriedade em votar (como
liberal. E as inumeráveis publicações tonomia não exige que se atribua no Brasil), ainda se pode acreditar
sobre a filosofia moral do próprio grande valor ao que aparta cada indi- que essa aproximação expressa a
Kant incluem agora estudos extensos víduo dos outros e torna cada pessoa realidade?
a respeito de sua concepção de au- singular. O individualismo – que é um Jerome B. Schneewind – Segun-
tonomia. A própria palavra “autono- termo escorregadio – às vezes parece do a concepção do próprio Kant, é
mia” entrou no discurso popular nas tornar isso central. Visto que a auto- possível ser autônomo mesmo numa
últimas décadas, o que evidencia a nomia exige que cada pessoa pense monarquia despótica, como aquela
influência silenciosa, mas persistente por conta própria sobre assuntos im- em que ele próprio viveu. É mais plau-
de uma importante teoria filosófica. portantes, é possível confundi-la com sível conceber a autonomia como um
o individualismo nesse sentido. ideal, um ideal a que aspiramos que
IHU On-Line – Há uma confu-
nossos concidadãos e nossos filhos
são entre autonomia e individualis-
IHU On-Line – Quais são as correspondam. Visto que a democra-
9 John Rawls (1921-2002): filósofo, pro- maiores limitações para a concretiza- cia convoca seus cidadãos para decidir
fessor de Filosofia Política na Universida- ção da autonomia? seu próprio futuro político, ela incen-
de de Harvard, autor de Uma teoria da
justiça (São Paulo: Martins Fontes, 1997); Jerome B. Schneewind – Kant tiva esse tipo de caráter.
Liberalismo Político (São Paulo: Ática, pensa que nenhum agente racional A corrupção e a opressão podem
2000); e O Direito dos Povos (Rio de Ja-
neiro: Martins Fontes, 2001). A IHU On-
pode ser ou estar sem autonomia. levar os eleitores à apatia. Talvez eles
-Line número 45, de 02-12-2002, dedicou Se, em vez disso, a autonomia é vista desistam do ideal da autonomia na
sua matéria de capa a John Rawls, sob o
título John Rawls: o filósofo da justiça,
como um ideal e uma conquista, então esfera pública. Talvez simplesmen-
disponível para download em http://bit. a opressão racial, sexual, política e eco- te vendam seu voto, como faziam
ly/bf90Gu. Confira, ainda, o 1º dos Ca-
dernos IHU Ideias, intitulado A teoria da
nômica, uma educação ruim, o medo muitos antes que houvesse o sigilo
justiça de John Rawls, de autoria do Prof. da autoridade e alguns tipos de ensino eleitoral. Nenhum sistema político
Dr. José Nedel e disponível para down-
load em http://bit.ly/9OaBiu. (Nota da
religioso podem, todos eles, tender a pode garantir que todo o mundo seja
IHU On-Line) impedir que ela seja alcançada. autônomo.

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EDIÇÃO 417 | SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 9


Autonomia como ideologia?
Tema de Capa

Para Kant, a autonomia não se basta a si mesma, observa Vinicius Berlendis


Figueiredo. Ao descontrole da razão, complementa o filósofo, contrapõe o
“ideal da autorregulação”. Nexo entre democracia e autonomia não é evidente

Por Márcia Junges

“K
ant insistiu em nos precaver contra nomia diante de suas conclusões?” O pesqui-
a subordinação da moral à felicida- sador examina o estudo de J. B. Schneewind
de, contra a tendência, muito em sobre a autonomia em Kant, afirmando que
voga hoje, de que temos de atingir a felici- este “fornece muitos subsídios para rastrear-
dade, custe o que custar”, pontua o filósofo mos os antecedentes da autonomia kantiana,
Vinicius Berlendis Figueiredo na entrevista a começar por nos levar para muito além de
que concedeu por e-mail à IHU On-Line. “Só Rousseau, que, embora muito importante,
no horizonte do sumo bem, aberto pelos pos- não figura sozinho como antecessor de Kant”.
tulados práticos da alma e de Deus, torna- Vinicius Berlendis Figueiredo é gradua-
-se concebível (pela razão) a reunião entre do, mestre, doutor e pós-doutor em Filosofia
moralidade e felicidade. Sem dúvida, e para pela Universidade de São Paulo – USP com a
utilizar um termo de Goethe, trata-se de um tese 1762-1772: Estudo sobre a relação entre
‘além-mundo’”, acrescenta. Ele alerta que “a método, teoria e prática na gênese da crítica
autonomia também se tornou uma ideologia, kantiana. Leciona na Universidade Federal
representada pela autoproclamada exigên- do Paraná – UFPR e é autor de, entre outros,
cia de se fornecer um fundamento racional- Quatro figuras da aparência (Londrina: Lido,
-normativo para a moralidade a todo custo”. E 1995) e Kant & a Crítica da razão pura (Rio de
questiona: “não seria estranho que uma filo- Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2005).
sofia da autonomia não ensejasse nossa auto- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a impor- mo de suas faculdades não procede nomia – a razão. Kant supõe isso sem
tância do conceito de autonomia ao de uma instância exterior à razão; é a maiores explicações, no fundo ampa-
longo da obra kantiana? própria razão que institui a crítica do rando-se na teleologia do uso de nos-
Vinicius Berlendis Figueiredo – A dogmatismo, cujo excesso especula- sas faculdades.
noção de autonomia representa um tivo revela, dessa forma, uma perfor-
elemento central da filosofia kantia- mance destituída de autonomia. Autonomia, heteronomia e
na em mais de um aspecto. Sua im- Esta acepção de autonomia de- liberdade
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portância não se limita apenas a seu fine, como que por oposição, o que Isso não reverte em conceder
consagrado significado prático-moral. seja a heteronomia da razão. As duas demais à razão? Leitores nossos con-
Recorde-se, em primeiro lugar, que a modalidades do uso da razão podem temporâneos viram aí ingenuidade e,
ideia de uma razão capaz de criticar a figurar sob o modo de uma alternativa contra esta suposição de neutralida-
si mesma traz consigo, de modo im- e de uma transição: o dogmatismo é de da razão, apontaram no conceito
plícito, mas nem por isso menos fun- um uso heterônomo da razão, a qual a kantiano de autonomia o pretexto do
damental, a ideia de que esta razão crítica pode reconduzir ao seu próprio controle exercido pela razão sobre si
possa receber de si mesma sua legali- limite. Ao descontrole da razão, Kant mesma, sobre a sociedade e a natu-
dade, nada havendo de casual no fato contrapõe o ideal da autorregulação. reza. Em todo caso, para Kant a auto-
de que o empreendimento crítico se A dificuldade está em que a institui- nomia não se basta a si mesma, o que
apoie substancialmente em metáforas ção da fronteira entre heteronomia já deveria nos precaver de assimilá-la
jurídicas. A autocrítica da razão supõe e autonomia depende, salvo melhor integralmente ao conceito de auto-
que a razão já seja autônoma. A ope- juízo, da mesma instância que, tendo controle. Afinal, o incondicionado su-
ração por meio da qual a razão institui se aventurado na heteronomia e se prassensível perseguido pelos dogma-
e reconhece os limites do uso legíti- cindido nela, passa a desejar a auto- tismos anteriores e contemporâneos

10 SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 | EDIÇÃO 417


à revolução copernicana em filosofia kantiano. Trata-se de uma acepção Kant, para além disso, nos convida a

Tema de Capa
termina sendo reconhecido pela críti- muito próxima do significado moral pensá-la como ideal a ser efetuado
ca como fim legítimo e inevitável da propriamente dito, mas que é mais por cada geração, por cada época,
razão humana. Este reconhecimento amplo que ele. Corresponde ao ideal cada indivíduo. Seria duvidoso, diante
transcorre exatamente porque a razão prático-político do esclarecimento. disso, dizer que o Esclarecimento te-
se tornou autônoma. Assim, no kan- Kant define este último como saída nha sido definitivamente desmentido
tismo dar a si mesmo a lei equivale a da menoridade no opúsculo de 1784. pelas barbáries do século XX, como
reconhecer um inteligível normativo É esclarecido o indivíduo que decide vez por outra escutamos por aí. Seria
que se articula com os temas da meta- servir-se de seu entendimento, que se mais prudente concluir que sua atua-
física especial. Este nexo interno entre propõe a pensar por si mesmo, a re- lização depende de nossa relação com
autonomia e validade do suprassen- fletir por própria conta e risco. Ocorre as formas de barbárie de ontem, de
sível teve seu alcance no interior da que, como afirma Kant, nem sempre hoje e de amanhã. Esclarecer-se, as-
reflexão kantiana negligenciada por isso depende apenas da decisão indi- sim como tornar-se autônomo, é um
diversas leituras de Kant. vidual do agente, mas de condições processo sem desfecho certo.
Para além deste significado ge- inerentes ao contexto no qual ele se
ral, deparamo-nos, na obra de Kant, encontra inscrito. É nesta medida que IHU On-Line – Como pode ser
com a noção de “autonomia” com- Kant identifica o Esclarecimento com compreendido corretamente o con-
preendida como lei moral que a razão um processo sociopolítico específico, ceito de autonomia nesse pensador?
humana outorga a si mesma. Este é o que, a seu ver, teve início em sua épo- Vinicius Berlendis Figueiredo –
significado canônico do conceito de ca. Daí por que a autonomia implica- Creio que a primeira condição para
autonomia, que aparece na segunda da pela Aufklärung seja um conceito isso é aceitar que este conceito ad-
e terceira seções da Fundamentação de época. Mas de uma época que mite certa polissemia na obra kantia-
e que é retomado na “Analítica” da se singulariza diante do passado, na na. O fato de que ele possua um sig-
Crítica da razão prática, além de fi- medida em que, como irá exprimir J. nificado amplo, que preside a própria
gurar noutros textos nos quais Kant Habermas1 em 1985 por referência ao noção de crítica, ao lado de seu sig-
se ocupa da moralidade. Autonomia, kantismo, retira seus parâmetros nor- nificado canônico, conforme o qual a
nesta acepção específica, qualifica mativos, não da tradição e dos costu- autonomia equivale à liberdade mo-
a ação moral como aquela na qual o mes vigentes, mas de si mesma, do ral; o fato de que este último sentido
sujeito extrai de sua própria razão o seu presente. se desdobra em um significado cul-
princípio de sua conduta. Há, aqui, Através deste último significado tural e político, ligado à abordagem
uma dificuldade: ser autônomo é dar de autonomia, Kant confere cidada- que Kant dispensa ao Esclarecimento
a si mesmo a lei moral ou, antes, es- nia filosófica à ideia de atualidade. e à história – tudo isso, a meu ver, re-
tar apto a fazê-lo sem necessariamen- O atual resulta da autonomia, assim quer ser levado em conta pelo leitor
te fazê-lo? São coisas distintas. Tudo como a autonomia se torna condição interessado em compreender mais
faz crer também haver uma decisão necessária da atualidade. Ser autôno- de perto o conceito kantiano de au-
subjacente à conduta heterônoma – mo é tornar a própria época contem- tonomia. Não fazê-lo é arriscar-se a
como se, portanto, devêssemos dizer, porânea a si mesmo. Pode-se então produzir uma interpretação unilate-
no que concerne à heteronomia, não dizer que, embora tendo abordado a ral, arriscar-se a tomar a parte pelo
que sou conduzido pelas paixões, mas autonomia como categoria situada na todo, o que, a meu ver, implica des-
que me deixo conduzir por elas. Fosse história (um conjunto de discursos, caracterizar o espírito da formulação
de outro modo, a conduta do agente práticas e instituições que se consagra original de Kant.
não poderia ser qualificada como mo- no século XVIII na Europa ocidental),
ral ou imoral. IHU On-Line – De que forma a
Ao evitar naturalizar a autono- 1 Jürgen Habermas (1929): filósofo ale- autonomia era compreendida antes
mia, isto é, insistir que ela é uma exi-
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mão, principal estudioso da segunda ge- do esforço kantiano de conceituali-
gência do agente em relação a si mes- ração da Escola de Frankfurt. Herdando
as discussões da Escola de Frankfurt, Ha- zá-la em oposição à heteronomia em
mo, Kant aponta que o agente precisa bermas aponta a ação comunicativa como termos morais?
responder pelo que faz também quan- superação da razão iluminista transfor- Vinicius Berlendis Figueiredo –
do é heterônomo. Mas esta instância mada num novo mito que encobre a do-
minação burguesa (razão instrumental). Em um livro muito interessante, The
que decide pela liberdade de dar a lei Para ele, o logos deve contruir-se pela invention of Autonomy (Cambridge,
a si mesma também tem de ser livre troca de idéias, opiniões e informações 1998), J. B. Schneewind2 levanta os
para destituir-se da liberdade. A equi- entre os sujeitos históricos estabelecen-
do o diálogo. Seus estudos voltam-se para
valência entre autonomia e liberdade o conhecimento e a ética. Confira no site 2 Jerome B. Schneewind: filósofo, pro-
tem por contrapartida o fato de que, do IHU, www.unisinos.br/ihu, editoria fessor de filosofia moral na Universidade
no limite, também sou livre para ser Notícias do dia, o debate entre Habermas de Baltimore e professor emérito de fi-
e Joseph Ratzinger, o Papa Bento XVI. Ha- losofia na Universidade John Hopkins,
heterônomo. bermas, filósofo ateu, invoca uma nova ambas nos EUA, autor de A invenção
aliança entre fé e razão, mas de maneira da autonomia (São Leopoldo: Unisinos,
Esclarecimento diversa como Bento XVI propôs na con- 2001). Confira, nesta edição, a entrevista
ferência que realizou em 12-09-2006 na concedida por Schneewind: Kant e a mo-
Há, por fim, um terceiro signi- Universidade de Regensburg. (Nota da ralidade como resultado de nossa auto-
ficado da “autonomia” no corpus IHU On-Line) nomia. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 417 | SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 11


antecedentes da noção de autono-
“Para Kant a autonomia do dos postulados práticos
Tema de Capa
mia, tal como aparecerá em Kant, no (imortalidade da alma e existência de
fim do século XVIII. Seu ponto de par-
tida são as filosofias do século XVII, autonomia não se Deus), ambos os momentos se articu-
lam no que, utilizando um termo ex-
especialmente aquelas de aporte polí-
tico (Grotius3, Hobbes4, Pufendorf, Lo- basta a si mesma, temporâneo, poder-se-ia chamar de
“experiência moral” do agente. Isso
significa que, embora concebendo o
cke5). Esta escolha não vai sem impli-
cações. Schneewind rastreia a origem o que já deveria dar a lei a si mesmo como condição
suprema da moralidade, Kant não
da noção de autonomia na reflexão
política, porque concebe a autono- nos precaver se detém aí. Ele afirma com todas as
mia como a resposta moderna para a letras que os homens não têm como
questão geral da autoridade política: de assimilá-la não buscar a felicidade, pela qual a
passaríamos, com ela, da “obediên- liberdade e o dever, compreendidos
cia” ao “autogoverno”. Schneewind integralmente como autonomia, não podem respon-
fornece muitos subsídios para rastre- der sozinhos. Só no horizonte do sumo
armos os antecedentes da autonomia ao conceito de bem, aberto pelos postulados práticos
da alma e de Deus, torna-se concebí-
kantiana, a começar por nos levar
para muito além de Rousseau, que, autocontrole” vel (pela razão) a reunião entre mora-
lidade e felicidade. Sem dúvida, e para
embora muito importante, não figura
sozinho como antecessor de Kant. De utilizar um termo de Goethe6, trata-se
O esquema de Schneewind é de um “além-mundo”.
outro lado, ao enfatizar o aspecto po-
lítico na investigação da origem da au- teleológico: a invenção da autono-
mia, de sua ótica, é o desfecho de
Subordinação da moral à
tonomia (o que o aproxima de Rawls),
a ponto de atrelar sua aparição à tra- um processo de racionalização e mo- felicidade
jetória das formas modernas de auto- ralização da política europeia, que Mas o essencial é que esta in-
governo, Schneewind corre o risco de corresponderia, em grandes linhas, terpretação, se for pertinente, nos
perder de vista que a construção da à passagem dos despotismos para a mostra que o agente moral kantia-
noção de autonomia, cuja formulação forma incipiente das democracias li- no não é um indivíduo massacrado
berais modernas. O problema disso, a por aquela lei moral que aplica a si
canônica encontraremos em Kant, sig-
meu ver, é que nos induz a perder de mesmo, muitas vezes contra suas in-
nificou, independentemente de sua
vista a ruptura que a moral da auto- clinações sensíveis; ao contrário, ele
conotação política, uma ruptura com
nomia promoveu com discursos mo- dispõe da crença prática de que po-
modelos de virtude clássicos, vigentes
rais enunciados em proximidade ou derá gozar da felicidade, caso se tor-
até o fim do século XVII europeu.
no interior do campo do absolutismo ne digno de ser feliz. Você dirá: mas
político, como é o caso, para ficarmos isso não é o mesmo que subordinar
3 Hugo Grotius (1583-1645): jurista a
serviço da República dos Países Baixos. É com um exemplo conhecido, da mo- a felicidade à performance moral,
considerado o precursor, junto com Fran- ral cartesiana. A opção por politizar a ao engajamento com o dever? Mui-
cisco de Vitória, do Direito internacional, to provavelmente. Mas isso condiz
baseando-se no Direito natural. Foi tam- origem da autonomia não deve nos
bém filósofo, dramaturgo, poeta e um incapacitar de compreender que hou- bem com a valorização da disciplina
grande nome da apologética cristã. (Nota ve e pode haver modelos de virtude do espírito em curso na formação
da IHU On-Line) da sensibilidade burguesa. De fato,
4 Thomas Hobbes (1588 – 1679): filósofo associados a formas de poder político
inglês. Sua obra mais famosa, O Leviatã que, hoje, consideramos como sendo Kant insistiu em nos precaver contra
(1651), trata de teoria política. Neste arbitrárias. a subordinação da moral à felicidade,
livro, Hobbes nega que o homem seja contra a tendência, muito em voga,
um ser naturalmente social. Afirma, ao
de que temos de atingir a felicidade,
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contrário, que os homens são impulsio- IHU On-Line – Como a tríade


nados apenas por considerações egoístas. existência de Deus, imortalidade e custe o que custar.
Também escreveu sobre física e psicolo- Seja como for, do ponto de vista
gia. Hobbes estudou na Universidade de liberdade se relacionam com a auto-
Oxford e foi secretário de Sir Francis Ba- nomia em Kant? da doutrina, a articulação entre auto-
con. A respeito desse filósofo, confira a Vinicius Berlendis Figueiredo – nomia e sumo bem é não apenas irre-
entrevista O conflito é o motor da vida parável, é também desejada por Kant.
política, concedida pela Profa. Dra. Ma- Acho esta questão muito oportuna,
ria Isabel Limongi à edição 276 da revista pois vejo uma tendência, muito for-
IHU On-Line, de 06-10-2008. O material te no curso do século XX, nos EUA, 6 Johann Wolfgang von Goethe (1749-
está disponível em http://bit.ly/bDUpAj. 1832): escritor alemão, cientista e filó-
(Nota da IHU On-Line) sobretudo, e com ecos importantes sofo. Como escritor, Goethe foi uma das
5 John Locke (1632-1704): filósofo in- no Brasil até hoje, em interpretar a mais importantes figuras da literatura
glês, predecessor do Iluminismo, que noção de autonomia isoladamente. alemã e do Romantismo europeu, nos
tinha como noção de governo o consen- finais do século XVIII e inícios do século
timento dos governados diante da autori- Negligenciam-se, assim, os vínculos XIX. Juntamente com Schiller foi um dos
dade constituída, e, o respeito ao direito textuais que a ligam aos temas da me- líderes do movimento literário român-
natural do homem, de vida, liberdade e tafisica especial (alma, Deus). Embora tico alemão Sutrm und Drang. De suas
propriedade. Com David Hume e Geor- obras, merecem destaque Fausto e Os
ge Berkeley era considerado empirista. na Crítica da razão prática Kant sepa- sofrimentos do jovem Werther. (Nota da
(Nota da IHU On-Line) re, para efeitos de análise, o exame da IHU On-Line)

12 SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 | EDIÇÃO 417


É importante ter isso em conta, pois
“Ler Kant é condição de aceitarmos como válidos

Tema de Capa
nos ajuda a compreender que Kant os temas da metafísica clássica, reabi-
não elaborou uma moral do dever,
como se é inclinado a concluir, toda importante litados criticamente. Passando para o
nível polêmico, a questão passa a ser,
vez que se toma isoladamente a auto-
nomia. Antes, ele concebeu uma mo- para abandoná- então, se é lícito recorrer a este incon-
dicionado, mesmo se apenas no âm-
ral do sentido do dever, sentido este
possibilitado pela recuperação que a lo sem cair em bito do pensar, para fundar o sentido
da liberdade. É importante responder
crítica efetua dos temas da metafísica com clareza a esta questão. Afinal, a
especial, assimilados na doutrina do mistificações – e autonomia também se tornou uma
sumo bem da Dialética da Crítica da ideologia, representada pela autopro-
razão prática. a mistificação do clamada exigência de se fornecer um
fundamento racional-normativo para
IHU On-Line – Qual é a atuali-
dade de Kant para a discussão sobre
procedimento é a moralidade a todo custo. Entendo a
preocupação que anima tais leituras.
a autonomia no século XXI? Em que
aspectos a Fundamentação da meta-
muito comum” Creio, porém, que fazê-lo requer res-
ponder a problemas que questionam
física dos costumes e as três Críticas o núcleo deste projeto, hoje que o re-
oferecem subsídios para pensarmos Parece-me importante destacar curso ao incondicionado da metafísica
ética e autonomia em nosso tempo? que a recusa do elemento especula- clássica se tornou problemático.
Vinicius Berlendis Figueiredo tivo (que, de Kant a Marx, passando Por exemplo, de que tipo de uni-
– Creio que o prestígio crescente de pelo idealismo alemão, operou como dade dispõe o sujeito ao qual se atri-
que goza Kant na filosofia universitá- ancoragem de sentido para as deter- bui autonomia? Não é preciso nem
ria atual deve-se, para além de seu minações da razão) às vezes estimula mesmo ser leitor assíduo de Nietzsche
extraordinário interesse filosófico, a sublimação da norma, tudo se pas- para inquirir sobre isso. Mais próxima
a razões ideológicas que é bom não sando como se o sentido das condu- de nossa experiência comum, a psi-
perder de vista. Kant presta-se a uma tas pudesse surgir da aplicação reite- canálise faz o mesmo questionamen-
apropriação liberal, para a qual for- rada do procedimento moral, como to. Freud7, a certa altura de O eu e o
nece, de resto, o suplemento decisi- se a ausência de conteúdo requerida
vo representado pela identificação de id (1923), afirma não ter dúvidas de
pelo formalismo da razão pudesse ser
um fundamento racional normativo que uma parte significativa do Eu é
compensada pelo valor intrínseco do
para a compreensão da ação moral inconsciente, a questão sendo deter-
operar racional, abandonado a si mes-
e política. Esta forma de apropriação minar sua magnitude, tarefa da qual
mo… Não surpreende que, por vezes
do texto kantiano tornou-se tanto teriam passado longe “os filósofos”.
e de modo um tanto paradoxal, isso
mais atraente na medida em que, da Se a questão freudiana é pertinente,
conduza a uma sobrevalorização dos
segunda metade do século XX para se, enfim, ela nos apela, neste caso
costumes, da educação, dos prejuízos
cá, assistiu-se ao recuo das filosofias inculcados pela tradição, que passam
7 Sigmund Freud (1856-1939): neuro-
inspiradas pelo marxismo, por conta a funcionar como esteio de última ins- logista e fundador da Psicanálise. Inte-
da débâcle do comunismo. Não ig- tância para a aplicação irrefletida do ressou-se, inicialmente, pela histeria e,
noro que haja uma via que conduz dever. De Laranja mecânica a Beleza tendo como método a hipnose, estudava
pessoas que apresentavam esse quadro.
de Kant ao marxismo. Marx laborou americana, o cinema contemporâneo Mais tarde, interessado pelo inconscien-
sobre o legado especulativo hege- visitou este tópico, no qual a regra te e pelas pulsões, foi influenciado por
liano, ele mesmo em grande parte moral, que Kant pensara como auto- Charcot e Leibniz, abandonando a hip-
nose em favor da associação livre. Estes
resultante de um aprofundamento nomia ancorada em um incondiciona- elementos tornaram-se bases da Psicaná-
da dialética transcendental kantiana,
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do inteligível, se torna controle social, lise. Freud, além de ter sido um grande
da subordinação de toda condição repressão, angústia. Não que se deva cientista e escritor, realizou, assim como
Darwin e Copérnico, uma revolução no
ao incondicionado pensado pela ra- ser kantiano, longe disso. Ler Kant é âmbito humano: a ideia de que somos
zão. Digo apenas que, por razões li- importante para abandoná-lo sem cair movidos pelo inconsciente. Freud, suas
gadas à história recente, esta via foi em mistificações – e a mistificação do teorias e o tratamento com seus pacien-
tes foram controversos na Viena do sé-
preterida, em prol daquela outra, de procedimento é muito comum… culo XIX, e continuam muito debatidos
aprofundar, em sentido contrário, o hoje. A edição 179 da IHU On-Line, de
momento analítico da doutrina ele- Ideologia da autonomia 08-05-2006, dedicou-lhe o tema de capa
sob o título Sigmund Freud. Mestre da
mentar de Kant, negligenciando o Para investigar de que modo Kant suspeita, disponível para consulta no
dialético. De minha parte, não vejo ajuda a pensar a autonomia hoje, acho link http://migre.me/s8jc. A edição 207,
como isso não produza curto-circui- importante, de partida, diversificar os de 04-12-2006, tem como tema de capa
Freud e a religião, disponível para down-
tos, quer do ponto de vista exegético níveis de análise. No nível exegético, load em http://migre.me/s8jF. A edição
(há passos e passos da obra que de- o texto de Kant nos revela o preço 16 dos Cadernos IHU em formação tem
sautorizam esta insularização da obra de enraizar o sentido do dever no su- como título Quer entender a modernida-
de? Freud explica, disponível para down-
no seu momento analítico), quer do prassensível da metafísica especial. O load em http://migre.me/s8jU. (Nota da
ponto de vista filosófico. argumento kantiano é coerente sob a IHU On-Line)

EDIÇÃO 417 | SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 13


é preciso também reexaminar o ho- do projeto da democracia universal, fesa de um Kant, se não na letra, ao
Tema de Capa
rizonte sobre o qual a vontade autô- hesitaríamos em transpor a definição menos no espírito, partidário da de-
noma tem seu sentido projetado: este formulada por Kant no nível do indiví- mocracia. É isto o que, se vejo bem,
horizonte admitiria ser concebido e duo para a ordem política? Mas esta anima, por exemplo, a leitura robus-
encerrado em uma “simples ideia” da transposição, que institui de modo ta de Schneewind, que, como disse,
razão, como afirma Kant? Mais: admi- quase espontâneo uma conexão en- liga a origem da ideia de autonomia à
tidos esses indicadores contemporâ- tre autonomia e democracia, não vai marcha da história política europeia,
neos, de que tipo de universalidade e sem problemas. A começar porque, por ocasião da transição do absolutis-
necessidade pode dar testemunho a mesmo admitindo que a democracia mo para as democracias modernas.
liberdade moral? seja o regime da autodeterminação Por outro lado, há boas razões para
Levanto estas questões apenas do povo, opera aí um “como se” que não aproximarmos sem mais auto-
para sugerir que o maior benefício de possui implicações, que merece exa- nomia moral e self-governance polí-
voltar a Kant talvez resida em medir me. As teorias democráticas moder- tico. Mesmo Rousseau, a despeito de
o que significa não ser mais seu con- nas afirmam que a legitimidade do ter sido reivindicado pelos jacobinos
temporâneo, compreender o desafio poder político depende da soberania como o grande mentor da soberania
representado por pensar a autonomia popular. Isso requer admitir que a so- popular, efetua no texto uma diferen-
após sua contribuição para a autono- berania se exprime por uma vontade ciação decisiva entre a expressão da
mia. Ler um grande autor é ocasião unívoca, suposição que já em Rousse- vontade geral e a vontade da maioria.
para situar-se no horizonte de proble- au se reporta a uma idealidade nor- Em Kant, esta diferença de escala en-
mas aberto por ele, o que nem sempre mativa: tudo examinado, a vontade tre ideia e experiência é aprofundada
conduz a alinhar-se a seus resultados. geral não é diferenciada por Rousseau pela recorrência incessante do “como
Como já observaram seus melhores da vontade de todos? Ele não separa se”, que atrás de si esconde, talvez,
intérpretes (G. Lehmann8, G. Lebrun9, cuidadosamente a expressão norma- um abismo.
N. Hinske), o discurso kantiano não tiva da soberania do povo dos consen- Para não ficar em cima do muro,
se deixa apreender de um só golpe, sos construídos empiricamente? diria que, tudo somado, o nexo entre
Se em Rousseau a transposição autonomia e democracia, visto mais
numa doutrina. Ao contrário, trata-se
espontânea e imediata da autonomia de perto, não é nada evidente. Afo-
de um discurso atravessado por um
moral para a democracia como forma ra toda decisão exegética, a trans-
vai e vem recorrente entre digressão
política da autonomia já nos pede cau- posição da autonomia moral para
e método, aporia e sistema, crítica e
tela, em Kant, então, esta cautela vira o plano da autonomia política (seja
doutrina. A rigor, não seria estranho
exigência metodológica. Diversamen- ou não sob o horizonte ideal da so-
que uma filosofia da autonomia não
te do Rousseau de O contrato social, berania popular) é questionável por
ensejasse nossa autonomia diante de
Kant não subscreve a ideia de sobera- si mesma. Mencionei de passagem,
suas conclusões?
nia popular. A Doutrina do direito não em remissão à psicanálise, as difi-
exibe qualquer simpatia pela ideia do culdades que cercam a suposição da
IHU On-Line – Quais são as prin-
sufrágio universal. Em contrapartida, univocidade da vontade do agente
cipais conexões entre autonomia e
há elementos textuais que, embora individual, pressuposto pela autono-
democracia? sem afirmá-lo, apontam, ao menos, mia moral. Que dificuldades, então,
Vinicius Berlendis Figueiredo – para um nexo possível entre autono- não esperar da sua transposição para
De imediato, se autonomia equivale mia e espírito democrático. A noção uma escala coletiva, política? Cathe-
a criar para si mesmo uma legalida- de liberdade moral, como mostrou Ri- rine Colliot-Thélène, em um livro
de, por que nós, contemporâneos cardo Terra (A política tensa, Iluminu- muito instigante há pouco publicado
ras, 1995), exerce uma função impor- (Democratie sans demos, PUF, 2010),
8 Karl Lehmann: Importante teólogo ale-
mão, atualmente cardeal-arcebispo de
tante para a definição da legitimidade mostra que, em sua origem, a ideia
do poder político por intermédio da moderna de democracia foi pensada
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Mainz e presidente da Conferência Epis-


copal da Alemanha, escreveu um artigo ideia jurídica de vontade geral. Tam- sem relação com a ideia de sobera-
sobre Kant que a IHU On-Line traduziu e
publicou na 93ª edição, de 22 de março bém na direção do estabelecimento nia popular. A assimilação entre elas,
de 2004. O Instituto Humanitas Unisinos de um vínculo entre autonomia e polí- que se tornou espontânea para nós,
também traduziu e publicou o artigo O tica, lê-se, no opúsculo de 1784 sobre talvez seja mais ideológica do que
Cristianismo – Uma religião entre outras?
Um subsídio para o Diálogo Inter-religio- o Esclarecimento, a afirmação de que conceitual. Condiz com isso o fato de
so – na perspectiva católica, de autoria o bom governante exerce seu poder que, quer do ponto de vista do agen-
de Karl Lehmann. O artigo foi publicado legislativo “como se” este fosse a ex- te individual, quer do sujeito coleti-
em Multitextos, no. 1, outubro de 2003.
(Nota da IHU On-Line) pressão dos súditos. vo, a ideia de vontade unívoca, capaz
9 Jean-Pierre Lebrun: médico psiquia- de tornar clara a si mesma suas deci-
tra e psicanalista belga. É membro da Autonomia e democracia sões, parece um tanto questionável.
Associação Freudiana da Bélgica. Lebrun
discute questões atuais como a possibili- Tudo somado, eis-nos mais uma Psicanálise e política mundial forne-
dade de um inconsciente cada vez mais vez diante de um conjunto de ques- cem muitos exemplos que frustram
coletivo e de um espaço privado cada vez tões de grande interesse e que, por todo aquele que espera encontrar na
mais público, onde afetos e represen-
tações são cada vez mais socializados. isso mesmo, resiste a simplificações. unidade da vontade individual ou na-
(Nota da IHU On-Line) Por um lado, há elementos para a de- cional a realização da liberdade.

