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produção dos sujeitos e de constituição de espaço urbano, bem como dos fluxos e dos
identidades nacionais; sobretudo em seus sujeitos mediadores que as atravessam.
aspectos performativos e ritualizados, A abordagem de Feltran revela-se profí-
nos quais a materialidade dos poderes cua, uma vez que parte da desnaturaliza-
governamentais (em suas diversas ma- ção do “dever ser” do tecido social e suas
nifestações), por meio das rotinas e das demarcações polarizadas.
práticas cotidianas marcadas nos corpos, No seio deste premiado trabalho,
instaura um tempo-espaço diferenciado realizado entre os anos de 2005 e 2010,
capaz de operar um movimento duplo, sobrepuja a concepção de política como
ao mesmo tempo de formação de sub- jogo de disputas não apenas entre atores,
jetividades e de conformação da nação. mas pela formulação dos critérios de
Essa contribuição se torna especialmente instituição do mundo público, no qual
significativa por tratar dessas questões no certos grupos sociais agem para reafirmar
ambiente escolar, sem se ater, contudo, sua legitimidade, enquanto outros atuam
ao caráter evidentemente disciplinador para estabelecê-la. O mundo público é
dessa instituição. A escolha pelos atos então regido pela política e constitui-se
escolares – usualmente formulados como como espaço de visibilidade, circulação e
um momento “festivo”, “espontâneo”, confronto de discursos, onde o exercício
“desinteressado”, além do seu grande do poder perpassa tanto a conformação
apelo estético – se apresenta assim como da cena pública quanto o paradoxo da
uma alternativa criativa e estimulante igualdade de direitos em uma sociedade
para se pensarem esses temas já caros à profundamente hierarquizada.
antropologia. Vale ressaltar que as proposições de
cunho analítico foram desdobradas por
Feltran em sintonia direta com a descri-
ção da vida de pessoas de carne e osso.
FELTRAN, Gabriel de Santis. 2011. Fronteiras Conhecer as trajetórias da família de
de tensão: política e violência nas periferias Dona Sílvia e Seu Cláudio, de Dona Ivete,
de São Paulo. São Paulo: Editora Unesp. Pedro e de tantos outros é também traçar
376 pp. um panorama que, ao recuar no tempo e
combinar-se com o presente etnográfico,
afirma e evidencia a heterogeneidade nas
Aline Chaves Rabelo e Everton Rangel periferias urbanas.
Mestrandos PPGAS/MN/UFRJ  Na primeira parte do livro, a discussão
está centrada nas mudanças ocorridas,
Fronteiras de tensão, de Gabriel Feltran, é desde os anos 70 até os 90, no dia a dia
mais do que um convite à reflexão sobre dos moradores de Sapopemba. O marco
os processos de mudança pelos quais as temporal corresponderia à passagem do
grandes cidades brasileiras e suas pe- projeto da família operária de ascensão
riferias passaram nas últimas décadas. social, via ingresso no mercado de tra-
Sobressai nesta pesquisa a análise das balho e moral religiosa católica, para
tensões e das violências decorrentes do novos arranjos familiares marcados pela
processo de inscrição da população jovem individualização das opções de vida e
de Sapopemba, periferia consolidada da pela expansão do léxico do crime.
Zona Leste da cidade de São Paulo, no Se, por um lado, na narrativa de Pedro
mundo público. O livro nasce de uma apresentada no capítulo “As fronteiras
etnografia das fronteiras que dividem o do mundo do crime”, as famílias apare-
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cem como uma espécie de porto-seguro de locução determinado e alguma legitimi-


e reduto de uma moralidade singular dade para narrar seus dramas e reivindicar
guiada pelo trabalho lícito, por outro, a direitos, sempre a conquistar ” (:165).
entrada para a comunidade do crime é Assim sendo, tornar-se bandido, optar pelo
sedutora, na medida em que se vislum- mundo do crime, acaba por se revelar como
bram conquistas mais imediatas de bens perda do direito a ter direitos.
de consumo e prestígio. Neste sentido, Além do apagamento de quaisquer
forja-se uma oposição discursiva entre intermediários entre bandidos e traba-
trabalhador e bandido. O deslocamento lhadores, o resultado exponencial das
percorrido por Pedro, das esferas sociais transformações sociais decorridas nas
consideradas legítimas em direção ao últimas décadas seria a “multiplica-
crime, é percebido por Feltran como cria- ção imaginária do criminoso” (:187).
dor de uma condição de “inexistência do Esta concepção, segundo Feltran, está
indivíduo no mundo percebido como le- estreitamente relacionada à expansão
gítimo” (:78). Em contrapartida, o mundo do mundo do crime e tem por efeito a
do crime trava uma disputa com as famí- criminalização e a homogeneização das
lias, o Estado e as instituições religiosas periferias e de seus moradores na cena
pela legitimidade de elaborar e afirmar pública. Outra dimensão dessa expansão,
concepções de mundo, algo que infere, como já observado, diz respeito a uma
por conseguinte, sua atuação como um maior circulação do marco discursivo do
gestor de populações. crime, principalmente entre os jovens
É preciso notar que o olhar dirigido moradores das periferias urbanas.
