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JAQUES WAGNER PORQUEA ESQUERDANÃO POLITIZOU

O POVO BRASILEIRO,NÃO HÁ COMO PREVERUMA REVOLTADIANTE DO


RECRUDESCIMENTODA CRISE ECONÔMICA E DA PANDEMIA, O QUE HAVERÁ
É UMA QUADRA DE TENSIONAMENTOSOCIAL DE INCERTODESFECHO
QI/ Redes Sociais

Cancelados
O boicote nas redes sociais oscila entre uma estratégia legítima e o linchamento
virtual

Por Clarissa Carvalhaes

Houve um tempo em que escritores de prestígio e acadêmicos com talento para


escrever definiam o discurso das massas. Em artigos, eles articulavam o bom
senso - ou não - e a partir dali cada leitor escolhia as opiniões com as quais se
alinhava. Se ele discordava ou simplesmente cons iderava que poderia
acrescentar algo ao debate, escrevia uma carta que demorava dias para chegar
e, quando chegava, poderia ser lida ou não. E receber ou não uma resposta. Por
décadas, assim funcionou o circuito da chamada opinião pública, mas os
tempos mudaram. Hoje basta um clique. E bem mais do que seguir e comentar
sobre o que se lê, se assiste e se escuta nas redes sociais, o usuário pretende
ser ouvido ou simplesmente "cancelar" o que considera questionável ou
ofensivo.

Eis a questão. Ao lado do poder de ser escutado, internautas perceberam que


podem replicar no mundo virtual uma velha e conhecida prática do mundo real:
o boicote . Mas quando a cultura do cancelamento é uma arma legítima de
represália e quando ela deixa de ser protesto e se transforma em linchamento
virtual?

No processo histórico da cultura, muitos dos limites que definem o certo e o


errado estão esmaecidos, confusos ou ambíguos. Cristina Cypriano,
psicanalista e doutora em sociologia, avalia que nesse contexto passamos a
conviver com normas sociais emergentes e culturas muito jovens que passam a
estabelecer novos limites que, ainda que não estejam bem solidificados, estão
em constante processo de construção . E isso acontece tanto na vida real
quanto no mundo virtual. "Devemos levar em consideração os novos
movimentos sociais que são pautados em relação à vida íntima e pessoal.
Nesse lugar, o cancelamento aparece contra tudo aquilo ou todos aqueles que
ultrapassam certos pontos traçados por essas culturas jovens e novos
movimentos sociais. A cultura do cancelamento torna-se necessária, portanto,
como demarcação e reafirmação de limites."

Mas, como todo processo de regulação, a linha que separa o protesto legítimo
do autoritarismo e da negação ao diálogo é tênue. O psicanalista e professor
titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Christian Dunker
pontua que há um uso um tanto quanto exagerado do cancelamento, mas isso
não significa que ele deva ser invalidado. "Há que se distinguir o cancelamento,
ato político e estrategicamente bem-posto, do cancelamento autocrático, que
produz a sensação de moralismo. Toda vez que cancelo simplesmente porque
'eu não faria assim', pressupondo que o outro deva agir exatamente como eu
ajo, eu estou indo contra a inclusão, a universalização do diálogo. E, ainda mais
grave, ao me retirar do debate, o cancelado pode se beneficiar e criar um
ambiente ainda mais tóxico, machista, violento e, portanto, aumentar a
coerência identitária do seu grupo, o que seria péssimo."

Da influencer Gabriela Pugliese, que furou a quarentena para dar uma festa para
amigos, à atriz Thaila Ayala, que chamou sua marca de roupas de "Vir.us" em
meio à pandemia. Do youtuber Felipe Neto, após críticas ao governo Jair
Bolsonaro, à escritora J.K. Rowling, acusada de transfobia após publicar o texto
"Criando um mundo pós-Covid-19 mais igual para as pessoas que menstruam" .
A lista não é pequena e nenhum dos citados ficou indiferente aos reflexos dos
cancelamentos a que foram submetidos - de perda de contratos a seguidores
em queda .
/
!

Linha tênue Felipe Neto tem sido perseguido e Lilia Schwarcz pediu desculpas . JK
Rowlings aprendeu uma lição geracional , enquanto Thaila Ayala entendeu os
limites do oportun ismo

A historiadora Lilia Schwarcz, reconhecidamente uma das intelectuais mais


influentes do País, dedicada ao estudo do preconceito e do racialismo no Brasil,
viu-se no centro de debates, críticas e cancelamentos após publicar na Folha de
S.Paulo o artigo "Filme de Beyoncé erra ao glamourizar negritude com estampa
de ancinha". Dias depois, Schwarcz faria um mea-culpa nas redes sociais. "Errei
e peço desculpas aos feminismos negros e aos movimentos negros com os
quais desenvolvi, julgo eu, uma relação como aliada da causa antirracista",
escreveu no Twitter .

Christian Dunker, psicanalista:


"Transgressões, barreiras, barbáries e excessos são
próprios do novo"

A antropóloga social lzabel Accioly acredita que o cancelamento é importante


para que os indivíduos sejam responsabilizados pelo que fazem e falam nas
redes sociais, sobretudo quando se é uma pessoa pública, mas destaca que as
críticas devem ser qualificadas e não se limitarem a seguir um comportamento
de manada. "Como influenciador, você não pode achar que seu comportamento
não é formador de opinião. No caso da Lília, você a está cancelando porque viu
um Twitter que dizia que ela era racista, ou você a está criticando porque leu o
artigo e viu que ela critica uma imagem afrofuturista que ela nem sequer
conhece? Então, veja bem, são duas críticas distintas. Uma é violenta e rasa, a
outra está associada a argumentos."
Embora haja uma dependência entre si, os especialistas destacam que a cultura
do cancelamento e do linchamento virtual pressupõe comportamentos
distintos . "Enquanto o cancelamento diz respeito à demarcação de limites e
desautorização, o linchamento virtual dá um passo em direção à destruição,
aniquilação do indivíduo", avalia Cypriano.

Nos Estados Unidos, a tentativa de cancelar o cancelamento tem ganhado


fôlego, sobretudo entre os movimentos de direita. Enquanto acadêmicos
famosos assinaram a carta da Harper's Magazine que ataca a cultura do
cancelamento, o New York Times publicou o artigo "1 O teses sobre cultura do
cancelamento", assinado por Ross Douthat. Nele, o escritor diz que aqueles que
têm mais a temer o fenômeno geralmente reverberam o reacionarismo da era
Trump. "Os liberais ou centristas que temem o zelo da esquerda pelo
cancelamento precisam identificar os lugares em que acham que as novas
normas de esquerda não são apenas censuradoras demais, mas simplesmente
erradas, e aí travar a batalha, tanto no conteúdo quanto no princípio liberal",
sugere o texto.

Apesar das polêmicas que a cultura do cancelamento têm provocado, tanto no


Brasil quanto no exterior, Christian Dunker se diz otimista diante do fenômeno.
"Nenhuma transformação acontece sem engasgas ou recuos. Como vamos
criar uma cultura na internet, completamente nova, sem que apareçam em
algum momento transgressões, barreiras, barbáries, excessos? É próprio do
novo . É assim que acontece na vida e é assim que acontece na arte."

e CRÉDITOSDA PÁGINA: ILUSTRAÇÃO:PILAR VELLOSO- REDESSOCIAIS

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