14 SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 | EDIÇÃO 417


Kant e Nietzsche e a

Tema de Capa
autodeterminação como
fundamento da autonomia
Reagindo ao “kantismo”, Nietzsche assentou no perspectivismo histórico e genealógico
a sua compreensão de autonomia. Um dos grandes desafios do pensamento ético,
político e jurídico de hoje é manter, ou não, “projetos éticos que possam legitimamente
sustentar aspiração à validade universal”, assinala Oswaldo Giacoia

Por Márcia Junges

H
á uma distância “oceânica” entre os poder) humano de autodeterminação, como
modelos éticos de Immanuel Kant e uma formação tardia da consciência moral,
Friedrich Nietzsche. Para o filósofo fruto de um desenvolvimento que parte da
de Königsberg, “temos uma ética do dever, pré-história do hominídeo pulsional até al-
fundamentada no imperativo categórico cançar, com no domínio ético do animal po-
como lei moral para o agir segundo regras ou lítico, a potência de responsabilizar-se por si
máximas universalizáveis”, observa Oswaldo e pelo futuro”.
Giacoia, em entrevista concedida por e-mail Graduado em Direito pela Universidade
à IHU On-Line. “Em Nietzsche temos a ética de São Paulo – USP e em Filosofia pela Pon-
entendida como forma de vida, como estilís- tifícia Universidade Católica de São Paulo –
tica da existência e como fidelidade a si, sem PUC-SP, Giacoia é também mestre e doutor
imperativo categórico e lei da razão deter- em Filosofia por esta instituição. É pós-doutor
minando valorativamente a práxis”. Giacoia pela Universidade Livre de Berlim, Universida-
acredita que possa ser feita uma “equivalên- de de Viena e Universidade de Lecce, Itália,
cia” entre o imperativo categórico kantiano e livre docente pela Universidade Estadual de
e o eterno retorno nietzschiano, ressalvando Campinas – Unicamp, onde leciona no Depar-
que o termo deve deixar de ser tomado em tamento de Filosofia. Especialista em Nietzs-
“sentido estrito”. E completa: “De forma mui- che, sobretudo em seu pensamento político,
to esquemática, pode-se afirmar que para publicou, entre outros: Nietzsche – para a
Kant liberdade e autonomia da vontade são Genealogia da Moral (São Paulo: Editora Sci-
termos sinônimos; autonomia da vontade, pione, 2001), Nietzsche como psicólogo (2ª
por sua vez, identifica-se com autolegislação ed. São Leopoldo: Unisinos, 2004), Sonhos e
da razão, em sua função de determinar, por pesadelos da razão esclarecida: Nietzsche e
meio de valores e normas, a práxis humana a modernidade (Passo Fundo: Editora da Uni-
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nas sociedades e na história. Para Nietzsche, versidade de Passo Fundo, 2005) e Nietzsche
autonomia é um conceito que deve ser en- & para Além do Bem e Mal (2ª ed. Rio de Ja-
tendido em perspectiva histórica e genealó- neiro: Jorge Zahar Editor, 2005).
gica: como um vir a ser da capacidade (ou Confira a entrevista.

IHU On-Line – Tomando especi-


ficamente o conceito de autonomia,
em que medida se aproximam e se lósofo alemão, conhecido por seus con- boa: Guimarães, 1916) e A genealogia da
ceitos além-do-homem, transvaloração moral (5. ed. São Paulo: Centauro, 2004).
distanciam as filosofias de Kant e dos valores, niilismo, vontade de poder e Escreveu até 1888, quando foi acometi-
Nietzsche1? eterno retorno. Entre suas obras figuram do por um colapso nervoso que nunca o
como as mais importantes Assim falou abandonou, até o dia de sua morte. A
Zaratustra (9. ed. Rio de Janeiro: Civili- Nietzsche foi dedicado o tema de capa
1 Friedrich Nietzsche (1844-1900): fi- zação Brasileira, 1998), O anticristo (Lis- da edição número 127 da IHU On-Line,

EDIÇÃO 417 | SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 15


Oswaldo Giacoia – Penso que
“Fundamentar mas para paradoxalmente impugnar
Tema de Capa
podemos interpretar o pensamento a possibilidade de um conhecimen-
de Nietzsche como herdeiro do lega-
do filosófico de Kant, especialmente a moral implica, to imparcial e objetivo da realidade,
um conhecimento que fosse capaz
no que este tem de “esclarecedor” e
crítico em relação à metafísica; tan- portanto, em de apreender as estruturas ontoló-
gicas do real. Para Nietzsche, todo
to para Nietzsche como para Kant, o
esclarecimento implica em emanci- transformar conhecimento é perspectivístico, e
essa perspectividade implica em con-
pação, capacidade para pensar e agir
por si, sem o direcionamento por uma moral em dicionamentos linguísticos, políticos,
sociais, históricos, psicológicos, etc.
parte de outrem. Ambos também
coincidem no que respeita à neces- absoluta, em A noção de objetividade assume o
significado de multiplicação e deslo-
sidade de libertar-se das amarras da
ignorância e da opressão, assumindo detrimento camento de perspectivas.
Do ponto de vista moral, os ata-
a responsabilidade por si, com extre-
ma valorização da capacidade de au- de muitas ques de Nietzsche visam, sobretu-
do, as tentativas de fundamentação
todeterminação. A distância – oceâ-
nica – dá-se em relação aos modelos outras morais, da moralidade, das quais o sistema
filosófico de Kant bem como o de
éticos: em Kant, temos uma ética do
dever, fundamentada no imperati- historicamente Schopenhauer são os paradigmas
contemporâneos. Nietzsche preten-
vo categórico como lei moral para o
agir segundo regras ou máximas uni- existentes ou de levar às mais extremas conse-
quências a honestidade intelectual,
versalizáveis; em Nietzsche temos a
ética entendida como forma de vida, possíveis” de modo a obter dessa mesma pro-
bidade a “confissão” da parcialidade
como estilística da existência e como incontornável, vigente em toda exi-
fidelidade a si, sem imperativo cate- gência moral pretensamente absolu-
górico e lei da razão determinando IHU On-Line – Como podemos
ta. Para ser coerente com a lógica de
valorativamente a práxis. compreender o “embate” entre esses seus próprios valores, a honestidade
dois pensadores, ou seja, a reação de intelectual, que constitui o apanágio
Nietzsche ao kantismo? da moderna consciência científica,
de 13-12-2004, intitulado Nietzsche: filó- Oswaldo Giacoia – Nietzsche vê-se constrangida a admitir que
sofo do martelo e do crepúsculo, disponí-
vel para download em http://migre.me/ reage criticamente não apenas ao toda moral enraíza-se em condições
s7BB. Sobre o filósofo alemão, conferir próprio Kant, mas também ao “kan- de existência e as expressa, de modo
ainda a entrevista exclusiva realizada
pela IHU On-Line edição 175, de 10-04-
tismo”, que deriva do sistema críti- que suprimir a legitimidade de suas
2006, com o jesuíta cubano Emilio Brito, co de Kant. Nesse movimento, está próprias pretensões de validade ab-
docente na Universidade de Louvain-La-
-Neuve, intitulada “Nietzsche e Paulo”,
também compreendido o conjunto soluta e incondicional.
disponível para download em http:// do idealismo alemão, inclusive seu
migre.me/s7BH. A edição 15 dos Cader- representante mais problemático: IHU On-Line – Qual é a pertinên-
nos IHU em formação é intitulada O pen-
samento de Friedrich Nietzsche, e pode Arthur Schopenhauer2. Penso que o cia do rechaço nietzschiano à “mora-
ser acessada em http://migre.me/s7BU. embate possa ser circunscrito, resu- lização do pensamento”?
Confira, também, a entrevista concedida
por Ernildo Stein à edição 328 da revista midamente, em termos éticos e epis- Oswaldo Giacoia – Essa perti-
IHU On-Line, de 10-05-2010, disponível temológicos; começando pelo se- nência se expressa na tentativa obs-
em http://migre.me/FC8R, intitulada O tinada de mostrar como as oposições
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biologismo radical de Nietzsche não pode gundo aspecto, Nietzsche assume os


ser minimizado, na qual discute ideias de resultados da crítica da razão pura, lógicas de valor (verdadeiro e falso)
sua conferência A crítica de Heidegger
no que respeita às formas a priori não são os estratos mais fundamen-
ao biologismo de Nietzsche e a questão
da biopolítica, parte integrante do Ciclo da sensibilidade e do entendimen- tais aos quais a suspeita e a força do
de Estudos Filosofias da diferença - Pré- to, assim como as ideias da razão, pensamento crítico pode atingir; as
-evento do XI Simpósio Internacional oposições lógicas ou epistemológicas
IHU: O (des)governo biopolítico da vida
humana. Na edição 330 da Revista IHU 2 Arthur Schopenhauer (1788-1860): emergem do subsolo das oposições
On-Line, de 24-05-2010, leia a entre- filósofo alemão. Sua obra principal é O morais entre bom e mau; verdadeiro
vista Nietzsche, o pensamento trágico mundo como vontade e representação,
e a afirmação da totalidade da exis- embora o seu livro Parerga e Paralipone- e falso, assim como bom e mau são
tência, concedida pelo Prof. Dr. Oswal- ma (1815) seja o mais conhecido. Frie- condições de possibilidade para a
do Giacoia e disponível para download drich Nietzsche foi grandemente influen- conservação, reprodução e expansão
em http://migre.me/Jzvg. Na edição ciado por Schopenhauer, que introduziu
388, de 09-04-2012, leia a entrevista o budismo e a filosofia indiana na meta- ou declínio de formações de domínio
O amor fati como resposta à tirania do física alemã. Schopenhauer, entretanto, estruturadas em termos de relações
sentido, com Danilo Bilate, disponível ficou conhecido por seu pessimismo e en-
em http://bit.ly/HzaJpJ. (Nota da IHU tendia o budismo como uma confirmação de poder, que surgem, crescem, trans-
On-Line) dessa visão. (Nota da IHU On-Line) formam-se e perecem no interior do

16 SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 | EDIÇÃO 417


vir a ser, configurando indivíduos, gru-
“A moral de Kant Oswaldo Giacoia – Penso que

Tema de Capa
pos e sociedades. faz sentido cogitar dessa “equivalên-

IHU On-Line – Como podemos


é refratária a cia”, se o termo deixar de ser tomado
em sentido estrito. Em certo sentido,
compreender o conceito de autono-
mia a partir da ética de Kant e da ge-
todas as variantes estamos diante de duas modalidades
de perspectivismo, como foi muito
nealogia da moral, de Nietzsche?
Oswaldo Giacoia – De forma
de tutelagem bem reconhecido por Friedrich Kaul-
bach. O sujeito kantiano, assim como
muito esquemática, pode-se afir-
mar que para Kant liberdade e au-
e vassalagem, o nietzschiano, está sempre em si-
tuação; isso significa que desde sem-
tonomia da vontade são termos
sinônimos; autonomia da vontade,
tendo a pre se encontra imerso no interior
de condicionamentos de diferentes
por sua vez, identifica-se com auto-
legislação da razão, em sua função
autodeterminação ordens, mas age sob a perspectiva
de um como se: como se fosse efe-
de determinar, por meio de valores
e normas, a práxis humana nas so-
como valor tivamente livre, sob a perspectiva
do imperativo categórico; como se o
ciedades e na história. Para Nietzs-
che, autonomia é um conceito que
incondicional” instante presente retornasse eterna-
mente, ou seja sub specie aeternita-
deve ser entendido em perspectiva tis, para Nietzsche.
histórica e genealógica: como um vir
a ser da capacidade (ou poder) hu- si mesmos. Esse é seu valor absoluto, IHU On-Line – Se por um lado o
mano de autodeterminação, como que não se determina por compara- imperativo categórico kantiano obri-
uma formação tardia da consciência ção a outro valor, ou em virtude de ga o reconhecimento do valor abso-
moral, fruto de um desenvolvimento luto da pessoa, por outro não incorre
sua prestabilidade a fins (que é a ca-
que parte da pré-história do homi- em uma perspectiva antropocêntrica
racterística dos valores relativos, os
nídeo pulsional até alcançar, com o e solipsista?
preços), e que recebe o excelso nome
domínio ético do animal político, a Oswaldo Giacoia – Tomo a li-
de dignidade.
potência de responsabilizar-se por si berdade de observar que carecemos
e pelo futuro. aqui de um cuidado especial: em um
IHU On-Line – Por que o pensa-
sentido muito especial, podemos
mento de Kant é compatível “com o
IHU On-Line – Qual é a relação considerar a moral kantiana antropo-
pluralismo político inerente à con-
entre os conceitos de dignidade, pes- cêntrica, e isso pode ser constatado
cepção de Estado democrático de
soa, autonomia e liberdade em Kant? pelos textos; por outro lado, trata-se
direito”?
Oswaldo Giacoia – Penso que de um sistema moral do ser racio-
Oswaldo Giacoia – Porque é um
Kant, dentre os filósofos modernos nal enquanto tal, de que o homem
pensamento que, no âmbito da razão deve ser pensado como uma espécie.
e contemporâneos, foi aquele que
elevou a noção de dignidade da pes- prática, tem seu fundamento em um Quanto ao solipsismo, o princípio de
soa ao seu plano conceitual: para ele, princípio formal, não dependente universalização das máximas da von-
dignidade é o valor absoluto, ineren- nem da matéria (conteúdo) nem dos tade racional alarga a perspectiva
te à pessoa, esta entendida como o efeitos da ação moral, mas apenas da kantiana para levar sempre em con-
sujeito capaz de determinar-se em forma universal das máximas da von- sideração também o ponto de vista
seu agir por regras (máximas) que tade. Nesse sentido, o pensamento dos outros.
possam ao mesmo tempo ser admi- de Kant é essencialmente aberto para
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tidas como leis universais. Somente o acolhimento da força do melhor IHU On-Line – Quais são as limi-
porque os homens são seres racio- argumento, ou seja, extremamente tações do pensamento moral de Kant
nais que agem em virtude da lei da refratário a toda modalidade de coer- e da “moral” nietzschiana, que ele
razão prática é que eles são, ao mes- ção, seja pela astúcia, seja violência. A chamava de “Circe dos filósofos”?
mo tempo, livres e autônomos; por- moral de Kant é refratária a todas as Oswaldo Giacoia – Trata-se do
tanto, como sujeitos de seu próprio variantes de tutelagem e vassalagem, principal efeito que a moral exerce so-
ser e agir, no âmbito prático, nunca tendo a autodeterminação como va- bre os filósofos, efeito de que Kant e
podem ser considerados meros ins- lor incondicional. Schopenhauer fornecem uma valiosa
trumentos de finalidades arbitrárias ilustração. Eles pretenderam, a partir
alheias; nesse sentido, eles nunca IHU On-Line – O imperativo ca- dos respectivos sistemas filosóficos,
podem ser considerados apenas ins- tegórico kantiano encontraria um fundamentar a moral em geral, e, ao
trumentalmente como meios para “equivalente” no eterno retorno, fazê-lo, entronizam a própria morali-
fins quaisquer, mas também e sem- apontado por vezes como um impe- dade como a “moral em si”, cujos va-
pre, ao mesmo tempo, como fins em rativo ético? Por quê? lores supremos exprimem a essência

EDIÇÃO 417 | SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 17


e a validade de toda moral racional; entre muitos outros), representam a
Tema de Capa
sua potência crítica sucumbe, pois, ao as Coisas, A Arqueologia do Saber) se- outra face. Esse diálogo, quase sem-
sortilégio de Circe, que é a moralida- guem uma linha estruturalista, o que não pre muito áspero, parece-me ainda
impede que seja considerado geralmen- não ter sido suficientemente enca-
de de sua própria cultura e história de te como um pós-estruturalista devido a
formação. Fundamentar a moral im- obras posteriores como Vigiar e Punir e minhado; o que dizer, então, de sua
plica, portanto, em transformar uma A História da Sexualidade. Foucault trata conclusão.
principalmente do tema do poder, rom-
moral em absoluta, em detrimento de pendo com as concepções clássicas deste
muitas outras morais, historicamente termo. Para ele, o poder não pode ser lo-
calizado em uma instituição ou no Esta-
Leia mais...
existentes ou possíveis. do, o que tornaria impossível a “tomada
de poder” proposta pelos marxistas. O
poder não é considerado como algo que Confira outras entrevistas concedidas
IHU On-Line – Em que sentido o o indivíduo cede a um soberano (con-
por Oswaldo Giacoia à revista IHU
pensamento desses dois filósofos em cepção contratual jurídico-política),
termos de moral e política continua mas sim como uma relação de forças. On-Line.
Ao ser relação, o poder está em todas as
reverberando no século XXI? • Sobre técnica e humanismo. Edição
partes, uma pessoa está atravessada por
relações de poder, não pode ser conside- nº 20, Cadernos IHU Ideias, de 21-
Oswaldo Giacoia – Penso que
rada independente delas. Para Foucault, 07-2004, disponível em http://mi-
um dos maiores desafios do pensa- o poder não somente reprime, mas tam-
gre.me/65uYP
mento ético, político e jurídico de bém produz efeitos de verdade e saber,
constituindo verdades, práticas e subje- • Nietzsche, o pensamento trágico e a
nossos tempos coloca-se hoje em tividades. Em três edições a IHU On-Line
termos de possibilidade de susten- dedicou matéria de capa a Foucault: edi- afirmação da totalidade da existên-
ção 119, de 18-10-2004, disponível para cia. Edição nº 330, Revista IHU On-
tação ou não de projetos éticos que download em http://migre.me/vMiS,
possam legitimamente sustentar as- edição 203, de 06-11-2006, disponível -Line, de 24-05-2010, disponível em
em http://migre.me/vMj7, e edição 364,
piração à validade universal. Kant e os de 06-06-2011, disponível em http://bit. http://bit.ly/a20L4m
representantes do universalismo éti- ly/k3Fcp3. Além disso, o IHU organizou, • Superar a condição humana, uma
co contemporâneo (como Habermas, durante o ano de 2004, o evento Ciclo
de Estudos sobre Michel Foucault, que fantasia antiga. Edição nº 344,
Rawls, e muitos outros) ilustram uma também foi tema da edição número 13
dos Cadernos IHU em Formação, disponí- Revista IHU On-Line, de 21-09-
das faces desse dilema, com suas res-
vel para download em http://migre.me/ 2010, disponível em http://migre.
pectivas teorias da justiça; os repre- vMjd sob o título Michel Foucault. Sua
sentantes da estilística da existência, contribuição para a educação, a política me/62jRT
e a ética. Confira, também, a entrevista
das éticas não normativas, ou “exis- • Perfil. Edição nº 345, Revista IHU
com o filósofo José Ternes, concedida à
tencialistas”, de inspiração nietzs- IHU On-Line 325, sob o título Foucault, On-Line, de 27-09-2010, disponível
chiana (como Heidegger e Foucault3, a sociedade panóptica e o sujeito his-
tórico, disponível em http://migre.me/ em http://migre.me/62jTC
zASO. De 13 a 16 de setembro de 2010 • Independência do pensamento:
3 Michel Foucault (1926-1984): filósofo aconteceu o XI Simpósio Internacio-
francês. Suas obras, desde a História da nal IHU: O (des)governo biopolítico da prerrogativa máxima da filosofia.
Loucura até a História da sexualidade (a vida humana. Para maiores informações,
qual não pôde completar devido a sua acesse http://migre.me/JyaH. Confira a Edição nº 379, Revista IHU On-Line,
morte) situam-se dentro de uma filosofia edição 343 da IHU On-Line, intitulada O de 07-11-2011, disponível em ht-
do conhecimento. Suas teorias sobre o (des)governo biopolítico da vida huma-
saber, o poder e o sujeito romperam com na, publicada em 13-09-2010, disponível tp://bit.ly/vv9gH4
as concepções modernas destes termos, em http://bit.ly/bi5U9l, e a edição 344,
motivo pelo qual é considerado por certos intitulada Biopolitica, estado de exceção
autores, contrariando a sua própria opi- e vida nua. Um debate, disponível em
nião de si mesmo, um pós-moderno. Seus http://bit.ly/9SQCgl. A edição 364, de inspirada na obra História da loucura, e
primeiros trabalhos (História da Loucura, 06-06-2011 é intitulada ‘’História da lou- está disponível em http://bit.ly/lXBq1m.
O Nascimento da Clínica, As Palavras e cura’’ e o discurso racional em debate, (Nota da IHU On-Line)
www.ihu.unisinos.br

LEIA OS CADERNOS IHU


NO SITE DO IHU
WWW.IHU.UNISINOS.BR
18 SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 | EDIÇÃO 417
“Heteronomia e autonomia são

Tema de Capa
indivisíveis”
Desde a Renascença europeia a autonomia é cada vez mais reivindicada, observa
Paul Valadier. Não existe liberdade pura, uma vez que não somos livres, mas nos
tornamos livres

Por Márcia Junges | Tradução de Cláudio César Dutra de Souza

“C
ada um, agindo de acordo com a sem cessar”. O lugar da religião no contexto
sua própria lei irá conduzir a um da autonomia em nosso tempo é difícil de si-
universo de mônadas indepen- tuar, porém Valadier reitera a importância do
dentes ou mesmo a uma anarquia ‘inconvi- Cristianismo e suas características de liberda-
vível’. Essa é uma tendência muito forte das de e esperança.
sociedades modernas: pressionar a todos Paul Valadier é professor emérito de filo-
para que vivam por si, que cuidem apenas sofia moral e política nas Faculdades Jesuítas
de seus interesses próprios sem muito se im- de Paris (Centre Sèvres). É licenciado em Fi-
portar com o seu outro e, mais ainda, com losofia pela Sorbonne, mestre e doutor em
qualquer coisa semelhante ao ‘bem comum’”. Teologia pela Faculdade Jesuíta de Lyon. Foi
A ponderação é do filósofo francês Paul Va- redator da revista Études e é autor de uma
ladier em entrevista concedida por e-mail à vasta bibliografia. Escreveu, entre outros,
IHU On-Line. E acrescenta: “a compreensão Nietzsche et la critique du christianisme (Pa-
da autonomia não fará o menor sentido sem ris: Cerf, 1974); Essais sur la modernité, Niet-
estar relacionada a uma heteronomia”. Em zsche, l’athée de rigueur (Paris: DDB, 1989); La
seu ponto de vista, ambas são indivisíveis: “a part des choses. Compromis et intransigeance
ilusão moderna consiste em crer que nós al- (Paris: Lethielleux – Groupe DDB, 2010); Elo-
cançamos espontaneamente uma autonomia gio da consciência (São Leopoldo: Unisinos,
ou que podemos ser ‘maduros’ sem ter passa- 2001); A anarquia dos valores (Lisboa: Insti-
do pelas diversas etapas da vida, ou ainda que tuto Piaget, 1998) e Inevitável moral (Lisboa:
a maturidade (intelectual, moral, espiritual) é Instituto Piaget, 1991).
uma conquista própria e permanente, aliena- Confira a entrevista.
da de um processo constante que a atualiza

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IHU On-Line – Qual é a origem “conformado” à natureza e às leis da Criador deu ao homem a sua própria
do conceito autonomia? cidade. Sem dúvida foi a introdução liberdade e as palavras (ou “coman-
Paul Valadier – A origem do con- do monoteísmo, com o conceito de
ceito de autonomia é difícil de preci- um Deus soberano, que deu ao ho- parte do cronograma da 10ª Páscoa IHU
sar. Tal conceito não teve, sem dúvi- mem a sua liberdade mediante uma – Ética, arte e transcendência: Frater-
nidade: um projeto ético a ser con-
da, muito sentido para o pensamento lei divina. O Deus da Bíblia, criador quistado. A palestra de André Wenin,
grego antigo. Se pudéssemos falar e providente, convida a sua criatura, disponível em http://bit.ly/YWbh3y;
desse pensamento no singular, verí- feita à sua imagem, a ser livre e saber O verdadeiro poder de Deus é o poder
de reter-se. André Wenin, exegeta bel-
amos que o homem encontra o seu gerenciar um universo ordenado e ga, analisa Gênesis 1-4, disponível em
senso inserido dentro de um cosmos perfeito. Podemos ver isso claramen- http://bit.ly/ZPB9f5; A cobiça como
te no primeiro capítulo do Gênesis1. O desejo que não aceita ser estrutura-
ordenado, ou dentro de uma cidade do por um limite. Leituras do Gênesis
que lhe forneceu as boas maneiras e pelo exegeta André Wenin, disponível
as regras de sua relação com o mundo 1 Sobre o Gênesis, confira no site do em http://bit.ly/15ZW4Bw; Adão e Eva,
Instituto Humanitas Unisinos - IHU a Caim e Abel: sobre relações incestuosas
(Aristóteles). Ele encontra, portanto, cobertura do evento “Aprender a ser e falsificadas, disponível em http://bit.
a sua identidade como ser humano humano. Um estudo de Gênesis 1-4”, ly/158SRlY. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 417 | SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 19


dos”) sem os quais ele só conheceria prevê, com uma serenidade aparente ca, como é mostrado no início desse
Tema de Capa
o caos e a morte. A lei é, portanto, e um realismo assustador, um filóso- grande poema. Não mais se superar,
ordenada para a liberdade: ela não o fo como Peter Sloterdijk2 em Regras mas “abster-se de si mesmo” sem
submete propriamente, mas sim o sal- para um Parque Humano (São Paulo: querer, “se perder”, isso que, segundo
va de sua perdição. Estação Liberdade, 2000), (1999).3 os Evangelhos, é portanto a condição
Ora, a partir da renascença eu- para “se ganhar” ou para “ganhar a
ropeia, a autonomia é cada vez mais IHU On-Line – Quais são as rela- sua vida” (dar- lhe sentido).
reivindicada: estamos falando da ções entre autonomia e relativismo?
razão científica e, em particular, no Paul Valadier – Se entendermos IHU On-Line – Como as pessoas
que diz respeito à fé, mas também a “autonomia” de forma fiel à etimolo- podem realizar sua autonomia tendo
autonomia do homem em relação a gia grega, ou seja, como aptidão de em consideração a situação relativís-
Deus, o que conduziu às várias formas estabelecer a própria lei, não depen- tica atual?
de ateísmo que se desenvolveram a der de poderes exteriores e impor as Paul Valadier – Não seria em vão
partir do século XVIII. Era uma razão suas próprias regras, podemos perce- pensar em nossas vidas em termos
que acreditava que a autonomia do ber de forma clara o risco imanente de uma autonomia, pois nós somos
homem estava ameaçada pela lei de do relativismo. Nesse sentido, não chamados à liberdade, e não à escra-
Deus e que por isso ela deveria se seríamos de certa forma induzidos a vidão de opiniões, de determinismos
emancipar disso. considerarmo-nos como soberanos diversos, ou para a indolência moral
todo-poderosos que levam em conta ou intelectual. Mas, a compreensão
IHU On-Line – O que é auto- tão somente seus próprios sonhos, da autonomia não fará o menor sen-
nomia no século XXI? Quais são os desejos e caprichos? Cada um, agin- tido sem estar relacionada a uma
maiores desafios para se realizar essa do de acordo com a sua própria lei, heteronomia. Para crescer e chegar
autonomia? irá conduzir a um universo de môna- até a maturidade do adulto, toda
Paul Valadier – Hoje, uma total das independentes ou mesmo a uma criança deve se apoiar nas normas e
autonomia no sentido de que o ho- anarquia ‘inconvivível’. Essa é uma tradições recebidas, e não median-
mem seria absolutamente soberano tendência muito forte das sociedades te a uma língua que, por acaso, ele
de si, independente e seguidor de modernas: pressionar a todos para próprio invente, mas a uma língua
suas próprias leis, é pouco concebí- que vivam por si, que cuidem apenas que ele deve se apropriar a fim de se
vel. Isso se dá a partir de um estranho de seus interesses próprios sem muito constituir. Heteronomia e autonomia
retorno de certas coisas. As ciências, se importar com o seu outro e, mais são indivisíveis; a ilusão moderna
primeiramente desenvolvidas sobre a ainda, com qualquer coisa semelhan- consiste em crer que nós alcançamos
ideia da autonomia da razão e de seus te ao “bem comum”. “Superar-se a si espontaneamente uma autonomia
campos específicos, atuam paradoxal- ou que podemos ser “maduros” sem
mesmo”, como ordenava o Zaratrus-
mente de forma a colocar determina- ter passado pelas diversas etapas
ta de Nietzsche, aparece, portanto,
ções que, parecem em um primeiro da vida, ou ainda que a maturidade
como um programa incoerente e que
olhar, contrariar a ideia de autonomia (intelectual, moral, espiritual) é uma
a multidão ridiculariza em praça públi-
e liberdade. E se há poucas pessoas conquista própria e permanente, alie-
que sustentem um total determinis- 2 Peter Sloterdijk (1947): filósofo ale-
nada de um processo constante que
mo que será, em si, contraditório em mão, estudou filosofia, germanistica e a atualiza sem cessar. Um adulto não
relação à pesquisa científica a qual história em Munique e Hamburgo. Desde é aquele ou aquela que não deve pa-
a publicação de Crítica da razão cínica é
supõe tentativas para examinar e “do- considerado um dos maiores renovadores
rar de tomar para si a sua vida? Uma
minar a natureza”, o desafio se encon- da filosofia atual. Em 2004 encerrou sua liberdade não é uma tarefa (Kant dirá
tra na relação teórica e prática entre trilogia Esferas (Sphären), cujos primei- um dever) que nós temos que dese-
ros volumes haviam sido publicados em
determinismo e liberdade. Sabemos 1998 e 1999. Interessado na mídia, dirige
jar constantemente e fazê-la nascer
bem que as ciências, sobretudo as dentro de nós? É verdade que o peso
www.ihu.unisinos.br

Quarteto filosófico, programa cultural da


neurociências ou a biologia, que tan- cadeia de televisão estatal alemã ZDF. do “politicamente correto” extingue
Tem inúmeras obras traduzidas para o
to aumentam as esperanças no tra- português, como Regras para o parque esse ideal. E tende a fazer do homem
tamento de doenças e enfermidades humano - uma resposta à carta de Heide- moderno, que se crê “autoconstruí-
diversas, provocam, por outro lado, gger sobre o humanismo (São Paulo: Esta- do”, um robô dócil para a publicida-
ção Liberdade, 2000). De Peter Sloterdijk
grandes interrogações: por acaso elas publicamos uma entrevista na revista IHU de e a opinião comum. A indolência
não estabeleceriam uma total depen- On-Line número 56, de 22-04-2003, dis- intelectual consiste em crer que a
dência dos homens em relação ao ma- ponível em http://migre.me/488It, ou- liberdade é uma qualidade perene
tra entrevista no nº 47, de 16-12-2002,
quinário empregado (p. ex. os compu- disponível em http://migre.me/488J7 e uma vez adquirida, ou ainda, que nós
tadores) ou aos especialistas que os trechos de outra entrevista no nº 25, de nascemos livres (segundo a fórmula
projetam? Não estaríamos nos arris- 8-07-2002, disponível em http://migre. ilusória da declaração dos direitos do
me/488KA. Confira, ainda, a reportagem
cando em ir rumo a uma humanida- Os imperativos do filósofo alemão Peter homem de 1789), enquanto que ela
de vivendo em ritmos diferenciados, Sloterdijk, publicada nas Notícias do Dia é um ato que se renova permanen-
com uma minoria dotada de grandes 05-07-2009, disponível em http://migre. temente no seio de todas as relações
me/488Ot. (Nota da IHU On-Line)
poderes e uma multidão controlada 3 Règles pour un parc humain (1999). sociais vividas. Livres não é o que so-
em maior ou menor grau? Isso é o que (Nota do entrevistado) mos, mas o que nos tornamos.

