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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA
COMPARADA

OTAVIO VIEIRA DO ROSÁRIO FILHO


N° USP: 8972980

Os objetos como Experiência Histórica


A silenciosa comunicação da ​Imagem Estética​ em Drummond e Kalf

PROFESSORA DOUTORA BETINA BISCHOF


LITERATURA COMPARADA I

SÃO PAULO
​2018
Os objetos como Experiência Histórica
A silenciosa comunicação da ​Imagem Estética​ em Drummond e Kalf

Literatura Comparada I

Trabalho final, apresentado à


Universidade de São Paulo, como
parte das exigências para a avaliação
da disciplina de Literatura
Comparada I.

São Paulo, Junho de 2018.

1
Quem decifra por baixo
a letra do menino,
agora que o homem sabe
dizer o que não mais
se oculta no seu peito?
Drummond

​“A esperança só nos é dada em nome dos desesperançados”


Walter Benjamin

“Não obstante, é tentador buscar o sentido não na vida em


geral, mas nos instantes de plenitude. Esses instantes
indenizariam a existência terrena pelo fato de ela não tolerar
mais nada fora dela.”
T. W. Adorno

2
Willem Kalf,​ Still Life with Silver Ewer​, ​Rijksmuseum, Amsterdam (1655-1657)

PAÍS DO AÇÚCAR
Começar pelo canudo,
passar ao branco pastel
de nata, doçura em prata,
e terminar no pudim?

Pois sim.
E o que boia na esmeralda
da compoteira:
molengos figos em calda,
e o que é cristal em laranja,
pêssego, cidra — vidrados?

A gula, faz tanto tempo,


cristalizada. 1

1
​ANDRADE, Carlos Drummond de. ​Boitempo & A Falta que Ama. ​2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973. p.105.

3
Numa emulação de movimento, o poema de Drummond plasma objetos e conduz os olhos do
leitor por estes. Registrado em literalidade, o ​mover-se​, gerado pelos verbos “começar”, “passar” e
“terminar”, envolve os alimentos em uma observação ausente de qualquer agente explícito: leitor e
narrador2 unem-se na contemplação de objetos suspensos que exigem uma mesa da imaginação, pois
os doces dispostos não assentam-se em base alguma. Tabuleiro, mesa ou balcão… nada se dá a
conhecer fisicamente. Os doces, retomados neste lavor poético, pendem absolutizados em uma
qualidade de matéria, mas não de sabores sob apreciação do ente. O quarto verso, que encerra a estrofe
enquanto pergunta, estabelece a suspensão de qualquer ação de contato com os quitutes. O correr dos
olhos pelo “canudo”, chegando ao “pastel de nata” dominado por uma qualificação de ordem visual
que reitera a ausência de satisfação ao paladar: é doçura, mas em prata intocada; e o passeio termina
no “pudim”, na pergunta, como já observado, sem nenhuma consideração sensorial. É quadro posto às
vistas.
Com recursos semelhantes a este registro de primado visual, vale voltarmos os olhos ao
Natureza Morta com Jarra de Prata​, de Willem Kalf, que em sua composição de todo harmoniosa
oferece verdadeira construção aos olhos. Nele, os objetos pousados serenamente em um nicho não
convidam ao toque; solenes, estão reduzidos à ambiência de cenário. A disposição em um nicho
plasma uma aspectualidade de monumento, o que é reforçado até mesmo pela simpática desordem
que pende da porcelana em flagrante artifício cênico.
No poema, a condução do olhar sobre os quitutes; no quadro, a contemplação dos objetos
divinizados em uma quietude de imagens sacras. A sugestão não soa descabida, uma vez que os
utensílios seculares, repito, repousam sob o invólucro numinoso de um nicho em tons acastanhados,
recebendo uma luz mortiça refratada na ampla gama de detalhes, arabescos de mais fino lavor.
Utensílios, sim, por suas anatomias e disposições conhecidas, mas utensílios em uma representação
grave, totêmica, na qual gravita a noção de uma opulência que neutraliza qualquer utilidade prática. Na
imanência estática do registro os objetos são retirados de sua dinâmica cotidiana, passam a pertencer
ao mundo de “uma narrativa suspensa”3 e postam-se na transcendência sensorial que exige um
entregar-se à observação, o que assemelha-se aos recursos sugestivos da primeira estrofe de “País do
Açúcar”, na qual os alimentos são dispostos sem apreciação de sabor ao serem envolvidos pela
indefinição dos verbos em infinitivo pessoal sem agente, indefinição esta que perpetua uma cadeia de