às práticas cotidianas permitiu ao autor Se na primeira parte do livro predo-
atentar para a complexidade social e minam os processos de construção de
descrever relações em que a gramática do fronteiras marcadas pelos confrontos
crime e do trabalho coabita o mesmo lar. dissensuais, na segunda seção, as tensões
A questão tratada com mais proximidade passam a ser consideradas a partir do
no capítulo “Bandidos e trabalhadores: marco das mediações entre as periferias
coexistência” explicita um jogo social e as arenas públicas.
caracterizado por espécime de duplo As trajetórias dos moradores de Sapo-
vínculo. O conforto moral e simbólico é pemba encontram confluência nas possi-
proporcionado pelos filhos trabalhadores bilidades de trânsito diferenciadas dentro
de Ivete, enquanto o suporte financeiro de um espaço fundamentado em ações
é possibilitado pelos filhos pertencentes coletivas de cunho mediador e político.
ao mundo do crime. Deste ângulo, a co- Este espaço é institucionalizado como um
esão da família é fabricada em torno da Centro de Defesa da Criança e do Adoles-
figura materna, que valoriza os princípios cente – Cedeca, pensado para intervir no
morais, mas não nega a importância do tecido social a favor dos direitos formais,
dinheiro do crime para seu sustento: em defesa dos jovens em situação de risco
“tanto o crime quanto o trabalho fun- ou conflito com a lei.
cionam como elementos constitutivos e Um fator de destaque analisado pelo
legítimos” (:162). autor e que mostra ser de grande auxílio
No entanto, no mundo público, não há na compreensão das ações do Cedeca
espaço legítimo para a locução de bandi- de Sapopemba diz respeito ao fato de a
dos, o que bem se evidencia na reiteração entidade ter sido fundada a partir da con-
da frase: bandido bom é bandido morto. vergência de uma herança movimentista
Apenas “os trabalhadores têm um estatuto e um “sistema institucional de garantia
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de direitos formais” (:198). Tal hibridiza- consequentemente, de distintas práticas


ção confere formas de atuação distintas de violência: seja a violência cometida
diante de necessidades e situações espe- por policiais contra indivíduos que são
cíficas. Como mediadora de realidades, a tidos como suspeitos, seus familiares ou
entidade passou a oferecer atendimento contra aqueles que os representam na
aos jovens ingressos no mundo do crime cena pública, seja a violência desvelada
(baseado na construção de vínculos pes- pelo mundo do crime durante suas di-
soais e afetivos), ao mesmo tempo em versas atividades e no confronto com a
que possuía como projeto garantir formas polícia (ou vice-versa).
de mobilização política da periferia no Além de as disputas travadas no inte-
mundo público. rior do tecido social engendrarem forças
Contudo, com o aumento das deman- consideradas como violências – lícitas ou
das por atendimento, o Cedeca se tornou ilícitas, legitimadas socialmente ou não –
um braço executor de políticas públicas, Feltran propõe duas categorias relativas
enquanto sua dimensão reivindicativa, aos modos de violência exercidos no plano
contestadora e denunciadora ficou em se- ordinário e evidenciados por sua etnogra-
gundo plano. Como efeito do crescimento fia: violência massiva e violência política:
do aparato burocrático, produziu-se o A primeira utiliza-se da força para manter
acirramento do impasse entre o corpo uma população sob controle, ou seja, é
técnico profissional da entidade e o grupo imanente ao processo de expansão do
fundador militante. Para escapar da lógi- mundo do crime e à ação estatal de com-
ca gerencial e criar um novo espaço de bate ao que se considera ser pertencente
ação militante, fundou-se então o Centro a este mundo. A segunda designa o uso
de Direitos Humanos de Sapopemba – da força segundo a lógica de manter fora
CDHS. Nota-se, portanto, que o conflito da arena pública não só o sujeito que de-
pode ser tomado como indicativo do modo nuncia, mas também seus representados.
pelo qual as instâncias de gestão social Uma inferência nos é iluminada então
nas periferias se reproduzem. pelo autor: no que tange às periferias, as
Os eixos de articulação que passaram duas formas de violências: “atuam, poli-
a organizar as diversas ações políticas do ticamente, em um mesmo registro: ambas
CDHS fundamentavam-se na denúncia inibem a representação das periferias, em
de violações e na efetivação dos direitos especial de seus setores jovens, no mundo
subtraídos, especialmente no que tange de debates públicos. Ambas funcionam,
à violência e à corrupção policiais. Como portanto, de diferentes maneiras, para
resposta a essa atuação mais combativa, manter a restrição do direito a ter direitos.