20 SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 | EDIÇÃO 417


IHU On-Line – Tomando em con-
“Livres não é

Tema de Capa
sideração o capitalismo globalizado e Leia mais...
a destacada influência da economia
sobre a política e sobre outros cam- o que somos, >> Paul Valadier já concedeu outras
entrevistas à IHU On-Line. Confira.
pos sociais, é possível falar em auto-
nomia e liberdade hoje? Por quê? mas o que nos • Investidas contra o Deus moral ob-
sessivo. Publicada na edição 127
Paul Valadier – O que se acabou
de dizer é verdadeiro em todas as tornamos” da Revista IHU On-Line, de 13-12-
2004, disponível em http://migre.
situações. Uma liberdade pura não me/2UcuT
existe: ela é sempre condicionada • O futuro da autonomia, política e
por um contexto social, econômico, ter um rosto próprio, portanto, uma niilismo. Publicada na edição 220
político, internacional, etc. Isso vale identidade. Com efeito, o Brasil não da Revista IHU On-Line, de 21-05-
tanto para pessoas como para nações é a China que também não é o Cana- 2007, disponível em http://migre.
e nenhum país hoje é totalmente in- me/2UcD0
dá, nem Angola. As particularidades
dependente dos outros dentro do regionais e culturais estão longe de • “A esquerda francesa está perdida”.
contexto da globalização. Também serem uniformes: é o traço sempre Publicada nas Notícias do Dia do site
preciso exorcizar os fantasmas de um fecundo e tenaz da especificidade do Instituto Humanitas Unisinos –
“império” capitalista (Antonio Negri4 IHU, em 27-05-2007, disponível em
que confere a liberdade aos povos.
e Hardt5 no livro Império (5ª ed. Rio http://migre.me/2UcJF
Ceder à inclinação de um determinis-
de Janeiro: Record, 2003); cf. tam- mo total seria como abdicar de nos- • Narrar Deus no horizonte do niilis-
bém outras obras desses mesmos sas liberdades pessoais e coletivas mo: a reviviscência do divino. Publi-
autores)6 que encerra a multidão cada na edição 303 da Revista IHU
em prol de um mito desmobilizador.
(multitude) dentro de malhas invisí- On-Line, de 10-08-2009, disponível
em http://migre.me/2Ucfv
veis e opressivas. Esses fantasmas di- IHU On-Line – Quais são os
ficilmente são ultrapassados, eles se maiores desafios para a religião nes- • O desejo e a espontaneidade cap-
sustentam mais por um infantilismo ciosa. Publicada na edição 303 da
se contexto?
ou por um esquerdismo extremado Revista IHU On-Line, de 10-08-
Paul Valadier – É certo que den-
2009, disponível em http://migre.
do que por uma justa apreciação das tro desse contexto, a religião não per- me/2Ucp4
coisas. É dentro desses quadros de de o seu lugar, mesmo que esse seja
um capitalismo mundializado, mas • A intransigência e os limites do com-
difícil de situar. O cristianismo, em
promisso. Publicada na edição 354
não unificado, que as nações podem particular, é uma religião de liberdade
da Revista IHU On-Line, de 20-10-
e esperança; ele convoca os homens a 2010, disponível em http://bit.ly/
4 Antonio Negri (1933): filósofo político assumir a sua humanidade dentro de
e moral italiano. Durante a adolescência gCw5c5
foi militante da Juventude Italiana de
sua finitude, mais precisamente, no
• A filosofia precisa de mais audácia.
Ação Católica, como Umberto Eco e ou- fato de se querer livres em observân-
Publicada na edição 379 da Revista
tros intelectuais italianos. Em 2000 publi- cia aos desígnios do Criador ao qual
ca o livro-manifesto Império (5ª ed. Rio IHU On-Line, de 07-11-2011, dispo-
de Janeiro: Record, 2003), com Michael nos entregamos e que nos chama a nível em http://bit.ly/vRCiHC
Hardt. Atualmente, após a suspensão de ser a providência do homem, de acor-
todas as acusações contra ele, definiti- • “A Igreja Católica só terá credibilida-
do com a bela fórmula de São Tomás
vamente liberado, vive entre Paris e Ve- de se admitir em seu seio o pluralis-
neza, escreve para revistas e jornais do de Aquino, uma imagem do Deus pro- mo”. Publicada na edição 403 da Re-
mundo inteiro e publicou recentemente vidente. Isso nos estimula, portanto, vista IHU On-Line, de 24-09-2012,
Multidão. Guerra e democracia na era do a não trilhar o caminho do abandono
império (Rio de Janeiro/São Paulo: Re-
disponível em http://bit.ly/OXjZrd
cord, 2005), também com Michael Hardt. que nos rebaixaria de homens livres a
Sobre essa obra, publicamos um artigo escravos, algo que Santo Agostinho7 www.ihu.unisinos.br
de Marco Bascetta na 125ª edição da IHU
On-Line, de 29-11-2004. O livro é uma
alerta de forma vigorosa os discípu-
los do Cristo. Podemos, com efeito,
Baú da IHU On-Line
espécie de continuidade da obra anterior
da dupla, Império. Ele foi apresentado nos incluirmos como escravos, nos
na primeira edição do evento Abrindo o submeter às leis da servidão ou, ao >> Paul Valadier tem duas publicações
Livro, promovido pelo IHU, em abril de pelo Instituto Humanitas Unisinos –
2003. Em 2003 esteve na América do Sul contrário, nos “edificarmos”, no senti-
(Brasil e Argentina) em sua primeira via- do mais nobre dessa palavra. Crescer IHU. Confira.
gem internacional após décadas entre o em liberdade com todos e por todos, • Investidas contra o Deus moral ob-
cárcere e o exílio. (Nota da IHU On-Line) sessivo. Publicada na edição 15 dos
5 Michael Hardt (1960): téorico literário carregando os fardos uns dos outros
Cadernos IHU em Formação, dispo-
americano e filósofo político radicado na como demanda o apóstolo em sua
Universidade de Duke. Com Antonio Ne- nível em http://migre.me/2UcNZ
epístola aos Gálatas (6,2).
gri escreveu os livros internacionalmente
famosos Império (5ª ed. Rio de Janeiro: • A moral após o individualismo: a
Record, 2003) e Multidão. Guerra e de- 7 Aurélio Agostinho (354-430): Conhe- anarquia dos valores. Publicada na
mocracia na era do império (Rio de Ja- cido como Agostinho de Hipona ou Santo edição 31 dos Cadernos Teologia
neiro/São Paulo: Record, 2005). (Nota da Agostinho, bispo católico, teólogo e filó-
IHU On-Line) sofo. É considerado santo pelos católicos Pública, disponível em http://migre.
6 Antonio Negri et Hardt, empire, Exils, e doutor da doutrina da Igreja. (Nota da me/2UcRT
2000. (Nota do entrevistado) IHU On-Line)

EDIÇÃO 417 | SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 21


O indivíduo autônomo de Kant:
Tema de Capa

um ideal ainda esperado


É preciso atentar para a contraposição entre uma “sociedade organizada à luz de
imperativos morais do tipo kantiano” e outra cujos imperativos egoístas são seu
modelo, ressalta o filósofo e psicanalista Mario Fleig. Delírio de autonomia surge do
imperativo de gozar sem limite

Por Márcia Junges

“O
indivíduo egoísta coloca em pri- ou seja, a autonomia da vontade remete ao
meiro lugar a satisfação de suas princípio segundo o qual a vontade expressa
pulsões a qualquer preço, ao livremente por pessoa capaz, e dentro das
passo que o individuo autônomo, propugna- normas legais, deve ser considerada sobera-
do por Kant, quer antes de tudo ser capaz na”. Liberdade e autonomia estão imbricadas
de deliberar sobre as coerções de suas pul- e são necessárias para que o homem se efe-
sões para, então, poder ter a liberdade de tive como um ser moral. “Entende-se então
refreá-las ou assumi-las de uma forma sim- por que o imperativo moral deve ser postu-
bólica viável”. A análise é do filósofo e psica- lado de modo autônomo, quer dizer, não ser
nalista Mario Fleig, em entrevista concedida condicionado pela vontade de outros, mas ser
por e-mail à IHU On-Line. “Aquele indivíduo puro (ou seja, livre, independente, autônomo
sonhado e anunciado como ideal a partir das e incondicionado)”.
formulações de Kant é o que ainda espera- Graduado em Filosofia pela Faculdade de
mos”, acrescenta. Esse indivíduo é um ideal Filosofia Nossa Senhora Medianeira, em São
ainda não alcançado, “e mais do que restrito Paulo, e em Psicologia pela Unisinos, Mário
ao contexto em que Kant viveu, eu o enten- Fleig é mestre e doutor em Filosofia. Tem ex-
do como uma releitura dos ideais de relação periência na área de Filosofia, com ênfase em
consigo e com o outro em vista da realização metafísica. Como psicanalista, é membro da
da felicidade propugnados pelas grandes nar- Association Lacanienne Internationale e da Es-
rativas ocidentais”. cola de Estudos Psicanalíticos. Com Jean-Pierre
Fleig acentua que a autonomia do ser hu- Lebrun organizou O mal-estar na subjetivação
mano “significa a capacidade de se autogove- (Porto Alegre: CMC Editora, 2010) e O desejo
nar e o direito de um indivíduo tomar decisões perverso (Porto Alegre: CMC Editora, 2008).
livremente, no âmbito moral e intelectual, Confira a entrevista.
www.ihu.unisinos.br

IHU On-Line – O imperativo ca- balhávamos com a hipótese de que a necessidade de introduzir uma dis-
tegórico é um expediente plausível a pós-modernidade se caracterizaria tinção na noção de indivíduo com que
numa sociedade na qual a autonomia pela emergência de novos ideais que trabalhávamos naquele artigo: a dis-
é compreendida, muitas vezes, como propugnam uma sociedade de indiví- tinção entre o indivíduo que a moder-
individualismo? duos que reúne meros sujeitos de di- nidade espera alcançar e o indivíduo
Mario Fleig – Nós já abordamos reitos, comandos por imperativos de que visa prioritariamente a si mesmo,
a temática da autonomia do agente gozar a qualquer preço e do que con- na forma do egoísmo. Aquele indiví-
moral na Modernidade e Pós-moder- vier, sem depender de ninguém e de duo sonhado e anunciado como ideal
nidade, nos modos da autoconsciên- nada e sem limites. Denominávamos a partir das formulações de Kant é o
cia e da autodeterminação, em um esse fenômeno emergente de delírio que ainda esperamos. Positivamente,
artigo publicado em 20071. Nele tra- de autonomia. Contudo, percebemos este indivíduo estaria centrado na au-
tonomia de sua vontade que, segun-
do Kant (1980), com base na noção
1 Fleig, M. (2007). “Autonomia na pós- IHU ideias, 5: 86. Disponível em http://
-modernidade: um delírio?” in Cadernos bit.ly/10qlKoa. (Nota do entrevistado)

22 SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 | EDIÇÃO 417


de liberdade proposta por Rousseau2, paz de deliberar sobre as coerções de Quanto à fundamentação das

Tema de Capa
obedece à lei que ele mesmo se pres- suas pulsões para, então, poder ter a normas morais, que diferença há en-
creve, ou seja, a capacidade apresen- liberdade de refreá-las ou assumi-las tre a concepção de Kant e Smith? Em
tada pela vontade humana de se au- de uma forma simbólica viável. Desse duas palavras: Kant jamais abre mão
todeterminar segundo uma legislação modo, face ao individualismo ego- da prioridade dada ao altruísmo e à
moral por ela mesma estabelecida, ísta crescente, hoje temos carência restrição ao egoísmo. Em contraparti-
livre de qualquer fator estranho ou deste indivíduo kantiano que pensa da, em Smith se destaca a afirmação
exógeno. e age por si mesmo, levando sempre da absoluta prevalência do egoísmo
em consideração os outros indivídu- privado. E sabemos que é a segunda
Indivíduo egoísta x indivíduo os que também agem e pensam por posição que resultará dominante no
autônomo si mesmos. Assim, nos parece que a que se denomina de pós-modernida-
Negativamente, a autonomia da questão mais interessante em relação de. Então, se nossa sociedade se orga-
vontade se define pelo repúdio de à autonomia surgiria da explicitação niza à luz de uma economia neoliberal
qualquer heteronomia no campo da da contraposição de um modelo de na qual a autonomia é compreendida
norma moral, ou seja, que o indivíduo sociedade organizada à luz de impe- segundo o modelo do individualismo
possa agir guiado por princípios que a rativos morais do tipo kantiano a um egoísta, torna-se evidente que o im-
própria razão se autodetermina e livre modelo de sociedade organizada à luz perativo categórico kantiano já não
de qualquer determinação alheia, tal de imperativos egoístas. seja mais um expediente plausível.
como uma paixão e uma inclinação Os dois termos que empregamos,
afetiva incoercível (subjetivamente) Economia neoliberal e egoísmo e altruísmo, fazem referência
ou um imperativo (objetivamente) autonomia à tensão constante entre a autopre-
vindo de uma ordem divina ou da Encontramos tal contraposição servação e a preservação do grupo,
tradição. Assim, a autonomia do ser em modelos de fundamentação da presente nas grandes narrativas que
humano significa a capacidade de se moral contemporâneos a Kant, como o fundam o Ocidente: tanto na tradi-
autogovernar e o direito de um indi- modelo sadeano, mesmo que utópico ção judaico-cristã quanto na tradição
víduo tomar decisões livremente, no (a máxima universal de Sade3: “Tenho greco-romana encontramos a conde-
âmbito moral e intelectual, ou seja, o direito de gozar de teu corpo, sem nação do egoísmo e a afirmação do
a autonomia da vontade remete ao nenhuma limitação”), ou o modelo altruísmo como única direção viável
princípio segundo o qual a vontade oriundo do iluminismo inglês, visível para a existência da vida em comum.
expressa livremente por pessoa ca- na concepção liberal de Adam Smith4. Não podemos refazer aqui este longo
paz, e dentro das normas legais, deve e interessante conflito que perpassa
ser considerada soberana. cada momento de nossa história. Não
3 Marquês de Sade (1740-1814): aristo-
Ora, este é o indivíduo ideal e que crata francês e escritor libertino. Muitas
é, por exemplo, o conflito entre os so-
jamais se disseminou efetivamente no das suas obras foram escritas enquanto fistas e Sócrates5? Agostinho opõe a
mundo ocidental. Em contrapartida, estava em um hospício, encarcerado por cidade de Deus à cidade dos pagãos,
causa de seus escritos e de seu compor-
aquilo que se costuma denominar de tamento. De seu nome surge o termo mé-
excesso de individualismo consistiria dico sadismo, que define a perversão se- lada Adam Smith: filósofo e economista,
de fato em um egoísmo exacerbado. xual de ter prazer na dor física ou moral escrita por Ana Maria Bianchi e Antônio
do parceiro ou parceiros. Foi perseguido Tiago Loureiro Araújo dos Santos, dispo-
O indivíduo egoísta coloca em pri- tanto pela monarquia (Antigo Regime) nível para download em http://migre.
meiro lugar a satisfação de suas pul- como pelos revolucionários vitoriosos de me/xQnc. Smith foi o tópico número I do
sões a qualquer preço, ao passo que 1789 e depois por Napoleão. (Nota da IHU Ciclo de Estudos em EAD – Repensan-
On-Line) do os Clássicos da Economia – Edição
o individuo autônomo, propugnado 4 Adam Smith (1723-1790): considerado 2009, estudado de 13-04-2009 a 02-
por Kant, quer antes de tudo ser ca- o fundador da ciência econômica. A Ri- 05-2009. O Ciclo de Estudos em EAD –
queza das Nações, sua obra principal, de Repensando os Clássicos da Economia
1776, lançou as bases para um novo en- - Edição 2010, em seu primeiro módu- www.ihu.unisinos.br
2 Jean Jacques Rousseau (1712-1778): tendimento do mecanismo econômico da lo, falou sobre Adam Smith: filósofo e
filósofo franco-suíço, escritor, teórico sociedade, quebrando paradigmas com a economista. Em sua edição 2011, esse
político e compositor musical autodi- proposição de um sistema liberal, ao in- evento contou com a palestra do Prof.
data. Uma das figuras marcantes do vés do mercantilismo até então vigente. Dr. André Filipe Zago de Azevedo, em
Iluminismo francês, Rousseau é também Outra faceta de destaque no pensamento 29-08-2011, com o tema Adam Smith: os
um precursor do romantismo. As ideias de Smith é sua percepção das sofríveis sentimentos morais e as razões da acu-
iluministas de Rousseau, Montesquieu e condições de trabalho e alienação às mulação e da conservação da fortuna
Diderot, que defendiam a igualdade de quais os trabalhadores encontravam-se material. Para conferir a programação
todos perante a lei, a tolerância religio- submetidos com o advento da Revolução completa do evento, acesse http://bit.
sa e a livre expressão do pensamento, Industrial. O Instituto Humanitas Uni- ly/ndTF3S. (Nota da IHU On-Line)
influenciaram a Revolução Francesa. sinos – IHU promoveu em 2005 o I Ciclo 5 Sócrates (470 a. C. – 399 a. C. ): filóso-
Contra a sociedade de ordens e de pri- de Estudos Repensando os Clássicos da fo ateniense e um dos mais importantes
vilégios do Antigo Regime, os iluministas Economia. No segundo encontro deste ícones da tradição filosófica ocidental.
sugeriam um governo monárquico ou re- evento a professora Ana Maria Bianchi, da Sócrates não valorizava os prazeres dos
publicano, constitucional e parlamentar. USP, proferiu a conferência A atualidade sentidos, todavia escalava o belo entre
Confira a edição 415 da revista IHU On- do pensamento de Adam Smith. Sobre o as maiores virtudes, junto ao bom e ao
-Line, de 22-04-2013, intitulada Somos tema, concedeu uma entrevista à IHU justo. Dedicava-se ao parto das ideias
condenados a viver em sociedade? As On-Line nº 133, de 21-03-2005, disponí- (Maiêutica) dos cidadãos de Atenas. O
contribuições de Rousseau à modernida- vel em http://migre.me/xQmm. Ainda julgamento e a execução de Sócrates são
de política e disponível em http://bit. sobre Smith, confira a edição 35 do Ca- eventos centrais da obra de Platão (Apo-
ly/YGU1gM. (Nota da IHU On-Line) dernos IHU Ideias, de 21-07-2005, intitu- logia e Críton). (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 417 | SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 23


prevendo em A cidade de Deus (XIV, da capacidade de se transportar na IHU On-Line – Nesse sentido,
Tema de Capa
28, 1) que a terra dos homens seria imaginação para o lugar e a situação como percebe a relação entre a ética
para todo sempre o lugar de afronta- dos outros, a começar pelos mais pró- pós-moderna e o individualismo?
mento entre o reino guiado pelo amor ximos afetivamente, e assim procurar Mario Fleig – Como indicamos
de Deus até o desprezo de si e o reino ver e sentir as coisas como supomos acima, os ideais e imperativos sociais
guiado pelo amor de si até o desprezo que os outros estão vendo e sentindo, prevalentes na pós-modernidade, na
de Deus. A inversão da prevalência do na posição do espectador imparcial. forma do que denominamos de delí-
amor de Deus, afirmado na tradição Contudo, a radicalidade da afirmação rio de autonomia, propugnam um in-
cristã, em amor de si, é o pressuposto do princípio do egoísmo como funda- dividualismo sem outrem, ou seja, um
do que resultará no que denomina- mento da vida em comum e da moral individualismo egoísta.
mos de delírio de autonomia. aparece translúcida em sua obra capi-
tal8: “Não é a bondade do açougueiro, IHU On-Line – As ações autôno-
Inversão do imperativo do cervejeiro ou do padeiro que po- mas no sentido kantiano não seriam
categórico demos esperar o nosso jantar, mas da demasiado otimistas, devendo ser
Vejamos como Kant continua consideração em que eles têm o seu compreendidas dentro do contexto
partidário da posição agostiniana. A próprio interesse. Apelamos não para da Prússia do século XVIII, quando
primeira formulação do imperativo a sua humanidade, mas para o seu surgiram?
categórico6 (“Age apenas segundo egoísmo, e nunca lhes falamos das Mario Fleig – Sim, o sujeito autô-
uma máxima tal que possas ao mes- nossas necessidades, mas das vanta- nomo kantiano é um ideal ainda não
mo tempo querer que ela se torne lei gens deles” (p. 94) . alcançado, e mais do que restrito ao
universal”) pode facilmente ser cri- contexto em que Kant viveu, eu o en-
ticada como genérica e abstrata, as- Nova economia psíquica tendo como uma releitura dos ideais
sim como expressão de um interesse O princípio da defesa dos pró- de relação consigo e com o outro em
egoísta do tipo: “não faça ao outro o prios interesses, ou seja, da priorida- vista da realização da felicidade pro-
que não gostarias que ele te fizesse”. de do egoísmo, é o fundamento não pugnados pelas grandes narrativas
Contudo, a segunda formulação do transcedente da vida em comum e da ocidentais.
imperativo categórico kantiano é in- relação com o semelhante propug-
dispensável para nos apercebermos nado por Smith ao longo de sua obra IHU On-Line – O que é ser escla-
da radical recusa do egoísmo como capital. As consequências da renúncia recido e autônomo para Kant? Qual é
fundamento da moral: “Age de tal do princípio do altruísmo em prol do a relação entre ambos?
maneira que uses a humanidade, tan- princípio do egoísmo são pesadas, vis- Mario Fleig – Para Kant, o escla-
to na tua pessoa como na pessoa de to que transforma todas as relações recimento é a passagem da minori-
qualquer outro, sempre e simultanea- com o outro em relações comerciais dade para a maioridade, ou seja, da
mente como fim e nunca simplesmen- e devemos então agir como comer- heteronomia para a autonomia, como
te como meio”. Ora, a inversão deste ciantes, sempre em busca do lucro, processo de emancipação intelectual
imperativo categórico, de que jamais colocando um preço em tudo. O im- que se dá pela superação da ignorân-
deveríamos tomar a pessoa como perativo categórico kantiano impede cia e abandono da preguiça de pen-
meio, mas somente como fim, é o que que a sociedade seja reduzida ao co- sar por conta própria: sapere aude é
se observa nas novas patologias que mércio, visto que postula uma catego- o lema latino referido por Kant em O
atingem os indivíduos e o laço social ria de bens que não pode ser objeto que é Esclarecimento? Ousa saber, e
de posse ou alienado (a justiça, a vida, para isso se requer a liberdade, pres-
na pós-modernidade.
o amor, a amizade, o desejo, enfim, suposto então da autonomia. Se não
O que se passa com A. Smith,
aquilo que constitui a dignidade), di- houver liberdade e autonomia não há
contemporâneo de Kant? Aqui temos
ferente dos bens que têm um preço e como o homem se efetivar com um
que confessar ao leitor que havía-
por isso podem ser comercializados. ser moral. Entende-se então por que
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mos feito uma leitura parcial, e por


Desse modo, para reconstruir o imperativo moral deve ser postu-
isso equivocada, da fundamentação
a história do surgimento da nova lado de modo autônomo, quer dizer,
da moral segundo Smith. Baseados
economia psíquica de nossos dias, não ser condicionado pela vontade de
em Teoria dos sentimentos morais7,
correlata da economia neoliberal vi- outros, mas ser puro (ou seja, livre, in-
encontramos uma fundamentação
gente, seria indispensável aprofun- dependente, autônomo e incondicio-
não transcendente da moral, ou seja,
dar o entendimento do surgimento nado). Desse modo, o conceito kan-
baseada em experiências, a partir do
da prevalência do princípio do ego- tiano de autonomia está intimamente
sentimento de simpatia oriundo da
ísmo em detrimento da consistência vinculado à capacidade de autodeter-
capacidade de acompanhar afetiva-
do outro no modelo de autonomia minação do sujeito racional como su-
mente aos outros. Tratar-se-ia então
formulado no iluminismo inglês do jeito de si mesmo e de seus atos, ex-
século XVIII. cluindo as inclinações determinadas
6 KANT, I. (1980). Fundamentação da me-
tafísica dos costumes. São Paulo: Abril por interesses externos à sua vontade
Cultural. (Nota do entrevistado) 8 SMITH, Adam (1987). Inquérito sobre enquanto pensar e agir de modo au-
7 SMITH, Adam (1999). Teoria dos senti- a natureza e as causas da riqueza das
mentos morais. São Paulo: Martins Fon- nações. Lisboa: C. Gulbenkian. (Nota do tônomo. E é apenas por meio do es-
tes. (Nota do entrevistado) entrevistado) clarecimento que o ser humano pode

24 SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 | EDIÇÃO 417


alcançar a plenitude da humanidade, da prevalência do princípio do indi- Freud e Lacan no que denominam de

Tema de Capa
tornando-se emancipado. Em decor- vidualismo egoísta subjacente à eco- perversão11.
rência disso, alcança-se a dignidade nomia globalizada hodierna. Lacan10
em razão da qual o ser humano nunca nos indica que as leis que poderiam
deve ser utilizado como um meio, mas reger e regular a vida em comum não Leia mais...
deve ser sempre o seu próprio fim. seriam diferentes das leis que utiliza- >> Mario Fleig já concedeu outras
mos para falar de modo apropriado
entrevistas à IHU On-Line. Confira.
IHU On-Line – Em entrevista com o outro. Se nos submetermos a
concedida à nossa revista em 2007, o • O desaparecimento da família tradi-
falar de modo adequado com nosso
senhor afirmou que “o delírio de au- cional. Entrevista publicada na IHU
semelhante estaríamos no mesmo
tonomia poderia ser descrito como On-Line 359, de 02-05-2011, dispo-
caminho propugnado pelas grandes
a dissolução dos fundamentos da tradições morais que encontramos na nível em http://bit.ly/im40MS
moral”9. Essa é uma tendência de história. Aceitar nos submetermos às • O pedófilo: vítima de seu desejo e
nossa época em termos globais? leis da linguagem cotidiana é reconhe- perversão. Entrevista publicada na
Mario Fleig – Se entendemos a cer que há um Outro que se põe em IHU On-Line 326, de 26-04-2010,
moral como a busca de princípio que jogo quando conversamos de modo disponível em http://bit.ly/eadHUI
orientem as relações entre os seres próprio com nosso semelhante. Este
humanos e a relação destes com o Outro se faz presente no reconheci- • O direito ao gozo e à violência. En-
universo de modo a se alcançar a rea- mento da dívida que temos com nos- trevista publicada na IHU On-Line
lização do que somos, parece que o sos ancestrais próximos e distantes, 298, de 22-06-2009, disponível em
delírio de autonomia, como o caracte- assim como pelo reconhecimento da http://migre.me/4mMU6
rizamos, tem produzido efeitos sociais
diferença que nosso semelhante nos • Não cedas do teu desejo: é preciso
e subjetivos inquietantes, corroen-
impõe. Não é por nada que o princí-
do de modo radical os fundamentos sustentarmos o que falamos com
pio do egoísmo subjacente ao sistema
da vida em comum. O imperativo de voz própria. Entrevista publicada na
sadeano combate em primeiro lugar a
gozar sem limite e a qualquer preço, IHU On-Line 295, de 01-06-2009,
diferença em sua forma mais radical: a
orientado pela abolição da dimensão disponível em http://bit.ly/aQxiu4
diferença posta pelo feminino.
do impossível, livre de qualquer res-
O desaparecimento da consistên- • “Querer fazer o mal parece algo
trição, tende a multiplicar os efeitos
cia da alteridade se manifesta na des- inerente à condição humana”. En-
deletérios da pulsão de morte. Não
subjetivação progressiva das relações, trevista publicada na IHU On-Line
se trata de fazermos uma descrição
apocalíptica de nossos tempos, mas no anonimato, na impessoalização, na 265, de 21-07-2008, disponível em
refletirmos sobre os determinantes, instrumentalização de si e do outro, http://bit.ly/j9ZqeL
por exemplo, da violência cotidiana na anulação da diferença sexual e no
voto de morte ao feminino, enfim, a • O delírio de autonomia e a disso-
como corrosão do convívio na polis,
promessa de um mundo sem limites lução dos fundamentos da moral.
quando o outro já não conta como
e sem impossível. Estes são traços Entrevista publicada na IHU On-Line
uma das referências que orientariam
a vontade na busca do que seria bom que já haviam sido identificados por 220, de 21-05-2007, disponível em
para o próprio sujeito em seu convívio http://bit.ly/mTwkK1
10 Jacques Lacan (1901-1981): psica-
com o semelhante. nalista francês. Realizou uma releitura • O declínio da responsabilidade. En-
do trabalho de Freud, mas acabou por trevista publicada na IHU On-Line
IHU On-Line – Como podemos eliminar vários elementos deste autor
185, de 19-06-2006, disponível em
(descartando os impulsos sexuais e de
compreender o delírio de autonomia agressividade, por exemplo). Para Lacan, http://bit.ly/bp5jvr
ao qual o senhor se refere face ao o inconsciente determina a consciência, www.ihu.unisinos.br
desaparecimento da consistência da mas este é apenas uma estrutura vazia • Freud e a descoberta do mal-estar
e sem conteúdo. Confira a edição 267 da
alteridade, do grande Outro? O que Revista IHU On-Line, de 04-08-2008, inti- do sujeito na civilização. Entrevista
isso representa em termos das rela- tulada A função do pai, hoje. Uma leitu- publicada na IHU On-Line 179, de
ções interpessoais? ra de Lacan, disponível em http://migre.
me/zAMA. Sobre Lacan, confira, ainda, 08-05-2006, disponível em http://
Mario Fleig – O desaparecimen- as seguintes edições da revista IHU On- bit.ly/kpHGA8
to da consistência da alteridade, que -Line, produzidas tendo em vista o Co-
nas grandes tradições figurava nas lóquio Internacional A ética da psicaná- • As modificações da estrutura fami-
lise: Lacan estaria justificado em dizer
divindades, desde o Deus do mono- liar clássica não significam o fim da
“não cedas de teu desejo”? [ne cède
teísmo até os deuses das florestas pas sur ton désir]?, realizado em 14 e 15 família. Entrevista publicada na IHU
de nossos aborígenes, é o correlato de agosto de 2009: edição 298, de 22-06- On-Line 150, de 08-08-2005, dispo-
2009, intitulada Desejo e violência, dis-
ponível para download em http://migre. nível em http://bit.ly/iYmk6n
9 Confira a entrevista O delírio de auto- me/zAMO, e edição 303, de 10-08-2009,
nomia e a dissolução dos fundamentos intitulada A ética da psicanálise. Lacan
da moral, concedida por Mario Fleig à estaria justificado em dizer “não cedas 11 Abordamos este tema de modo apro-
edição 220 da revista IHU On-Line, de de teu desejo”?, disponível para downlo- fundado em O desejo perverso (Porto
21-05-2007, disponível em http://bit.ly/ ad em http://migre.me/zAMQ. (Nota da Alegre: CMC Editora, 2008). (Nota do en-
mTwkK1. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line) trevistado)

EDIÇÃO 417 | SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 25


A atualidade “incandescente” do
Tema de Capa

Reino de Deus e do Reino dos Fins


A pós-modernidade exalta a autonomia e atribui caráter absoluto ao sujeito, que
transfere essa prerrogativa à razão. Contudo, pondera Frei Carlos Josaphat, é ingênuo
“jogar pedras” nesse mundo. É preciso atentar ao Concílio Vaticano II, que conferiu
valor à autonomia em diferentes aspectos