2
Por me sentir contemplado pela abordagem e em humilde e saudosa lembrança nos seus 100 anos, vou à esteira
do “mestre-açu Acê”, portanto, “usarei o designativo ​Narrador​, consagrado para mencionar a voz que se lançou
À procura do tempo perdido.​ ” ​CANDIDO, Antonio. Poesia e Ficção na Autobiografia. In: CANDIDO, Antonio.
A Educação pela Noite e Outros Ensaios. ​2. ed. São Paulo: Ática, 1989. p. 55.
3
Especificando o primado descritivo da arte holandesa em comparação a arte eminentemente narrativa da Itália,
reconhecidamente retórica, Svetlana Alpers nos diz: “O Caráter de Quietude ou de imobilidade dessas obras é
um sintoma de certa tensão entre os pressupostos narrativos da arte e uma atenção à presença descritiva.” Mais à
frente, a autora nos diz: “a arte do Norte não nos oferece um acesso verbal fácil. Ela não ocasion o seu próprio
modo de discurso crítico”. In: ALPERS​, Svetlana. ​A Arte de Descrever: ​A Arte Holandesa no Século XVII. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 1999. Tradução de Antonio de Padua Danesi. p.30; 32.

4
possibilidades inconclusas: começar - passar - terminar, nenhuma ação de comer ou tocar fica inscrita.
A estrofe, em seus recursos, delimita uma apresentação também visual, permitindo um exercício de
imaginação explicitado na conclusão — “e terminar no pudim?” — na qual encerra-se a consideração
do narrador lírico por sobre os objetos.
A análise anterior pode ser confirmada pela interjeição que abre a segunda estrofe: “Pois sim”
encerra o primeiro plano que fora visualizado e no sexto verso a abordagem passa a ser eminentemente
visual: aprecia-se aquilo que “bóia” na compoteira, esta que é apresentada sob o afeto da
caracterização de pedra preciosa: é esmeralda. Afeto na qualificação, distância enquanto preciosidade.
E nela, na compoteira, plasma-se o que é apresentado enquanto exterioridade física. O emprego
gráfico dos dois-pontos ao sétimo verso é recurso que performa a pausa para o registro da qualidade
plástica daquilo que será mostrado: boiam os figos que, apreciados em sua textura, são molengos; a
laranja, de antemão, é tida enquanto cristal, assim como o pêssego e a cidra na enumeração em
enjambement​. A exposição, o quadro dado aos olhos, é encerrado com um afastamento dos objetos e
um retorno à consideração estupefata da voz lírica que percebe e questiona: “vidrados?”. Os alimentos
para o seu paladar, as substâncias para o seu apetite, esbarram e permanecem naquele estado visual de
compoteira, boiando sensualmente, provocativas, sob o véu vítreo, distantes. O uso do travessão é
exemplar para tanto, posta-se no retorno à consciência do eu desperto, já apartado da ​apreciação e​
próximo da ​constatação incrível: vidrados, os alimentos não vão à boca. Nenhum toque permitido.
Gesto algum altera o silêncio plástico da sobremesa imaginada. A gula, encontramos no dístico final,
está cristalizada. Fatalmente. “Faz tanto tempo” é aposto que recrudesce a fatal distância, e nos lança
uma sugestão ambígua: a gula estaria há muito cristalizada? Ou há muito, no reino da memória posta,
a gula era cristalizada? É um problema a ser meditado, dada a sugestão dessa cesura que, pelo aposto,
organiza expressão e significado em uma compleição bimembre.
Em similitude de composição estática, plena não somente pela linguagem artística peculiar
mas por organização formal, a natureza-morta de Kalf repele qualquer gesto a despeito do caráter útil
dos utensílios. O líquido dourado na taça, impressionante pelo trabalho minucioso do reflexo, aparenta
uma continuidade do metal do suporte, é quedo no espesso vidro que ironicamente figura, à haste da
taça, um turbilhão de bolhas cristalinas, em uma emulação líquida aos olhos e não à sede de quem as
contempla. A impossibilidade do gesto parece tão mais latente naquilo que seria tão mais convidativo:
a fruta que pende no primeiro plano, tão próxima do observador, aparenta sustentar aquelas outras que
atropelam-na em harmonioso aglomerado. O menor sopro desorganizaria esta escultórica bagunça
descaída da soberba porcelana azulada, artificialmente inclinada, recostada à parede, retratada em uma
afetação tão inorgânica em sua posição que a delicada bússola a seu pé permanece impassível.
Ninguèm suporia menor possibilidade de desabamento. As coisas, aqui também, estão colocadas para
os olhos, para o registro.