ocorreram perseguições, ameaças de Ambas inibem a representação do todo
morte, exílios forçados e uma forte re- social no espaço público e são, assim,
pressão, direcionados substancialmente igualmente políticas (por se inscreverem
à Valdênia, principal liderança militante diretamente na disputa pela conformação
da entidade. É por esta razão que Feltran desse mundo público, e de quem tem ali
argumenta que o Cedeca e o CDHS atu- lugar de locução definido)” (:336).
am “no fio da navalha”, entre as práticas O trabalho de Feltran marca notoria-
de violência do crime e da polícia. mente os estudos urbanos brasileiros tan-
Na transição da Parte II para as “Notas to pela importância de sua contribuição
finais”, Feltran se dedica a enfatizar as à bibliografia especializada na relação
imbricações das variadas fronteiras urba- entre política e violência, como pela
nas na produção de distintas tensões e, excelência proveniente de uma pesquisa
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de campo minuciosa, atenta aos inúmeros Alguns gestos dos muriquis – os “abra-
aspectos que lhe são apresentados e sen- ços de mono”, por exemplo, que em um
sível às questões que povoam o universo primeiro momento denotariam sinais
estudado. agressivos em aberta resposta à agressão
Além das linhas argumentativas dos caçadores, convertem-se, no idioma
desdobradas pelo autor, o leitor poderá dos biólogos da estação, em padrão eto-
descobrir neste livro inúmeras descrições lógico. Mais tarde, a narração episódica
que remetem a outras temáticas, como, de um encontro entre primatólogos e
por exemplo, o protagonismo das mu- fazendeiros coloca perspectivas em jogo,
lheres e mães não apenas nas tramas da na medida em que, enquanto os biólogos
vida familiar, mas na lida com os agentes operavam com um fixismo identitário
do Estado e do crime. Neste sentido, as naturalista, um velho fazendeiro cedia à
reflexões proporcionadas pela leitura noção de mundos compartilhados. Este
deste livro despontam como guias para mesmo fixismo se cria em clara oposição
pesquisas ainda por fazer. a modelos primatológicos mais clássicos,
de tal forma que, no final da narrativa do
autor, “os biólogos reaproximam-se da
perspectiva dos habitantes locais de que
SÁ, Guilherme. 2013. No mesmo galho: an- os monos não são macacos”.
tropologia de coletivos humanos e animais. No composicionismo que é caracte-
Rio de Janeiro: 7 Letras. 224 pp. rístico desta descrição, incluir-se-ão a
eleição do muriqui como bandeira em
prol de preservação de espécies amea-
Graciela Froehlich e Rafael Antunes Almeida çadas de extinção e os pronunciamentos
PPGAS/UnB feitos por cientistas em jantares para
os patrocinadores da Estação. O autor,
O livro assinado por Guilherme Sá, pro- contudo, não cede à solução fácil de um
duto de sua tese de doutorado, constitui objeto em relação ao qual se acumulam
uma etnografia de coletivos de primató- diferentes pontos de vista. Contrapondo-
logos e primatas em uma estação de pes- se a uma posição de que aqueles primatas
quisa e preservação no interior do estado sempre estiveram lá, a abordagem do
de Minas Gerais: a Estação Biológica de autor se situa na tentativa de rastrear as
Caratinga (EBC). Seu tema, “as relações diferentes metáforas a eles associadas.
estabelecidas entre primatólogos e prima- Deste modo, fazendeiros, pesquisadores,
tas no contexto de produção científica” ambientalistas, jornalistas e políticos
(:183), contudo, nos leva muito além de aparecem no terceiro capítulo em rela-
uma minuciosa narrativa do encontro ção com estes primatas, e as narrativas
entre pesquisadores e muriquis. se ocupam de descrever de que modo
Na própria descrição dos primatas, diferentes associações também ensejam
por exemplo, já se entrevê que esta só a transformação nos próprios termos.
pode ser feita por meio de associações É no ato de nomeação dos muriquis
observadas entre o animal e os outros que Sá identifica a primeira instância
actantes com os quais se relaciona. Desta intersubjetiva na relação entre primatas
feita, aqueles aparecem menos como uma e primatólogos. Escapando da noção de
espécie natural, e mais como um feixe projeção, o autor recorre, por seu turno,
de engajamentos, a partir dos quais eles à noção de relações intersubjetivas. Estas
emergem enquanto realidade. são construídas como resultantes da ação

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