Por Márcia Junges

“O
‘Reino de Deus’, sobretudo apro- porativa e social”. Porém, o religioso ressalta
ximado da expressão ética do que se trata de um “exagero e engano identi-
‘Reino dos fins’ dá uma atualida- ficar a pós-modernidade com a corrupção do
de intensa, quase se diria incandescente, ao mundo globalizado. Há uma aliança que será
desafio ético na Igreja e na sociedade, envol- necessária e mesmo urgente desfazer”.
vidas no contexto provocante da pós-moder- Frei Carlos Josaphat, da ordem dos domi-
nidade”. A reflexão é do Frei Carlos Josaphat, nicanos, é professor da Escola Dominicana
na entrevista que concedeu à IHU On-Line de Teologia – EDT, de São Paulo, desde 1994,
por e-mail. E acrescenta: “a volta evangélica do Instituto Teológico de São Paulo – Itesp,
à contemplação e ao culto de Deus Amor foi da Pontifícia Universidade de São Paulo e da
a opção do Concílio Vaticano II para propor e Pontifícia Universidade de Minas Gerais, den-
viabilizar o paradigma de uma Igreja da comu- tre outras. Neste mês de maio será agracia-
nhão, da participação, do diálogo, da colegia- do com o prêmio Doutor Honoris Causa pela
lidade, do ecumenismo entre cristãos e com Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
todas as religiões. É uma Igreja de serviço à – PUCSP. Além de diversas obras publicadas
humanidade e de compromisso com uma ci- na Europa, é autor de inúmeras obras no
vilização de solidariedade e de paz. Na sua Brasil, das quais destacamos as mais recen-
autonomia e na sua consciência, fiéis e pas- tes, como Evangelho e revolução social (São
tores, por ocasião do jubileu conciliar, hão de Paulo: Loyola, 2002, reedição de aniversário
se sentir suave e irresistivelmente intimados dos 40 anos da obra), Evangelho e diálogo
a assumir o Vaticano II como o carisma comu- inter-religioso (São Paulo: Loyola, 2003), Falar
nitário levando toda a Igreja ao encontro com de Deus e com Deus hoje (São Paulo: Paulus,
a humanidade pós-moderna”. Segundo Frei 2004), Ética e mídia: Liberdade, responsabi-
Josaphat, “a predominância do sistema eco- lidade e sistema (São Paulo: Paulinas, 2006),
nômico atrelando a si os outros sistemas não Frei Bartolomeu de Las Casas: Espiritualidade
submete diretamente o mundo na imoralida- contemplativa e militante (São Paulo: Pauli-
de, mas tende a sujeitá-lo à amoralidade. Lon- nas, 2008) e Ética mundial: Esperança da hu-
www.ihu.unisinos.br

ge dos ‘Reinos de fins’ (Kant), de uma motiva- manidade globalizada (Porto Alegre: Vozes,
ção de amor gratuito, desinteressado, de dom 2010). Acaba de lançar a obra Vaticano II, a
e de serviço (na perspectiva do Evangelho), o Igreja aposta no amor universal (São Paulo:
economismo sistêmico estabelece e torna Paulinas, 2013), com a colaboração de Lilian
bem aceito o imperialismo do interesse, do Contreira.
egoísmo e mesmo da egolatria individual, cor- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como se im- denações generalizadas. É oportuno jetiva, vendo nelas formas asfixiantes
bricam autonomia e liberdade na refletir de maneira imparcial sobre o impostas ao indivíduo. Ela retoma e
pós-modernidade? tema. A um primeiro olhar, a pós-mo- coroa o movimento de emancipação,
Carlos Josaphat – A dimensão dernidade se afirma qual ponta de um inaugurado na Renascença e reforça-
ética da pós-modernidade fica por ve- processo de ruptura com a tradição e do pelas vagas sucessivas de moder-
zes na penumbra. Ou é objeto de con- mesmo com toda normatividade ob- nidade. E culmina paradoxalmente

26 SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 | EDIÇÃO 417


em um absoluto normativo, que é a destacados em suas dimensões subje- Esses casos extremos têm hoje

Tema de Capa
exigência radical de relatividade. A lin- tivas. A autenticidade emerge como o similares mais amplos, mais destru-
guagem mais típica dessa atitude da valor dos valores, a plena realização da tivos e mortíferos, ativados e moti-
pura e total liberdade aponta então subjetividade. É a sinceridade total, o vados por consciências fechadas à
para um horizonte infinito e transcen- primeiro e único mandamento aprego- consideração de valores objetivos,
dente. O sujeito que proclama: “sou ado pela guarda avançada da pós-mo- exaltando a grandeza dos próprios ris-
o único senhor de mim mesmo. E, de dernidade. Caracteriza-se qual estrita cos e dos seus parceiros de valentia.
meu corpo, do meu sexo, de meu vi- e absoluta fidelidade à experiência de As formas dessas façanhas de violên-
sual, faço o que me parece certo, ou felicidade, gozada, aprovada e aprego- cia, tornadas operacionais por esses
melhor. Ou simplesmente o que eu ada pelo sujeito aqui e agora. Ele será protagonistas, constituem os únicos
quero como afirmação do meu livre plenamente autônomo, buscando, en- valores (subjetivos) no jogo individual
querer”. O mundo há de ser o univer- contrando e seguindo as indicações de e corporativo de suas consciências.
so da liberdade. sua própria experiência e de eventuais
Assim, em termos éticos, apos experiências similares. Esses encontros IHU On-Line – Em que medida
Kant, Nietzsche, Heidegger1, e mais de atitudes de subjetividade levam a a singularidade das consciências e a
em companhia de Sartre2, se evocam certa forma coletiva de objetividade, especificidade das tradições culturais
em formas concretas, sem que sejam como se vê, por exemplo, no movi- podem convergir para um agir autô-
nomeados os valores de liberdade, mento amplo e crescente de prática e nomo em termos kantianos?
autonomia e autenticidade, sempre defesa da homossexualidade, nestes Carlos Josaphat – A questão
últimos decênios. aborda o aspecto positivo, certo pro-
1 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo É uma autonomia radical, na me- jeto de reconciliação, levando em
alemão. Sua obra máxima é O ser e o tem- dida em que o sujeito cria as normas, conta e confrontando dados tradi-
po (1927). A problemática heideggeriana simplesmente trilhando o seu cami- cionais, eventualmente cristãos, com
é ampliada em Que é Metafísica? (1929),
Cartas sobre o humanismo (1947), Intro- nho. Por isso, quando se tenta uma qualidades e aspectos éticos presen-
dução à metafísica (1953). Sobre Heide- análise desse comportamento vivido, tes nas consciências do conjunto da
gger, a IHU On-Line publicou na edição melhor se diria que as normas e os pós-modernidade. Com efeito, pode-
139, de 2-05-2005, o artigo O pensamento
jurídico-político de Heidegger e Carl Sch- valores, que elas implicam, não vêm -se e deve-se começar por reconhecer
mitt. A fascinação por noções fundadoras em geral formuladas, mas estão con- algo bastante autêntico na atitude
do nazismo, disponível para download em tidas no próprio caminho escolhido e primordial que vislumbramos na pós-
http://migre.me/uNtf. Sobre Heidegger,
confira as edições 185, de 19-06-2006, seguido pelo próprio sujeito. Na base -modernidade, apreendida como ten-
intitulada O século de Heidegger, disponí- da autenticidade e da autonomia está dência histórica geral. É o primado do
vel para download em http://migre.me/ igualmente postulada a liberdade to- sujeito, considerado e enaltecido em
uNtv, e 187, de 3-07-2006, intitulada Ser
e tempo. A desconstrução da metafísica, tal e absoluta. sua autonomia, em sua consciência e
que pode ser acessado em http://migre. sua liberdade. A reivindicação de uma
me/uNtC. Confira, ainda, o nº 12 do Ca- Jogo de consciências dignidade humana, adulta pela auto-
dernos IHU Em Formação intitulado Martin
Heidegger. A desconstrução da metafísica, Como Sartre bem mostrou (no nomia da pessoa se afirmara como
que pode ser acessado em http://migre. seu opúsculo mais acessível O existen- atitude do maior valor ético, na auro-
me/uNtL. Confira, também, a entrevista
concedida por Ernildo Stein à edição 328
cialismo é um humanismo, 1946), esse ra da modernidade, no grande movi-
da revista IHU On-Line, de 10-05-2010, apelo exclusivo ao individualismo não mento crítico e criativo que era ou se
disponível em http://migre.me/FC8R, in- leva ao solipsismo, pois haverá nu- denominava Renascença.
titulada O biologismo radical de Nietzsche
não pode ser minimizado, na qual discu-
merosos encontros de parceiros, pela A tradição moral e religiosa que se
te ideias de sua conferência A crítica de coincidência de suas apostas nesses impugnava como contrária à Dignitas
Heidegger ao biologismo de Nietzsche e a mesmos valores. Em todos os seto- hominis, à “dignidade da pessoa huma-
questão da biopolítica, parte integrante
do Ciclo de Estudos Filosofias da dife-
res da sociedade tecnológica surgem na” se considerava como cristã, ensina-
movimentos corporativos que bem se da e garantida pela Igreja e se dando
www.ihu.unisinos.br
rença - Pré-evento do XI Simpósio Inter-
nacional IHU: O (des)governo biopolítico entendem, ao menos na necessidade mesmo como evangélica. Na realidade,
da vida humana. (Nota da IHU On-Line)
2 Jean-Paul Sartre (1905-1980): filósofo
de enfrentar o mundo que aí está, en- essa tradição era ressentida por boa
existencialista francês. Escreveu obras travado de redes e mais redes de lega- parte da população e denunciada com
teóricas, romances, peças teatrais e con- lismo a abater. A situação atual ainda vigor e inteligência pelas novas elites
tos. Seu primeiro romance foi A náusea
(1938), e seu principal trabalho filosófico guarda algo de semelhante ao mundo culturais. Pois estas se sentiam tocadas
é O ser e o nada (1943). Sartre define o sartriano da “guerra suja”, da resis- e machucadas pelo sistema legal e re-
existencialismo em seu ensaio O existen- tência aos ocupantes e aos resquícios pressivo, essa ponta aguçada do orto-
cialismo é um humanismo, como a doutri-
na na qual, para o homem, “a existência de totalitarismo que era necessário doxismo religioso e da ordem moral e
precede a essência”. Na Crítica da razão combater no imediato após guerra. cívica, um e outra impostos pelo poder
dialética (1964), Sartre apresenta suas Na falta de um governo democrático e absoluto, religioso e civil, que desde
teorias políticas e sociológicas. Aplicou
suas teorias psicanalíticas nas biografias de outros meios pacíficos, os partidá- séculos andavam de mãos dadas.
Baudelaire (1947) e Saint Genet (1953). rios da resistência chegavam a optar Abatido esse poder absoluto, com
As palavras (1963) é a primeira parte de pela coragem de liquidar membros ou suas redes inquisitoriais, torna-se neces-
sua autobiografia. Em 1964, foi escolhido
para o prêmio Nobel de literatura, que esquadrões da polícia política ou do sário e mesmo urgente que os valores
recusou. (Nota da IHU On-Line) exército nazista. subjetivos da liberdade e da autonomia

EDIÇÃO 417 | SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 27


possam penetrar e iluminar as inteli- mendações vêm acompanhadas da A sociedade tecnológica que
Tema de Capa
gências e guiar as consciências, sem res- insistência de libertar essas “tradições” puxa essa marcha com grande efi-
valar em outros modelos de dominação do caráter heteronômico, que reveste ciência se pode entender, à primeira
ou manipulação que passarão a parasi- também formalidades pretensamente vista, como imenso sistema forma-
tar a sociedade pós-moderna. Bem se tradicionais. Isso porque comportam do de grandes, médios e pequenos
poderia dizer que a ética pessoal e so- um lado de imposição autoritária, de le- sistemas, tendo na frente o sistema
cial carece hoje de uma estratégia de li- galismo jurídico e religioso parasitando econômico e o comunicacional. Estes
berdade e de inteligência, para discernir sua transmissão pela família, pela edu- inspiram e guiam os demais, os siste-
e enfrentar a sujeição das mentalidades cação, pela sociedade, pela Igreja. Por mas políticos, jurídicos, educacionais,
a formas inferiores de predomínio do outro lado, há de haver a comunhão culturais, artísticos, esportivos. O sis-
imaginário, do egocentrismo passional das consciências, coesão livre e racional tema, na acepção lançada por Ludwig
e tecnologicamente equipado. Pois mil das pessoas, assegurando a dimensão von Bertalanffy4 desde 1950, aqui
e uma modalidades de sensualidade, de humana da sociedade, bem como a fra- aprimorada para servir a análise ética,
ambições e especulações financeiras, ternidade profunda e evangélica, que nada tem de pejorativo ou negativo.
de endeusamento estético do corpo e constitui a comunhão da Igreja. Mas as Ensina a forma, aperfeiçoada ao ex-
do sexo, universalizam hoje o que fora consciências hão de guardar sua “singu- tremo, de organização da sociedade
apenas inaugurado na Renascença, de laridade”, brotando cada uma delas do moderna para levar adiante todos os
mistura com o retorno nada desprezível íntimo do cidadão e do cristo. setores do progresso da ciência e da
à cultura greco-romana. técnica, favorecendo e ativando os in-
IHU On-Line – Quais são os teresses que motivam e atuam cada
Comunhão de consciências grandes impasses éticos que desa- um e o conjunto desses setores.
Mas igualmente hoje a huma- fiam não apenas a consciência cristã, Hegel proclamava que todo real
nidade e as religiões estão maduras mas também a consciência de toda é racional. A natureza é constituída
para reconhecer: no centro das vagas, humanidade? e evolui dentro de uma “lógica viva”
já da modernidade e agora da pós- (expressão do biologista Jacques Mo-
Carlos Josaphat – Nada de mais
-modernidade, há todo um núcleo nod). A técnica busca fazer marchar o
inoperante, senão ingênuo, do que jo-
ético, um feixe ou uma sinergia de mundo dentro da lógica da economia.
gar pedra no mundo moderno ou pós-
valores humanos prezados e enalte- Que se deixe que o sistema e os mo-
-moderno, denunciando protagonistas
cidos na pós-modernidade, embora delos concretos, sempre progressivos,
ou correntes de inconformados, exor-
por ela vividos e defendidos em mo- prossigam em sua lógica do lucro, da
cizando umas tantas quadrilhas que aí
delos falhos ou parciais. O que tem concorrência, da dominação do mer-
estariam empenhadas em corromper
ocasionado conflitos de valores, des- cado. O sistema visa formar quadros
a humanidade e disseminar erros e
providos da capacidade de convergir administrativos empenhados em se
vícios em antagonismo com os valo-
e conviver, porque tradicionalmente tornar mais e mais operacionais, ar-
res humanos e evangélicos. Sobretudo
mal definidos senão distorcidos nas ticulando todo um conjunto de recur-
depois da derrocada do comunismo,
controvérsias. Esta aí o cerne da via- sos e técnicas bem organizados para
bilidade da questão: como “a singula- vêm-se ainda com mais clareza o senti-
do e os rumos seguidos em velocidade obter objetivos cada vez mais bem de-
ridade das consciências e a especifi- terminados e contando com a tecno-
cidade das tradições culturais podem vertiginosa pela humanidade atual.
logia apropriada para avançar sempre
convergir para um agir autônomo em na magia de produzir mercadorias e
bilidade papal. As transformações que in-
termos kantianos?” troduziu foram no sentido da democrati- mobilizar consumidores. Este é o sis-
Procurando evitar o risco de zação dos ritos, como a missa rezada em
tema econômico, que enquadra, ani-
simplificar problemas extremamen- vernáculo, aproximando a Igreja dos fiéis
dos diferentes países. Este Concílio en- ma e impele os outros sistemas. Estes
te complexos, convém tentar por em controu resistência dos setores conserva- se devem constituir e marchar ado-
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relevo os valores a preservar e os dores da Igreja, defensores da hierarquia


e do dogma estrito, e seus frutos foram, tando o mesmo paradigma de otimi-
discernimentos indispensáveis, neste
aos poucos, esvaziados, retornando a zação das atividades e dos resultados.
momento de imensas ambiguidades. Igreja à estrutura rígida preconizada pelo
Com efeito, o essencial “das tradi- Concílio Vaticano. O IHU promoveu, de 11
Economismo sistêmico
ções deveras culturais” vem condensa- de agosto a 11-11-2005, o Ciclo de Estu-
dos Concílio Vaticano II – marcos, traje- A predominância do sistema
do com felicidade em correntes éticas tórias e perspectivas. Confira, também, econômico atrelando a si os outros
renovadoras, assumidas no ensino cla- a edição 157 da IHU On-Line, de 26-09-
2005, intitulada Há lugar para a Igreja na sistemas não submete diretamente
ro e sucinto de Vaticano II3. Suas reco-
sociedade contemporânea? Gaudium et o mundo na imoralidade, mas tende
Spes: 40 anos, disponível para downlo- a sujeitá-lo à amoralidade. Longe dos
3 Concílio Vaticano II: convocado no dia ad na página eletrônica do IHU, http://
11-11-1962 pelo Papa João XXIII. Ocorre- migre.me/KtJn. Ainda sobre o tema, a
ram quatro sessões, uma em cada ano. IHU On-Line produziu a edição 297, Karl 4 Karl Ludwig von Bertalanffy (1901-
Seu encerramento deu-se a 8-12-1965, Rahner e a ruptura do Vaticano II, de 15- 1972): biólogo criador da Teoria geral dos
pelo Papa Paulo VI. A revisão proposta por 6-2009, disponível no link http://migre. sistemas. Cidadão austríaco, desenvolveu
este Concílio estava centrada na visão me/KtJE, bem como a edição 401, de 03- a maior parte do seu trabalho científico
da Igreja como uma congregação de fé, 09-2012, intitulada Concílio Vaticano II. nos Estados Unidos da América. É autor
substituindo a concepção hierárquica do 50 anos depois, disponível em http://bit. de Teoria Geral dos Sistemas (Petrópolis:
Concílio anterior, que declarara a infali- ly/REokjn. (Nota da IHU On-Line) Vozes, 1968). (Nota da IHU On-Line)

28 SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 | EDIÇÃO 417


“Reinos de fins” (Kant), de uma mo- uma aliança que será necessária e constante com o conjunto da socie-

Tema de Capa
tivação de amor gratuito, desinteres- mesmo urgente desfazer. dade, sobretudo com o que se pode
sado, de dom e de serviço (na pers- considerar a ponta do mundo civiliza-
pectiva do Evangelho), o economismo IHU On-Line – Em que medida do, os cidadãos e cidadãs, de maior
sistêmico estabelece e torna bem uma fé adulta e consciente constrói autonomia, animadores ou desejosos
aceito o imperialismo do interesse, do pontes com a autonomia dos sujeitos de uma ação social mais significativa.
egoísmo e mesmo da egolatria indivi- em nosso tempo?
dual, corporativa e social. Carlos Josaphat – A questão pode Ética mundial
Persistem espaços de relações ser encarada sob duplo aspecto: o do A necessária estratégia ética
curtas entre indivíduos, famílias, pe- ideal, do mundo dos valores, em sua nada pode ter de imposição, de recur-
quenos grupos. Neles, motivações e compreensão doutrinal, e o da realida- so ao poder político ou à pressão das
atitudes éticas, de bondade, de res- de, das situações a enfrentar. Em si a fé forças religiosas. Simplificando, dir-se-
ponsabilidade, de solidariedade, se adulta e consciente favorece o encon- -ia que o futuro ético da humanidade,
podem desenvolver. Mas dominam os tro com as pessoas, abertas aos valo- o futuro que está nas mãos das religi-
monstros frios, as grandes empresas, res éticos da autonomia, nos diferen- ões e das forças culturais, vem a ser o
industriais, comerciais, bancárias, que tes contextos históricos, enfrentando, grande projeto mundial de educação
por si mesmas são acumuladoras de no entanto, dificuldades especiais nos integral, a se efetivar realmente nos
poder e de mercado e de toda forma dias de hoje. A fé implica atitude de li- sistemas familiares, institucionais e
de governo. Nada disso é diabólico. É berdade de quem a pratica, e naqueles comunicacionais em todos os recan-
humano, muitíssimo humano. É a im- e naquelas a quem ela se dirige. No en- tos da terra. É o que vem sendo postu-
plantação e a dominação do que Aris- tanto, as autoridades da cristandade, lado nos grandes momentos do des-
tóteles5 e o Evangelho denominam e sobretudo em seu centro, priorizam o pertar da consciência da humanidade,
condenam como a “pleonexia” (Lc 12, anúncio e a ortodoxia da fé sem dar o em suas atitudes lúcidas de percep-
15, por exemplo), a ganância do “sem- valor correspondente à qualidade de ção e de confronto com as aspirações
pre mais”. Essa ganância suavemente informação e de autonomia em que e com os desafios da modernidade e
avassaladora, totalitária toma conta ela deve ser recebida. da pós-modernidade.
dos apetites de prazer, do luxo da apa- Há, portanto, no cristianismo Uns simples exemplos são aqui
rência, da moda, do prestígio, do acú- atual, muitos movimentos e nume- evocados, os quais, no entanto, são
mulo das vantagens e prerrogativas rosas comunidades de atividade pas- significativos em razão das instâncias
de prevalecer sobre os outros. Aí sim, toral, missionária, social, as quais se de que emergem e da viabilidade de
a corrupção serpenteia pelo mundo, encontram em diálogo com outros sua convergência por vezes já esboça-
inundando a sociedade, a começar movimentos, sociedades e personali- da. Que se retome e analise a Decla-
pela política, sem deixar de fora as en- dades não cristãs, mas empenhadas ração Universal dos Direitos humanos
tidades religiosas. em promover os valores e os direitos pela ONU, de 1948. Merece especial
Semelhante orientação que se humanos e em atender às necessida- atenção o seu prólogo, que apon-
denuncia como o triunfo do econo- des mais urgentes da população. Um ta para as condições de viabilidade
mismo e do consumismo, isto é, a exemplo bem positivo dessa atitude dessa conversão da humanidade no
grande máquina montada para pro- vem a ser a Campanha da Fraternida- sentido de uma ética mundial. Que
duzir coisas e serviços e para criar ar- de, na medida em que aborda ques- se ajuntem a leitura e a consideração
tificialmente os consumidores, vai ao tões de interesse de todo o povo e em ponderada da mensagem fundadora
encontro do que ficou descrito acima relação com a qualidade democrática de Vaticano II, condensada na ética
como sendo o individualismo ativo, que deve ter a política. fundamental esboçada no limiar da
superativo, que caracteriza a pós-mo- Ao contrário, as formas de co- Constituição Gaudium et Spes6. Pode
dernidade. Seria exagero e engano municação e a linguagem utilizadas
pelo Magistério da Igreja em nosso
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identificar a pós-modernidade com a 6 Gaudium et Spes: Igreja no mundo atu-
corrupção do mundo globalizado. Há país, mas, sobretudo, nos documen- al. Constituição pastoral, a 4ª das Cons-
tituições do Concílio do Vaticano II. Trata
tos emanando do centro da Igreja e fundamentalmente das relações entre a
5 Aristóteles de Estagira (384 a C. – 322 endereçados ao mundo inteiro, não igreja e o mundo onde ela está e atua.
a. C.): filósofo nascido na Calcídica, visam o diálogo, com pessoas e gru- Trata-se de um documento importante,
Estagira, um dos maiores pensadores pois significou e marcou uma virada da
de todos os tempos. Suas reflexões fi- pos. Chegam a fornecer informações Igreja Católica “de dentro” (debruçada
losóficas — por um lado originais e por gerais, marcadas por um tom de au- sobre si mesma), “para fora” (voltando-
outro reformuladoras da tradição grega toridade, contribuindo assim para -se para as realidades econômicas, polí-
— acabaram por configurar um modo de ticas e sociais das pessoas no seu contex-
pensar que se estenderia por séculos. certo isolamento dos fiéis e líderes ca- to). Inicialmente, ela constituía o famoso
Prestou inigualáveis contribuições para tólicos, dificultando o diálogo, com a “esquema 13”, assim chamado por ser
o pensamento humano, destacando-se faixa mais aberta da sociedade. O que esse o lugar que ocupava na lista dos do-
nos campos da ética, política, física, cumentos estabelecida em 1964. Sofreu
metafísica, lógica, psicologia, poesia, significa um desafio para os católicos várias redações e muitas emendas, aca-
retórica, zoologia, biologia, história na- dotados de uma fé esclarecida, perso- bando por ser votada apenas na quarta e
tural e outras áreas de conhecimento. É nalizada, colocada em relação com os última sessão do Concílio. O Papa Paulo
considerado, por muitos, o filósofo que VI, no dia 7 de dezembro de 1965, pro-
mais influenciou o pensamento ociden- problemas de hoje. Não conseguem mulgou esta Constituição. Formada por
tal. (Nota da IHU On-Line) manter um intercambio profundo e duas partes, constitui um todo unitário.

EDIÇÃO 417 | SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 29


parecer surpreendente. Mas a história e o aplicou às questões mais relevan- tiam em sua autonomia e mesmo em
Tema de Capa
tem dessas ofertas inesperadas, Para tes e aos problemas mais delicados, sua superioridade nas relações com as
se construir um plano autêntico e viá- herdados de um passado de conflitos nações com que estava em litígio.
vel de educação ética da humanidade, mal resolvidos e hoje relacionados Essa compreensão parcial, até
temos o bom começo. Basta acolher com desafios atuais, imensamente então apenas conotada em sua dimen-
e realizar o projeto abrangente e pro- acrescidos. O Concílio pede criativida- são ética e por vezes obscurecida no
fundo, sem dúvida, único na história de para tornar viáveis as soluções que contexto e no teor, seja de uma moral
da cultura, a pedagogia da liberdade e não se podem adiar com o risco de penitencial, seja de uma eclesiologia
da autonomia de Paulo Freire7. suicídio da civilização, senão da huma- polêmica, agora, na Constituição Gau-
Como acontece a toda mensa- nidade. Nesse paradigma conciliar da dium et spes, vem superada pela elabo-
gem profética, a pedagogia desse derradeira esperança se integraram ração ampla e profunda de uma ética
Mestre se revela de uma atualidade e harmonizaram os valores cristãos, dos valores. A Igreja se vê enriquecida
mais urgente com o avanço da mo- mais ou menos articulados até então com uma ética da autonomia, desdo-
dernidade que ele visava enfrentar, à prática e à doutrina da cristandade. brando-se qual ética da consciência, da
decifrando-a em seus elementos po- O Vaticano II propõe a total abrangên- inteligência e da liberdade, da respon-
sitivos e negativos de humanidade. cia dos valores em sua dimensão hu- sabilidade e da solidariedade. É uma
Há importantes elementos de con- mana e sua inspiração evangélica. ética pessoal e social, de conteúdo es-
vergência profunda neste acordar da A consciência recebe um relevo sencialmente humano, e toda ela ele-
consciência da humanidade, na car- todo especial na ética fundamental vada pela inspiração evangélica.
tilha de ética política da ONU, hoje que o Concílio propõe logo no limiar Ela abrangerá os domínios dos
da Constituição Gaudium et Spes (cf. modernos sistemas familiares, cultu-
em parte doutrinalmente prolongada
Constituição citada, n.16). A tradicio- rais, econômicos, políticos, jurídicos
pela Unesco, na Suma teologal e hu-
nal teologia moral, destinada a servir e comunicacionais, atendendo às re-
mana do Vaticano II, também apenas
de guia aos confessores na adminis- lações internacionais e aos espinho-
em parte acolhido pela Igreja, e na
tração do sacramento da penitência, sos problemas da guerra e da paz, e
mensagem e no projeto pedagógico
era fundamentalmente marcada por mesmo de uma organização e de um
de Paulo Freire, que oferecem um ca-
um aspecto legalista. A consciência governo mundiais. Tal é a vasta e bem
minho de viabilidade para um destino
era encarada como a instância de dis- elaborada ética especial contida nos
ético e cultural da humanidade.
cernimento do lícito e do interdito. cinco últimos capítulos que encerram
Ativavam-se considerações sobre os a Constituição Gaudium et spes e todo
IHU On-Line – Qual é a concep- mandamentos e os pecados, sobre as o labor do Concílio.
ção do Concílio Vaticano II sobre cons- formas e os graus de culpabilidade e
ciência e autonomia, e como estas es- os caminhos de uma nova vida. Ética cristã e ética secular
tão relacionadas com a fé cristã? O Vaticano II alarga e aprofunda Essa visão abrangente da ética
Carlos Josaphat – O Vaticano II a visão humana e evangélica da cons- fundamental e especial de Vaticano II
elaborou um novo paradigma da ética ciência, com o intento de fazer dela o está na base da doutrina original que
instrumento apropriado, não apenas ele se empenhou em confiar à Igreja e
A primeira parte é mais doutrinária, e a
segunda é fundamentalmente pastoral.
da orientação da vida cristã, mas mui- por ela à humanidade. O tema é abor-
Sobre a Gaudium et spes, confira o nº 124 to especialmente um ponto de encon- dado em várias passagens da Consti-
da IHU On-Line, de 22-11-2004, sobre tro entre os diferentes protagonistas tuição Gaudium et spes e já na Consti-
os 40 anos da Lumen Gentium, disponí-
vel em http://bit.ly/9lFZTk, intitulada A
da ética cristã ou simplesmente hu- tuição Lumen gentium. Três aspectos
igreja: 40 anos de Lúmen Gentium. (Nota mana. Era uma grande novidade esse relevantes são esclarecidos:
da IHU On-Line) pequeno tratado da consciência para – A dimensão de base que vem
7 Paulo Freire (1921-1997): educador
brasileiro. Como diretor do Serviço de
o qual colaboraram mestres eminen- a ser a autonomia do sujeito ético, na
tes da teologia moral, em boa hora qual a ética emerge como a conver-
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Extensão Cultural da Universidade de Re-


cife, obteve sucesso em programas de al- chamados para assessorar os Padres gência dos valores da consciência, da
fabetização, depois adotados pelo gover-
no federal (1963). Esteve exilado entre conciliares. responsabilidade e da solidariedade.
1964 e 1971 e fundou o Instituto de Ação – A dimensão teológica: a autono-
Cultural em Genebra, Suíça. Foi também Ética da autonomia mia vem de Deus e se exerce em relação
professor da Unicamp (1979) e secretário
de Educação da prefeitura de São Paulo O tema da autonomia constitui a Deus, o que traduz uma compreensão
(1989-1993). No II Ciclo de Estudos sobre uma novidade total em relação ao evangélica da graça que não suprime
o Brasil, do dia 30-09-2004, o professor ensino eclesiástico anterior e poste- nem diminui, mas mantem ativa e visa
Dr. Danilo Streck, do PPG em Educação
da Unisinos, apresentou o livro A Pedago- rior ao Concílio. Estava, sem dúvida aperfeiçoar a liberdade da criatura.
gia do Oprimido, de Paulo Freire. Sobre implicado, nas noções e práticas da – A autonomia em sua dimensão
a obra, publicamos um artigo de autoria moral católica pré-conciliar. Foi muito objetiva, caracterizando a consistên-
do professor Danilo na 117ª edição, de
27-09-2004. Confira, ainda, a edição 223 desenvolvida, não sob o ângulo ético, cia e a originalidade dos domínios
da revista IHU On-Line, de 11-06-2007, mas apologético nas controvérsias abordados pelo sujeito ético: a auto-
intitulada Paulo Freire. Pedagogo da es- eclesiológicas, desde o século XIV ao nomia da política, da economia, da
perança, disponível para download em
http://migre.me/2peDT. (Nota da IHU século XIX. Nelas, as autoridades e os sexualidade, das realidades terrestres
On-Line) teólogos defensores da Igreja insis- e do mundo profano. Assim a ética

30 SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 | EDIÇÃO 417


cristã reconhece e assume uma ética Carlos Josaphat – Esses desafios amor e de comunhão à semelhança e