5
A composição, notável em sua engenhosidade visual, atesta a habilidade das mãos e do olhar
do pintor que trabalha a superfície das texturas e contrastes; o reflexo da luz nos objetos e suas
sombras, que incidem na parede do nicho e nos objetos pareados, demonstram uma infinitesimal
meticulosidade. Ainda mais instigante é o limão descascado, aberto revelando as suas “estruturas
internas” em um recurso de divisão caprichosa no qual a umidade do fruto insinua a frescura de um
pomo recém descascado, “com a casca desprendida da polpa estendendo-se sinuosamente” para uma
“perscrutação do olho”. É uma “festa para os olhos”4, cuja soberba de detalhes transfigura a
trivialidade dos objetos representados e revitaliza-os à sombra de uma experiência apartada da
natureza cotidiana. Encerra-se o comum da vida e resgata as qualidades ordinárias sob a exibição
ostensiva de uma técnica de artífice, com uma “extraordinária exibição de habilidades”.5 Revitalizados
os objetos em uma aura de eternização, fica a estranheza diante dos quadros que manifestam a
ausência do respiro de uma transitoriedade daquilo que fenece, como os limões, essa obsessão de Kalf,
nos quais a ação implacável do tempo demonstra, dialeticamente, até mesmo o registro estático do
apodrecimento em meio aos frios objetos de vidro e metal polido. Tudo o que é registrado oferece
nada além de uma realidade de coisas sob olhar microscópico.
Em “País do Açúcar” o movimento é diverso. A revitalização dos objetos pela rememoração
do narrador lírico está condicionada não a um ​teor coisal exclusivo e latente mas sim à busca da
experiência de uma gula expressa na afetividade desperta pela lembrança dos alimentos da infância.
Tal experiência, contudo, torna-se tão mais aprofundada por estar ausente no presente do
memorialista: a gula é cristalizada e os doces estão vidrados nessa feitura poética que lança doses de
um ​teor estético ​ao ​teor coisal ​“graças a recursos expressivos próprios da ficção e da poesia, de
maneira a efetuar uma alteração no objeto específico”.6
“Faz tanto tempo”, portanto, apresenta-se como a chave de um temporalidade em que se
submerge as ações passadas para que emerja as lembranças presentes. Esse fio da rememoração, cabe
reforçar, não submete os objetos ao esfuminho da imaginação. As compoteiras recebem seus
qualificativos inquestionáveis: são esmeralda; o pastel, em sua doçura, é prata; os doces em compota
são cristal… O trabalho poético, circunscrito no afeto do nome dado às coisas, privilegia o conteúdo
com a “elaboração da forma [que] não chega a dispensar o sentimento vivo do objeto, ponto de
partida, porque o escritor quer justamente pô-lo à luz da ribalta, ​embora poeticamente transfigurado”​ .7
Tal transfiguração, como já observado, sob o uso dos qualificativos que singularizam os
objetos, também ocorre sob o recurso do afastamento registrado nos hiatos (interrogação, dois-pontos,
travessão) que antecedem as constatações do narrador lírico no presente textual. O aprofundamento,
ou melhor, a expansão lírica, é revelada na distância dos objetos e no retorno ao eu, aquele possidente

4
As aspas no período indicam considerações tomadas in: ​ALPERS. op.cit. p.195.
5
ibidem, p.159.
6
​CANDIDO. op. cit. p.51​.
7
Com grifo meu, CANDIDO. ibidem. p. 57.

6
da lembrança e não dos sabores para a satisfação de sua gula. A distância temporal, contudo, não
oblitera a clareza dos objetos; em verdade, estes retroalimentam a singularidade da lembrança
enquanto fragmentos que pertencem ao tempo transcorrido que recebe a sua revitalização na
experiência individual, afetiva no presente: “passa-se do presente, do circunstancial, para aquilo que
de essencial subsiste na sua evocação, após a passagem do tempo”.8 Notamos, portanto que o
adensamento da experiência, ou melhor, da busca pujante por essa experiência, é estabelecida pelo
nexo entre o sujeito e as ​coisas.​ Desejoso de alcançar uma experiência autêntica, o ​narrador lírico
retoma os objetos e os traz a si sob uma aura afetiva na qual urge o desvencilhamento da pura
objetividade do presente. Há, devemos acrescentar portanto, uma subjetividade que faz emergir, nos
auspícios da lembrança, uma ​presentificação da fratura havida entre o ​eu ​e o ​mundo que por si já
mostra-se coisificado.9
No quadro de Kalf a particularidade dos objetos é expressiva em sua aspectualidade grave,
caprichosa, cênica. O observador não pode deixar de regozijar-se com a aplicação do pintor no trato
daquelas miudezas ínfimas que no registro soam absurdas pelo fato de na vida corrente tantas vezes
passarem despercebidas devido ao automatismo cruel da instrumentalidade irrefletida. Aos olhos
nossos contemporâneos, as naturezas-mortas apontam o aguilhão que exige a contemplação demorada,
um ​abandonar-se frente à obra para que a captação dos detalhes se faça coerente com a
voluptuosidade da técnica, e esta exigência implica uma aproximação do dado artístico simultânea ao
esquecimento da utilidade prática de uma jarra ou do azedume de um limão pintado com o mesmo
virtuosismo e sob solenidade tal qual se aplicaria à representação de uma figura sagrada. Essa lição
dada para a correção da pressa da vida moderna e sua consequente vulgarização dos momentos pode
​ cujo pulsar se faz sentir até o presente”10— dos quadros de Kalf,
ser tida enquanto uma “​pós-vida —
estes que hoje nos falam contra a supressão das particularidades sob o exemplo inverso de sua
obsessão pelo singular naquilo que retratava. Seus cuidados constituíram um mundo de prazeres
contidos, sóbrios, de forma que “assemelham-se a um longo domingo”11. Tal poesia que agora injeto
nesta duração das obras em nossos dias, contudo, soaria como rude metafísica sem a consideração da
pré-história​ destes monumentos que ora atraem numeroso público aos museus.

8
Citação e sugestões reflexivas tomadas na belíssima dissertação de ​CASTELLI, Chantal. ​Lembranças em Conflito:
Poesia, Memória e História em Boitempo. 2002. 207 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Letras FFLCH-USP,
Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. Cap. 2.
9
Esta noção de ​fratura ​entre a voz lírica e o dado objetivo nasce da leitura de “Palestra sobre Lírica e Sociedade”. Nas
palavras de Adorno: “Entretanto, aquilo que entendemos por lírica, antes mesmo que tenhamos ampliado historicamente esse
conceito ou o direcionado criticamente contra a esfera individualista, ​contém em si mesmo, quanto mais pura ela se oferece, o
momento da fratura​. O eu que ganha voz na lírica é um que se determina e se exprime como oposto ao coletivo, à
objetividade.” Com grifo meu, In: ​ADORNO, T. W.. Palestra sobre Lírica e Sociedade. In: ADORNO, T. W.. ​Notas de
Literatura I. ​2. ed. São Paulo: Editora 34, 2012. p. 65-89. Tradução e apresentação de Jorge de Almeida. p.70
10
Desenvolvimento da caracterização da compreensão de uma “História Materialista da Cultura” tomada In:
BENJAMIN, Walter. Eduard Fuchs, Colecionador e Historiador. In: BENJAMIN, Walter. ​O Anjo da História. ​2. ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2016. p. 125-164. Tradução e Organização de João Barrento. p.129.
11
​Poética e assertiva imagem formulada por ALPERS. op. cit. p.32.
7
Neste mundo requintado dos caprichos técnicos reside o artífice, à sombra dos objetos
divinizados, em seu trabalho extenuante, tantas vezes manifesto na descrição rigorosa das coisas
ordinárias. Na representação, o testemunho nuclear das horas empregadas em uma especialização de
gênero que profetizava nada menos que a moderna divisão social do trabalho, constrangendo os ​gênios
de hoje não só às muitas horas diante dos cavaletes, mas também à barganha nas “feiras públicas para
negociar suas ​mercadorias”​ 12, o que tanta vez resultou em uma produção em série de quadros do
mesmo gênero. Qual narrativa e profundidade de experiência subsistiria ao jugo da troca mercantil em
nome das necessidades de sobrevivência de um artesão holandês?13 A subjetividade, no exemplo de
Kalf, é manifesta na imobilidade meticulosa, admirável, por certo, que faz rebrilhar, dialeticamente, a
submissão ao trabalho empedernido ao mesmo tempo em que a solene quietude clama, em seu
silêncio, contra a estreiteza da vida imposta pelo cálculo valoral tomado na aparência dos múltiplos
detalhes.
Jaz na apresentação da habilidade a administração do ofício. O mundo dominical sobre o qual
nos fala Svetlana Alpers resguarda em si a melancolia do processo de mitologização do
esclarecimento​, de um domínio sobre a natureza que arrancava do homem as percepções afetivas em
nome da “nova ciência experimental e pela tecnologia, [que] confirmaram as imagens como caminho
para o novo e inelutável conhecimento do mundo”.14 Afastamo-nos da noção de uma justificada
evolução da técnica em termos cientificistas progressivos, pois todo experimentalismo chega-nos
enquanto manifestação histórica alcançada a alto preço. Distanciamo-nos, portanto, do positivismo
elogioso, pois este “na evolução da técnica, só foi capaz de reconhecer os progressos da técnica, não
os retrocessos da sociedade”.15 Aquele núcleo numinoso e sem gesto, em seu silêncio de coisa
reduzida ao exame óptico, grita pelo movimento que lhe foi consumido e revolta-se contra a reificação
em uma “reação contra a opressão opaca do ‘corpo social’”.16 As ​coisas reclamam a sua possibilidade
de experiência viva, “enquanto força produtiva esteticamente libertada, representando a libertação que
é impedida pelas forças de produção”.17
Em Kalf, a estreiteza da vida imposta pelas horas de trabalho demonstráveis; em Drummond,
a busca pelo tempo ido num reatar dos fios da memória onde pendem os objetos qual móbile da
infância, inalcançáveis, sobre o adulto que anseia encontrá-los no trabalho com a palavra. Naquele, a
experiência posta no registro de gesto ausente; neste, o tatear aquilo que já não é táctil, mas