Tema de Capa
humana secular, exigindo um saber cresceram pelo fato de o Concílio ter em união com Deus, Amor universal.
científico e técnico, sobretudo em do- contribuído para abrir os olhos e agu-
mínios delicados de ecologia, de bioé- çar as aspirações dos fiéis, ao passo Príncipes, hierarcas e nobiliar-
tica, de biotecnologia. que as autoridades pós-conciliares cas da igreja
buscaram antes acalmar os desassos- Dessa situação desastrosa, am-
IHU On-Line – Qual é a atualida- segos do que incentivar em toda a pla e profundamente respeitada, deri-
de das concepções do Concílio Vatica- Igreja a busca e a prática de soluções. va uma dezena de desafios, sejam eles
no II 50 anos depois de seu advento? Vários problemas da maior relevân- incrustados no sistema de governo e
Carlos Josaphat – Sem pretender cia receberam uma resposta vinda nos ministérios da Igreja, ou venham
definir dogmas, menos ainda conde- do alto, do centro da Igreja, sem que difundidos nas reações e no dia a dia
nar heresias, como os dois Concílios os fiéis tenham sido informados nem dos fiéis. Não cabe aqui discriminar
anteriores, o Vaticano II propõe uma mesmo dos processos seguidos. Os e analisar esse feixe de desafios. Eles
visão doutrinal autêntica e indicações problemas continuando sem solução fazem corpo com o modelo clerical
práticas, muitas delas em relação com se agravam com as mudanças dentro e dos ministros ordenados, incluindo
uma análise da atualidade da Igreja ou fora da Igreja. Muitos deles passam a um dever de celibato ligado neces-
do mundo. Pode-se assim distinguir um sariamente ao sacerdócio na Igreja
ser considerados como tabus. São ob-
paradigma doutrinal: uma visão teoló- ocidental. Acrescente-se a incapaci-
jetos de intervenções da autoridade
dade de rever um passado marcado
gica, eclesiológica, antropológica, ética, suprema da Igreja que edita um pre-
de preconceitos no que toca o sacer-
de valor perene. E por outro lado des- ceito ou um interdito, sem suscitar ou
dócio das mulheres. É também muito
tacar modelos de atitudes e comporta- preparar uma resposta de convicção,
profunda a crise de todo um sistema
mentos, levando em conta as situações que interiorize o mandamento legal,
penitencial pouco animado pela mise-
consideradas pelo Concílio como carac- nos fiéis para isso mais amadurecidos
ricórdia e sem condições de oferecer
terísticas dos tempos atuais. em sua autonomia e sua consciência
modelos operacionais de reconcilia-
No entanto não se vê que haja de- mais bem informada e formada, de-
ção para a humanidade dilacerada.
cisões ligadas particularmente à época pois do advento do Concílio.
Seria necessário ter a coragem
do Concílio e que tenham perdido sua Ficou acima assinalado que o Vati- ou o humor de tomar certa distância
atualidade. Assim, muito foi prescrito cano II pôs em grande relevo o valor da e olhar para a hierarquia, para o siste-
ou recomendado, e não foi aplicado autonomia em seus diferentes aspec- ma de vida e de promoção da carreira
quanto à necessidade da reforma da tos. Era uma novidade total no magis- eclesiástica, tendo sempre nas mãos
Cúria Romana, da colegialidade episco- tério da Igreja. Na etapa pós-conciliar, o Evangelho na sua simplicidade, na
pal no conjunto da Igreja, da formação a noção de autonomia se eclipsou no ética, na espiritualidade e no amor
dos fiéis para a prática da liturgia, do magistério oficial da Igreja. O Catecis- gratuito que ele proclama. O sistema
ecumenismo, da participação dos fiéis mo da Igreja Católica, tentando sinte- atual de príncipes da Igreja, de hie-
na evangelização. O que não foi aplica- tizar e atualizar a ética conciliar, nem rarcas ou nobiliarcas tinha talvez seu
do, não perdeu a atualidade, mas se menciona o termo autonomia nem sentido no regime feudal, embora já
tornou mais urgente. Este parece um desenvolve a doutrina corresponden- escandalizasse uma boa parte do po-
dos significados da renúncia de Bento te. Por ocasião da sugestão de introdu- bre povo marginalizado. É claro que
XVI. Ele se viu e se declarou “fragiliza- zir o tema na parte do Catecismo que a pós-modernidade tem certo gosto
do”, quando as exigências de reforma corresponde à ética fundamental do pela teatralidade, pelo espetáculo em
se tornaram mais prementes. Concílio, foi explicado a teólogos inte- toda parte, inclusive no sagrado. Mas
Sob o ângulo político e social, o ressados que a exclusão vinha de uma não dá para tomar a sério o que se
mundo dos anos do pós-guerra era orientação do “alto”. aprecia e se vende como turismo reli-
bem marcado pelo antagonismo geral Esse pormenor introduz a uma gioso, mais ou menos lucrativo.
dos dois blocos, capitalista e comunis-
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das fontes dos desafios. É certa alergia O Papa Francisco vem convidan-
ta, pelo acúmulo de produção de ar- reinante em relação a um paradigma do a Igreja a fazer confiança, a apostar
mas e multiplicação de guerras locais. de moral que valorize o sujeito ético totalmente no Evangelho. O essencial
O Vaticano II tem em vista essa situa- no que ele é e em suas qualidades de dessa atitude está não em jogar pedra
ção dramática. Mas sua mensagem, as base. Parece mais seguro que o fiel e denunciar esses apegos a um passa-
fortes determinações que estabelece seja caracterizado como quem obe- do que não é portador de verdadeiras
não são menos atuais com a concen- dece, dobrando-se em uma hetero- tradições, quando nos transmite modas
tração do mundo em só bloco, econo- nomia sacralizada. Essa situação de medievais. A exigência radical e crucial
mista e consumista. São tanto ou mais escravidão, e não de filiação divina, (em referência a Cruz de Cristo) está em
atuais hoje do que em 1965, quando dentro de uma aliança fundada na in- que todos, clérigos e leigos, assumam a
se encerrou esse Concílio. timidade da graça, foi ocasionada por autonomia, as indicações éticas de uma
um longo processo de identificação do consciência racional e evangélica, no
IHU On-Line – Quais são os poder absoluto com o poder divino na amor responsável, na inteligência a ser-
maiores desafios vividos pela Igre- Igreja. Esse processo falho só foi posto viço do amor para iniciar o longo pro-
ja hoje, em termos de autonomia e em plena luz no Concílio Vaticano II. cesso de conversão, de aggiornamento
consciência de seus fiéis e clero? Ele definiu a Igreja como o mistério de evangélico da Igreja.

EDIÇÃO 417 | SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 31


IHU On-Line – Em que aspectos gia da autonomia, a mensagem evan- dezenas de anos, ficaram sem se apli-
Tema de Capa
a autonomia e a consciência podem gélica, desprendida também de suas car, sobretudo no que dizia respeito
oferecer subsídios para um agir mo- limitações históricas, não poderia às autoridades e prerrogativas eclesi-
ral que esteja comprometido com o hoje propor e proporcionar um novo ásticas. Essa recordação nada tem de
Reino de Deus, em termos teológi- paradigma, original pela sua maior va- escusa, mas há de ser apelo à respon-
cos, e com o Reino dos Fins, em ter- lorização da autonomia, e pela maior sabilidade, uma vez que semelhantes
mos filosóficos (kantianos)? insistência na afirmação da densidade omissões têm hoje efeitos mais graves
Carlos Josaphat – A questão ante- histórica do Reino, sem atenuar-lhe a em um mundo em evolução acelerada.
rior já inspirou certa antecipação da res- transcendência para além da história? O Vaticano II não se caracteriza pelo
posta a essa nova formulação dos desa- Assim, o paradigma do Reino pode- elenco de umas tantas medidas na vida
fios ou do desafio global para uma ética ria hoje se realizar em uma perfeição dos fiéis ou das comunidades. Ele exi-
da autonomia e da consciência. Em uma superior aos modelos efetuados pela ge a conversão da Igreja. Começa por
primeira aproximação, bem se poderia cristandade, menos sensível no passa- uma nova visão da Igreja, da humani-
sintetizar o modelo ético ou os modelos do ao valor primordial da autonomia e dade, de todos os problemas éticos e
éticos com que a tradição se afirma na de uma subjetividade adequada. espirituais. Propõe uma eclesiologia
Igreja dos tempos modernos se apre- O imperativo bíblico do “amarás” teocêntrica. Neste paradigma teologal,
senta como sistema objetivo e rigoroso. de maneira total e perfeita assumiria a predomina a compreensão evangélica
Elaboram-se códigos de mandamentos ética da liberdade, da inteligência, da de Deus, de Deus Amor universal que
e dos pecados que lhes são opostos, vontade boa que aceita identificar-se se deu inaugurando a total doação da
bem como se sugerem formas da peni- com o bem humano, absoluto e univer- humanidade ao seu Criador. A visão de
tência que deve animar a vida cristã. Em sal. Longe de excluir o que a pós-mo- um Deus poderoso inspirou e fortale-
contraste com esse modelo, e por vezes dernidade mais preza: a afetividade ceu o modelo de uma igreja do poder
criticando-o, a atitude que caracteriza a erótica, o prazer intenso e partilhado, absoluto sacralizado.
modernidade e mais ainda a pós-mo- a conjunção harmoniosa do útil e do A volta evangélica à contempla-
dernidade enaltece o sujeito que busca agradável, – a ética do Reino de Deus ção e ao culto de Deus Amor foi a op-
em si a autenticidade, em uma ética dos não poderia acolher e abençoar como ção do Concílio Vaticano II para propor
valores subjetivos: de razão, expressão centro de sua mensagem o sabor e a e viabilizar o paradigma de uma Igreja
corrente da consciência tradicional, de alegria de viver e de conviver? da comunhão, da participação, do diá-
liberdade e de autonomia. A interroga- A oportunidade aí está: superan- logo, da colegialidade, do ecumenismo
ção vem espontânea: não seria viável do o primeiro atrativo do egocentrismo entre cristãos e com todas as religiões.
uma ética moderna integral, em que, como fonte de felicidade e de autenti- É uma Igreja de serviço à humanidade
com lucidez e firmeza façam aliança os cidade, a pós-modernidade poderá e de compromisso com uma civilização
dois aspectos, dissociados, na história abrir a porta à esperança cristã, à ética de solidariedade e de paz. Na sua au-
cultural do Ocidente, a subjetividade e e à espiritualidade do Reino, que exalta tonomia e na sua consciência, fiéis e
a objetividade? e harmoniza a santidade e a felicidade, pastores, por ocasião do jubileu conci-
O “Reino de Deus”, sobretudo de que o mesmo Deus é o modelo e a liar, hão de se sentir suave e irresistivel-
aproximado da expressão ética do Fonte para as suas criaturas que creem mente intimados a assumir o Vaticano
“Reino dos fins” dá uma atualidade in- e apostam no seu Amor. II como o carisma comunitário levando
tensa, quase se diria incandescente, ao toda a Igreja ao encontro com a huma-
desafio ético na Igreja e na sociedade, IHU On-Line – Gostaria de nidade pós-moderna.
envolvidas no contexto provocante da acrescentar algum aspecto não
pós-modernidade. No que ela tem de
mais original a pós-modernidade leva
questionado?
Carlos Josaphat – Creio da maior
Leia mais...
ao extremo as tendências da moderni- relevância para a Igreja e para huma-
Frei Carlos Josaphat já concedeu
dade desde a Renascença. A exaltação
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nidade celebrar com todo realismo os


outras entrevistas à IHU On-Line.
exclusiva da autonomia coincide com a cinco anos do jubileu conciliar. Ano da
atribuição do absoluto ao sujeito que fé, comemoração do Catecismo da Igre- Confira:
transfere essa prerrogativa à sua razão, ja Católica devem ser meios de valori- • “Pacem in Terris”. Os 50 anos de uma
à sua livre escolha e à sua existência zar o conjunto do Concilio e a coragem encíclica e a dimensão social do Evan-
transfigurada pelas suas experiências de por às claras o que não foi aplicado. gelho. Notícias do Dia 24-04-2013,
de felicidade e autenticidade. Nesta Bem se sabe que decisões do Concílio disponível em http://bit.ly/10cLQYC
sua realização histórica esse modelo de Trento8 (1545-1563), por dezenas e
ético esvazia a exigência de opção pri- • O salto qualitativo de João XXIII: uma
mordial pelos fins, ou da busca total e 8 Concílio de Trento: realizado de 1545 síntese da ética social. Edição 360 da
exclusiva do Reino de Deus. a 1563, foi o 19º concílio ecumênico. revista IHU On-Line, de 09-05-2011,
Foi convocado pelo Papa Paulo III para
assegurar a unidade da fé (sagrada disponível em http://bit.ly/kylGkb
Paradigma do Reino escritura histórica) e a disciplina
Reconhecendo como valores eclesiástica, no contexto da Reforma
da Igreja Católica e a reação à divisão
eminentes a consciência, a inteligên- então vivida na Europa devido à denominado como Concílio da Contra-
cia, a liberdade sintetizadas na siner- Reforma Protestante, razão pela qual é Reforma. (Nota da IHU On-Line)

32 SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 | EDIÇÃO 417


A autonomia em lugar da

Tema de Capa
eudaimonia: a novidade da
filosofia moral kantiana
Substituindo o antigo princípio material aristotélico, o filósofo de Könnigsberg
deu um novo significado ao termo autonomia, explica Rejane Schaefer Kalsing.
Elaborar uma filosofia moral pura, depurada de todo o empírico, constituía o
empreendimento kantiano

Por Márcia Junges

D
e acordo com a filósofa Rejane Scha- tonomia, enquanto um agir categórico, não
efer Kalsing, o intuito de Kant com motivado por resultados, sempre supera – ou
seu empreendimento moral “foi o de deve sempre superar – a heteronomia”.
elaborar filosofia moral pura, ou seja, com- Rejane Schaefer Kalsing é licenciada em
pletamente depurada de todo o empírico”. E Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas
acrescenta: “Kant deu um novo significado ao – UFPEL, mestre em Filosofia pela Unisinos
termo autonomia, pois originalmente este se com a dissertação A dimensão da socialidade
empregava no sentido político para significar na Ética kantiana e sua recepção na obra Prin-
a ‘independência ou a autodeterminação de cípios da Filosofia do Direito de Hegel e dou-
um Estado’”. Uma das grandes novidades des- tora em Filosofia pela Universidade Federal
se pensador foi “ter desenvolvido uma filoso- de Santa Catarina – UFSC com a tese Sociabi-
fia moral fundada no princípio formal da au- lidade legal: uma ligação entre sociabilidade
tonomia, em substituição ao antigo princípio e direito em Kant. É professora no Instituto
material da eudaimonia”. Assim, a autonomia Federal Catarinense, em Santa Rosa do Sul,
designa uma “universal autodeterminação Santa Catarina.
racional”. Conforme Rejane, “para Kant, a au- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Para Kant, a auto- filosofia que se baseia em princípios cínio, Kant pergunta se não “é da mais
nomia sempre supera a heteronomia da experiência e a que se baseia em extrema necessidade elaborar um
enquanto um agir categórico, não princípios a priori, respectivamente. dia uma pura filosofia moral que seja
motivado por resultados. Como po- Isso vale, por conseguinte, também completamente depurada de tudo
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demos compreender essas concep- para a ética. Assim, ela é dividida em o que possa ser somente empírico”
ções à luz do seu pensamento? duas partes. A parte empírica é deno- (KANT, 1997, p. 15). É que, a seu ver,
Rejane Schaefer Kalsing – Para minada de Antropologia prática e a para uma lei ter valor moral, ou seja,
tentar responder a esta questão, pa- pura é a Moral propriamente dita. Tal para uma lei valer como fundamento
rece pertinente começar por introdu- coisa é afirmada no Prefácio de uma de uma obrigação, ela tem de ter em
zir brevemente algumas concepções si necessidade absoluta e, dessa for-
de suas obras capitais sobre filosofia
de Kant e, por outro lado, refletir ma, a filosofia moral tem de ser pura,
moral, a saber, a Fundamentação da
sobre qual pode ter sido a intenção livre de todo o empírico, pois só assim
metafísica dos costumes1 (FMC), obra
deste pensador com a ética ou filo- poderia ter necessidade absoluta. Do
que tomaremos por base para res-
sofia moral para, daí então, procurar contrário, seria uma necessidade rela-
compreender tais concepções à luz ponder às questões da presente en- tiva porque referente ao ser humano
do seu pensamento. Nesse sentido, trevista. Na continuidade desse racio- no mundo, o que, para ele, não cabe
é preciso ter em mente, em primeiro para a filosofia moral. Para tanto, bus-
1 Utilizarei FMC para designar a obra
lugar, a sua distinção entre filosofia Fundamentação da metafísica dos cos- cará o princípio da obrigação não na
empírica e filosofia pura, a saber, a tumes. (Nota da entrevistada) natureza do ser humano ou nas cir-

EDIÇÃO 417 | SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 33


cunstâncias do mundo em que este se
“Só a vontade, em lei universal da natureza”
Tema de Capa
encontra, mas sim de forma exclusiva (KANT, 1997, p. 59), a fórmula da lei da
nos conceitos da razão pura a priori
(KANT, 1997, p. 15-16). determinação que natureza; “age de tal maneira que uses
a humanidade, tanto na tua pessoa

Fundamentação a priori parte do próprio como na pessoa de qualquer outro,


sempre e simultaneamente como fim
Por aí já se pode ter uma ideia e nunca simplesmente como meio”
do intuito de Kant com seu empreen- indivíduo, do (ibidem, p. 69), a fórmula do fim em si
dimento moral que, inicialmente, por mesmo; age “de tal maneira que a von-
assim dizer, foi o de elaborar filosofia próprio sujeito tade pela sua máxima se possa con-
moral pura, ou seja, completamen- siderar a si mesma ao mesmo tempo
te depurada de todo o empírico. Em – determinação, como legisladora universal” (ibidem,
segundo lugar, tem de se ter presen- p. 76), a fórmula da autonomia; age
te também que, apesar de a filosofia porém, racional “como se fosse sempre, pelas suas má-
moral para Kant não poder conter ximas, um membro legislador no reino
nada que diga respeito às circunstân- e universal – é universal dos fins” (ibidem, p. 82), a
cias do ser humano no mundo, a sua fórmula do reino dos fins.
aplicação, porém, se dirige a ele. Por
suas palavras, “toda a Filosofia mo-
que pode ser Princípio da autonomia
ral assenta inteiramente na sua parte
pura, e, aplicada ao homem, não re-
considerada como Tentei apresentar brevemente
algumas concepções da filosofia kan-
cebe um mínimo que seja do conhe-
cimento do homem (Antropologia),
princípio supremo tiana para, a partir daí, procurar ana-
lisar como “para Kant, a autonomia,
mas fornece-lhe como ser racional
leis a priori” (KANT, 1997, p. 16). Por-
do dever” enquanto um agir categórico, não mo-
tivado por resultados, sempre supera
tanto, para Kant a filosofia moral não – ou pode superar – a heteronomia”,
pode se assentar no ser humano que pois, sem apresentar aquelas con-
aqui vive, pois, dessa forma, as suas se quer, o imperativo é hipotético. cepções entendo que não se “pode
leis não teriam em si necessidade No entanto, quando uma ação é boa compreender estas à luz do seu pen-
absoluta, requisito, digamos assim, em si, sem relação com qualquer ou- samento”. Partirei agora diretamente
para que elas possam ter valor moral tra finalidade, então o imperativo é para as concepções de autonomia e
e, assim, fundamentada a priori nos categórico. Em outras palavras, este de heteronomia.
conceitos da razão pura, pode forne- declara que a ação é necessária por O princípio da autonomia, já re-
cer esses princípios práticos aos seres si, pois ela não está condicionada a ferido acima, é a terceira formulação
humanos. A moral não se fundamenta alguma intenção a atingir, ele não do imperativo categórico. Segundo
nestes, mas se aplica a estes. Dirige- se relaciona com a matéria da ação este princípio todos os princípios do
-se a eles, porém sem estar assentada nem com o que dela deve resultar e agir que não possam subsistir com a
neles para poder ter necessidade ab- sim com a forma. Só esse imperativo, própria legislação universal da vonta-
soluta e assim valer para qualquer ser portanto, é que pode ser chamado de de são rejeitados. E esta não está sim-
racional, deste ou de outro planeta, imperativo da moralidade, pois só ele plesmente submetida à lei, mas sub-
como o próprio Kant diz. tem uma necessidade incondicionada metida de tal modo que tem de ser
(KANT, 1997, p. 52-53). O imperativo considerada também como legisla-
Formulações do imperativo categórico, porém, é apenas um úni- dora ela mesma – e somente por isso
categórico co, segundo as palavras de Kant, e que submetida à lei, porque aí ela pode se
é este: “age apenas segundo uma má- ver como autora dela própria (KANT,
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Dito isso, pode-se partir para ou-


tro aspecto fundamental da filosofia xima tal que possas ao mesmo tempo 1997, p. 72). Assim, se se olhar para
moral kantiana e que diz respeito ao querer que ela se torne lei universal” trás, sobre todos os esforços até agora
princípio supremo da moralidade, o (KANT, 1997, p. 59) (a denominada empreendidos para descobrir o prin-
qual Kant objetivou procurar e esta- fórmula da lei universal2). cípio da moralidade, não se deve se
belecer na FMC. Ele será denominado Deste derivam outras formula- admirar ao ver que todos tinham de
pelo filósofo de imperativo categórico. ções, a saber, “age como se a máxima necessariamente falhar, pensa Kant.
Como a razão não determina de forma da tua ação se devesse tornar, pela tua Pois se via o ser humano sujeito a leis,
infalível a nossa vontade, um princípio mas não se via que ele estava sujeito
prático representado por esta como 2 A Fórmula da lei universal é também de- só à sua própria legislação, embora
obrigante chama-se mandamento e a nominada de Fórmula I na classificação fei- esta deva ser universal, e que ele esta-
ta por PATON, 1971, p. 129. Já a Fórmula
fórmula deste denomina-se imperativo da lei da natureza, a chama de Fórmula va somente obrigado a agir conforme
(KANT, 1997, p. 48). Estes ordenam de Ia; a fórmula do fim em si mesmo, por sua a sua própria vontade, a qual tem de,
forma hipotética ou categórica. vez, é a Fórmula II, a fórmula da autono- ao mesmo tempo, se considerar como
mia é a Fórmula III e, por fim, a fórmula
Quando uma ação é boa enquan- do reino dos fins é Fórmula IIIa. (Nota da legisladora universal. É que, se conce-
to meio para qualquer outra coisa que entrevistada) bermos o ser humano simplesmente

34 SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 | EDIÇÃO 417


submetido à lei, mas não tendo esta
“Parece que a desconsidera os demais indivíduos

Tema de Capa
emanado da sua vontade, ela deveria em sua ação, individualista, portanto.
conter um interesse para estimulá-lo
ou constrangê-lo a segui-la. recepção de Coisa que, se lermos com mais aten-
ção, veremos que não é bem assim.
A sociabilidade, por sua vez, ou
Sendo assim, resultaria daí um
imperativo condicionado e, como tal, Hegel não condiz seja, a capacidade para a sociedade
que os seres humanos podem ter, li-
não poderia servir como mandamen-
to moral. Portanto, esse princípio, que exatamente com teralmente, é um aspecto em que me
Kant denominará de princípio da au- detive na tese. Aí sim procurei ver
tonomia, opõe-se a qualquer outro o que Kant quis em que sentido Kant explora em suas
que imputará à heteronomia (KANT, obras essa capacidade para a socieda-
1997, p. 74-75). Autonomia designa dizer” de na espécie humana. Ocupei-me,
então uma universal autodetermina- em especial, de algumas obras de sua
ção racional (ROHDEN3, 1981, p. 154 filosofia da história, filosofia do direito
e ROHDEN, 2008, p. 4), enquanto he- de autonomia em Kant enquanto um e estética, nas quais o filósofo aborda
teronomia, ao contrário, designa uma princípio prático, ou seja, um princípio o conceito de sociabilidade, procuran-
determinação estranha da vontade. E para o agir, e não um agir propriamen- do defender a tese de que sociabilida-
uma determinação estranha, a qual, te. E, assim, como princípio prático, é de legal é um conceito que liga os con-
justamente por isso, envolve algum a autonomia um imperativo categó- ceitos de direito e de sociabilidade em
interesse para executá-la, conforme rico, o que significa dizer que é um Kant, numa palavra, que o sentido do
há pouco explicado, não pode ser con- princípio incondicional, independente conceito sociabilidade usado por ele
siderada como mandamento moral, de quaisquer condições para ser reali- nas obras analisadas é o sentido da
segundo Kant. Só a determinação que zado, inclusive resultados. Sendo uma sociabilidade legal. Procurarei agora
parte do próprio indivíduo, do pró- autodeterminação racional e univer- explicitar como se apresenta a sociali-
prio sujeito – determinação, porém, sal, sempre supera, ou, pelo menos, dade nas fórmulas da autonomia e do
racional e universal – é que pode ser deve superar, a heteronomia, ou seja, reino dos fins de Kant, aspecto abor-
considerada como princípio supremo uma determinação estranha da vonta- dado em minha dissertação, como há
do dever. Somente um princípio que de. Enquanto um princípio que brota pouco referi. A fórmula da autonomia
não esteja ligado a algum interesse do próprio indivíduo sempre supera preceitua que se aja de maneira que a
ou condicionado a alguma intenção a outro que lhe seja estranho, ou que, vontade, ou seja, a razão prática, para
ao menos, possa ser tomado dessa Kant, através de seu princípio subjeti-
atingir ou vinculado a algum resultado
forma por não conter em si a raciona- vo do agir, possa se considerar como
a chegar, mas relacionado apenas com
lidade e a universalidade que a legisla- legisladora universal. Autonomia sig-
a forma, isto é, com a universalidade,
ção prática requer. nifica, portanto, uma universal auto-
numa palavra, somente um princípio
determinação racional, como já expus
que não esteja embasado em qual-
IHU On-Line – Como se apresen- na questão anterior. É, desse modo,
quer condição e, que, em função dis-
ta a socialidade nas fórmulas da au- um princípio que nasce do próprio
so, pode ser tido como incondicional,
tonomia e do reino dos fins de Kant? indivíduo, mais propriamente da sua
é que pode ser considerado, portanto,
Rejane Schaefer Kalsing – Uma razão, e que deve poder ser universa-
o imperativo da moralidade.
das diferenças entre socialidade e so- lizado. Podemos falar em socialidade
ciabilidade é que a primeira designa a ou dimensão social nessa fórmula?
Superação da heteronomia
dimensão social de algo, enquanto a
Sendo assim, pode-se concordar Sociabilidade e autonomia
outra significa a capacidade para a so-
que, para Kant, a autonomia, enquan- Ao propor que a vontade proce-
ciedade; o que pode parecer não ser
to um agir categórico, não motivado da, através de seu princípio subjetivo
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uma grande diferença. Tentarei dei-
por resultados, sempre supera – ou do agir, de modo a poder se conceber
xar mais clara essa distinção. Eu quis
deve sempre superar – a heterono- como legisladora universal, Kant está
acentuar, mostrar em minha disserta-
mia. Contudo, é mais adequado falar tomando em consideração a universa-
ção, por exemplo, a dimensão social
contida na ética kantiana, não me re- lidade das vontades, não só a universa-
3 Valério Rohden (1937-2010): filósofo
brasileiro, especialista em Kant. Gradua- ferindo à capacidade para a socieda- lidade do princípio subjetivo do agir em
do em Filosofia pela Universidade Federal de que os seres humanos possam ter. si. A universalidade do princípio é exigi-
do Rio Grande do Sul, onde também cur- A dimensão social dessa ética é um da no imperativo categórico, a denomi-
sou livre-docência, obteve pós-doutorado
pela Universidade de Münster, na Alema- aspecto muitas vezes não percebido, nada fórmula da lei universal, e depois
nha. Foi o tradutor das críticas kantianas e, em função disso, tido como inexis- na primeira formulação do mesmo, a
para a língua portuguesa, a saber: Crítica tente, o que possibilita interpretá-la fórmula da lei da natureza, já vistas na
da razão pura, Crítica da razão prática
e Crítica da faculdade do juízo. Confira como uma ética solipsista. Assim, uma questão anterior. A universalidade das
o artigo escrito por Álvaro Valls para a das críticas que a ética kantiana rece- vontades – ou a exigência de se levar
IHU On-Line por ocasião do falecimento be é a de se circunscrever ao indiví- em consideração a universalidade das
de Rohden: O Valério morreu, disponível
em http://bit.ly/bBfB8Z. (Nota da IHU duo, de limitar-se a ele, de exaltar um vontades – é, então, o acréscimo em
On-Line) indivíduo centrado em si mesmo, que relação às fórmulas anteriores. No

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princípio da autonomia, a vontade é afirma que “todas as máximas, para sagens em que critica, de forma mani-
Tema de Capa
apresentada não como uma vontade poderem ser válidas, devem ligar-se festa ou não, a questão da socialidade,
que legisla sozinha, de forma isolada, ou ajustar-se simultaneamente na di- objeto de estudo da dissertação.
mas sim como uma vontade que legisla reção de um possível reino dos fins” Passando diretamente para a in-
universalmente, quer dizer, em conjun- (2000, p. 186), ou seja, a possibilidade trodução da referida obra, Hegel nela
to com as demais vontades. Em outras da validade das máximas estaria na li- afirma que a vontade contém “a) a
palavras, a perspectiva da qual uma gação entre elas rumo a um possível infinitude sem limites da abstração
vontade deve partir para se dar leis é reino dos fins. O que apresenta, a seu absoluta ou da universalidade” (1998,
a perspectiva de todas as vontades to- ver, a exigência que “minhas máximas p. 101) e “b) o momento absoluto
madas universalmente. Temos de nos precisam ser conjuntamente universa- da finitude ou da particularização do
propor regras para a ação desde um lizáveis” (idem). Dessa forma, “o impe- eu” (ibidem, p. 102). No entanto, “do
ponto de vista universal, ou seja, o de rativo categórico amplia minha cons- mesmo modo que o particular em
todos os legisladores, que são os seres ciência pela transformação de uma geral está contido no universal, este
racionais e, por conseguinte, os seres decisão de implicação marginal na di- segundo momento está já contido no
humanos4. Esse parece ser o enfoque reção de algo que concerne ao mundo primeiro” (idem). Assim, “c) a vonta-
de Kant no princípio da autonomia: não como um todo” (ibidem, p. 190). Ou de é a unidade desses dois momen-
apenas agir de forma que o princípio seja, as decisões individuais passam tos; – ela é a particularidade refletida
desta ação possa ser universalizado, a ter uma concernência universal e em si e reconduzida à universalidade
mas, além disso, agir como se fosse um não somente individual, ao menos – singularidade [...]” (ibidem, p. 103).
legislador universal. Se for assim, esse a consciência é ampliada porque se Dito isso, declara que Kant e Fichte
princípio possui, portanto, uma dimen- transforma uma decisão que tem uma distinguiram esses dois momentos no
são social, a socialidade está presente implicação particular em algo que diz sentido de separá-los, porém não se
aí. Pois, além de exigir a universalidade respeito ao todo. Seguindo um pou- detém na exposição de Kant, e sim na
do princípio subjetivo do agir – exigên- co o texto de Kant, ele assevera que a de Fichte (HEGEL, 1998, p. 103), infe-
cia que perpassa todas as formulações dignidade de todo o ser racional e, por lizmente. Ora, o que procurei mostrar
do imperativo categórico, pois este é conseguinte, de todo o ser humano, a foi justamente o contrário na questão
um só, como já expus na questão an- qual significa não ter ele um valor rela- anterior. Relembrando, por exemplo, a
terior –, o princípio da autonomia exige tivo, “tem como consequência o haver respeito da fórmula do reino dos fins,
também a consideração da universali- de tomar sempre as suas máximas do que a consequência da dignidade do
dade das vontades, ou seja, devem-se ponto de vista de si mesmo e ao mes- ser humano é que ele tem de conside-
levar também em consideração todos mo tempo do ponto de vista de todos rar sempre os seus princípios da ação
os demais, os quais também são legis- os outros seres racionais como legisla- das perspectivas individual e universal
ladores. Para mim, é dessa forma que dores” (KANT, 1997, p. 82). simultaneamente. A ação individual,
se apresenta a socialidade na fórmula Aí está dito com todas as letras e o seu princípio, deve levar sempre
da autonomia. que se devem tomar os princípios da em consideração o universal, pois ela
ação sempre das perspectivas indivi- concerne ao todo. É um particular que
Perspectivas simultâneas dual e universal simultaneamente. Ou se refere ao universal, o constitui, só
seja, não basta considerar apenas a tem sentido com ele; universal que, no
Passemos agora para a fórmula
própria perspectiva no agir, é preciso caso de Kant, é o reino dos fins, isto
do reino dos fins. Segundo Kant, na
ao mesmo tempo considerar a pers- é, o reino dos seres racionais, o qual,
FMC, o conceito de vontade legislado-
pectiva de todos os outros seres ra- por sua vez, não deixa também de
ra universal leva a outro, o de um rei-
cionais como legisladores, no caso, de estar contido no particular, pois tan-
no dos fins, que é “uma ligação siste-
todos os outros seres humanos. Isso to os seres racionais quanto o reino
mática de seres racionais por meio de
é tomar em consideração o aspecto dos fins só são compreendidos com
leis objetivas comuns” (KANT, 1997,
social. e em função do outro. Na fórmula
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p. 76), ou seja, uma união que se dá


da autonomia, como vimos, além da
através dos princípios da ação de seres
IHU On-Line – Qual é a recepção exigência da universalidade do princí-
que são fins em si mesmos. A fórmula
da ética kantiana na obra Princípios pio subjetivo do agir, há exigência da
reza propriamente age “como se fos-
da Filosofia do Direito de Hegel? universalidade das vontades. Assim,
se sempre, pelas suas máximas, um
Rejane Schaefer Kalsing – Hegel, a vontade individual é uma vontade
membro legislador no reino universal
como um dos filósofos imediatamente que legisla universalmente, já que
dos fins” (ibidem, p. 82). A respeito
posteriores a Kant, fez, como era de ela deve se colocar sempre na pers-
desse princípio, Thomas Pogge, em
se esperar, muitas críticas a seu pre- pectiva de uma vontade legisladora
seu artigo The Categorical Imperative, decessor. Grosso modo, pode-se dizer universal. Também aí é um particular
que a sua recepção é uma recepção que se refere ao universal, que con-
4 Adaptado de KALSING, Rejane M. Scha-
efer. A dimensão da socialidade na ética crítica. No capítulo da dissertação em cerne ao todo, todo que também só
kantiana e sua recepção na obra princípios que analiso a recepção da ética kantia- tem sentido com e pelas suas partes.
da filosofia do direito de Hegel. Disserta- na em sua obra Princípios da Filosofia Sendo assim, parece que a recepção
ção (mestrado). São Leopoldo: Centro de
Ciências Humanas, Universidade do Vale do do Direito, não analisei todas essas de Hegel não condiz exatamente com
Rio dos Sinos (UNISINOS), 2003. críticas, mas focalizei somente as pas- o que Kant quis dizer.