12
Com grifo meu. ​GOMBRICH, Ernst Hans. ​A História da Arte. ​16. ed. Rio de Janeiro: Ltc, 1999. Tradução de Álvaro
Cabral. p. 41​7.
13
​Svetlana Alpers também atesta-nos o vulto mercantil que envolvia a produção e venda destes quadros, pontualmente ela
nos informa nos seguintes termos: “Seu papel social (o da arte holandesa) não está longe daquele que tem a arte atual:
investimento líquido como prata, tapeçarias ou outros objetos de valor eram ​comprados nas lojas dos artistas ou no mercado
aberto como posses e pendurados, presume-se, para encher espaço e decorar as paredes domésticas. In: ALPERS. op cit. 32​.
14
ALPERS. op. cit. p.38​.
15
​BENJAMIN. op. cit. p.135
16
ADORNO, T. W.. ​Teoria Estética. ​Lisboa: Edições 70, 2008. Tradução de Artur Morão. p.59​.
17
​Idem
8
presentifica-se enquanto poesia. Em ambas as abordagens, o traço vívido do trabalho artístico
cinzelado pela experiência individual, subjetiva sim, encerradas em tão singular particularidade que
abrem-se enquanto “imagens da natureza coletiva com seu conteúdo histórico emergente”, despertas
na forma como sonho da experiência mediatizada, recrudescendo um conteúdo social, visto que “a
sociedade, a determinante da experiência, constitui as obras como seu verdadeiro sujeito”.18
Diz-nos Antonio Candido que o “Narrador Poético dá existência ao mundo de Minas no
começo do século”.19 Neste conjunto de “heterobiografia” que é ​Boitempo,​ então, onde se postaria
“País do Açúcar”, tão contido em desejos e reflexões trabalhadas na consciência pessoal da voz lírica?
O sonho do adulto em busca do tempo perdido talvez possa exprimir o coro dos inquietos no presente,
estes que voltam os olhos para o passado ameno, das delícias infantis, no qual repousam os objetos
felizes. Talvez este seja um traço mais que universalizante como pulsão da particularidade subjetiva.
Logo mais à frente, notaremos que este adensamento lírico é tão mais assertivo quanto mais explícitos
serão os ​nomes dados às coisas.​
Já em Kalf, o conteúdo universal, portanto histórico, permanece latente na dureza dos objetos
detalhados, manifesta na vivacidade do olhar e na prática laboral especializada, esta com vistas para as
vendas. “Tais quadros”, diz-nos Gombrich, “harmonizavam bem com uma sala de jantar e não
faltavam, por certo, os compradores”.20 O requinte da pintura enfeitava o interior burguês, ampliando a
opulência doméstica presente à mesa e também à parede nesta realização de uma ​multiplicação
transfiguradora d​ os utensílios tomados à vida cotidiana. Parece lícito considerar um veio histórico
sincrônico nesta eternização pictórica dos objetos usuais, por assim dizer, uma documentação
descritiva no presente da pintura que conferia importância à vida comum e que hoje chega a nós como
bens culturais do “gênios dos séculos”. Lembremo-nos, seguindo as ponderações de Svetlana Alpers,
que “a cultura visual era básica para a vida em sociedade. Pode[ndo]-se dizer que o olho era o
instrumento fundamental da ​auto-representação​, e a experiência visual um modo fundamental de
autoconsciência”​ .21
Assim como no poema de Drummond, onde a experiência subjetiva expande-se subsumida no
tatear incerto dos objetos perdidos, podemos dizer que no nicho de Kalf a natureza individual
permanece ostensiva na representação, circunscrita enquanto impertinente manifestação de uma
consciência em que pulsa o gume opressivo da vida administrada, refletida na composição contida e
calculada, visto que “as imagens genuinamente artísticas [possuem] um condão emancipador,
Justamente porque a arte participa do mítico, (...) as imagens estéticas preservam o condão de
conjurar o mito em que recai a história, promovendo uma desmistificação por meio do próprio mito”,