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IHU On-Line – Qual foi a grande
“Não basta p. 616) e, assim, a ação é orientada a

Tema de Capa
novidade da teoria moral de Kant em um fim, a uma finalidade, e, em função
relação àquela de Aristóteles e da fi-
losofia imediatamente anterior à do considerar disso, denomina-se esta ética de tele-
ológica. Já a ética kantiana, em que a
filósofo de Könnigsberg?
Rejane Schaefer Kalsing – Uma apenas a própria ação se fundamenta no dever – o qual
exprime o imperativo categórico, cha-
das grandes novidades foi, pelo me-
nos, ter desenvolvido uma filosofia perspectiva no ma-se ética deontológica, que, segun-
do Berten, Kant foi o primeiro filósofo
moral fundada no princípio formal da
autonomia, em substituição ao antigo agir, é preciso ao a defender explicitamente.

princípio material da eudaimonia (fe-


licidade em grego) (ROHDEN, 2008, mesmo tempo IHU On-Line – Como os filósofos
posteriores a Kant compreenderam
p. 1). Além disso, conforme assinala seu legado em termos morais?
Henry Allison, Kant deu um novo sig- considerar a Rejane Schaefer Kalsing – Kant
nificado ao termo autonomia, pois realizou uma verdadeira revolução em
originalmente este se empregava no perspectiva de termos morais, o que, justamente em
sentido político para significar a “inde- função disso, provocou reações diver-
pendência ou a autodeterminação de todos os outros sas, adversas; sem se levar em conta
um Estado”, utilizado ainda no século aqui as demais áreas da filosofia, nas
XVIII por Christian Wolff, por exemplo. seres racionais quais também realizou revoluções,
Porém, continua, “Rousseau, embora como na teoria do conhecimento, por
não tenha empregado esse termo, es- como legisladores, exemplo. Vale dizer que a filosofia mo-
teve na origem da ampliação do con- ral posterior a ele ou vai no sentido de
ceito de autonomia da esfera jurídico- no caso, de sua continuidade, ou no de sua crítica.
-política para o domínio moral, com Depois de Kant, se se quiser tratar de
sua definição da liberdade como ‘obe- todos os outros filosofia moral, é preciso abordá-lo.
diência à lei que nós prescrevemos’ Em vista das circunstâncias, aborda-
[Do contrato social, I, VIII].” É que, seres humanos. rei mais a título de ilustração e ape-
“na obra de Immanuel Kant, a concep- nas alguns dos filósofos posteriores
ção que Rousseau tinha de liberdade Isso é tomar em a ele. Fichte, por exemplo, faz uma
é interiorizada e assim transformada reconceitualização da autonomia ao
em autonomia da vontade” (CANTO- consideração o concebê-la não mais como condição
-SPERBER, 2003, p. 134-135). ou propriedade da vontade, como em
Kant compreende esta como “o aspecto social” Kant, mas sim como uma tarefa infini-
único princípio de todas as leis mo- ta, como algo que devemos procurar
rais e dos deveres conforme a elas” realizar para nos tornarmos plena-
(KANT, Crítica da razão prática, 2003, ruptura [...] em relação a toda tradi- mente autodeterminados (ALLISON in
p. 111). Único pois, com esse princí- ção que busca determinar um ‘bem’ CANTO-SPERBER, 2003, p. 138-139).
pio o ser humano está sujeito somen- exterior à vontade. O respeito pela lei Em relação ao “imperativo categó-
te à sua própria legislação, e, agindo deve prevalecer sobre qualquer con- rico sob a forma kantiana”, ele o rejeita
a partir de uma lei que ele próprio se sideração relativa ao bem-estar ou à por entender que “a fórmula kantiana é
dá, de maneira a se considerar como felicidade do agente moral ou das ou- vazia, incapaz de designar deveres de-
legislador universal, não precisa de tras pessoas. A vontade ocupa então o terminados” (ibidem, p. 139). Objeção
nenhum interesse para estimulá-lo ou lugar que o ‘desejo razoável’ ocupava que Hegel também fará e acrescenta-
constrangê-lo a agir, já que ela emana rá ainda que o imperativo categórico
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nas éticas de inspiração aristotélica.
da sua vontade (KANT, 1997, p. 75). Com efeito, o desejo compreende-se não constitui um critério que possa ser
Em vista disso, para uma ação ser con- por sua ‘finalidade’ ou seu ‘télos’, en- utilizado para verificar o caráter moral-
siderada moralmente boa, não pode quanto vontade é determinada por sua mente correto das ações (ALLISON in
ocorrer apenas conforme a lei, mas por relação com o dever ou a lei” (CANTO- CANTO-SPERBER, 2003, p. 140), entre
causa da lei, ou não apenas conforme -SPERBER, 2003, p. 407). O bem na fi- outras críticas. Schiller é um dos gran-
o dever, mas por dever, por respeito a losofia moral kantiana não é exterior des admiradores da filosofia moral de
ele, segundo a disposição (Gesinnung) à vontade, aliás, é a própria vontade Kant, sua grande influência. Dirige-lhe
(KANT, 2003, p. 248-249), pois, sendo e a ação que o princípio supremo da críticas, mas estas vão mais na direção
apenas conforme a lei, a motivação da moralidade ordena é boa em si e não da forma como Kant apresenta a sua
ação é externa, e, assim, se poderá fa- boa apenas com vistas a um télos. A teoria do que a esta propriamente,
lar no máximo em legalidade. felicidade em Aristóteles, por exemplo, pois seu intuito foi, em muitos momen-
pode ser entendida “como atividade, tos, “ir além da (ou até contra a) letra
Respeito à lei o fim mais digno de ser buscado, em de Kant, mas para melhor apreender e
A esse respeito, afirma André Ber- vista do qual todos os nossos atos são revelar verdadeiro espírito da filosofia
ten, que Kant opera “uma verdadeira realizados” (CANTO-SPERBER, 2003, kantiana” (SANTOS, 2012, p. 232).

EDIÇÃO 417 | SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 37


Os impasses do indivíduo como
Tema de Capa

fundamento do direito
Relações sociais deveriam determinar os direitos, observa Daniel Tourinho Peres ao
examinar o conceito kantiano de autonomia. Sem dúvida, há um nexo confuso entre
autonomia e individualismo, pondera

Por Márcia Junges

“C
om a modernidade, vivemos em tos são individuais e que, portanto, não são
uma sociedade de indivíduos. O determinados por relações sociais, não são
que isso quer dizer? Que a rela- determinações que derivam de uma prática
ção entre indivíduo e sociedade não conhe- intersubjetiva”.
ce as mediações tradicionais”. A análise é do Daniel Tourinho Peres é graduado em Fi-
filósofo Daniel Tourinho Peres na entrevista losofia pela Universidade Federal da Bahia
concedida por e-mail à IHU On-Line. Segun- – UFBA, mestre e doutor em Filosofia pela
do ele, “quando Kant considera que o direito Universidade de São Paulo – USP com a tese
está fundado na noção de autonomia, isso Lógica, metafísica e política em Kant – um es-
não significa que o fundamento do direito é o tudo sobre a faculdade de julgar prática. Le-
indivíduo autônomo. Ao proteger o indivíduo ciona na UFBA e é o autor de Kant: metafísica
a sociedade não está senão protegendo a si e política (Salvador: Edufba, 2004), além de
mesma”. E completa: “O que me parece mais organizador de Justiça, virtude e democracia
complicado é considerar que o indivíduo está (Salvador: Quarteto, 2006).
no fundamento do direito, que todos os direi- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que conexões há como vivemos em conjunto, ou como Kant pensava também a relação entre
entre a filosofia moral e a filosofia devemos viver em conjunto. Desse direito e política.
política kantiana? São concepções modo, se tomo moral na primeira
complementares? Por quê? acepção, posso considerar a relação Dimensão ideal
Daniel Tourinho Peres – Em entre moral e direito como de com- Kant define a política com a se-
Kant, encontramos dois sentidos para plementariedade; se tomo na segun- guinte fórmula: “doutrina do direito
o termo moral. Primeiramente, moral da acepção, devo considerar como aplicada”. Ou seja, a política não é a
tem o sentido de ética, isto é, daquele uma relação de subordinação. aplicação do direito, a aplicação da le-
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conjunto de leis internas da liberdade Nessa segunda acepção, em que gislação positiva. Na verdade, a política
que determinam o modo como con- pensamos o direito e a política como é a ação que tem por objetivo traduzir,
duzimos nossas vidas como sujeitos subordinadas à moral é que se encon- na forma do direito, uma pretensão ju-
autônomos que somos. Ainda que tais tra uma série de problemas e equívo- rídica, isto é, uma pretensão que ainda
leis ou regras comportem uma dimen- cos. O mais comum é justamente re- não é reconhecida como direito. Daí
são intersubjetiva, elas dizem respei- duzir a política, os conflitos políticos, a ela ter uma dimensão ideal, própria da
to, antes de tudo, a uma relação do questões éticas, ou, o que é ainda mais moral, e que se traduz, por exemplo,
sujeito para consigo mesmo. Já moral, grave, pensarmos que resolveremos na ideia de direitos humanos. Mas essa
em sentido amplo, incluiu o conjunto os nossos problemas políticos simples- dimensão ideal vai de par com um bru-
de todas as leis da liberdade, internas mente apelando para princípios éticos. tal realismo da parte de Kant, pois de-
e externas, ou seja, tanto éticas quan- Há uma subordinação do direito e da vemos a um só tempo reconhecer que
to jurídico-políticas. Assim, em senti- política em relação à moral, mas há estamos longe do ideal, mas também
do amplo as leis morais não apenas também certa independência. E para quais os passos que nos aproximam e
determinam o modo como determino que isso fique um pouco mais claro, te- nos distanciam dele, por menor que
minha vida; determina igualmente mos de prestar atenção ao modo como sejam aproximação ou distanciamento.

38 SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 | EDIÇÃO 417


IHU On-Line – É nessa medida soberania é um poder absoluto, não é dessa igualdade entre autonomia e

Tema de Capa
que sua filosofia da história, cujo fio kantiana, mas hobbesiana ou rousse- individualismo?
condutor é a ideia de direito, tem na auista. Para Kant não há democracia Daniel Tourinho Peres – O que
autonomia uma de suas bases? sem uma defesa e garantia forte de me parece mais complicado é consi-
Daniel Tourinho Peres – Sim. A direitos humanos capazes de proteger derar que o indivíduo está no funda-
filosofia da história é o modo como o indivíduo, e reconhecer igualmente mento do direito, que todos os direi-
Kant enfrenta a tensão entre o ideal a pluralidade de nossa vida em socie- tos são individuais e que, portanto,
e o real. A ideia de progresso, de uma dade. Parece-me que esse é talvez o não são determinados por relações
realização progressiva do ideal de ponto mais importante da filosofia sociais, não são determinações que
autonomia, permite que nosso juízo política de Kant: a resolução dos con- derivam de uma prática intersubjeti-
seja calibrado quanto a suas determi- flitos não passa por apagar as diferen- va. Aliás, essa dimensão intersubjetiva
nações, isto é, não julgamos mais de ças, muito pelo contrário. Daí que em está na origem até mesmo da moral
modo absoluto, mais circunstanciado, certa medida toda solução seja provi- em sentido mais restrito, ou ética. É
distinguindo aquilo que deve ser con- sória, isto é, pode ser revista e refeita um engano acreditarmos que a expe-
siderado como conquista permanente – ou melhor: deve ser revista. riência de pensamento que é repre-
e aquilo que é transitório. O direito, a sentada pelo imperativo categórico é
ideia do direito, deve ser considera- IHU On-Line – Acredita que haja uma experiência solipsista, que o indi-
da como uma conquista permanente uma confusão entre os conceitos de víduo, nessa experiência mesma, não
da humanidade. Em que sentido? No autonomia e individualismo? Até que esteja já aberto para o outro.
sentido de que os diversos agentes ponto o agir na pós-modernidade
devem se reconhecer na lei, devem tornou ambos sinônimos? IHU On-Line – Em que sentido a
reconhecer que a sua vontade em Daniel Tourinho Peres – Com concepção política de Kant nos aju-
alguma medida está representada na relação à pós-modernidade, confes- da a refletir e compreender as mu-
legislação. A questão está, então, em so que sempre tive enorme dificulda- danças no cenário político em nosso
que a filosofia da história deve ser crí- de em compreender do que se trata. tempo, quando fala-se em reinventar
tica das instituições e do direito posi- Agora, você tem razão ao chamar a a democracia?
tivo, mas não pode se perder em um atenção para uma possível confusão Daniel Tourinho Peres – O que
universalismo abstrato e vazio. entre autonomia e individualismo. significa reinventar a democracia?
Com a modernidade, vivemos em Meu temor é que muitas dessas
IHU On-Line – Nesse sentido, uma sociedade de indivíduos. O que reinvenções acabem justamente por
como sua filosofia moral perpassa a isso quer dizer? Que a relação entre se revelar muito pouco democráti-
ideia de paz perpétua e a democracia indivíduo e sociedade não conhe- cas. Kant viveu uma das experiências
a partir do ponto de vista kantiano? ce as mediações tradicionais. Num políticas mais ricas da humanidade:
Daniel Tourinho Peres – A re- certo sentido, o indivíduo se apre- a Revolução Francesa. Ele refletiu
lação de Kant com a democracia é senta mais autônomo, porque não tanto sobre a “Declaração dos direi-
complicada, quer dizer, o que hoje mais deve obediência ao conjunto tos do homem e do cidadão”, quanto
chamamos de um governo democrá- de regras que lhe era imposto pela sobre o Terror. Creio que suas refle-
tico, Kant chamava de governo repu- tradição, como em uma sociedade xões sobre o Terror, que encontra-
blicano. Isso nada tem a ver com estar marcada por um regime de castas ou mos esparsas aqui e ali por sua obra,
fundado em valores e virtudes repu- de corporações. Quando a Revolução ainda têm muito que nos dizer. Em
blicanas, mas sim um governo que é Francesa acaba com os privilégios, À paz perpétua, por exemplo, encon-
orientado pelo público, pela esfera acaba com os três Estados, o que tramos uma passagem em que Kant
pública. O governo não é o público – resulta daí é antes uma sociedade afirma que toda forma de governo
ou o povo, se vocês preferirem –, mas de indivíduos na qual a condição de que não seja representativa é uma
representa o público – ou o povo. A
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cidadão francês se afirma antes do não forma (de governo). O que isso
arte está justamente em dar unida- que qualquer condição. Quando Kant me parece querer dizer é que a po-
de a uma multiplicidade sem que a considera que o direito está fundado lítica deve se dar necessariamente
multiplicidade perca esse seu caráter na noção de autonomia, isso não sig- por representação; que a represen-
pluralidade. Ou seja, a multiplicida- nifica que o fundamento do direito é tação não é um “segundo melhor”,
de pode se representar como unida- o indivíduo autônomo. Ao proteger por impossibilidade empírica de um
de, mas sem ter que representar-se o indivíduo a sociedade não está se- exercício direito da política, mas que
como totalidade, como univocidade. não protegendo a si mesma. Além do é por assim dizer condição transcen-
Em À paz perpétua, Kant afirma que mais, não dá para reconhecer a fali- dental da política. Ou seja, me pare-
a democracia é necessariamente um bilidade da razão – que obviamente ce que o problema da representação
despotismo porque erra nessa me- conhece figuras monstruosas – e não política deve concentrar boa parte
diação. Mas então ele está pensando levar a sério a proteção de direitos de nossos esforços, sejam esforços
no exercício direto do poder sobera- individuais da pessoa. teóricos, pensando a representação
no, ou seja, em uma democracia não em todas as suas dimensões, sejam
representativa. A ideia normativa de IHU On-Line – De todo modo, práticos, criando mecanismos para
que o soberano pode tudo, de que a quais seriam as implicações políticas fortalecê-la.

EDIÇÃO 417 | SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 39


Tema
de
Capa

Destaques
da Semana
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IHU em
Revista
40 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000
Entrevista da semana

Destaques da Semana
O percurso filosófico de
Heidegger: caminho de
pensamento
Ao analisar o confronto do pensamento de Heidegger e Santo Agostinho, Maria
Manuela Brito Martins defende que o pensador alemão exige esforço constante de
leitura e releitura e que sua especulação é importante para o domínio da reflexão
filosófica, teológica e psicanalítica

Por Márcia Junges e Graziela Wolfart

“S
e atentarmos bem ao pensamento melhores intuições a este respeito. Porém, e
do filósofo (Heidegger), veremos apesar disso, Heidegger parece insistir numa
o quanto o pensamento de Agos- transição do pensamento escolástico para a
tinho foi importante e decisivo para a sua modernidade, extraindo deste último as con-
especulação, quer no período que precede sequências mais fulcrais para o seu próprio
a elaboração de Ser e Tempo, quer mesmo pensamento”, completa.
após a sua ‘virada’ metafísica”. Essa é a opi- Maria Manuela Brito Martins é professora
nião da professora portuguesa Maria Manue- na Universidade Católica Portuguesa – Polo
la Brito Martins, em entrevista concedida por do Porto. É doutora em Filosofia e Letras pela
e-mail à IHU On-Line. Para ela, relativamen- Universidade Católica de Lovaina, no Institute
te ao pensamento Antigo, Heidegger efetua Supérieur de Philosophie. É autora de, entre
uma “atualização” e reatualização do modo outros, Itinerário da mente para Deus. Uma
de refletir de diversos autores para o nosso leitura introdutória (Porto: Centro de Estudos
espaço temporal hodierno. “Quanto ao perío- Franciscanos, 2009); e A teologia da história
do medieval, também não deixa de utilizá-lo, de São Boaventura. Tradução da obra de J.
convocando-o aqui e acolá. O mais provável Ratzinger (Porto: Centro de Estudos Francis-
é que não o tenha feito de forma contínua, canos, 2010).
nem tenha desenvolvido algumas das suas Confira a entrevista.
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IHU On-Line – Qual é a impor- Mas, de fato, os mais de 80 volumes até


tância do neoplatonismo no pensa- o tempo (1927). A problemática heide-
agora editados, pela Martin Heidegger
mento de Heidegger? ggeriana é ampliada em Que é Metafí- Gesamtausgabe, não nos permite fazer
Maria Manuela Brito Martins – sica? (1929), Cartas sobre o humanismo tal avaliação. No entanto, podemos
(1947), Introdução à metafísica (1953).
Para responder a esta pergunta, com Sobre Heidegger, confira as edições 185,
toda a seriedade filosófica e intelec- de 19-06-2006, intitulada O século de desconstrução da metafísica, que pode
tual, seria necessário conhecermos, na Heidegger, disponível para download em ser acessado em http://migre.me/uNtL.
http://migre.me/uNtv, e 187, de 3-07- Confira, também, a entrevista concedida
íntegra, a obra de Martin Heidegger1. 2006, intitulada Ser e tempo. A descons- por Ernildo Stein à edição 328 da revista
trução da metafísica, que pode ser aces- IHU On-Line, de 10-05-2010, disponível
sado em http://migre.me/uNtC. Confi- em http://migre.me/FC8R, intitulada O
1 Martin Heidegger (1889-1976): filóso- ra, ainda, o nº 12 do Cadernos IHU Em biologismo radical de Nietzsche não pode
fo alemão. Sua obra máxima é O ser e Formação intitulado Martin Heidegger. A ser minimizado. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 417 | SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 41


acompanhar o ritmo do pensamento
“Os motivos tivermos uma melhor compreensão
Destaques da Semana
do autor, de forma a poder elucidar da obra integral de Heidegger, pode-
algumas das suas posições fundamen-
tais relativamente ao pensamento ne- neoplatônicos remos avaliar o caminho para onde o
filósofo aponta.
oplatônico, quer a partir da época de
Friburgo e Marburgo, quer já no seu augustinianos IHU On-Line – Em específico,
período metafísico e pós-metafísico.
De forma sucinta, podemos, di- e medievais que influência Agostinho exerce na
filosofia heideggeriana?
zer, portanto, que a apropriação hei-
deggeriana do neoplatonismo poderá poderão dar Maria Manuela Brito Martins
– Certamente exerce uma influên-
ser tida em três aspetos fundamen- cia importante e decisiva. Para isso,
tais: 1) O neoplatonismo tal como uma melhor bastará ler atentamente a obra Sein
Heidegger o entende, em particular, und Zeit para o perceber. O parágra-
nos seus cursos que datam do perío- compreensão fo 42 de Ser e Tempo é consagrado
do de Friburgo e Marburgo. Damos à questão do Cuidado (Sorge). Nes-
aqui alguns exemplos: no seu curso do pensamento te contexto, Heidegger explica a in-
sobre Filosofia Antiga (GA 22, 1926), terpretação fundamental do Dasein
Heidegger expõe o pensamento neo- do próprio enquanto Cuidado. Para isso, explica
platônico, nomeadamente plotiniano, que é num quadro de interpretação
quanto ao estatuto das categorias Heidegger” da antropologia agostiniana greco-
aristotélicas relativamente ao ser. Já -cristã, que ele a recoloca em direção
no seu curso sobre Os problemas fun- dos fundamentos essenciais da onto-
damentais da Fenomenologia (GA 24, Lutero4 etc. Relativamente a este as- logia aristotélica. Se atentarmos bem
1927), Heidegger retoma a questão pecto, surgiu um estudo que traba- ao pensamento do filósofo, veremos
fundamental do tempo em Plotino, lhou as fontes da mística medieval no o quanto o pensamento de Agosti-
permitindo-lhe assim avançar sobre a pensamento de Heidegger. 3) Por últi- nho foi importante e decisivo para
questão da temporalidade originária. mo, o alcance e/ou o desafio do pen- a sua especulação, quer no período
2) O neoplatonismo cristão, em par- samento neoplatônico relativamente que precede a elaboração de Ser e
ticular, aquele que é veiculado pela à tese de Heidegger sobre a história Tempo, quer mesmo após a sua “vi-
mística cristã, que, retrabalhando os do pensamento metafísico ociden- rada” metafísica.
motivos essenciais do neoplatonismo tal, quanto ao esquecimento do ser e
greco-latino e na sua articulação com quanto ao seu desnivelamento entre IHU On-Line – Em que sentido
as temáticas bíblicas fundamentais, se ser e ente. Sobre este último aspecto, a especulação neoplatônica augus-
encontram no Pseudo-Dionísio, Ber- têm surgido estudos que de forma es- tiniana é um dos elementos funda-
nardo de Claraval2, Mestre Eckhart3, parsa, quer cronologicamente falan- mentais no pensamento do filósofo
do, quer doutrinalmente, vão apon- alemão?
2 Bernardo de Claraval (1090-1153): tando para algumas achegas a este Maria Manuela Brito Martins –
conhecido também como São Bernardo,
era oriundo de uma família nobre de debate. Todavia, o diálogo está longe Em primeiro lugar, trata-se de com-
Fontaine-les-Dijon, perto de Dijon, na de ter terminado. Sobre este último preender a importância da especu-
Borgonha, França. Aos 22 anos foi estu- ponto, devemos notar que só quando lação neoplatônica no pensamento
dar teologia no mosteiro de Cister. Em
1115 fundou a abadia de Claraval, sen- do filósofo alemão e como este neo-
do o seu primeiro abade. Naquela épo- In agro dominico, através da qual o Papa platonismo se posiciona relativamen-
ca enfrentou inúmeras oposições, ape- João XXII condenou vinte e oito proposi-
sar disto, acabou reunindo mais de 700 ções do Mestre Eckhart. Das vinte e oito,
te ao legado essencialmente (ainda
monges. Fundou 163 mosteiros em vá- dezessete foram consideradas heréticas que não só) platônico-aristotélico.
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rios países da Europa. Durante sua vida e onze, escabrosas e temerárias. Entre Só partir daqui é que se poderá com-
monástica demonstrava grande fé em estas, estava a de que nos transformamos
Deus serviu à igreja católica apoiando as em Deus. Sua herança influenciou, entre preender a importância da especu-
autoridades eclesiásticas acima das pre- outros, significativamente, a Martinho lação neoplatônica augustiniana na
tensões dos monarcas. Em função disto Lutero. (Nota da IHU On-Line). reflexão heideggeriana. Em segundo
favoreceu a criação de ordens militares 4 Martinho Lutero (1483-1546): teólogo
e religiosas. Uma das mais famosas foi a alemão, considerado o pai espiritual da lugar, a especulação neoplatônica
ordem dos cavaleiros templários. (Nota Reforma Protestante. Foi o autor da pri- augustiniana insere-se no âmbito do
da IHU On-Line) meira tradução da Bíblia para o alemão. neoplatonismo medieval, retransmiti-
3 Maitre Eckhart (1260-1327): nasceu Além da qualidade da tradução, foi am-
em Hochheim, na Turíngia. Ingressando plamente divulgada em decorrência da do ao longo dos séculos, chegando à
no convento dos dominicanos de Erfurt, sua difusão por meio da imprensa, desen- época contemporânea. Desse modo,
estudou em Estrasburgo e em Colônia. volvida por Gutemberg em 1453. Sobre
Tornou-se mestre em Teologia e ensinou Lutero, confira a edição 280 da IHU On-
os motivos neoplatônicos augusti-
em Paris. Em sua obra, está muito pre- -Line, de 03-11-2008, intitulada Refor- nianos e medievais poderão dar uma
sente a unidade entre Deus e o homem, mador da Teologia, da igreja e criador da melhor compreensão do pensamento
entre o que consideramos sobrenatural língua alemã. O material está disponível
e o que achamos ser natural. Em 27 de para download em http://bit.ly/duDz1j. do próprio Heidegger, tendo em vista
março de 1329, foi dado ao público a bula (Nota da IHU On-Line) os resultados da leitura heideggeriana

42 SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 | EDIÇÃO 417


do pensamento filosófico ocidental.
“Os textos de mento de Heidegger exige um esforço

Destaques da Semana
Na verdade, esta mesma ideia está constante de leitura e releitura. A sua
patente claramente no texto Agosti-
nho e o neoplatonismo (GA60, 1921), Agostinho, como especulação é importante, quer para
o domínio da reflexão filosófica, quer
ou ainda noutros textos que não são
unicamente dedicados a Agostinho, referido acima, para o domínio da reflexão teológica.
Verifica-se ainda que, além destes
como o texto O significado da dou-
trina das categorias em Duns Escoto, são essenciais para dois domínios, um outro se lhe pode
acrescentar, como é o caso da psica-
de 1915, e ainda nas Interpretações
fenomenológicas de Aristóteles (GA a problemática da nálise. A atualidade da obra de Heide-
gger constitui para nós, de fato, algo
6, 1922), em Ontologia: hermenêuti- de fundamental. A sua obra trespas-
ca da facticidade (1923), Introdução temporalidade” sa o tempo. Por outro lado, Heideg-
à investigação fenomenológica (GA ger dialoga com aqueles que foram e
17, 1923/24), e em textos posteriores, marcaram o caminho da especulação
como Sobre a essência do fundamen- que é um dos temas fundamentais filosófica ao longo dos tempos. Só por
to (1929) ou ainda no texto O que é a em Ser e Tempo. Todavia esta questão isso Heidegger não poderá deixar de
metafísica? (1929). será retomada posteriormente no pe- ser invocado. Relativamente ao pen-
ríodo metafísico de Heidegger. samento Antigo, Heidegger efetua
IHU On-Line – Em que obras essa uma “atualização” e reatualização do
característica se apresenta de manei- IHU On-Line – Em que aspectos modo de refletir desses autores para
ra mais destacada? os escritos de Agostinho são decisivos o nosso espaço temporal hodierno.
Maria Manuela Brito Martins – para as problemáticas da temporali- Quanto ao período medieval, também
Há dois textos fundamentais em que dade e da ontologia em Heidegger? não deixa de utilizá-lo, convocando-o
Heidegger se debate com o pensa- Maria Manuela Brito Martins aqui e acolá. O mais provável é que
mento de Agostinho: o primeiro é o – Os textos de Agostinho, como re- não o tenha feito de forma contínua,
curso dado por Heidegger em Fribur- ferido acima, são essenciais para a nem tenha desenvolvido algumas das
go no semestre de verão de 1921, inti- problemática da temporalidade. Mas suas melhores intuições a este respei-
tulado: Agostinho e o neoplatonismo. esta ideia não está patente somen- to. Porém e apesar disso, Heidegger
Nele Heidegger expõe, em particular, te em Heidegger, mas em Husserl, parece insistir numa transição do pen-
o livro X das Confissões apropriando- que ao escrever as “Lições para uma samento escolástico para a moderni-
-se de alguns dos temas centrais da consciência íntima do tempo”, cita o dade, extraindo deste último as con-
reflexão agostiniana, como sejam as doutor hiponense como sendo um sequências mais fulcrais para o seu
noções de Cura – Sorge – (Cuidado) dos maiores marcos do pensamento próprio pensamento.
e de tentatio, como determinações filosófico ocidental para o questiona-
antropológicas fundamentais. Ambos mento do tempo. Heidegger não faz IHU On-Line – Gostaria de
os conceitos serão determinados no mais do que prolongar esta linha de acrescentar algum aspecto não
âmbito da reflexão heideggeriana, no- pensamento. No parágrafo 81 de Ser questionado?
meadamente em Ser e Tempo. e Tempo, sobre a questão da “intra- Maria Manuela Brito Martins –
O segundo texto em que Heideg- temporalidade” e da “gênese vulgar O próprio Heidegger afirma sobre o
ger expõe isoladamente o pensamen- do tempo”, Agostinho é convocado de seu percurso filosófico que este é um
to de Agostinho é uma conferência forma decisiva para a sua compreen- caminho de pensamento (Denkweg).
dada, em 1930, no mosteiro de Beu- são do tempo. Todavia, num texto de Nesse sentido, o “filósofo profissio-
ron. Essa conferência, ainda inédita, 1928, Heidegger não deixa de aludir nal” trilha caminhos que são neces-
mas estando já projetada no plano de às reflexões clássicas sobre o tem- sários desbravar e prolongar. A nosso
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publicação da Gesamtausgabe, anali- po: Aristóteles, Plotino, Agostinho, ver, há ainda o trabalho de recupe-
sa a concepção agostiniana de tempo, Kant, Hegel, Bergson e Husserl, que ração dos textos de Agostinho que
no livro XI das Confissões, confrontan- são determinantes para o esclareci- Heidegger convoca ao longo das suas
do-a com a concepção aristotélica no mento da questão da transcendência obras. Este trabalho não está feito ain-
livro da Física, e de seguida apontan- e da temporalidade enquanto nihil da. Além disso, não será este o único
do para a concepção kantiana. originarium. e maior trabalho a fazer, mas sim o de
Lembremos ainda o texto de conseguir obter certa compreensão
1924 sobre O conceito de tempo, IHU On-Line – Qual é a atualida- global dos motivos augustinianos no
onde Heidegger utiliza o pensamento de da obra de Heidegger no contexto centro da especulação heideggeria-
de Agostinho. Neste contexto, a pas- em que vivemos? na, quer do primeiro período, quer do
sagem do livro XI das Confissões ser- Maria Manuela Brito Martins – segundo período, tendo em conta a
ve para o filósofo alemão associar a A atualidade da obra de Heidegger é diversidade de registos especulativos
questão do tempo e as afeções (affec- contínua. Como já referimos, ela ainda que o pensador lhe atribui no decurso
tiones animi), ou seja, a Befindlichkeit, está em curso de publicação. O pensa- do seu pensamento.