18
I​dem
19
​CANDIDO. op. cit. p.56​.
20
​ OMBRICH. op. cit. p.430​.
G
21
​Com grifo meu.​ ​ALPERS. op. cit. p.39.
9
em uma realização enquanto “antídoto desmitologizante, instilando o desencantamento no mundo
encantado pelo esclarecimento triunfante”.22
Em uma análise imanente e pormenorizada, notemos, a título de exemplo ostensivo desta
opulência sublinhada pela arte, o cuidado esmerado na representação da porcelana azul. Neste
cenário, ela é colocada com toda força de descrição: nos motivos florais, nas linhas radiais geométricas
e na já notada forma calculada de sua inclinação. Hoje não sabemos o seu preço à época do registro,
mas não causa espécie supor um dispêndio considerável do seu trânsito desde a China aos Países
Baixos, passando pelo trabalho dos atravessadores, até chegarem como elegante cobalto às refeições
familiares. O trabalho meticuloso de Kalf atesta-nos o seu valor, mas mais que isso, também ultrapassa
o determinante de luxo. Vejamos de perto: Ao lado da porcelana Kraak23 está a bússola, aberta e
deslocada em uma inutilidade circunstancial; neste
cenário de utensílios domésticos sugere-nos o trânsito
das navegações mercantes, a vida comercial posta à
mesa neste retrato também de país.
E a contemplação demorada pode oferecer-nos ainda
outros elementos de conteúdo histórico, reparemos os
relevos da jarra: em sua lateral uma figura de ancião
encara-nos melancolicamente; sua barba é um
redemoinho, um espiral que se desfaz em ondas abertas
aqui, mais fechadas acolá; sua cabeleira estende-se até a dureza
metálica inumana da alça. Um enorme peixe engole o seu
braço e abaixo deste uma circunferência prenhe de ondulações
radiais é tomada pelo reflexo do limão: um verdadeiro sol em
seu triste alaranjado de poente. Ao lado do ancião, a fina base
do suporte para taça é a escultura de um anjo, garoto
rechonchudo com a cabeça molemente pendida para o lado; é
também saturnina. Neste nicho das riquezas trazidas pelo mar,
Willem Kalf deixou insepulta a sorte dos náufragos.
Nas paredes de outrora, os bens consumidos carregam
a história de seu trânsito tantas vezes mortuário e o trabalho administrado que constrangia as

22
Partindo do germinal estudo da juventude de Adorno sobre Soren Kierkegaard, Maurício Chiarello traz-nos tais
considerações para introduzir as suas análises sobre ​finitude e negatividade​ na obra adorniana tardia, especificamente
Dialética Negativa​ e ​Teoria Estética,​ textos tão caros às interpretações que agora empreendo. ​Cf:​ ​CHIARELLO, Maurício.
Natureza-Morta: ​Finitude e Negatividade em T. W. Adorno. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.
p.23-24.
23
Informações sobre estilo, comércio e recepção tomadas In ​VINHAIS, Luisa; WELSH, Jorge (Org.). ​Porcelana Kraak: O
desenvolvimento do Comércio Global no final do século XVI e início do século XVII. ​Lisboa: Jorge Welsh Books, 2008.
Tradução de Alice Stiwell. Recentes buscas por arqueólogos marinhos encontram-nas intactas no fundo do mar.

10
expansões subjetivas do artista relegado à especialização do gênero. Na parede da memória de
Drummond, as iguarias portuguesas acumulam-se no reino infantil que o poeta nomeia “País do
Açúcar”. Neste “mundo de Minas do início do século”, trabalhado à luz do presente ficcional, o
narrador lírico conjura a nomenclatura sensivelmente inexpressiva, reificada, arrancando-a dos livros
de História, emancipando-na do mesquinho cálculo econômico para intitular o país saboroso da
infância perdida24 — assim como nos náufragos que imiscuem-se profanando o fausto do nicho
de Kalf — em uma “linguagem que se volta contra si mesma em busca de uma expressão
autêntica, capaz de emprestar voz ao carente de expressão”25, procurando restituir ao açúcar
que a si concede sua singularidade experiencial, diversa da do “ouro branco” assim tido desde
a empresa colonial; reivindicando para si uma objetividade absoluta talvez alcançada somente
pela lâmina da linguagem lírica, socialmente motivada, e posta contra a apagamento do índice
subjetivo numa tensão que tem sua gênese na realidade e por meio desta encontra no poema o
seu momento crítico, não reificado. Nas palavras de Adorno “​a aptidão que o materialismo
dialéctico reconhece de modo antimaterialista à obra de arte e que dela exige, alcança-a, no melhor dos
casos, quando esta impele tão longe, na sua própria estrutura monadologicamente fechada, a que lhe é
objectivamente imposta, a sua situação, que ela se torna crítica desta.”26
Em uma palavra, a onomástica dada ao mundo buscado mostra-se tão mais potente em
sua ​revitalização lírica por converter ​— sem alterar substantivamente, reiteramos ​— a frieza
que o próprio nome representa divergindo daquilo que oferece. O nome histórico, urge dizer,
traz consigo não somente a fantasmagoria comercial, mas também implica a objetividade
social infeliz que o constituiu desde a colônia: o trabalho humano, escravizado, nas plantações
de cana e usinas de engenho, estas últimas não distantes daquela vida agrária dos primeiros
anos do menino Carlos sob os cuidados da preta velha Sá Maria, a ex escrava tantas vezes
evocada em ​Boitempo ou no poema “Infância”, como aquela com a “voz que aprendeu/a ninar

24
​Impossível não recordar as “Meditações sobre a Metafísica” de Adorno, nas quais, retomando a experiência da busca em
Proust, encontra o universal no sonho infantil da felicidade prometida no nome dos lugarejos:
“O que é uma experiência metafísica é algo que aquele que se recusa com repugnância a reconduzi-la a supostas
vivências religiosas originárias presentificará a si mesmo da maneira mais própria possível como Proust, a partir da
felicidade, por exemplo, que é prometida por nomes de vilarejos como Otterbach, Watterbach, Reuenthal,
Monbrunn. Quando vamos para esses vilarejos, acreditamos ter encontrado a plenitude, como se ela existisse. Se
estamos realmente aí, o que foi prometido recua como o arco-íris.”
E mais à frente, tão mais afim de nossa interpretação da gula latente ao adulto e da imanência do triste designativo econômico
do título do poema:
“Para a criança, é óbvio que aquilo que a encanta em suas cidadezinhas adoradas só pode ser encontrado lá e em
nenhum outro lugar; ela se engana, mas o seu engano instaura o modelo da experiência, de um conceito que seria
finalmente o conceito da coisa mesma e não algo mísero extraído das coisas.” In:
ADORNO, T. W.. ​Dialética Negativa. ​Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. Tradução de Marco Antonio Casanova. p.309.
25
​Expressões tomadas no já citado estudo de Maurício Chiarello, especificamente cito um seu aforismo ao discorrer sobre a
noção de​ imagem estética​ na obra adorniana tardia.​Cf​: ​CHIARELLO. op. cit. p.25.
26
ADORNO. Teoria Estética. op. cit. p. 390