EDIÇÃO 417 | SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 43


Reportagem da Semana
Destaques da Semana

Cenas de um tabu (im) praticável


Por Ricardo Machado

M
eu namorado ficou esperando no ra, que já era de idade, fazia seu trabalho eu
carro, enquanto eu entrava um olhava para a única coisa da parede que não
pouco assustada na insuspeita casa era a pura e simples parede, mas sim um qua-
de um bairro residencial da minha cidade. Fui dro de uma criança. A foto era linda, e posso
lá por indicação de uma comadre e menos de me lembrar disso exatamente como se fosse
sete dias depois de eu saber que estava grávi- ontem. O bebê era gordo, tinha um sorriso
da. No local fui levada a uma pequena sala de como uma criança de propaganda e no fun-
paredes quase nuas, maculadas apenas por do da imagem uma cortina de latas de leite
um quadro que me causou certo desconforto, Ninho. A cena era marcante, porque foi muito
mas disso falo mais adiante. Antes de agendar paradoxal. O procedimento não foi tão de-
minha “visita”, certifiquei-me que o procedi- morado e quando acabou estava meio zonza.
mento seria realizado com material esteriliza- Acho até que aquela senhora me deu algum
do e que correria menos riscos. Retirei a parte sedativo na veia ou no músculo, não lembro.
debaixo da roupa, sentei na cadeira e pus os Fui para o carro, meu namorado estava muito
pés por sobre os suportes, exatamente como nervoso, afinal era policial e era cúmplice de
manda o ritual do exame de papanicolau. Não um “crime”. Repousei todo o resto daquele dia
lembro se fui anestesiada, mas a adrenalina e tive muitas cólicas. No outro dia as dores ha-
foi tanta que praticamente não senti dores viam passado, estava trabalhando.
durante o procedimento. Enquanto a senho-

Contradições vavelmente não haveria cárcere su- riam necessárias cerca de 20 milhões
A cena descrita acima ocorreu há ficiente, pois a prática é muito mais de vagas nos presídios somente para
mais de 18 anos. Embora tenha havi- comum do que se imagina. Conforme mulheres que já realizaram aborto.
do inúmeras mudanças no contexto dados da Pesquisa Nacional de Abor-
Decisão complexa
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social nessas quase duas décadas, to, uma a cada cinco mulheres com
até 40 anos já cometeu aborto. O es- Para Fernanda1, a decisão de
falar sobre aborto continua sendo
tudo foi realizado pelo Departamento abortar não foi nada simples, embora
um tabu. Juridicamente falando hou-
de Serviço Social da Universidade Na- ressalte que não nunca se arrepen-
ve uma pequena mudança, já que o
cional de Brasília – UnB, Instituto de deu. “O aborto é uma questão com-
Supremo Tribunal Federal descrimi-
Bioética, Direitos Humanos e Gênero plexa e particular. Faço parte de insti-
nalizou o aborto de anencéfalos com
da UnB e pelo Instituto de Pesquisas tuições que defendem a vida e cuido
menos de 12 semanas, em abril do
Aplicadas – Ipea. Ao todo foram ou- muito da vida, mas no momento era
ano passado. Entretanto, o aborto em
vidas 2.002 mulheres de regiões ur- uma situação diferente”, explica.
qualquer caso fora o de anencefalia
banas do Brasil, alfabetizadas e com Para tentar compreender o que sig-
continua sendo crime.
idades entre 18 e 39 anos. Cruzando nifica abortar é preciso estabelecer
Ainda que os órgãos compe-
tentes tivessem condições de punir, os dados desta pesquisa com a po- relações entre o que acontece dentro
conforme manda a legislação, todas pulação feminina brasileira, que é de 1 A pedido da entrevistada a manteve-se
as mulheres que fizeram aborto, pro- mais de 100 milhões de mulheres, se- em sigilo o nome verdadeiro.

44 SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 | EDIÇÃO 417


e fora da sala escura onde ocorre o têm vida sexual ativa e eles fazem de perguntar-se o que se está entenden-

Destaques da Semana
procedimento. O contexto social em conta que não veem”, provoca. do ao falar de autonomia de decisão”,
que ser bem sucedido profissional- Em contrapartida, na avaliação sustenta Junges.
mente se tornou quase uma tirania é dela vivemos um momento de mu- Fernanda diz que não se arre-
a moldura em que cenas como a que dança de paradigmas, onde há um pendeu de ter feito o aborto e que
viveu Fernanda acontecem. “Achei desejo de minimização destes precon- a maternidade nunca foi um sonho.
melhor não levar adiante a gravidez ceitos sociais, já que temas contro- Também não acha que seja prerroga-
porque não queria filho naquele mo- versos são discutidos. “Hoje a gente tiva única do Estado de decidir se uma
mento e até hoje não quero. Porém, fala muito de coisas que não se falava, mulher fará aborto ou não, mas se diz
naquela época ia estragar o plano de como homossexualismo, mas isso so- radicalmente contrária à prática abu-
ações que tínhamos, pois meu na- bre aborto é uma coisa que pouco se siva. “Penso que a mulher tem que
morado estava estudando para ser fala”, considera. ter a capacidade de gerenciar o pró-
oficial da polícia militar e um filho ia prio corpo, mas não devemos chegar
Autonomia e independência ao banalismo de fazer isso a cada seis
bagunçar os planos profissionais dele
Pensar a independência de op- meses, pois é desproporcional e crimi-
e os meus”, conta.
tar pelo aborto sob uma perspectiva noso”, avalia.
Enquanto a sociedade discute
autônoma significa reduzir à superfí- A controversa questão do aborto
as ideias a favor e contra o aborto,
cie algo que é profundo e complexo. tem como eixo uma delicada disputa
um número incalculável de mulheres
Não se trata, portanto, de pensar o política que foi pauta da última elei-
sem recursos financeiros morrem em
gesto como uma manifestação pura ção presidencial, colocando a presi-
decorrência de abortos precários. Ou-
de autonomia, como explica o teó- dente eleita, Dilma Rousseff, em uma
tro número incalculável de mulheres,
logo, filósofo e professor de bioética saia justa, que ora se manifestava a
estas com mais recursos financeiros,
da Unisinos José Roque Junges. “Se favor da prática, ora contra. As esta-
saem de clínicas estéticas onde a prá-
‘autonomia’ significa simplesmente tísticas não dão a ver o que acontece
tica está acima de qualquer suspeita.
independência, isto é, não depender dentro do palco teatral de nossa socie-
“Minha ginecologista comentou que
e não responder a ninguém senão a si dade que condena o aborto e mesmo
tem uma clínica em Porto Alegre que
mesmo por seus atos, então o aborto assim o faz, mas revelam a existência
faz aborto com todo o cuidado e dis-
é uma decisão unicamente individual dos bastidores, que nesta reportagem
crição porque é uma ‘clínica de estéti-
que responde a direitos e interesses ocorreu em um quarto escuro com o
ca’, onde tem enfermeiras e médicas,
pessoais. Mas se partirmos de uma quadro de um bebê na parede.
que fazem isso mediante anestesia”,
visão relacional da autonomia, que
descreve.
é a compreensão de Kant, então na
Preconceitos tomada de decisões é necessário
Hoje Fernanda trabalha junto de colocar-se no lugar dos outros impli- Leia mais...
jovens em situação de vulnerabilida- cados para ver como as relações já www.ihu.unisinos.br
>> Confira outras publicações da
de social. Ela conta que há tabus rela- estabelecidas incidem nessa decisão.
IHU On-Line voltadas à temática do
cionados à sexualidade mesmo entre Isso leva a compreender que o aborto
aborto.
profissionais da área da saúde e que não pode ser reduzido a questões de
• O aborto: algumas opiniões. Edição
isso em nada contribui para uma cul- estatística sociológica nem a soluções 219 da Revista IHU On-Line. Link ht-
tura de diminuição da prática do abor- jurídicas tampouco simplificado como tp://bit.ly/137q4tS
to. “Não sou a favor do aborto de ma- resposta a um problema, mas enten-
• Aborto volta à pauta após defesa de
neira indiscriminada. Talvez estamos dido em toda sua complexidade re- legalização pelo CFM. Link http://
pecando quanto a políticas públicas lacional na tomada de decisão. A au- bit.ly/zI1mC7
no sentido anterior ao aborto. Os pro- tonomia é um princípio fundamental
• Evangélicos cobram de Dilma posi-
fissionais da saúde são muito precon- da ética moderna e especificamente
ção sobre aborto. Link http://bit.ly/
ceituosos em termos de sexualidade, da bioética, mas a sua compreensão zI1mC7
pois há meninas de 12 e 13 anos que não é unívoca e, por isso, é necessário

EDIÇÃO 417 | SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 45


Artigo da Semana
Destaques da Semana

Semiárido e Arendt: notas de uma


experiência revolucionária possível
Por Daniel Arruda Nascimento

A
revista IHU On-Line publica nesta edição Daniel Arruda Nascimento é bacharel em Di-
um artigo do professor Daniel Arruda Nas- reito pela Universidade Federal Fluminense, mes-
cimento, que foi o discurso proferido por tre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Ca-
ele durante a Solenidade de Transmissão do Car- tólica do Rio de Janeiro e doutor em Filosofia pela
go de Direção do Campus Senador Helvídio Nunes Universidade Estadual de Campinas. Trabalhou
de Barros, no Piauí, em 27 de março de 2013. Em como professor adjunto na Universidade Federal
seu texto, Daniel faz uma reflexão sobre as expe- do Piauí de outubro de 2009 a abril de 2013, ten-
riências revolucionárias da greve de professores do se integrado ao corpo docente do Programa
universitários brasileiros, particularmente em uma de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia, na
universidade do sertão piauiense. “Se há uma tra- Linha de Pesquisa Ética e Filosofia Política. Tra-
dição do pensamento ocidental que costuma res- balha desde abril de 2013 na Universidade Fede-
ponder ao dilema distinguindo entre duas ou mais ral Fluminense. O professor recentemente profe-
espécies de liberdade (por exemplo, entre liberda- riu a palestra Homo Sacer. O poder soberano e a
de interior e liberdade exterior), cumpre salientar vida nua no Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
que, no que diz respeito ao mundo habitado pelos Mais informações no link http://bit.ly/107qkoy
homens, ‘sem um âmbito público politicamente Confira o artigo.
assegurado, falta à liberdade o espaço concreto
onde aparecer’”, sustenta.

Nunca diga nordestino Antes de tudo, é preciso expli- que devemos tentar responder nas
Que Deus lhe deu um destino car o título. As duas grandes palavras breves páginas que se seguem é a
Causador do padecer, que o inauguram têm a sua razão de seguinte: como foi possível que uma
Nunca diga que é o pecado ser. Cuida-se de dois elementos que comunidade acadêmica amedronta-
Que lhe deixa fracassado estarão presentes, na qualidade de da e acuada nos primeiros meses de
Sem condição de viver. motes geradores, às próximas linhas. um determinado ano tenha chegado
[...] Primeiro, a referência à região do ao seu fim celebrando uma genuína
Sofremos em nossa vida semiárido brasileiro recupera uma experiência revolucionária? Têm as
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Uma batalha renhida experiência vivida em um campus páginas que se seguem a intenção de
Do irmão contra o irmão, universitário do interior do estado algo mais do que apresentar um re-
Nós somos injustiçados, do Piauí, na sua região sudeste, no lato dos acontecimentos locais, elas
Nordestinos explorados, sertão piauiense, próxima das fron- compartilham do propósito de res-
Mas nordestinados, não. teiras dos estados do Ceará e de ponder a um apelo, cuja insistência
[...] Pernambuco. Segundo, a nomeação demonstra a exigência de se pensar
Uma vez que o conformismo de uma das mais importantes pensa- as razões de êxito de uma experiên-
Faz crescer o egoísmo doras do século XX demonstra que o cia revolucionária possível.
E a injustiça aumentar, que aqui está é jogo são também as
Em favor do bem comum suas investigações político-filosóficas Liberdade
É dever de cada um e a sua teoria da ação. A pergunta Quando nos deparamos com
Pelos direitos lutar1. a demanda de saber se o homem é
Patativa do Assaré1 verdadeiramente livre, nos confronta-
pinho e fulô, do poeta popular cearense mos com o dilema que foi posto nes-
Antônio Gonçalves da Silva, conhecido
1 Recorte de Nordestino, sim, nordesti- como Patativa do Assaré. São Paulo: He-
nado, não, poesia que integra o livro Is- dra, 2005, p. 38-40. (Nota do Autor)

46 SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 | EDIÇÃO 417


tes termos por Hannah Arendt2: “em aparecer”4. Em um meio contaminado particular de coronéis, frequente-

Destaques da Semana
sua forma mais simples, a dificuldade por uma forte relação de senhorio, de mente mediada pela troca de favores
pode ser resumida como a contradi- estreito domínio, não há oportunida- e pela ameaça ou perseguição. Meio
ção entre nossa consciência e nossos de para o aparecimento da liberdade. kafkiana porque composta de órgãos
princípios morais, que nos dizem que Em um meio confiscado pelas neces- inacessíveis, impenetráveis, de uma
somos livres e portanto responsáveis, sidades que envolvem a manutenção burocracia remota e sem sentido.
e a nossa experiência cotidiana no da vida, nos seus aspectos mais ele- Tudo isso no âmbito de uma admi-
mundo externo, no qual nos orienta- mentares, também não. A liberdade nistração pública pré-constitucional,
mos em conformidade com o princí- pressupõe um espaço comum no qual em evidente afronta aos princípios
pio da causalidade”3. Pode ao homem os homens possam encontrar-se e administrativos da legalidade, mora-
ocorrer de se sentir essencialmente considerarem-se iguais, no qual pos- lidade, impessoalidade, publicidade
livre, na medida em que pode loco- sam se inserir pelo discurso e pela e eficiência, para dizer o mínimo. As
mover-se ao seu talante e pensar o ação. Compreendemos, nessa pers- professoras e os professores, na sua
que quiser, na medida em que pode pectiva, que “os homens são livres maioria há pouco concursados e em
enquanto agem”5 e que, embora es- estágio probatório, manifestavam
ser responsabilizado pelos seus atos
tejamos acostumados a conceber a o forte receio de que qualquer ini-
como se a sua livre decisão fosse de-
liberdade como um atributo da von- ciativa que contrariasse a ordem es-
cisiva para produzi-los, e, ao mesmo
tade ou do pensamento, no ambiente tabelecida significaria a reprovação
tempo, sentir-se preso à cadeia dos
de um mundo habitado por homens na avaliação institucional e a perda
acontecimentos, como se eles fossem
que devem conviver, a liberdade é um do cargo, com todas as consequên-
irresistíveis, como se a sua reação não cias nocivas ao sustento da própria
atributo da ação.
pudesse se dar de outra maneira. Se vida. As alunas e os alunos estavam
O ano de 2012 reservava à co-
há uma tradição do pensamento oci- à mercê de um órgão representativo
munidade acadêmica do sertão
dental que costuma responder ao di- de classe que não possuía qualquer
piauiense uma série de surpresas no
lema distinguindo entre duas ou mais pretensão que não fosse a realização
momento no qual se havia acredita-
espécies de liberdade (por exemplo, de uma festa semestral de recepção
do que justamente a capacidade de
entre liberdade interior e liberdade de calouros e qualquer reivindicação
se surpreender havia se perdido. As
exterior), cumpre salientar que, no professoras e os professores, as téc- que não fosse a aquisição de bolas de
que diz respeito ao mundo habitado nicas e os técnicos administrativos futebol e coletes esportivos, sendo
pelos homens, “sem um âmbito pú- e as alunas e os alunos do campus que nem no campus quadra de es-
blico politicamente assegurado, falta Senador Helvídio Nunes de Barros, portes havia.
à liberdade o espaço concreto onde um campus da Universidade Fede- Um clima de cansaço e desânimo
ral do Piauí, localizado na cidade de se disseminava pelo campus. As pro-
2 Hannah Arendt (1906-1975): filósofa e Picos, pouco contavam com o que fessoras e os professores que, vindos
socióloga alemã, de origem judaica. Foi de perto e de longe, lá ancoravam
influenciada por Husserl, Heidegger e aconteceria durante o ano. Pelo me-
Karl Jaspers. Em consequência das per- nos desde 2006, o ano em que uma cheios de expectativas e vontade de
seguições nazistas, em 1941, partiu para importante fase de sua expansão contribuir para a transformação da
os EUA, onde escreveu grande parte das
havia sido iniciada, com o acréscimo realidade acadêmica e social local,
suas obras. Lecionou nas principais uni-
versidades deste país. Sua filosofia as- de sete cursos novos aos dois que já arrefeciam diante dos golpes diários
senta numa crítica à sociedade de mas- existiam no campus, toda tentativa que sofriam. E assim, abandonavam
sas e à sua tendência para atomizar os
de mobilização em torno de questões os espaços públicos e se refugiavam
indivíduos. Preconiza um regresso a uma nos espaços privados, procurando
concepção política separada da esfera de interesse coletivo havia sido até
econômica, tendo como modelo de ins- então frustrada. Aqueles que chega- consolo para o que parecia irremedi-
piração a antiga cidade grega. Entre suas vam ao campus, vindos de perto ou ável. Isolavam-se, ou construíam suas
obras, citamos: Eichmann em Jerusalém
de longe, encontravam uma estrutu- relações apenas nas comodidades da
- Uma reportagem sobre a banalidade do vida privada. Vinham ao campus para
mal (Lisboa: Tenacitas. 2004) e O sistema ra de poder inflexível, uma adminis-
fazer o mínimo: darem suas aulas,
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totalitário (Lisboa: Publicações Dom Qui- tração viciada, centrada nas funções
xote.1978). Sobre Arendt, confira as edi-
executivas, com pouco espaço para orientarem seus alunos de trabalho
ções 168 da IHU On-Line, de 12-12- 2005, de conclusão de curso, promoverem
sob o título Hannah Arendt, Simone Weil formação de ambientes de discussão
e Edith Stein. Três mulheres que marca- e deliberação conjunta. Estavam eles alguma pesquisa quando o conse-
ram o século XX, disponível para down- diante de uma estrutura de poder guiam e retornarem às suas casas
load em http://bit.ly/qMjoc9 e a edição sem tocarem em assuntos que teriam
206, de 27-11-2006, intitulada O mundo que poderia ser definida, por assim
como consequência a piora do quadro
moderno é o mundo sem política. Han- dizer, como uma estrutura meio coro-
geral de extenuação. Como foi possí-
nah Arendt 1906-1975, disponível para nelesca meio kafkiana. Meio corone-
download em http://bit.ly/rt6KMg. Nas vel então que uma comunidade aca-
Notícias do Dia de 01-12-2006 você con-
lesca porque ainda baseada em uma
dêmica amedrontada e acuada nos
fere a entrevista Um pensamento e uma política de coronéis, na qual todo po-
primeiros meses do ano em lide tenha
presença provocativos, concedida com der público, grotescamente privatiza-
exclusividade por Michelle-Irène Brudny chegado ao seu fim celebrando uma
do, depende da vontade e da decisão
em 01-12-2006, disponível para down- genuína experiência revolucionária?
load em http://bit.ly/o0pntA. (Nota da
IHU On-Line) 4 ARENDT, H. Entre o passado e o futuro, A greve
3 ARENDT, H. Entre o passado e o futuro, p. 195.
tradução de Mauro W. Barbosa, São Pau- 5 ARENDT, H. Entre o passado e o futuro, A coisa começou a mudar com a
lo: Perspectiva, 2009, p. 188-189. p. 199. Cf. também p. 202. interveniência de um fato imprevis-

EDIÇÃO 417 | SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 47


to. Somos levados a reconhecer que, de um grupo de professoras e profes- logro acadêmico, a aparência demo-
Destaques da Semana
no âmbito da formação empírica das sores, criou-se um fórum para pensar crática da administração universitária
condições que poderiam dar origem as atividades locais de gestão, de ensi- também operava neste sentido: puro
aos acontecimentos narrados, obte- no, de pesquisa e de extensão, fórum engano! Sistemas representativos
ve importância capital a mobilização posteriormente integrado ao calendá- forjados mais pelo apequenamento
dos docentes em torno das atividades rio e à pauta de reuniões ordinárias da administrativo do que pelo respeito à
de greve. Uma greve deflagrada em greve. Falou-se muitíssimo sobre a ne- participação, funcionavam sob medi-
âmbito nacional no dia 17 de maio cessidade de se democratizar a gestão da para reuniões fugidias, em salas a
de 2012 e estendida por quatro me- do campus. O mais relevante neste portas fechadas e bem guardadas. Pa-
ses levou os professores a paralisarem momento tenha sido, talvez, o fato de redes pintadas escondiam a ausência
as suas atividades e permitiu criar no as professoras e os professores perce- de condições materiais elementares
campus um inédito espaço de encon- berem que não estavam sós. Pela pri- de trabalho e de estudo. Em segun-
tro e de debate, com a realização de meira vez durante muito tempo, eles do lugar, as reuniões da comunidade
uma ou duas assembleias por semana puderam perceber que não estavam acadêmica durante o período de gre-
e a participação de um número con- sós em suas lutas diárias, que outros ve serviram como um momento de
siderável de professoras e professores sofriam calados ou apenas resmunga- partilha do sentimento de indignação
de diferentes áreas do conhecimen- vam em um grupo seleto de pessoas que a todos movia. Certa vez, escutei
to, não sindicalizados inclusive. Sob o mais próximas. Com o movimento de um professor de uma universidade do
impacto do não cumprimento de um greve, reservamos tempo para discu- Estado de São Paulo aventar que, em
acordo assinado pelo governo federal tir a situação do campus, realizar um razão do grau de exigência que os ór-
com o sindicato nacional de docentes diagnóstico e pensar possíveis solu- gãos de fomento à pesquisa estavam
das instituições de ensino superior no ções. Um meio comunicativo foi inau- impondo aos professores universitá-
ano anterior, cujo objeto se restringia gurado pelos encontros e pelo envio rios, eles se tornavam, sem escapató-
apenas um pequeno reajuste sala- de e-mails coletivos, planos de ação ria, ou loucos, ou cínicos, ou corrup-
rial, decidiram os docentes da grande podiam ser abertamente ponderados, tos. Acredito que ele estava correto,
maioria das universidades federais pequenas ações podiam já se realizar. mas apenas no que se refere às uni-
do país pela greve. Com o movimen- No âmbito da teoria da ação, re- versidades dos grandes centros urba-
to crescente e a oportunidade de lu- puto que três foram os principais fa- nos. Nas universidades periféricas, tal
tar por uma universidade pública, de tores que contribuíram para que uma como era o caso daquela do sertão
qualidade e socialmente referenciada, experiência revolucionária fosse pos- piauiense, especialmente na perife-
a pauta de reivindicações ampliou-se sível a nível local. Em primeiro lugar, a ria da periferia, as professoras e os
e passou a girar em torno de três pon- comunidade acadêmica que se reuniu professores nem sequer alcançavam
tos básicos: reestruturação do plano durante o período de greve tornou-se este patamar de deterioração. Os do-
de carreira, melhores condições de consciente da condição de engano na centes que aí trabalhavam se sentiam
trabalho e valorização salarial6. Dado qual estava inserida. Embora números rebaixados na sua dignidade de pro-
o contínuo processo de sucateamento estatísticos divulgados pelos órgãos fessor, na medida em que se sentiam
das universidades públicas em todo o oficiais apontassem para o aumento coagidos a cooperar com um sistema
país, todos esses pontos eram justos e da escolarização e o crescimento das perverso, na medida em que eram es-
foram alvo da atenção das professoras universidades brasileiras, o que os do- vaziados de sua liberdade de cátedra,
e dos professores no sertão piauiense. centes viam no cotidiano do campus na medida em que eram perseguidos
Entretanto, para eles que exerciam as era a queda na qualidade da educa- sem motivo e violados em seus direi-
suas funções na periferia da periferia ção dos discentes ingressos e egres- tos, na medida em que eram tratados
da comunidade acadêmica brasileira, sos. Alunas e alunos cada vez menos como se estivessem ali por favor de
o segundo ponto da pauta era mesmo preparados para a vida universitária algum gestor de gabinete. Em terceiro
tão fundamental que não seria exage- chegavam e saíam do campus como lugar, trouxeram tais reuniões os par-
ro dizer que constituía uma questão se a formação a que deveriam se sub- ticipantes a um nível de conhecimen-
to no qual não era mais possível negar
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de vida ou morte. No caso deles, a sua meter cumprisse a sua finalidade e o


atividade docente não era somente o seu pertencimento àquela comuni-
resultado era um contingente huma-
afetada pela falta de salas de aula e dade acadêmica. Em algum momento
no pouco qualificado para o mercado
de atendimento aos discentes, labo- não determinável, as professoras e
de trabalho e para assumir responsa-
ratórios, equipamentos, livros nas bi- os professores, as técnicas e os téc-
bilidades na sociedade7. Aliada ao ma-
nicos administrativos e as alunas e os
bliotecas ou materiais básicos de fun-
alunos mobilizados perceberam que
cionamento. A sua atividade docente, 7 Mirabolantes programas suplementa-
res de educação enganavam a todos os eram parte do lugar e que as condi-
compreendendo os terrenos do ensi-
envolvidos: aos alunos porque recebiam ções dadas poderiam ser modificadas
no, da pesquisa e da extensão, estava uma educação de segunda categoria, aos por suas atuações. Eles começaram a
minada por uma carga horária excessi- professores porque nem os alunos esta-
crer no poder da ação, que o espaço
va destinada apenas ao tempo dentro vam inteiros na sua participação nem o
recebimento de uma bolsa constituía um no qual transitavam poderia ser cons-
da sala de aula. Assim, por iniciativa
aumento salarial real, à instituição e ao truído por eles também.
governo porque números sem correspon-
6 Cf. Comunicado CNG/ANDES-SN, nº 02, dência não respondiam aos seus anseios, Revolução
Anexo II, de 20 de maio de 2012. Dispo- à sociedade porque esperava em vão por
nível em http://cngandes.blogspot.com. profissionais à altura do investimento e Revolucionário é o desejo de
br/. Acesso em: 17-12-2012. dos desafios por vir. fundação, de iniciar algo diferente de

48 SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 | EDIÇÃO 417


tudo aquilo que fora dado. Conside- tura de uma chapa que surgia como contido dos que andavam pelos seus

Destaques da Semana
rando que o pathos revolucionário se oposição aos que se mantinham no corredores. Pathos revolucionário
traduz na “experiência da capacidade poder desde a abertura do campus, certamente houve, orientado para a
humana de dar início a algo novo”8, na década de oitenta, ainda nos tem- formação de um novo corpo políti-
podemos dizer que estamos diante pos de ditadura militar. As pressões co, com uma nova ordem, tendo a li-
de uma revolução quando um grupo para dissuadir professoras e profes- berdade como finalidade e desejo13.
de pessoas destituídas de poder insti- sores, técnicas e técnicos adminis- Tudo isso dentro de um processo
tucional, munidas do pathos de revo- trativos, alunas e alunos envolvidos eleitoral. Temos aqui um caso típico
lucionar, confronta uma estrutura de neste projeto foram, evidentemente, no qual instrumentos democráti-
poder já desgastada mas ainda forte muitas. De insinuações de todo gêne- cos constituídos foram usados para
no seu aspecto institucional, instau- ro à frontal sugestão de instauração fins revolucionários. Resta, todavia,
rando uma nova ordem. Aí distingui- de processo administrativo discipli- completar a obra revolucionária. “Li-
mos rebelião e revolução: se ambas nar, passando por ameaça de perda berdade política, em termos gerais,
se assemelham pela insurgência de de bolsas de apoio financeiro, assé- significa o direito de ‘ser participan-
grupos marginais ao poder político, dio moral, constrangimentos injus- te no governo’ – afora isso, não é
diferem porque “o fim da rebelião é a tificáveis, intimidações físicas, tudo nada”14. É preciso, no mínimo, ga-
libertação, ao passo que o fim da re- era passível de ser imaginado por rantir o gozo das liberdades políticas
volução é a fundação da liberdade”9. aqueles que não aceitavam renunciar em geral, como o direito de escolher
Levando a reflexão mais além, se o ao poder arbitrário e aos privilégios. e ser escolhido, como o direito de
que é próprio do homem é que ele Porém, depois de dois debates públi- opinar, de falar e ser ouvido, e de se
introduza no mundo a capacidade cos nos quais restava claro o diferen- expressar livremente sem recear re-
de começar contra a relação natural te grau de compromisso dos candida- taliações. Pelas mudanças substan-
de causalidade, se a liberdade huma- tos, agrupados em duas chapas, com ciais na gestão do poder, aguarda-
na é a capacidade de começar algo uma educação emancipatória (não mos ansiosamente. Esperamos pela
novo, talvez nada seja mais humano em virtude das pessoas que as com- confirmação de uma experiência re-
do que o revolucionar10. É isto o que punham, ressaltemos, mas em virtu- volucionária possível.
nos faz mais humanos. “A vida sem de do que representavam), decidiu Felizmente, pudemos contar
discurso e sem ação [...] está literal- a comunidade acadêmica, com uma com aquilo que pertence ao humano:
mente morta para o mundo; deixa de margem considerável na quantidade “o que normalmente permanece in-
ser uma vida humana, uma vez que de votos, pela mudança, ou melhor, tacto nas épocas de petrificação e de
já não é vivida entre os homens”11. por começar algo novo, pelo desejo ruína inevitável é a faculdade da pró-
Com palavras e atos, o homem pro- de fundação12. pria liberdade, a pura capacidade de
voca para si um segundo nascimento, começar, que anima e inspira todas
um nascimento para uma vida que Experiência revolucionária as atividades humanas e que consti-
é propriamente humana, uma vida Ousei denominar de experiên- tui a fonte oculta de todas as coisas
entre outros humanos, que também cia revolucionária o que aí aconte- grandes e belas”15. Em um ponto de
podem falar e agir. ceu. Se eu exagerei ou não, saberá inflexão do livro que traz o sugesti-
O que realizou a experiência re- o ouvinte, o leitor, julgar. Rechaço vo título Entre o passado e o futuro,
volucionária no caso em exame foi às normas impostas por alguma me- Hannah Arendt escreve que “a co-
o fato de terem as professoras e os trópole ultramar ou corte de cabe- ragem é uma das virtudes políticas
professores interessados na constru- ças de monarcas, não houve. No dia cardeais”16. Dedico o tempo útil para
ção de uma outra universidade agar- seguinte às eleições, o campus pa- a preparação deste texto aos que ti-
rado a oportunidade que lhes apare- recia o mesmo, a não ser pelo júbilo veram a coragem de resistir até o fim,
ceu em tempo oportuno: durante o aos que não sucumbiram às pressões
processo eleitoral que se desenca- de todo tipo.
deou para a escolha da nova direção 12 Com o resultado final da apuração de
votos, a Comissão Eleitoral competente
do campus de Picos, eles se reuniram
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divulgou que a chapa vencedora alcan-
ao redor de um novo projeto para
o campus, de gestão democrática e
çou, entre os 115 docentes votantes, 79
votos contra 34, entre os 1.318 discentes Leia mais...
participativa, elaborado no decorrer votantes, 946 votos contra 287, entre os
42 técnicos administrativos votantes, 14 • O homo sacer e o campo como pa-
da greve, representado pela candida- votos contra 25. Como se não bastasse a radigma político moderno. Mais in-
significativa diferença na votação entre
os docentes e discentes, é preciso reco- formações http://bit.ly/107qkoy
8 ARENDT, H. Sobre a revolução, tradução nhecer que, dadas as condições do cam-
de Denise Bottmann, São Paulo: Compa- pus, a pequena derrota no que diz respei-
nhia das Letras, 2011, p. 63. Na sequên- to aos votos dos técnicos administrativos 13 Trata-se, deste ponto de vista, de uma
cia, “apenas onde existe este pathos de revelou-se uma vitória e um símbolo de experiência de revolução, não de rebe-
novidade e onde a novidade está ligada à inauditas transformações. Disponível lião, embora o assombro que decorria do
ideia de liberdade é que podemos falar em http://www.ufpi.br/arquivos/File/ flagrante desrespeito aos princípios ad-
em revolução”. RESULTADO%281%29.pdf. Acesso em: 23- ministrativos e à dignidade de um profes-
9 ARENDT, H. Sobre a revolução, p. 189. 12-2012. Dispensável mencionar que, en- sor concursado não fosse pequeno.
10 Cf. ARENDT, H. Entre o passado e o tre os técnicos, o mais infame ficou por 14 ARENDT, H. Sobre a revolução, p. 278.
futuro, p. 216. conta do oportunismo alienado de alguns 15 ARENDT, H. Entre o passado e o futu-
11 ARENDT, H. A condição humana, tradu- sindicalistas que de uma hora para a ou- ro, p. 217-218.
ção de Roberto Raposo, Rio de Janeiro: tra passaram, a baixo custo, do lado dos 16 ARENDT, H. Entre o passado e o futu-
Forense Universitária, 2004, p. 189. trabalhadores para o patronal. ro, p. 203.