11
nos longes da senzala - e nunca se esqueceu” e “chamava para o café”. Tais ocorrências
sugerem-nos um ​lugar-comum n​ a poética drummondiana e, desta forma, a universalidade da
experiência individual conjuga a vida do ​narrador lírico,​ em seu esforço poético, à realidade
do sofrimento humano historicamente calado, mas manifesto nesta lembrança renitente da
escrava que não se esquece dos dias na senzala ou, voltando ao nosso poema, na inquietude
causada pelo nome inexpressivo. Os doces portugueses, caso sigamos esta interpretação, na
contingência memorialística testemunham que a fartura da mesa posta possui nexos objetivos
com a miséria colonial fundante daquele País ao qual o poeta ilumina afastando-se ao trilhar
os impulsos dos seus desejos. Retornamos, assim, às ​realizações comuns tanto ao quadro de
Kalf quanto ao poema de Drummond: em ambos a corveia da experiência individual torna-se
componente central da imagem estética nos momentos em que a individualidade faz emergir
“os sedimentos da relação histórica do sujeito com a objetividade, do indivíduo com a
sociedade”.27
O país do açúcar, com toda a sua crua realidade, é dado no título ​ipsis litteris,​ o que já
nos indica um não falseamento do triste conteúdo histórico. A transfiguração poética, como
ocorre com os objetos sob o signo do afeto28, realiza-se pois a “linguagem se molda
inteiramente aos impulsos subjetivos” e tais impulsos, expressos no afeto dedicado aos
objetos distantes e na ressignificação do nome esvaziado de sentido subjetivo, “soa na
linguagem, até que a própria linguagem ganha [a] voz” na qual o sujeito alcança a “expressão
feliz”29. A bem da verdade, devemos repisar que é o homem maduro, desencantado, que volta
os olhos para o passado e nele projeta determinada redenção que se apresenta enquanto
promessa dos sabores ora cristalizados, em um momento de reconciliação que vivifica saídas
e promessas, mas dialeticamente, com a mesma reconciliação, aponta-nos as fraturas
inconciliáveis.


❃ ❃

27
​ADORNO. Palestra sobre Lírica e Sociedade. op. cit. p.72.
28
​Uno a minha à interpretação de Chantal Castelli que, ao analisar “Três Compoteiras” e falar sobre a relação do narrador
lírico com a recuperação dos objetos, nos diz: “Sua recuperação servirá, como veremos, à tentativa de presentificação do
tempo perdido”. CASTELLI. op. cit. 166.
29
​ADORNO. Palestra sobre Lírica e Sociedade. op. cit. p.74.
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Bibliografia:

ADORNO, T. W.. ​Dialética Negativa. ​Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. Tradução de Marco
Antonio Casanova.

_________, T. W.. Palestra sobre Lírica e Sociedade. In: ADORNO, T. W.. ​Notas de Literatura I. ​2.
ed. São Paulo: Editora 34, 2012. p. 65-89. Tradução e apresentação de Jorge de Almeida.

_________, T. W.. ​Teoria Estética. ​Lisboa: Edições 70, 2008. Tradução de Artur Morão.

ALPERS, Svetlana. ​A Arte de Descrever: ​A Arte Holandesa no Século XVII. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1999. Tradução de Antonio de Padua Danesi.

ANDRADE, Carlos Drummond de. ​Boitempo & A Falta que Ama. ​2. ed. Rio de Janeiro: José
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História. ​2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. p. 125-164. Tradução e Organização de João
Barrento.

CANDIDO, Antonio. Poesia e Ficção na Autobiografia. In: CANDIDO, Antonio. ​A Educação pela
Noite e Outros Ensaios. ​2. ed. São Paulo: Ática, 1989.

CASTELLI, Chantal. ​Lembranças em Conflito: ​Poesia, Memória e História em ​Boitempo​. 2002. 207
f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Letras FFLCH-USP, Departamento de Teoria Literária e
Literatura Comparada, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.

CHIARELLO, Maurício. ​Natureza-Morta: ​Finitude e Negatividade em T. W. Adorno. São Paulo:


Editora da Universidade de São Paulo, 2006.

GOMBRICH, Ernst Hans. ​A História da Arte. ​16. ed. Rio de Janeiro: Ltc, 1999. Tradução de Álvaro
Cabral.

VINHAIS, Luisa; WELSH, Jorge (Org.). ​Porcelana Kraak: O desenvolvimento do Comércio


Global no final do século XVI e início do século XVII. ​Lisboa: Jorge Welsh Books, 2008. Tradução
de Alice Stiwell.

Outras obras consultadas não citadas no corpo do texto:


BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito da História. In: BENJAMIN, Walter. ​O Anjo da História. ​2.
ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. p. 9-20. Tradução e Organização de João Barrento

GALARD, Jean. Descartes e os Países Baixos: ​Discurso​, São Paulo, v. 2005, n. 35, p.129-142, 05 out.
2005. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/discurso/article/view/62577>. Acesso em: 12 jul.
2018.

LUKÁCS, G.. Narrar ou descrever?. In: ​Ensaios sobre Literatura​. São Paulo: Ed. Civilização
Brasileira. p.43-94. Tradução deste ensaio de Giseh Viana Konder.

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