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Entrevistas em destaque
Destaques da Semana

A Revista IHU On-Line traz nesta e nas próximas edições resumos das entrevistas especiais mais acessadas durante o
recesso, entre janeiro e março de 2013. Os conteúdos estão disponíveis no sitio IHU On-Line (www.ihu.unisinos.br).

“Muita gente pequena em muitos ‘’A concentração de CO2 hoje está


lugares pequenos, fazendo coisas beirando 400 partes por milhão’’
pequenas mudarão a face da Terra”
Entrevista com professor Alexandre Costa
Entrevista com Lourdes Dill Confira nas Notícias do Dia de 27-02-2013
Confira nas notícias do dia de 15-02-2013 Acesse no link http://bit.ly/XFH1qI
Acesse o link http://bit.ly/YcnJZe
“Este ano será divulgado o quinto relatório do Painel
Desde o dia 22 de janeiro, a religiosa e coordenadora Intergovernamental de Mudanças Climáticas – IPCC e,
do projeto Esperança/Cooesperança de Santa apesar do conservadorismo da comunidade científica,
Maria, Irmã Lourdes Dill integra o Conselho de as evidências são tão gritantes que, sem dúvida,
Desenvolvimento Econômico e Social do Rio Grande algumas das afirmações do relatório referentes ao
do Sul, conhecido como “Conselhão”. O grupo é aquecimento global e ao papel antrópico vão ser
formado por 90 representantes da sociedade civil mais fortes ainda que do quarto”, informou Alexandre
que dialogam com o governo do Estado sobre os Araújo Costa, professor titular da Universidade
mais variados temas. São escolhidos conselheiros, Estadual do Ceará, em entrevista concedida, por
conforme os critérios estabelecidos pelo Palácio telefone, à IHU On-Line. Segundo o professor, “o
Piratini, pessoas de ilibada conduta e reconhecida IPCC deixa muito claro que o aquecimento global é
representatividade regional ou estadual. A escolha inequívoco. Ele existe e é antrópico. Não há como
dos nomes é feita pelo próprio governador, Tarso explicar esse aquecimento a não ser pelo aumento na
Genro. Em entrevista por telefone à IHU On-Line, concentração dos gases do efeito estufa. Se fosse pela
Irmã Lourdes falou sobre o convite do governo do atividade solar e outros efeitos naturais, teríamos
Estado e das ações que realiza em Santa Maria e tido, na realidade, um ligeiro resfriamento na metade
região, local onde mora e desenvolve seu trabalho final do século XX, uma diminuição da ordem de 0,1
social. “Para mim foi uma alegria muito grande”, a 0,2 graus e não um aquecimento de 0,8 graus”,
avalia. complementa.

LEIA OS CADERNOS IHU IDEIAS


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50 SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 | EDIÇÃO 417


Destaques On-Line

Destaques da Semana
Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line no período de 29-04-2013 a 03-05-2013, disponíveis nas Entrevistas do Dia
do sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br).

PEC 37: ‘’uma clara mobilização Torcidas Queer e a homofobia nos


para tentar ofuscar o estádios de futebol.
Ministério Público’’
Entrevista especial com Gustavo Andrada
Entrevista especial com Marcelo Dornelles Bandeira
Confira nas notícias do dia de 30-04-2013 Confira nas notícias do dia de 02-05-2013
Acesse o link http://bit.ly/11Sy6qr Acesse o link http://bit.ly/10ufBEy

A PEC 37, que limita o poder de investigação do “Há homofobia nos estádios de futebol. Ela é tão
Ministério Público – MP, é proposta por uma marcada que a própria imprensa esportiva nem
“parcela da classe política incomodada com nossa mesmo a entende como algo violento ou como
atuação de fiscalização, e pelos delegados de polícia um acontecimento digno de ser narrado”, diz
incomodados com nossa atuação investigativa em Gustavo Andrada Bandeira à IHU On-Line. Autor
casos importantes e de repercussão, especialmente da dissertação intitulada Eu canto, bebo e brigo...
em áreas de menos atenção dos trabalhos policiais”, alegria do meu coração: currículo de masculinidades
diz Marcelo Dornelles em entrevista por e-mail à IHU nos estádios de futebol, o pedagogo analisa o
On-Line. comportamento masculino nos locais de jogos
e comenta o surgimento das torcidas queer nos
estádios de futebol.

Ética, compromisso e qualidade. O


Congresso Mundial das Universidades Troca-troca de semente transgênica e a
Católicas perda da diversidade genética.
Entrevista especial com Paulo Roberto de Sousa
Entrevista especial com Fábio Dal Soglio
Confira nas notícias do dia de 1º-05-2013
Confira nas notícias do dia de 03-05-2013
Acesse o link http://bit.ly/11YiDDV
Acesse o link http://bit.ly/ZrO1Jc
“Buscamos propiciar a discussão sobre os desafios
“Os pequenos agricultores deveriam ser alvos de
que os novos tempos e os novos sentidos aportam às
www.ihu.unisinos.br
uma política que buscasse reduzir a dependência
universidades católicas e às pastorais universitárias,
de insumos e ampliar as perspectivas de melhor
sobretudo no que tange à construção de sentido e a
gerenciamento dos seus sistemas de produção,
fé; ao papel humanizador da educação católica diante
procurando maior autonomia e menores custos”,
dos novos tempos; à educação para a vida familiar,
lamenta Fábio Dal Soglio, na entrevista que concedeu
os relacionamentos e o cuidado; e ao protagonismo
por e-mail à IHU On-Line, ao comentar a reintrodução
juvenil na sociedade e na Igreja em vistas da
das sementes transgênicas no Programa Troca-Troca
construção de uma cultura da paz”, diz Paulo Roberto
de Sementes de Milho para a safra 2013-2014.
de Sousa à IHU On-Line, ao apresentar o Congresso
Mundial das Universidades Católicas - CMUC, a ser
realizado em julho, em Belo Horizonte.

EDIÇÃO 417 | SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 51


Tema
de
Capa

Destaques
da Semana
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IHU em
Revista
52 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000
Agenda de

IHU em Revista
Eventos
Eventos do Instituto Humanitas Unisinos – IHU
programados para a semana de 06-05-2013 a 13-05-2013

Data: 06-05-2013 Data: 08-05-2013


Evento: Mini Curso G. Agamben: O Reino e a Palestra: A modelagem da vida, do conheci-
Glória mento e dos processos produtivos na tecno-
Professor: Dr. Castor Bartolomé Ruiz – Unisinos ciência contemporânea
Horário: 19h30 às 22h20 Palestrante: Prof. Dr. Marcelo Fernandes de Aquino - Uni-
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU sinos
Mais informações: http://bit.ly/VUyR2V Horário: 14h às 15h30
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU
Mais informações: http://bit.ly/1060Eta
Data: 06-05-2013
Evento: Ciclo de Estudos em EAD: Sociedade
Sustentável Data: 09-05-2013
Professor: MS Gilberto A. Faggion Evento: I Seminário – XIV Simpósio Internacio-
Módulo 3: Por um novo paradigma civilizacional nal IHU e IHU ideias
Período: 15 de abril a 25 de maio Palestra: Opus Dei e Altissima Povertá – reflexões atuais
Local: Plataforma Moodle Unisinos de Giorgio Agamben
Mais informações: http://bit.ly/XuBgMB Palestrante: Prof. Dr. Selvino Assmann - UFSC
Horário: 17h30 às 19h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU
Data: 06-05-2013
Mais informações: http://bit.ly/Yh1XrV
Evento: Mostra do ObservaSinos: De olho no
Vale
Período: A exposição será itinerante nos 14 municípios Data: 09-05-2013
da região do Vale do Rio dos Sinos Evento: I Seminário – XIV Simpósio Internacio-
Mais informações: http://bit.ly/Zu5W0P nal IHU
Palestra: Galimberti e o homem na idade da técnica
Palestrante: Prof. Dr. Selvino Assmann (UFSC)
Data: 06-05-2013
Horário: 19h30 às 22h
Evento: Ciclo de filmes: Crise do Capitalismo Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU
no Cinema – IHU Cinema Mais informações: http://bit.ly/Xz2zZ7
Exibição de filme: Catastroika (Aris Hatzistefanou e Kate-
rina Kitidi, Grécia, 2012, 88 min)
Data: 13-05-2013
www.ihu.unisinos.br
Horário: das 17h às 19h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU Evento: Ciclo de filmes: Crise do Capitalismo
Mais informações: http://bit.ly/11Ycwkg no Cinema – IHU Cinema
Exibição de filme: O Dia Antes do Fim “Margin Call” (J. C.
Chandor, EUA, 2011, 107 min)
Data: 07-05-2013
Horário: das 17h às 19h
Evento: I Seminário – XIV Simpósio Internacio- Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU
nal IHU Mais informações: http://bit.ly/XSTJo9
Palestra: Aquecimento global: as mudanças climáticas
ao longo da história da Terra e suas implicações para o
futuro humano
Palestrante: Prof. Dr. Ernesto Lavina – Unisinos
Horário: 19h30 às 22h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU
Mais informações: http://bit.ly/11EFDHB

EDIÇÃO 417 | SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 53


Confira as publicações do

Instituto Humanitas Unisinos - IHU

Elas estão disponíveis na página eletrônica

www.ihu.unisinos.br

54 SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 | EDIÇÃO 417


Publicação em destaque

IHU em Revista
Confira uma das publicações mais recentes do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Cadernos Teologia Pública – 76ª edição – 50 anos depois do Concílio Vaticano II: indicações para
a semântica religiosa do futuro
A 76ª edição dos Cadernos Teologia Pública traz o artigo intitulado “50 anos depois do Concílio Vaticano II: indica-
ções para a semântica religiosa do futuro”. O autor do texto é José Maria Vigil, teólogo radicado no Panamá. Trata-se da
conferência que Vigil proferiu no XIII Simpósio Internacional IHU. Igreja, Cultura e Sociedade: a semântica do Mistério
da Igreja no contexto das novas gramáticas da civilização tecnocientífica, realizado de 2 a 5 de outubro de 2012, na
Unisinos (São Leopoldo).
Ao refletir sobre a construção urgente de uma semântica religiosa nova, Vigil considera que o Concílio Vaticano
II significou uma reconciliação com a modernidade, porém somente até certo ponto. “O Concílio reconheceu a auto-
www.ihu.unisinos.br
nomia das realidades terrenas, mas continuou a falar da realidade concebida no esquema de dois andares, com os
dualismos céu/terra, corpo/alma, natureza/graça, natural/sobrenatural, este mundo/o outro mundo, história humana/
história da salvação... Continuou com a visão heterônoma própria da pré-modernidade, com uma aceitação somente
parcial dos valores modernos…”. Para o teólogo, “falta avançar até uma semântica que incorpore plenamente os signi-
ficados postulados pela modernidade, a partir da cosmovisão de uma realidade integrada, única, sem dualismos, ‘sem
andares’ na representação da realidade, sem heteronímia na axiologia e na moral”.
Acesse o link http://bit.ly/Ys7cr3 e faça o download desta edição em formato PDF.
Os Cadernos Teologia Pública podem ser adquiridos diretamente no Instituto Humanitas Unisinos – IHU ou solici-
tados pelo endereço humanitas@unisinos.b.
Mais informações podem ser obtidas em http://bit.ly/KWvYrk ou pelo telefone (51) 3590 8247.
Sobre os 50 anos do Concílio Vaticano II, leia também a edição n. 401 da IHU On-Line, de 03-09-2012, disponível
em http://bit.ly/REokjn

EDIÇÃO 417 | SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 55


Retrovisor
IHU em Revista
Relembre edições antigas da revista IHU On-Line:

Democratizar a comunicação
Edição: 99 – Ano IV – 03-05-2004
Disponível em http://bit.ly/oTSHGK

Embora a problemática sobre a democratização da comunicação seja um tema


presente na atualidade, tal mote foi abordado na edição 99 da revista IHU On-Line.
Na ocasião a mídia se declarava em crise e havia certa cobrança sobre o Estado para
ajudar os veículos, sobretudo com relação a investimentos do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES. Para esta edição foram entrevista-
dos, entre outros, o jornalista Celso Schröder, o professor doutor da Universidade
de Brasília Murilo Ramos e o pesquisador argentino Guillermo Mastrini, da Univer-
sidade de Buenos Aires. Complementa a edição uma entrevista com o jornalista e
crítico norte-americano Norman Solomon.

Teoria Quântica: Novas concepções da realidade


Edição: 122 – Ano IV – 08-11-2004
Disponível em http://bit.ly/108M1FN

A discussão da edição 122 da revista IHU On-Line trouxe à reflexão as evolu-


ções tecnológicas a partir de invenções como o relógio, o motor a vapor e o com-
putador. A questão é que tais tecnologias impactaram na forma de ver a realidade.
Contribui para o debate o teórico e físico Basarab Nicolescu, cuja obra propõe no-
vos modelos de pensamento. O número conta ainda com um artigo do físico, filó-
sofo e professor doutor Armando Lopes de Oliveira. Edição tem uma contribuição
do professor Roberto Velho Cirne e Lima sobre o fechamento do Ciclo de Estudos
sobre o Método de Edgar Morin.

O cristianismo e a ultramodernidade.
Limites e possibilidades de seu futuro
Edição: 128 – Ano IV – 20-12-2004
www.ihu.unisinos.br

Disponível em http://bit.ly/15dY6RQ

A última edição da revista IHU On-Line de 2004 foi sobre o tema O cristia-
nismo e a ultramodernidade. Limites e possibilidades de seu futuro. As discussões
suscitadas nesta edição tinham como eixo o livro lançado na época Le religieux
aprés la religion de Luc Ferry e Marcel Gauchet, que contribui com uma entrevista,
e o encontro de Jürgen Habermas e o então cardeal, agora Papa emérito, Joseph
Ratzinger. Complementa esta edição um dossiê publicado pelo jornal La República,
que também aborda o tema de capa. A edição conta ainda com uma entrevista com
o psicanalista Jurandir Freire Costa.

56 SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 | EDIÇÃO 417


Entrevista de Eventos

IHU em Revista
Aquecimento global e suas
implicações para o futuro
humano
“As pessoas duvidam que exista uma evidência física de que o mundo está mudando.
Ela existe sim, e são as geleiras”, afirma o geólogo Ernesto Lavina

Por Graziela Wolfart

F
alar de aquecimento global a partir das o acúmulo, principalmente do vapor d’água,
mudanças climáticas ao longo da histó- do CO2 e um pouquinho de metano e ozônio,
ria da Terra é o desafio que o professor que fazem com que a temperatura seja algo
da Unisinos Ernesto Lavina terá na próxima hoje entre 13 e 14ºC acima de zero”. E cons-
terça-feira, dia 7 de maio, na Sala Ignacio Ella- tata: “estamos em um momento realmente
curía e Companheiros, no IHU, das 19h30 às crucial. Todas as vezes, nos últimos 800 mil
22h, na programação do I Seminário prepara anos, em que a temperatura média da Terra
o XIV Simpósio Internacional IHU – Revolu- atingiu patamares como os atuais, entramos
ções Tecnocientíficas, Culturas, Indivíduos e em um novo período frio, que culmina com
Sociedades - A modelagem da vida, da produ- período glacial. Como não há nada de novo
ção do conhecimento e dos produtos tecno- acontecendo em termos tectônicos na Terra,
lógicos para a tecnociência contemporânea, poderíamos dizer que dentro de um período
que ocorrerá de 21 a 24 de outubro de 2014. de 10 a 15 mil anos entraremos em uma nova
Lavina concedeu a entrevista a seguir para era glacial. É um palpite, em função de que a
a IHU On-Line, por telefone, onde afirma que, memória da Terra tende a prevalecer”.
ao longo do tempo geológico, “o vulcanismo Ernesto Lavina é geólogo e doutor em Ge-
é a chave de tudo o que acontece na Terra. Só ociências pela Universidade Federal do Rio
que, paralelamente a isso, temos a interferên- Grande do Sul – UFRGS. É professor na Uni-
cia humana”. Ele explica que “se não existisse versidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos.
o efeito estufa, a temperatura média da Terra Tem experiência na área de Geociências, atu-
seria algo como 18ºC abaixo de zero. Na ver- ando na área de geologia sedimentar.
www.ihu.unisinos.br
dade, o efeito estufa não é o vilão por si só. É Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor pode geológico, pelo menos nesse último de 640 milhões de anos atrás, em que
falar sobre as principais mudanças bilhão de anos (ou nesses últimos toda a Terra se congelou, inclusive o
climáticas ao longo da história da mil milhões de anos) mostra que ele Equador. É a teoria da Bola de Neve.
Terra? pode ser dividido em duas partes. A Outra coisa que é preciso entender: a
Ernesto Lavina – A Terra, ao lon- primeira, de 1 bilhão de anos até 550 Terra é um planeta vulcânico. Todo o
go do tempo, alterna períodos quen- milhões de anos atrás, é de quando sistema e a atmosfera da Terra – e seu
tes com períodos frios. A nossa épo- o planeta foi muito frio, mais frio até ecossistema – se mantêm por cau-
ca (atual) é considerada um período do que hoje. Havia muitas geleiras sa do vulcanismo. Se não existisse o
frio, em que existem calotas polares. espalhadas pelas latitudes médias e vulcanismo, nós não estaríamos aqui.
A observação e o estudo do registro altas. Houve um momento, em torno Estamos a aproximadamente 150 mi-

EDIÇÃO 417 | SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 57


lhões de quilômetros do sol. Isso é quantidade muito grande de CO2 na do a ver com isso, fiquei assombrado.
IHU em Revista
uma distância imensa. Se não existisse atmosfera, mas libera pouca cinza vul- Isso não é subjetivo. As geleiras estão
o efeito estufa, a temperatura média cânica. Esse vulcanismo, ao longo do derretendo, o nível do mar está subin-
da Terra seria algo como 18ºC abaixo tempo, vai produzindo o efeito estu- do, o CO2 está aumentando exponen-
de zero. Na verdade, o efeito estufa fa. O CO2 vai absorvendo a radiação cialmente (hoje deve estar cruzando a
não é o vilão por si só. É o acúmulo, infravermelha, o calor, e o planeta vai linha dos 400 ppms). O homem hoje
principalmente do vapor d’água, do esquentando. Só que existe um ou- está produzindo cerca de 10 bilhões
CO2 e um pouquinho de metano e tro tipo de vulcanismo, que joga uma de toneladas métricas por ano de
ozônio, que fazem com que a tempe- quantidade gigantesca de cinzas para CO2. Isso não é um número peque-
ratura seja algo hoje entre 13 e 14ºC a atmosfera superior. É uma explosão. no. Todo ano, a respiração de todos
acima de zero. Toda essa diferença é A câmara magmática vira literalmente os seres, os fogos naturais, as fuma-
devida à acumulação de vapor d’água pó. Se esse pó estiver em volume sufi- rolas vulcânicas no fundo do mar e
e de CO2, principalmente. O nitrogê- ciente para bloquear ou diminuir a ra- os vulcões de modo geral produzem
nio e o oxigênio, que são os gases que diação solar que chega à Terra, ocorre algo em torno de 150 e 200 bilhões
compõem 99% da atmosfera da Terra, o que se chama de inverno vulcânico: de toneladas métricas de CO2. Daí al-
são absolutamente transparentes à o planeta congela instantaneamente. guém pode dizer: ah, mas a indústria
radiação infravermelha. Isso significa Isso aconteceu há 74 mil anos. O mun- só produz 10 bilhões, o que é menos
que eles não absorvem nem emitem do passou por uma era glacial que de 5%. Então o homem só contribui
calor. Tudo o que acontece na Terra quase extinguiu a humanidade. Ao com 5% do CO2. Só que aqui temos
tem a ver com esse pequeno percen- longo do tempo geológico, o vulcanis- um outro dado: hoje se sabe que o
tual de vapor d’água e CO2 na atmos- mo é a chave de tudo o que acontece principal gás do efeito estufa na Terra
fera. Então, as principais mudanças na Terra. Só que, paralelamente a isso, é o vapor d’água. Se ele é o principal,
ao longo do tempo geológico se resu- temos a interferência humana. o CO2 é menos eficiente e o homem
mem à alternância de momentos de só contribui com 5%, então a socieda-
frio e calor. Como essa que eu citei, Informações da internet de industrial não seria a responsável
de um bilhão de anos até 550 milhões Ao fazer uma pesquisa na in- pelo aquecimento global. Só que aqui
de anos, quando a Terra foi muito fria, ternet fiquei impressionado com o é preciso ter em conta que existe uma
sendo que culminou num momento grau de desinformação das pessoas. série de ciclos de realimentações. O
em que a temperatura caiu abaixo de Existe muita falácia nessa questão do gelo, as calotas polares e geleiras são
zero e se pensa que deve ter havido aquecimento global. As pessoas se absolutamente sensíveis a qualquer
um manto de gelo com até dois qui- perguntam na internet como se pode variação na temperatura da terra.
lômetros de espessura cobrindo todo falar em aquecimento global antes de Onde o gelo recua, a região onde ago-
o planeta. E depois, em uma fase de existir o aparelho que media o CO2. ra é solo e água, tem capacidade de
um vulcanismo gigantesco, o planeta Ora, se pode sim. Aquela neve que cai reter muito mais calor, porque o gelo
aqueceu. E daí entramos nesses últi- nas geleiras vai aprisionando bolhas é reflexivo, ele devolve para o espaço
mos 500 milhões de anos em que o de ar. De modo que o gelo tem uma a maior parte da radiação solar que
planeta foi, na maior parte do tempo, quantidade grande de bolhas de ar bate sobre ele. Com esse aquecimen-
bem mais quente do que hoje, o que aprisionada. Então se pode, tirando o to da água e do solo, a atividade bac-
significa que não havia gelo, inclusive testemunho das grandes geleiras do teriana aumenta e o solo chega a ter
nos polos. Quando olhamos a história planeta, medir diretamente o teor das três vezes mais CO2 do que a atmosfe-
da Terra, os momentos em que exis- bolhas de ar. Podemos estudar hoje ra. Daí chegamos ao limiar do metano.
te gelo dos polos nesses últimos 550 os últimos 800 mil anos da história A Terra possui estoques gigantescos
milhões de anos são muito raros. Um da Terra a partir das bolhas de ar. O de metano: no fundo dos oceanos,
momento é o atual. Houve um outro, que se mostra é que nos últimos 800 nos solos congelados, nas florestas. O
há 300 milhões de anos, e outro, pe- mil anos o teor de CO2 na atmosfera metano é 23 vezes mais eficiente que
www.ihu.unisinos.br

queno, há 444 milhões de anos. Fora mal chegou a 300 ppms1. A partir da CO2 para aprisionar calor. Estamos
isso, a Terra era bem mais quente do revolução industrial, o CO2 começa a em um momento realmente crucial.
que hoje e o nível do mar era muito subir e desde 1983 ele literalmente Todas as vezes, nos últimos 800 mil
mais alto. dá um salto, com a curva de subida anos, em que a temperatura média
ficando quase vertical. Isso é dado ob- da Terra atingiu patamares como os
IHU On-Line – O que mais contri- jetivo. As pessoas duvidam que exista atuais, entramos em um novo período
bui para o aumento do aquecimento uma evidência física de que o mundo frio, que culmina com período glacial.
global: as mudanças cíclicas da Terra está mudando. Ela existe sim e são as Como não há nada de novo aconte-
ou a ação danosa do ser humano ao geleiras. É impressionante a compara- cendo em termos tectônicos na Terra,
meio ambiente? ção das fotos do início do século com poderíamos dizer que dentro de um
Ernesto Lavina – Na história da imagens atuais das maiores geleiras período de 10 a 15 mil anos entrare-
Terra, da qual o homem não faz parte, do planeta. Eu, que estou acostuma- mos em uma nova era glacial. É um
são as mudanças naturais, e aqui cito palpite, em função de que a memória
o vulcanismo, que joga em dois times. da Terra tende a prevalecer.
1 PPM: parts per million. (Nota da IHU
Um tipo de vulcanismo libera uma On-Line)

58 SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 | EDIÇÃO 417


IHU On-Line – Como a extração está melhorando. Aquela miséria ab- na prática, a partir do que foi divulga-

IHU em Revista
de carvão mineral para uso em usi- soluta na Terra está cada vez menor. do nos quatro relatórios anteriores?
nas termelétricas contribui para o Por mais que a renda ainda seja mal Ernesto Lavina – Tudo o que foi
aumento da emissão de CO2 e, con- distribuída, que os ricos sejam muito feito é muito pouco. Pode-se atacar o
sequentemente, para o aumento do ricos e os pobres sejam muito pobres, problema de várias formas, mas uma
aquecimento global? nós estamos evoluindo nesses últimos maneira essencial é a diminuição da
Ernesto Lavina – Todos nós gos- séculos. Porém, em tudo que se evo- produção de energia. E isso nos tira-
tamos de viver com os recursos da lui, em cada ponto que avançamos na ria do momento atual, da sociedade
tecnologia, mas devemos lembrar vida social, há por trás um consumo tecnológica.
que ela necessita de energia, que por energia extra, que libera CO2.
sua vez produz CO2. Precisamos es- IHU On-Line – E investir em fon-
clarecer que CO2 não é poluição. É IHU On-Line – Este ano será di- tes de energia alternativa, renovável?
um dos gases que nos permitem estar vulgado o quinto relatório do IPCC2. Ernesto Lavina – Esse é o cami-
aqui. Só que a Terra está em constan- O que esperar dele e o que foi feito, nho para o futuro, não tem jeito. No
tes mudanças. Se o CO2 continuar se entanto, custa muito dinheiro e ainda
elevando, o nível do mar e a tempe- não são muito eficientes essas outras
ratura média do planeta vão subir. No 2 IPCC (Intergovernmental Panel on formas. A forma mais eficiente, barata
Climate Change ou Painel Intergover-
futuro próximo não vejo maneiras de namental sobre Mudanças Climáticas):
e limpa de energia que temos é a mais
contornar isso. Porque sem energia as estabelecido em 1988 pela Organização perigosa, que é a energia nuclear. Se
coisas não acontecem. E ela sai jus- Meteorológica Mundial e o Programa das fosse para resolver imediatamente
Nações Unidas para o Meio Ambiente
tamente da queima do petróleo, do (PNUMA) para fornecer informações cien-
esse problema, teria que se trocar a
carvão, do gás natural. Toda a quei- tíficas, técnicas e socioeconômicas rele- matriz de produção de energia elétri-
ma produz CO2. Tudo o que a nossa vantes para o entendimento das mudan- ca do carvão para usinas nucleares.
ças climáticas. Seus impactos potenciais
sociedade faz, de uma forma ou de e opções de adaptação e mitigação. É um
No mundo são raríssimos os países
outra, libera CO2. A tendência é de órgão intergovernamental aberto para os que possuem recursos hídricos para
que vamos aumentar cada vez mais as países membros do Programa das Nações produzir grandes represas, como é o
Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e
taxas de emissão de CO2. No entan- da Organização Meteorológica Mundial
caso do Brasil e mais alguns poucos.
to, aos trancos e barrancos, o mundo (OMM). (Nota da IHU On-Line)

Acesse o Twitter do IHU em twitter.com/_ihu

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EDIÇÃO 417 | SÃO LEOPOLDO, 6 DE MAIO DE 2013 59


Contracapa
Agamben e Galimberti em debate no IHU
Na quinta-feira, 9 de XIV Simpósio Internacional IHU – Revoluções Tec-
maio, o professor Selvino nocientíficas, Culturas, Indivíduos e Sociedades. A mo-
Assmann da Universidade delagem da vida, da produção do conhecimento e dos
Federal de Santa Catarina produtos tecnológicos para a
(UFSC), tradutor para o tecnociência contemporâ-
português do livro O Rei- nea, a ser realizado nos dias
no e a Glória, de Giorgio 21 a 24 de outubro de 2014.
Agamben, participará do Ambos eventos ocor-
IHU Ideias, às 17h30, com a palestra “Opus Dei e Altissima rem na sala Sala Ignacio
Povertá – reflexões atuais de Giorgio Agamben”. Ellacuría e Companheiros,
Após, às 19h30, ele falará a partir do tema “Galimberti no IHU. Mais informações
e o homem na idade da técnica”, atividade que intera o em http://bit.ly/Yh1XrV e
http://bit.ly/Xz2zZ7.

Vaticano II e a semântica religiosa do futuro

A 76ª edição dos Cadernos Teologia Pública


traz o artigo intitulado “50 anos depois do Concílio
Vaticano II: indicações para a semântica religiosa do
futuro”. O autor é José Maria Vigil, teólogo espanhol
naturalizado nicaraguense e padre claretiano.
Acesse o link http://bit.ly/Ys7cr3 e faça o downlo-
ad desta edição em formato PDF.
Os Cadernos Teologia Pública podem ser adquiri-
dos diretamente no Instituto Humanitas Unisinos – IHU
ou solicitados pelo endereço humanitas@unisinos.br

Aquecimento global: as mudanças ao longo da história


O aqueci- no”, a ser proferida por Ernesto Lavina, professor
mento global da Unisinos, na próxima terça-feira, dia 7 de maio,
será o tema na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU,
da conferência das 19h30 às 22h.
“A q u e c i m e n t o
global: as mu- A conferência integra o I Seminário em prepa-
danças climá- ração ao XIV Simpósio Internacional IHU – Revo-
ticas ao longo luções Tecnocientíficas, Culturas, Indivíduos e So-
da história da ciedades, que ocorrerá de 21 a 24 de outubro de
Terra e suas im- 2014. Mais informações em http://bit.ly/11EFDHB.
plicações para
o futuro huma- Confira, nesta edição, uma entrevista com o
professor.

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